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Processos Criativos e Educacionais em Artes 2

2021, Processos Criativos e Educacionais em Artes 2

https://doi.org/10.22533/at.ed.022212604

Caros leitores e leitoras; O processo de criar significa um processo vivencial (...) enriquece espiritualmente o indivíduo que cria, como também o indivíduo que recebe a criação e a recria para si (OSTROWER, 1987, p. 135). Manifesta-se criativamente e artisticamente acompanha a evolução humana desde os tempos primórdios. Nesse sentido, a partir de suas mais variadas linguagens, a arte, bem como a produção artística se mostra um mecanismo de extrema importância para compreensão sócio histórica e cultural de um determinado período e sociedade. Essas manifestações se mostram como uma ferramenta muito importante para formação dos sujeitos, tornando-os sensíveis as suas relações sociais e contribuindo, significativamente, para uma valorização de suas identidades culturais. Para tanto, a coletânea “Processo Criativos e Educacionais em Artes 2” reuniu pesquisas, nacionais e internacionais, com temáticas variadas que tiveram em comum os eixos da Arte, Criação e Educação com o propósito de apontar aos leitores as possibilidades entorno da ampliação dos olhares sobre os mais variados aspectos, abordagens e desdobramentos sobre as questões acerca das técnicas e metodologias criativas e educacionais no campo das artes, sobretudo na contemporaneidade. Os vinte e três capítulos que compõem essa coletânea possuem um caráter interdisciplinar, e conta com pesquisas atuais e com alto rigor científico de diversas áreas do conhecimento, ainda há contribuições de pesquisadores diversos, tornando-se fundamental e necessário para uma construção a respeito dos debates e das reflexões, a partir de distintas áreas do conhecimento, para que possamos dialogar sobre as questões em torno dos processos criativos e educacionais nos campos das artes. Ressaltamos ainda, mediante essa coletânea, a importância da divulgação científica, em especial no campo das Artes e, especialmente, a Atena Editora pela consolidação de publicações de pesquisas que exploram e divulgam esse universo. Ademais, espera-se que os textos aqui expostos possam ampliar de forma positiva os olhares e as reflexões de todos os leitores e leitoras, oportunizando o surgimento de novas pesquisas e olhares sobre o universo das Artes, dos Processo Criativos e da Educação. A todos e todas, uma excelente leitura!

Editora Chefe Profª Drª Antonella Carvalho de Oliveira Assistentes Editoriais Natalia Oliveira Bruno Oliveira Flávia Roberta Barão Bibliotecária Janaina Ramos Projeto Gráfico e Diagramação Natália Sandrini de Azevedo Camila Alves de Cremo Luiza Alves Batista Maria Alice Pinheiro Imagens da Capa Shutterstock Edição de Arte Luiza Alves Batista Revisão Os Autores 2021 by Atena Editora Copyright © Atena Editora Copyright do Texto © 2021 Os autores Copyright da Edição © 2021 Atena Editora Direitos para esta edição cedidos à Atena Editora pelos autores. Todo o conteúdo deste livro está licenciado sob uma Licença de Atribuição Creative Commons. Atribuição-Não-ComercialNãoDerivativos 4.0 Internacional (CC BY-NC-ND 4.0). O conteúdo dos artigos e seus dados em sua forma, correção e confiabilidade são de responsabilidade exclusiva dos autores, inclusive não representam necessariamente a posição oficial da Atena Editora. 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Conselho Editorial Ciências Humanas e Sociais Aplicadas Prof. Dr. Alexandre Jose Schumacher – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Paraná Prof. Dr. Américo Junior Nunes da Silva – Universidade do Estado da Bahia Prof. Dr. Antonio Carlos Frasson – Universidade Tecnológica Federal do Paraná Prof. Dr. Antonio Gasparetto Júnior – Instituto Federal do Sudeste de Minas Gerais Prof. Dr. Antonio Isidro-Filho – Universidade de Brasília Prof. Dr. Carlos Antonio de Souza Moraes – Universidade Federal Fluminense Prof. Dr. Crisóstomo Lima do Nascimento – Universidade Federal Fluminense Profª Drª Cristina Gaio – Universidade de Lisboa Prof. Dr. Daniel Richard Sant’Ana – Universidade de Brasília Prof. Dr. Deyvison de Lima Oliveira – Universidade Federal de Rondônia Profª Drª Dilma Antunes Silva – Universidade Federal de São Paulo Prof. Dr. Edvaldo Antunes de Farias – Universidade Estácio de Sá Prof. Dr. Elson Ferreira Costa – Universidade do Estado do Pará Prof. Dr. Eloi Martins 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Mackenzie Prof. Dr. Carlos Eduardo Sanches de Andrade – Universidade Federal de Goiás Profª Drª Carmen Lúcia Voigt – Universidade Norte do Paraná Prof. Dr. Cleiseano Emanuel da Silva Paniagua – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás Prof. Dr. Douglas Gonçalves da Silva – Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia Prof. Dr. Eloi Rufato Junior – Universidade Tecnológica Federal do Paraná Profª Drª Érica de Melo Azevedo – Instituto Federal do Rio de Janeiro Prof. Dr. Fabrício Menezes Ramos – Instituto Federal do Pará Profª Dra. Jéssica Verger Nardeli – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho Prof. Dr. Juliano Carlo Rufino de Freitas – Universidade Federal de Campina Grande Profª Drª Luciana do Nascimento Mendes – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte Prof. Dr. Marcelo Marques – Universidade Estadual de Maringá Prof. Dr. Marco Aurélio Kistemann Junior – Universidade Federal de Juiz de Fora Profª Drª Neiva Maria de Almeida – Universidade Federal da Paraíba Profª Drª Natiéli Piovesan – Instituto Federal do Rio Grande do Norte Profª Drª Priscila Tessmer Scaglioni – Universidade Federal de Pelotas Prof. Dr. Sidney Gonçalo de Lima – Universidade Federal do Piauí Prof. Dr. Takeshy Tachizawa – Faculdade de Campo Limpo Paulista Linguística, Letras e Artes Profª Drª Adriana Demite Stephani – Universidade Federal do Tocantins Profª Drª Angeli Rose do Nascimento – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro Profª Drª Carolina Fernandes da Silva Mandaji – Universidade Tecnológica Federal do Paraná Profª Drª Denise Rocha – Universidade Federal do Ceará Profª Drª Edna Alencar da Silva Rivera – Instituto Federal de São Paulo Profª DrªFernanda Tonelli – Instituto Federal de São Paulo, Prof. Dr. Fabiano Tadeu Grazioli – Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões Prof. Dr. Gilmei Fleck – Universidade Estadual do Oeste do Paraná Profª Drª Keyla Christina Almeida Portela – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Paraná Profª Drª Miranilde Oliveira Neves – Instituto de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará Profª Drª Sandra Regina Gardacho Pietrobon – Universidade Estadual do Centro-Oeste Profª Drª Sheila Marta Carregosa Rocha – Universidade do Estado da Bahia Conselho Técnico Científico Prof. Me. Abrãao Carvalho Nogueira – Universidade Federal do Espírito Santo Prof. Me. Adalberto Zorzo – Centro Estadual de Educação Tecnológica Paula Souza Prof. Dr. Adaylson Wagner Sousa de Vasconcelos – Ordem dos Advogados do Brasil/Seccional Paraíba Prof. Dr. Adilson Tadeu Basquerote Silva – Universidade para o Desenvolvimento do Alto Vale do Itajaí Profª Ma. Adriana Regina Vettorazzi Schmitt – Instituto Federal de Santa Catarina Prof. Dr. Alex Luis dos Santos – Universidade Federal de Minas Gerais Prof. Me. Alexsandro Teixeira Ribeiro – Centro Universitário Internacional Profª Ma. Aline Ferreira Antunes – Universidade Federal de Goiás Profª Drª Amanda Vasconcelos Guimarães – Universidade Federal de Lavras Prof. Me. André Flávio Gonçalves Silva – Universidade Federal do Maranhão Profª Ma. Andréa Cristina Marques de Araújo – Universidade Fernando Pessoa Profª Drª Andreza Lopes – Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento Acadêmico Profª Drª Andrezza Miguel da Silva – Faculdade da Amazônia Profª Ma. Anelisa Mota Gregoleti – Universidade Estadual de Maringá Profª Ma. Anne Karynne da Silva Barbosa – Universidade Federal do Maranhão Prof. Dr. Antonio Hot Pereira de Faria – Polícia Militar de Minas Gerais Prof. Me. Armando Dias Duarte – Universidade Federal de Pernambuco Profª Ma. Bianca Camargo Martins – UniCesumar Profª Ma. Carolina Shimomura Nanya – Universidade Federal de São Carlos Prof. Me. Carlos Antônio dos Santos – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro Prof. Me. Carlos Augusto Zilli – Instituto Federal de Santa Catarina Prof. Me. Christopher Smith Bignardi Neves – Universidade Federal do Paraná Profª Drª Cláudia de Araújo Marques – Faculdade de Música do Espírito Santo Profª Drª Cláudia Taís Siqueira Cagliari – Centro Universitário Dinâmica das Cataratas Prof. Me. Clécio Danilo Dias da Silva – Universidade Federal do Rio Grande do Norte Prof. Me. Daniel da Silva Miranda – Universidade Federal do Pará Profª Ma. Daniela da Silva Rodrigues – Universidade de Brasília Profª Ma. Daniela Remião de Macedo – Universidade de Lisboa Profª Ma. Dayane de Melo Barros – Universidade Federal de Pernambuco Prof. Me. Douglas Santos Mezacas – Universidade Estadual de Goiás Prof. Me. Edevaldo de Castro Monteiro – Embrapa Agrobiologia Prof. Me. Edson Ribeiro de Britto de Almeida Junior – Universidade Estadual de Maringá Prof. Me. Eduardo Gomes de Oliveira – Faculdades Unificadas Doctum de Cataguases Prof. Me. Eduardo Henrique Ferreira – Faculdade Pitágoras de Londrina Prof. Dr. Edwaldo Costa – Marinha do Brasil Prof. Me. Eliel Constantino da Silva – Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Prof. Me. Ernane Rosa Martins – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás Prof. Me. Euvaldo de Sousa Costa Junior – Prefeitura Municipal de São João do Piauí Prof. Dr. Everaldo dos Santos Mendes – Instituto Edith Theresa Hedwing Stein Prof. Me. Ezequiel Martins Ferreira – Universidade Federal de Goiás Profª Ma. Fabiana Coelho Couto Rocha Corrêa – Centro Universitário Estácio Juiz de Fora Prof. Me. Fabiano Eloy Atílio Batista – Universidade Federal de Viçosa Prof. Me. Felipe da Costa Negrão – Universidade Federal do Amazonas Prof. Me. Francisco Odécio Sales – Instituto Federal do Ceará Prof. Me. Francisco Sérgio Lopes Vasconcelos Filho – Universidade Federal do Cariri Profª Drª Germana Ponce de Leon Ramírez – Centro Universitário Adventista de São Paulo Prof. Me. Gevair Campos – Instituto Mineiro de Agropecuária Prof. Me. Givanildo de Oliveira Santos – Secretaria da Educação de Goiás Prof. Dr. Guilherme Renato Gomes – Universidade Norte do Paraná Prof. Me. Gustavo Krahl – Universidade do Oeste de Santa Catarina Prof. Me. Helton Rangel Coutinho Junior – Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro Profª Ma. Isabelle Cerqueira Sousa – Universidade de Fortaleza Profª Ma. Jaqueline Oliveira Rezende – Universidade Federal de Uberlândia Prof. Me. Javier Antonio Albornoz – University of Miami and Miami Dade College Prof. Me. Jhonatan da Silva Lima – Universidade Federal do Pará Prof. Dr. José Carlos da Silva Mendes – Instituto de Psicologia Cognitiva, Desenvolvimento Humano e Social Prof. Me. Jose Elyton Batista dos Santos – Universidade Federal de Sergipe Prof. Me. José Luiz Leonardo de Araujo Pimenta – Instituto Nacional de Investigación Agropecuaria Uruguay Prof. Me. José Messias Ribeiro Júnior – Instituto Federal de Educação Tecnológica de Pernambuco Profª Drª Juliana Santana de Curcio – Universidade Federal de Goiás Profª Ma. Juliana Thaisa Rodrigues Pacheco – Universidade Estadual de Ponta Grossa Profª Drª Kamilly Souza do Vale – Núcleo de Pesquisas Fenomenológicas/UFPA Prof. Dr. Kárpio Márcio de Siqueira – Universidade do Estado da Bahia Profª Drª Karina de Araújo Dias – Prefeitura Municipal de Florianópolis Prof. Dr. Lázaro Castro Silva Nascimento – Laboratório de Fenomenologia & Subjetividade/UFPR Prof. Me. Leonardo Tullio – Universidade Estadual de Ponta Grossa Profª Ma. Lilian Coelho de Freitas – Instituto Federal do Pará Profª Ma. Lilian de Souza – Faculdade de Tecnologia de Itu Profª Ma. Liliani Aparecida Sereno Fontes de Medeiros – Consórcio CEDERJ Profª Drª Lívia do Carmo Silva – Universidade Federal de Goiás Prof. Dr. Lucio Marques Vieira Souza – Secretaria de Estado da Educação, do Esporte e da Cultura de Sergipe Prof. Dr. Luan Vinicius Bernardelli – Universidade Estadual do Paraná Profª Ma. Luana Ferreira dos Santos – Universidade Estadual de Santa Cruz Profª Ma. Luana Vieira Toledo – Universidade Federal de Viçosa Prof. Me. Luis Henrique Almeida Castro – Universidade Federal da Grande Dourados Prof. Me. Luiz Renato da Silva Rocha – Faculdade de Música do Espírito Santo Profª Ma. Luma Sarai de Oliveira – Universidade Estadual de Campinas Prof. Dr. Michel da Costa – Universidade Metropolitana de Santos Prof. Me. Marcelo da Fonseca Ferreira da Silva – Governo do Estado do Espírito Santo Prof. Dr. Marcelo Máximo Purificação – Fundação Integrada Municipal de Ensino Superior Prof. Me. Marcos Aurelio Alves e Silva – Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo Profª Ma. Maria Elanny Damasceno Silva – Universidade Federal do Ceará Profª Ma. Marileila Marques Toledo – Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri Prof. Dr. Pedro Henrique Abreu Moura – Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais Prof. Me. Pedro Panhoca da Silva – Universidade Presbiteriana Mackenzie Profª Drª Poliana Arruda Fajardo – Universidade Federal de São Carlos Prof. Me. Rafael Cunha Ferro – Universidade Anhembi Morumbi Prof. Me. Ricardo Sérgio da Silva – Universidade Federal de Pernambuco Prof. Me. Renan Monteiro do Nascimento – Universidade de Brasília Prof. Me. Renato Faria da Gama – Instituto Gama – Medicina Personalizada e Integrativa Profª Ma. Renata Luciane Polsaque Young Blood – UniSecal Prof. Me. Robson Lucas Soares da Silva – Universidade Federal da Paraíba Prof. Me. Sebastião André Barbosa Junior – Universidade Federal Rural de Pernambuco Profª Ma. Silene Ribeiro Miranda Barbosa – Consultoria Brasileira de Ensino, Pesquisa e Extensão Profª Ma. Solange Aparecida de Souza Monteiro – Instituto Federal de São Paulo Profª Ma. Taiane Aparecida Ribeiro Nepomoceno – Universidade Estadual do Oeste do Paraná Prof. Me. Tallys Newton Fernandes de Matos – Faculdade Regional Jaguaribana Profª Ma. Thatianny Jasmine Castro Martins de Carvalho – Universidade Federal do Piauí Prof. Me. Tiago Silvio Dedoné – Colégio ECEL Positivo Prof. Dr. Welleson Feitosa Gazel – Universidade Paulista Processos criativos e educacionais em artes 2 Bibliotecária: Diagramação: Correção: Edição de Arte: Revisão: Organizador: Janaina Ramos Maria Alice Pinheiro Giovanna Sandrini de Azevedo Luiza Alves Batista Os Autores Fabiano Eloy Atílio Batista Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) P963 Processos criativos e educacionais em artes 2 / Organizador Fabiano Eloy Atílio Batista. – Ponta Grossa - PR: Atena, 2021. Formato: PDF Requisitos de sistema: Adobe Acrobat Reader Modo de acesso: World Wide Web Inclui bibliografia ISBN 978-65-5983-002-2 DOI 10.22533/at.ed.022212604 1. Artes. I. Batista, Fabiano Eloy Atílio (Organizador). II. Título. CDD 700 Elaborado por Bibliotecária Janaina Ramos – CRB-8/9166 Atena Editora Ponta Grossa – Paraná – Brasil Telefone: +55 (42) 3323-5493 www.atenaeditora.com.br contato@atenaeditora.com.br DECLARAÇÃO DOS AUTORES Os autores desta obra: 1. Atestam não possuir qualquer interesse comercial que constitua um conflito de interesses em relação ao artigo científico publicado; 2. Declaram que participaram ativamente da construção dos respectivos manuscritos, preferencialmente na: a) Concepção do estudo, e/ou aquisição de dados, e/ou análise e interpretação de dados; b) Elaboração do artigo ou revisão com vistas a tornar o material intelectualmente relevante; c) Aprovação final do manuscrito para submissão.; 3. Certificam que os artigos científicos publicados estão completamente isentos de dados e/ou resultados fraudulentos; 4. Confirmam a citação e a referência correta de todos os dados e de interpretações de dados de outras pesquisas; 5. Reconhecem terem informado todas as fontes de financiamento recebidas para a consecução da pesquisa. APRESENTAÇÃO Caros leitores e leitoras; O processo de criar significa um processo vivencial (...) enriquece espiritualmente o indivíduo que cria, como também o indivíduo que recebe a criação e a recria para si. (OSTROWER, 1987, p.135)1 Manifesta-se criativamente e artisticamente acompanha a evolução humana desde os tempos primórdios. Nesse sentido, a partir de suas mais variadas linguagens, a arte, bem como a produção artística se mostra um mecanismo de extrema importância para compreensão sócio histórica e cultural de um determinado período e sociedade. Essas manifestações se mostram como uma ferramenta muito importante para formação dos sujeitos, tornando-os sensíveis as suas relações sociais e contribuindo, significativamente, para uma valorização de suas identidades culturais. Para tanto, a coletânea “Processo Criativos e Educacionais em Artes 2” reuniu pesquisas, nacionais e internacionais, com temáticas variadas que tiveram em comum os eixos da Arte, Criação e Educação com o propósito de apontar aos leitores as possibilidades entorno da ampliação dos olhares sobre os mais variados aspectos, abordagens e desdobramentos sobre as questões acerca das técnicas e metodologias criativas e educacionais no campo das artes, sobretudo na contemporaneidade. Os vinte e quatro capítulos que compõem essa coletânea possuem um caráter interdisciplinar, e conta com pesquisas atuais e com alto rigor científico de diversas áreas do conhecimento, ainda há contribuições de pesquisadores diversos, tornando-se fundamental e necessário para uma construção a respeito dos debates e das reflexões, a partir de distintas áreas do conhecimento, para que possamos dialogar sobre as questões em torno dos processos criativos e educacionais nos campos das artes. Ressaltamos ainda, mediante essa coletânea, a importância da divulgação científica, em especial no campo das Artes e, especialmente, a Atena Editora pela consolidação de publicações de pesquisas que exploram e divulgam esse universo. Ademais, espera-se que os textos aqui expostos possam ampliar de forma positiva os olhares e as reflexões de todos os leitores e leitoras, oportunizando o surgimento de novas pesquisas e olhares sobre o universo das Artes, dos Processo Criativos e da Educação. A todos e todas, uma excelente leitura! Fabiano Eloy Atílio Batista 1 OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. Petrópolis: Vozes, 1987. SUMÁRIO CAPÍTULO 1 ................................................................................................................. 1 INTERSECÇÕES ARTE, CIÊNCIA, TECNOLOGIA: PESQUISAS E EXPERIMENTAÇÕES ACADÊMICAS Adriana Gomes de Oliveira Hugo de Andrade Tardivo Júlia Almeida Rocha DOI 10.22533/at.ed.0222126041 CAPÍTULO 2 ...............................................................................................................16 PELA LINHA DO TREM: O COTIDIANO DA ESCOLA PÚBLICA E O SURGIMENTO DO PROJETO FALE SOBRE MIM Luiza Rangel Cordeiro DOI 10.22533/at.ed.0222126042 CAPÍTULO 3 ...............................................................................................................26 UMA LUZ PARA O CORPO: UMA METODOLOGIA DE ENSINO A PARTIR DE UMA PRÁTICA DE ENSINO-APRENDIZAGEM José Geraldo Furtado Gomes DOI 10.22533/at.ed.0222126043 CAPÍTULO 4 ...............................................................................................................33 LEITURA DE HISTÓRIAS EM QUADRINHOS: UM ESTUDO DE ESTRATÉGIAS Fábia Fagundes Pacheco Joccitiel Dias da Silva Bartira Zanotelli Dias da Silva DOI 10.22533/at.ed.0222126044 CAPÍTULO 5 ...............................................................................................................45 CORPO-OBJETO-OBRA: UMA EXPERIÊNCIA EM EXPANSÃO JUNTO À DISCIPLINA TÉCNICA DE MANIPULAÇÃO DE OBJETOS Julia Coelho Franca de Mamari DOI 10.22533/at.ed.0222126045 CAPÍTULO 6 ...............................................................................................................50 ARTE EFÊMERA: (IM)POSSIBILIDADE DE PATRIMONIALIZAÇÃO Maria Eduarda Rozario Nadja Carvalho Lamas DOI 10.22533/at.ed.0222126046 CAPÍTULO 7 ...............................................................................................................57 ARTESANIA DA CENA TEATRAL CONTEMPORÂNEA: TRABALHO IMAGINATIVO E AUTOFORMAÇÃO DOCENTE Maria Edneia Gonçalves Quinto DOI 10.22533/at.ed.0222126047 SUMÁRIO CAPÍTULO 8 ...............................................................................................................70 ATELIÊS/SEMINÁRIOS : O CASO DA ORIENTAÇÃO EM ARTES VISUAIS DO GRUPO ATOS CULTIVADOS NO CONTEXTO DO PROGRAMA VOCACIONAL Talita Caselato DOI 10.22533/at.ed.0222126048 CAPÍTULO 9 ...............................................................................................................79 O DESIGN THINKING COMO ABORDAGEM EDUCACIONAL CONTEMPORÂNEA: POSSIBILIDADES NA ARTE-EDUCAÇÃO Bruna Nátali da Rosa Gisele dos Santos DOI 10.22533/at.ed.0222126049 CAPÍTULO 10.............................................................................................................93 O PROJETO ROCK E O GOSTO DOS ALUNOS António José Pacheco Ribeiro DOI 10.22533/at.ed.02221260410 CAPÍTULO 11 ...........................................................................................................103 O PARADOXO DO DEPOIMENTO Daniel Furtado Simões da Silva DOI 10.22533/at.ed.02221260411 CAPÍTULO 12........................................................................................................... 113 OS PRINCÍPIOS DA PESQUISA: UMA BUSCA POR MULHERES DRAMATURGAS EM MACAPÁ Juliana Souto Lemos Mariana de Lima e Muniz DOI 10.22533/at.ed.02221260412 CAPÍTULO 13...........................................................................................................123 CORPO NO MOVIMENTO DE CRIAÇÃO Gabriela Gonçalves DOI 10.22533/at.ed.02221260413 CAPÍTULO 14...........................................................................................................128 PROCESSOS FORMATIVOS EM TEATRO MUSICAL NO ENSINO TÉCNICO: A EXPERIÊNCIA SENSORIAL QUE REVELA O ARTISTA MULTIPERCEPTIVO NO ALUNOATOR Fidelcino Neves Reis DOI 10.22533/at.ed.02221260414 CAPÍTULO 15...........................................................................................................140 EDUCAR COM CRIATIVIDADE: SER PÁSSARO OU CARNEIRINHO NA APRENDIZAGEM DA COMPOSIÇÃO MUSICAL José Augusto Neves de Moura António José Pacheco Ribeiro DOI 10.22533/at.ed.02221260415 SUMÁRIO CAPÍTULO 16...........................................................................................................154 CATEGORIAS E CRITÉRIOS PARA ANÁLISE DE DIFICULDADES MUSICAIS EM OBRAS ESCRITAS PARA PIANO Júnia Gonçalves Santiago DOI 10.22533/at.ed.02221260416 CAPÍTULO 17...........................................................................................................165 ANÁLISE DA DIFICULDADE TÉCNICA PIANÍSTICA NA I SUÍTE BRASILEIRA DE OSCAR LORENZO FERNANDEZ Júnia Gonçalves Santiago DOI 10.22533/at.ed.02221260417 CAPÍTULO 18...........................................................................................................178 ANÁLISE DA DIFICULDADE TÉCNICA PIANÍSTICA NA II SUÍTE BRASILEIRA DE OSCAR LORENZO FERNANDEZ Júnia Gonçalves Santiago DOI 10.22533/at.ed.02221260418 CAPÍTULO 19...........................................................................................................192 ANÁLISE DA DIFICULDADE TÉCNICA PIANÍSTICA NA III SUÍTE BRASILEIRA DE OSCAR LORENZO FERNANDEZ Júnia Gonçalves Santiago DOI 10.22533/at.ed.02221260419 CAPÍTULO 20...........................................................................................................204 BRASILIANAS IV E V PARA PIANO DE RADAMÉS GNATTALI: UMA ANÁLISE MUSICAL TIPIFICADA, INTERPRETATIVA E COMPARATIVA Felipe Aparecido de Mello DOI 10.22533/at.ed.02221260420 CAPÍTULO 21...........................................................................................................220 IMPORTÂNCIA DA TRANSCRIÇÃO MUSICAL Luiz Renato da Silva Rocha Rafael da Silva Rocha Roger da Silva Rocha DOI 10.22533/at.ed.02221260421 CAPÍTULO 22...........................................................................................................233 MÚSICA E INTERDISCIPLINARIDADE: AÇÕES PEDAGÓGICAS E REFLEXIVAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL Andréia Miranda de Moraes Nascimento Julia Raquel Ismael Azzi Larissa Cristine Ladeia DOI 10.22533/at.ed.02221260422 SUMÁRIO CAPÍTULO 23...........................................................................................................241 A PRÁTICA DA DANÇA NA ESCOLA POR MEIO DO BALLET CLÁSSICO E SUA CONTRIBUÍÇÃO PARA O DESENVOLVIMENTO COGNITIVO DE CRIANÇAS DA EDUCAÇÃO INFANTIL Maria Laura Porto Calil Nayra de Souza Mothé Alvarenga Priscilla Gonçalves de Azevedo DOI 10.22533/at.ed.02221260423 CAPÍTULO 24...........................................................................................................253 ASPECTOS DA FOTOGRAFIA SURREALISTA: UM ESTUDO DE CASO Carolina Bento Safi Agnaldo Farias DOI 10.22533/at.ed.02221260424 SOBRE O ORGANIZADOR .....................................................................................266 ÍNDICE REMISSIVO .................................................................................................267 SUMÁRIO doi CAPÍTULO 1 INTERSECÇÕES ARTE, CIÊNCIA, TECNOLOGIA: PESQUISAS E EXPERIMENTAÇÕES ACADÊMICAS Data de aceite: 16/04/2021 Adriana Gomes de Oliveira Instituto de Artes e Design da Universidade Federal de Juiz de Fora – IAD-UFJF http://lattes.cnpq.br/6535951731540200 Hugo de Andrade Tardivo Instituto de Artes e Design da Universidade Federal de Juiz de Fora – IAD-UFJF http://lattes.cnpq.br/5263360079354612 Júlia Almeida Rocha Instituto de Artes e Design da Universidade Federal de Juiz de Fora – IAD-UFJF http://lattes.cnpq.br/1148434898250807 the years 2019-2020, which intersect art, science and technology. An extension project for children and youth education, with the participation of Julia Rocha, a scientific initiation project with the participation of Hugo Tardivo, also mentioning his artistic initiation, and a discipline that explored the concept of morphic fields. KEYWORDS: Art, Science, Technology, Morphic Fields 1 | PROJETO DE EXTENSÃO INTERSECÇÕES ARTE E CIÊNCIA, COM A PARTICIPAÇÃO DE JÚLIA ROCHA O Projeto de extensão, Intersecções Arte e Ciência, que foi desenvolvido no Instituto Estadual de Educação de Juiz de Fora (Escola RESUMO: O presente texto apresenta três propostas desenvolvidas e coordenadas pela Professora Adriana Oliveira, no Instituto de Artes e Design da Universidade Federal de Juiz de Fora, entre os anos de 2019-2020, que interseccionam arte, ciência e tecnologia. Um projeto de extensão para educação infantojuvenil, que teve a participação de Julia Rocha, um projeto de iniciação científica com a participação de Hugo Tardivo, mencionando também sua iniciação artística, e uma disciplina que explorou o conceito de campos mórficos. PALAVRAS - CHAVE: Arte, Ciência, Tecnologia, Campos Mórficos ABSTRACT: This text presents three proposals developed and coordinated by Professor Adriana Oliveira, from the Institute of Arts and Design at the Federal University of Juiz de Fora, between Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Normal), no primeiro semestre de 2019, teve como objetivo levar para crianças que estavam cursando o ensino fundamental um quadro imagético de fenômenos científicos de alta complexidade por meio de filmes infantis e atividades lúdicas que funcionassem como pontes de compreensão. Em um primeiro momento, foram exibidos os seguintes filmes: Tomorrowland - Um Lugar Onde Nada é Impossível e Uma dobra no tempo, este segundo foi um dos motivos que me conectou à professora Adriana, que orientou e participou o projeto. O filme trata da história de Meg, uma criança inteligente que não se encaixa no ambiente escolar. Apesar da narrativa centrada na vida desta personagem, tanto o livro quanto o filme, adaptado, apresentam de maneira Capítulo 1 1 simplificada a realidade científica e carregam neles a mensagem de que a ciência está para todos, especialmente para as crianças. Os estudos a respeito da tridimensionalidade, viagens interplanetárias e anos luz deram o pontapé inicial para as aulas ministradas. Vejam aqui — disse a Sra. Quequeé —, se um minúsculo inseto quisesse ir deste ponto da saia na mão direita da Sra. Quem para aquele ponto na mão esquerda, teria que fazer uma longa caminhada em linha reta. A Sra. Quem juntou as duas mãos em um gesto rápido, ainda segurando a saia. — Agora, vejam, ele está lá sem todo o deslocamento — disse a Sra. Quequeé. — É assim que viajamos. (Trechos do livro Uma Dobra no Tempo, capítulo 5: O Tesseracto) A partir deste trecho do livro e da apresentação do filme, lançado em 2018, iniciouse um diálogo sobre qual era o entendimento dos alunos ao se percorrer distâncias de modo rápido ou devagar, e suas respostas se resumiram a meios de transporte como moto, metrô, ônibus e bicicleta, sucessivamente. Levantei a questão de como eles achavam que poderia ser a viagem para a Lua ou Marte, e a maioria chegou à conclusão de que o foguete era a melhor alternativa. Porém, o propósito não era que pensassem por meio de tanta lógica, mas que desenvolvessem alternativas criativas para a situação, portanto levei um “telefone de lata”, brinquedo esse que eles nunca haviam visto ou acessado. Ali eles entenderam que nem tudo que vai de um lugar até o outro, precisa acontecer por meios visíveis, tecnológicos e palpáveis. Lhes foi explicado, então, que a voz viajava e percorria a linha que prendia as duas latas a partir de vibrações, sem tecnologia ou eletricidade; e eles, assim, se comunicavam. Definido esse entendimento, expliquei o que seria o Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 1 2 entrelaçamento quântico, a comunicação que ocorre por meio de moléculas semelhantes e presentes em objetos diferentes, que se sintonizam, e transmitem informações por um caminho invisível de enorme distância. Ou seja, aqui, como metáfora, as duas latas representavam os objetos em comum e a linha representava o caminho e a distância entre ambos, mesmo que o corpo deles não pudesse viajar de um lugar para outro, suas vozes poderiam. O fenômeno foi definido por Einstein como “ação fantasmagórica à distância”, as descobertas que permeiam essa interação entre objetos são tidas como base da teoria quântica, pois esta mostra que para além das interações entre as partículas em análise, elas estão aptas para afetar um corpo sem contato físico e sem estímulo mecânico. (Site Inovação Tecnológica) Após a explicação e a brincadeira com o telefone de lata, transmitimos a cena de Uma dobra no tempo em que Meg e seu irmão vão tesserar pela primeira vez. Apesar dos aspectos fantasiosos presentes na cena, as crianças conseguiram associar facilmente com o entrelaçamento quântico, pois entenderam que para ir de uma “dimensão” à outra bastava encontrar a ponte “invisível” que as conecta. O propósito dos encontros foi se solidificando aos poucos, e os alunos já entendiam a partir do próprio repertório alguns dos conceitos fundamentais e estruturais da física quântica. Em outro momento, me utilizando das palavras e narrativas de Madeleine L’engle, escritora de Uma dobra no tempo, expliquei brevemente o que seria uma dimensão e quais seriam as diferenças entre elas. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 1 3 (Trechos do livro Uma Dobra no Tempo, capítulo 5: O Tesseracto) Desenhei, nessa mesma ordem, uma linha, um quadrado e um cubo e apesar das crianças não terem compreendido muito bem como um cubo poderia ser multiplicado duas vezes, entenderam que as dimensões estão conectadas e que de algum modo foi isso que permitiu Meg de tesserar; ou seja, viajar no espaço. Como aspecto imagético, para além dos filmes que já apresentavam cenários “impossíveis” e vividos, algumas imagens foram escolhidas e explicadas. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 1 4 Algumas imagens microscópicas de fungos e nebulosas foram usadas como mecanismo para aproximar da realidade os cenários de outras dimensões apresentados nos filmes. Essas imagens causaram o impacto necessário no repertório visual daquelas crianças que, após três encontros, já se mostravam mais curiosas nas realizações das atividades, e mais confiantes para falar a respeito dos assuntos levados. Como forma de trabalhar o visual, objetos incomuns e variados da professora foram levados e a atividade proposta pedia que brincassem com o encaixe, refração e possibilidades de composição, para que fossem fotografados. Apresentei alguns conceitos básicos sobre o uso da câmera do celular que possibilitaram que mais cenários fossem fotografados. Imagens feitas durante as aulas, com objetos tridimenscionais variados e celulares Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 1 5 Essas fotografias permitiram o estudo e o entendimento quase que poético de universos impossíveis; as crianças manusearam os objetos e fizeram encaixes de modo intuitivo, recriando até mesmo cenas dos filmes, na tentativa de entendê-las. As atividades se mostraram fundamentais para a compreensão dos temas, visto que por ser um momento de descontração, as crianças ficavam mais confortáveis e debatiam entre si suas dúvidas e entendimentos. Imagens feitas durante as aulas, com materiais para desenho e massinha de modelar É importante ressaltar que as motivações em promover diálogos sobre temas complexos da ciência, partem da necessidade de torná-los acessíveis para alunos de escolas públicas e/ou periféricas. Esta foi uma experiência extracurricular que não se baseava em uma metodologia muito comum e enrijecida, o que possibilitou que os alunos se sentissem autônomos em suas descobertas de um estudo novo e nunca visto. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 1 6 Acima alguns trabalhos feitos em massinha e desenho, explorando materiais diversos. Vale ressaltar que toda a parte plástica foi custeada pela professora, uma vez que o projeto ocorreu sem qualquer tipo de verba para sua execução. Foi submetido como demanda espontânea, em um momento em que não havia valores disponíveis para os projetos de extensão, dentro da Universidade, e Julia foi bolsista-voluntária. Objetiva-se dar continuidade a esta proposta, agora na Escola Estadual Fernando Lobo, com a qual já está entabulada uma parceria, com apoio da direção, submetendo a proposta a um edital remunerado. 2 | PROJETO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA ARTE, CIÊNCIA, TECNOLOGIA: LINHA DO TEMPO E A PARTICIPAÇÃO DE HUGO TARDIVO Minha participação no projeto Arte, Ciência, Tecnologia: Linha do Tempo, no qual tenho uma bolsa de Iniciação Científica na modalidade Vic, desde setembro de 2020, se dá através de levantamento de dados bibliográficos, informações extras e curiosidades, sob indicação da professora Adriana Oliveira. Tenho buscado sempre conexões para a com os conteúdos trabalhados na disciplina ‘Ateliê de Artes e Novas Tecnologias’ - ofertada pelo Instituto de Artes e Design-UFJF, e ministrada pela professora. As pesquisas decorrem de forma ampla e diversa, seguindo sempre a linha temporal dos acontecimentos - a professora pretende criar uma linha do tempo dinâmica e conectiva. A participação neste trabalho abre novos horizontes artísticos e acadêmicos para mim. Sendo apresentado a obras e estilos que me identifico, além de despertar interesses científico-práticos nos laços tecnológicos, midiáticos e artísticos. Também tenho colaborado, paralelamente a isto, na materialização destas aulas, na medida em que edito os vídeos (por fora da pesquisa Vic), além do conteúdo da pesquisa, propriamente falando. Sob supervisão e encaminhamento da orientadora, busco os entrelaçamentos da tecnologia, ciência e momentos artísticos variados. Dessa forma, observando como tais relações são intrínsecas e definidoras. Funcionando em alguns momentos como um tríplice, uma aliança que sustenta e norteia os passos da humanidade. A relação arte-ciência pode ser observada de diversas maneiras ao decorrer da história. Leonardo da Vinci (1452-1519) alegava que estas se complementam, compondo uma função intelectual. Artistas compreendem a ficção científica como uma antecipação pelas artes de desenvolvimentos feitos da ciência. Nesses casos, bastante distantes, há algo em comum: a inter-relação entre arte e ciência, seja pela complementaridade ou pela influência recíproca. Ainda sobre as atividades desenvolvidas na bolsa Vic, num primeiro momento realizei o levantamento bibliográfico de 15 invenções e/ou descobertas, indicadas pela professora Adriana, que serão aprofundados, algum(s) dele(s), em um artigo posterior. Em paralelo, desenvolvi slides sobre cada tema, para organização, que foram acrescidos e finalizados pela professora. Também paralelamente, estes arquivos foram utilizados em Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 1 7 vídeo-aulas, com áudios gravados por ela, editados por mim, e disponibilizados aos alunos. Os itens pesquisados foram: 1. Invenção Dos Pigmentos e Da Tinta Em Tubo; 2. Invenção Do Relógio - A Contagem Do Tempo; 3. Invenção Dos Algarismos Romanos; 4. Invenção Da Escrita; 5. Guttemberg E A Imprensa; 6. Invenção Da Fotografia - A Câmera Fotográfica; 7. Invenção do Rádio, 8. Invenção da Televisão, 9. Invenção Das Lentes E Óculos; 10. Invenção Da Lâmpada Elétrica; 11. Invenção Do Computador; 12. Invenção Dos Sensores Digitais; 13. Autômatos, Robôs, Ciborgues, Cíbridos e Weareables; 14. Invenção dos Celulares, 15. Descoberta Do Átomo À Física Quântica e o Computador Quântico. Adriana nos fala que esta linha do tempo (que está em desenvolvimento) é relevante, na medida em que, através das descobertas e curiosidades, ocorridas nestes diferentes campos do conhecimento, é possível transitar, poética e conceitualmente, das técnicas para a história, da história para as tecnologias e conceitos correlacionados, e assim sucessivamente, alimentando um campo de conhecimentos que só cresce. Já ultrapassa setenta anos a trajetória dos artistas contemporâneos no trânsito entre a arte e as áreas tecnocientíficas, graças aos avanços diversos da comunicação (mídias), da computação, da engenharia genética, por exemplo. Destes cruzamentos surgem nomenclaturas como arte eletrônica, arte-comunicação, arte-tecnologia, artemídia, ou ainda, arte transgênica. Todas estas nomenclaturas denotam estes campos de cruzamentos interdisciplinares. No Brasil, Abraham Palatnik (1928) e Waldemar Cordeiro (1925-1973) são considerados os pioneiros dessa convergência entre arte, tecnologia e ciência. As obras de Palatnik fazem parte da chamada arte-cinética, isto é, apresentam eletroímãs ou motores de pequenas dimensões e, conforme a ação da luz, mudam de coloração. Waldemar Cordeiro, contemporâneo de Palatnik, introduziu em 1970, o uso do computador nas artes visuais. Abraham Palatnik aparelho cinecromático sf-4 , 1954 / 2004 madeira, metal, tecido sintético, lâmpadas e motor 61,5 X 81,5 X 20 cm Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 1 8 Atente-se como, comenta Adriana, nesta imagem abstrata de Palatinik, feita com lâmpadas e motores, as diferentes visões de mundos, citados acima por Júlia, no contexto dos filmes infanto-juvenis, também se revelam. E, pegando a perspectiva da nossa Linha do Tempo, se relacionam com a pintura abstrata, por exemplo. Somente aqui viria todo um contexto de estudos e de pesquisas criativas, que poderiam interessar, de maneiras diversas, a vários indivíduos: cor luz e cor pigmento, formas, composição, composição em movimento (animação), engrenagens e seus movimentos, etc. Aqui o conceito de Intermídia, ainda nos fala Adriana, se faz necessário ser abordado. Uma ideia que se transforma em outra, mudando-se os suportes e mantendose os conceitos é chamada de tradução intersemiótica, um braço da Intermidialidade. Este mecanismo operacional é potente para a alimentação dos processos criativos, da curiosidade e, consequentemente, das pesquisas. 2.1 Contemporaneidade: Arte-Tecnologia-Comunicação – A importância dos Smartphones Expandindo repertório, agora em uma pesquisa pessoal, parto para exemplos atuais, onde as relações arte-tecnologia-comunicação seguem caminhos de convergência, em alguns casos até mesmo de fusão (ex: Smartphones-Câmeras Fotográficas). O tema me desperta grande interesse, iniciando assim o projeto ‘A Importância do Smartphone na Fotografia Contemporânea’, do qual sou bolsista no PIBIART-UFJF (Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Artística), sob a orientação da Professora Adriana. A proposta desta pesquisa é focar nos dispositivos móveis (principalmente Smartphones) como instrumento fundamental nos dias de hoje para a produção fotográfica. Além de estudar o caráter ubíquo desses dispositivos, um traço importante da contemporaneidade. A fotografia apresentava claros sinais de transformações nos últimos anos, um processo que acelerou por conta da pandemia de Covid-19 e a consequente necessidade de isolamento social. As produções fotográficas passaram a depositar em lentes de smartphones o papel de principal meio de obtenção de registros artísticos, além de claro entretenimento e divertimento. Dessa forma temos uma arte contemporânea inserida nas tecnologias-comunicativas, ou artemídia, como já mencionado. O projeto, assim, tem uma intenção artística, científica e educativa, baseando-se em pesquisas de linguagem, além de referências online e bibliográficas, para ampliação de repertório próprio (técnico e artístico). Os conhecimentos adquiridos serão exercitados também através da execução de oficinas. Como exemplos temos a experimentação, estudo e produção autoral de ‘Filtros do Instagram’: Na Imagem 1 referencio a pintura francesa do final do Séc. XIX - o Impressionismo. Na Imagem 2, com as plantas, tento criar a noção de ‘moldura’, para assim trazer certo foco à pessoa e ao animal, porém com bastante informação visual. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 1 9 3 | DISCIPLINA PRÁTICA ARTÍSTICA ACOMPANHADA E A EXPERIÊNCIA DE ADRIANA OLIVEIRA COM O CONCEITO DE CAMPO MÓRFICO Na disciplina prática artística acompanhada, ministrada por mim no primeiro semestre de 2019, trabalhei com o conceito de campo mórfico, elaborado pelo biólogo Rupert Sheldrake. Foi um grande desafio trazer um conceito relativamente hermético para um contexto de ensino da arte, no qual a proposta era os alunos produzirem dentro de uma proposta que vinha sendo trabalhada pela professora. Os campos mórficos, definindo-os, são campos nos quais memórias (informações) são passados geração na geração, revelando hábitos, que podem aparecer nas moléculas, nos cristais, nas ideias, nas famílias, nas sociedades etc. Estes hábitos se fazem presentes para sistemas semelhantes, e vão variando sua estrutura, de maneira cumulativa, no espaço e no tempo (Hendges). Sheldrake, através de experiências com ratos, começou a considerar a existência desses campos. Ele ensinou um grupo a sair do labirinto e começou a observar que outros Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 1 10 ratos, em outros lugares, aprenderam a sair dos labirintos também. Esta experiência foi repetida muitas vezes, dando resultados positivos, o que lhe mostrou que corpos de composição e características semelhantes se tornam mais capazes de ressoar estas informações - memórias aprendidas (Hendges). Diversos profissionais foram convidados a vir nos falar, das áreas física/música, inteligência artificial, psicologia, microfioterapia, constelação familiar e meditação. Os alunos elaboraram hipóteses, o espectro estava grande, a partir de ideias também discutidas por mim, para materialização destes conceitos em trabalhos artísticos. O objetivo não era traduzir literalmente o conceito de campo morfogenético mas, antes, iluminar-se pelo mesmo, e criar livremente, trabalhando diversos níveis metafóricos. Eu mesma estava fazendo um experimento em casa, com sementes de plantas, que cresciam sob o som de frases positivas e outras, sob o som de frases negativas e posso inferir, por experiência própria, que estas informações do campo, no que concerne a experiências afetivas/emocionais podem chegar a bloquear a entrada de uma pessoa num determinado espaço que carrega memórias negativas. Não cheguei a terminar o experimento com as plantas, que teve os primeiros indivíduos crescidos, pois este requereria mais tempo para observar outras gerações, (ainda o farei), mas cito o fotógrafo e escritor japonês, Masaru Emoto (1943-2014), que fez experimentos com cristais de água, onde pensamentos positivos criam belas imagens nos cristais, enquanto pensamentos agressivos, de raiva ou ódio, criam imagens caóticas e distorcidas. Desenvolvi, como uma das propostas artísticas, dentro da disciplina, este projeto, Registros Carnais do Belo (2016-2019), que propõe, metaforicamente, a mudança de uma memória negativa, que neste caso é física, em outra memória (a partir da experiência da tatuagem), que reconfigura o sistema. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 1 11 Registros Carnais do Belo, Adriana Oliveira O que aqui foi trabalhado com metáfora visual, é muito explorado no campo das terapias holísticas. Falando especificamente da constelação familiar, uma marca/memória/ registro perpetuado por gerações pode ser reconfigurado através de um movimento terapêutico, de ressignificação daquela vivência, que retroalimenta a visão e a trajetória do indivíduo sobre determinada situação, criando novas rotas para ações. Voltando ao filme Uma Dobra no Tempo, Meg tessera (viaja no espaço-tempo) para encontrar seu pai. A conexão entre os dois é a do Amor; força que conecta. Pensamentos (sejam positivos ou negativos) nos conectam a padrões de informações presentes neste campo informacional. Daí a importância da arte, de reconfigurar modos de perceber e sentir. Vivemos um momento em que a presença das máquinas é ubíqua e sistemas inteligentes diversos têm nos cercado. Peguemos o exemplo dos ratos, ensinados por Sheldrake, que aprenderam as rotas para sair do labririnto, e dos outros ratos que, sem contato com estes, também apresentaram a mesma capacidade. Poderia o mesmo estar acontecendo com máquinas inteligentes? Quem sabe algum tipo de proto-inteligência emergente? É uma pergunta que faço. E nós, que estamos absolutamente conectados a estes ambientes tecnológicos, Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 1 12 estaríamos apreendendo informações de maneira diferente? Este caminho é longo, desde a criação do primeiro instrumento pelos hominídeos estamos co-evoluindo com as tecnologias, e atualmente temos lidado com uma proliferação de máquinas e sistemas inteligentes. Talvez algo possa estar mudando, esta é minha hipótese, e nos faz pensar sobre a importância da inserção de informações construtivas e edificantes no meio que nos cerca. Não que as artes tenham que falar somente do belo, algumas vezes os questionamentos e os choques são necessários, mas a maneira como são apreendidos e trabalhados internamente, por cada um de nós, é que deve ser pensada, sempre passando pela tolerância e, quem sabe, pelo amor. Árvore da vida, 2019 Um outro trabalho meu, pensado para esta disciplina, foi esta árvore frondosa, metáfora da vida e da sabedoria, revelando o fim de um dia, de um ciclo. Foi um pouco a experiência que tive com esta disciplina, de muitas conexões e entendimentos. Acima de tudo, o entendimento de que coisas boas que colocamos no mundo se reproduzem aqui e em outros lugares, por ressonância, sem mesmo sabermos. Arrisco dizer até, que vivemos uma realidade holofractal, e que os espaços-tempos se repetem (por similaridade) e se influenciam mutuamente. Os padrões da piscina, na obra Ressonância Azul (frame de trabalho em vídeo), denotam isto. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 1 13 Ressonância Azul (vídeo), Adriana Oliveira, 2019. 4 | CONSIDERAÇÕES FINAIS A intersecção Arte e Ciência nos revela conceitos diversos e, consequentemente, nos traz imagens novas para serem trabalhadas. São metáforas que podem ser exploradas na arte, e na vida também. Esta interdisciplinaridade que conecta a arte, com a tecnologia e a ciência, abre uma profusão de possibilidades de pesquisas criativas, que podem se desdobrar para diferentes linguagens artísticas e campos do conhecimento, criando um ambiente rico para a aprendizagem, inclusive migrando dos meios digitais para as linguagens manuais, e viceversa. Quando se fala em arte, ciência, tecnologia, logo se pensa em instalações artísticas complexas (ideia difundida pelas instituições culturais), mas tenho visto que ideias potentes, com soluções simples, muitas vezes feitas em foto, vídeo e ou áudio (pegando pelo aspecto das mídias), já trazem resultados muito interessantes. Pretendo continuar com o desenvolvimento desta Linha do Tempo, assim como o Projeto Arte e Ciência para crianças e, havendo a oportunidade, repetir a disciplina sobre os Campos Mórficos, que trouxeram resultados muito interessantes para mim e os alunos participantes. Júlia e Hugo tiveram e vêm tendo ricas experiências acadêmicas, neste campo de cruzamentos entre arte, ciência, tecnologia, que certamente têm refletido em suas maneiras de pensar arte, criar e viver. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 1 14 REFERÊNCIAS ARANTES, Priscila. Arte e Mídia: Perspectivas da Estética Digital. São Paulo, Senac-SP, 2005. CAMPOS, Roland de Azeredo. Arteciência.: a afluência dos signos co-moventes. São Paulo: Perspectiva, 2003. EMOTO, Masaru. A vida Secreta da Água. Editora Cultrix, 2006. HENDGES, Antônio Silva. A Teoria dos Campos Mórficos do biólogo Rupert Shledrake, in Eco Debate. (https://www.ecodebate.com.br/2011/03/14/a-teoria-dos-campos-morficos-do-biologo-rupertsheldrake-artigo-de-antonio-silvio-hendges/). Acesso: 23.02.2021. KANASHIRO, Marta. As Confluências entre arte, ciência e tecnologia, in Cultura Científica, SBPC/ Labjor Brasil, 10.07.2003. https://www.comciencia.br/dossies-1-72/reprotagens/cultura/cultura02.shtml. Acesso: 21.02.2021. L’ENGLE, Madeleine. Uma Dobra no Tempo. São Paulo: Editora Mundo Cristão, 2000 (1ª edição: 1962). SHELDRAKE, Rupert. A Ressonância Mórfica & A Presença do Passado. Lisboa: Instituto Piaget, 1988. Referências de Imagens e Conceitos Científicos: https://www.sciencephoto.com/media/945985/view https://www.sciencephoto.com/media/918080/view https://olhardigital.com.br/2019/07/19/noticias/cientistas-capturaram-a-primeira-foto-de-umentrelacamento-quantico/ Acesso em 02.03.2021 https://www.inovacaotecnologica.com.br/noticias/noticia.php?artigo=acao-fantasmagorica-distanciamais-rapida-luz#.YD7Ubi3OoWp Acesso em 02.03.2021 Filmes: Tomorrowland: Um lugar onde nada é impossível, Walt Disney Studios, 2015. Uma Dobra no Tempo, Walt Disney Studios 2018. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 1 15 DOI 10.22533/at.ed.00000000000 CAPÍTULO 2 PELA LINHA DO TREM: O COTIDIANO DA ESCOLA PÚBLICA E O SURGIMENTO DO PROJETO FALE SOBRE MIM Data de aceite: 16/04/2021 Data de submissão: 12/02/2021 1 | FRAGMENTOS DIÁRIOS DE UMA PROFESSORA Luiza Rangel Cordeiro UINIRIO – Programa de Pós-graduação em Ensino de Artes Cênicas Rio de Janeiro – RJ http://lattes.cnpq.br/3130520456311167 RESUMO: O presente artigo apresenta o ponto de vista de uma professora de teatro da rede pública do Rio de Janeiro. Compartilharemos o contexto de surgimento do projeto Fale sobre mim, uma pesquisa teatral prático-teórica que teve como dispositivo indexador o trabalho com material autobiográfico de seis estudantes e sua professora. PALAVRAS - CHAVE: Teatro – Educação – Autoficção. BY THE TRAIN LINE: THE ROUTINE OF A PUBLIC SCHOOL AND THE EMERGENCE OF FALE SOBRE MIM ABSTRACT: This article presents the point of view of a public school drama teacher from Rio de Janeiro. It will be shared the context of the emergence of Fale sobre mim, a practicaltheoretical research whose indexing device was the work with autobiographical material of six students and their teacher. KEYWORDS: Theater – Education – Autofiction. ------------------------------------------------Março de 2017 ESCRITO NO TREM, A CAMINHO DE CASA É meu primeiro ano como professora da rede municipal do Rio de Janeiro. Segunda semana de aula. Não sei se vai dar certo. Eu tenho desconfiado de toda minha formação na academia. Eu não sei falar. Eu falo pra ninguém. Eu não sei me fazer compreender. E ao mesmo tempo eu ando sorrindo muito quando vejo os olhos dessas crianças sorrindo de volta pra mim. Entendi que dá pra falar pelos olhos. Tenho ficado rouca. Ontem o aluno Pedro enfiou um clips na tomada. Eu não percebi. Aula prática, turma cheia. Quando terminou o dia encontrei o clips Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 2 16 lá, enfiado na tomada. Será que levaram choque? Como não vi isso acontecer? Procurei a turma no refeitório e perguntei de quem havia sido a ideia. Estão todos bem? Se uma criança dessa, de 6 anos, leva um choque na minha aula... Os colegas deduraram: - Eu vi, foi Pedro. Levei Pedro pra conversar na minha sala e expliquei que era muito perigoso. Fui firme nas palavras, acho que até aumentei o tom de voz. Pedro mexeu os ombros com dengo e disse: - Eu ando investigando o funcionamento das tomadas. A senhora sabe me explicar como funciona lá dentro? (...) O que mais encanta nas crianças e adolescentes é o gosto pelas perguntas. -----------------------------------------------------------------------------------------------------Novembro de 2018 ESCRITO NO TREM, A CAMINHO DE CASA Demora muito pra conseguir formar uma roda no primeiro tempo de aula de segundafeira! Todo mundo quer contar como foi o final de semana na casa da avó, o que o cachorro fez, o que irmão aprontou, se foi à praia, se foi à igreja, se fez o dever de casa, se a mamãe foi ao baile, se o Tio ficou doente, se ganhou um brinquedo novo... No início da aula, pedi para que a turma formasse uma roda. Dois alunos, uma menina e um menino, estavam envolvidos em uma discussão que beirava a agressão física. Parei tudo, me aproximei dos dois e perguntei o motivo da briga. O menino, com as bochechas vermelhas, me olhou no fundo dos olhos e respondeu minha pergunta com outra: - Professora, ser miliciano é a mesma coisa que ser bandido? Fiquei sem respirar por alguns segundos. Perguntei: - Por que? Ao que ele responde: - Porque o meu pai é miliciano e minha colega está chamando ele de bandido. Me responde, Tia, o meu papai é bandido? Com a garganta seca, contemplei seus olhos de menino. Lembro da sensação: nós dois lacrimejando por dentro. Aos 7 anos, deparou-se com algo que não se podia nomear. -----------------------------------------------------------------------------------------------------Maio de 2017 ESCRITO NO TREM, A CAMINHO DE CASA Ainda virada do avesso. Eu sou completamente outra. No olhar para o mundo, na rotina, nas horas ruidosas, no entendimento de que existe uma coisa além das palavras. Um caos precioso, pulsante. Uma exaustão que puxa o ar do peito, para então, recomeçar. O mundo é gigante, cruel e também lindo, singelo. Quando percebo ser facilitadora de momentos assim: olho no olho, frente a frente, sorrisos, trocas... eu suspiro de amor. Estou feliz aqui. Lá fora, o golpe contra a única presidente mulher da história do nosso país me entristece. Mas aí vem a juventude me dizendo que é para seguir na luta todos os dias. E que bom ter esses sorrisos lindos junto a mim. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 2 17 -----------------------------------------------------------------------------------------------------Agosto de 2018 ESCRITO NO TREM, A CAMINHO DE CASA Existir fora do padrão. Com meus alunes autistas eu aprendo mais sobre o amor. Tom se aproximou de maneira delicada e firme, me deu a mão como quem diz “vamos unir nossas forças”. Isso bastou. Nessa tarde chuvosa, ficamos a observar o pátio, as crianças correndo e brincando enquanto a garoa caía. Lecionar no ensino básico tem seu lado desesperador. Porque a gente quer olhar nos olhos das crianças e dizer que vai ficar tudo bem. A gente pensa em dizer tanta coisa... Pensei em dizer que essa guerra vai acabar, ou que nós mulheres não vamos mais morrer depois de terminar um relacionamento, que mais armas e mais intervenção não vão funcionar, que vai ter comida em casa quando eles chegarem, que vai ter lugar seguro pra dormir, que eles podem sonhar em terminar o ensino médio sim, e que podem muito mais. De certa forma, batemos esse papo sem uma palavra proferir. É que sem falar nada, as alunas e alunos autistas me ensinam a resistir e me dizem tudo sobre acreditar. -----------------------------------------------------------------------------------------------------Julho de 2017 ESCRITO NO TREM, A CAMINHO DE CASA Hoje estamos estudando sobre a biografia de Luiz Gonzaga. Anotei aqui algumas das impressões das crianças: “Meu avô também é de Pernambuco.” “Ih, isso parece música de Festa Junina!” “Luiz Gonzaga já morreu?” “Por que ele fala desse jeito diferente?” “Tia, o que é um xodó?” “No mapa, o Nordeste é laranja por causa do calor e o Sul é azul porque lá tem gelo?” “Por que não levou a Nazinha junto com ele?” “Quando ele ficou rico, deve ter comprado uma sanfona nova pro pai dele.” “Mostra foto da namorada dele?” “Ele existiu ou foi só uma lenda?” “Será que um dia ele encontrou o amor de novo?” “Eu tô com vontade de chorar nessa parte.” -----------------------------------------------------------------------------------------------------Julho de 2018 Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 ESCRITO NO TREM, A CAMINHO DE CASA Capítulo 2 18 O meu celular tocou no meio da aula do primeiro ano, série em que as crianças estão começando a se alfabetizar. Um menino que havia se matriculado na escola recentemente entrou em desespero. Segurou minha mão e olhando para a tela do celular me pediu para que eu não atendesse. Ele chorava muito e dizia: - Esse número deve ser do Conselho Tutelar. Por favor, não atende. Eles vão me levar. 2 | UM PONTO DE VISTA SOBRE O COTIDIANO DA ESCOLA PÚBLICA O projeto Fale sobre mim deu seus primeiros passos no ano de 2018, numa escola pública municipal localizada no Conjunto Urucânia, Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro. Considero importante apresentar um ponto de vista sobre o espaço onde o espetáculo foi semeado. Trata-se de uma Escola do Amanhã - projeto que visa atender os alunos e alunas da rede municipal durante 7 horas diárias. O prédio, que foi inaugurado no final de 2016, é composto por três andares e possui infraestrutura harmoniosa e privilegiada se comparada às construções mais antigas da rede municipal. As salas de aula são climatizadas, há elevador e espaços coletivos, como Sala de Leitura, Sala Multimídia e Auditório. Na lateral do pátio há uma área verde, com árvores e brinquedos. Nos dias de rotina, as crianças fazem três refeições ao dia: café da manhã, almoço e lanche. O horário integral funciona das 07:30h às 14:30h, porém, devido à carência no quadro de professores, algumas turmas precisam ser atendidas em turno parcial (manhã ou tarde). A escola atende alunos e alunas entre 6 e 12 anos, do primeiro ao sexto ano do ensino fundamental 1. Por semana, aproximadamente 650 crianças realizam ali suas atividades. A equipe pedagógica é composta por 24 professores, a maior parte deles atua em regime de 40h sem dedicação exclusiva. Os cinco professores especialistas estão distribuídos entre as seguintes áreas: Inglês (1), Educação Física (2), Artes Cênicas (1) e Sustentabilidade (1). Da janela lateral da escola, os trens da Supervia podem ser avistados. Todos os trens que partem da Central do Brasil com destino a Santa Cruz passam paralelamente à escola. Vão e vem, vem e vão. Motivo suficiente para serem improvisadas cortinas para as salas que possuem as janelas voltadas para os trilhos - já que a atenção das crianças vai e vem, vem e vai junto aos trens. É bem verdade que o movimento dos trens dispara devaneios não apenas nas crianças. É bonito de ver. Lá vai o trem, lá vai o trem, chic chic choc choc bota lenha, põe carvão. A estação Tancredo Neves é a mais próxima da entrada da escola. Caminha-se 5 minutos até lá. As aulas de Artes Cênicas acontecem uma vez por semana para cada turma. As turmas de horário integral possuem dois tempos de aula, o que corresponde a 1 hora e 40 minutos. Já nas turmas de horário parcial esse tempo se reduz a 50 minutos. A prática de jogos teatrais convoca os alunos a olharem as metáforas do mundo e a encontrarem novos Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 2 19 sentidos em seu cotidiano. As aulas acontecem na Sala Multiuso, que é ampla, possui armários e pia. No segundo semestre, o auditório também é utilizado para ensaios. Nota-se grande interesse e envolvimento pelas aulas de Artes Cênicas por parte dos alunos e alunas. Porém, o número de crianças (aproximadamente 35) não é o ideal para aulas práticas com esta faixa etária. Muitas vezes é difícil falar, escutar e ser escutado. A voz falha, o ambiente torna-se ruidoso, os conflitos interpessoais se proliferam, daí, o planejamento se reconfigura. Desde 2017, atendo em média 18 turmas por semana, isto é, de 4 a 5 turmas por dia. Muitas vezes o planejamento precisa ajudar o professor a sobreviver às 7 horas seguidas dando aula nessas condições. O cotidiano na escola demanda uma dosagem de entrega, uma negociação energética. Gosto de pensar que a aula é como uma música, porque cada turma solicita um tipo de andamento e um ritmo específico. É importante ter escuta atenta. O trabalho de sensibilização e escuta tem se mostrado muito proveitoso; a proposição de ações como: deitar no chão, respirar profundamente e escutar os sons do espaço desperta a capacidade de estar presente, de colocar o corpo em experiência. O exercício de humanização das práticas é urgente no espaço escolar, e como nos lembra o professor de Filosofia da Educação Jorge Larrosa, colocar-se em experiência exige paciência e reconhecimento da importância das pequenas transformações, das pausas e das paragens frente a um cotidiano tão imediatista quanto o nosso. A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar e escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes, suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar os outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se tempo e espaço. (LARROSA, 2016, p. 25) Em sala de aula, a criatividade pulsa todo tempo à sua maneira. Considero enriquecedor desconstruir critérios e paradigmas a fim de desaprender e reaprender a olhar o mundo junto às crianças. A escola pública é habitada por crianças afetuosas e fortes, que não se acovardam diante de temas como a morte, o tempo, a violência, a vida. Crianças e jovens que seguem potentes em transformar as contradições do viver - muitos enfrentando experiências difíceis em meio ao abandono do estado. Alguns dias são nublados, mas sempre há poesia, coragem, vida e olhos que brilham. A escola é a cidade. Sem saber que o é. Sem entender a si mesma. Por vezes, parece difícil refletir sobre isto estando lá dentro. As demandas e cobranças são inúmeras. Falta verba, sobra burocracia. Chega a hora do lanche. 14h. Momento de respiro, os alunos e alunas desabafam querendo encontrar sentido, querendo trazer a cidade pra dentro da escola. Falam das coisas boas da vida, falam de seus animais de estimação, da rua, Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 2 20 dos irmãos, e falam, também, de violência doméstica. Todos os dias. A violência contra a mulher está presente em pelo menos 70% das famílias. Professora dá ouvido, coração aperta. Às vezes, parece que o professor sai sugado, cheio-esvaziado. Professora pega o trem, vai passear pelo monte. As montanhas são íngremes feito suas olheiras. No outro dia de manhã, antes de clarear, coloca-se mais lenha, mais carvão. O trem continua a subir. Na brecha entre os compromissos, os planejamentos das 18 turmas e o caos da grade horária escolar nasceu Fale sobre mim – um encontro quase secreto entre seis estudantes e sua professora de Teatro. 3 | O CONTEXTO DE SURGIMENTO DO PROJETO FALE SOBRE MIM Talvez eu não me lembre dos detalhes de como tudo começou, mas lembro de todo o contexto. Naquele ano, o Antares - comunidade que beira a linha do trem no lado oposto à escola - passava por um período de conflito armado. Havia uma disputa por domínio de território entre dois diferentes grupos da região. Lembro que as crianças chegavam a achar projeteis e capsulas na rua. Foi um período de muitas incertezas. A unidade escolar precisou fechar por vários dias. Nos dias em que os portões da escola se abriam, muita história se escutava. As crianças voltavam com vontade de falar, de narrar o que tinham vivido. Alguns alunos começaram a me procurar fora do horário de aula. A aluna Maria Paula me procurou certa vez. Ela contou suas lembranças de quando morava no Antares. Depois, Maria Paula voltou com as colegas Analya Britney e Brenda Laura, queriam montar uma coreografia para uma música que abordava o tema do suicídio. Apresentamos a coreografia para a turma. O aluno Caio também demonstrava interesse fora do horário das aulas, especialmente pelas práticas de palhaçaria. Certo dia, o professor do sexto ano, Alexandre, sugeriu que Caio montasse um esquete de palhaçaria e apresentasse para os alunos de séries menores. Assim foi feito. Pequenas ações e intervenções começaram a florescer em meio a um contexto difícil. Também havia o Carlos Daniel, a Thaissa e a Rayane, que sempre me procuravam no refeitório para contar suas ideias de roteiros para cinema. Todos eles estavam matriculados no sexto ano do ensino fundamental e tinham idade entre 11 e 12 anos. Certamente, durante esse período, mais que em qualquer outro, percebíamos professores e estudantes criando vínculos intensos. Compartilhar situações-limite em um espaço em comum nos aguçou um senso de coletividade e acolhimento. O planejamento das aulas precisou se reconfigurar. Vivíamos um dia após o outro, sem ter a certeza de como e quando teríamos uma rotina reestabelecida. Durante o mês de Agosto daquele ano comecei a fazer rodas de conversa nas aulas. Intuitivamente, propus que cada estudante contasse um fato de sua vida, uma história de família, um acontecimento importante, algo que gostaria de compartilhar com o coletivo – podendo ser apresentado como uma cena, Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 2 21 uma dança, um texto. Como Agosto foi um mês com baixíssima frequência escolar devido aos conflitos, agrupávamos os estudantes de diferentes turmas numa mesma sala. Fato é que a partir da vontade de escutar as narrativas de vida dos meus alunos e alunas, moradores de Urucânia, foi surgindo uma inspiração, uma vontade de pesquisar e criar. No início de setembro daquele ano, soube que aconteceria o primeiro Festival de Teatro de Alunos da Rede Municipal – FESTA 2018. Reuni todos os alunos e alunas que naturalmente já demonstravam interesse pelo teatro fora do horário da aula e propus que criássemos uma cena documental tendo como ponto de partida suas experiências de vida. Eles toparam sem saber muito bem como seria esse processo. Não houve um planejamento prévio. Nesta primeira versão, a cena Fale sobre mim teve duração de 15 minutos - tempo limite exigido pelo festival. O FESTA 2018, sem dúvida, foi o nosso catalisador, foi o que nos colocou em movimento e nos deu um foco energético de trabalho em um ano tão difícil para a escola e para a comunidade. Precisávamos, portanto, levantar uma cena em quatro semanas. Tínhamos muitas histórias para compartilhar. Em minha curta trajetória como artista, já havia participado de pesquisas sobre teatro documentário junto ao diretor Ricardo Libertini. Produzi, no ano de 2013, uma peça autobiográfica na qual os atores revisitavam memórias sobre suas avós, apresentando-se em casas e apartamentos do Rio de Janeiro. O espetáculo se chamava Tudo sobre minha avó. Cinco anos depois, lá estava eu, envolvida em uma pesquisa com uso de material autobiográfico juntos a meus alunos e alunas da rede municipal. Nossos encontros acabaram assumindo caráter extracurricular. A pesquisa dramatúrgica foi se estruturando tendo como eixo norteador o trabalho com a escrita autobiográfica e a memória. O grupo era composto inicialmente por seis alunos-atores: Caio, Maria Paula, Brenda Laura, Carlos Daniel, Rayane e Thayssa. 1 Os ensaios aconteciam durante meu horário de planejamento. A expectativa de que o grupo desse continuidade ao trabalho no ano seguinte era baixa. Motivo: na virada do ano de 2018 para 2019, todos os alunos envolvidos precisaram mudar de escola para cursar o ensino fundamental 2. Três deles mudaram de bairro ou passaram a estudar em escolas mais distantes e os outros três matricularam-se na escola ao lado, o Ginásio Francisco Caldeira de Alvarenga – que faz parte do complexo de Escolas do Amanhã. Não sabíamos, portanto, se seria possível dar continuidade aos encontros em 2019. O desejo em dar continuidade aos encontros permanecia tão latente que a pesquisa “Fale sobre mim – experiências autobiográficas na escola pública” tornou-se meu objeto de estudo no Mestrado Profissional do Programa de Pós-graduação em Ensino de Artes Cênicas da UNIRIO. A ideia inicial seria apenas escrever sobre o processo de criação e tecer reflexões sobre as contribuições que esta prática possivelmente gerou aos envolvidos 1 Nesse período, a aluna Analya Britney apresentava frequência baixa, por isso não acompanhou os ensaios. Ela só passou a integrar o elenco posteriormente, em 2019. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 2 22 e à escola. Inclusive, enquanto eu cursava uma disciplina do mestrado com as professoras Rosyane Trotta e Johana Albuquerque, recebi a provocação de criar uma cena autoficcional que poderia ser parte dessa pesquisa, expondo o processo com os alunos e alunas. Foi neste contexto que surgiu o solo, que hoje é o primeiro ato da peça. Felizmente, em Maio de 2019, conseguimos autorização da direção da escola para que os encontros do grupo voltassem a acontecer na Sala Multiuso, no meu horário de planejamento. Os três alunos que estavam matriculados no Ginásio ao lado continuaram no projeto. Porém, por uma questão de incompatibilidade de horários e distância, os alunos que agora estavam em outras escolas não conseguiram continuar. Por isso, a aluna Analya Britney passou a integrar o elenco e também convidamos Wilson Ruan e Lucas – exalunos da escola que passaram o primeiro semestre de 2018 fazendo recorrentes visitas e demonstrando o enorme desejo em formar um grupo de teatro. Agora, todos os integrantes eram alunos da Escola Municipal Francisco Caldeira de Alvarenga e estava firmada a parceria entre as duas unidades: o primário onde trabalho e o ginásio onde meus ex-alunos e ex-alunas passaram a estudar. O projeto acabou tornando-se um convite para que nós, professores e alunos, pudéssemos nos relacionar com humanidade e criticidade com o contexto da comunidade e da cidade de modo geral, entendendo a importância de criar espaço e dar ouvidos a outras subjetividades e narrativas. O teatro na escola tem se alimentado cada vez mais das práticas teatrais contemporâneas, colocando corpo em experiência, valorizando gestos autorais, e reconhecendo narrativas mais plurais. Uma das questões que mais me mobilizou ao reunir o grupo de adolescentes para esta criação, foi a busca por outros modos de relação com o teatro no espaço da escola. Para além da representação que a escola faz dos educandos, como seria ouvir a história deles a partir de si mesmos? Como criar estratégias para que a juventude coloque em cena sua visão de mundo? Como podemos performar nossas subjetividades? Em entrevista à Viviane Mosé, o educador Rubem Alves, ao ser perguntado sobre como a escola pode se tornar um espaço de deslumbramento e prazer para as crianças, responde: “é preciso começar no corpo deles, nas coisas que eles estão sentindo, nos problemas que estão sentindo.” (ALVES, 2014, p. 96) A aposta do projeto Fale sobre mim é de que o teatro pode dar sua contribuição específica ao trabalho com as subjetividades. Partindo deste princípio, nossa sala de ensaio foi pensada como um espaço de acolhimento, colocamos em cena as questões que mais nos instigavam naquele contexto caótico: um Rio de Janeiro sob intervenção militar nos anos de 2018 e 2019. Nossa criação foi diretamente atravessada pelas vivências dos atores/atrizes/estudantes; isso trouxe uma qualidade específica ao trabalho. A dramaturgia não somente acolheu temas e situações presentes no cotidiano dos adolescentes, como também propôs um convite ao gesto autoral. Em muitos encontros, os adolescentes foram convocados a se relacionarem com seus arquivos de vida e produzirem Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 2 23 seus próprios escritos. Por que não uma história contada a partir da perspectiva da criança e do adolescente? Fala-se muito em fomentar o teatro para crianças e jovens, porém, falase pouco em fomentar um teatro feito por crianças e jovens. Mais do que falar com, ou falar de, é preciso deixar que a juventude fale. É importante dar ouvidos a suas questões e abrir um espaço de autoria. É importante reconhecer que os/as adolescentes tem muito o que dizer e urgem por ocupar os palcos. Segundo Walter Benjamin o ato de narrar é um saber prático que privilegia a coletividade e a maneira pela qual assimilamos nossas experiências. O professor de Filosofia da Educação Jorge Larrosa vai ao encontro desta ideia ao afirmar que no ato de ex-por sua vulnerabilidade, o corpo se permite ser atravessado por experiências. Segundo Larrosa, compartilhar narrativas gera um movimento de disponibilidade e receptividade, movimento este que é fundamental para que o sujeito produza afetos e encontros. Do ponto de vista da experiência, o importante não é nem a posição, nem a oposição, nem a imposição, mas a ex-posição, nossa maneira de ex-pormos com tudo o que isso tem de vulnerabilidade e de risco. (LARROSA, 2006, p.26) Em um mundo que valoriza cada vez mais o imediatismo e descarta a relação com o passado, com a história, há aqui um profundo interesse pela valorização da memória, considerando que ela atribui significado às experiências sociais e às relações humanas. Depois da virada dos anos 90 para os anos 2000, tem aumentado o número de artistas e pesquisadores com interesse em discutir o trabalho com autobiografias e escritas de si como material cênico-dramatúrgico. A partir de então, são muitas as tentativas de nomear essas práticas: teatros do real, teatro documentário, docudrama, entre outros. Essa profusão de narrativas autorreferentes nos últimos anos pode ser uma busca por revelar algo sobre nossas próprias vidas, como bem diz Larrosa: Talvez, nessa história em que um homem se narra a si mesmo, nessa história que talvez não seja senão a repetição de outras histórias, possamos adivinhar algo daquilo que somos. (...) Talvez nós, homens, não sejamos outra coisa que um modo particular de contarmos o que somos. (LARROSA, 2017, p.30) No contexto artístico-pedagógico em que se insere esta pesquisa, observamos que o trabalho com as narrativas de si no campo da autoficção é capaz de lançar um olhar poético e mobilizador diante da história de vida dos sujeitos envolvidos na criação. REFERÊNCIAS ADIECHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo de uma história única. 1ª ed. São Paulo. Companhia das Letras, 2019. BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, nº11. Brasília, 2013. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 2 24 BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1985. DESGRANGES, Flávio. A Pedagogia do Espectador. São Paulo, Hucitec, 2003 Disponível em http:// www.seer.ufrgs.br/presenca Acesso em agosto de 2020 FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. ______. Pedagogia do oprimido. Edição rev. e atual. Rio de Janeiro. Paz e Terra. 2015. GADOTTI, Moacir. A escola e seus desafios contemporâneos, org e apresentação Viviane Mosé. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira. 2014 GIORDANO, Davi. Breve Ensaio sobre o Conceito de Teatro Documentário. Revista Performatus, Inhumas, ano 1, n. 5, jul. 2013. KLINGER, Diana. Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada etnográfica. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012 LARROSA, Jorge. Pedagogia Profana: danças, piruetas e mascaradas. 6ª edição. Belo Horizonte. Autêntica Editora, 2017. ______. Tremores: escritos sobre experiência. Autêntica Editora. Belo Horizonte, 2016. LEITE, Janaina Fontes. Autoescrituras performativas: do diário à cena. São Paulo. Perspectiva. 2017. LÍRIO, Gabriela. (Auto) biografia na cena contemporânea: entre a ficção e a realidade. In:Anais do VI Congresso de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas. São Paulo. Unesp, 2010. PUPO, Maria Lúcia de Souza. Alteridade em cena. Revista Sala Preta. vol. 12, n. 1, jun 2012, p. 4657. São Paulo. 2012. SELIGMANN- SILVA, Márcio. “Narrar o trauma – a questão dos testemunhos de catástrofes históricas”. Revista Psic. Clin., Rio de Janeiro, vol.20, n.1, p.65 – 82, 2008. SOLER, M. Teatro Documentário: a pedagogia da não ficção. Editora HUCITEC, São Paulo,2010. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 2 25 DOI 10.22533/at.ed.00000000000 CAPÍTULO 3 UMA LUZ PARA O CORPO: UMA METODOLOGIA DE ENSINO A PARTIR DE UMA PRÁTICA DE ENSINOAPRENDIZAGEM Data de aceite: 16/04/2021 Data da submissão: 23/02/2021 José Geraldo Furtado Gomes Angel Vianna Faculdade de Dança Rio de Janeiro-RJ http://lattes.cnpq.br/6786031328959799 RESUMO: A presente comunicação discorrerá sobre a prática de ensino proposta para a disciplina Elementos Cênicos para Dança da Angel Vianna Faculdade de Dança, iniciada em 2002. Onde se desenvolveu uma experimentação com o intuito de responder a seguinte pergunta: Como dar meios para se estabelecer um diálogo entre a luz e o corpo? Esta reflexão apresenta um programa de ensino que começa com as questões relacionadas à percepção visual e ainda com exercícios de observação da luz no mundo com a intenção de sensibilizar o olhar e trazer um pouco do universo do aluno para a sala de aula. Posteriormente, introduz-se uma breve contextualização histórica da iluminação cênica para que se tome conhecimento dos estudos já desenvolvidos sobre o tema. Em seguida, apresenta-se quatro aspectos da iluminação, a saber: Fonte, Direção, Cor e Ritmo da Luz, com o intuito de munir os alunos de ferramentas para entenderem como uma determinada luz observada funciona e posteriormente, utilizarem esses aspectos para criar um diálogo entre a luz e o corpo nas performances elaboradas. E finalmente, com as aulas práticas no teatro, onde Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 se realizam laboratórios baseados nos aspectos da luz, possibilita-se que os alunos possam experienciar visualmente as luzes imaginadas. PALAVRAS - CHAVE: Luz, Ensino, Corpo, Cena, Aspectos. A LIGHT FOR THE BODY: A TEACHING METHODOLOGY BASED ON A TEACHING-LEARNING PRACTICE ABSTRACT: This communication will discuss the teaching practice proposed for the discipline Scenic Elements for Dance at Faculdade Angel Vianna, started in 2002. Where an experiment was developed in order to answer the following question: How to provide means to establish a dialogue between light and the body? This reflection presents a teaching program that begins with questions related to visual perception and also with exercises for observing light in the world with the intention of sensitizing the eyes and bringing a little of the student’s universe to the classroom. Subsequently, a brief historical contextualization of scenic lighting is introduced so that it becomes aware of the studies already developed on the subject. Then, four aspects of lighting are presented, namely: Source, Direction, Color and Rhythm of Light, in order to provide students with tools to understand how a certain observed light works and later use these aspects to create a dialogue between light and body in the elaborated performances. And finally, with practical classes in the theater, where laboratories are held based on the aspects of light, it is possible for students to visually experience the imagined lights. Capítulo 3 26 KEYWORDS: Light, Teaching, Body, Scene, Aspects. 1 | SENSIBILIZAÇÃO DO OLHAR “O olho deve sua existência à luz. De órgãos animais a ela indiferentes, a luz produz um órgão que se torna seu semelhante. Assim o olho se forma na luz e para a luz, a fim de que a luz interna venha ao encontro da luz externa.” (GOETHE, 1993, p.44) O olho recebe e direciona as imagens trazidas pela luz, refletida dos objetos, para sua parte posterior, ou seja, a retina. Quando os raios luminosos atingem a retina, inicia-se uma fase totalmente diferente do processo visual. As células sensíveis a luz da retina, convertem essa energia em sinais que são transmitidos ao cérebro através de reações semielétricas e semiquímicas que são ativadas pela luz. Assim, as reações a uma determinada luz, podem variar, de acordo com o tipo de informação que o cérebro teve acesso na sua formação, o ambiente cultural, as condições fisiológicas de cada olho, da região, da atmosfera e outras manifestações. Para exercitar o ato de perceber a luz, se propõe uma sensibilização do olhar que busca contribuir para uma apreensão dos eventos luminosos, que com o passar do tempo não são mais percebidos por um olhar normatizado. Como por exemplo, um olhar que não percebe mais a luz da lua que entra pela janela; um olhar viciado ao excesso de luminosidade; um olhar que não percebe mais as diferenças, tomando tudo mais ou menos com a mesma aparência, fazendo desaparecer as individualidades: um processo de massificação causado pelo excesso de luz característico de nossa época. Busca-se com isso, “obscurecer o espetáculo do século presente a fim de perceber, nessa mesma obscuridade, a luz que procura nos alcançar e não consegue.” (DIDIHUBERMAN, 2011, p.70). O fascismo da luz atualmente se estabelece através dos grandes eventos, dos estádios de futebol, dos palcos da televisão e das telas digitais, um verdadeiro “desaparecimento do humano no coração da sociedade atual.” (DIDI-HUBERMAN, 2011, p.29). Assim, sugere-se exercícios de observações de luzes que acontecem no cotidiano, tal como a luz do pôr do sol, do amanhecer, das ruas, das matas, entre outras, com o intuito de criar um repertório de luzes na memória, aprimorar o olhar, perceber as diferentes tonalidades da luz, enfim, tornar esta ação numa investigação sobre luz. Visto que, segundo Goethe, “cada olhar envolve uma observação, cada observação uma reflexão, cada reflexão uma síntese: ao olharmos atentamente para o mundo já estamos teorizando” (GOETHE,1993, p.37). Estes exercícios permitem também trazer a cultura do aluno para dentro da sala de aula, já que é solicitado que eles descrevam as luzes observadas. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 3 27 Além desses exercícios de observação, aplica-se estudos em sala de aula a partir da visualização de vídeos; de luzes criadas para cena. 2 | CONTEXTO HISTÓRICO Com a intenção de fornecer meios para um entendimento dos processos de criação da luz, apresenta-se então uma breve evolução da iluminação cênica, considerando a importância do advento da lâmpada elétrica como um dos principais fatores para o surgimento do teatro moderno. Desde o final do século XIX e das produções pioneiras de Edward Gordon Craig (1872-1966), em Londres, e de Adolph François Appia (1862-1928), em Hellerau e Basle, houve um aumento do uso da luz como um elemento construtivo no teatro. Posteriormente, Max Reinhardt (1873-1943) liderou o teatro experimental e descobriu muitos efeitos de luz inéditos. Um típico efeito criado por Reinhardt foi o contraste forte entre uma área com luz e seu redor na escuridão total, ou seja, o foco de luz. Logo depois, László MoholyNagy (1895-1946), começou a desenhar e desenvolver projetos para equipamentos de iluminação cênica que tornariam visível a materialidade da luz e seu poder para instituir tempo e espaço. A cena nunca mais foi a mesma depois do surgimento da luz elétrica, surge ai uma nova área de conhecimento dentro das artes cênicas que necessita de abordagens bem diferentes das desenvolvidas até aquele momento. O teatro ganhou uma nova possibilidade de expressão artística que interage de maneira direta nas outras áreas de conhecimento, possibilitando novas conexões jamais imaginadas. A dança contemporânea, mais do que os outros estilos de dança, vem explorando essas novas possibilidades de dialogo entre o corpo e a luz de maneira bastante integrada. 3 | OS ASPECTOS DA LUZ Considerando essas novas abordagens e ainda ao propor uma prática de ensino que possibilitasse ao aluno estabelecer um diálogo entre o corpo e a luz, fui percebendo que era necessário realizar uma sistematização dos aspectos da iluminação cênica a serem considerados neste método de ensino. Aliada a minha experiência como Iluminador, constatei quatro aspectos da luz que fundamentam este processo, quais sejam: 1) Fonte de luz Estabelece as características relacionadas ao tamanho, à forma e a nitidez da área iluminada. Introduz-se os diversos tipos de fonte de luz natural e artificial, incluindo as luminárias utilizadas nos teatros. A maioria dos tipos de fonte de luz, são bem conhecidas, tais como: o sol, o fogo, lanternas, lâmpadas elétricas e eletrônicas. Estas fontes de luz trazem uma história em sua existência, cada uma está conectada a um determinado fim para o qual foi criada. Neste sentido, quando a luminária fica a vista do publico, a fonte pode Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 3 28 funcionar como cenário, indicando uma determinada narrativa. Mesmo quando a fonte não é vista, a forma, o tipo de luz que ela proporciona, pode remeter a algum tipo de fonte de luz conhecida, por exemplo uma luz retangular pode ser associada a uma luz interna, uma janela aberta por onde entra a luz do sol. 2) Direção de incidência da luz O teatro a moda Italiana surgiu no Renascimento Italiano, filosoficamente, há a ideia em que o homem, ocupa o centro do universo, fazendo com que surja também a noção de perspectiva. Assim, era necessário um novo modelo para o espaço teatral, diferente do greco-romano vigente na época: foi assim que surgiu o palco italiano, concebido para estabelecer um olhar único, de acordo com a ideia do “ponto de fuga” e da perspectiva que transcenderam as artes plásticas e chegaram ao teatro. Esse tipo de palco ainda é o mais utilizado nos dias de hoje, e sua principal característica é a disposição fixa do espectador, que fica frente a frente ao espetáculo. Esta estrutura cênica, produziu uma série de termos técnicos nestes mais de 500 anos de existência. Assim, os termos que indicam a direção de incidência da luz, estão relacionados à frontalidade proposta por este tipo de palco. Com isso, temos as seguintes direções: Frontal, contraluz, lateral, diagonal, de baixo para cima e pino. Uma das questões relacionadas a este tópico, está relacionada à sombra que em geral indica a direção de incidência da luz. Pode ser pela sombra que percebemos onde está posicionada a fonte de luz, os possíveis ângulos de incidência sobre o corpo e sobre os cenários, ocasionando sombras características para cada situação. Por exemplo, o ângulo de incidência da luz do sol ao meio dia, projeta uma sombra embaixo de nosso corpo, esta é a luz pino. Já a luz lateral, projeta a sombra lateralmente, favorecendo os deslocamentos e movimentos relacionados a profundidade do palco ou do próprio corpo em relação a ele mesmo, proporciona uma ideia de volume maior que o existente. De certa forma, temos um repertorio de memórias luminosas que nos acompanham desde que abrimos os olhos, com o passar do tempo elas se tornam tão comuns que não notamos mais o quanto somos influenciados por elas. Com isso, por exemplo, quando invertemos a direção da luz de cima e posicionamos a fonte em baixo, o resultado são sombras completamente fora do normal, a sombra do nariz é projetada no meio da testa, o escuro sobre os olhos é iluminado. Desta maneira, o rosto é deformado apresentado uma figura antinatural. 3) Cor da luz “As cores são ações e paixões da luz. Nesse sentido, podemos esperar delas alguma indicação sobre a luz. Na verdade, luz e cores se relacionam perfeitamente, embora devamos pensá-las como pertencendo à natureza em seu todo: é ela inteira que assim quer se revelar ao sentido da visão.” (GOETHE, 1993, p.35) Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 3 29 A percepção da cor não pode ser classificada dentro da categoria dos fenômenos rigorosamente precisos. A visão humana tem suas próprias leis, que podem variar de individuo a indivíduo. Assim, os pressupostos estabelecidos pela física são a base sobre a qual se apoia a análise da visão das cores, mas elas apenas propiciam o ponto de partida de um processo que é influenciado pela fisiologia do olho e do córtex, e pela psicologia humana. Desta forma, busca-se evidenciar as diferenças da classificação da cor luz em relação a cor pigmento. Aborda-se as relações entre cor luz quente e cor luz fria e suas implicações nas sensações das pessoas e podendo assim, interagir com o proposto para a cena. Um dos pontos aqui ressaltados é o resultado da incidência da cor da luz sobre a pele, figurino, cenário. A cor luz altera a cor pigmento interferindo diretamente no resultado final. Observa-se também os diferentes ambientes criados pela alteração da cor da luz da cena que muitas das vezes busca criar climas característicos de determinadas cores, como por exemplo a noite de luar que revela uma luz azulada ou o pôr do sol com seus matizes que vão do amarelo passando pelo âmbar até o vermelho. 4) Ritmo da luz A luz pode dançar junto com os bailarinos. Muitos criadores de movimentos estabelecem um dialogo com a luz de maneira bastante contundente a ponto do trabalho coreográfico não funcionar sem a existência da luz especialmente criada para aquela performance. Neste tópico, apresenta-se um modelo de roteiro de iluminação onde se anota as relações que a luz pode estabelecer com a cena através da música, do movimento, ou seja, o ritmo de funcionamento da luz de acordo com a ação. É através do roteiro de luz que realizamos a união da luz com a cena. Durante os ensaios, anota-se as deixas e as luzes de cada cena. As deixas podem ser a partir do movimento dos corpos, de diferenças na música ou ainda pelo tipo de ocupação espacial do palco. Aqui, também determina-se o tempo de entrada e saída das luzes, ou seja, as transições entre uma cena e outra e ainda as intensidades de cada luz. Ressaltase a importância de determinar com clareza as deixas, principalmente aquelas que são baseadas no movimento coreográfico. 4 | A PRÁTICA Assim, os alunos começam por ver a luz no cotidiano, nas cenas ao vivo e em vídeo. Desta forma, observam os quatro aspectos e entendem que existe uma fonte de luz que ilumina; que está posicionada em algum lugar; que tem uma determinada cor com uma intensidade caracteristica e que pode acender ou apagar; reagindo ou não a um estímulo da cena. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 3 30 Com isso, os alunos têm a possibilidade de criar o roteiro de luz dos trabalhos apresentados na Mostra de Dança, que ocorre ao final de cada período no Teatro Angel Vianna do Centro Coreográfico do Rio de Janeiro. Este evento, se torna um grande laboratório de experimentos luminosos. Neste sentido, os alunos da disciplina Elementos Cênicos, ficam responsáveis pela criação da luz de todos os trabalhos apresentados. No decorrer das aulas, os alunos elaboram o roteiro de luz para cada trabalho que será apresentado na mostra, partindo de um mapa de luz básico, criado em sala de aula. Neste mapa, inserem-se as luzes mais específicas criadas por eles. Por fim, com os laboratórios de luz realizados no teatro no decorrer do curso e posteriormente na época da mostra, os alunos têm a oportunidade de experienciar na prática o idealizado nos ensaios e na sala de aula, ou seja, pode ver o imaginado. Com esses procedimentos busca-se o objetivo final do ensino, que é a conscientização do aluno através da vivência, neste caso, com a luz. 5 | O CURSO Ementa Uma visão geral e resumida da iluminação, sua origem e funções dentro do panorama histórico das artes cênicas. Observação e estudo dos efeitos luminosos e sua elaboração e aplicação cênica. Estruturação do espaço cenográfico definido pela iluminação. Aplicação de trabalhos coreográficos integrados aos elementos cenotécnicos que estimulem a criatividade do aluno e possibilitem a utilização da iluminação. Objetivo Executar e demonstrar domínio sobre as diferentes linguagens visuais utilizadas no espetáculo de dança, com ênfase na iluminação, tendo em vista o desenvolvimento performático do intérprete coreográfico na dança contemporânea. Conhecer a evolução da iluminação e sua função nas artes cênicas. Unidades UNIDADE I: Percepção visual. Luz natural e artificial; UNIDADE II: Evolução da Iluminação cênica – Antiguidade até a atualidade; UNIDADE III: Aspectos da Iluminação Cênica – Fonte, Direção, Cor e ritmo da Luz; UNIDADE IV: Etapas da elaboração do projeto de Iluminação Cênica. Avaliação Seminários, análise da iluminação cênica em uma montagem, montagem experimental, participação e frequência nas aulas. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 3 31 Metodologia Aulas práticas e teóricas. REFERÊNCIAS ARNHEIM, Rudoph. Arte e percepção visual – Uma Psicologia da Visão Criadora. 12 ed. Trad. Yvonne Terezinha de Faria. São Paulo: Pioneira, 1998. BAXANDALL, Michael. Sombras e Luzes. SP: Edusp, 1997. CAMARGO, Roberto Gill. Função Estética da Luz. São Paulo:TCM Comunicação, 1999. DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos Vaga-lumes. Minas Gerais: UFMG, 2011. GARAUDY, Roger. Dançar a vida. Trad. Glória Mariani e Antônio Guimarães Filho, 4 ed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira,1973 GOETHE, J. W. Doutrina das Cores.Trad. Marco Giannotti. SP: Nova Alexandria, 1993. PEDROSA, Israel. Da Cor à Cor Inexistente. RJ: Leo Christiano Ed., 1980. ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral. Trad. Yan Michalsky. Rio de Janeiro: Zahar, 1982. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 3 32 DOI 10.22533/at.ed.00000000000 CAPÍTULO 4 LEITURA DE HISTÓRIAS EM QUADRINHOS: UM ESTUDO DE ESTRATÉGIAS Bartira Zanotelli Dias da Silva imagens ou os cortes, essas características que viabilizam a produção de significados e uso de estratégias de leitura mediante as representações que dão sentido ao mundo social. Portanto, com base nos resultados encontrados, acredita-se que este trabalho contribui para que o educador possa criar situações de aprendizagem a partir do uso das HQs, ferramentas que contribuem para alcançar a autonomia leitora, bem como, corroboram para a compreensão de diferentes contextos. PALAVRAS - CHAVE: Ensino. Oficina de Leitura. Histórias em Quadrinhos. Faculdade Vale do Cricaré (FVC) São Mateus – Espírito Santo http://lattes.cnpq.br/4260543319292806 READING STORIES IN COMICS: A STUDY OF STRATEGIES Data de aceite: 16/04/2021 Fábia Fagundes Pacheco Faculdade Vale do Cricaré (FVC) São Mateus – Espírito Santo http://lattes.cnpq.br/4831335292045744 Joccitiel Dias da Silva Faculdade Vale do Cricaré (FVC) São Mateus – Espírito Santo http://lattes.cnpq.br/8903065369660009 RESUMO: Este artigo tem por objetivo apresentar o processo da leitura de Histórias em Quadrinhos (HQs) e o uso das estratégias de leitura, na prática em sala de aula nas turmas do 7º Ano do Ensino Fundamental II, em uma escola da Sul do Espirito Santo. HQs são recursos que não se destinam a um único público, elas presentificam-se nas mais diversas esferas sociais. As HQs fazem parte dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e também do Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE) e são direcionadas para todos os níveis de ensino, por serem um gênero que possibilita inúmeras releituras. Sendo assim, compreender a linguagem das HQs, seu contexto e seus recursos são imprescindíveis, pois a linguagem delas são dotadas de diversas referências, sejam em diálogos cotidianos, textos, Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 ABSTRACT: This article aims to present the process of reading Comics (Comics) and the use of reading strategies, in practice in the classroom in the classes of the 7th Year of Elementary School II, in a school in the south of Espirito Santo. Comics are resources that are not intended for a single audience, they present themselves in the most diverse social spheres. The HQs are part of the National Curriculum Parameters (PCN) and also the National Library at School Program (PNBE) and are aimed at all levels of education, as they are a genre that allows for numerous re-readings. Therefore, understanding the language of the comic books, their context and their resources is essential, since their language is endowed with several references, whether in everyday dialogues, texts, images or cuts, these characteristics that enable the production of meanings and use of reading strategies through representations that give meaning to the social Capítulo 4 33 world. Therefore, based on the results found, it is believed that this work contributes so that the educator can create learning situations from the use of comic books, tools that contribute to achieve reading autonomy, as well as corroborating the understanding of different contexts. KEYWORDS: Teaching. Reading Workshop. Comics. 1 | INTRODUÇÃO A leitura é uma atividade essencial à vida, pois, saber ler significa tornar-se livre. Esta é fundamental à construção de conhecimento e mais, à própria a vida no dia a dia (FREIRE, 1979). Portanto, esta dissertação se trata de um estudo que proporciona subsídios que auxiliem no processo da leitura de Histórias em Quadrinhos (HQs) e no que se refere à exploração das estratégias de leitura, trazendo a possibilidade de estudá-las sob a visão da interação entre o texto e o leitor (SOLÉ, 1989). As estratégias de leitura serão descritas como um conjunto de processos que exercem um controle executivo, consciente, mediante a interação entre leitor e o texto sobre os estágios da leitura, seja ela HQs ou outro gênero. Dentro dessa percepção de leitura, Kleiman (2016) relata que o leitor necessita ter controle consciente e ao realizar uma leitura. Logo, trabalhar a leitura a partir do uso das HQs é visto como uma forma “harmoniosa” para o desenvolvimento de estratégias metacognitivas, pois exige muito mais que estratégias de leitura e habilidades linguísticas, é preciso saber acioná-las estrategicamente “[...] dentro de um processo sociocognitivo interacional”. Isso quer dizer que elas são monitoradas e coordenadas pelo processo metacognitivo (leitor coordenador) (KLEIMAN, 2016). Diante do cenário exposto, percebeu-se que ao realizar a referida inserção, o professor poderá propiciar a ativação de estratégias de leitura, o que permitirá aos alunos: o uso consciente delas; a possibilidade de atuar sobre o material lido; bem como o gerenciamento das informações e a sistematização dos próprios conhecimentos (SOLÉ, 1998). A relevância do tema se deve à necessidade de trabalhá-lo em sala de aula, que surgiu a partir da experiência profissional da autora desta dissertação, uma docente que atua no segmento do Ensino Fundamental, e possui a percepção do baixo rendimento do índice no campo da leitura, por isso é essencial mediar e capacitar leitores a ter autonomia. A justificativa desta pesquisa se sustenta, porque por meio da mesma, busca-se descrever como se dá o processo de leitura e a aplicação de estratégias por parte do leitor, para o desenvolvimento que permita ampliar os aspectos críticos e reflexivos, por meio do conhecimento e do uso das estratégias de leitura e da interação entre texto e leitor. O artigo ora apresentado é parte de uma pesquisa desenvolvida nos anos de 2019 e 2020 sobre HQs e a importância das estratégias de leitura A questão orientadora do Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 4 34 processo, a saber: Como explorar no contexto escolar, a leitura de Histórias em Quadrinhos e as estratégias de interação entre texto e leitor? Esta problemática motivou a necessidade de alcançar o objetivo que é desenvolver ferramentas para estratégias de interação na relação entre texto e leitor no processo da leitura de HQs na prática em sala de aula. 2 | UMA ANÁLISE REVISIONAL SOBRE AS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS Eisner (1999, p. 8), afirma que as HQs possuem esse nome exatamente pela estrutura que possui, que é expressa em forma sequencial de quadrinhos com imagens, palavras, balões e até mesmo sons (descritos de forma compreensível nos balões), pois a [...] configuração geral da revista de quadrinhos apresenta uma sobreposição de palavras e imagem, e, assim é preciso que o leitor exerça as suas habilidades interpretativas e verbais. As regências da arte (por exemplo, perspectiva, simetria pincelada) e as regências da literatura (por exemplo, gramática, enredo, sintaxe) superpõem-se mutuamente. Pode-se ainda afirmar que possuem uma diversidade intertextual, pois dialogam com a realidade e com outros textos que cuidam de temas peculiares aos seus, como por exemplo, as charges e as caricaturas. Esses textos geralmente são classificados como sendo uma “família textual”, mas, aqui, opta-se por analisar somente algumas características que lhes são próximas: humor, irreverência, crítica, temas atuais e cotidiano, conforme relata Postema (2018). É praticamente impossível falar em quadrinhos sem mencionar a estrita relação com o meio social, afinal, nele nascem e se mantêm, pois se constituem em tal contexto, ganham vida e importância nos portadores que circulam pela sociedade – jornais, revistas e gibis (POSTEMA, 2018). As HQs usam como temas de discussão problemas, fatos, situações políticas, econômicas, culturais. Geralmente, estes estão embutidos nos quadrinhos e expressos por uma linguagem simples, lembrando que o conteúdo pode estar explícito ou implícito nas falas dos personagens, haja vista que uma de suas características é a sustentação do desejo de interação do leitor. O conteúdo será encontrado a partir da análise/interpretação de quem as lê, por meio da relação entre as imagens e as falas (RAMOS; VERGUEIRO, 2018). Conforme Viana (2013) esclarece, as HQs possuem um longo processo na história e também no ato da leitura. Surgiram, sob a forma de esboço, no final do século XIX e início do século XX. Com o passar do tempo, saíram das tiras de jornais e ganharam as revistas em quadrinhos, e cada vez mais espaço na cultura contemporânea, chegando aos adultos e sendo sofisticadas justamente para atingir um público maior e diferenciado. No Brasil, de acordo com a 4ª edição da Pesquisa Retratos da Leitura do Instituto Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 4 35 Pró-Livro – 2019, os quadrinhos, enquanto texto, agradam o público leitor entre 13% e 29%. A riqueza linguística contida nas HQs vai além do vocabulário usado pelos personagens no contexto quadrinizado, porque se objetiva, com o discurso, conferir veracidade e naturalidade da conversação entre leitor, texto e personagens no percurso discursivo de interação do sujeito no universo dialógico das HQs (CIRNE, 2000). Além desse aspecto, os quadrinhos oportunizam o leitor a conferir a adequação da analogia de gestos, expressões, sorrisos, com o que pretende significar. Os termos empregados nas tirinhas são selecionados de acordo com sua relevância semântica, a fim de propiciar uma empatia entre texto e leitor. Graças a linguagem simples e direta deles é possível associar o diálogo a ricas em expressividades, com isso a linguagem é cada vez mais convidativa. “Os quadrinhos convidam o leitor a acessar o processo da significação [...]” (POSTEMA, 2018, p. 52). Segundo Ramos e Vergueiro (2018) apesar do tema escolhido ainda não ser tão amplamente disseminado, nota-se que muitos educadores buscam e utilizam as HQs, e estratégias pedagógicas para despertar a curiosidade e o interesse do leitor. Cientes disso, autores como Catonio e Cruz (2008, p. 726) já assinalavam muito antes luz aos benefícios que: [...] histórias em quadrinhos proporcionam aos alunos [como um] maior desejo de escrever e produzir incentivados pelo imaginário, pela criatividade que se adquire por meio delas. É interessante [...] transformar seus alunos em crianças críticas, questionadoras, formadoras de opinião, saber escolher cuidadosamente histórias que despertarão essas qualidades. A atuação do professor quando o aluno tem os primeiros contatos com os quadrinhos é essencial, já que o leitor pode deixar de observar a função de certos aspectos linguísticos, porque seu conhecimento sobre a intencionalidade não é mobilizado para a tarefa de leitura (KLEIMAN, 2016). De acordo com as palavras de Verdolini (2007, p. 26), “[...] hoje já existem diversos livros que abordam os benefícios dos quadrinhos para a aprendizagem da leitura e para o desenvolvimento do gosto por ela, incluindo-os no hall de literatura que merece ser lida e admirada”. Entretanto, é necessário refletir que se o leitor for orientado a pensar no contexto em que os quadrinhos foram produzidos, quem era o leitor previsto e a intenção que está por trás desse gênero textual, então a leitura deixará de ser uma análise de palavras e passará a ser um contexto interativo de apreensões (RAMOS; VERGUEIRO, 2018). Nessa perspectiva, Santaella (2001, p. 384) acredita que se trata de uma série de jogos semióticos. Nas palavras do autor: [...] primeira dentre as linguagens visuais-verbais é a escrita, todas as formas de escrita, inclusive as pictográficas, ideográficas, até atingir a sua forma mais convencional e arbitrária na escrita alfabética. [...] Evidentemente visual- Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 4 36 verbal é a publicidade impressa nos cruzamentos que estabelece entre imagem, palavra, diagramação de ambos na página e dos partidos que tira desses cruzamentos, através de jogos semióticos muito engenhosos. Percebe-se, portanto, que enquanto gênero textual, as HQs mostram-se aplicáveis ao cotidiano como qualquer outro que busca despertar no leitor a procura por informações não visíveis no texto. Estas, por sua vez, só serão encontradas a partir do ativamento de conhecimentos construídos ao longo do tempo e a partir de sua experiência com o mundo da leitura (KLEIMAN, 2016). Esse conhecimento implícito se revela randômico, pois engloba uma gama de elementos em seu contexto dialógico, permitindo assim uma interação entre texto-leitormundo (SOLÉ, 1998). Ao falar de HQs, Mendonça, (2008) salienta que não se pode negar sua forma estética. Isso se dá porque esse gênero possui características próprias, fazendo com que exista um distanciamento de qualquer outro estilo de texto. Essa peculiaridade só é possível por causa dos elementos que são usados para compor uma HQs. As imagens recortadas em quadrinhos transmitem o dinamismo da ação e geram uma emoção intensa, fazendo com que o leitor se prenda cada vez mais a leitura desse gênero. A vivacidade dos quadros muito se assemelha aos desenhos animados de televisão. Aliás, graças aos quadrinhos, eles existem e fazem tanto sucesso no “cotidiano de crianças e jovens” (BARBOSA, 2006, p.21) . Isso se dá porque: “Os quadrinhos produzem inúmeros códigos na construção do significado” (POSTEMA, 2018, p. 19). Com isso, o envolvimento entre HQs e leitor podem se tornar sempre contínuo. As imagens enquadradas falam por elas mesmas, motivo que dá vida e faz com que sejam tão importantes quanto os textos escritos, para a compreensão global da mensagem transmitida. A linguagem dos personagens, também, gera grande aproximação com o leitor, porque, de certa forma, há uma familiaridade. A linguagem é a do cotidiano (em linguística é o que denomina variante popular da língua), é simples e de fácil entendimento (SANTOS, 2001). Segundo Mendonça (2002) enfatiza é sabido que as HQs surgiram na periodicidade dos jornais e que, com o tempo, ganharam um espaço único e específico de publicação completa: os gibis. Hoje, elas podem ser encontradas em vários outros veículos midiáticos, como é o caso de revistas destinadas a diversos tipos de leitores (desde o público infantil, o infanto-juvenil e até mesmo o adulto). Isso quer dizer que em cada revista é possível encontrar HQs ou seu subtipo (tirinhas) com temas e personagens que interessem a um público predeterminado. De mais a mais, outro fato observável nesse veículo informativo é a preocupação com o público leitor, que vai desde as camadas populares à classe alta. Para Viana, 2013, p. 21). As HQs são arte, logo “[...] reproduz as relações sociais”. Isso explica as razões das HQs privilegiarem temas abrangentes, já que o objetivo é satisfazer, alcançar todo o Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 4 37 público leitor indiferentemente da classe social a qual pertençam (VIANA, 2013). Além desse aspecto, as HQs têm a liberdade para optar por uma diversidade de temas que não dependam especificamente da atualidade, como é o caso das charges, por exemplo. Afinal, percebe-se que estas envelhecem como as notícias, enquanto as tirinhas mantêm o caráter atemporal (CIRNE, 1975). Seguindo os relatos de Postema (2018) nota-se que um outro suporte comum de publicação são as coletâneas (de um personagem, de um grupo de personagens, ou a produção de um quadrinista) que podem trazer histórias longas, o que requer maior tempo do leitor para concluir a leitura. Como o leitor previsto é, geralmente, apreciador de leituras rápidas, muitas vezes ele rejeita essas histórias em detrimento de narrativas mais fáceis. Assim, há uma valorização, e melhor aproveitamento do tempo, algo cada vez mais precioso na vida contemporânea. De acordo com Postema (2018) as revistas em quadrinhos passaram a incluir histórias de tamanhos variados, de curta e longa duração, com continuidade em fascículos. Aliás, nota-se que esse é um dos motivos que impulsionam a publicação de tirinhas nos periódicos, a garantia de serem curtas, possuírem somente quatro ou cinco quadros, com início, meio e fim, propiciando uma narrativa completa. Não dependente de continuidade, as tirinhas necessitam de acompanhamento de capítulos diários, fato este que não compromete o conteúdo nem a intencionalidade delas. Observa-se, portanto, que, como mídia escrita, há razões para que as HQs tenham espaço garantido em vários meios de comunicação, o que lhes dá a possibilidade de estar sempre em circulação, ao mesmo tempo em que ajudam a propagar os suportes que as portam. Sobre isso, Mendonça (2002, p. 200) diz que “denotam a autonomia, cada vez maior, das HQs em relação ao domínio discursivo jornalístico, ou seja, a autonomia em relação aos suportes midiáticos”. 3 | METODOLOGIA Esta pesquisa contou com a participação de quatro turmas do 7º ano do Ensino Fundamental do colégio EMEIEF “Bery Barreto de Araújo”, localizado no município de Presidente Kennedy – Espírito Santo. O levantamento dos dados e resultados foram capitados por meio da participação em sala de aula, o que possibilitou explorar a leitura de HQs no contexto escolar, como também as estratégias de interação texto/leitor. Com a aplicação de um questionário os discentes se expressaram respondendo quais são suas percepções sobre a sua própria atuação no campo leitura e quais relações estabeleciam com as HQs. Foi também desenvolvida uma oficina de leitura de HQs para estabelecer relação entre texto e leitor e por meio desta explorar e estimular o acionamento de estratégias de leitura a partir das HQs. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 4 38 A escola hoje, no ano letivo de 2020, é composta de aproximadamente 800 alunos divididos em três turnos (matutino, vespertino e noturno) e, além disso, servem a essa instituição escolar, aproximadamente 43 professores. A equipe técnica é composta de um (01) diretor, seis (06) coordenadores de turno e dois (02) pedagogos, 4 (quatro) auxiliares administrativo, vinte e três (23) serventes, três (03) motoristas, dois (02) monitores de Informática, três (03) monitores de Transportes, um (01) auxiliar de Serviços Gerais e oito (08) cuidadores. Além disso, a instituição conta com os funcionários de firmas terceirizadas. Servem a esta escola dois (02) porteiros, cinco (05) banheiristas, quatro (04) vigias patrimoniais, dois (02) motoristas de van, 12 motoristas de ônibus, 12 monitoras de transporte escolar. O questionário foi dividido em duas categorias: a) Percepção dos discentes sobre a importância das HQs; b) Percepção dos discentes sobre a importância, uso e monitoramento da leitura. Essa relação leitora e as estratégias no ato de ler nortearam a pesquisa. Por meio desse instrumento aplicado foi possível obter informações sobre a percepção dos discentes quanto à leitura em relação às HQs. 4 | RESULTADOS E DISCUSSÕES Esta pesquisa foca na leitura e no potencial das HQs, e com base no resultado obtido 100% dos discentes responderam que já leram HQs em algum momento da vida. Nota-se o quanto as HQs são apreciadas pelos leitores. Esse dado reforça o que foi relatado por Eisner (1999, p. 7), de que “a história em quadrinhos continua a crescer como forma válida de leitura”. Segundo o autor, as HQs podem ser chamadas de “leitura” no sentido mais amplo, porque estas exigem um leitor moderno, com habilidades interativas para perceber um nicho de possíveis leituras que as HQs permitem. Nessa mesma linha, Freire (1982, op. cit. p. 4-5) destaca, que a leitura da imagem precede à leitura da palavra por isso é fundamental dominar as linguagens verbal e nãoverbal: [...] ler é adentrar nos textos, compreendendo-os na sua relação dialética com seus contextos e o nosso contexto. O contexto do escritor e do leitor. Ao ler eu preciso estar informando-me do contexto social, político, ideológico e histórico do autor. Eu tenho de situar o autor num determinado tempo [...]. Quando eu leio um autor eu preciso ir me inteirando do contexto dele, em que aquele texto se constituiu. Mas agora eu preciso também de um outro esforço: de como relacionar o texto com o meu contexto. O meu contexto histórico, social, político, não é o do autor. O que preciso é ter clara esta relação entre o texto do autor e o contexto do leitor. Discorre sobre a intencionalidade de um texto e fundamental, pois conscientização em torno da leitura contribui para o acionamento de estratégias de leitura, é uma experiência que o leitor constrói ao estabelecer interação com o texto, seja ele com linguagem verbal, Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 4 39 não verbal ou mista, feito nas HQs. Para a autora, o “leitor faz predições” (KLEIMAN, 2016, p. 78). Percebe-se que o leitor precisa adotar uma postura ativa, ser capaz de ressignificar o texto. Ao responderem à questão sobre o tipo de HQs que leem. A maioria respondeu que lê HQs de Fantasia/Fábulas (cerca de 58,5% dos discentes), enquanto os que correspondem a 48,5% disseram que leem o tema super-heróis. Além desses, outros temas foram apontados como ficção científica (12,8%) e drama/terror (26%). E em relação a opção - informativa - a mesma não foi marcada pelos alunos, ou seja, são leitores de gosto particular. Escolher as HQs por tema ou categoria é válida, porque o discente poderá desenvolver uma leitura autônoma, recorrendo as previsões e inferências no ato da escolha e leitura. De acordo com Bittencourt et al. (2015, p. 27) é primordial “despertar nas crianças o desejo de serem leitoras”. Cabe à escola e a família estimular e proporcionar momentos de deleite. Segundo Cirne (2000) as HQs foram pensadas para proporcionar prazer no leitor. Por isso é fundamental despertar a criança a estreitar cada vez mais relações com este gênero. No que tange a questão que traz a pergunta se o aluno acredita que alguns temas introduzidos nas HQs são compreendidos mais facilmente do que se fossem por livros apenas com linguagem verbal. O parece focou 64% informaram que os quadrinhos favorecem a compreensão, 20% acreditam que ocasionalmente as HQs podem facilitar o entendimento e 16% discordaram e para eles esse gênero não ocorre. Assim, ficou disposto que de acordo com os resultados. Notou-se claramente o quanto as HQs influenciam na vida do leitor, seja no campo da leitura, ou no social- cultural. Um ponto relevante e perceptível na afirmação de Barbosa (2006, p. 22), que [...] palavras e imagens, juntos, ensinam de forma mais eficiente a interligação do texto com a imagem, existente nas histórias em quadrinhos, amplia a compreensão de conceitos de uma forma que qualquer um dos códigos, isoladamente, teria dificuldades para atingir. Em conformidade com Barbosa, Eisner (2001, p. 8) destaca “a leitura da revista em quadrinhos é um ato de percepção estética e de esforço intelectual”. Por isso, explorar esse gênero é se permitir buscar novas formas e estratégias de leitura, pois para realizar tal leitura o leitor precisa articular uma gama de saberes. As HQs é um grande rótulo que agrupa diversos gêneros que compartilham uma linguagem similar (RAMOS, 2009). Com isso é fundamental construir uma percepção aguçada. Perguntados se “Com base na sua relação com as HQs, você acha que elas te Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 4 40 incentivam a refletir, ou mesmo incentivam você a ler?”. A maioria considera que as HQs incentivam o ato de ler, com isso, notou-se claramente o quanto as HQs influenciam na vida do leitor. Concernente a questão que destaca se o leitor pode construir conhecimento por intermédio da leitura de HQs. A maior parte 64% dos entrevistados marcou a opção sim. O que demonstra no referido resultado, que tem sim, a possibilidade de os quadrinhos fornecerem conhecimento segundo os discentes entrevistados. Para Ramos (2009, p. 19), “o leitor, ao entrar em contato com o texto, cria uma expectativa de leitura, que não pode ser ignorada”. A linguagem dos quadrinhos oferta ao leitor diversos contextos para interação, seja por meio da leitura ou no convívio social através das histórias, pois quando usado a favor das necessidades sociais e não só para ficção este gênero estimula as inferências e estratégias de interpretação. Com isso, o leitor constrói significado e conhecimento. Referente a indagação se as HQs podem auxiliar a compreensão leitora, bem como favorecem na relação entre texto e leitor, contando 67% do total disse que sim. Com isso fica perceptível a relevância das HQs, pois são fonte de informação e, com sua linguagem rica, possibilitam o uso de inúmeras estratégias de leitura ao correlacionar texto verbal e não-verbal aos conhecimentos prévios que detêm. Segundo Ramos (2009, p. 14) as HQs geram expectativas, pois Ler quadrinhos é ler sua linguagem, tanto em seu aspecto verbal quanto visual (ou não verbal). A expectativa é que a leitura - da obra e dos quadrinhos – ajude a observar essa rica linguagem de um outro ponto de vista, mais crítico e fundamentado. Referente a questão sobre quais critérios os discentes utilizam para escolher as HQs no ato da leitura. Sendo assim, 50% dos discentes se expressaram que optariam pelo tema dos quadrinhos, enquanto 38,5% dos entrevistados o gosto pessoal e 5,7% a importância no mercado. Os outros 12,8% escolheram o formato físico e durabilidade. Os 12,8% restantes responderam que usariam outros critérios, como a popularidade da obraautor, foi observado que os alunos preferem escolher os títulos das obras, pois se sentem mais seguros para realizar a leitura. Segundo Cirne os quadrinhos são narrativas gráfico-visual: [...] a grafia exige uma dupla articulação semiótica: narrativa enquanto tal e o seu agente impulsionador (o corte), que mobilizam a relação produção/leitura de forma a mais eficaz possível, tendo em vista a própria operacionalidade semântica e estrutural de sua vigência quadrinhística. Isto é seu espaço narrativo só existe na medida em que se articula com os cortes, que, assim, seriam redimensionados pelo leitor (CIRNE, 2000, p. 23-24). Ao escolherem as HQs, a leitor traz para si a responsabilidade de escolha, logo terá que desbravar as lacunas que estão no texto, é tarefa que requer apoiar-se das imagens e Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 4 41 recursos gráficos para compreender o contexto e produzir significado, para assim extrapolar o padrão estandardizado, para visualizar as pluralidades estilísticas e ideológicas que se presentificam nas HQs. Ao serem questionados se conhecem alguma biblioteca, ou mesmo algum espaço que utilize HQs as quais os leitores possam utilizar; afirmaram sim 64% dos entrevistados, e os demais alunos 36% afirmaram que não. Sendo assim nota-se que é preciso criar espaços para que os discentes tenham acesso esse gênero. Na visão de Eisner (2001, p. 7) “[...] a revista de quadrinhos constitui o principal veículo da arte sequencial. Na medida que se tornou mais evidente o potencial desta forma, foram introduzidas uma melhor qualidade e uma produção mais cara”. Dessa forma, foi surgido um público mais refinado e publicações vistosas, pois os quadrinhos passaram a incorporar todos os campos do saber, nos diferentes níveis de ensino. No que tange a questão 9, que questiona se o leitor faz uma revisão, com frequência, das leituras realizadas no dia a dia, dos entrevistados 76% responderam que às vezes. Os demais, 24% afirmaram que nunca, enquanto nenhum marcou que faz a revisão sempre não foi sinalizada. Segundo Solé (1998, p. 72), “[...] o leitor especialista, além de compreender, sabe que compreende e quando não compreende”. Com isso fica evidente a necessidade de ensinar estratégias de leitura, porque é crucial aguçar a habilidade leitora, e assim galgar o status de leitor autônomo e capaz. Questionados sobre perceber os próprios erros no ato da leitura e se utilizam essa tomada da consciência para melhorar ainda mais a capacidade leitora, 63% responderam às vezes, porém 14% restantes replicaram que nunca. Com esse ultimo resultado, nota-se que o aprimoramento, precisa ser uma constância por meio de estímulo estratégico, essa tomada de consciência precisa está em evolução. Para Solé (1998, p. 95): “no caso da leitura, o leitor sente-se imerso em um processo que o leva a se auto interrogar sobre o que lê, a estabelecer relações com o que já sabe, a rever os novos termos, a efetuar recapitulações e sínteses frequentes, a sublinhar, a anotar [...]”. Por isso monitorar o ato da leitura faz-se necessário para assim garantir uma aprendizagem significativa. Quando questionados se buscam encontrar formas de melhorar a leitura estabelecendo objetivos claros. A enquete ficou: às vezes com 47% dos votos, nunca com 22% e sempre com os demais 31% das respostas dos entrevistados. O leitor precisa adotar uma postura crítica, e ser capaz de compreender práxis da leitura. De acordo com Kleiman (1998, p. 45) destaca que “essa atividade intelectual começa pela apreensão do objeto por meio dos olhos com o objetivo de interpretá-lo”. Ou seja, o leitor hábil se engaja com uma postura ativa e consciente. Com referência ao questionamento se eles tentam relaxar sempre que sentem insegurança ao realizar uma leitura e se buscam descobrir boas estratégias de leitura; eles responderam e é perceptível a necessidade de instruir os leitores a terem auto controle Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 4 42 no ato da leitura. Para Solé (1998, p. 125), “para ler eficazmente, precisamos saber o que podemos fazer quando identificamos o obstáculo, o que significa tomar decisões importantes no decorrer da leitura”. Por isso crucial se sentir seguro quando atua numa perspectiva interativa textual. Em relação ao questionamento se os leitores avaliam o processo de leitura e estabelecem objetivos para si mesmos no ato da leitura, da total 51% responderam às vezes, 36% sempre e 13% nunca. Os resultados possibilitam refletir que é preciso instruir o leitor a estabelecer propósitos para todas as leituras. Nesse sentido Solé (1998, p. 72) destaca que: “[...] conseguimos nosso objetivo e podemos variar nossa atuação quando isso nos parece necessário”. Dessa forma, os objetivos variam conforme a intencionalidade de cada leitor, por isso cada leitor deve ser capaz de questionar-se e estabelecer objetivos com base no seu ângulo de visão, de interação textual e seu propósito, ou seja, por que estou lendo. 5 | CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste artigo, buscou evidenciar que a atividade de leitura de quadrinhos em forma de oficina favoreceu a ação leitora, pois é um aprendizado interativo que emana o uso de inúmeras estratégias de leitura, e por isso, os alunos puderam expor sua visão e interpretação sobre os elementos que compõem as imagens e também ouvir o que os demais interpretaram dos textos, e assim, cada leitor constrói sua leitura a partir de uma ótica própria, uma melhor compreensão do processo e uma maior aproximação das HQs, graças ao uso de estratégias de leitura. O anseio é que dessa experiência frutifiquem outras. REFERÊNCIAS BARI, Valeria Aparecida. O potencial das Histórias em Quadrinhos na formação de leitores: busca de um contraponto entre os panoramas culturais brasileiro e europeu. Tese apresentada à Comissão de Pós-Graduação da Escola de Comunica-ções e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). 2008. Disponível em: <https://www.teses.usp. br/teses/disponiveis/27/27151/tde-27042009-121512/publico/ 1937466.pdf>. Acesso em: 22 set. 2019. BARBOSA, Alexandre. Como usar as Histórias em Quadrinhos na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2006. BITTENCOURT, Zoraia Aguiar; CARVALHO, Rodrigo Saballa de; JUHAS, Sílvia E SCHWARTZ Suzana. A compreensão leitora nos anos iniciais – reflexões e propostas de ensino. Petrópolis, Editora Vozes, 2015. CIRNE, Moacy. A linguagem dos quadrinhos. Rio de Janeiro: Vozes, 1975. CIRNE, Moacy. Quadrinhos, sedução e paixão. Rio de Janeiro: Vozes, 2000. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 4 43 EISNER, Will. Quadrinho e arte sequencial. São Paulo: Martins Fontes, 2001. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educa-tiva. 20ª ed. São Paulo: Editora Paz e Terra S/A, 2001. KLEIMAN, Angela. Leitura: ensino e pesquisa. São Paulo: Pontes, 1989. KLEIMAN, Angela. Texto & leitor: aspectos cognitivos da leitura. 7. ed. São Paulo: Pontes, 2000. KLEIMAN, Angela. Oficina de leitura: Teoria e Prática. 9ª. ed. São Paulo: Pontes, 2002. KLEIMAN, Angela. Oficina de leitura: Teoria e Prática. 16ª. ed. São Paulo: Pontes, 2016. MENDONÇA, João Marcos Pereira. Traça, traço, quadro a quadro: a produção em quadrinhos no ensino da Arte. Belo Horizonte: C/Arte, 2008. MENDONÇA, Márcia Rodrigues de Souza. Ciências em quadrinhos: recurso didático em cartilhas educativas. Recife: 2008. POSTEMA, Barbara. Estrutura narrativa nos quadrinhos: construindo sentido a partir. São Paulo: Peirópolis, 2018. RAMOS, Paulo. A leitura dos quadrinhos. São Paulo: Contexto, 2009. RAMOS, Paulo; VERGUEIRO, Waldomiro. Quadrinhos na educação: da rejeição à prática. 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2018. SANTAELLA, Lúcia. Semiótica Aplicada. São Paulo: Cengage leraning, 2012. SANTOS, Roberto Elísio. Aplicação das Histórias em Quadrinhos. Comunicação & Educação, São Paulo, 2001. SOLÉ, Isabel. Estratégias de Leitura. 6ª. ed. Porto Alegre: ArtMed, 1998. SOUZA, Renata Junqueira de (et al.). Ler e compreender: estratégias de leitura. Campinas, SP: Mercado de letras, 2010. Outros autores: Ana Maria da C. S. Menin, Cyntia Graziella Guizelim Simões Girotto, Dagoberto Buim Arena. (apud) HARVEY, Stephanie; GOUDVIS, Anne. Strategies that work. Teaching comprehension for understanding and engagement. USA: Stenhouse Publishers & Pembroke Publishers, 2008. VERGUEIRO, Waldomiro e RAMOS Paulo. Quadrinhos na Educação: da rejeição à prática. SP; Contexto, 2018. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 4 44 DOI 10.22533/at.ed.00000000000 CAPÍTULO 5 CORPO-OBJETO-OBRA: UMA EXPERIÊNCIA EM EXPANSÃO JUNTO À DISCIPLINA TÉCNICA DE MANIPULAÇÃO DE OBJETOS Data de aceite: 16/04/2021 corpo, Sistema Laban/Bartenieff Data de submissão: 12/02/2021 Julia Coelho Franca de Mamari Departamento de Arte Corporal (EEFD - UFRJ) e Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Rio de Janeiro - RJ http://lattes.cnpq.br/2060679225115132 RESUMO: TEMAOB – Técnica de Manipulação de Objetos é o nome atual de uma disciplina que começou a ser lecionada no Curso Técnico da Escola e Faculdade Angel Vianna em 2008, imediatamente após o término da minha licenciatura na mesma instituição, por uma ideia trazida pela própria Angel Vianna que, percebendo os infinitos entremeios do circo e da dança como importantes na formação do bailarino, decide criar a disciplina, então denominada Malabares. O presente artigo pretende compartilhar pontos da trajetória da criação e construção de bases metodológicas que nasceram da prática do corpo e do manuseio de objetos. A partir de um ligeiro apanhado do que foram estes 11 anos do desenvolvimento de uma metodologia de ensino que perpassa a dança, o circo, e o Sistema Laban/Bartenieff, assim, apontar-se-á para cruzamentos que foram emergindo entre as práticas artísticas, as pesquisas acadêmicas e as vivências junto aos estudantes do Curso Técnico de Bailarino Contemporâneo. PALAVRAS - CHAVE: Circo, dança , objeto, Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 PIECE-BODY-OBJECT: A GROWING EXPERIENCE ALONG WITH OBJECT MANIPULATION TECHNIQUE ABSTRACT: TEMAOB - Object Manipulation Technique is the current name for a school discipline in Angel Vianna’s Technical Program, that began in 2008, immediately after my graduation in the same institution. Angel Vianna herself, perceiving the importance of intersections between circus and dance for the dancer’s formation, conceived the idea for the course, then called “Malabares” [Juggle] . The present article aims to share some points experienced through the creation and development of methodological bases, born from the manipulation of objects and the practices of the body. From a slight overview of these 11 years developing a teaching method that runs through dance, circus and the Laban/ Bartenieff Movement Analysis, some points of convergence which emerged from the junction of artistic practices, academic research, and the experiences from working with the students of the Technical Program for Contemporary Dancers students, will be indicated. KEYWORDS: circus, dance, object, body, Laban/ Bartenieff Movement Analysis Faz-se importante, antes de mais nada, comentar brevemente o que antecedeu a criação da disciplina Técnica de Manipulação de Objetos (TEMAOB). Em 2007, eu estava concluindo a licenciatura em dança, na própria Faculdade Angel Vianna, e havia compartilhado Capítulo 5 45 em uma das mostras semestrais da instituição uma criação coreográfica de minha autoria, intitulada “Objeto para uma Delicatessen Sentimental”1. A criação unia a técnica de contact juggling circense, manipulação de uma bola de acrílico, a atravessamentos de um discurso corporal construído a partir de uma perspectiva que se utilizava da técnica do malabarismo aliada ao estudo das expressividades do gesto, sob referências da dança. Neste momento, a coordenação pedagógica da escola decidiu pelo nome Malabares, para destacar a busca pela linguagem do circo no contexto da formação em dança contemporânea. Lembro-me de pensar inúmeras vezes: “Mas como vou lecionar malabarismo se não sou malabarista...?! Preciso dizer isso a elas. ” Ao final da primeira reunião docente que fui, Angel foi conversar comigo e eu, muito preocupada, disse a ela minhas inseguranças. Ela me disse que ficasse inteiramente à vontade para eleger os elementos que me parecessem mais importantes abordar e enfatizou muito que fossem relacionados à pesquisa que estava desenvolvendo, utilizadas para a criação coreográfica comentada anteriormente. Quando tentei ser mais específica, ela me disse: “Eu confio plenamente em você. Ao trabalho!”. Estava muito claro que não havia nenhum tipo de cobrança ou imposição sobre quais disciplinas circenses eu deveria lecionar, nem mesmo dentro da arte do malabarismo2. Por outro lado, não havia como a instituição arcar com a despesa necessária para que a disciplina tivesse seu próprio arsenal de objetos malabarísticos. Então, optei pelo objeto “bola”, num tamanho pequeno, fácil de carregar e de ser construído, compreendendo que a esfera possui um formato “base”, que posteriormente pode permitir que o estudante adapte sua pesquisa para um novo objeto. A construção das bolas era realizada no primeiro dia de aula, utilizando bexigas de encher e painço, ou alpiste, solução muito comum em projetos sociais de circo com baixo recurso. Num tatear muito sutil, com muitas perguntas, e respostas que ainda hoje eclodem, comecei a estudar o que seriam os padrões de movimento mais usados na manipulação de diversos objetos malabarísticos. Foi quando vieram à tona os padrões “permanência”, “equilíbrio”, “rolamento”, e o “jogo” propriamente dito. O primeiro, busca a permanência do objeto num ponto entre uma dobra do corpo, uma articulação, ou duas superfícies do corpo que se aproximem3. O segundo, diz respeito à permanência da bola em relação a apenas uma superfície do corpo, estando necessariamente acima dela e, por que não dizer o óbvio, estando equilibrada com apenas este ponto de contato. O terceiro, é quando a bola está rolando entre uma ou duas superfícies, do corpo ou do espaço à sua volta4. O último, é 1 O trabalho, que recebeu orientação do professor, coreógrafo e diretor Paulo Caldas, encontra-se disponível no endereço eletrônico https://www.youtube.com/watch?v=Ctkof5et69U&t=39s 2 Contudo, existem inúmeros tipos de objetos que podem ser utilizados no malabarismo que não possuem um formato de uma esfera, como por exemplo claves, argolas, chapéus, bastões, leques, facas, bandeiras, correntes, guarda chuvas, diabolôs, etc., e para cada tipo de objeto existe basicamente um vocabulário de manipulação novo. 3 Podendo ser tanto um braço e uma perna, como entre duas superfícies do braço, entre um ponto da cabeça e um do ombro, um ponto do pé e um da perna, um do joelho e um da cabeça, e assim sucessivamente. 4Este padrão pode referir-se à técnica de contact juggling, onde a bola rola em contato com apenas uma superfície (no que seria um meio termo entre o rolamento e o equilíbrio); pode estar rolando entre duas superfícies do corpo, em Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 5 46 quando a bola sai do contato com o corpo, sendo jogada por qualquer parte do mesmo e retornando ou não para o ponto de origem. Possivelmente, por estar começando a explorar mais os Bartenieff Fundamentals (BFs) em minha pesquisa pessoal e acadêmica, comecei a desenvolver todo um primeiro momento de aula que aliava os BFs a uma experiência de “estar com o objeto” pela própria relação, sem objetivos tão delineados. O corpo começava a se mover em sala de aula ao mesmo tempo em que a relação com o objeto nascia, buscando manter um equilíbrio entre estar ativo, estar presente, e, ao mesmo tempo, estar aberto aos sentidos para o ambiente externo/interno ao mesmo e, logo, ao objeto. Estes exercícios propiciaram inúmeros questionamentos sobre as distintas re-organizações do corpo necessárias para “receber” este objeto e conceber um novo corpo. Foi assim que as primeiras indagações sobre o espaço entre o corpo-objeto apareceram. Durante os improvisos em aula e também nos processos de criação para as mostras discentes semestrais ficava muito presente o quão visceral aquela relação poderia se tornar, assim como sua porosidade. O que acontecia no espaço punha em questão direta as fronteiras existentes na relação. O campo do desejo modificava o corpo no espaço, onde se sentia claramente os momentos em que não existiam três movimentos, do corpo, do espaço, e do objeto, mas apenas um, que, como aponta a Teoria da Complexidade (VIEIRA, 2006), produz algo mais que a soma de seus elementos, que nasce do próprio acontecimento do encontro - que intitulei corpo-espaço-objeto.5 Aos poucos, os Grandes Temas Labanianos apareceram como atravessamentos aos padrões de movimento criados e à perspectiva dos BFs, desenvolvidos na metodologia anterior. Toda a ideia de porosidade que era vivida e observada entre corpo-espaço-objeto, fez saltar o Tema Interno/Externo como pilar para a pesquisa dentro e fora de sala de aula.6 Como exemplos mais concretos, ao tentar manter o objeto fixo em uma dobra do corpo, os exercícios de “permanência” apontavam para limitações de movimento que obrigavam o corpo a criar caminhos inusitados que saíam da lógica gestual comum do movente, ampliando seu leque expressivo em soluções inusitadas. Ao mesmo tempo, o padrão de “equilíbrio” marcava uma tensão com a dimensão vertical que reorganizava o corpo todo em função das partes mais estáveis ou mais móveis, entre as que tocam ou não o objeto. Questões como quem movia quem (corpo, objeto ou espaço), que partes do corpo davam suporte para outras, que aparentemente se moviam “mais”, as relações entre macro e micro movimento7 e, acima de tudo, a noção de estabilização de alguns segmentos do corpo para mobilização de outros (ou vice-versa), destacaram as relações de diferenças múltiplas possibilidades, como citado na “permanência”; pode ser entre duas superfícies de dois corpos diferentes; e, ainda, entre uma superfície do corpo e uma do espaço, como o chão ou uma parede, por exemplo. 5 Este padrão pode referir-se à técnica de contact juggling, onde a bola rola em contato com apenas uma superfície (no que seria um meio termo entre o rolamento e o equilíbrio); pode estar rolando entre duas superfícies do corpo, em múltiplas possibilidades, como citado na “permanência”; pode ser entre duas superfícies de dois corpos diferentes; e, ainda, entre uma superfície do corpo e uma do espaço, como o chão ou uma parede, por exemplo. 6 Temática que foi amplamente desenvolvida na minha dissertação de mestrado (FRANCA, 2017) e teve como fruto o Projeto Mundano, criado e dirigido por mim. 7 Estas podem ser vistas também a partir da noção de paragem, de José Gil (GIL, 2004). Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 5 47 funcionais e expressivas entre parte inferior e superior do corpo. Após a decisão de incluir também a pesquisa com objetos cotidianos na disciplina, a organização bípede e a instrumentalização do ser humano com relação aos objetos que o cerca, evidenciou o tema Função/Expressão. Pois, revelou certas funcionalidades do corpo, que o condicionam e operam dentro do que Guilherme Veiga de Almeida denominou de redoma sensorial ordinária (ALMEIDA, 2008). As experiências em aula, portanto, buscaram plantear outras trajetórias gestuais a partir de diferentes qualidades dinâmicas de movimento, que operavam com todo o corpo e em todos os níveis espaciais. Ficava explícito o quanto o corpo adulto possui determinadas organizações funcionais relativas aos objetos, mas, sobretudo, que ao seguir provando variações e nuances expressivas para os mesmos movimentos, a própria funcionalidade também se diluía. Reflexão esta que instaurou o Tema Ação/Recuperação como ideia de ritmicidade subjetiva das expressividades. O padrão de movimento do “jogo”, e o sentido da parábola, com seu ponto ápice de energia potencial e seus diferentes fluxos de movimento, ajudaram enormemente a percepção de um fraseado pessoal. Em grandes conjuntos de acentos, espaços, e nuances, o acontecimento da preparação, a ação principal, e sua recuperação (que já é uma nova preparação), fez decantar padrões pessoais de preferências dinâmicas que viajam em ondas, e que, por isso, também modificam diretamente o que se cria junto ao objeto. Finalmente, hoje me pergunto o que de fato existe de manipulação de objeto ou de circo nessa disciplina. Pois seguramente, a importância da escuta do objeto, da adaptação, deformação, trans-formação de um corpo uno, que foi compartilhada e sentida, me levou a aprender junto aos estudantes a borrar meus desejos de controle e desprender-me de necessidades para abrir-me em possibilidades. O que talvez tenha repetido mais nestes anos poderia ser algo como: “Se não desejo realizar nada, mas só sentir o movimento acontecendo, absolutamente sem explicação científica alguma, o inusitado pode acontecer...”. Mas como o “impressionante” pode acontecer? Como num fluxo máximo de condensamento, que respinga, e não precede absolutamente nada, de fato, o movimento mais inusitado e impressionante pode acontecer, para algo bem ou mal sucedido. Contudo, o exercício de se manter junto transforma o erro em errância, a queda em fluxo, faz desaparecer fronteiras em nuvens que dançam, onde o vento e o pensamento podem ecoar num espaço que tem no objeto seu chão. Vale, então, dizer que a resposta para essa pergunta não é tão importante quanto o exercício de refletir sobre as distintas práticas entre corpo-espaço-objeto. Sem dúvida, o contexto da aula me levou a pincelar muito do que a própria vivência nesta casa me trouxe sobre um cuidado do corpo e uma percepção de si e do mundo que me fez, justamente nas reflexões do próprio 11º Seminário Angel Vianna, considerar essa prática de circo (principalmente no contexto pedagógico) como uma abordagem somática do circo, num Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 5 48 exercício constante de abertura, de disponibilidade despretensiosa, prazerosa e, acima de tudo, transformadora. Acima de tudo, agradeço à equipe da Escola e Faculdade Angel Vianna da ocasião de 2008, e à própria Angel, por ter tido a ideia de iniciar uma disciplina com estas temáticas e, principalmente, por possuir um curso tão diferenciado, tão específico e, ao mesmo tempo, tão completo como esse. REFERÊNCIAS BARTENIEFF, Irmgard. Body Movement: Coping with the Environment. New York: Routledge, 2002. With Dori Lewis. FRANCA, Julia Coelho. Aéreo do Corpo, Acrobacia da Vida. 2012. Monografia (Pós-graduação em Sistema Laban/Bartenieff) - Faculdade Angel Vianna, Rio de Janeiro, 2012. __________________. O Corpo Tetraédrico: Um Processo de criação labaniano entre a dança e o circo. Dissertação (PPGCA – Programa de Pós-graduação em Estudos Contemporâneos das Artes) – Universidade Federal Fluminense, 2017. GIL, José. Movimento Total. São Paulo: Iluminuras, 2004. MIRANDA, Regina. Corpo-Espaço: Aspectos de uma Geofilosofia do Corpo em Movimento. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008. VEIGA, Guilherme. Ritual, Risco e Arte Circense: O homem em situações-limite. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008. VIEIRA, Jorge de Albuquerque. Teoria do Conhecimento e Arte: formas de conhecimento – arte e ciência uma visão a partir da complexidade. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2006. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 5 49 DOI 10.22533/at.ed.00000000000 CAPÍTULO 6 ARTE EFÊMERA: (IM)POSSIBILIDADE DE PATRIMONIALIZAÇÃO Data de aceite: 16/04/2021 Maria Eduarda Rozario Acadêmica do curso de Arquitetura e Urbanismo, bolsista de iniciação científica da Univille. Nascida e residente da cidade de Joinville. Nadja Carvalho Lamas Orientadora, professora do curso de Artes Visuais, Publicidade e Propaganda, Arquitetura e Urbanismo, Mestrado/Doutorado em Patrimônio Cultural e Sociedade, da Univille, na cidade de Joinville. RESUMO: A visão artística norteadora do ARCUPA (Arte Cultura e Patrimônio: Da Produção a Institucionalização – Relações e Tensões) é refletida na pesquisa que dela se desdobra, cujo tema é “Arte efêmera: (im)possibilidade de patrimonialização”. A investigação se ramifica em diversos questionamentos que convergem na questão principal aqui abordada: o conflito da arte atual mutante e sua trajetória efêmera pode ser limitada em patrimonialização palpável ou documentada? Essa investigação visa refletir sobre a tensão e a complexidade relativa ao patrimônio da produção artística intangível. Assim, a pesquisa segue a abordagem qualitativa e bibliográfica por meio de livros, dissertações e artigos sobre o tema estudado. Visitas in loco às exposições de obras de arte contemporânea foram primordiais para o resultado almejado, interagindo diretamente com o tema em foco. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Anseia-se que o resultado amplie o conhecimento, levantando ideias e novos pensamentos a respeito da conservação atual da arte, buscando assim, visibilizar padrões não estabelecidos em parte da produção artística contemporânea cuja poética se caracteriza como efêmera. PALAVRAS - CHAVE: Patrimônio; Arte Contemporânea; Efemeridade. EPHEMERAL ART: (IM)POSSIBILITY OF PATRIMONIALIZATION ABSTRACT: The artistic directing vision of ARCUPA (Art, Culture and Patrimony: From production to institutionalization – relations and tensions) is pondered in the research that develops from it, which theme is “Ephemeral art: (im)possibility of patrimonialization”. The investigation subdivides in several questions that tend to the main one approached here: the conflict of the present mutant art and its ephemeral trajectory can be limited in a palpable or documented patrimonialization? This investigation aims to contemplate about the tension and the complexity related to the patrimony of the intangible artistic production. Thus, the research follows the qualitative and bibliographic approach through books, thesis and articles about the theme. In loco visits to contemporary art exhibitions were primordial to the aimed result, directly interacting with the theme. It is expected that the result amplifies knowledge, bringing up ideas and new lines of thoughts concerning the present conservation of art, thus researching to make visible nonestablished patterns in part of the contemporary Capítulo 6 50 artistic production which poetic is characterized as ephemeral. KEYWORDS: Patrimony; Contemporary Art; Ephemerality 1 | INTRODUÇÃO A pesquisa aborda as questões emergenciais relativas a contemporaneidade, por entender que as obras são reflexos das decorrentes realidades sociais. A visão periférica sobre o todo amplia nosso campo para o agora, possibilitando refletir sobre a arte atual e sobre as questões que envolvem sua possível patrimonialização. A investigação levou em conta o complexo contexto globalizado e pós-moderno, na busca de conexão e identificação artística e suas minúcias, cujas experiências estéticas criam memórias para cada observador daquela atividade, desenvolvendo elos afetivos individuais, rompendo as barreiras físicas e preservacionistas. Dessa maneira tenta-se encontrar um equilíbrio entre o patrimônio e o efêmero, integrando esses dois conceitos através das barreiras da arte tradicional, ultrapassando limites não visíveis e adquirindo maiores possibilidades para o avanço em direção a fluidez natural da arte, seja ela para a sua conservação ou a sua finitude. A característica dessa forma de arte, sem materialidade, nos faz refletir sobre as tensões que existem nesse meio cultural tão complexo, abordando também os atuais métodos de preservação desse bem, sem que se tenha a matéria fisicamente apresentada. Ao refletir sobre a origem do patrimônio e sua essência, desvendamos a longa história da palavra - desde primitiva até a evolução no uso do significado pertencente. Desta forma, o patrimônio estabelece vínculo entre seu significado e sua representação ao recorrer a história. Em nosso convívio somos reféns da pré assimilação do conceito de acordo com o senso comum em nosso cotidiano e nas mídias. O entendimento de patrimônio é expresso por Poulot como “não é o passado estagnado em objetos e formas, mas sim todo tipo de resquício ou testemunho, que em sua relação com o presente, certifique nossa existência através da construção de identidades” (POULOT, 2009. p.17). A palavra patrimônio vem para nós como bens, riquezas de uma pessoa, com isso passou-se a ter uma ideia de patrimônio como propriedade. Entretanto, o patrimônio não se restringe somente a presença de um material tátil, e, sim, pode se encontrar em qualquer tipo de representação que advém da memória ou do efêmero. Assim como Poulot, Jean-Louis Tornatore descreve sobre a imaterialidade do conceito, sendo visto como “menos o passado e sim sua presença, isto é, a maneira pela qual as coisas do passado nos sãos apresentados, a maneira pela qual os coletivos organizam a presença do passado como modalidade de consciência de si” (TORNATORE, 2010. p.19). Ao falar-se sobre patrimônio artístico e cultural, falamos também do patrimônio imaterial nele existente. Atualmente lidasse com o patrimônio de forma a não abranger todas as produções de arte contemporânea existentes, pois parece desvincular essas Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 6 51 obras do universo artístico possível de ser patrimonializado. 2 | METODOLOGIA 2.1 Vanguardas e a ruptura com o tradicional As produções artísticas realizadas atualmente são reflexos históricos da concretização da arte no âmbito social como ferramenta simbólica, fortificando a subjetividade em cada espectador. Dessa maneira, a arte modifica-se com base na necessidade atual da sociedade. No início de 1900, o anseio aclamado era de mudança. Assim, a chegada das vanguardas europeias foi para os que almejavam um sopro de ar, para os conformados, um espectro, mas para ambos um marco. Lúcia Helena definiu essa fase como o novo, trazendo à tona pensamentos não discutidos anteriormente, uma passagem para a arte futura. O termo vanguarda [...] vem do francês avant-garde e significa o movimento artístico que “marcha na frente”, anunciando a criação de um novo tipo de arte. Esta denominação tem também uma significação militar( a tropa que marcha na dianteira para atacar primeiro), que bem demonstra o caráter combativo das “vanguardas”, dispostas a lutar agressivamente em prol da abertura de novos caminhos artísticos. (HELENA, 1993, p.08) Com o surgimento das vanguardas, no começo do século XX, a sociedade tradicional foi rompida com uma nova onda de pensamentos e diretrizes. A partir desse momento da história, a volta para a tradição renascentista fez-se improvável, e a maneira de refletir sobre a arte foi alterada. “Na busca pela liberdade de expressão, a arte afasta-se da necessidade de representar a natureza, seguindo em direção à abstração.” (NARLOCH, 2007. p.31). 2.2 Arte contemporânea no Brasil O MAC USP, criado em São Paulo, foi o primeiro museu Brasileiro de Arte Contemporânea. Em 1963, ano de sua fundação, tinha como intuito primordial, a preservação, o estudo e a exposição desse novo estilo de arte. Ao contrário do esperado, o museu passa a ser um meio de consentimento das pessoas com relação a arte contemporânea, sendo visto como semeador da cultura e de sua continuidade, fazendo-os permanecer ao decorrer dos anos. A arte nos faz refletir sobre o tempo atual, o que faz pensar que a arte efêmera – que tem curta duração, é temporária - seja um mecanismo de reflexão de um conceito, fazendo com que quem presenciou, viu ou tocou, guarde apenas memórias dessa vivência, não sendo necessário a conservação do material, e sim da ideia nele exposto. Esse mesmo pensamento foi entendido por Alberto Carneiro, um dos artistas pioneiro de Portugal a utilizar dessa técnica. Utilizando em suas obras materiais comuns na natureza, Carneiro se viu em um dilema quanto a conservação de sua produção artística. Assim, documentada, a cada instalação a obra terá uma nova versão, porém mantendo a Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 6 52 subjetividade original. Krzysztof Pomian, (1984) diz que quando um objeto é inserido em uma coleção museológica, este é destituído de sua função e de seu uso originário para adquirir a função documental e comunicacional e que, seu valor de troca é ampliado, embora tenha se descontinuado seu valor de uso, precisamente pelo reconhecimento de sua relevância simbólica. Desse modo, diferente dos conceitos de conservação e de patrimonialização da arte de tipologia tradicional, a arte de Carneiro não advém da preservação do físico, e sim da autenticidade e conceito ali expostos. 3 | RESULTADO E DISCUSSÕES Na busca por melhores formas de preservação da arte atual, documentar essa obra tem sido um desafio para a efemeridade contemporânea. Assim há a criação de novos tipos de campos de documentação, como os registros de multimídia ou dossier digital, de tal forma a reunir todas as informações essenciais a serem disseminadas quando necessário. Em muitos casos, a adversidade vem na forma de captar os componentes imateriais como a relação do espaço x obra x espectador exposta na primeira aparição desta arte, não abandonando sua essência. No exemplo exposto anteriormente de Alberto Carneiro e suas obras, observa-se que a preservação materializada de sua arte não era viável, visto que o artista usava materiais naturais. Dessa forma, a instalação deverá ser feita a cada aparição com novos materiais. Com essa preocupação em mente, a estratégia utilizada por Carneiro foi despretensiosa: trazer obras com conceitos práticos, fazendo com que a reprodução do sentimento passado na primeira obra seja de simples compreensão. Posteriormente, há variações na forma de documentar, porém a mais importante é a explicação sobre a instalação e a montagem. Neste campo, as menores informações são relevantes. Dentro dela, pode-se conter imagens e vídeos ou até técnicas mais avançadas no mercado, como a reprodução 3d. Ainda há instituições museológicas que preservam o que podemos chamar de patrimônios virtuais. Desse modo, as obras ali expostas são demonstrações da realidade, não sendo elas em si, pois Tais proposições estão baseadas em conteúdos que alcançam a primazia do conceito, em detrimento das outras questões tratadas pelos gêneros artísticos tradicionais, calcados no objeto de arte e sua fatura. A inexistência dessas obras depois das apresentações é a tônica do processo. Em fases posteriores às apresentações dessas propostas artísticas, a partir dessa noção de fazer arte, elas só estarão aptas para discussões e estudos dos pesquisadores caso sejam documentadas e geram registros (texto, imagem, som)”. (LIMA, 2003, p. 134). Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 6 53 3.1 Girl with Ballon Outra forma de preservar a arte é marcando uma legião de espectadores. Um fato inesperado surpreendeu os espectadores ingleses na Sotheby’s1 e todos os admiradores de arte. No final de 2018 Banksy2 decide leiloar Girl with Balloon3 por aproximadamente 5,2 milhões de reais e posteriormente destruir a obra impiedosamente. O quadro era na realidade um triturador de papel, que em um dado momento depois de leiloado, foi acionado triturando a obra. Espectadores assistem ao fato sem entender o que realmente acontece. Em um primeiro momento ficam em estado de choque, em suas faces pode-se perceber a preocupação. Muitos gritam. Em outro momento entram em êxtase ao perceber que participaram de algo maior, um espetáculo em meio a um leilão. E por final se questionam, o que aconteceu foi arte? Na Relação entre espectador e obra de arte, Ramaldes, expõem a compreensão do estudo que o espectador, ao estabelecer uma relação com a obra de arte (escultura, telas, cinema, espetáculo teatral etc.), pode demonstrar uma relação positiva e/ ou negativa para com a obra, sobretudo será marcado de alguma forma por ela. Figura 1 – A obra ‘Menina com Balão’, de Banksy, sendo triturada. Fonte: (Banksy/Instagram/Reprodução) Girl with Balloon é a representação gráfica mais conhecida do autor. Ao contrário de sua identidade, pois suas obras são conhecidas mundialmente pelas gerações Y e Z, em especial por se encontrarem nas ruas de diversas cidades, marcadas em estêncil. Quando se analisa a produção artística de Banksy, consegue-se notar a conotação política, militante e transgressora em sua proposta, obtendo resultados que marcam o espectador. 1 Sociedade de vendas por leilão, a Sotheby’s tem sua sede em Londres. 2 Artista britânico cuja identidade não é revelada. 3 Criada em 2002 em um mural, é a obra mais conhecida do artista Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 6 54 Neste sentido, Destaca-se especialmente a necessidade de olhar para esse espectador como um ser que tem uma vida antes e depois do espetáculo. Fugir da figura de um espectador inerte e idealizado parece ser um dos maiores desafios dos pesquisadores que se aventuram nesse campo tão vasto. (CARNEIRO E GUIMARÃES, 2016, p.5). Desse modo a instalação na arte deixa de ser apenas a obra física e torna-se uma performance, um grito criticando a sociedade e como o mercado artístico se manifesta e atinge os criadores. É o fato de se tornar uma performance que faz com que o público se envolva, aplauda, os fazendo refletir se o que viveram naquele salão foi a arte em si, ou era o quadro palpável. O que foi vivido, sentido e expressado por aquelas pessoas não pode ser reproduzido, guardado ou preservado. Thierry Ehrmmann, um dos espectadores e especialista no mercado de arte comenta que Banksy nos lembra que, mesmo dentro de uma prestigiosa casa de leilões, sua poética é efêmera. 4 | CONSIDERAÇÕES FINAIS As duas propostas refletidas nessa pesquisa acadêmica não expõem verdades irrefutáveis sobre a patrimonialização. Visa, no entanto, o levantamento de ideias e de outras formas de pensar a respeito da conservação atual da arte, buscando assim, viabilizar e ampliar questões que emergem de problemática complexa e que hoje ainda não estão estabelecidos na perspectiva da arte efêmera. No pensamento sobre patrimônio encontra-se uma dualidade existente na qual a obra de arte se concretiza de forma a ser preservada, no caso a obra física ou efêmera. O subjetivo em cada realização artística faz-se questionar sobre qual o significado dessas duas questões. Uma arte material, esculpida em mármore, pode não trazer emoções e ser esquecida por seu público, tornando-se efêmera na mente do espectador, como assim também uma performance de trinta minutos pode ficar marcada no âmago de uma pessoa e ser lembrada por mais cinquenta anos. Dessa maneira, percebemos que o efêmero, mesmo em sua imaterialidade pode tocar mais pessoas que uma obra de arte que pode ser tocada fisicamente. Entretanto, as normativas e os processos que regem o trâmite burocrático de patrimonialização de um bem são rígidos, presos a tradição e a materialidade do objeto de arte, não contemplando as especificidades e a dimensão inventiva inerente a cada produção artística, particularmente as produções cuja poética se dão de forma efêmera, ou seja, aquelas em que a finitude é parte de sua poética. O que nos leva a refletir sobre a (im) possibilidade de patrimonialização da produção artística de natureza efêmera. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 6 55 REFERÊNCIAS CARNEIRO, Leonel Martins. GUIMARAES, Julia. O Espectador Contemporâneo. aSPAs – ppgac USP 1-6 HELENA, Lúcia. Movimentos da Vanguarda Europeia. 1993. LIMA, Diana Farjalla Correia. Museologia-Museu e Patrimônio, Patrimonialização e Musealização: ambiência de comunhão. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi. Ciências Humanas, 2012. NARLOCH, Charles. Das artes liberais ao hibridismo: As revoluções dos conceitos nas artes visuais. In: Nadja de Carvalho Lamas. (Org.). Arte contemporânea em questão. Joinville - SC: Editora Univille, 2007. POMIAN, Krzysztof. Colecção. Enciclopédia Einaudi. Porto: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1984. POULOT, Dominique. Uma história do patrimônio no Ocidente. São Paulo: Estação Liberdade, 2009. RAMALDES, K. A Relação entre espectador e obra de arte. Revista Aspas, 2016. TORNATORE, Jean-Louis. Patrimônio, memória, tradição, etc: discussão de algumas situações francesas da relação com o passado. Revista Memória em Rede, 2016. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 6 56 DOI 10.22533/at.ed.00000000000 CAPÍTULO 7 ARTESANIA DA CENA TEATRAL CONTEMPORÂNEA: TRABALHO IMAGINATIVO E AUTOFORMAÇÃO DOCENTE Data de aceite: 16/04/2021 Data de submissão: 06/04/2021 Maria Edneia Gonçalves Quinto Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia – IFCE Fortaleza - Ceará http://lattes.cnpq.br/8287430522417568 RESUMO: Discuto nesse artigo, achados da pesquisa de doutoramento: Artesania da Cena Teatral Contemporânea: Trabalho Imaginativo e Autoformação. Somada à autonomia e a partilha de saberes em processos teatrais colaborativos, tais conceitos foram a base para pensarmos a formação docente. A etnopesquisa crítica norteou a descrição densa do processo criativo da intervenção cênica Noiada, realizada em Fortaleza - Ce, entre 2009 e 2010. A artesania da cena enquanto contexto empírico de apropriação dos elementos da criação teatral por mim e por dois artistas da Cia. Pã de Teatro, associado ao trabalho do imaginar transubstanciou imaginação, experiências de vida e memórias, em objeto artístico. Nossa participação forjou percursos autoformativos com base no contato direto com os códigos da arte, por meio de recortes de histórias de vida, formação e práticas como artistas-docentes, ampliando a reflexão sobre uma formação docente mais sensível e crítica no decurso da vida. PALAVRAS - CHAVE: teatro; artesania da cena; autoformação; docência. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 ARTESANIA OF THE CONTEMPORARY THEATER SCENE: IMAGINATIVE WORK AND TEACHER SELF-TRAINING ABSTRACT In this article, I discuss the findings of the doctorate research: Artesania of Contemporary Theater Scene: Imaginative Work and Self-training. In addition to autonomy and the sharing of knowledge in collaborative theatrical processes, these concepts were the basis for thinking about teacher training. Critical ethnosearch guided the dense description of the creative process of the scenic intervention Noiada, held in Fortaleza - Ce, between 2009 and 2010. The craftsmanship of the scene as an empirical context for the appropriation of the elements of theatrical creation by me and two artists from Cia. of Theater, associated with the work of imagining, transubstantiated imagination, life experiences and memories, into an artistic object. Our participation has forged self-formative paths based on direct contact with the codes of art, through clippings of life stories, training and practices as artist-teachers, expanding the reflection on a more sensitive and critical teacher education throughout life. KEYWORDS: theater; craftsmanship of the scene; self-training; teaching. 1 | INTRODUÇÃO Proponho no presente artigo, discutir como a experiência da criação artística e, mais propriamente da criação teatral contribui para refletirmos os processos de autoformação docente, com base na pesquisa de doutoramento Capítulo 7 57 sob título: Artesania da Cena Teatral Contemporânea: Trabalho Imaginativo e Autoformação. Como inspiração, norteei-me pelas experimentações e análises do conceito de “artesania da cena”, outro modo de perceber o fazer-pensar teatro e suas perspectivas formativas mais amplas1, revisados em minha prática docente no PPGARTEs - IFCE2 e no grupo de estudos IARTHE-UECE3. Na esteira dessa mirada, adianto que o trabalho imaginativo e a dimensão autoformativa presentes nos processos teatrais colaborativos, resultaram dos principais elementos aqui abordados, como integrantes do conceito de artesania da cena teatral, dando conta de que, segundo Macedo (2006), a ciência é apenas outro modo de olhar o mundo e não lhe cabe reivindicar superioridade absoluta e um lugar fora da vida, próprio ao cientificismo, temeroso a tudo aquilo que não possa ser pesado, medido e contado. Em seguida, de modo complementar, proponho um debruçar reflexivo sobre a autoformação docente sob olhar mais amplo, contemplando dimensões do (a) educador (a) que necessitam ser exercitadas: a simbolização, a autonomia e a partilha de saberes em coletividade, cada vez mais solapados, no atual contexto em que vivemos, movido pela presença de Thanatus: pandemia, isolamento e autoritarismos. 2 | NORTE METODOLÓGICO Situei as discussões desenvolvidas no estudo, sob o norte qualitativo da etnopesquisa crítica, sustentada por princípios da Antropologia Interpretativa de Geertz (1978), dentre os quais, a descrição densa é um imperativo para a interpretação do fenômeno estudado. A pesquisa qualitativa “[...] trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações [...].” (MINAYO, 1994, p. 21-22), não reduzidos à variáveis. A etnopesquisa crítica comportou a diversidade e a multiplicidade da construção conceitual sobre a “artesania da cena teatral”, exigindo-me a adaptação de procedimentos metodológicos de pesquisa a princípios e métodos de cunho etnográfico (matriz daquela abordagem). A Etnografia, segundo Marli André (1995), atende a objetivos bem mais amplos com os quais os antropólogos desenvolvem estudos sobre a cultura e a sociedade, junto a determinado grupo social. Nesse escopo, “um dos pontos fundamentais que devemos destacar para compreender a etnopesquisa crítica é que ela nasce da inspiração e da tradição etnográfica, sua base investigativa incontornável”. (MACEDO, 2006, p. 9). Assim, instrumentos como observação participante, o jornal da pesquisa (diário de campo), as entrevistas realizadas, o grupo focal com os integrantes da Cia. Pã e os 1 A referida pesquisa foi desenvolvido ao longo do Doutorado, sobtítulo: Artesania da Cena Teatral Contemporânea: trabalho imaginativo e autoformação (2012), e no Mestrado sob título: As Significações sobre o Trabalho com a Imaginação na Artesania da Cena no Teatro Radical Brasileiro – TRB (2006), em Educação, na Universidade Federal do Ceará – UFC. 2 Programa de Pós Graduação em Artes do Instituto Federal de Educação, Ciências e Tecnologia - IFCE 3 IARTHE –Grupo de Estudos e Núcleo de Pesquisa em Arte/UECE. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 7 58 episódios de história de vidas, intensificaram as reflexões e o contato direto e demorado com os sujeitos, e com o contexto pesquisado, no sentido de dar conta dos objetivos traçados. Nesta perspectiva qualitativa de análise, realizei a descrição densa da artesania da composição cênica de Noiada ocorrida entre 15/03/ 2009 e 20/12/ 2010. Incluí a fase de criação e encenação das últimas 04 do total de 07 intervenções cênicas4 realizadas em diferentes espaços urbanos da cidade de Fortaleza – Ce. Busquei compreender os significados desse modo artesão de criação artística, no ato mesmo de sua feitura: Apesar de ter-se evidência da racionalidade na arte em várias épocas, sempre existiram e existem até hoje muitos que não aceitam arte como uma forma de atividade racional. Críticos, artistas, intelectuais e mesmo o cidadão comum debatem o problema. Mas a maioria das pessoas, e mesmo alguns setores mais acadêmicos, pensam que a produção e a recepção não obedecem a uma norma racional. Para o senso comum, arte é sinônimo de emoção. (ZAMBONI, 1998, p. 8) Com isso, o referencial empírico para a sistematização conceitual de artesania da cena teatral, do trabalho imaginativo e as contribuições para reflexão sobre a autoformação docente como suas partes constituintes, resultou da investigação sobre a descrição densa do processo criativo por mim vivenciado, enquanto atriz-pesquisadora da Companhia Pã de Teatro5, mediante a criação e a representação da intervenção cênica Noiada, em Fortaleza, entre 2009 e 2010, e que vem sendo revista desde então. O termo “noiado(a)” é uma corruptela linguística da palavra “paranoia”, utilizado por dependentes químicos de “crack” (substância em forma de pedra, que produz este som, quando é queimada para inalação). A “nóia”, assim chamada entre os usuários, é um dos principais efeitos produzidos pelo uso dessa droga. Emergiu nessa narrativa com significados múltiplos no convívio com a urbanidade: dissolvência de identidades, nomadismo, desterritorialização e o desenraizamento dos sujeitos na contemporaneidade, fragilizando as relações de convívio social. Essa realidade não isolada, tem parâmetros e consequências mundiais, devido aos estágios de globalização e suas estratégias de anulação dos sujeitos, que convivem nestes grandes centros urbanos. Em síntese, Noiada narra a busca de uma mulher de nome Iracema que vaga pelas ruas de Fortaleza à procura da mãe. Ela encontra-se dentro de um ônibus e conta para os passageiros, fatos ocorridos em sua busca trágica, entre elipses de tempo, passado e presente. Uma intertextualidade com a narrativa da “virgem mítica dos lábios de mel”, a 4 Foram realizadas 07 intervenções de Noiada a saber: em um ônibus de circulação pela área urbana da cidade de Fortaleza - Ce: 05/04/2009; 2. Rua Marechal Deodoro: 30/07/2009; 3. XVI Festival de Theatro de Guaramiranga Ce: 04 a 07/09/ 2009; 4. Percursos Urbanos: 27/02/ 2010; 5. Theatro José de Alencar: 27/03/ 2010; 6. Faculdade de Educação – FACED – UFC: 27/10/2010; e 7. Praça da Gentilândia: 15/12/ 2010. Todas fizeram parte do Projeto Cidade Noiada, idealizado pela Cia. Pã em 2008, realizado entre 13/06/ 2009 e 20/12/ 2010. 5 A Cia. Pã fundada em 1996, desenvolvia uma poética interdisciplinar, híbrida, centrada na fabulação de histórias por meio da potência expressiva do ator e no diálogo com alguns códigos da contemporaneidade: multiplicidade de pensamentos e de expressões artísticas (dança, artes visuais, palhaçaria, performance), de acordo com as pesquisas dos 10 integrantes. Foi influenciada inicialmente, pelos princípios teórico-metodológicos do Teatro Radical Brasileiro – TRB, criado pelo ator e pesquisador, Ricardo Guilherme, em 1988. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 7 59 carregar a sua ancestralidade carcomida e a perguntar: “perdeu alguém parecido comigo”? (ALMEIDA, 2008, p. 5). A busca pelo entendimento desse processo em termos de domínio prático, corporal desse processo, alternou, o sentido e o pensado, como fontes de produção de um conhecimento legítimo no qual estiveram presentes elementos lógicos seguidores de uma ordenação consciente. Busca de unicidade entre os componentes sensíveis e racionais na produção do conhecimento humano. Tomando-se a forma de pensamento das principais correntes filosóficas ocidentais, percebemos que as atividades relacionadas ao conhecimento humano giram em torno de um componente lógico, racional, inteligível, de um lado, e de um componente intuitivo e sensível, de outro, sendo assim tanto na produção do conhecimento científico, quanto na do conhecimento artístico. Zamboni (1998, p.8) Outros dois sujeitos desse estudo foram: Suzy Almeida, a autora de Iracema via Iracema (intertextualidade com o romance Iracema de José de Alencar, que originou Noiada) e o diretor teatral desse trabalho, Karlo Kardozo6. Detive-me na descrição densa dos modos como se deram seus trabalhos imaginativos, durante a escrita dramatúrgica e a composição cênica, respectivamente, considerando experiências de vida, memórias e a formação e prática como artistas-docentes. O meu trabalho com a imaginação na artesania da criação e interpretação de Noiada, interligou-se à dramaturgia e à direção somada á construção da personagem em andanças pela cidade de Fortaleza – Ce. Vejamos o que daí resultou. 3 | RESULTADOS E DISCUSSÃO Na contramão do empobrecimento das experiências comunicáveis, alvo da crítica de Benjamin (1994), a ideia de “artesania da cena teatral contemporânea” ergueu-se no estudo realizado enquanto construção conceitual, como sendo: um domínio do fazer cênico instaurado pela participação direta do artista naquilo que cria com o corpo, imaginação, racionalidades e desejos. Uma apropriação técnica e sensível das diferentes fases e elementos do processo criativo em teatro, considerando o espaço-tempo político, histórico e artístico da atuação como artista-docente interligada às problemáticas das áreas de Teatro e Educação. Remete a uma compreensão profunda do ator/artista sobre as diversas fases de composição da cena teatral, resultante da minha vinculação com a Cia. Pã enquanto atrizpesquisadora. Um conhecimento encarnado e um saber de si, que pode levar o tempo necessário para a composição de um trabalho que une “cabeça e mão” de maneira articulada e habilidosa, segundo Andrade (1975) e Rugiu (1998). Gaston Bachelard (2001), ao criticar esse apartamento entre trabalho manual e trabalho intelectual, afirma que o ocidente instaurou “o vício da ocularidade”, como extensão do pensamento que separa 6 Os dois sujeitos autorizaram a divulgação dos seus nomes na pesquisa. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 7 60 sujeito e objeto. A visão assume então, uma posição hegemônica em relação aos demais sentidos humanos. Vejamos: Matéria e Mão devem estar unidas para formar o ponto essencial do dualismo energético, dualismo ativo que tem uma tonalidade bem diferente daquele do dualismo clássico do objeto e do sujeito, ambos enfraquecidos pela contemplação, um em sua inércia outro em sua ociosidade. De fato, a mão que trabalha põe o objeto em uma ordem nova, na emergência de sua existência dinamizada. (BACHELARD, 2001, p.21) Elementos como: o cuidado do artista com sua autoformação, a busca por exercícios de coletividade, natureza do ofício teatral, a necessidade de um tempo demorado para a criação, divergente do tempo mecanizado do capital, acreditar-se pesquisador (a) de suas práticas e a simbolização, integram a artesania da cena como princípios mobilizadores. Nesse sentido, a relação entre o fazer teatral e a dimensão artesã, perdura de forma singular, em um tempo demorado, deixado por meio do vivido e do criado pelos mestres artesãos, que ainda hoje, se encarregam à duras penas, de repassar de forma prática, os saberes do ofício para seus discípulos, resguardando a continuidade da tradição em diversas áreas, inclusive nas artes. Se a pedagogia do “aprender-fazendo” é tão antiga quanto os primeiros artesãos e afunda as sua origens – como se disse, – na era neolítica (as primeiras pedras sempre mais finamente trabalhadas para delas extrair ferramentas do trabalho agrícola ou armas para combater, e até objetos decorativos e ornamentais, não eram talvez, fruto de uma pedagogia muitíssimo válida?), é quase tanto quanto antigo o desprezo que ela encontrou junto ao saber oficial que distinguia o saber falar e raciocinar do saber fazer, porque o primeiro era visto como o saber do homem livre (livre da necessidade de trabalhar para viver) e o segundo, ao contrário, do trabalhador cujos próprios deuses haviam marcado na sociedade uma posição claramente inferior. (RUGIU, 1998, prefácio). Na arte, a continuidade da tradição artesã é mantida graças à pedagogia do aprender-fazendo. Segundo Mário de Andrade (1975), nos processos artesanais, o aspecto pedagógico se faz presente, quando o artista estabelece uma relação com o artesanato. Evidencia-se pelo domínio e o esmero pela qualidade, sobre as etapas da criação. Essa é a etapa verdadeiramente pedagógica na qual se dá, na prática, o aprendizado sobre o material a ser utilizado para a criação da obra de arte, em sintonia com o seu criador. Ele chama de “ofício de artesania” a apropriação do artista sobre a matéria com a qual trabalha, gerando a obra de arte acrescida das marcas do “eu”. Para o nosso caso, um fazer teatral realizado por meio do domínio técnico e expressivo sobre a dramaturgia, a direção e a representação de Noiada e, sobretudo, por meio do trabalho imaginativo que se foi aperfeiçoando ao longo dessa trajetória, em sua dimensão autoformativa. Esse domínio do fazer instaurado pela presença do artista naquilo que cria, remete ao termo “artesanato”, como sinônimo do produto do trabalho do artesão Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 7 61 e do lugar de autoria que assume nessa criação, em virtude da experiência acumulada no confronto com a matéria. Para Mário de Andrade (1975), todo artista deve ser artesão do seu ofício, não restrito à mera técnica, pois há o aspecto pedagógico. O artesanato é a parte da técnica da arte que se pode ensinar. É a etapa verdadeiramente pedagógica na qual se dá, na prática, o aprendizado sobre o material a ser utilizado para a criação de um objeto artístico, em sintonia com o seu criador. Essa objetividade situa-se para o caso do ator, nas possibilidades e exercícios expressivos do corpo-voz, dos elementos da estrutura do texto dramático, da composição do figurino para o personagem, da relação entre maquiagem e iluminação, entre outros elementos, para uma visão mais inteirada da cena. A segunda dimensão – a subjetiva, não dissociada da primeira, ocorre pela participação do artista teatral na sociedade, e no processo criativo como ser sensível, imaginativo e cultural. Concretiza-se no exercício de imaginar como verdade interior expressa no objeto artístico criado, como adverte Gaston Bachelard (2001b), em sua Teoria Crítica do Imaginário, em contraposição à hegemonia da visão, que nos permite um olhar renovado sobre os atos imaginativos. Usando a imaginação, o artista cria realidades imaginadas, relacionando-as ao presente como base para o conhecimento criador. Até aqui, tentei juntar elementos de reflexão que contribuam para superar a visão dicotômica entre emoção e razão que, muitas vezes, destitui o caráter de racionalidade presente no fazer artístico, em função da ideia de que a obra de arte deve ser fruto apenas de componentes intuitivos e sensíveis. Apesar da evidência da atividade racional na arte, muitos ainda não a aceitam neste campo. Vejamos o que diz Zamboni (1998, p 8) sobre esse assunto: Apesar de ter-se evidência da racionalidade na arte em várias épocas, sempre existiram e existem até hoje muitos que não aceitam arte como uma forma de atividade racional. Críticos, artistas, intelectuais e mesmo o cidadão comum debatem o problema. Mas a maioria das pessoas, e mesmo alguns setores mais acadêmicos, pensam que a produção e a recepção não obedecem a uma norma racional. Para o senso comum, arte é sinônimo de emoção. (ZAMBONI,1998, p 8) Portanto, o “domínio” artesão, do qual nos fala Andrade (1975), refere-se aos diferentes níveis de experiência em confronto com a matéria, que o artista alcança ao longo dos tempos, ensejando um saber-fazer. No fazer teatral, esse domínio se evidencia pelas experiências do ator nas práticas artísticas que lhe marcam o corpo-mente, em diálogo com o tempo vivido e com os parceiros do seu coletivo. Um acervo de conhecimentos, acessados à medida da entrada em cada processo criativo. Assim, ao falar da artesania da cena como substrato conceitual, dois pontos são acrescidos: a centralidade da prática e a participação interdisciplinar e horizontal do artista, em todas as etapas do processo criativo, aliado ao trabalho do imaginá-lo e das aprendizagens adquiridas nesse caminhar. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 7 62 Assim, o trabalho imaginativo e a autoformação resultantes dessas análises sobre a artesania da cena teatral, tiveram como base teórica, os estudos de autores como: (Ostrower,1987); Bachelard (1988;2001a;2001b); Maffesoli (1998;2001;2005), Pineau (1988) e Josso (2004), dentre outros (as), e aportaram reflexões sobre a autoformação docente. Juntam as dimensões objetiva e subjetiva do artista teatral assim como do (a) educador (a), ajudando-o a criar novos símbolos, significados e sentidos da vida e do mundo, pelos registros de experiências de vida, formação e prática profissional, afetos e trocas de saberes. Ressoam como aprendizagens tão relevantes quanto a produção de obras. Para Suzane Langer (2003), o ato de simbolizar distingue o ser humano das outras espécies animais. É o uso social de símbolos, que o ajuda na comunicação com o outro. Um símbolo artístico concretizado em obra, revela a capacidade do artista em relacionar as dimensões que o constituem entre diversidade e semelhanças, expressando um modo outro de ver o mundo e a si próprio. Ângela Linhares (2001), ao estudar o pensamento criador, defende que esse tipo de pensamento junta à dimensão desejante, as formas do pensamento lógico, que se revela nos momentos de criação. Esse modo criativo de pensar (material simbólico), aporta em momentos de criação do trabalho com a arte e chama para perto intuição, sentimento, percepção e inteligência. É “um dizer especial da artisticidade do ser humano” (p.40), não exclusivo de artistas, o qual nomeia “narratividade”, associando à circunstância formativa resultante de atos de criação coletiva, à obra de arte, que possibilita problematizar a realidade. O trabalho imaginativo se configurou então, como o processo de dar forma à cena, como substrato da escrita dramatúrgica, da encenação e da criação de Noiada, transubstanciando imaginação, experiências e memórias do vivido, em objeto artístico. Nesse sentido, “[...] diferente do que define a etimologia, a imaginação não é a faculdade de formar imagens da realidade; é a faculdade de formar imagens que ultrapassam a realidade, que cantam a realidade. É uma faculdade de sobre-humanidade”. (BACHELARD, 1997, p.17-18) Em sua Teoria Crítica do Imaginário, Bachelard afirma que a imaginação vai erigindose em diálogo com a razão, fortalecendo a ideia de uma razão criativa e não mensurada, ao contrário de como é vista pelos ditames da razão instrumental, como fonte de erros e ilusões. “O que é puramente factício para o conhecimento objetivo permanece, pois, profundamente real e ativo para os devaneios inconscientes”. (BACHELARD, 1999, p. 31) Em diálogo com esse autor, Fayga Ostrower formula a ideia de imaginação criativa vinculada “[...] à especificidade de uma matéria, de ser uma ‘imaginação específica’ em cada campo de trabalho”. (OSTROWER,1987, p. 32). Nesse caso, haveria uma imaginação artística, outra científica, tecnológica, artesanal, e assim por diante. Logo, “imaginar” seria um pensar específico sobre um fazer concreto. Também Pareyson (1993) em sua teoria da formatividade, ressalta a centralidade do fazer, como aspecto fundante na arte. Pensar Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 7 63 só poderá tornar-se imaginativo, através da concretização de uma matéria, sem o que não passaria de um divagar descompromissado, sem rumo e sem finalidade. Nunca chagaria a ser um imaginar criativo. As significações sobre o trabalho imaginativo foram registradas inicialmente, via imagens das lembranças dos nossos (meus, da dramaturga e do diretor) jogos e brincadeiras nos quintais e nas ruas de areia até os poucos jogos de adultos. Configuravam-se nas conversas e nos gestos corporais, em meio ao estudo do texto dramático de Noiada, treinos e improvisações cênicas, trazendo para a cena, o vivido individual e coletivo que, nesse relembrar, modificou as experiências entre infância, juventude e maturidade. Walter Benjamin (1989;1994), ao analisar as questões da experiência como sinônimo de narrativa na Modernidade, estabelece relações com o tema da memória e aproxima-se de Halbwachs (1990), quando afirma que os conhecimentos resultam também desta rememoração e estão enraizados na tradição, no cotidiano e na memória coletiva de um povo. A articulação entre os conceitos de artesania da cena, imaginação e memória, permitiu-nos lançar um olhar renovado enquanto narradores e suas relações nesse contexto. Bachelard (1988; 2001) também considera indissociável a relação entre memória e imaginação. Ele critica o hábito, o qual denomina antítese da imaginação criadora, e credita ao “devaneio”, a renovação da memória por meio das imagens poéticas. A segunda significação do trabalho imaginativo, foi a integração dos relatos entre as nossas experiências de vida, de arte e de formação, possibilitando um olhar renovado para o vivido. A fabulação (simbolização) da vida, foi a terceira significação. Durante o processo criativo nos exercitamos para evocar imagens imaginadas com o corpo e voz e, para convocarmos o espectador a também criar as imagens do que aprecia. A quarta e última significação, foi a necessidade de reconhecer o trabalho imaginativo como relevante em nossa formação e prática docente, considerando experiências de vida e memória, a oportunidade de ampliação de saberes pelo convívio com os símbolos da arte e do teatro que vão dar na vida, o exercício de autonomia e a necessidade de vivências coletivas como espaços plenos de partilha de saberes. Sobre as análises da dimensão autoformativa como experiência resultante da participação na artesania da cena de Noiada, juntamente com o trabalho imaginativo, resultou das experiências de vida, arte e docência acumuladas no decurso da vida, como discutem Pineau (1988) e Josso (2004). Recortes de minha história de vida, formação e prática com professora de Teatro, experimentações corpóreas, expressivas e atos imaginativos, em movimentos de aprendizagem artesã, partilhados com os parceiros de criação teatral. Escolha ao mesmo tempo, intelectual, política e afetuosa, de refletir sobre um “caminhar para si”. Nesse sentido, capturo de Marie-Christine Josso (2004) a noção de autoformação: Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 7 64 O que está em jogo nesse conhecimento de si mesmo não é apenas compreender como nos formamos por meio de um conjunto de experiências, ao longo da nossa vida, mas sim tomar consciência de que esse reconhecimento de si mesmo como sujeito, mais ou menos ativo ou passivo segundo as circunstâncias, permite à pessoa, daí em diante, encarar o seu itinerário de vida, os seus investimentos e os seus objetivos na base de uma auto-orientação possível, que articule de uma forma mais consciente, as suas heranças, as suas experiências formadoras, os seus grupos de convívio, as suas valorizações, os seus desejos e o seu imaginário, nas oportunidades socioculturais que soube aproveitar, criar e explorar, para que surja um ser que aprenda a identificar e a combinar constrangimentos e margens de liberdade. (JOSSO, 2004, p. 58-9) Os vestígios de autoformação atentaram para uma aprendizagem como processoproduto daí resultante, que se deu a ver na efemeridade da expressão criativa, como obra de arte inacabada, forjando pistas de um processo criativo prenhe de aprendizagens coletivas de arte e de vida no qual questionava-me: como expandi-las para pensar a formação docente? E relembrava os achados com a etnopesquisa crítica como teoria do campo etnográfico que tem “[...] a necessidade de ir ao encontro do ponto de vista do outro para, a partir daí, e só daí, interpretar as suas realizações” (MACEDO, 2006, p. 64). Portanto, denomino “autoformação artesã” – esse substrato epistemológico no qual sujeitos envolvidos, história, imaginação e razão, forjam criativamente âmbitos de produção de conhecimentos por meio dos vestígios do vivido consigo, e com o(a) outro (a), em um dado lugar e tempo, instaurado pelo fazer arte/teatro. Evocar essa construção pessoal como dimensão autoformativa com base nas experiências acumuladas e sistematizadas ao longo dessa trajetória, em uma escrita reflexiva, é recente entre mulheres artistas. Por que é assim? Por que há menos mulheres poetas, novelistas ou dramaturgas? E também pintoras e de outros ofícios. A reposta é simples: porque se trata de ofício, não de um hobby. E, historicamente, nem sempre as mulheres que podiam pintar, escrever, representar e tocar piano na sala da casa tinham propriamente um ofício. Então, o surpreendente não é que a história não fale delas. O surpreendente é que a mulher tenha acumulado, nessa grande história silenciosa, submersa, de ocultamento e espera, tanta energia e memória, ou, para dizer claramente, acumulado tanta necessidade de conhecimento de si mesma. (CARRIÓ, 2010, p.14.) Os estudos sobre a formação docente tiveram nos anos 80, segundo Bueno (2002), um redirecionamento com ênfase na abordagem autobiográfica dos aspectos subjetivos da vida do (a) professor (a), e mais propriamente, no que se refere ao seu percurso profissional, até então ignorados. Com isso, a subjetividade e a autonomia passam a se constituir ideias centrais que orientam as produções teóricas das ciências humanas nas primeiras décadas do século XX, havendo uma ruptura nos métodos tradicionais de investigação pautados pelo paradigma da objetividade. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 7 65 Mais que em função de uma matéria, de um meio ou de um modo particular de aprendizagem, abordamos a autoformação numa perspectiva de autonomização educativa, segundo uma problemática de poder, definindo-a formalmente como a apropriação por cada um do seu próprio poder de formação. (PINEAU, 1988, p. 65). António Nóvoa (1988), ao sistematizar estudos sobre a autoformação com base nas histórias de vida de professores (as), compreendem-nas como “biografias educativas” e menciona que uma das bases para a elaboração de uma teoria de formação de adultos é a reflexão sobre o vivido. “As histórias de vida [...] integram-se no movimento atcual, que procura repensar as questões da autoformação acentuando a ideia que “ninguém forma ninguém” e que “a formação é inevitavelmente um trabalho de reflexão sobre os percursos de vida”.(p. 116). As experiências de transformação da diversidade de nossa identidades e subjetividades consiste em falar de acontecimentos, de atividades, situações ou de encontros que servem de contexto para determinadas aprendizagens. (JOSSO, 2004). O trabalho imaginativo, a dimensão autoformativa, a autonomia e a partilha de saberes em processos teatrais colaborativos, emergiram como elementos centrais do estudo, com base em uma compreensão profunda do artista-docente sobre as diversas fases de composição da cena, criada no contexto do grupo de pertença em meio à racionalidades, domínio técnico e emocional e estiveram presentes em transbordamentos da artesania da cena teatral, possibilitando espaços de formação docente mais sensíveis e críticos. 4 | IN-CONCLUSÕES Quando um coletivo teatral se debruça sobre um processo de criação, diferentes elementos aportam e se intercruzam às dimensões práticas, ideológicas e subjetivas de seus integrantes. Envolvem experiências de vida e formação, atos imaginativos e expressivos, memórias, devaneios, entre outros, fortemente influenciados pela realidade contemporânea. Servem para refletirmos sobre como os códigos da arte/teatro podem ser expandidos para a vida e trabalho, tornando possível refletir sobre a formação docente pela via do trabalho imaginativo e também da autoformação. Os movimentos de síntese da artesana de Noiada e sua representação nos espaços púbicos de Fortaleza – Ce, resultaram em uma leitura sinuosas e polifônica do fazer teatral e os possíveis do trabalho imaginativo. Assumi perante um auditório social do qual faço parte, a tarefa de constituição de vestígios reflexivos sobre o pensar-fazer artísitco em sua dimensão autoformativa. Vida, teatro e pesquisa de mãos dadas, a questionar-me sobre os possíveis desse encontro e sua matéria, que é o humano transubstanciado em arte. Disso resultou o deslocamento da posição de discípulo, para “mestre,” de si, mirando em exercícios de autonomia como acento da criação cênica autoformativa. Uma abundância de novos saberes e significados que venho tentando interpretar por meio da Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 7 66 cientificidade e da arte. Com isso, registro uma crença na expressividade do pensamento criador, que concretiza obras de arte e contribui para instaurar o risco de olhar a vida com maior inteireza. Em razão da complexidade do saber incorporado à natureza dessa experiência artística, implica disposição e coragem para recriar discursos e práticas diferentes daquelas tidas como imutáveis, principalmente na formação docente. Outra maneira de simbolizar a realidade vivida. O conceito de autoformação cooperou para uma compreensão mais inteirada sobre o ofício teatral. Foi uma pequena história por mim contada e que reparto com meus pares como forma diferenciada de ver o mundo e a si, nesse contexto. Aponta no tempo atual para lugares nos quais se torna importante repensar com o corpo inteiro nossa práxis – e aqui me implico como atriz-pesquisadora e educadora em teatro. Recolhi elementos de reflexão que contribuíssem para superar a visão dicotômica entre emoção e razão que, muitas vezes, destitui o caráter de racionalidade presente no fazer artístico, em função da ênfase na ideia de que a obra de arte deve ser fruto apenas de componentes intuitivos e sensíveis. Por fim, acredito cada vez mais necessário, compreender que arte e ciência não são modos apartados de conhecimento. Essa opção implica dois desafios: conceber o diálogo que acredito ser possível, embora que tenso, entre as duas áreas e, por conseguinte, à luz da aprendizagem artesã e autoformativa daí resultante, refletir sobre a formação docente com base na vivência direta em processos de criação em arte, e no trabalho imaginativo que daí resulta. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Suzy Élida Lins de. Iracema via Iracema. 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Portanto, o que este artigo trará são as aproximações processuais entre a criação textual e a criação nas diversas mídias que compõem as artes visuais, trazendo como exemplo o grupo Atos Cultivados formado por um coletivo de artistas jovens que atuam WORKSHOPS/SEMINARS : THE CASE OF THE VISUAL ARTS ORIENTATION OF THE ATOS CULTIVADOS GROUP IN THE CONTEXT OF THE PROGRAMA VOCACIONAL ABSTRACT: This article draws a approximation between the idea of a seminar presented in the book “Fazer a mão - por uma escrita inventiva na universidade” by researcher and professor at the University of Lisbon Jorge Ramos do Ó and the visual arts workshops oriented by me in the context of the Programa Vocacional of the Municipal Secretariat of Culture of São Paulo, in Brazil. Having as one of the main guiding books “Le maitre ignorant” by Jacques Racière, the Programa Vocacional is organized as a seminar/ atelier. Therefore, what this article will bring are the procedural approaches between textual creation and creation in the various media that make up the visual arts, bringing as an example the group Atos Cultivados formed by a collective of young artists who work mainly in the periphery of São Paulo and who were guided by me within the Programa Vocacional. KEYWORDS: “seminar”, “atelier”, “writing”, “visual arts”. Desde 2003 o professor doutor Jorge Ramos do Ó anima às terças-feiras o seminário principalmente na periferia de São Paulo e que de Escrita Inventiva na Faculdade de Educação foram orientados por mim no âmbito do Programa da Universidade de Lisboa. Apesar de quase Vocacional. nos termos encontrado quando ele lecionava PALAVRAS - CHAVE: “seminário”, “ateliê”, o mesmo seminário na Universidade de São “escrita”, “artes visuais”. Paulo, no Brasil, foi em 2018, no início do curso Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 8 70 de Doutoramento em Artes Performativas e da Imagem em Movimento em que eu o conheci e reconheci, para a minha alegria, autores fundamentais para a minha trajetória enquanto artista constantemente empenhada no território da educação (não abandonando por isso o ser-artista, como queria Joseph Beuys). Ao frequentar o seminário, pude perceber alguns elementos essenciais ao seu trabalho: a rotina, a escuta, a partilha, a escrita. Assim Jorge Ramos do Ó o define: Sob a designação de seminário, referir-me-ei a uma rotina que se organiza à volta de uma mesa e sobre a qual se encontra um mesmo texto, previamente lido e trabalhado individualmente, mas que, naquela outra situação, se torna novamente objecto de conversa, de discussão e análise, como se existissem múltiplas possibilidades de o abordar; um artigo, um capítulo ou uma parte de uma obra são ali activamente explorados e quase dissecados, a fim de promover e suscitar níveis de compreensão e apreensão tão diversos quanto o número de participantes que se encontram envolvidos. Como se, nesta situação tão concreta e tornada banal através do processo da sua repetição semanal, se consumasse afinal um grande e velho princípio existencial, ético e político da cultura ocidental: que é pela constante articulação da palavra oral com a palavra escrita que todos estamos a ser convidados, e nos convidamos de facto, a fazer parte do movimento de produção do discurso e da construção do sentido. (RAMOS do Ó, 2019, p.26-27) Se temos então a escrita como um ato de criação (DELEUZE, 1987) o que é ter uma ideia em forma de texto ou em cinema, ou ainda pintura, intervenção urbana, desenho, vídeo ou bordado? De que modo pensamos por meio do fazer textual ou de qualquer mídia das artes visuais? Quais metodologias utilizamos para que não cessemos de trabalhar para inventar, escrever, criar? No sentido em que a questão de Deleuze convoca (O que é ter uma ideia em cinema? O que é ter uma ideia em filosofia?) podemos então aproximar a ideia de seminário de Jorge Ramos do Ó ao ateliê de artes visuais orientado por mim no âmbito do Programa Vocacional da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, no Brasil. Assim como nos seminários, nós nos organizávamos em um ateliê semanalmente em volta da mesma mesa sobre o qual encontrava-se um mesmo trabalho, seja em texto, desenho, pintura, bordado, vídeo, etc., que era ali ativado e explorado por todos, suscitando um desdobrar de sentidos em uma criação coletiva através da partilha, da fala e da apreciação, para mais tarde voltar novamente ao ofício e, como numa espiral, voltar novamente, na próxima semana, à mesa, ao nosso espaço de encontro. Ramos do Ó em “Fazer à mão - por uma escrita inventiva na universidade” anota trechos da “Carta a um jovem investigador em educação” escrita por António Nóvoa, historiador e pedagogo, seu amigo e companheiro de trabalho: “é preciso ler, ler muito, ler devagar”, que “a inteligência vem de interlegere, da capacidade de interligar”, que a investigação se faz “com saltos e sobressaltos”, mas exige a “continuidade de condições, de infra-estruturas e de grupos”, que é esse património “que nos permite chegar aonde nunca Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 8 71 chegaríamos sozinhos”, que “cada um tem de fazer um trabalho sobre si mesmo até encontrar aquilo que o define e o distingue” ou que “ninguém conhece sem partir”. (NÓVOA apud RAMOS do Ó, 2019, p.18) Deste modo, além da rotina, da partilha, da escuta e da escrita, fica acima grafada a necessidade da infra-estrutura. No caso dos seminários de Escrita Inventiva esta estrutura é disponibilizada pela Universidade de Lisboa e por vezes pela Fundação para a Ciência e Tecnologia. No caso da orientação em Artes Visuais do Programa Vocacional, a estrutura é disponibilizada pela Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. O grupo orientado por mim chama-se Atos Cultivados, é um grupo heterogêneo em suas criações, de artistas jovens (em torno de 20 anos) residentes na periferia de São Paulo. A estrutura do Programa Vocacional garantia a orientação e o espaço de trabalho e com os prêmios do Programa VAI1, que o grupo ganhou durante 3 anos consecutivos, o grupo comprava seu material de trabalho e subsidiava os custos mensais com transporte, alimentação e tinha disponível o tempo mínimo de trabalho para que pudessem se dedicar à pesquisa artística. O Programa Vocacional resiste na cidade de São Paulo desde 2001. Em 2016 ele atendeu aproximadamente 200 turmas e grupos através de orientações semanais em toda a cidade de São Paulo, com maior intensidade na periferia de São Paulo, em espaços públicos municipais como bibliotecas, centros culturais e teatros. O Programa tem como objetivo “a instauração de processos criativos emancipatórios por meio de práticas artísticopedagógicas”2. A emancipação a que se refere o programa tem origem em “O mestre ignorante” de Jacques Rancière. Esta obra conta os aprendizados do professor Joseph Jacotot que no século XIX empenhou-se em trazer ao século das luzes a igualdade das inteligências, tendo a emancipação como método. Os amigos da igualdade não têm que instruir o povo, para aproximá-lo da igualdade, eles têm que emancipar as inteligências, têm que obrigar a quem quer que seja a verificar a igualdade das inteligências. […] É uma questão política: saber se o sistema de ensino tem por pressuposto uma desigualdade a ser “reduzida”, ou uma igualdade a ser verificada. (RANCIÈRE, 2010, p.11) Embora a experiência de Jacotot tenha já quase dois séculos, é um alívio quando se verifica, tanto na Universidade quanto no âmbito de Programas públicos de educação e cultura a consciência sobre a igualdade das inteligências. Verificar a igualdade das inteligências significa também não tomar o orientador ou professor como aquele que 1 https://programavai.blogspot.com/p/sobre-o-vai.html 2 Disponível em: https://spcultura.prefeitura.sp.gov.br/projeto/977/ Acesso em janeiro de 2020 Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 8 72 transmite o aprendizado. Destruir as hierarquias em ambientes de ensino parece já uma questão teoricamente ultrapassada, mas entre as palavras escritas e as políticas públicas eficazes ainda temos muito o que construir. A pedagogia tradicional da transmissão neutra do saber, tanto quanto as pedagogias modernistas do saber adaptado ao estado da sociedade mantêmse de um mesmo lado, em relação à alternativa colocada por Jacotot. Todas as duas tomam a igualdade como objetivo, isto é, elas tomam a desigualdade como ponto de partida. As duas estão, sobretudo, presas no círculo da sociedade pedagogizada. (RANCIÈRE, 2010, p.12) A difícil prática a que estávamos empenhados no Programa Vocacional era de desvincularmo-nos da pedagogia a qual fomos (os artistas-orientadores) submetidos tanto na escola quanto na universidade. Como não incorrer na explicação para que não façamos uma pesquisa do luto, para que possamos compreender sem que nos expliquem. Esse método da igualdade era, antes de mais nada, um método da vontade. Podia-se aprender sozinho, e sem mestre explicador, quando se queria, pela tensão de seu próprio desejo ou pelas contingências da situação. (RANCIÈRE, 2010, p.13) O trabalho do artista-orientador no Programa Vocacional era, também, verificar a atenção que cada artista empenhava ao trabalho. Verificar a necessidade de sua criação: “Ali onde a necessidade cessa, a inteligência repousa.” (RANCIÈRE, 2010). Verificar os movimentos que levam a cada criação, não deixar passar o que cada artista ali, com sua história particular pode contribuir como expressão no mundo. Fazer com que não haja preguiça, mas não só. Inseridos em um contexto social avassalador no que diz respeito às necessidades básicas de sobrevivência, frequentemente o papel do artista-orientador era o de criar com o artista caminhos para que o trabalho pudesse existir. E então a necessidade das instituições que como o Programa VAI empenham prêmios aos artistas da periferia da cidade de São Paulo, desburocratizando e distribuindo os acessos aos recursos públicos de cultura. A lição emancipadora do professor, é a de que cada um de nós é artista, na medida em que adota dois procedimentos: não se contentar em ser homem de um ofício, mas pretender fazer de todo trabalho um meio de expressão; não se contentar em sentir, mas buscar partilhá-lo. (RANCIÈRE, 2010, p.79). Em nosso ateliê frequentemente conversávamos sobre o conceito ampliado de arte teorizado por Rosalind Krauss e de escultura cunhado pelo artista alemão Joseph Beuys (1921-1986). É a partir da década de 60 que verificamos uma série de encontros enquanto arte: aulas/seminários, jantares, manifestações políticas… E a partir de diversos exemplos como Beuys, Vito Acconci (1940-2017), Rirkrit Tiravanija (1961-), Eleonora Fabião (1968-), percebemos o ateliê como uma escultura social. Beuys cunhou o termo escultura social para definir práticas no campo da cultura, Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 8 73 política e educação que eram entendidas como escultura porque eram moldáveis pelo pensamento. Segundo ele, sua mais importante obra foi a criação da Universidade Livre Internacional (FIU- The Free International University for Creativity and Interdisciplinary Research) (...) Como um fórum para a confrontação de oposições políticas e sociais, esta escola é capaz de estabelecer um seminário permanente relativo ao comportamento social e uma expressão articulada sobre isto. (DURINI, Lucrezia De Domizio, 1997, p.5) Sonhamos assim, como queria Rancière, com uma sociedade de emancipados, uma sociedade de artistas. Tal sociedade repudiaria a divisão entre aqueles que sabem e aqueles que não sabem, entre os que possuem e os que não possuem a propriedade da inteligência. Ela não conheceria senão espíritos ativos: homens que fazem, que falam do que fazem e transformam, assim, todas as suas obras em meios de assinalar a humanidade que neles há, como nos demais. (RANCIÈRE, 2010, p.80) Isto está fundamentalmente ligado ao que pra mim, ao ler “Fazer a mão - por uma escrita inventiva na universidade” rememorou uma importância adormecida: de que o pensamento se produz na experimentação, ou seja, no ofício da escrita ou da prática artística em qualquer linguagem; e de que há na tradição escolar uma maior ênfase à interpretação, à leitura, e acrescento: ao visionamento de obras artísticas, em detrimento da criação. Não escapa-me aqui a lembrança tão conhecida do que diz o filósofo Gilles Deleuze na letra C de Abecedário, uma entrevista feita pela jornalista e sua aluna Claire Parnet entre 1988-1989, realizada por Pierre-André Boutang e produzida pelas Éditions Montparnasse, Paris. Claire Parnet pergunta à Deluze: Você diz não ser culto. Diz que só lê, só vê filmes ou só olha as coisas para um saber preciso: aquele de que necessita para um trabalho definido, preciso, que está fazendo, mas, ao mesmo tempo, você vai todos os sábados a uma exposição, a um filme do grande campo cultural, tem-se a impressão de que há uma espécie de esforço para a cultura, que você sistematiza e que tem uma prática cultural, ou seja, que você sai, faz um esforço, tende a se cultivar e, entretanto, diz que não é culto. Como explica tal paradoxo? Você não é culto? (PARNET em documentário de BOUTANG, 1989, tradução minha) Ao que Deleuze responde: Não, quando lhe digo que não me vejo, realmente, como um intelectual, não me vejo como alguém culto por uma razão simples: é que quando vejo alguém culto, fico assustado, não fico tão admirado, admiro certas coisas, outras, não, mas fico assustado. A gente nota alguém culto. É um saber sobretudo assustador. Vemos isso em muitos intelectuais, eles sabem tudo, bem, não sei, Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 8 74 sabem tudo, estão a par de tudo, sabem a história da Itália, da Renascença, sabem geografia do Pólo Norte, sabem... podemos fazer uma lista, eles sabem tudo, podem falar de tudo. É abominável. Quando digo que não sou culto, nem intelectual, quero dizer algo bem fácil, é que não tenho saber de reserva. (DELEUZE em documentário de BOUTANG, 1989, tradução minha) E em seguida recordo-me do dia em que foi criado o nome do grupo Atos Cultivados. Após um ano de existência, em 2014, o grupo pôs-se a escrever sobre um papel as palavras que vinham à mente e caracterizavam suas ações. Selecionaram as principais palavras e delas procuramos suas analogias no dicionário analógico de Francisco Ferreira dos Santos Azevedo3. Extraíram dali os substantivos e verbos: colher, dilatar, opinião, vivência, objetividade, ser, forma, organismo, cultivar, ato, rito, vazio, inventar. E então Bruna Edilamar “assoprou” a palavra-acontecimento, dita por ela, mas pensada por aquela pequena comunidade: “Atos Cultivados”. Ancorado na prática do grupo que concentrava-se no pensamento da performance art para dali produzir em outros meios: desenho, vídeo, texto, bordado, gravura… o surgimento do nome não nasceu da orientadora do grupo, não foi minha. E foi imensa a alegria ao constatar no nome, na identidade do grupo, a aproximação com a potência de agir, sobreposta à potência de padecer, como nos traz a Ética de Espinosa. O nome Atos Cultivados aciona a ideia de rotina, de criação, da nossa prática de ateliê/seminário. Pareceme algo que não se acaba, um acontecimento sem começo nem fim. Ações cultivadas por uma pequena comunidade, cultura imaginada por ações. Por aquela mesma mesa circularam textos, textos bordados, palavras-ações, naquele pequeno grupo circulavam as criações e o grupo partilhava de cada etapa do 3 AZEVEDO, Francisco Ferreira dos Santos Azevedo. Dicionário Analógico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Lexikon, 2010 Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 8 75 trabalho ancorado no desejo. “’a substância de cada ser é contestada por cada outro sem repouso’/’mesmo o olhar que exprime o amor e a admiração se liga a mim como uma dúvida que toca a realidade’/’o que eu penso, não o pensei sozinho’” (BATAILLE apud RAMOS DO Ó, p.386). E como acima, com palavras reescritas, com fragmentos e ligações, textos e intertextos que convoco a continuidade de existências de práticas escolares, acadêmicas ou no âmbito de programas públicos de educação e cultura que sejam cada vez mais seminários/ateliês, que não cansem de trazer as condições ao trabalho e de exigir processos, perguntas, ensaios, pesquisa, escritas em suas múltiplas superfícies e modos de existência. Fig. 1. Intervenção de bordado por Isabella Carvalho na publicação “Partogênese”4 do grupo Atos Cultivados. Fig. 2. Intervenção de fotografia por Verô de Maia na publicação “Partogênese” do grupo Atos Cultivados. 4 https://issuu.com/atoscultivados/docs/partogenese-todos_cadernos Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 8 76 Fig. 3. Intervenção de bordado por Jade Lopes na publicação “Partogênese” do grupo Atos Cultivados. Fig. 4. Intervenção de banda desenhada por Luiz Siqueira na publicação “Partogênese” do grupo Atos Cultivados. Fig. 5. Intervenção de vídeo por Bruna Edilamar na publicação “Partogênese” do grupo Atos Cultivados. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 8 77 Fig. 6. Intervenção de xilogravura por Mapa (Maria Paula Locatelli) na publicação “Partogênese” do grupo Atos Cultivados. Fig. 7. Intervenção de xilogravura por Mapa (Maria Paula Locatelli) na publicação “Partogênese” do grupo Atos Cultivados. REFERÊNCIAS DELEUZE, Gilles. O ato de criação. Palestra de 1987. Tradução José Marcos Macedo. São Paulo: Folha de São Paulo, 1999. 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Paris: Éditions Montparnasse, 1994 Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 8 78 CAPÍTULO 9 DOI 10.22533/at.ed.00000000000 O DESIGN THINKING COMO ABORDAGEM EDUCACIONAL CONTEMPORÂNEA: POSSIBILIDADES NA ARTE-EDUCAÇÃO Data de aceite: 16/04/2021 DESIGN THINKING AS A CONTEMPORARY EDUCATIONAL APPROACH: POSSIBILITIES IN ARTEDUCATION Data de submissão: 10/02/2021 Bruna Nátali da Rosa UNOCHAPECÓ Chapecó-SC http://lattes.cnpq.br/1296887225695929 Gisele dos Santos UNOCHAPECÓ Chapecó – SC http://lattes.cnpq.br/4370042790831758 RESUMO: Neste artigo discutimos o Design Thinking (DT) como abordagem para a arteeducação em nível fundamental, focando o trabalho colaborativo e a construção de autonomia do aluno, buscando assim o desenvolvimento de competências para o séc. XXI. Apresenta-se uma breve análise sobre educação pela visão de Freire (2011), Dewey (1980), abrangendo o funcionamento do DT por Brown (2010), Cavalcanti e Filatro (2016) e EDUCADIGITAL (2013). Para esta, é exposto uma prática em ensino fundamental com uso da abordagem, ilustração e arte contemporânea, desenvolvendo trabalhos artísticos, de relevância social perante o desenvolvimento do aluno, discutindo assim o DT como abordagem ao ensino. PALAVRAS - CHAVE: Arte-educação; Educação Básica; Design Thinking; Metodologias Ativas. ABSTRACT: In this article, Design Thinking (DT) is described as an approach to art education at an elementary level, focusing on collaborative work and the construction of the student’s autonomy, thus seeking the development of skills for the 21st century. A brief analysis on education is presented by the view of Freire (2011), Dewey (1980), covering the functioning of the DT by Brown (2010), Cavalcanti and Filatro (2016), and EDUCADIGITAL (2013). For this, it is exposed a practice in elementary education using the approach, illustration and contemporary art, developing artistic works of social relevance in relation to the development of the student, thus having DT as an approach to teaching. KEYWORDS: Art education; Basic education; Design Thinking; Active Methodologies. 1 | APRESENTAÇÃO A sociedade contemporânea é o resultado de uma grande movimentação e evolução, tanto social, política, econômica e tecnológica, exercida com enorme rapidez nas últimas décadas. No cerne desta sociedade encontramos uma organização que foi muito abalada: a escola. (DIESEL, BALDEZ, MARTINS, 2017). Cavalcanti e Filatro (2016) discutem que a educação se mantém atrasada nessa evolução por ainda fazer uso de práticas Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 9 79 metodológicas tradicionais em pleno séc. XXI, práticas que não motivam e não evoluem o pensamento do aluno. A mudança da escola é necessária. Podemos analisar isso perante os diversos documentos que regem o sistema educacional, por exemplo, a BNCC (BRASIL, 2017), que no momento atual exerce a maior influência sobre este, busca, em breve resumo, a formação de um aluno que valorize e utilize conhecimentos historicamente construídos, exercitando sua curiosidade intelectual, recorrendo a abordagens científicas onde faz uso da investigação, reflexão, análise crítica, imaginação e criatividade. Além do mais, deve valorizar as diversas manifestações artísticas e culturais, utilizar-se de diferentes linguagens tanto verbais como corporais, visuais, sonoras e digitais. Por fim ainda deve valorizar conhecimentos e experiências que lhe possibilitem entender as suas relações com o mundo, exercitando a cidadania e a autonomia, de forma consciente e responsável. Todavia, como é possível concretizar essas mudanças e a evolução do aluno se na sala de aula as metodologias, ainda tradicionais, não favorecem o desenvolvimento de ambos? Diante disso, gera-se debates entre pesquisadores na busca de metodologias, abordagens e formas de ensino que possam ser potencializados no séc. XXI. A frente do exposto, busca-se nesta pesquisa, apresentar uma perspectiva contemporânea ao ensino da arte na escola pública, esta que sempre teve uma percepção tradicionalista, técnica e individualista do aluno, (BARBOSA, 2001), conversando com metodologias ativas e possibilidades de ensino que vão além do componente aqui apresentado. Temos como objetivo principal analisar o uso do Design Thinking (DT) como abordagem para criação de propostas artísticas colaborativas na arte-educação, perante a formação do aluno em suas diversas competências. Contudo analisamos que perante as diversas pesquisas sobre o uso do DT na educação ainda não há trabalhos voltadas à arte educação na escola básica (segundo pesquisas realizadas em plataformas como SCIELO, Web of Science, Scopus, BDTB e o Google Acadêmico), pode-se perceber assim uma desvalorização das potencialidades desta área. Para a análise será apresentado um relato de experiência, realizado em estágio curricular obrigatório do curso de Artes Visuais da Universidade Comunitária da Região de Chapecó (UNOCHAPECÓ), voltado à arte-educação em práticas de criação colaborativa, envolvidas com a arte contemporânea e discussão de poéticas, imagem, narrativas, ilustração e contextos sociais. Este trabalho apresenta-se como uma pesquisa qualitativa e exploratória, sendo seu procedimento bibliográfico e documental, embasado em uma pesquisa de natureza aplicada. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 9 80 2 | DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA 2.1 O Design Thinking Como Abordagem Educativa Barbosa (2001) expõe que um dos motivos para o atraso educacional é o fato que a educação no Brasil foi planejada de maneira a voltar-se à prática para o trabalho, esquecendo da formação humana e criativa do indivíduo, trabalhando assim interesses políticos e econômicos do governo. Essa forma de ensino, segundo a autora, focava na formação individual, abordando técnicas solitárias, não demonstrando interesse pela troca de conhecimentos interdisciplinares, e pelo trabalho com a criatividade e autonomia de pensamento. Atualmente para mudar esse cenário, entra-se em discussão as Metodologias Ativas, que segundo Papert (2007) apud Hildebrand (2017), permitem que o aluno seja agente de seu próprio aprendizado, capaz de agir e pensar com autonomia, resolver problemas e atuar perante sua própria capacidade de produção de conhecimento. As metodologias ativas são pautadas em autonomia, reflexão, problematização da realidade, trabalho em equipe e inovação (DIESEL; BALDEZ; MARTINS, 2017), para isso o professor não deve mais agir como um detentor de conhecimento e sim como um facilitador. Além disso busca-se um ensino ligado à prática e a vida, de modo que os estudantes possam articular o conhecimento com sua realidade, gerando assim maior significado. Perante essas ideias surge a proposta do Design Thinking – DT. Este nasce da área de soluções criativas para problemas do Design, e tem como um dos objetivos, ser uma abordagem ou um conjunto de princípios que pode ser aplicado por diversas pessoas e instituições. Segundo Cavalcanti e Filatro (2016) o Design Thinking busca usar das capacidades gerais do ser humano, estas que muitas vezes foram negligenciadas por práticas convencionais. Diante disso a abordagem é fundada na empatia, em reconhecer e respeitar o outro, compreendendo suas percepções e experiências (OLIVEIRA, 2014). Assim proporciona a visualidade do aluno como ser já detentor de conhecimento e potencial. A abordagem em sua forma mais original prevê 3 passos de trabalho que são: Inspiração, Ideação e Implementação. Esta visão é defendida por teóricos como Brown (2010) e Cavalcanti e Filatro (2016). Contudo o DT está aberto a modificações e alterações de acordo com sua necessidade de implantação. Nesta pesquisa usaremos os passos do material de Design Thinking para educadores, traduzido e organizado pelo Instituto Educadigital (2013) onde a abordagem é trabalhada em cinco processos como demonstrado a seguir. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 9 81 Imagem I: Cinco processos do DT. Fonte: Imagem retirada do material de DT para Educadores do Educadigital (2013). A fase de descoberta apresenta e busca a compreensão do problema ou proposta a ser tratado, bem como realizar análises e sínteses. Deve-se entender os desafios, compartilhar o conhecimento de cada um, respeitando as experiências e tendo empatia pela visão de mundo do outro. Na segunda fase a palavra principal é “entendimento”, os feitos de documentar e compartilhar são os principais entre o trabalho colaborativo, é aqui no processo de discussões que surgem as diferenças entre culturas, visões, e é preciso aprender a conviver dentro desse universo. Durante essa fase faz-se uso da interpretação, pesquisa e busca por inspirações. O terceiro passo parte para o processo de geração de ideias, assim foca-se nas palavras “começar, escolher e planejar”, além disso deve-se enfatizar o trabalho em equipe, em evoluir e usar as ideias do outro para o bem da proposta. O quarto passo é a experimentação ou também chamado de prototipação, neste momento o objetivo principal é modelar visualmente as ideias mais relevantes. Nesta ocasião as ideias devem ser revisitadas, pois, é o momento de expressar os conhecimentos obtidos e construídos, levantando-se discussões e realizando as modificações necessárias. Por fim, na etapa chamada de evolução, a palavra principal é “avançar”, sendo que o foco se dá no processo de feedbacks, onde os participantes devem tomar as decisões finais. É neste momento que o conhecimento adquirido e construído durante o processo, deve ganhar forma e partir para a etapa de construção final. Deve-se dar um passo atrás e analisar os objetivos e o que está sendo realizado, se necessário modificar para depois evoluir. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 9 82 O DT apoia o uso de ferramentas visuais, como mapas mentais, mapas de análise, cronogramas, protótipos visuais, brainstorms, entre outros. Observa-se que em todos os momentos de aplicação são realizados feedbacks e discussões, fortalecendo a troca e engajando a percepção de todos. A abordagem também trabalha com os pensamentos Divergente e Convergente. O primeiro aborda a capacidade de análise e criação de ideias, desenvolvendo a pesquisa e observação, criação de espaço de investigação e descobrimento, o segundo a capacidade de síntese através da análise, de criação e pensamento inovador, trabalhando a colaboração em equipe e evolução. Esses pensamentos fazem uma relação direta com a expansão de ideias e a capacidade crítica (OLIVEIRA, 2014). Como citado anteriormente não foram encontrados pesquisas que relacionam o DT com a Arte-educação, contudo nos demais resultados encontrados foi possível perceber o uso da abordagem no ensino superior (MARTINS FILHO; GERGES; FIALHO, 2015), em cursos técnicos. (MARTINS; XAVIER, 2017), cursos diversos, ensino particular e graduações a distância (CAVALCANTI, 2015. MELLO, 2014. BÜKER, 2015. EUFRASIO JUNIOR, 2015) e até mesmo como abordagem de formação de professores da rede pública (OLIVEIRA, 2014; PEREIRA; TRAVERSINI; MELLO, 2020). Diante do estudo destes materiais, e das pesquisas apresentadas por Cavalcanti e Filatro (2016), a abordagem mostrou inúmeros resultados positivos e possibilidades de ser incrementada nas instituições educacionais. Percebeu-se, de acordo com os relatos de práticas em instituições variadas um grande ganho em autonomia perante os usuários, onde realizou-se soluções rápidas, grupais e coletivas às propostas apresentadas. Ainda segundo as autoras, a abordagem é adequada para a educação pois, adota estratégias focadas nos participantes, trazendo assim maior significado às práticas educacionais. Além do mais o DT foca na aprendizagem colaborativa e cooperativa, onde busca desenvolver a capacidade dos alunos na construção de conhecimento, objetivando aproximá-lo do “aprender fazendo”, tanto da vida profissional, como social e subjetiva, devido a articulação entre teoria e prática. Segundo Martins Filho, Gerges e Fialho (2015) o processo colaborativo do DT é enriquecedor, pois trabalha com atividades de coletar depoimentos, definir objetivos em grupo, revezamento constante pelo feedback, criando assim um recurso que agrega as visões de mundo dos participantes. Perante o exposto encontramos relações entre o DT e o pensamento de Freire (2011), principalmente no que diz respeito ao ouvir seu público, já que este se propõe a olhar para seu usuário: o que ele conhece e como interage com sua realidade, e também com Dewey (1980) no que nos diz respeito em aprender a teoria juntamente com a prática em um contexto realista ao aluno. Sobre a avaliação, de acordo com Cavalcanti e Filatro (2016), a abordagem dispõe muitas formas de realizá-la, como a diagnóstica, a formativa ou processual e a avaliação Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 9 83 somática. Assim não realiza-se uma avaliação igualitária e padronizada, mas analisa-se as potencialidades de cada aluno de forma cumulativa. Por fim de acordo com Brown (2010, p. 209) “Nosso objetivo no que se refere à aplicação do Design Thinking em escolas, deve ser desenvolver uma experiência educacional que não destrua a inclinação natural das crianças de experimentar e criar, mas incentivar e desenvolver essa inclinação”. 2.2 O Design Thinking Como Abordagem de Criação Colaborativa em ArteEducação Analisamos neste último capítulo a funcionalidade da abordagem do Design Thinking em uma aplicação real na arte-educação. Para tal será explicitado uma prática realizada em estágio curricular obrigatório do curso de Artes Visuais da Universidade Comunitária da Região de Chapecó (UNOCHAPECÓ), entre setembro e outubro de 2019. A proposta realizou-se em nível fundamental de 7° ano, em uma escola estadual de Chapecó - SC. A escola trabalhada encontra-se em um bairro periférico, recebendo alunos de várias localidades e anos escolares. A turma possuía um total de 30 alunos, com realidades sociais bem abrangentes. Durante as observações realizadas anteriormente a prática, percebeu-se o uso de metodologias tradicionais e individualistas na aulas de artes, onde realizavam-se somente trabalhos técnicos objetivos, isso influenciou a escolha da turma para a pesquisa. Neste contexto o objetivo no uso do DT buscou experimentar o processo criativo na aula de artes através do trabalho colaborativo, estudando as possibilidades deste para a criação de subjetividade, autonomia e empatia, além de demais competências requeridas para formação do estudante. Nesta perspectiva, há uma quebra da concepção de criação individualista na arte, pois o processo de troca potencializa o ganho em conhecimento e, como apontado por Cavalcanti e Filatro (2016), a colaboração permite o trabalho de forma criativa, projetando e buscando soluções reais, tornando possível confrontar a teoria aprendida com a realidade investigada, criando assim uma troca em rede. Para dar início a prática com a turma do 7° ano, posterior a apresentação da estagiária e a explicação sobre os conteúdos de ilustração, optou-se por experienciar o passo de empatia do DT. Para este, foi proposto que os alunos criassem um trabalho ilustrativo, usando as linguagens de sua preferência para expressar sua identidade. Esta prática teve como objetivo trazer o reconhecimento subjetivo do aluno, estipulando um momento de empatia. Esta posição é defendida dentro da abordagem e por Dewey (CUNHA, 2011) que nos propõe que o aluno não é um repositório de conteúdo, é necessário conhecer o que ele já carrega em si. Neste momento foi possível perceber gostos e padrões de interesse dos alunos, bem como as características de expressão particular de cada estudante e do grupo. Seguindo a prática foram trabalhadas bases de convivência, as quais eram: respeite Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 9 84 as ideias dos colegas; todas as ideias são válidas; todos têm direito de falar e se expressar; use as ideias dos outros e melhore-as; se for fazer uma crítica, diga como pode melhorar. Essas ideias visam criar um ambiente colaborativo e seguem os passos que Tim Brown (2010) utiliza em sua empresa. Posteriormente deu-se início a totalidade da proposta com o primeiro passo do Design Thinking a “descoberta”. Foi discutido com os alunos o que são temas sociais e quais pertencem à nossa sociedade, e a partir disto foi solicitado aos alunos realizarem em seus cadernos um brainstorm, com o maior número de ideias possíveis sobre temas sociais. O uso do Brainstorm estimula o pensamento de forma livre e expansiva, onde todas as ideias são aceitas, pois muitas vezes podem-se fazer descobertas nas ideias mais extravagantes (BROWN, 2010). Após a finalização do brainstorm, foi apresentado a artista Carolina Caycedo objetivando que os alunos tivessem contato com a arte contemporânea perante um tema social, ligando este com a prática artística conceitual. Finalizada a discussão foi então compartilhado o resultado do brainstorm. Todas as ideias citadas foram anotadas no quadro de propostas com post it. Totalizando 29 propostas. Durante o brainstorm foi percebido que no processo de troca os alunos realizaram leituras e discussões sobre a sociedade, aumentando assim sua visualidade crítica. Posteriormente deu-se início ao trabalho colaborativo, para este dividiu-se a turma em 6 grupos, de cinco alunos cada. Cada grupo escolheu um tema para construir seu trabalho, entre os escolhidos foram realizadas conexões com linhas coloridas no quadro, buscando a estética de cartografia. Imagem 02: Quadro de anotações de propostas. Fonte: Acervo da autora, 2019. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 9 85 A frente do processo do Design Thinking prescrito ressaltamos a importância do papel do docente como organizador da prática, este que segundo Dewey, analisado por Cunha (2011), desempenha uma função muito importante ao planejar antecipadamente as atividades, organizando um ambiente que favoreça a aprendizagem do aluno de maneira potencial. A partir das montagens de grupos e escolha dos temas, foi apresentado aos alunos a proposta final. Os grupos iriam criar um trabalho artístico visual, com pressupostos na arte contemporânea e da ilustração expandida. Este momento já avança para o segundo passo do DT, a “interpretação”, onde abordamos a proposta a ser realizada com a turma e a pesquisa. Iniciamos com um desafio na pesquisa de imagem, neste cada aluno deveria realizar uma foto em espaço paralelo a escola, sobre seu tema, e trazer esta impressa para semana seguinte. A experimentação da fotografia buscou trabalhar o olhar crítico e criativo, fazendo com que os alunos olhassem para seu entorno de maneira artística, estudando-o, pois segundo Hallawell (2017) é analisando nosso entorno, que surgem ideias e propostas que podem ser trabalhadas. Além do mais a fotografia se torna também um processo de pesquisa e busca de inspirações, almejados no passo 2. Em seguida solicitamos aos os alunos que fizessem pesquisas sobre seus temas de forma abrangente nos meios que tivessem acesso. Para dar início aos trabalhos práticos realizou-se contextualizações com artistas como Kátia Sepúlveda, Mmakgabo Helen Sebidi, Günes Terkol, Naufus Ramírez-Figueroa, que usam de linguagens contemporâneas e da ilustração através da abrangência de temas sociais, servindo como referência poética aos alunos e abrindo espaços para discussão e leituras visuais para criação de ideias. Este momento se caracteriza como o passo três: ideação. Após este momento, começamos o quarto passo, a “experimentação”. Os alunos deveriam usar as imagens e referências pesquisadas, para criar protótipos das ideias de seu trabalho, posteriormente em discussão conjunta seria escolhido a ideia final. Imagem 03: Construção de protótipos entre os grupos. Fonte: Acervo da autora, 2019. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 9 86 Segundo Oliveira (2014) a característica do DT em prototipar faz com as ideias tomem forma e assim seja reconhecido seus pontos fracos e fortes, permitindo a equipe identificá-los e lapidá-los, além disso os primeiros protótipos apresentam diretamente se a ideia poderia ser funcional ou não. Diante deste percebe-se que a abordagem faz com que a equipe esteja constantemente visualizando e repensando ideias, tornando a experimentação fundamental. Dewey (1980) define que a educação só acontece em um processo de reconstrução e organização perante a “experiência”. Após a finalização dos protótipos, deu-se início a prática. Durante esta foi percebido que os alunos permanecem receosos e presos aos protótipos feitos e não permitiram a si mesmos experimentar. Analisa-se que isso ocorre devido ao ensino metodológico tradicional que convivem em seu dia a dia. Em vista dessa dificuldade, as aulas que seriam só a finalização dos trabalhos foram destinadas também à experimentação e a revisitações de discussões sobre as criações, trazendo o feedback como elemento prioritário. Assim o quinto passo “evolução” foi ligado ao momento de experimentar. Na sequência, foi observado uma grande diferença na forma de trabalho colaborativo entre os grupos, houve aqueles que geraram uma troca contínua sem liderança única, e aqueles que a liderança acabou por exceder demais o controle. Dentro de um trabalho colaborativo, apoiando a ideia de Brenner e Uebernickeln (2016) apud Cavalcanti e Filato (2016) a heterogeneidade é fundamental para construção da inovação, contudo esta pode gerar atritos durante o processo, sendo necessário ao professor ficar atento para que as diferenças entre ideias, posições e perfis não sejam tão excessivas a ponto de impedir o trabalho criativo. À frente disso, destaca-se a importância do professor como um participador e facilitador, não sendo mais um detentor do conhecimento (FREIRE; 2011. DIESEL; BALDEZ; MARTINS, 2017). Imagem 04: Momento de construção da proposta entre os grupos, e participação da estagiária. Fonte: Acervo da autora, 2019. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 9 87 Segundo Diesel, Baldez e Martins (2017) o professor como facilitador tem o desafio de provocar, desafiar ou ainda promover condições que os alunos possam construir, refletir, transformar e compreender, sem perder o foco no respeito e autonomia do outro. Quando se coloca o aluno de forma autônoma no processo de aprendizagem, realizase o desenvolvimento circular entre aprender e ensinar, sendo que o aprendiz assume a responsabilidade sobre sua própria aprendizagem e liberdade. Acerca dos trabalhos finalizados apresentamos o trabalho do grupo 1, que demonstrou durante o processo uma ligação muito forte com o tema “transtornos psicológicos”, em conversa com alunas, duas vivenciavam esta realidade, tendo diagnóstico de ansiedade e depressão, e outras conviviam com essas doenças dentro do círculo familiar. Este trabalho cria uma ilustração narrativa de uma pessoa que passa por vários tipos de transtornos. Observar-se o uso de cores frias e neutras que excluem os sentimentos de felicidade. Imagem 05: Trabalho das alunas com o tema “transtornos psicológicos”. Fonte: Acervo da autora, 2019. O trabalho do grupo 2 demonstra um parâmetro da realidade dos animais de rua no Brasil, trazendo as questões de abandono, doenças e maus tratos. Diversos materiais artísticos foram trazidos pelas alunas, pois não são comuns no ambiente escolar. O fato de trabalharem com base em notícias e dados, revela o potencial de pesquisa neste trabalho. A colaboração entre este grupo demonstrou muita empatia, no qual as trocas, ideias e discussões de todos eram sempre possíveis de serem analisadas, assim incluindo todos os participantes no processo criativo e prático. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 9 88 Imagem 06 e 07: Trabalho com o tema de “Abandono de Animais”. Cartaz 1 criado com base em pesquisa de notícias e experimentação de materiais. Cartaz 2, com apropriação de imagens. Fonte: Acervo da autora, 2019. Verificou-se nesta prática que o trabalho em grupo é capaz de aumentar a potencialidade individual de cada aluno, através de inclusão em discussões e realizando um movimento de aprendizagem. Segundo Cunha (2011, p. 41): O aprendizado genuíno que se dá no ambiente natural de vida do indivíduo ocorre quando de sua participação nas experiências vivenciadas pelo grupo; a matéria prima desse aprendizado são as experiências compartilhadas coletivamente [...]. Após finalizada a prática foi realizado o momento de feedback, que se voltou a análise das atividades e da própria atitude docente. O uso do Feedback está embasado na necessidade de ouvir os envolvidos, pois é necessário analisar a percepção de quem recebe o processo educacional (FREIRE, 2011). À frente deste foi solicitado aos alunos expressarem suas opiniões livremente, falando sobre as dificuldades, a experiência e quais alterações poderiam ser realizadas nas atividades. Houveram comentários sobre como foi positivo conhecer artistas atuais e contemporâneos, um dos grupos comentou que gostou da atividade por ser uma proposta diferente, oposto a grande parte das atividades que possuíam no dia-a-dia, outros citaram a dificuldade do trabalho colaborativo, mas que os resultados valeram a dedicação. Abaixo segue imagem do quadro de feedback construído durante a discussão com a turma e com acréscimos de visualidades da docente. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 9 89 Imagem 08: Quadro de feedback construído com os alunos do 7° Ano. Fonte: Acervo da autora. 3 | CONSIDERAÇÕES Ao final da realização desta proposta e dos feedbacks recebidos percebe-se que a abordagem do Design Thinking, seguindo a interpretação de Cavalcanti e Filatro (2016) e a divisão de etapas do material “Design Thinking para Educadores” (EDUCADIGITAL, 2013), é funcional em meio à prática criativa e colaborativa na aula de arte. Foi possível sentir no início do processo um estranhamento por parte dos alunos, por serem solicitados a pensar livremente, com suas próprias opiniões e reflexões sobre o conteúdo, sem encaminhamentos exatos ou passos de processos rígidos, onde o professor pede um trabalho com uma estética já definida que o aluno deve reproduzir igualmente. Contudo no decorrer do processo foi percebido uma crescente autonomia, surgida principalmente pela liberdade de escolha, experimentação perante a criação e da troca. Durante os processos do DT, o aluno é sempre instigado a evoluir e fortalecer sua maneira de trabalho, sendo que no momento de interpretação e ideação os alunos mostraram-se totalmente capazes de pesquisar, buscar e discutir se forem instigados, principalmente quando há ligação com temas de seu interesse. Também foi visualizado que o uso do brainstorm gera muitos resultados positivos, aumentando a visualidade dos alunos perante o seu entorno durante o processo de troca e discussão de ideias, trazendo assim a construção de uma análise crítica sobre sua realidade. No momento de experimentação foi possível verificar que os alunos conseguem produzir protótipos e visualizar o projeto final, estando abertos a receber feedbacks e possuindo grande biblioteca visual. Contudo no momento de evolução, (o último passo) Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 9 90 os alunos se prendem aos protótipos realizados, necessitando assim um retrabalho desta percepção. O uso da etapa de evolução como uma continuação e aprimoração ocasionou uma maior experimentação de técnicas contemporâneas e de construção de subjetividade, permitindo assim a evolução conceitual, artística e visual dos trabalhos criando uma particularidade de cada grupo. Além do mais o modelo de trabalho colaborativo que a abordagem proporciona é capaz de instigar o desenvolvimento de competências para o trabalho em grupo necessárias para o indivíduo do séc. XXI, onde este aprende a conviver, discutir, ouvir, entender, respeitar, debater, e acima de tudo ter empatia pela visão do outro, trabalhando a subjetividade em meio a colaboração. À frente desta análise, percebe-se que o DT é totalmente funcional quando engajado a arte-educação, pois constrói ligações entre todos os aspectos desta, não inibindo a criatividade e capacidade de criação do aluno e sim potencializando-a, sendo capaz de disponibilizar os momentos para discussão e trocas que já são esperadas no ensino da arte. Por fim concorda-se com os estudos sobre as potencialidades que o DT traz para a educação, sendo possível verificar que este é adequado à múltiplos cenários, passível de evolução e de instigar o aluno em seu processo de aprendizagem. REFERÊNCIAS BARBOSA, Ana Mae. 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Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 9 92 DOI 10.22533/at.ed.00000000000 CAPÍTULO 10 O PROJETO ROCK E O GOSTO DOS ALUNOS Data de aceite: 16/04/2021 Data de submissão: 02/02/2021 António José Pacheco Ribeiro Conservatório do Vale do Sousa -Lousada, Portugal Universidade do Minho – CIEC - Braga, Portugal https://orcid.org/0000-0003-3413-8473 Trabalho apresentado no IV Encontro do Ensino Artístico Especializado da Música do Vale do Sousa: O Ensino da Música no Século XXI: Desafios e Compromissos. Lousada: Conservatório do Vale do Sousa, 2019. https:// sites.google.com/site/encontromusicavaledosousa/ home RESUMO: O Projeto Rock define-se como uma disciplina de Classe de Conjunto do plano de estudos do curso de música ministrado no Centro de Arte Musical – Escola de Música. A música de conjunto assume-se como um meio privilegiado para o desenvolvimento de várias competências: musicais, socias e comportamentais. O processo de ensino centrado no grupo possibilita a relação entre os pares promovendo a colaboração, a cooperação, a interação, a socialização e a aprendizagem. O Projeto Rock pretende, assim, fomentar uma aprendizagem ativa com base numa tipologia musical próxima da identidade dos alunos, possibilitando o desenvolvimento de atividades musicais pouco ou nada exploradas no contexto da escola de música formal. O recurso Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 à composição colaborativa, à improvisação, aos arranjos musicais e à experimentação sonora são atividades fundamentais subjacentes ao processo de desenvolvimento pedagógico. A proximidade dos jovens a outros géneros e estilos musicais de âmbito popular é uma realidade que tem estado afastada das escolas de música oficiais, neste sentido, o Projeto Rock também pretende viabilizar a atenção para a necessidade de introduzir no contexto de escola de música formal outras tipologias musicais. PALAVRAS - CHAVE: Projeto Rock; Música de Conjunto; Tipologias Musicais; Ensino Formal e Ensino não Formal. THE ROCK PROJECT AND THE TASTE OF STUDENTS ABSTRACT: The Rock Project is defined as a Set Class discipline of the study plan of the music course taught at the Centro de Arte Musical - Escola de Música. The ensemble music assumes itself as a privileged means for the development of several skills: musical, social and behavioral. The teaching process centred on the group allows the relationship between peers promoting collaboration, cooperation, interaction, socialization and learning. The Rock Project intends, thus, to promote an active learning based on a musical typology close to the students’ identity, allowing the development of musical activities little or nothing explored in the context of the formal music school. The use of collaborative composition, improvisation, musical arrangements and sound experimentation are fundamental activities underlying the process of pedagogical development. The proximity of Capítulo 10 93 young people to other genres and musical styles of popular scope is a reality that has been far away from official music schools, in this sense, the Rock Project also intends to make possible the attention to the need to introduce in the context of the formal music school other musical typologies. KEYWORDS: Project Rock; Ensemble Music; Musical Typologies; Formal Education and Non Formal Education. 1 | INTRODUÇÃO O ensino da música em Portugal desenvolve-se nas escolas de música consideradas para esse efeito: conservatórios, academias e escolas profissionais. Todos estes estabelecimentos de ensino se caracterizam por um ensino formal, estruturado, legislado e certificado, ancorando-se no sistema de ensino oficial: público e particular e cooperativo. Tal sistema de ensino, advém dos moldes herdados do Conservatório de Música de Lisboa, ligado à Casa Pia, fundado em 1835, e tem como principal objetivo a formação de músicos profissionais. Paralelamente a este ensino formal da música desenvolve-se em múltiplos espaços de formação um ensino musical de carácter não formal e informal que responde a diferentes especificidades considerando as expectativas e perspetivas da população escolar. Neste artigo aborda-se: (i) a problemática da inclusão nos currículos escolares de outras tipologias musicais; (ii) apresentam-se as características do ensino não formal; (iii) menciona-se a metodologia de ensino subjacente ao Projeto Rock e a sua consequente proximidade com características do ensino informal e, por último, (iv) faz-se uma breve síntese apresentando as considerações finais. 2 | ENQUADRAMENTO TEÓRICO Os currículos e os planos de estudos das escolas de música oficiais de ensino centram-se no âmbito da música dita erudita, com particular incidência na música clássica e romântica dos séculos XVIII e XIX. De facto, a ausência de outras tipologias musicais, nomeadamente a música popular, (entenda-se toda a música que não é erudita) nos currículos destas escolas de música é uma realidade persistente que não se coaduna com a contemporaneidade do século XXI e, concretamente, com aquilo que se passa em vários países da Europa e do resto do mundo. Na realidade, a música popular entrou nos currículos das escolas de música europeias e norte americanas a partir de meados dos anos 60 de século passado, primeiramente com a inclusão do Jazz nos Estados Unidos. Na Inglaterra a música popular ganhou adeptos, também, na década de 1960 e o subsequente desenvolvimento de novos materiais curriculares e estratégias de ensino colocaram a música popular nos currículos escolares de muitos outros países durante a década de Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 10 94 1980 (GREEN, 2002). Música popular e jazz, […], como “world music” (música do mundo), foram aceitas vagarosamente no currículo a partir do final da década de 1960 até sua inclusão formal em um número de países no final do século. Atualmente existe uma grande variedade dessas músicas em muitos currículos (GREEN, 2012, p. 65-66). Em Portugal, as escolas de música ainda não comportam nos seu currículos outras tipologias musicais, ou seja outros estilos e géneros musicais diferenciados, que respondam às especificidades das regiões e da população escolar. O modelo único de organização curricular e pedagógica, predominante no ensino especializado da música, que assenta na formação de instrumentistas solistas, ancorado numa perspectiva do século XIX e numa única tipologia musical, tem impedido que se dêem respostas adequadas à procura crescente da aprendizagem musical que correspondam à heterogeneidade dos territórios, dos alunos, dos públicos, dos profissionais e do desenvolvimento do mercado de emprego (FOLHADELA; VASCONCELOS; PALMA, 1998, p. 7). No início dos anos 90 do século passado, a democratização do ensino, o aumento da escolaridade obrigatória e a valorização das artes na formação da pessoa humana, contribuíram, substancialmente, para que a população escolar deste tipo de ensino tivesse aumentado de forma considerável. Neste contexto, […] estas escolas são hoje frequentadas por um número cada vez maior de crianças procurando diferentes saberes e conhecimentos, colmatando deficiências de formação que são particularmente sentidas pelas comunidades educativas. A diferente procura não foi acompanhada pela necessária introdução de ofertas curriculares diversificadas capazes de responderem às novas expectativas e solicitações da população escolar (RIBEIRO, 2017, p. 4). A população escolar destas escolas de música é, assim, bastante diversificada e procura um ensino da música com diferentes propósitos. Atente-se nas palavras de Ribeiro (2017, p. 5): […] os jovens e adolescentes continuam a procurar junto da escola especializada de música […] conhecimentos ligados a outras linguagens musicais, nomeadamente pop/rock, jazz, world music, música popular/ tradicional […] e estas mesmas escolas continuam a não corresponderem às diferentes solicitações, ancoradas num ensino tecnicista, virtuoso, de formação de músicos instrumentistas solistas, assente numa única tipologia musical ligada à música erudita ocidental. A música é uma prática humana social, intencional, contextual, multidimensional e diversificada (ELLIOT, 1995) e desempenha diversas funções na sociedade contribuindo para a identidade dos povos (MERRIAM, 1964): (i) função de expressão emocional; (ii) função de prazer estético; (iii) função de entretenimento ou diversão; (iv) função de Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 10 95 comunicação; (v) função de representação simbólica; (vi) função de resposta física ou reação fisiológica; (vii) função de impor conformidade às regras sociais; (viii) função de validação de instituições sociais ou de rituais religiosos, (ix) função de contribuição para a continuidade e estabilidade da cultura; (x) função de contribuição para a integração da sociedade. A música como em todo e qualquer processo artístico ou cultural, se constitui como um fenômeno social, pois mantém relação e questiona os valores sociais e as significações dos sujeitos. Assim, quando se vivencia a música não se estabelece relação apenas com a matéria musical em si, mas com toda uma rede de significados construídos no mundo social, em contextos coletivos mais amplos e em contextos singulares. A música, então, além de ser um instrumento de aquisição de cultura e de lazer, pode servir como uma ferramenta de integração social e, neste sentido, apresenta-se como forma de demarcar/refletir diferenças psicológicas e socioculturais, o que faz com que ela e o gosto musical criem concepções, conceitos, rótulos, grupos de convivência e até mesmo estigmas, ao passo que, também se colocam como forma de representação identitária (OLIVEIRA, 2013, p. 17). Os jovens que frequentam a escola de música especializada têm origens socioculturais divergentes, no entanto as suas vivências musicais sustentam-se nas múltiplas linguagens musicais da atualidade e pouco na cultura dita erudita. Na realidade, […], é sabida a apetência dos adolescentes pelas linguagens da música Pop, do Jazz e, mais recentemente pelo fenómeno da World Music, que tem sido, nos melhores casos, um importante veículo de divulgação de culturas extraeuropeias, ajudando a promover o respeito pela diferença e pelo “outro”. A completa ausência destas e de outras tipologias nos actuais currículos e a subvalorização destes fenómenos culturais, pela maioria dos docentes, tem provavelmente causas muito semelhantes às que levam a uma não-aceitação, quase generalizada, da música do século XX. Esta constatação deve-nos levar a abordar sem preconceitos o problema da integração no currículo de outras tipologias musicais, entre as quais se encontram tipologias “mais próximas” dos alunos das nossas escolas (FOLHADELA; VASCONCELOS; PALMA, 1998, p. 55). A vida dos jovens, suas vivências e suas apetências são plurais, neste sentido, é preciso diversificar a oferta formativa e proporcionar aprendizagens congruentes com as necessidades sentidas por cada pessoa de cada comunidade. Um desafio e um compromisso, para o século XXI, pautados pelo rigor e qualidade da formação a ser ministrada, mas que não pode ficar circunscrita a um passado estático e histórico. As crianças, os jovens e os adultos movem-se em espaços formais e informais, possuidores de memórias e sentidos consoante as comunidades de pertença e onde as práticas individuais se cruzam com os diferentes tipos de racionalidades, convenções, formas de sociabilidade e identitárias (VASCONCELOS, 2015, p. 101-102). Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 10 96 Considerando a diversidade da procura musical, o papel importante que a música possui na formação dos jovens e sua identidade, é imperativo a pluralidade da oferta, uma oferta que contemple toda a música e não apenas alguma música considerada superior. Segundo Vasconcelos (2015, p. 110), […] uma das questões centrais para o desenvolvimento da educação artístico-musical é conceber contextos educativos e formativos, com as correspondentes metodologias e estratégias, que possibilitem a conexão entre a escola, a casa e a comunidade, de modo a desenvolver atitudes positivas para as aprendizagens e para fazer música em conjunto, bem como contribuir para a construção de pontes entre as actividades musicais, os recursos e os saberes as comunidades. O Projeto Rock, incluído num ambiente não formal de ensino de música, emerge como uma resposta às necessidades de formação dos jovens, às suas preocupações, inquietações e suas vivências, possibilitando uma formação de qualidade e um aprofundamento de conhecimentos musicais e comportamentos sociais desejáveis. 3 | PROJETO ROCK E O ENSINO NÃO FORMAL O Projeto Rock, enquanto disciplina de conjunto (Projeto de Música), faz parte do plano de estudos do Centro de Arte Musical – Escola de Música. Esta escola de música insere-se no âmbito do ensino não formal, considerando a impossibilidade do ensino musical formal dar resposta satisfatória a toda a população escolar. No que concerne à educação não formal, ao que tudo indica, surgiu para responder a necessidades educativas, sendo que a escola não foi capaz de cumprir os mandatos que há muito lhe foram atribuídos […], ou seja, foi proveniente do sentimento de que a escola estava a falhar […] (SOARES, 2013, p. 46). A educação não formal refere-se a «todas aquelas instituições, atividades, meios, âmbitos de educação, que não sendo escolares, terão sido criadas para satisfazer determinados objetivos educativos» (TRILLA, 1993 apud SOARES, 2013, p. 46). Apesar de se verificar falta de consenso, relativamente à conceptualização da educação não formal, ela implica, particularmente, atividades educacionais exteriores, ou seja, que se desenvolvem fora do sistema formal. É uma atividade algo organizada, sistemática levada a cabo fora do sistema formal, de modo a proporcionar tipos de ensino diferenciados e selecionados para subgrupos de uma população particular, que podem ser adultos ou crianças (ROGERS, 2004 apud SOARES, 2013, p. 46). O ensino não formal caracteriza-se, assim, por um conjunto de aspetos a considerar: (i) tratam-se de processos educacionais organizados fora da lógica do sistema regular de ensino não seguindo um currículo pré-definido baseado nas normas e diretrizes do governo Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 10 97 nacional; ao contrário, o conteúdo é definido a partir da vontade e das necessidades das pessoas envolvidas; (ii) as atividades educacionais, apesar de possuírem objetivos claros e bem definidos, são organizadas e estruturadas de maneira flexível; apresentam um carácter complementar à educação formal, portanto não conferem certificados oficiais aos seus participantes, apenas podem conceder certificados de aprendizagem obtida; (iii) estas atividades são oferecidas tanto por instituições de ensino formal quanto por organizações sociais; este tipo de ensino pode compreender programas educacionais que ofereçam alfabetização de adultos, educação básica para crianças fora da escola, competências para a vida, competências para o trabalho e cultura em geral. Outras características associadas ao ensino não formal, dizem respeito ao facto das atividades estarem focadas em quem aprende e não em quem ensina; estarem estruturadas de baixo para cima, ou seja, forte influência dos participantes na definição do currículo a ser trabalhado; pela flexibilidade que comporta este tipo de ensino e pela enfâse na prática, fortemente relacionada com o contexto local dos participantes. 4 | PROJETO ROCK E A PEDAGOGIA CENTRADA NO GRUPO O Projeto Rock apresenta-se com uma pedagogia que privilegia o aluno e o grupo, opondo-se a uma pedagogia tradicional centrada no professor com enfâse na mera transferência de informação: professor – aluno. Este modelo de ensino, que desconsidera os processos de aprendizagem dos alunos, é concebido como um processo unidirecional, cabendo ao professor decidir e conduzir as suas várias etapas pré-estabelecidas. Os alunos comportam-se de forma absolutamente passiva, enquanto que o professor possui todo o controlo sobre o processo de formação e sobre o próprio ritmo da aprendizagem (CABANAS, 2002). Os conteúdos, os procedimentos didácticos, a relação professor-aluno não têm nenhuma relação com o quotidiano do aluno e muito menos com as relações sociais. É a predominância da palavra do professor, das regras impostas, do cultivo exclusivamente intelectual (LIBÂNEO, 1987, p.22). O Projeto Rock desenvolve o seu processo pedagógico ancorado na perspetiva de satisfazer as necessidades dos alunos e seus interesses, através de uma pedagogia ativa, com ambientes de aprendizagem colaborativos nos quais o conhecimento é construído com base na interação entre todos os elementos do grupo de trabalho. O professor tem como função facilitar a troca de informação e de conhecimento entre os alunos, intervindo nos debates e providenciando para que todos os alunos interajam mutuamente. Este modelo de ensino desenvolve nos alunos uma maior criatividade, uma maior atitude crítica, fortalecendo o espírito de grupo e desenvolvendo capacidades de comunicação interpessoal. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 10 98 [...] a educação faz-se em grupo e pelo grupo, de modo que é este que encarna a função educadora. É no seu seio que se realiza o crescimento de cada indivíduo. [...] o professor é um conselheiro técnico que está à disposição do grupo quando este reclamar a sua assistência, o seu papel é, sobretudo, o de “animador” do grupo (CABANAS, 2002, p. 82). O modelo de educação funcional promove uma educação ativa que satisfaz as necessidades biológicas e psicológicas do indivíduo e, através delas, as suas necessidades lógicas e culturais. Não existe propriamente ensino por parte do professor, mas sim aprendizagem por parte dos alunos. A Educação Musical, proclamada no contexto da Escola Nova, advoga a música como uma prática de todos, amparando-se nos pressupostos filosóficos da corrente pedagógica ativa, ou seja, centrada na iniciativa e nos interesses dos alunos. Neste sentido, o processo didático subjacente ao Projeto Rock sustenta-se nas ideias pedagógicas dos métodos ativos e de autores importantes da Educação Musical, da segunda metade do século XX, nomeadamente Paynter (1970), Schafer (1991, 2001), Swanwick (1979, 1988, 1994), com base em atividades de composição, apreciação, improvisação, de arranjos, e de experimentação sonora. O professor tem o papel de orientar o grupo, sendo os alunos os protagonistas do processo. A base pedagógico-didática do Projeto Rock, pode, assim, definir-se nos seguintes termos: (i) tipologia musical do interesse dos alunos, das suas vivências e das suas inquietações; (ii) objetivos claros e definidos, sem constrangimentos e imposições ditadas pelos ditos programas escolares; (iii) enfâse nos processos musicais criativos e colaborativos; (iv) enfâse na composição musical e não na sua mera reprodução; (v) processos didáticos próximos da aprendizagem informal; e, por último, (vi) papel mínimo interventivo do professor – categoria de orientador. No âmbito das práticas de aprendizagem musical, refira-se a propósito, que Projeto Rock, adota, de facto, processos muito próximos da aprendizagem musical informal. Consideram-se como ilustrativos os seguintes aspetos: (i) os próprios alunos na aprendizagem informal escolhem a música, música que já lhes é familiar, que eles gostam e têm uma forte identificação; na educação formal, os professores normalmente selecionam a música com a intenção de introduzir os alunos a áreas com as quais ainda não estão familiarizados; (ii) a principal prática de aprendizagem informal envolve tirar as gravações de ouvido, diferenciando-se de responder a notações ou outro tipo de instruções e exercícios escritos ou verbais; (iii) não só o aluno na aprendizagem informal é autodidata, mas um ponto crucial é que a aprendizagem acontece em grupos, proporcionando aprendizagens entre pares envolvendo discussão, observação, escuta e imitação entre eles; no contexto formal, o trabalho envolve a supervisão de um adulto e orientação de um especialista com maiores habilidades e conhecimento; (iv) a aprendizagem informal envolve a assimilação de habilidades e conhecimentos de modo pessoal, frequentemente desordenado, de acordo com as preferências musicais, partindo de peças musicais completas, do mundo Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 10 99 real; no domínio formal, os alunos seguem uma progressão do simples ao complexo, que quase sempre envolve um currículo, um programa do curso, exames com notas, peças ou exercícios especialmente compostos; (v) durante todo o processo de aprendizagem informal, existe uma integração entre apreciação, execução, improvisação e composição, com ênfase na criatividade; no âmbito do contexto formal, existe uma maior separação das habilidades com ênfase na reprodução (GREEN, 2012). O Projeto Rock pretende, desta forma, fomentar uma aprendizagem ativa com base numa tipologia musical próxima do gosto dos alunos, possibilitando o desenvolvimento de atividades musicais pouco ou nada exploradas no contexto da escola de música formal. Simultaneamente, pretende, também, viabilizar novas estratégias pedagógico-didáticas no processo de ensino e aprendizagem musical, quer seja no âmbito do ensino formal, quer seja no âmbito do ensino não formal, por forma as responder às necessidades dos jovens e das suas comunidades, considerando a diversidade da população escolar que frequenta as diferentes escolas e as diversas perspetivas e expectativas que orientam esta mesma população para o ensino da música. 5 | CONSIDERAÇÕES FINAIS A juventude atual demonstra grande apetência para a música, quer seja com uma finalidade de futura profissionalização, quer seja no âmbito de uma formação geral mais completa do indivíduo. A música desempenha várias funções na sociedade e os jovens, independentemente do seu futuro profissional, procuram no ensino da música perspetivas que os possibilitem participar ativamente na construção da sociedade de forma integrada e congruente com a sua identidade sociocultural. O contexto de escola de música formal tem apresentado dificuldades de resposta face às diversas exigências de formação dos jovens (FOLHADELA; VASCONCELOS; PALMA, 1998; FERNANDES; Ó; FERREIRA, 2007; PACHECO, 2008, 2013), relacionadas com currículo e a tipologia musical centrada no âmbito da música dita erudita ocidental, como também nas metodologias de ensino adotadas neste contexto que continuam a incidir em práticas tradicionais. Neste sentido, espaços alternativos de ensino da música – ensino não formal - propõem-se responder à problemática sentida, operando entre uma particular simbiose do gosto dos alunos e metodologias de ensino centradas nos seus interesses, nas suas vivências, privilegiando o grupo de trabalho e recorrendo-se de aprendizagens colaborativas. O Projeto Rock, desenvolve, assim, aprendizagens significativas nos jovens respondendo às suas exigências, utilizando uma metodologia de ensino musical apelativa e congruente com as ideias pedagógicas dos autores mais significativos da segunda metade de século XX. O ensino musical proporcionado pelo Centro de Arte Musical – Escola de Música e pelo Projeto Rock considera, ainda, a possibilidade de os jovens poderem mutar entre um ensino meramente de recreio e divertimento com um ensino da música de Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 10 100 carácter formal. Em última análise, Projeto Rock, coloca a tónica, também, na necessidade de introduzir no contexto de escola de música formal outras tipologias musicais e outras metodologias de ensino de instrumento, por forma a contemplar toda a população escolar. REFERÊNCIAS CABANAS, José Maria Quintana. Teoria da Educação – Concepção antinómica da educação. Porto: ASA, 2002. Elliott, David. Music Matters: A New Philosophy of Music Education. New York: The Oxford University Press, 1995. FERNANDES, Domingos; Ó, Jorge do; FERREIRA, Mário. Estudo de avaliação do ensino artístico. Lisboa: Direcção Geral de Formação Vocacional do Ministério da Educação e Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Lisboa, 2007.Disponível em: <http://hdl.handle. net/10451/5501>. Acesso em: 17 maio 2015. FOLHADELA, Paula; VASCONCELOS, António Ângelo; PALMA, Eduardo. Ensino Especializado da Música Reflexões de Escolas e de Professores. Lisboa: ME – Departamento do Ensino Secundário, 1998. 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Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 10 102 DOI 10.22533/at.ed.00000000000 CAPÍTULO 11 O PARADOXO DO DEPOIMENTO Data de aceite: 16/04/2021 Data de submissão: 08/02/2021 Daniel Furtado Simões da Silva Universidade Federal de Pelotas (Professor adjunto lotado no Centro de Artes, curso de Teatro-Licenciatura) Pelotas, Rio Grande do Sul http://lattes.cnpq.br/0486037905649436 Se ele é ele quando representa, como deixará de ser ele? Se ele quer cessar de ser ele, como perceberá o ponto justo em que deve colocar-se e deter-se? Diderot THE TESTIMONIAL PARADOX ABSTRACT: This article seeks to raise some questions about the autobiographical testimony and the actor’s work, based on Diderot’s reflections on the limits of representation. Reflecting on the play “Não desperdice sua única vida”, by Cia Luna Lunera, we think about how the autobiographic testimony transits between the real and the fictional and how the actor, when representing himself, can become a character. KEYWORDS: Autobiographic testimony; Cia Luna Lunera; Paradox of the actor; Character boundaries. A citação acima pertence ao “Paradoxo sobre o comediante”, escrito por Diderot em 1769 e coloca de forma bem clara a necessidade do ator não vivenciar as emoções que o personagem estaria experimentando em cena, sob pena de incorrer numa interpretação medíocre. De fato, para Diderot o talento do ator RESUMO: Este artigo busca trazer alguns questionamentos em torno do depoimento autobiográfico e do trabalho do ator, a partir das reflexões de Diderot sobre os limites da representação. Refletindo sobre o espetáculo “Não desperdice sua única vida”, da Cia Luna Lunera, pensamos como o depoimento autobiográfico transita entre o real e o ficcional e de que forma o ator, ao representar a si mesmo, pode se transformar em um personagem. PALAVRAS - CHAVE: Depoimento autobiográfico; Cia Luna Lunera, Paradoxo sobre o comediante; Limites do personagem. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 consiste não em sentir, mas em expressar tão escrupulosamente quanto possível os sinais externos do sentimento. Diderot coloca ainda a impossibilidade de o ator vivenciar as emoções do personagem, emoções que ele, ator, busca transmitir com verossimilhança, e que seriam análogas àquelas que o personagem ficcional experimentaria na situação mostrada. Os sentimentos experimentados pelo ator jamais poderiam ser iguais aos do personagem, uma vez que “ele [o ator] não é o personagem, ele o representa, e o representa tão bem que vós [os Capítulo 11 103 espectadores] o tomais como tal; a ilusão só existe para vós; ele sabe muito bem que ele não o é” (DIDEROT, 2005:225-226) A transformação da dramaturgia ocorrida durante a segunda metade do século XX trouxe à baila diversas questões na relação do ator com o personagem. Se numa dramaturgia próxima ao drama psicológico burguês e em muitos textos simbolistas, de Ibsen e Tchecov, assim como do drama realista norte-americano de O’Neill, Tennesse Williams e Arthur Miller, os personagens possuem uma coerência e um desenho psicológico desenvolvidos e “podemos ter a impressão de lidar com uma pessoa, com sua linguagem, sua identidade completa, seu estado civil” (RYNGAERT, 1996:127), hoje tornaram-se comuns textos que não se apóiam nessa identificação, na assimilação de uma pessoa ao personagem. De uma forma simplificada, há, por um lado, textos teatrais que estão baseados justamente em seu contrário, isto é, na não identificação entre ator e personagem, na seara aberta por Brecht; por outro, há aqueles marcadamente lacunares, como os de Beckett, Koltés, Heiner Müller e Gertrude Stein, além de outros que se sustentam mais pela narração do que pela impostação de personagens, e os que se apresentam como roteiros de ações a serem performadas pelos atores e atrizes, performers ou atuadores. Aqui nos interessa discutir um tipo específico de construção dramatúrgica, que nos coloca diante de outras questões: é aquele texto criado com base na experiência e no depoimento pessoal do ator, na qual não é este que se adequa ao personagem, mas sim o segundo que se identifica com a pessoa do ator. Tratando dos estilos de interpretação delineados pela cena contemporânea, Mauro Meiches, em Sobre o Trabalho do Ator (Ed. Perspectiva, 1999), distingue três grandes tendências: a encarnação, o distanciamento e a interpretação de si mesmo. Na primeira, o ator busca se aproximar do personagem, colocar em cena uma imagem que corresponda àquela criada pelo autor dramático, retratando física e psicologicamente o ser ficcional. Esta visão iguala-se a que possuía Stanislavski, e sobre a qual ele construiu o seu sistema, organizando uma série de procedimentos para que o ator experimentasse sentimentos análogos ao do personagem, com base na verossimilhança e nas circunstâncias dadas pelo texto1. A segunda, de distanciamento, pode ser acompanhada de um movimento crítico do ator em relação ao personagem, assim como pela irrupção de formas narrativas puras em meio ao dramático. Em Brecht, na forma de teatro político e dialético que ele defendeu, o objetivo do “efeito de distanciamento” era justamente conferir ao espectador uma atitude crítica e analítica frente aos acontecimentos apresentados na peça teatral. Assim como a encenação não tinha o desejo de criar em cena uma atmosfera correspondente a um espaço e a um lugar fictícios (como a de um quarto à noitinha), o ator não deveria, 1 Mesmo quando Stanislavski passa a trabalhar com ações físicas, seu ponto de referência continua sendo o texto teatral e as situações ditadas por ele. O personagem permanece situado além do ator, e há uma preocupação de estabelecer um ponto de contato entre a vida do ator (concreta) e a vida do personagem (fictícia). O ator usa de sua técnica tanto para executar esse movimento de entrar em contato com a realidade do personagem (e o método de ações físicas faz parte dessa técnica), quanto para construir a totalidade de seu papel, integrando-o na realidade maior da peça a ser encenada, com seus ritmos e objetivos maiores. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 11 104 através de um ritmo adequado da fala, reproduzir um “determinado estado de alma” do personagem, evitando dessa forma pôr o público “em transe” ao dar-lhe “a ilusão de estar assistindo um acontecimento natural, não ensaiado”2. As formas dramáticas que mesclam o elemento narrativo e o dramático também produzem um efeito de distanciamento, mesmo que o autor não tenha as intenções políticas postuladas por Brecht. Luiz Arthur Nunes fala de uma reabilitação do ator narrador, que ele chama de “ator rapsodo”, motivada por uma renovação radical da dramaturgia e da encenação ocorridas no século passado, que buscou uma “teatralidade anti-ilusionista a partir da hibridização da forma dramática com procedimentos épicos e poéticos” e levou ao “desenvolvimento da prática de teatralização de textos de ficção literária, salvaguardando sua epicidade constitutiva” (NUNES, 2000:40). A terceira tendência citada por Mauro Meiches, a interpretação de si mesmo, é aquela na qual “o ator mal se transforma: ele nos diz dele mesmo através do seu gesto, de sua maneira de falar e o trabalho criado lembra muito um encontro espontâneo” (MEICHES e FERNANDES, 1999:06). Este tipo de teatro se relaciona diretamente com as encenações baseadas na criação coletiva, no uso da improvisação e na utilização das experiências pessoais do ator ou da trupe de atores. Freqüentemente são trabalhos grupais, nas quais o grupo nos conta de “seu dia-a-dia, seus sonhos, sua relação com o teatro” (Idem, p. 08). O surgimento histórico dessa tendência remonta à década de sessenta e setenta do século passado, onde grupos como o Living Theatre e o Open Theatre, nos Estados Unidos, o La Candelaria, na Colômbia, e o Asdrúbal Trouxe o Trombone, no Brasil, já nos anos setenta, incorporaram o uso de improvisações e da gestualidade do ator ao seu processo de construção do espetáculo, criando uma dramaturgia que refletia as inquietações, as vivências e preocupações do grupo. O depoimento autobiográfico é uma das maneiras mais diretas de incorporar as preocupações, as idéias e a experiência vivida pelos atores e atrizes ao espetáculo. Em “Não desperdice sua única vida”, espetáculo estreado em 2005 em Belo Horizonte pela Cia Luna Lunera, com direção de Cida Falabella, há um exemplo claro do uso do depoimento pessoal na construção dramatúrgica da encenação. No início do espetáculo, que tem como um dos seus possíveis títulos “Auto Biográfico”3, a platéia é dividida em seis grupos. Cada um deles é conduzido a um espaço cenográfico diferente e acompanha o depoimento de um dos atores da companhia. Esse depoimento, um relato de fatos, opiniões e pensamentos pessoais, dá-se como uma conversa na qual cada ator apresenta-se como pessoa, como ele/ ela mesmo/a, não como personagem4. A possibilidade de enxergarmos no performer (que, 2 BRECHT, 2005:104. Além da renúncia à pretensão de uma metamorfose absoluta, transformando-se no personagem, o ator deve revelar aos espectadores sua opinião sobre ele, incitando-os a terem uma atitude crítica em relação ao personagem. (Cf. op. cit. p. 103-111. Ver também o “Pequeno organon para o Teatro”, itens 47 a 66). 3 Os outros, conforme consta do programa do espetáculo, são: As patinadoras do Planeta Dragão, ou Seis atores à procura do seu personagem, ou O mundo das precariedades humanas ou Nenhuma das opções anteriores. O teórico francês Philippe Lejeune define autobiografia como “relato retrospectivo em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, pondo ênfase na sua vida individual e, em especial, na história de sua personalidade” (LEJEUNE, 1991:48). 4 Na temporada em questão, realizada de 13 de maio a 03 de julho de 2005 no Centro Cultural da UFMG, os atores que relatavam à platéia sua biografia eram Ana Flávia (Fafá) Rennó, Cláudia Corrêa, Cláudio Dias, José Walter Albinati, Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 11 105 diante de nós, narra fatos que supomos verídicos e pertencentes à sua vida privada) não um personagem, mas a própria pessoa do ator, nos coloca diante de um atraente problema ontológico. Mas, antes, devemos diferenciar aqui o uso de elementos autobiográficos na construção do texto, de um relato que se pretende e intitula autobiográfico. O uso de elementos pessoais do ator ou performer é parte integrante do processo de construção de vários tipos de espetáculos, e não implica necessariamente na constituição de um relato estritamente pessoal. Pina Bausch, por exemplo, costumava partir das experiências e dos corpos dos seus bailarinos para suas composições coreográficas. Os estímulos da coreógrafa eram trabalhados por eles na forma de movimentos, palavras, sons; depois, “por meio da repetição, as histórias pessoais e os sentimentos que elas evocam são mais e mais transformados e dissociados da personalidade dos bailarinos, e re-moldados em uma forma estética” (FERNANDES, 2000:45). A partitura criada ou o depoimento de cada bailarino não só eram retrabalhados, fragmentados e reconstruídos buscando uma formalização e um resultado estético, como também muitas vezes esse material era utilizado por outras pessoas (essa utilização também ocorreu em “Não desperdice...”, onde, na segunda parte do espetáculo, os atores diziam fragmentos de relatos que não eram o seu). De uma forma semelhante, embora com um caráter um pouco diferente, é a relação do ator com seu trabalho no chamado Processo Colaborativo5. Também nesse processo há a utilização de materiais pessoais do ator, e muitas cenas são criadas a partir da história de vida e do depoimento pessoal dos atores, sendo que esse material também é retrabalhado e utilizado por outros atores (RINALDI, 2006). A principal diferença está na co-autoria assumida e desejada pelos integrantes da equipe de criação, incluídos aí os atores. Para Antônio Araújo, no Processo Colaborativo o depoimento pessoal pode funcionar não só como instrumento de pesquisa (no caso do Teatro da Vertigem, essa pesquisa frequentemente é temática), mas também se transformar no “próprio material bruto de concretização da cena” (ARAÚJO, 2002), que é construída sobre este material. O depoimento pessoal pode assumir não só um caráter de desvelamento, de confissão de um segredo ou testemunho, mas também possuir a “qualidade de uma presença cênica, de expressão de uma visão particular ou de um posicionamento frente à determinada questão. O depoimento é uma qualidade de exposição de si próprio” (RINALDI, 2006:139). Quando advém da biografia pessoal do artista, esse depoimento muitas vezes possui uma carga emocional intensa, estando associado a memórias e sensações do ator e preenchido por conteúdos simbólicos profundos. Marcelo Souza e Silva e Odilon Esteves (Maria Alice Rodrigues completava o elenco). 5 Antônio Araújo, diretor do Teatro da Vertigem, conceitua processo colaborativo como “uma metodologia de criação em que todos os integrantes, a partir de suas funções artísticas específicas, têm igual espaço propositivo, trabalhando sem hierarquias – ou com hierarquias móveis, a depender do momento do processo – e produzindo uma obra cuja autoria é compartilhada por todos” (ARAÚJO, 2006:127). Nesse processo, atores, diretor e dramaturgo, além dos outros profissionais empenhados na construção da encenação, “num embate corpo-a-corpo dentro da sala de ensaio”, tentam “criar juntos um espetáculo” (Id. Ibidem). Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 11 106 Mesmo em se tratando de um depoimento autobiográfico, não devemos nos esquecer que um texto foi elaborado, que esse ator deve repeti-lo em toda temporada (resguardado os ajustes que esse texto pode sofrer – pequenos cortes, mudanças de palavras ou coisas semelhantes – ou mesmo sua reelaboração ao longo do tempo), e que há um trabalho de direção não só no sentido de selecionar os elementos que comporão esse depoimento, mas de estabelecer a forma como eles devem surgir para o público. Porém, no espetáculo da Cia. Luna Lunera o trabalho estético realizado sobre os depoimentos pessoais não lhes tira o caráter de tratarem-se de depoimentos, que se propõem como encontros íntimos, às vezes confessionais, entre atores/atrizes e platéia. Não se camufla o fato de que estamos diante de uma encenação, mas também não se opta por criar uma distância entre o ator, o texto que está sendo proferido e a platéia. A questão, ontológica, que surge, é a seguinte: a partir de que momento o que era uma ação espontânea e genuína do ator deixa de sê-lo e passa a ser representação? Ou, dito de outra forma, tendo o ator consciência do estado de atuação e da circunstância de fazer parte de uma cena, havendo preparado o depoimento como elemento de uma encenação, o seu texto continua mantendo para ele um caráter de “desvelamento”, de um desnudar-se e revelar algo íntimo e pessoal? Apesar de tratar-se de algo “real”, não inventado, aquela preparação não lhe conferiria o mesmo status de um texto ficcional? Do ponto de vista do espectador, pelo fato de estar presenciando uma encenação (um evento organizado artisticamente), a presença de uma pessoa em cena seria revestida de um caráter ficcional (podendo, assim, ser identificada a um personagem) ou a partir de que momento essa ficção é substituída pela realidade (restando apenas a pessoa do ator/atriz em cena)? Um dos principais aspectos dessa dramaturgia que se baseia no depoimento pessoal, desse texto construído a partir das vivências e testemunhos de pessoas (mesmo quando estas não são os atores da peça, aqueles que irão interpretar aquele texto ou representar aquela cena no espetáculo), é o de trazer à baila questões atuais, que estão sendo experimentadas pelos atores e atrizes, e, dessa forma, aproximar público e performers, os espectadores e a encenação. A opção por uma temática contemporânea, retirada dessas vivências e experiências, normalmente tem como um dos seus intuitos estabelecer uma comunicação mais direta entre palco e platéia. Trazendo questões que se relacionam com o dia-a-dia dos próprios criadores, propõe-se uma dramaturgia que reflete problemas e inquietações que espelham a sociedade onde estas pessoas estão inseridas, frequentemente atingindo uma comunicação mais imediata com a platéia e um nível de empatia intenso. Podemos dizer que o depoimento pessoal faz parte dessa tendência: o que o espectador vê no palco não é uma “ficção” (ou, ao menos, não se apresenta como tal), mas sim um pedaço real e concreto da vida de um ser humano exposto ali, em cena. Teoricamente, o efeito seria o mesmo de um documentário (se admitirmos que o Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 11 107 documentário tem a capacidade de retratar o “real”): não são atores representando, mas pessoas “de verdade” mostrando seus dramas, desejos e opiniões. Daí decorre que o caráter ficcional da representação se dilui, ou mesmo desaparece quase que por completo (o que de certa forma subverte a expectativa do público: não é o mergulho em uma ficção o que espera ao entrar em uma sala de teatro?). A ruptura se instaura: não é mais um ator que está no palco, mas um ser humano de verdade, com vontades, aflições, alegrias e tristezas; ele não está ali para representar, mas para nos contar algo de importante, de pessoal e íntimo. Naquele instante ele pára de “fingir”, de representar; assume-se enquanto pessoa e desvela-se para o espectador. É um momento em que a sinceridade (se supormos que é possível atingi-la) é inquestionável: ele não mais simula ser outra pessoa6, e o que diz não são palavras escritas por outro, um dramaturgo, mas surgem no calor do momento (aparentemente). Não vamos entrar no momento no mérito de se “ser verdadeiro” ou não sê-lo é um ato mais ou menos artístico. Talvez o seu valor seja de outra estirpe. A par de toda controvérsia possível entre o real e o ficcional, no palco o “verdadeiro” ganha outras conotações, por sua relação com o que é verossimilhante e com o que é esperado em determinada situação. Durante o espetáculo todo o peso da tradição teatral e o “horizonte de expectativas” do espectador atuam como condicionantes para a percepção dessa verdade. No século XVIII Diderot já especulava sobre o assunto: Refleti um momento sobre o que se chama no teatro ser verdadeiro. Será mostrar as coisas como elas são na natureza? De forma nenhuma. O verdadeiro neste sentido seria apenas o comum. O que é pois o verdadeiro no palco? É a conformidade das ações, dos discursos, da figura, da voz, do movimento, do gesto, com um modelo ideal imaginado pelo poeta, e muitas vezes exagerado pelo comediante. Eis o maravilhoso. Este modelo não influi somente no tom; modifica até o passo, até a postura. Daí vem que o comediante na rua ou na cena são pois personagens tão diferentes que mal se consegue reconhecêlos. (DIDEROT, 2005:228-29) Interessa-nos aqui perceber a aporia levantada por esse procedimento, o depoimento autobiográfico: ao falar de si mesmo o ator deixa de representar e o personagem e a ficção desaparecem, ou trata-se apenas de uma categoria distinta do mesmo fato? A representação (a ficção enquanto corte na realidade cotidiana) continua presente, o personagem continua existindo não importa a qualidade do texto dito pelo ator, sua veracidade ou ficcionalidade? Para Anatol Rosenfeld em toda obra artística há associação de um “ser em si”, fundado no plano real, e de um “ser apenas para nós”, de ordem imaginária (ROSENFELD, 6 Phlippe Lejeune traz o conceito de “pacto autobiográfico”, pelo qual o autor assume com o leitor (no nosso caso, o espectador) o compromisso não de “’dizer a verdade, toda a verdade, nada mais que a verdade’, senão restringe-se ao possível (a verdade tal como se me parece, na medida em que a posso conhecer, etc. deixando margem aos inevitáveis esquecimentos, erros, deformações involuntárias, etc)” (LEJEUNE, 1991, p. 57). Dessa forma, “a identidade do autor com o narrador e o tema, a vida individual, as experiências pessoais do ator, conferem ao depoimento autobiográfico o caráter de uma texto referencial. Eles trazem uma informação sobre uma realidade que é exterior ao texto cênico, e pode, portanto, ser verificada. Não é apenas verossimilhante, traz não o “efeito de realidade”, mas a imagem do real.” (SILVA, 2016:68) Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 11 108 1976:30). O fenômeno básico do teatro é a metamorfose do ator em personagem: as ações desempenhadas, o gesto e a voz são reais, mas o que eles revelam não o é, situa-se no plano da ficção. Os personagens e o mundo em que se situam são irreais: são “seres puramente intencionais”, de uma ficcionalidade mediada por pessoas reais, os atores. Porém, quando o ator se apresenta como ele mesmo, existindo uma espécie de “identidade icônica” entre sua pessoa e aquilo que ele representa7, o estatuto de ficção desaparece? Luis Otávio Burnier, em seu livro A arte do ator – da técnica a representação, faz uma interessante distinção entre Interpretação e Representação. Para ele, quando um ator “interpreta um personagem, ele está realizando uma tradução de uma linguagem literária para a cênica; quando ele representa, está encontrando um equivalente” (BURNIER, 2001:21). Assim, o intérprete seria um intermediário, alguém que está entre – no caso entre o personagem e o espectador (fazendo aquela mediação mencionada por Rosenfeld). Moldando-se à persona, cuja existência anterior é definida pelo dramaturgo, buscando suas características, o ator se esforça por traduzi-la, de acordo com as suas possibilidades, para o palco. Na opinião de Burnier, “o ator que não interpreta, mas representa, não busca um personagem já existente, ele constrói um equivalente, por meio de suas ações físicas” (idem, p 23). Poderíamos aqui dizer que, ao estruturar seu relato pessoal e transformá-lo em uma série de ações a serem reapresentadas diversas vezes durante a carreira do espetáculo, o ator representa a si mesmo, construindo um equivalente de sua própria pessoa? Pensemos qual a relação existente entre o personagem e o seu texto, com uma pessoa e o que ela diz em sua vida ‘real’. Aqueles que já tiveram a oportunidade de representar em um palco, de criar um espetáculo, construindo as cenas através de improvisações, laboratórios, ensaios e workshops, de representar uma peça durante toda uma temporada, sabem que o ato de enunciação do texto passa por diversas fases. Estranhamento, assimilação e desconforto com as palavras, a busca da pausa e do tempo correto, a lida para encontrar o tom e o ritmo da frase, a relação com o gesto, atores e atrizes passam por estes momentos e descobertas ao longo do seu trabalho, e que ocorrem não só no período de ensaio, mas durante as próprias apresentações. Processo em parte consciente, fruto de alguma observação vinda de alguém de fora (inclusive o próprio diretor do espetáculo, ele também um observador), em parte movido por uma insatisfação com o próprio desempenho, buscando justamente aquela “verdade”, uma adequação entre texto e gesto, forma e conteúdo. Mesmo um texto criado por um ator durante um improviso pode soar estranho ou difícil de ser dito por ele mesmo com o sentido e a emoção obtidos 7 Keir Elam lembra que a similitude existente entre os signos visuais colocados em cena e seus referentes reais nem sempre está só ao nível da aparência, vendo no teatro essa possibilidade de identidade: “O signo-meio (suporte) denotando um rico traje de seda pode tanto ser um rico traje de seda quanto uma ilusão criada por uma pintura numa tela, uma imagem num filme ou uma descrição. A afirmação máxima da identidade icônica literal encontra-se em um dos gestos feito pelo Living Theatre nos anos 60: Julian Beck e Judith Malina declararam estar representando no palco exatamente a si mesmos, então a similaridade entre signos e objetos tornava-se – supostamente – absoluta.” (ELAM, 1980: 22-23. Tradução minha). Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 11 109 no ensaio ou laboratório. Algo idêntico não ocorreria com um depoimento, uma vez transformado em falas a serem repetidas noite após noite pelo intérprete? O texto que ele criou durante os ensaios é fixado e trabalhado (às vezes por um dramaturgo ou alguém que lhe faça as funções) no sentido de adquirir uma consistência e uma inteligibilidade que quase sempre a linguagem espontânea não possui. Keir Elam lembra que o drama (o texto dramatúrgico) apresenta algo como um modelo de encontro social “puro”, e o diálogo assume uma semelhança muito limitada com aquilo que acontece nos encontros lingüísticos cotidianos. Mesmo aqueles textos que buscam uma maior similaridade com as conversas do dia-a-dia, distinguem-se destas por sua melhor ordenação sintática, sua intensidade informacional, sua pureza ilocucionária e pela divisão entre a alternância dos interlocutores (normalmente não tão fragmentada e com menos trocas que na vida real. Cf. ELAM, 1980:178-82). O processo de transformação de um depoimento pessoal em um monólogo ou solilóquio segue o mesmo caminho. Falando sobre a constituição do personagem na literatura, Antônio Cândido observa que, nos textos literários, ele se torna mais “definido e definitivo” que as pessoas com as quais convivemos. Devido à necessidade de recorte que um drama ou romance possui as personagens têm maior coerência do que as pessoas reais (e mesmo quando incoerentes mostram pelo menos nisso coerência); maior exemplaridade (mesmo quando banais; pense-se na banalidade exemplar de certas personagens de Tchecov ou Ionesco); maior significação; e paradoxalmente, também maior riqueza – não por serem mais ricas do que as pessoas reais, e sim em virtude da concentração, seleção, densidade e estilização do contexto imaginário, que reúne os fios dispersos e esfarrapados da realidade num padrão firme e consistente (CÂNDIDO, 1987:35). No caso de “Não desperdice sua única vida”, não só o texto dito pelo ator, o depoimento pessoal, sofreu um trabalho de condensação, estilização e “limpeza”, mas também os gestos e inflexões do intérprete, os objetos utilizados e a movimentação passaram por um trabalho de estruturação durante o período de ensaios. A montagem da cena, criando não só uma seqüência como selecionando as partes mais significativas e marcantes da fala do ator, dota-a daquela exemplaridade e condensação a que Antônio Cândido se refere. Mesmo não se tratando de um personagem ficcional, já que a realidade a que se refere o ator é a de sua própria experiência, transforma-o assim numa espécie de “personagem de si mesmo”. Mas pode um ator interpretar a si mesmo8? Com sua fala transformada em “texto”, o ator se torna um exemplo ou paradigma de si e de todos que vivenciaram situações 8 Miriam Rinaldi, falando sobre o depoimento pessoal e o ator no processo colaborativo do Teatro da Vertigem, pondera que, nos ensaios, diante do ato de desvelamento de um ator “têm-se a sensação de estar compartilhando de algo único, que merece deferência, pois o que era segredo de um indivíduo passa a ser segredo de um grupo” (RINALDI, 2006:140). Na passagem da fase de ensaios para a apresentação pública, o performer, que se comporta como “ele próprio”, passa a agir e falar como um “outro”, o ator: “... por mais que um ator apresente-se como ‘ele próprio’, sem nenhuma intenção de ser ‘um outro’, no transcorrer dos ensaios esse ‘eu’ vai se distanciando, ou melhor, projetando-se para se constituir em um ‘eu personagem’.” (Idem, p. 141) Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 11 110 semelhantes. Assim como o personagem se reveste de uma densidade diversa de uma pessoa em situação cotidiana, o ator, naquele momento, transforma sua vivência em algo legível e admirável (digno de ser visto) por toda a humanidade – no caso, o público que acorreu à apresentação do espetáculo. Em seu Paradoxo do Comediante, Diderot afirmava que o talento do ator consistia não no sentimento em si, mas em expressar escrupulosamente os sinais externos desse sentimento. O ator, que deveria ter consciência de tudo o que executa no palco, cujos acentos “são medidos, fazem parte de um sistema de declamação”, e que sabe que uma fala e um gesto “para ser levados ao ponto justo, foram ensaiados cem vezes” (DIDEROT, 2005:224), nada deve sentir. Se concordarmos com Diderot, chegaremos então, no caso do depoimento autobriográfico, a um duplo paradoxo (que guarda enorme similaridade com o poeta de Fernando Pessoa): o ator fingindo sentir um sentimento que ele deveras sentiu. REFERÊNCIAS ARAÚJO, Antônio. “A gênese da Vertigem: o processo de criação de O Paraíso Perdido”. Dissertação de mestrado, 2002. ___ . “O processo colaborativo no Teatro da Vertigem”. In Sala Preta - Revista de Artes Cênicas n° 6. São Paulo: 2006, p. 127-133 BRECHT, Bertold. Estudos sobre teatro. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2005. BURNIER, Luis Otávio. A Arte do Ator – Da Técnica à Representação. Campinas: Editora da Unicamp, 2001. CÂNDIDO, Antônio et al. A Personagem de Ficção. 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Recuperado de https://periodicos.furg.br/cadliter/article/ view/9194 Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 11 112 DOI 10.22533/at.ed.00000000000 CAPÍTULO 12 OS PRINCÍPIOS DA PESQUISA: UMA BUSCA POR MULHERES DRAMATURGAS EM MACAPÁ Data de aceite: 16/04/2021 Data de submissão: 03/02/2021 Juliana Souto Lemos Universidade Federal do Amapá Professora do Departamento de Letras e Artes Macapá – Amapá http://lattes.cnpq.br/0665449948229639 Mariana de Lima e Muniz Universidade Federal de Minas Gerais Professora Titular da Escola de Belas Artes Belo Horizonte – MG http://lattes.cnpr.br/4036174612294393 RESUMO: O objetivo deste artigo é apresentar a pesquisa de mestrado, em fase de desenvolvimento, a qual pretende identificar as mulheres dramaturgas que contribuíram com seus textos para a formação da história do teatro na cidade de Macapá, no período compreendido pelas duas primeiras décadas do século XXI. Nesse contexto, serão apresentados os aspectos iniciais da pesquisa, como referencial teórico e metodologia, bem como seus objetivos e propostas de desenvolvimento. PALAVRAS - CHAVE: Dramaturgia, Macapá, História do teatro. THE PRINCIPLES OF RESEARCH: A SEARCH FOR DRAMATURG WOMEN IN MACAPÁ. ABSTRACT: The objective of this article is to present the master’s research, in development phase, which intends to identify the women playwrights who contributed with their texts to the formation of the history of the theater in the city of Macapá, in the period comprised by the first two decades of the 21st century. In this context, the initial aspects of the research will be presented, as a theoretical framework and methodology, as well as its objectives and development proposals. KEYWORDS: Dramaturgy, Macapá, Theatre History. 1 | OS PRINCÍPIOS DA PESQUISA1 Tudo começou com o gosto pela dramaturgia e o desejo de montar um espetáculo teatral sobre o universo feminino. Desse gosto e desejo, nasceu a necessidade de entender que “universo” era este, e como ele era e/ou é traduzido por mulheres dramaturgas ao longo dos tempos. Assim nasceu um motivo para a realização desta pesquisa, que, a princípio, seria realizada em Belo Horizonte, minha cidade natal, com o intuito de identificar e estudar as dramaturgas desta cidade. Contudo, após ser aprovada em concurso público no estado do Amapá, e tendo me mudado para a cidade de 1 Este trabalho é parte constituinte da pesquisa de mestrado “A dramaturgia escrita por mulheres em Macapá (AP): 1996 a 2016.” Orientada pela Profa. Dra. Mariana de Lima e Muniz defendida em fevereiro de 2017 junto ao Programa de Pós- Graduação em Artes da Escola de Belas Artes – UFMG e financiada por meio de Cotas do Programa de Pós-Graduação – CNPQ Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 12 113 Macapá, capital do estado, vi-me diante da possibilidade de contribuir positivamente para as pesquisas deste lugar ainda tão pouco estudado. Aqui me refiro ao lugar do teatro, ao lugar da pesquisa em teatro, seja ela teórica ou prática, levando em consideração a carência de pesquisas publicadas sobre o teatro do Amapá, mais especificamente de Macapá. Diante desse contexto, o objetivo da pesquisa em questão é identificar as mulheres dramaturgas que contribuíram para a formação da história do teatro na cidade de Macapá, no período compreendido pelas duas primeiras décadas do século XXI, com o intuito de formar um catálogo contendo informações básicas sobre a vida e a obra de cada dramaturga encontrada. Contudo, para tentar entender e contextualizar a situação de participação da mulher na dramaturgia brasileira, foi dado início à pesquisa. Tendo como ponto de partida a busca por referencial bibliográfico com foco na expressão ‘dramaturgia feminina’, alguns nomes de mulheres pesquisadoras foram encontrados. Esses nomes geralmente estavam vinculados à autoria de artigos publicados em anais de congressos e pesquisas de mestrado e/ou doutorado voltados para o tema, em sua maioria ligados a cursos de Letras do país. Levando em consideração o material encontrado nesse primeiro momento, tiveram destaque os trabalhos de duas mulheres: Maria Stella Orsini, com a publicação do artigo “Maria Angélica Ribeiro: uma dramaturga singular no Brasil do século XIX”, publicado em 1988, na Revista do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo; Valéria Andrade Souto-Maior, com a publicação do livro Índice de dramaturgas brasileiras do século XIX, publicado pela editora Mulheres em 1996, derivado da sua pesquisa de mestrado em Letras na Universidade Federal de Santa Catarina. O trabalho de Maria Stella Orsini (1988) destacou-se por ter sido o registro mais antigo a respeito da dramaturgia de mulheres brasileiras encontrado, além de abordar indagações e assuntos relevantes ao tema. Segundo Orsini (1988), é estranho não existirem estudos que analisem o talento de mulheres que se dedicaram à criação teatral e que, de certa forma, foram representantes da vanguarda cultural ao longo do século XIX no Brasil. Segundo a autora, é comum a existência de trabalhos a respeito das mulheres intérpretes, mas pouco se fala acerca das mulheres dramaturgas dessa época. Parece que os estudos sobre as primeiras mulheres que escreveram para o teatro ficaram proscritos da literatura especializada. A omissão foi uma constante por parte dos escritores. [...] por que os historiadores não conferiram à mulher o lugar que merecia? Como escrever a história do teatro brasileiro ignorando a participação das autoras de textos teatrais? Como deixar de considerar a literatura dramática sob uma perspectiva feminina? (ORSINI, 1988, p. 75-76). Este fato – a omissão de informações a respeito das dramaturgas – é justificado, ainda por Orsini, pelo contexto de submissão e humilhação em que vivia a maioria das mulheres daquela época. O descuido na educação dada às meninas estava presente no Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 12 114 panorama educacional e cultural da primeira metade do século XIX. Quando privilegiadas com a educação, recebiam lições de francês, trabalhos manuais e aprendiam a tocar piano. Ou ainda, A regra era reclusão, o regime de gineceu, que engordava o corpo e fazia murchar a inteligência; [...] a regra era o casamento muito cedo, as maternidades anuais, a autoridade do marido sucedendo à do pai; a regra era a minoridade prolongada até a velhice (PEREIRA, apud. ORSINI, 1988, p. 76). De acordo com Orsini (1988), as mulheres não eram, de maneira geral, estimuladas às letras, e menos ainda à leitura de artes dramáticas, pois os atores, e especialmente as atrizes, não gozavam de boa fama na sociedade da época. Contudo, levando em consideração os quase trinta anos de realização da pesquisa de Orsini (1988) e buscando informações sobre a dramaturgia feita por mulheres produzida nos séculos XX e XXI, foram verificadas as principais revistas de artes cênicas brasileiras – Estudos da Presença, Moringa, Pós, Repertório, Sala Preta, Urdimento –, incluindo o Portal de Periódicos da CAPES, Portal de Teses da CAPES e Anais do Congresso ABRACE, no período de 2009 a 2015, e concluiu-se que ainda é limitado o trabalho realizado a respeito da dramaturgia feminina no Brasil. Afinal, averiguando volume por volume de cada revista, ano a ano dos Anais da ABRACE e buscando pela expressão ‘dramaturgia feminina’ nos portais da CAPES, foram encontrados 35 textos, abarcando artigos, teses e dissertações. Esse pequeno acervo foi classificado em quatro categorias distintas, definidas pela autora deste artigo de acordo com os resumos e palavras-chave apresentados. A primeira categoria, com 11 arquivos encontrados, dedicou-se à análise de algum aspecto feminino nos textos de autoria masculina; a segunda, com quatro arquivos encontrados, analisou algum aspecto feminino em textos de autoria feminina; a terceira categoria, com 18 arquivos, realizou a análise de algum aspecto técnico ou conceitual do teatro em textos de autoria feminina; por fim, a quarta categoria, com dois arquivos, destacou o registro histórico da dramaturgia feita por mulheres, apresentando vida e obra de uma dramaturga específica. Nos 35 arquivos encontrados, constatou-se também que as dramaturgas apresentadas/pesquisadas, em geral, desenvolveram seus trabalhos no Rio de Janeiro ou em São Paulo. Entre os nomes de dramaturgas mais citados estavam: Maria Adelaide Amaral, Consuelo de Castro, Christiane Jatahy e Hilda Hilst, todas com suas produções desenvolvidas já na segunda metade do século XX. Contudo, voltando à pesquisa de Maria Stella Orsini (1988), verifica-se que a autora, além de ilustrar um panorama da situação da pesquisa em dramaturgia feita por mulheres no Brasil, apresenta a vida e a obra da primeira dramaturga brasileira, Maria Angélica Ribeiro (1829-1880). Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 12 115 É relevante observar que essa dramaturga viveu de acordo com os padrões sociais da época; porém, ousou do ponto de vista profissional. Tendo ideias próprias, foi uma pioneira ao romper com certas normas tradicionais e, valendo-se da sua condição de escritora, contribuiu para denunciar as tradições do sistema (ORSINI, 1988, p. 78). Em Cancros sociais, drama original em cinco atos, Maria Angélica Ribeiro, segundo Orsini (1988), retrata as relações de poder na sociedade da época, identificando como opressor o sujeito detentor da mão de obra escrava e como oprimido a pessoa escravizada, principalmente as mulheres escravizadas, que, totalmente dominadas, eram oprimidas no trabalho e exploradas sexualmente pelos patrões. Nesse contexto, Maria Angélica Ribeiro aponta como consequência do sistema escravista a desestruturação do sentido de família, dificultando a estruturação social e psicológica do escravizado. Apresentando o contexto histórico, social e cultural da época em que viveu a dramaturga em questão, como também seu contexto de vida familiar, o trabalho de pesquisa desenvolvido por Maria Stella Orsini (1988) apontou, ao desenvolvimento da pesquisa de mestrado em questão, para uma possibilidade de análise dos textos dramáticos escritos por mulheres em Macapá. Corroborando com o fato de a análise textual se dar a partir dos contextos socioculturais e acrescentando a justificativa da necessidade de registros sobre a história do teatro em Macapá, destaca-se o trabalho de Valéria Andrade Souto-Maior (1996). Esta autora, enquanto estudante de mestrado da Universidade Federal de Santa Catarina, apresentou, em 1995, a pesquisa denominada O florete e a máscara: Josephina Álvares de Azevedo, dramaturga do século XIX. Em sua pesquisa, Valéria Souto-Maior discorre a respeito das dramaturgas do século XIX, explorando mais a fundo o trabalho de apenas uma das dramaturgas, Josephina Álvares de Azevedo. No mesmo trabalho, com o intuito de reunir e disponibilizar informações a respeito das dramaturgas do século XIX, a autora formatou o “Índice de dramaturgas brasileiras do século XIX”, posteriormente reorganizado e publicado como livro pela Editora Mulheres, em 1996. No Índice de dramaturgas brasileiras do século XIX (1996), Valéria SoutoMaior reuniu informações de diversas fontes a respeito das dramaturgas brasileiras dos séculos XVIII e XIX, elaborou notas biográficas bastante resumidas (já exploradas mais detalhadamente em outras fontes e em sua pesquisa de mestrado) e organizou a bibliografia das dramaturgas apresentadas. Ao todo, 54 dramaturgas foram apresentadas da seguinte forma: Dramaturgas brasileiras – século XIX (trinta e oito nascidas entre 1829 e 1895) Dramaturgas brasileiras “sem data” (três sobre as quais há informações apenas quanto ao local de nascimento e as respectivas obras) Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 12 116 Dramaturgas brasileiras apenas com pseudônimo (quatro, sobre as quais só foi possível saber nome e pseudônimo) Dramaturgas brasileiras – século XVIII (três, nascidas entre 1775 e 1779) Dramaturgas portuguesas atuantes no Brasil – século XVIII e XIX (seis, nascidas em Portugal, uma no século XVIII e as outras no XIX) (SOUTOMAIOR, 1996, p. 11-12). Sem o intuito de analisar as informações apresentadas no Índice de dramaturgas brasileiras do século XIX (1996), mas apenas explorá-las, percebem-se alguns fatores comuns às dramaturgas. Um deles é a instrução, haja vista que todas as dramaturgas apresentadas (com exceção daquelas de quem não se têm registros completos) desempenhavam alguma profissão, o que leva a concluir que todas elas tiveram acesso à formação educacional. Para melhor elucidar, apresenta-se um quadro preparado pela autora deste trabalho, contendo as profissões e o quantitativo de dramaturgas que as exerceram. Observa-se que nem todas foram classificadas como dramaturgas e que a maioria foi apresentada com mais de duas profissões. Índice de dramaturgas brasileiras do século XIX Profissões desempenhadas Profissões exercidas Total de dramaturgas Profissões exercidas Total de dramaturgas Profissões exercidas Total de dramaturgas Atriz 08 Dançarina 01 Médica 01 Bibliógrafa 01 Declamadora 02 Novelista 01 Biógrafa 02 Desenhista 01 Pianista 02 Cantora 01 Dramaturga 39 Poetisa 28 Compositora 04 Educadora 01 Professora 22 Concertista 01 Ensaísta 03 Radialista 01 Conferencista 03 Escritora 01 Repentista 01 Contista 14 Jornalista 20 Romancista 14 Cronista 07 Maestrina 02 Quadro 1 - Quantitativo de dramaturgas e suas profissões, de acordo com Valéria Andrade Souto-Maior (1996). Ainda observando-se o Índice de dramaturgas brasileiras do século XIX (1996), destacam-se os locais de nascimento e/ou de falecimento das dramaturgas brasileiras registradas, o que é bem visualizado no mapa Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 idealizado pela autora deste artigo e Capítulo 12 117 sistematizado por Kerly Araújo Jardim, contendo o quantitativo de dramaturgas que nasceram e ou morreram em cada estado brasileiro presente no Índice de dramaturgas brasileiras do século XIX (1996). Ressalte-se que, na pesquisa de Valéria Souto-Maior, não foi possível saber onde muitas dramaturgas nasceram e/ou onde faleceram, além de que algumas não nasceram ou faleceram no Brasil. No entanto, é possível perceber que, nos períodos abordados por Valéria Andrade Souto-Maior (1996), levando em consideração a quantidade de dramaturgas encontradas, alguns estados da federação contaram com significativa participação feminina na dramaturgia, enquanto outros tiveram pouca ou nenhuma participação feminina registrada. Este é o caso do estado do Amapá, que será estudado na pesquisa de mestrado em questão. O fato de o Amapá não fazer parte do Índice de dramaturgas brasileiras do século XIX (1996) suscitou a dúvida a respeito da existência de dramaturgas neste lugar e reforçou a importância de se fazer um registro dessas mulheres, no caso de se constatar a existência. Figura 1 - Mapa de identificação dos estados brasileiros que tiveram dramaturgas no século XIX, segundo Valéria Andrade Souto-Maior (1996). Mapa elaborado pela autora deste artigo. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 12 118 Desse modo, a dissertação em questão prevê o desenvolvimento de um catálogo com informações relevantes sobre as dramaturgas que viveram e/ou produziram textos dramáticos em Macapá, entre 2000 e 2016. 2 | A METODOLOGIA Para atingir o objetivo deste trabalho, propõe-se a abordagem qualitativa como método de pesquisa. De acordo com Augusto Triviños, a pesquisa qualitativa surgiu na década de 1970 nos países da América Latina, juntamente com o interesse pelos aspectos qualitativos da educação, identificando que muitas informações até então quantificadas necessitariam ser interpretadas de forma mais ampla. Atualmente, sendo mais aceita, a pesquisa qualitativa passou por períodos de críticas e desaprovações. Abriu-se caminho, desta maneira, à falsa dicotomia quantitativo-qualitativo. E alguns rejeitaram a medida no ensino por absurda, artificial e inútil; enquanto outros expressavam que o enfoque qualitativo era, simplesmente, um exercício especulativo sem valor para a ciência (TRIVIÑOS, 1987, p. 116). Contudo, segundo Triviños, tal problema dicotômico seria solucionado com a hipótese de que “toda pesquisa pode ser, ao mesmo tempo, quantitativa e qualitativa.” (TRIVIÑOS, 1987, p. 118). Porém, para o autor, geralmente os pesquisadores quantitativos não ultrapassam os resultados estatísticos para alcançarem os sociológicos e processuais oferecidos pela abordagem qualitativa, estagnando assim tal divisão. Ao longo dos anos, a massa de pesquisadores das universidades vem se esforçando para atingir os âmbitos teóricos e práticos da pesquisa qualitativa, ao mesmo tempo em que amadurecem os novos posicionamentos de tal método (TRIVIÑOS, 1987, p. 119). Face a essa discussão, e pensando em abarcar os vários processos da pesquisa qualitativa, propõe-se, neste trabalho, a “Triangulação”, algo considerado por Uwe Flick como um avanço das tendências metodológicas. Para o autor, “A triangulação supera as limitações de um método único por combinar diversos métodos e dar-lhes igual relevância.” (FLICK, 2009, p. 32). Nesse sentido, serão utilizados quadros com informações quantitativas a respeito da formação educacional, profissional, idade e local de nascimento das dramaturgas encontradas. Para tanto, a pesquisa será dividida em três fases: fase exploratória, fase de coleta de dados ou delimitação do estudo e fase de análise sistemática dos dados (ANDRÉ, 2005). Na fase exploratória, pretende-se entender a história do teatro em Macapá. Para a realização desta fase, faz-se necessário o levantamento de referencial bibliográfico sobre a história de formação da cidade de Macapá, bem como da história de formação do teatro em Macapá. Este trabalho está sendo desenvolvido junto à Biblioteca Pública Elcy Lacerda, de Macapá, com foco em obras produzidas por autores macapaenses. Sobre a história Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 12 119 do teatro em Macapá, até o momento, foram encontradas algumas obras escritas pelo professor Doutor Romualdo Rodrigues Palhano, atual coordenador do curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal do Amapá. Devido à carência de registros publicados a respeito do tema, também estão sendo realizadas pesquisas em blogs de arquivos pessoais na internet e entrevistas com pessoas que, de alguma forma, participaram do processo de construção da história do teatro em Macapá. Na segunda fase, realizada concomitante à primeira, faz-se necessária a coleta de dados. Este processo se dará inicialmente por meio do emprego da “estratégia da bola de neve”, de modo que um caso leve ao outro, partindo de um ambiente mais amplo relacionado ao tema (FLICK, 2009, p. 113). Para dar início à “estratégia da bola de neve”, será feito o levantamento de grupos teatrais em funcionamento no período temporal abordado pela pesquisa. Posteriormente, será necessário fazer contato com as pessoas responsáveis por esses grupos. Por meio de entrevistas “semi-estruturadas centradas no problema” (FLICK, 2009, p. 154), elas responderão perguntas do tipo: quantas mulheres participaram ou participam do grupo; quais funções lhes foram atribuídas? Em seguida, tendo em mãos os nomes e contatos das mulheres dramaturgas participantes desses grupos, será feito o contato e nova entrevista “semi-estruturada centrada no problema”. Esta entrevista será realizada para se entender os contextos vivenciados por cada dramaturga. Até o momento, têm-se como fonte de dados informações publicadas nos livros do professor Dr. Romualdo Rodrigues Palhano (2001, 2013, 2014, 2015), com indicação de sete grupos teatrais organizados na segunda metade do século XX e com quase 50 nomes de mulheres participantes desses grupos. Outra fonte deriva do Coletivo de Artistas, Produtores e Técnicos em Teatro do Estado do Amapá (CAPTTA), que, com informações a respeito do seu histórico de atividades, disponibilizou o contato de 20 grupos em atividade em 2016 no estado do Amapá. Na terceira e última fase, será realizado o “Estudo Comparativo” dos dados apreendidos. “Em um estudo comparativo, não se observa o caso como um todo, nem em toda a sua complexidade; em vez disso, observa-se a multiplicidade de casos relacionados a determinados excertos” (FLICK, 2009, p. 135). Neste caso, serão comparados os contextos (culturais, educacionais, profissionais e sociais) vivenciados pelas dramaturgas encontradas. O ambiente, o contexto no qual os indivíduos realizam suas ações e desenvolvem seus modos de vida fundamentais, tem um valor essencial para que as pessoas alcancem uma compreensão mais clara de suas atividades. O meio, com suas características físicas e sociais, imprime aos sujeitos traços peculiares que são desvendados à luz do entendimento dos significados que ele estabelece (TRIVIÑOS,1987, p. 122). Com base nos contextos vivenciados pelas dramaturgas apresentadas no referencial teórico da dissertação, é possível perceber as “características físicas e sociais do meio”, impressas nos textos escritos por tais mulheres. Contudo, será que os textos das Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 12 120 dramaturgas de Macapá também exprimem seus contextos vivenciados? É o que se faz necessário analisar neste trabalho. Em posse de tais informações, colhidas ao longo das três fases da pesquisa, será construído o Catálogo de dramaturgas de Macapá: 2000-2016, organizado por nomes em ordem alfabética, contendo informações a respeito da vida e obra de cada dramaturga. REFERÊNCIAS ANDRÉ, M. E. D. A. Estudo de Caso em Pesquisa e avaliação educacional. Brasília: Liber Livro Editora, 2005. FLICK, Uwe. Introdução à pesquisa qualitativa. Trad. Joice Elias Costa. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2009. ORSINI, Maria Stella. Maria Ribeiro: Uma dramaturga singular no Brasil do século XIX. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 29, p. 75-82, 1988. Disponível em: <http://www. revistas.usp.br/rieb/article/view/70072>. Acesso em: 1 set. 2014. PALHANO, Romualdo Rodrigues. Artes Cênicas no Amapá: teorias, textos e palcos. João Pessoa: Sal da Terra, 2011. ___. Teatro no Amapá: artistas e seu tempo. João Pessoa: Sal da Terra, 2013. ___. Arque com arte: cultura, arte e educação no Amapá. João Pessoa: Sal da Terra, 2014. ___. Dramaturgia amapaense. João Pessoa: Sal da Terra, 2015. PORTAL DE PERIÓDICOS CAPES/MEC. Disponível em: <http://www.periodicos.capes.gov.br/>. Acesso em: 4 jun. 2016. PORTAL MEMÓRIA ABRACE – Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas. Disponível em: <http://portalabrace.org/memoria/>. Acesso em: 3 jun. 2016. PÓS: REVISTA DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES DA EBA/UFMG. ISSN: 19829507. ISSN ELETRÔNICO: 2238-2046. Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil. Disponível em: <http://www.eba.ufmg.br/revistapos/index.php/pos>. Acesso em: 30 maio 2016. REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS DA PRESENÇA - Brazilian Journal on Presence Studies. ISSN: 2237-2660 - Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil. Disponível em: <http://www.seer.ufrgs. br/presenca>. Acesso em: 30 maio 2016. REVISTA MORINGA ARTES DO ESPETÁCULO – Universidade Federal da Paraíba. ISSN Eletrônico: 2177-8841. Departamento de Artes Cênicas. João Pessoa, Brasil. Disponível em: http://periodicos.ufpb. br/index.php/moringa Acessado em 31/05/2016. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 12 121 REVISTA REPERTÓRIO TEATRO E DANÇA – Universidade Federal da Bahia. ISSN Eletrônico: 21758131. Salvador, Brasil. Disponível em: <http://www.portalseer.ufba.br/index.php/revteatro>. Acesso em: 31 maio 2016. REVISTA SALA PRETA – Universidade de São Paulo. ISSN: 2238-3867. São Paulo, Brasil. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/salapreta/index>. Acesso em: 1º jun. 2016. SOUTO-MAIOR, Valéria Andrade. Índice de dramaturgas brasileiras do século XIX. Florianópolis: Editora Mulheres, 1996. TRIVIÑOS, Augusto Nibaldo Silva. Introdução à pesquisa em Ciências Sociais: a pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 1987. URDIMENTO – REVISTA DE ESTUDOS EM ARTES CÊNICAS. Revista do Programa de PósGraduação em Teatro (PPGT). Centro de Artes (CEART). Universidade do Estado de Santa Catarina. Florianópolis, Brasil. Disponível em: <http://www.revistas.udesc.br/index.php/urdimento/index>. Acesso em: 2 jun. 2016. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 12 122 DOI 10.22533/at.ed.00000000000 CAPÍTULO 13 CORPO NO MOVIMENTO DE CRIAÇÃO Data de aceite: 16/04/2021 Data de submissão: 05/02/2021 Gabriela Gonçalves Faculdade de Dança Angel Vianna (FAV) Rio de Janeiro www.gabrielagoncalves.com RESUMO: O presente artigo é um corpo de pensamento que tem o intuito de ir desvendando, através de uma pesquisa teórica, os temas do corpo, da percepção, do tempo, do espaço, do movimento e do ato de criação. A vida cria, e nela estamos constantemente numa reinvenção de nós próprios e numa busca de aumentar as nossas potências de agir. É nesse viver que o corpo cria e avança no fluxo corrente de movimento. Através do resgate do seu sensível, do tempo e da abertura da sua percepção é que ele se torna um gerador de mudança. A pesquisa se desenvolve, seguindo uma linha evolutiva que interliga estes aspectos, recorrendo a conceitos desenvolvidos por pensadores como Bergson (2006), Deleuze (1999; 2008) e José Gil (2001). Formando assim um conjunto de reflexões que pretendem mostrar que quem habita um corpo está em constante movimento de criação. PALAVRAS - CHAVE: Arte, Dança, Tempo, Mudança, Criação. movement and the act of creation. Life creates, and in it we are constantly reinventing ourselves and seeking to increase our powers of action. It is in this living that the body creates and advances in the current flow of movement. Through the rescue of your sensitivity, time and the opening of your perception, the body becomes a generator of change. The research is developed, following an evolutionary line that links these aspects, using concepts developed by thinkers such as Bergson (2006), Deleuze (1999; 2008) and José Gil (2001). Thus forming a set of reflections that intend to show that whoever inhabits a body is in constant movement of creation. KEYWORDS: Art, Dance, Time, Change, Creation. CORPO NO MOVIMENTO DE CRIAÇÃO Esta pesquisa é um corpo de pensamento que evidencia como a vida nos pode levar além da percepção, além de nós mesmos e do nosso potencial criador, pois a vida continua constantemente a transformar a nossa noção de realidade, desenvolvendo-se sobre processos de abertura e sob o que permite o novo. Considero os temas do corpo, da percepção, do tempo e do ato de criação do novo conterem questões de importância atual, e espero que futuras descobertas e experiências possam coincidir na sensação que estas palavras transmitem. A sua ABSTRACT: This article is a body of thought that aims to unravel, through theoretical research, the themes of the body, perception, time, space, Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 significação não pretende ser conclusiva nem determinar pensamentos fechados. O tempo e a mudança, a dicotomia Capítulo 13 123 mente / corpo, uma nova forma de movimento e de pensar o corpo, o ato de criar, e a transcendência de tudo isso para o encontro com um todo unificado. A maior questão aqui presente é o facto de ser necessário abrir a percepção para a mudança. Como? Através do corpo e da sua capacidade de criar e de obter uma maior abertura, pelo resgate do sensível. (Tudo começou com um movimento de procura. Uma procura em que uma força maior empurrava em direção ao novo, através do próprio movimento que não se explica. Um movimento nem de lá nem de cá. Então, de onde? A realidade transformou-se, reconheço, e não me reconhecia mais. As sensações de aceleração do corpo, a perda das noções do tempo e do espaço e das crenças maiores. Era o poder de transformação. O aprender e a atenção. O encontro. E deixei-me levar pelo movimento e pelas emoções, a descoberta. Fui. Há experiências sensoriais descritas como inexplicáveis. Indo, não há mais o voltar atrás, nem tempos perdidos. Há coisas desconhecidas que preferi viver através da minha própria criação. Fui e Vim. Encontro-me tão bem aqui. Aqui, onde abracei o desconhecido.) Noções de tempo e mudança sempre foram temas de discussão, para quem vive num corpo, num intelecto e numa sociedade. Normalmente no nosso dia a dia, nós nos referimos a questões e pensamentos sobre o tempo e a mudança em ligação a outros conceitos como o espaço, o movimento, o corpo e a percepção. Concluímos de imediato que o domínio das ideias e do pensamento está em ligação direta com o domínio do corpo, pois todos estes termos nos remetem à interação de processos entre o corpo e a mente. Vivemos assim numa dualidade que muitas vezes entra em sintonia com a realidade em que estamos inseridos. Dessa realidade, surgem exemplos como a melancolia, a nostalgia, solidão, tristeza ou amor, que são indícios de um sentimento maior, presente numa individualidade atual que se auto-contempla e não pode mais acreditar na ilusão da sua imagem. Na tentativa de recuperar a unidade do sentido, são as experiências temporais e sensórias que nos permitem re-significar o que se encontra sem sentido, ou melhor, resignificar o que é sentido. No entanto, no esforço para compreender a nossa natureza como indivíduos com consciência, temos determinado repetidamente o domínio do corpo em oposição ao das ideias. Procuramos constantemente um significado objetivo da realidade. Contudo, num mundo em constante transformação, definições obstinadas como esta podem ser seriamente limitativas e reduzir a consciência, quando tomadas como verdades incondicionais. Mas algumas descobertas começam a demonstrar que, na natureza, existe um movimento de energia macrocósmico que inevitavelmente nos une num só. Uma só substância em constante transformação. Então, como pensar o corpo? A nossa condição humana encontra-se numa matéria objetiva, mas isso por si só não alcança o sentido, a não ser aliado a algo imaterial, subjetivo que não podemos tocar nem cheirar, mas podemos sentir e ter igualmente uma percepção real. Logo, é Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 13 124 importante despertar a atenção para o pensar e o fazer, para o abstrato e o concreto. Bem como para o que acontece entre os dois, para a energia que oscila entre os dois polos, determinando o nosso pensamento para a mesma energia oculta em toda a parte. Cada um de nós recebe, organiza e interpreta toda a informação sensória de uma forma individual e assim cria uma construção mental, uma imagem ou um conceito de um objeto ou de uma situação específica. Este processo de abstração do chamado “mundo da matéria” constitui a percepção. Esta não é um procedimento predeterminado e também não é puramente passivo, pois a percepção vive de diferenças. Somos diferenças em constante movimento. Para vivermos num modelo de realidade onde uma nova ordem de pensamento que abraça todos os tipos de expressão e abre espaço para múltiplas interpretações ser inteligível, só será possível se nos libertarmos do quadro espaço/temporal que nos torna humanos, pois não apenas somos condicionados pelos nossos ideais históricos e culturais, assim como pela nossa própria fisicalidade. Estando muitas vezes impedidos de considerar a realidade deste modo mais aberto, podemos sempre ousar a tentativa de derrubar a nossa insaciável vontade de determinar “o que é”, estabelecendo algo também aberto a favor da relatividade. E isso pode dar acesso à realidade como um processo de se tornar, não procurando o “eu sou”, mas compreendendo o eu me torno, constantemente. A consciência nos fornece a habilidade de responder o que nós percebemos, e também de considerar o que se esconde além da representação, além da percepção. Sendo assim e sentindo que há uma fonte inesgotável para o ser humano, para que ele varie de resposta a determinadas situações e para que invente novos horizontes, podemos deixar o presente em aberto? Pois, o processo de evolução criadora é uma mudança permanente. A vida consiste em mudança. O possível ultrapassa o real e o impossível é real; o real é pura mudança que surpreende e traz o novo, constantemente. Para podermos perceber a mudança, temos que abrir a percepção, temos que intuir o movimento contínuo da mudança. O movimento é infinitamente desdobrável, é a essência. Nós estamos acostumados a ver a mudança em separações de instantes, pois, a inteligência ocorre e procede assim, é uma espécie de modelo institucionalizado, logo, perdemos a apreensão da realidade que é, na sua essência, mudança – Vida – movimento crescente e contínuo de mudança. Prestar atenção à vida é desligar-se dos automatismos, é abrir e alargar a percepção para a mudança. E assim chegar a novos estágios de percepção, atingindo o tempo liberto do movimento. É bom louvar o novo, o imprevisível, a invenção e a liberdade. Criar, criar em forma de ação humana interior – exterior, sucessora de uma ação exterior-interior, que só existe em função da anterior. Ligações recíprocas e infinitamente dependentes. Aberto todo este caminho, qualquer ação flui sem quebras, tanto para dentro como para fora, face a um estado de intuição pleno de lucidez, capaz de sintetizar o que é interior, que não se encontra estático, mas em circulação infinita, num momento único, Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 13 125 presente. A singularidade de um corpo reside no espaço do meio que sustenta em vibração a totalidade. Decomposto um corpo, espalham-se os particulares que juntos faziam a forma, pela matéria que lhe era exterior. Re-articulados uns com os outros, fazem-se outras formas que se renovam infinitamente neste processo de continuidade de vida, de criação. E um corpo assim, é um corpo criador, capaz de atingir esse estado. É o ser humano elevado ao seu mais alto potencial, no seu estado de corpo criador que cai numa distração, num grande vazio, cheio de novidade. Ele liberta-se e liberta o novo. Gera mudança e flui na corrente do movimento vida. Toda a vida é uma corrente ininterrupta – a vida vem da vida. Se o corpo, em si mesmo, não é senão um centro de ação comum dos sentidos, se nós possuímos o domínio dos nossos sentidos, se os podemos fazer agir à vontade, se os podemos centrar em comunidade, então não depende senão de nós darmos a nós próprios o corpo que queremos. Se os nossos sentidos não são senão modificações do órgão pensante – do elemento absoluto - então podemos também, pela dominação deste elemento, modificar e dirigir, como nos agradar, os nossos sentidos. Podemos tomar em nosso poder o nosso corpo e a nossa alma. O corpo é o instrumento para a formação e modificação do mundo. A modificação dele próprio, do nosso instrumento, é a modificação do mundo. Através destas noções, podemos nos mover além dos limites da percepção e apreender a realidade como um todo dinâmico, em que fazemos parte. Queremos constantemente determinar e estabelecer o que somos, contudo, durante a nossa vida, estamos sempre a reinventarmo-nos devido às mudanças dentro e fora de nós. O eu sou, e o eu me torno. Não somos um único eu, desde que nos modificamos a cada situação. As transformações individuais de cada ser são possíveis caminhos para uma permanente produção de significados flexíveis. Na verdade, a vida oferece e expõe vários caminhos para o acesso a esta abertura, e o nosso corpo é apenas um fluxo cultivado. REFERÊNCIAS BERGSON, Henri. O pensamento e o movente. São Paulo: Martins Fontes, 2006. ______. Matéria e memória: ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo: Martins Fontes, 1999. CHAFES, Rui. Fragmentos de Novalis: seleção, tradução e desenhos. 2.ed. Lisboa: Assírio & Alvim, 2000. CHOPRA, Deepak. Reinventar o corpo, descobrir a alma: como criar um novo eu. 1.ed. Lisboa: Pergaminho. Maio 2012. DELEUZE, Gilles. “O ato de criação”. Palestra de 1987. Folha de São Paulo, 27/06/1999. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 13 126 ______. Bergsonismo. São Paulo: Editora 34, 1999. (2ª reimpressão, 2008). ______. A imagem-movimento, cinema 2.ed.Lisboa: Assírio & Alvim. Nov. 2009. ______. Guattari, Félix O que é filosofia.1.ed. Lisboa: Editorial Presença,1992. ______. Espinosa. Filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002. ______ e GUATTARI, Felix. Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia. Volume 1. São Paulo: Editora 34, 1995. FERRAZ, Maria Cristina Franco. Bergson, hoje: virtualidade, corpo, memória. LECERF, Eric; BORBA, Siomara; KOHAN, Walter (org.). Imagens da imanência: Escritos em memória de H. Bergson. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. HÉLDER, Herberto. Photomaton & vox. Lisboa: Assírio e Alvim. Julho 2006. KASTRUP, Virgínia. Flutuações da atenção no processo de criação. LECERF, Eric; BORBA, Siomara; KOHAN, Walter (orgs.). Imagens da imanência: escritos em memória de H. Bergson. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. JOSÉ GIL. Movimento total:o corpo e a dança. Lisboa: Relógio D´Água. Nov. 2001. MANTERO, Vera. Talvez ela pudesse dançar primeiro e pensar depois. Sinopse da Residência Artística no Teatro da Cerca São Bernardo. Coimbra, Set. 2009. VIEIRA. PALESTRA com JORGE de ALBUQUERQUE VIEIRA. 18 nov. 2008. DESABATUBE. Disponível em: <www.youtube.com. >. Acesso em: 13 set. 2012. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 13 127 DOI 10.22533/at.ed.00000000000 CAPÍTULO 14 PROCESSOS FORMATIVOS EM TEATRO MUSICAL NO ENSINO TÉCNICO: A EXPERIÊNCIA SENSORIAL QUE REVELA O ARTISTA MULTIPERCEPTIVO NO ALUNO-ATOR Data de aceite: 16/04/2021 Data da submissão: 08/02/2021 Fidelcino Neves Reis Fundação de Apoio à Escola Técnica – FAETEC Rio de Janeiro http://lattes.cnpq.br/7032110992959854 RESUMO: Esse artigo investiga como o gênero de teatro musical pode ser um recurso pedagógico para despertar o interesse dos alunos nas aulas de artes cênicas. A partir dessa perspectiva, serão apresentadas questões que revelam ao alunoator uma formação como artista multiperceptivo, através de uma abordagem somática, voltada para a experiência sensorial e perceptiva. A pesquisa também examina a preparação corporal integrada ao trabalho vocal na formação qualificada do aluno-ator de musicais, descreve o gesto corporal como estímulo para a expressão deste mesmo aluno e culmina na análise das principais estratégias metodológicas aplicadas em Teatro Musical no ensino técnico. PALAVRAS - CHAVE: Multipercepção; Gesto; Corpo; Voz; Educação Somática PROFESSIONAL TRAINING IN MUSICAL THEATER IN TECHNICAL HIGH SCHOOL: THE SENSORY EXPERIENCE THAT REVEALS THE MULTI-PERCEPTIVE ARTIST IN THE STUDENT-ACTOR ABSTRACT: This article investigates how the musical theater genre can be a pedagogical resource to arouse students’ interest in drama classes. From this perspective onwards, the questions presented will help develop in the actorstudent a multi-perceptive artistry by means of a somatic approach geared towards a sensorial and perceptive experience. The research also examines body preparation integrated with vocal work in the qualified training of the musical actor-student, describes the body gesture as stimulus to the expression of this same student and culminates in the analysis of the main methodological strategies applied in Musical Theater in Technical High School. KEYWORDS: Multiperception; Gesture; Body; Voice; Somatic Education 1 | INTRODUÇÃO Os alunos atraídos pelos cursos de teatro musical apresentam muita vontade de aprender como atuar em musicais, porém, estão cheios de dúvidas e medos. Muitos relatam a respeito de suas dificuldades e limitações em atuar cantando, em atuar dançando ou em atuarem cantando e dançando ao mesmo tempo. Nesses momentos, costumo perguntar a eles: quem nunca cantou alto e dançou uma música Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 14 128 arrumando a casa, lavando roupas, ou tomando banho, quando se sentiu feliz? Ou ainda, quem nunca experimentou ouvir uma música que faz chorar e cantar bem forte, num quarto escuro, quando estava triste? É comum depois de serem levantadas estas questões, os alunos sorrirem e relatarem suas próprias experiências, percebendo que não é só o hábito de ouvir músicas que faz parte do seu dia-a-dia, mas o próprio ato de cantar e dançar. Aos poucos, muitos se lembram das cantigas de roda que cantavam e dançavam na infância. A partir deste repertório, comum a todos, é possível resgatar o prazer de cantar e de dançar sem a preocupação de serem julgados, criticados e analisados. Nesse clima de descontração, o trabalho pode ser desenvolvido, resgatando a autoconfiança. A partir da definição de artista multiperceptivo, proposta por Ernani Maletta (2016) pretende-se compreender o que é ser um artista de musical, bem como desenvolver um trabalho para uma formação qualificada do mesmo. No que diz respeito a questão da percepção, a partir de uma abordagem somática, é importante ressaltar que o teatro proporciona ao público uma experiência sensorial mais intensa, e cabe aos profissionais de teatro, potencializar estes recursos para que o público seja afetado por diferentes canais de percepção. No entanto, para que se possa tocar o público é de suma importância estimular a percepção sensorial dos próprios alunos-atores ao longo das aulas-ensaios. A partir dos registros diários do processo dos ensaios e dos relatórios periódicos do curso de Teatro Musical da FAETEC de Barreto-Niterói, pretende-se analisar as principais estratégias metodológicas aplicadas em Teatro Musical no ensino técnico. 2 | O CONCEITO DE ARTISTA MULTIPERCEPTIVO De acordo com o professor e pesquisador mineiro Ernani Maletta (2016) o artista multiperceptivo é aquele “que conseguiu perceber, compreender, incorporar e se apropriar dos conceitos fundamentais que definem e sustentam cada forma de expressão artística” (MALETTA, 2016, p. 24). Maletta esclarece melhor este conceito quando exemplifica a relação do artista com a habilidade de atuar cantando ou tocando um instrumento: O artista multiperceptivo, ainda que não chegue a um estágio de virtuosismo técnico como cantor ou instrumentista, pode incorporar os fundamentos da linguagem musical e atuar com sensível musicalidade. Em outras palavras, a habilidade musical do artista não está apenas na sua capacidade em ser um exímio cantor ou instrumentista, mas também na descoberta de possibilidades rítmicas, de variações de intensidade e na apropriação dos parâmetros relacionados ao tempo, indispensáveis para se dizer um texto, para desenhar no espaço um movimento corporal ou para compor a iluminação de uma cena (MALETTA, 2016, p. 25-26). Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 14 129 Quanto ao trabalho corporal, voltado à expressão corporal ou à dança, Maletta segue a mesma linha de pensamento afirmando que “o ator pode adquirir uma excelente consciência corporal, um efetivo controle dos seus movimentos e realizar com competência elaborados desenhos coreográficos sem, necessariamente, precisar tornar-se um virtuoso bailarino” (MALETTA, 2016, p.26). A partir de minha experiência em espetáculos musicais e exercendo as mais variadas funções (ator, diretor, coreógrafo e/ ou preparador corporal), tenho observado que a espontaneidade presente no trabalho do artista multiperceptivo, apresentado na obra de Maletta pode estabelecer uma relação mais íntima e convidativa do artista com o público, levando o último a embarcar na proposta do espetáculo. O conceito de artista multiperceptivo me remeteu ao provérbio africano: “Se você pode andar, você pode dançar. Se você pode falar, você pode cantar.” 1 , referindo-se a esta relação mais simples do ser humano com o cantar, sem ser cantor, e o dançar, sem ser bailarino. Essa atuação mais fisiológica (das funções do organismo) está diretamente ligada à história do sujeito, ao seu local de origem e às suas experiências e está muito próxima, a meu ver, das técnicas de educação somática2·, as quais tratam da totalidade do ser. Nosso corpo em movimento expressa quem somos e o que pensamos e, por isto, a educação somática pode contribuir para estimular a consciência corporal e o estudo do gesto, revelando assim, o artista multiperceptivo no aluno-ator de teatro musical. 3 | O TRABALHO COM A PERCEPÇÃO SENSORIAL As questões relativas ao movimento corporal e à percepção dos sentidos, tão presentes nas minhas aulas de teatro e na condução do meu trabalho com os atores nos espetáculos, passaram a ter mais destaque desde que trabalhei como estagiário no Museu da Vida, o qual pertence à FIOCRUZ. Neste local, fiz parte da equipe do setor denominado Ciência em Cena, entre os anos de 2000 e 2002. A proposta era fundamentada na premissa de que a pesquisa e a experimentação não são exclusividades do mundo científico e estão presentes no processo de ensaio teatral, sendo de suma importância para o desenvolvimento do mesmo, ou seja, o processo artístico e o científico são mais parecidos do que podemos imaginar e caminham lado a lado. No espaço do Ciência em Cena, no qual trabalhei como ator, entre outras funções, nos espetáculos O mensageiro das estrelas (2000, 2001) e O mistério do barbeiro3 1 Informação colhida em entrevista concedida à Marília Gabriela pela dupla de diretores de musicais Charles Möeller e Claudio Botelho em seu programa no Canal GNT no dia 2 de setembro de 2012. 2 O termo Educação Somática surgiu pela primeira vez em artigo escrito por Thomas Hanna na revista cientifica Somatics, publicada em 1983. Neste artigo, o autor afirmava que Educação Somática é “a arte e a ciência de um processo relacional interno entre a consciência, o biológico e o meio-ambiente. Estes fatores vistos como um todo agindo em sinergia” (HANNA, 1983, p.7). 3 Nesse espetáculo participei ativamente no processo de criação do texto e da concepção do espetáculo, com mais quatro estagiários, sob a direção geral e supervisão de Jacyan Castilho. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 14 130 (2002), cada estagiário teria que integrar a equipe de mediadores de uma das demais atividades interativas oferecidas ao público visitante do museu, normalmente composto por profissionais da educação e alunos das redes pública e privada de ensino. Por também possuir experiência em dança4, fui selecionado para fazer parte da “Oficina de Percepção dos Sentidos”. Nesta oficina, que mantém a essência do Museu em sua missão de divulgação científica, apresentamos estímulos que testavam não somente os cinco sentidos humanos, como também dois outros sentidos que não são diretamente estudados nas escolas brasileiras: o equilíbrio e o movimento. Para me familiarizar com as informações apresentadas, eu participei de palestras específicas com a neurocientista Suzana Herculano-Houzel5, acerca do funcionamento de cada sentido e, no caso do equilíbrio e do movimento, de aulas com Jacyan Castilho6, tendo contato direto com os projetos de pesquisa desenvolvido por ambas nos dois anos em que trabalhei nesta oficina. 4 | O CURSO DE TEATRO MUSICAL DA FAETECUNDAÇÃO DE APOIO À ESCOLA TÉCNICA No ano de 2013, como professor de teatro no Centro Cultural da Escola Técnica Estadual Henrique Lage, situada no bairro de Barreto em Niterói e pertencente à Fundação de Apoio à Escola Técnica do Estado do Rio de Janeiro (FAETEC), fui incumbido de elaborar o plano de curso de Teatro Musical e assumi a sua coordenação. O curso de Teatro Musical da FAETEC é oferecido aos alunos acima de 14 anos em duas modalidades: a primeira para atender a disciplina de Artes, que integra a grade curricular do ensino médio e, a segunda, extensivo à toda comunidade, através dos Cursos de Formação Inicial e Continuada ou Qualificação Profissional. Ambas as modalidades são oferecidas a cada semestre e são concluídas com a montagem de um espetáculo, realizado ao final desse período. Como não há pré-requisito para que os alunos saibam atuar, cantar e dançar para se inscreverem no curso, procuro sempre respeitar os limites dos alunos na hora da divisão dos personagens para os espetáculos. No início do processo, com o foco voltado para o trabalho interdisciplinar, cada professor é incumbido de uma determinada função ou conjunto de funções referentes à sua área de atuação, desenvolvidas ao longo das aulas-ensaio, que acontecem duas vezes por semana. O professor de Teatro é encarregado da escolha do texto e se responsabiliza pela direção geral do espetáculo. Juntamente com os alunos, confecciona a cenografia e o figurino, além de idealizar a iluminação e a maquiagem. Desta forma, o aluno pode 4 Integrei a Cia de Dança de Luiz Kleb que mesclava a dança de salão com outros estilos de dança como jazz, contemporâneo, dança de rua e afro (1997-2006). 5 Suzana Herculano-Houzel – neurocientista, pós-doutora pelo Instituto Max Planck na Alemanha (1999), fez doutorado pela Universidade Pierre e Marie Curie na França em 1998, mestrado na Case Western Reserve nos Estados Unidos em 1995 e se formou como bióloga na modalidade genética pela UFRJ em 1992. 6 Jacyan Castillho de Oliveira - atriz formada pela Unirio em 1986 e bailarina formada pela Angel Vianna. Concluiu seu mestrado no ano 2000 na Unirio com o título de “Arte do Movimento: Uma proposta de abordagem do texto dramatúrgico através da Análise de Movimento Laban”. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 14 131 dialogar com as múltiplas artes que integram o teatro e, com a supervisão do professor, experimenta, na prática o que é ser um artista multiperceptivo. A professora de Dança e / ou Educação Física faz a preparação corporal e auxilia na montagem das coreografias na disciplina que consta na grade curricular com o nome “Corpo”. Os professores de Música (dos cursos de piano e violão) são consultados e ajudam na elaboração da trilha sonora e, quando possível, fazem a direção musical dos espetáculos. Obs.: Profissionais de outras disciplinas, não necessariamente artísticas, fazem parte do projeto, por exemplo, uma fonoaudióloga, responsável pela preparação e orientação vocais dos alunos na disciplina chamada “Voz”. 5 | A ANÁLISE DOS ESPETÁCULOS ENCENADOS NA FAETEC A PARTIR DO TRABALHO COM A PERCEPÇÃO SENSORIAL O envolvimento em todas as etapas do projeto de montagem desperta nos alunos um artista mais consciente do fazer teatral, proporcionando maior interação com todos os elementos que os ajudarão a construir os personagens e a contar a própria história. Também é possível desenvolver no aluno o respeito por todos os profissionais que trabalham para a construção do espetáculo. Na busca do desenvolvimento do artista multiperceptivo, ainda que, na maioria dos espetáculos realizados ao final de cada semestre houvesse a utilização de trilha sonora pré-gravada, procuramos estimular os alunos a tocarem um instrumento em determinadas cenas ou a produzirem sons com o corpo (ex.: com palmas, tapinhas em partes do corpo, estalos de dedos e língua, batendo os pés no chão, entre outros sons para dialogar com a canção.), realizando interferências sonoras ao vivo, estimulando as sensações do sentido da audição e desenvolvendo a musicalidade. A pesquisa corporal também foi associada a outros elementos do espetáculo, como o figurino e os adereços, confeccionados pelos próprios alunos, com a ajuda dos professores. Buscamos também explorar o trabalho corporal para a preparação do ator de musicais a partir dos sentidos do equilíbrio e do movimento, a fim de desenvolver no aluno a habilidade de cantar em variados planos e níveis, preenchendo toda a área de atuação, a partir de sua apropriação corporal. Em sala de aula, a utilização de cubos de madeira, cadeiras e mesas, permite elaborar cenas com variações de níveis que, combinadas a mudanças de planos, ampliam o repertório de movimentação corporal do ator. A seguir, elencaremos os espetáculos realizados entre os anos de 2013 e 2017 durante os cursos e analisaremos a integração das sensações dos sentidos como olfato, audição, visão, paladar, sentido tátil e proprioceptivo no desenvolvimento da multipercepção dos alunos-atores. Espetáculo Fama: Nesse espetáculo, montado no primeiro semestre de 2015 e no segundo semestre de 2017, foi possível explorar com propriedade a relação dos alunos Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 14 132 com múltiplas habilidades artísticas, pois, neste musical, grande parte da história se passa em uma escola de artes onde os alunos podem cursar aulas de música, de teatro e de dança. Na primeira montagem, na cena musical “Cães no Jardim” sete alunos representavam os candidatos a vagas para a Escola de Artes Dramáticas de Nova York e entravam em cena com envelopes pardos confeccionados pelos alunos, os quais continham o resultado de aprovados para mostrar ao público. No verso da folha de papel estava impressa a letra da canção, que foi declamada, uma vez que não conseguimos gravar uma base instrumental a tempo para apresentação. A ideia de cantar à capela também foi descartada, pois os alunos poderiam encontrar dificuldades na afinação. No trecho em que os alunos diziam: “Pedras jogar numa manhã solar”, eles compartilhavam com a plateia a sua alegria em terem sido aprovados, lançando bombons retirados dos mesmos envelopes. Estes bombons simbolizavam um gesto de boas-vindas da escola por receber os novos alunos. Nas cenas das aulas de música, retiramos a base instrumental da canção “Nunca Mais Só”, para que o aluno, que dava vida ao personagem do professor de música, experimentasse tocar um pandeiro para marcar o andamento rítmico, enquanto conduzia um coral de alunos num ensaio. Em outra cena, o mesmo aluno, com uma batuta na mão, aprendeu a marcar o compasso quaternário para reger um aluno ao violino que, mesmo não sabendo tocar efetivamente o instrumento, foi orientado a segurá-lo e mover o arco de maneira correta, para dar maior credibilidade à sua ação cênica. Ainda com o intuito de promover o contato dos alunos com instrumentos, nas duas montagens, os alunos que interpretaram o personagem Bruno Martelli, na cena em que este faz o teste de habilidade específica para entrar no curso de música, foram estimulados a interagir com programas específicos para tocar piano no computador e no tablet. Nas aulasensaios utilizamos um teclado de verdade, para que os alunos pudessem experimentar a sensação de tocar o instrumento, sob a orientação da professora de piano. O mesmo tipo de exposição a um instrumento musical foi realizado com os alunos que iriam interpretar o personagem Ralph Garcia, reprovado no teste de música por não saber tocar bem o bongô. Na primeira montagem, o aluno sugeriu usar uma lira para fazer o teste, instrumento que o aluno estava aprendendo a tocar na banda da escola Estadual Célia Nanci em São Gonçalo; na segunda montagem, esse personagem foi vivido por outro aluno. Desta vez sugeri para a cena uma gaita de boca, por ser um instrumento pequeno e mais fácil de guardar no bolso do figurino, sem perder a ideia de ser um elemento surpresa. O aluno-ator, um pouco constrangido, revelou que não sabia tocar instrumento algum, porém, ao saber que o personagem fingia saber tocar um instrumento, se sentiu mais confiante. Para ele, foi libertador experimentar tocar o instrumento sem a preocupação com o virtuosismo e, na cena, produziu um som de gaita interessante, mas que não garantia ao personagem entrar no curso de música. Na remontagem do espetáculo da turma do segundo semestre de 2017 temos Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 14 133 um exemplo de pesquisa corporal associada a outros elementos do espetáculo, como o figurino. No filme Fama, que serviu de referência para a montagem de conclusão do curso da turma de teatro musical do segundo semestre de 2015, há um número em homenagem ao musical The Rock Horror Show. Inicialmente, as letras da palavra “ROCKY” seriam pintadas nas costas dos figurinos dos atores ou estariam em placas de papelão nas mãos deles para anunciar esta cena, mas devido à falta de tempo e de recursos para confeccionar as letras, a ideia foi descarta e sugeri à professora de preparação corporal que as letras deveriam ser expressas com os corpos dos atores. Espetáculo Os Saltimbancos: Nesse musical, os alunos-atores da turma do primeiro semestre de 2016 realizaram uma experiência tátil durante as aulas de percepção para a preparação de elenco, com elementos que iriam fazer parte do espetáculo, como adereços confeccionados pelo professor, proporcionando o contato direto dos alunos com os personagens e / ou com a classe de trabalhadores que eles representavam na obra. Estes elementos foram colocados em cubos e dispostos pela área de atuação em sala de aula. Para que os alunos se familiarizassem ainda mais com o espetáculo, suas canções foram tocadas durante a atividade, além de outras músicas que dialogavam com o mesmo universo. Entre as canções do espetáculo, foram tocadas marchas militares, músicas de quadrilha, sons de máquinas fabris, cantigas de roda e músicas de outros musicais famosos. A este tipo de atividade costumo chamar de “Dança dos Personagens”, em que os alunos, a partir do material oferecido, experimentam elementos que possivelmente irão fazer parte do figurino dos personagens. Em outras palavras, eles, literalmente “vestem o personagem”. Nesta turma havia um aluno com Síndrome de Down, e o contato com diferentes tipos de texturas, associadas às canções, foi fundamental para que ele pudesse se relacionar com o clima de fábula da obra, em que os animais falam e agem como seres humanos. Este tipo de atividade costuma se realizar depois que alunos já estão familiarizados com a história da peça e já pesquisaram a confecção dos figurinos e adereços. Nesta etapa, ainda não foram definidos os atores que irão viver os personagens, com a finalidade de experimentar e ampliar sua compreensão do espetáculo pelo universo particular de cada um dos personagens. Exploramos também o sentido da visão, associado aos sentidos do movimento e do equilíbrio, para ajudar os alunos na memorização das letras das músicas que apresentavam enumerações. Em canções voltadas para a introdução de vocabulário e apresentação de elementos que fazem parte de um grupo ou conjunto, a enumeração costuma ser um recurso muito utilizado para estimular o aprendizado em crianças, como nas canções “Jumento” e “A Cidade Ideal”. Por exemplo, na canção “Jumento”, que apresenta o personagem, é descrito o dia-a-dia do animal, que carrega muitos objetos puxando uma carroça. Visando ajudar os alunos a lembrarem a letra da música durante a cena, foram confeccionados, juntamente com eles, pacotes de mercadorias para contar a estória, a partir de materiais didáticos Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 14 134 presentes no acervo do Centro Cultural. Vale ressaltar que o professor deve estar atento ao ambiente a sua volta, treinando o seu olhar para descobrir novas possibilidades para os objetos utilizados por ele em suas práticas pedagógicas. Para fazer os pacotes de mercadoria, foram utilizados colchonetes dobrados ao meio, colocados dentro de sacos de estopa. Os alunos pintaram os desenhos dos elementos enumerados na canção, feitos por mim, em cartolina e colados em papelão e, posteriormente, costurados na trama do saco de estopa. Em cena, durante a canção, cada vez que o personagem Jumento citava os itens que costumava carregar, os pacotes eram dados a ele pelos demais atores, de modo a expressar a ação descrita. Para não dificultar a movimentação, foram colocados dois desenhos por pacote, uma vez que são enumerados na música doze elementos, carregados pelo Jumento no seu trabalho diário. O mesmo recurso foi utilizado na canção “A Cidade Ideal”, porém, nesta música, são descritos os tipos de pessoas e profissionais que compõe a população de uma cidade, o que poderia se tornar um obstáculo ao serem reproduzidos, em desenhos, pelo professor. Nesse caso, foi preciso escolher imagens simbólicas que pudessem ser facilmente desenhadas e identificadas com clareza pelos os alunos. Para que estes desenhos estivessem inseridos no contexto do espetáculo, criou-se uma espécie de móbile infantil, reforçando a ideia de que a cena representava um sonho de criança. As imagens, feitas pelo professor em cartolina e pintadas pelos alunos, foram presas com barbantes e cadarços de tênis a um bambolê que descia do teto por uma roldana. Durante a cena, os alunos podiam manipular o móbile pendurado acima de suas cabeças, no meio do palco, para lembrar os itens citados, enquanto interpretavam a música. Espetáculo Em busca do Planeta Limpo: Foram realizadas duas montagens de musical infantil, escrito por Maria das Graças Borges e co-autoria de Fidel Reis (nome artístico do autor do artigo): uma no primeiro semestre de 2014 e outra no segundo semestre de 2016. Nessa última, também foi utilizada a atividade “Dança dos Personagens”, em que os alunos, a partir de elementos dispostos em sala de aula, experimentam aqueles que possivelmente irão fazer parte do figurino de seus personagens. Essa experiência foi aprofundada, em que pequenas cenas, quase fotográficas, de momentos específicos da peça ou de suas canções. Os desenhos dos figurinos de cada personagem foram dispostos aleatoriamente pelo chão, para que os alunos pudessem experimentar a composição da indumentária dos personagens que estavam pesquisando. Também foram colocadas palavras escritas em papel A4, que remetiam aos sentimentos dos personagens ao longo da história, como alegria, tristeza, raiva, medo, nojo, amor/prazer, surpresa/espanto, coragem e paz. A experiência tátil desenvolvida no processo de ensaio também é expandida ao público durante os espetáculos. Nas duas montagens, a personagem Consciência Humana surge em cena carregando uma cesta com sementes de flores para serem distribuídas para o público, durante a canção “Flores”, cujo refrão diz: “Flores, flores, vou colher de todas Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 14 135 as cores”. Este momento do espetáculo promove um contato direto da atriz com o público, que durante grande parte do número musical está na plateia, distribuindo sementes e transmitindo a mensagem da canção: “Você colhe o que você planta!” Na montagem realizada em 2014, a experiência do olfato também permitiu estabelecer maior integração da cena com o público. Antes do início do espetáculo, Lorena, a personagem principal, distribuía sacolas reutilizáveis7 com uma bala e uma mensagem como brinde para a plateia. A mensagem, em forma de canção, foi idealizada como um texto escrito por uma criança para retratar a personagem Lorena, bem como o seu desejo de conscientizar as pessoas de que é preciso salvar o mundo da poluição. Esta música, intitulada “Olha que Legal”, é o tema de abertura do musical. A sua letra simples e executada duas vezes, em sequência, possibilitando ao público aprender o refrão para cantá-lo com os atores. Na segunda montagem do espetáculo, realizada no segundo semestre de 2016, o arranjo original em rap foi alterado para funk pelo diretor musical do espetáculo, o professor de violão e cavaquinho, por sugestão dos próprios alunos, para que a canção pudesse ter uma comunicação ainda mais direta com o público jovem. Evocando ainda as sensações do sentido do olfato, o personagem Jasmin, considerado o mais vaidoso entre as flores, vivido por um dos alunos da turma, carregava um frasco de perfume em uma das mãos para borrifá-lo toda vez que desejasse realçar o seu aroma. A mesma ação era realizada durante o número musical “Ele é o Bom” 8, para apresentar o personagem. Em contrapartida, o personagem da Poluição, vivido por uma das alunas da mesma turma, terminava a cena cantando, no meio da plateia, enquanto surgia no palco uma cortina cheia de lixo, feita com uma rede de futebol. O lixo reforçava a ideia do mau cheiro, gerando certo desconforto na plateia e era destaque no trecho da canção, que dizia: “O lixo aumenta rápido / causando baratas, cupins e ratos / sujando rios e mares / deixando feio todos os lugares”. As embalagens dos lanches, consumidos na hora do intervalo no período de um mês, serviram para a confecção da cortina de lixo e foram amarradas com barbante pelos próprios alunos na rede de futebol. Espetáculo A Viagem de um Barquinho: O espetáculo musical como experiência multiperceptiva também foi o conceito norteador desse musical infantil realizado em 2013, compartilhando com o público a exploração do sentido do paladar, entre outros. Na cena “O Aniversário do Pirilampo” havia um bolo cenográfico de três andares, feito de caixas de papelão e decorado com canudinhos de plástico e tampinhas de garrafas. As tampinhas coloridas representavam jujubas e foram coladas com a parte aberta voltadas para cima, para que estas servissem como porta balas. Durante a cena, as balas de verdade eram distribuídas para a plateia pelos próprios alunos-atores que carregavam um dos andares do bolo que funcionavam como uma bandeja. 7 Vale destacar que estas sacolas foram confeccionadas em tecido ecológico TNT pela autora da peça, Maria das Graças Borges. 8 Paródia da música “O Bom” de Eduardo Araújo, grande sucesso da Jovem Guarda (1967). Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 14 136 Na cena “Temperando o Rio”, os alunos-atores tocavam chocalhos enquanto cantavam e dançavam, mesmo sem terem tido experiência anterior com instrumentos de percussão. Estes chocalhos foram confeccionados de forma artesanal pelo professor e pelos alunos, com embalagens plásticas de achocolatado em pó, forrados com tecido ecológico TNT e laço de fita em malha. Os chocalhos deveriam ter dois sons distintos que dialogassem com os temperos que representavam no número musical. Para isso, colocamos arroz branco e feijão vermelho dentro de cada um deles, simbolizando o sal e a pimenta, respectivamente. No número musical “Samba do Sapo”, abrimos mão do áudio pré-gravado para que uma aluna tocasse violão ao vivo durante a canção, uma vez que ela interpretava a mulher do Sapo. Foi proposto à aluna o desafio de tocar o instrumento em pé e em movimento. Segundo informações da própria aluna, ela só havia praticado tocar sentada. Como autodidata, tinha dificuldade em ler cifras e aprendeu a tocar a música da cena orientada pelo professor de violão e cavaquinho. Para que a aluna se sentisse mais confiante, eu e a professora de preparação corporal deixamos um pequeno banco no canto do palco, caso ela quisesse se sentar ou colocar o pé para apoiar o violão. No dia da estreia, ela tocou inicialmente sentada e, no decorrer da cena, se levantou e ocupou o centro do palco. Espetáculo Tributo aos Clássicos Disney: Nesse espetáculo, montado em 2014, cujo roteiro foi escrito por mim, exploramos o sentido tátil. No número musical “As Cores do Vento”, do filme Pocahontas, havia uma experiência mais concreta da presença do vento, tanto para a dupla de alunos em cena, quanto para o público. Inspirando-me na cena da animação do filme musical, em que as folhas das árvores pareciam dançar na tela, substituí as folhas por serragem. No final da cena musical, os alunos retiravam a serragem que portavam nos bolsos e a assopravam em direção ao público. No número em homenagem ao filme Pinóquio (1940), realizado com a canção “A Estrela Azul”, aconteceu algo semelhante. No momento da cena em que o personagem Grilo Falante abria o guarda-chuva, o público era surpreendido com uma chuva de confetes. Este tipo de experiência tátil estabelece uma interação dos atores com o público que, de certa forma, é convidado a participar da cena. Já no número musical “No meu coração você vai sempre estar”, em homenagem ao filme musical Tarzan (1999), os alunos distribuíam rosas de origami pintadas à mão por mim e cantavam parte da canção segurando a mão das pessoas contempladas com as flores, tornando este momento ainda mais emocionante. A aluna, que dividia o papel da Pequena Sereia com outra, iniciava a cena com uma interferência sonora. Enquanto ela interagia com uma caixa de música, a sua colega de cena, interpretando o mesmo papel, admirava uma caixa de joias. A base instrumental da música “Parte do Seu Mundo” entrava lentamente, à medida que a caixa de música ia parando de tocar, para que as atrizes pudessem interpretar a canção. Espetáculo Walking on Sunshine: andando nas nuvens: Neste espetáculo, realizado Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 14 137 em 2015, exploramos o sentido do olfato. Na cena “Despedida de Solteira”, duas alunas que interpretavam as amigas da noiva vestiam e perfumavam-na durante o número musical com a canção Girls Just Wanna Have Fun9·. Na cena “O Pedido de Casamento” enquanto os atores brindavam com água em copos de plástico, em torno de cubos que representavam a mesa de um restaurante, duas atrizes serviam biscoitos amanteigados sortidos para o público. Em relação ao sentido da audição, há uma cena em que uma aluna interpreta uma violinista-bailarina. Vale ressaltar que esta aluna, mesmo sendo uma exímia bailarina, não sabia tocar violino e foi orientada a se relacionar com o instrumento como se o tocasse de verdade, enquanto o som pré-gravado era emitido. Esta personagem teve como referência a artista americana Lindsey Stirling, também cantora, compositora e artista multiperceptiva. 6 | CONSIDERAÇÕES FINAIS Na busca por um artista multiperceptivo, o talento artístico e a identidade cênica dos alunos estão relacionados à sua percepção dos sentidos e à capacidade de expressarem, por meio do gesto consciente, a sua imaginação criadora. Na prática, podemos vivenciar que o teatro musical é, essencialmente, teatro, pois permite ao aluno-ator experimentar, de maneira prazerosa, múltiplas linguagens artísticas em uma única arte, seja na sala de aula ou no palco. Ao relacionar a experiência vivida como professor no Curso de Teatro Musical na FAETEC de Barreto em Niterói, entre os anos de 2013 e 2017, com o material teórico pesquisado, foi possível constatar que o trabalho de exploração sensorial desenvolvido em sala de aula se aproxima das práticas somáticas e potencializa o artista multiperceptivo no aluno-ator. Tanto os registros do processo diário dos ensaios e das apresentações, como os relatórios periódicos do curso, foram fontes essenciais para compreender que o teatro musical também proporciona uma experiência multiperceptiva, não somente para o público como também para os atores. Por meio da análise da documentação de momentos específicos dos espetáculos, o significado do verbo assistir que, em geral, se limita aos sentidos da audição e da visão foi expandido, ampliado. As atividades sensoriais que estimulam a percepção nas aulas-ensaios contribuem para uma formação mais qualificada do ator de musical, no qual a voz precisa ser trabalhada com o corpo em movimento e pulsar com a canção. O ator de musical, ao utilizar a sua experiência sensorial para dialogar com as múltiplas artes que compõe o espetáculo teatral, pode estabelecer uma integração mais consciente entre o canto e a dança para uma atuação mais expressiva. 9 Meninas só querem se divertir (Tradução do autor). Um dos grandes marcos da carreira da cantora Cyndi Lauper nos anos de 1980. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 14 138 REFERÊNCIAS DAL VERA, Rocco; DEER, Joe. A Atuação em Teatro Musical: curso completo. Tradução. 1ª Edição, Brasília: Dulcina Editora, 2014. GODARD, Hubert. Gesto e percepção. SOTER, Silvia e PEREIRA, Roberto. Lições de Dança 3. Rio de Janeiro: UniverCidade, 2001. p.11-35. LABAN, Rudolf. Domínio do Movimento. São Paulo: Summus Editorial, 1978. MALETTA, Ernani de Castro. Atuação polifônica: princípios e práticas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2016. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Parâmetros Curriculares Nacionais: Ensino Médio - Arte. Brasília: Semtec/MEC, 2000. STRAZZACAPPA, Márcia. Educação Somática e Artes Cênicas: Princípios e Aplicações. Campinas: Papirus, 2012. TAVARES, Joana e KEISERMAN, Nara. O corpo cênico entre a dança e o teatro. São Paulo: Annablume, 2013. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 14 139 DOI 10.22533/at.ed.00000000000 CAPÍTULO 15 EDUCAR COM CRIATIVIDADE: SER PÁSSARO OU CARNEIRINHO NA APRENDIZAGEM DA COMPOSIÇÃO MUSICAL Data de aceite: 16/04/2021 Data de submissão: 12/02/2021 José Augusto Neves de Moura Instituto Superior de Ciências Educativas do Douro - Penafiel, Portugal Universidade do Minho – CIEC – Braga, Portugal https://orcid.org/0000-0002-6170-8737 António José Pacheco Ribeiro Conservatório do Vale do Sousa – Lousada, Portugal Universidade do Minho – CIEC – Braga, Portugal https://orcid.org/0000-0003-3413-8473 Trabalho apresentado no IV Encontro do Ensino Artístico Especializado da Música do Vale do Sousa: O Ensino da Música no Século XXI: Desafios e Compromissos. Lousada: Conservatório do Vale do Sousa, 2019. https:// sites.google.com/site/encontromusicavaledosousa/ home RESUMO: Este artigo tem como objetivo principal compreender a questão da música que se faz dentro e fora do âmbito escolar. Pretende-se explorar este aspeto considerando que a existência de outras tipologias de ensino de composição musical nos conservatórios públicos de música em Portugal, a inclusão de outras tipologias musicais e das novas tecnologias possam potenciar o prosseguimento de estudos na área da composição. A procura Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 de conhecimentos ligados a outras linguagens musicais, por parte dos jovens nas escolas especializadas de música, é uma realidade nos dias de hoje, se bem que essas mesmas escolas tardam em encontrar soluções para responder às exigências. A metodologia pedagógica tradicional, centrada na dita música erudita ocidental, a consequente relação dos jovens com outras músicas do mundo (a música que se ouve em casa), e a total ausência de outras tipologias musicais na escola de música especializada, podem estar na origem da desmotivação, por parte dos jovens, por uma carreira no âmbito da composição musical. Esta dicotomia, entre a música que se faz na escola e a música que se ouve em casa, abrange diferentes tipos de saberes e pode condicionar as aspirações de jovens compositores. PALAVRAS - CHAVE: Ensino Artístico Especializado de Música; Tipologias Musicais; Música Dentro e Fora da Sala de Aula. EDUCATE WITH CREATIVITY: BEING A BIRD OR SHEEP IN LEARNING MUSICAL COMPOSITION ABSTRACT: This article has as main objective to understand the question of music that is made inside and outside the school environment. We intend to explore this aspect considering that the existence of other types of musical composition teaching in public music conservatories in Portugal, the inclusion of other musical types and new technologies may enhance the pursuit of studies in the area of composition. The search for knowledge related to other musical languages, on the part of young people in specialized music Capítulo 15 140 schools, is a reality today, although these same schools are slow to find solutions to meet the demands. The traditional pedagogical methodology, centered on the so-called Western classical music, the consequent relationship of young people with other music in the world (the music you hear at home), and the total absence of other musical typologies in the specialized music school, may be at the origin of demotivation, on the part of young people, for a career in the scope of musical composition. This dichotomy, between music made at school and music heard at home, covers different types of knowledge and can condition the aspirations of young composers. KEYWORDS: Specialized Artistic Teaching of Music; Musical Typologies; Music Inside and Outside the Classroom. 1 | INTRODUÇÃO Este artigo apresenta uma reflexão em torno da criação musical que se faz dentro e fora do contexto escolar. Menciona as práticas pedagógicas subjacentes ao ensino tradicional formal e apresenta a relação dos jovens com as tecnologias e com outras músicas do mundo para a construção da sua identidade. O artigo apresenta-se estruturado com os seguintes tópicos: Fundamentação Teórica; A Preferência Musical dos Jovens; Música e as Novas Tecnologias; Criatividade; Considerações Finais; e, Referências. 2 | FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA A área da criatividade/composição musical na educação da criança é um tema emergente no século XXI. Ouvir e valorizar o conhecimento das crianças, assim como as suas experiências musicais dentro e fora do contexto escolar, é uma preocupação que os educadores devem considerar na educação das crianças e jovens. Na tradição musical ocidental as práticas musicais são sempre ou quase sempre vistas sobre o ponto de vista dos adultos, desvalorizando o facto de as crianças poderem ter um ponto de vista, ou uma compreensão diferente dos gostos musicais dos adultos. Campbell (2006), chama a atenção para a compreensão por parte dos educadores no sentido de procurar compreender as crianças como crianças, analisar a sua ação nos seus contextos sociais e culturais, de forma a identificar e a conhecer melhor o ponto de vista das mesmas, as suas experiências, assim como as suas atitudes. Beineke (2012), na mesma linha de pensamento, reforça ainda a necessidade das orientações metodológicas darem voz às crianças, no sentido que cada criança tem a sua própria identidade, com uma forte influência, com a interação, com as suas raízes e com o contacto com o meio em que cresceu, nomeadamente a sua família e os seus amigos, por oposição e contrariando pesquisas direcionadas na perspetiva do adulto. Neste sentido, é importante compreender a perspetiva da criança em relação às suas composições musicais, perceber o ponto de vista das crianças e entende-las como próprios motores das suas aprendizagens. Levantam-se, neste sentido, as seguintes questões: será que nos conservatórios de Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 15 141 música públicos de Ensino Artístico Especializado em Portugal existem outras tipologias de ensino que respondem às necessidades das crianças? Ou os currículos e programas dos conservatórios de música públicos de Ensino Artístico Especializado em Portugal continuam a não acompanhar esta carência? O dogma de centrar as aprendizagens da música no ensino clássico da cultura ocidental, mantém um conservadorismo nas escolas; há uma segmentarização dos géneros musicais no ensino vocacional: o sobre apreço da música erudita conhecida também como música clássica e a subestimação da música popular, definida como um termo amplo que inclui o Blues, o Jazz, o Rock e as suas versões comerciais, a música Folclórica, entre muitos tipos musicais (OLIVEIRA; RIBEIRO, 2017). A Portaria nº 691/2009, de 25 de junho, que criou os Cursos Básicos de Dança, de Música e de Canto Gregoriano e aprovou os respetivos planos de estudo, contribuiu para o melhoramento do subsistema de ensino, no entanto, continua a haver por parte dos jovens nas escolas de ensino especializado de música, a procura de conhecimentos ligados a outras linguagens musicais como o pop/rock, o jazz, world music, música popular tradicional (PACHECO, 2013). Apesar desta constante procura, as escolas, ainda com um ensino baseado nas estruturas eruditas ocidentais seculares, continuam a não corresponder às aspirações de uma grande parte dos jovens. Torna-se, assim, necessário que o ensino da música responda às necessidades dos jovens nas múltiplas linguagens musicais, assim como fomentar a inclusão de outras tipologias musicais no ensino artístico especializado (PACHECO, 2013). No início do século XX pedagogos da música e da pedagogia como, Cecil Sharp, Zoltán Kodály e Ruth Seeger trabalharam no sentido de incluir no currículo das escolas americanas e europeias música popular (neste caso concreto, entenda-se toda a música que não é erudita). A partir da década de 1960 assistimos à inclusão do jazz nos currículos escolares das instituições ocidentais, e na Inglaterra a música popular ganha, também, muitos adeptos (GREEN, 2002). O ensino da Educação Musical de uma forma geral não é uniforme no que diz respeito aos conteúdos programáticos, podendo variar de cultura para cultura ou de região para região. No entanto, dentro dessas variações podemos encontrar alguns fios condutores que são transversais, como por exemplo, o ensino da composição, que não sendo uma atividade universal é uma prática comum no ensino da música. Barrett (1998) descreveu alguns desses contextos em que a composição faz parte dos programas de estudo do ensino genérico. Nesta mesma perspetiva, McCarthy (2001, p. XII, tradução nossa) refere o seguinte: «o conteúdo dos programas de estudo em educação musical generalista varia até certo ponto de um país para o outro»1. De facto, em vários países da Europa e do Mundo as atividades de composição musical são preponderantes no processo de ensino e aprendizagem musical. Estas 1 Original: «The content of programmes of study in generalist music education varies to some extent from one country to another» (McCARTHY, 2001, p. XII). Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 15 142 atividades não se circunscrevem apenas a uma determinada tipologia musical tida como de qualidade superior (música erudita ocidental), mas incidem também em tipologias musicais próximas do gosto dos alunos, como por exemplo a música popular. Alguns processos pedagógicos utilizados por Schafer (1991, 2001) estão relacionados com a Educação Musical: a) paisagem sonora, referente aos sons do ambiente; b) o desenvolvimento da perceção de escuta; c) expansão da nossa perceção auditiva; d) o silêncio. Murray Schafer inspirou-se nos conceitos de John Cage, da escuta criativa e consciência sensorial, em que desafiava os ouvintes a ouvirem o silêncio e a sentir os ruídos do meio ambiente. Para John Cage, mencionado por Schafer (1991, 2001), a música era aleatória e afirmava que a música são os sons à nossa volta. Começaram então a surgir criações com intervencionismo nas ruas, e obras influenciadas pelos sons das cidades. Murray Schafer influenciado pelas obras de Cage, começa a envolver os jovens músicos nas novas sonoridades e na criação musical. No capítulo Limpeza de Ouvidos, Schafer (1991), expõe os objetivos de seu curso da seguinte maneira: [s]enti que a minha primeira tarefa nesse curso seria de abrir os ouvidos: procurei sempre a levar os alunos a notar sons que na verdade nunca haviam percebido, ouvir avidamente os sons de seu ambiente e ainda os que eles próprios injetavam neste ambiente (SCHAFER, 1991, p .67). De acordo com Fonterrada (2008, p. 195): As atividades que Schafer propõe podem ser executados dentro ou fora da sala de aula, com grupos de qualquer faixa etária e com ênfase no som ambiental. Essas atividades tanto podem ser utilizados dentro do currículo específico de música como em atividades extra classe ou mesmo fora da escola[...]. Para Keith Swanwick (2003), o essencial é respeitar o estágio em que cada aluno se encontra e seguir três princípios fundamentais: preocupar-se com a capacidade da criança de entender o que é proposto; observar o que ela traz da sua realidade, as coisas com que também pode contribuir; um ensino fluente, isto é como se fosse uma conversa entre estudantes e professor. O propósito da música não é, simplesmente, criar produtos para a sociedade. É uma experiência de vida em si mesma, que devemos tornar compreensível e agradável. É uma experiência do presente. Essas crianças estão vivendo hoje, e não aprendendo a viver para o amanhã. Devemos ajudar cada criança a vivenciar a música agora (SWANWICK, 2003, p.72). Em Portugal o currículo escolar não compreende atividades ligadas à composição musical, especialmente no âmbito do ensino artístico especializado da música. Neste subsistema o curso de composição é introduzido apenas no curso secundário de música (Portaria nº 243-B/2012, de 13 de agosto). No âmbito do curso básico de música os alunos, regra geral, não têm contacto com atividades de composição, improvisação e apreciação Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 15 143 musical em qualquer uma das disciplinas do curso. A música praticada no contexto de escola difere da música que os alunos ouvem fora do contexto escolar. A inclusão da música popular para satisfazer os gostos dos jovens de forma a incentivar os mesmos para a música clássica desvaloriza a música popular (GREEN, 1988), neste sentido é importante compreender até que ponto a sala de aula condiciona os significados musicais, tanto em relação à música popular, assim como à música clássica. Sendo assim, é importante compreender a questão da música que se faz dentro e fora do âmbito escolar, com especial incidência no ensino secundário, e tentar perceber as razões pelas quais os alunos do curso básico de música não prosseguem estudos ao nível da composição musical no curso secundário. De referir, que alguns dos alunos que optam pelo prosseguimento de estudos de composição no ensino secundário, aquando do ingresso numa escola de ensino artístico especializado de música, trazem consigo importantes experiências musicais relacionadas com a criação musical, proporcionadas por um ensino não formal e informal. Um outro aspeto a não descurar é perceber quais as aspirações que os alunos têm relativamente à música, o que pretendem aprender, e o que as escolas têm para oferecer aos seus alunos. Neste sentido podem-se colocar várias questões, tais como: 1. Que tipo de música os alunos aprendem na escola? 2. Qual o tipo de música que os alunos praticam fora do âmbito escolar? 3. Será que as escolas estão a corresponder às espectativas dos alunos? 4. Que espectativas e perspetivas têm os alunos quando ingressam no curso de música? 5. Não deveriam as escolas reformular o seu plano de ensino de forma a ir de encontro às necessidades dos alunos, tentando ajustar ao que eles pretendem ou às espectativas criadas por eles em relação à música? No contexto de escola de música formal, as metodologias de ensino incidem em práticas pedagógicas tradicionais assentes no paradigma da música dita erudita ocidental. No entanto, é do conhecimento geral a ligação dos jovens a outras tipologias musicais mais próximas da sua identidade. Neste sentido, a procura musical dos alunos parece ter pouca resposta na escola de música formal. O processo de ensino e aprendizagem da música em contexto não formal e informal participa de um conjunto de pressupostos que poderiam contribuir para o desenvolvimento do aluno em contexto formal. Nesta perspetiva Green (2002) identificou cinco princípios chave da aprendizagem informal: 1. A aprendizagem informal começa com a música escolhida pelos próprios alunos, por oposição à educação formal, onde os materiais musicais são normalmente préselecionados pelos professores; 2. A principal fonte de aquisição de conhecimentos envolve a cópia de gravações por ouvido; Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 15 144 3. A aprendizagem em grupo ou auto-orientada constitui uma parte importante dos processos de aprendizagem informal; 4. As bases do conhecimento musical são assimiladas em «modos aleatórios, idiossincráticos e holísticos»; 5. A aprendizagem de música informal geralmente envolve a integração de processos de escuta, realização, improvisação e composição (em vez de educação musical formal que tende a se concentrar em apenas uma dessas atividades). Sendo assim, é importante ter uma espectativa, uma visão atualizada e a mais representativa possível das experiências musicais dos alunos. Neste particular, a música que se pratica fora do âmbito escolar, ou dentro do âmbito escolar deve envolver a criança de uma forma ativa no processo musical. Nesta linha de pensamento (MARTINS, 1974 apud VIEIRA, 1998, p. 29) diz o seguinte: A ausência de atividades criativas na sala de aula, e um ensino envelhecido, assente na reprodução das obras dos velhos mestres, eram considerados os principais responsáveis pela falta de espontaneidade e de entusiasmo dos alunos, bem como pela sua fraca preparação para a inserção na vida profissional de músico ou professor. A improvisação é um meio muito importante para desenvolver habilidades relacionadas com a criação musical, quer seja no âmbito da disciplina de Educação Musical, quer seja no âmbito da disciplina de Composição ligada ao ensino especializado. A ausência destas atividades no processo de ensino e aprendizagem são ainda hoje uma realidade no contexto de escola de música formal. Neste sentido, modificar ou alterar as práticas pedagógicas por forma a serem apelativas aos alunos que pretendem seguir a área da música, pode ser um compromisso e um desafio, para o século XXI, para os alunos e para os profissionais da música. 3 | A PREFERÊNCIA MUSICAL DOS JOVENS A preferência musical dos alunos é uma variável a ter em conta na sua opção de escolha. De facto, a escola de música formal enfatiza muito as suas aprendizagens numa tipologia musical dita de música erudita ocidental, não levando em conta as perspetivas, o gosto e as preferências dos alunos. De acordo com Folhadela, Vasconcelos, Palma (1998, p. 7): O modelo único de organização curricular e pedagógica, predominante no ensino especializado da música, que assenta na formação de instrumentistas solistas, ancorado numa perspectiva do século XIX e numa única tipologia musical, tem impedido que se dêem respostas adequadas à procura crescente da aprendizagem musical que correspondam à heterogeneidade dos territórios, dos alunos, dos públicos, dos profissionais e do desenvolvimento do mercado de emprego. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 15 145 Segundo Brito (2016, p. 222), autores como, «Arroyo, Swanwick , Queiroz e Queiroz e Marinho vêm apontando a necessidade de se levar em consideração o background cultural/musical dos alunos na elaboração do planejamento escolar». As preferências musicais dos alunos são condicionadas por diversos fatores, tais como: «a familiaridade, complexidade e audição repetitiva; influências sociais e culturais; personalidade do ouvinte; uso da música; género; classe social e idade» (BRITO, 2016, p. 222). A música ocupa um lugar de relevância na vida e no quotidiano dos indivíduos, em especial da juventude. É o principal produto cultural consumido pelos jovens. A música está presente nas atividades de lazer, e também em contextos diversos, quer sejam formais ou informais. Os jovens escutam, participam de grupos diversos, vocais e instrumentais, bandas, inscrevem-se em aulas de instrumentos e criam as suas próprias canções (BRITO, 2016). Estes cenários exteriores da música e das vivências dos alunos apresentam-se como um fundamento para se pensar o ensino de música e ampliar as reflexões sobre o currículo, conteúdos de ensino e aprendizagem que a escola de música oferece aos jovens (BRITO, 2016). Para a maioria dos indivíduos, a música é utilizada, de forma voluntaria ou não, como ferramenta de integração e interação social. As diversas atividades musicais, como idas a concertos, festivais, discotecas, ou até mesmo ouvir música juntamente com amigos, proporcionam às pessoas a inserção nos diferentes meios sociais. Neste contexto, o ensino da música deve considerar estes desideratos no sentido de encontrar soluções que permitam responder de forma eficaz a uma população que procura o ensino da música e lhe proporcione uma escolha determinada, consciente e integrada nos seus valores culturais. 4 | MÚSICA E NOVAS TECNOLOGIAS Um aspeto relevante nos dias de hoje, e tendo em conta a constante evolução tecnológica e científica a que estamos sujeitos, mais do que nunca se exige por parte das instituições e professores uma maior valorização da intuição, da criatividade e da livre expressão dos estudantes de música, de forma a que estes possam lidar com as diferentes situações do seu quotidiano e lidar com elas, quer seja dentro ou fora do contexto escolar. A partir da segunda metade do século XX, sob a influência de pesquisas em música eletrónica e música concreta realizadas por Pierre Schaeffer, Stockhausen entre outros compositores, a então chamada música de vanguarda enfoca o som como matéria prima da música e centro de interesse musical. Esta ideia é defendida por grande parte dos pedagogos musicais da época. Desde então passa-se a privilegiar, dentro das novas propostas pedagógicas, a criação, a improvisação, a escuta ativa, a ênfase no som e as suas características, evitando-se a reprodução vocal e instrumental do que se passa a dominar música do passado. O uso das tecnologias como ferramenta de trabalho no campo da criação musical, Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 15 146 é algo que nos dias de hoje não nos podemos dissociar. «As possibilidades criadoras que estas ferramentas de trabalho nos podem trazer, são fundamentais para o desempenho, motivação e criação, devendo estas serem ajustadas, à realidade com que nos deparamos nos dias de hoje» (KIMMEL; DEEK, 1995, p. 327-332). Sendo assim, o uso das tecnologias como ferramenta de trabalho, torna-se uma questão pertinente e central a abordar no que diz respeito à criação musical. Desta forma, será fundamental fazer uma reflexão sobre a utilidade destes novos recursos pedagógicos, que dispomos nos dias de hoje, e de que forma eles nos podem ser úteis no que diz respeito à criação musical, e motivação dos alunos para a composição. 5 | CRIATIVIDADE O conceito de criatividade tem vindo a ser discutido no campo académico e científico. A criatividade vem sendo compreendida sob perspectivas muito diferentes ao longo da história. Vista nos tempos antigos como inspiração divina, somente muito tempo depois, durante a era do Romantismo, na Europa do século XIX, a criatividade passou a ser entendida como algo que envolvia as capacidades humanas, tornando-se objeto de estudo nos primórdios da Psicologia […]. […] em meados do século XX a criatividade foi analisada sob diversas lentes no campo da Psicologia, perspectivas essas que vêm sendo ampliadas, com contribuições de diferentes campos do conhecimento. No início do século XXI, cresce o reconhecimento de que a criatividade precisa ser compreendida em relação ao contexto cultural no qual se manifesta. Tais trabalhos vêm emoldurando e direcionando estudos nas áreas da educação, da educação musical e, mais especificamente, pesquisas sobre práticas criativas de crianças e jovens em contextos de ensino e de aprendizagem (BEINEKE, 2012, p. 45). De facto, a criatividade é compreendida de muitas formas, tanto no senso comum como no campo científico. Analisando o que as pessoas entendem por criatividade, constatase que ainda predominam muitas ideias preconcebidas sobre o tema. Uma delas é que a criatividade é um dom divino destinado a um grupo seleto de indivíduos e que por isso não pode ser ensinada. Outra conceção equivocada de criatividade, é que as pessoas são criativas ou não, quando o que se observa é que existem graus de criatividade. A crença de que a ideia criativa surge como um toque de magia também ainda está presente no senso comum, bem como a correlação entre indivíduos muito criativos e o desajustamento ou a própria loucura. É negativo pensar a criatividade, como dependente apenas de fatores intrapessoais, sendo subestimadas as contribuições da sociedade no processo criativo. Na verdade, não existe consenso sobre o que significa ser criativo (BEINEKE, 2012). A própria definição de criatividade é um tema de pesquisa que está em constante revisão, com debates científicos atuais. Um ponto em comum nas definições de criatividade é que ela envolve sempre a emergência de um produto novo, que pode ser uma ideia ou Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 15 147 invenção original. Além da necessidade de ser gerado um produto novo, também há certo consenso de que esse produto deverá ter alguma relevância, ser apropriado à sua função. A criatividade, no entanto, sempre é relativa, pois envolve o julgamento de seus produtos por um número de pessoas, que poderá ou não aceitá-lo como criativo. Quem avalia um produto criativo pode ser uma sociedade, um comité de pessoas ou um único juiz, mas o nível de criatividade de uma pessoa sempre será avaliado em comparação a outro produto. Uma produção nova e original, por definição, é aquela que ainda não foi realizada por outras pessoas, mas essa novidade pode ocorrer em diferentes graus: desde um pequeno desvio do que já foi feito até uma grande inovação (BEINEKE, 2012). Os caminhos criativos são limitados por várias restrições. Stravinsky (1947) referiu-se às restrições como um aspeto essencial nas suas composições quando disse o seguinte: «a minha liberdade consiste em me movimentar dentro do quadro estreito que projetei a mim mesmo... quanto mais restrições impusermos, mais nos libertamos das correntes que prendem o espírito» (STRAVINSKY, 1947, p. 68, tradução nossa)2. As restrições e liberdade sobre a forma de como os alunos devem compor a música, continua a ser um tema ainda com muitos debates. Alguns pesquisadores, defendem que as restrições sobre os recursos de composição, fazem com que a composição sirva de guia de um processo de tomada de decisões, e podem também encorajar para uma série de estratégias composicionais (KRATUS, 1989). Por oposição, existe um outro ponto de vista de um conjunto de pesquisadores, que considera o uso das restrições uma ameaça ao próprio ato expressivo, e que a falta de liberdade pode acarretar responsabilidades relacionadas com a autodeterminação (LOANE, 1984; PAYNTER, 1992; WITKIN, 1974). Também Sternberg (1988) defende a interdependência das restrições e liberdades na produção criativa como a set of choices, isto é, um conjunto de escolhas limitadas por critérios psiquiátricos e táticos que determinam o género e o estilo do compositor. Alguns estudos procuraram determinar os efeitos das restrições. Um estudo australiano realizado por Burnard (1995), em que examinou estratégias de composição num grupo de estudantes do ensino secundário, verificou que, tendo os alunos sido sujeitos aos constrangimentos e liberdades de forma diferente, as abordagens individuais para a composição parecem consistentes nas tarefas relacionadas com a criatividade e desempenho. Um outro pesquisador, Younker (2000) informou que as estratégias de composição nos estudantes com menos instrução formal em música (fora do contexto escolar) diferiu mais dentro de um grupo etário que em todas as idades, sugerindo que outros fatores como, a idade e a prática musical foram importantes na maneira como se aproximavam na forma de compor. São os pesquisadores que têm feito trabalhos de investigação sobre o desenvolvimento musical que sugerem que existe uma relação hierárquica entre o uso da estratégia e a idade (KRATUS, 1994), enquanto Swanwick e Tillman (1986) sugerem uma relação em espiral 2 Original: «(…) my freedom consists in my moving about within the narrow frame that I have designed myself ... the more constraints one imposes, the more one frees one’s self of the chains that shackle the spirit» (STRAVINSKY, 1947, p. 68). Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 15 148 entre a idade e os conteúdos. No entanto, a progressão do desenvolvimento exibida em todas as idades nos relatórios de Barrett (1996) e Davies (1992) revelou-se menos óbvia. Tudo dentro de uma perspetiva construtiva tentando entender a natureza das diferenças nas formas como os alunos compõem, procurando descrever e interpretar as estratégias de acordo como os participantes as entenderam. As crianças são menos constrangidas nas práticas composicionais que os adultos, e têm menos objeções no que diz respeito às competências musicais. Os resultados mostram que a capacidade de resolver problemas musicais criativos, o uso de processos estratégicos como a repetição são frequentes. Uma estratégia, segundo Wallas (1926), é definida como um plano que envolve momentos de decisão para a composição. As etapas referentes às operações criativas são as seguintes: 1) a preparação, quando um indivíduo pensa sobre um esboço geral; 2) a incubação, indica quando o indivíduo começa a gerar ideias e conteúdos musicais específicos e considera várias possibilidades; 3) a iluminação, quando o material é avaliado, selecionado, modificado e organizado em estruturas; 4) a verificação, avaliação da peça e as decisões tomadas. Apesar da inclusão da composição musical nos currículos escolares de música no Reino Unido, EUA, Canadá e Austrália, o papel da criatividade na composição musical é uma questão difícil. Paynter (1982) considera a composição e principalmente a improvisação como o preferido e o principal meio de aprendizagem, portanto deve estar presente no currículo do aluno. Lawrence (1978), considera que a improvisação deve estar presente no processo de composição, ou «um impulso que cria a criação em movimento» (SESSIONS, 1952, p. 38), e considera os dois fenómenos como indistinguíveis no ato da criação (LOANE, 1984; DAVIES, 1992; MARSH, 1995). Sendo a improvisação parte integrante de estilos e géneros, como jazz e blues, o termo pode ser usado para descrever a essência da espontaneidade de estilos préexistentes (ELLIOTT, 1996). Está provado que experiências com a improvisação com adultos dão resultados, o mesmo não acontece com crianças. Surge então uma questão, até que ponto a experiência das crianças de improvisar e compor resulta como nos adultos? Não existe um conhecimento relativamente à experiência de improvisação e composição nas crianças, apenas alegações contraditórias que propõem: a existência de diferentes processos musicais (KRATUS, 1989, 1991; UPITIS, 1992): envolvimento de habilidades distintas (Webster,1990; McPherson,1998); e diferentes aptidões (GORDON, 2000). Outros consideram que os dois processos são indiscutíveis (SWANWICK; TILLMAN, 1986; LOANE, 1987). O termo composição foi aplicado a formas de improvisação e música criativa (SWANWICK; TILLMAN, 1986; DAVIES, 1992). Investigadores posteriores começam a delimitar esses termos (composição e improvisação) de forma mais especifica (WEBSTER, 1990; KRATUS, 1994; BARRETT, 1996; FOLKESTAD,1998). Sendo assim, é importante perceber como as crianças reagem à improvisação e composição, e explorar a natureza da relação entre improvisação e composição na perspetiva das crianças. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 15 149 6 | CONSIDERAÇÕES FINAIS O ensino da música nas escolas especializadas tem seguido um caminho orientado para uma determinada tipologia musical e assenta em práticas pedagógicas tradicionais, herdadas do século XIX. Por seu lado, verifica-se, na atualidade, uma procura musical eclética por parte dos jovens que se associam a outros géneros e estilos musicais integrados no âmbito da música dita popular. Estas tipologias são subvalorizadas pela escola de música especializada não privilegiando a música que se ouve fora da escola. De facto, é do conhecimento que as preferências musicais dos jovens não são levadas em conta na planificação das aulas de música. Por outro lado, a escola de música especializada não promove pedagogias centradas nos alunos nem utiliza as novas tecnologias e detém pouca atenção ou nenhuma ao ato criativo dos alunos. Os alunos são reprodutores e não compositores. Há um conjunto de factores estruturantes da educação musical que são considerados inibidores da criatividade, entre ele está o facto de esta fazer da criança um re-criador em vez de criador, ou seja, a principal base que sustenta essa educação está na performance em vez de estar na criação, e performance de música do passado. Na perspectiva dos compositores, nomeadamente Pierre Schaeffer (1933-) e John Paynter (1931-2010), a causa do afastamento actual entre a música contemporânea e as instituições de ensino da música deve-se ao pouco envolvimento dos alunos na composição (FERREIRA, 2011, p. 10). A diferença entre o que se ouve em casa e o que se pratica na escola pode estar na origem da pouca procura, por pare dos jovens, pelo curso de composição musical da escola de música especializada. REFERÊNCIAS BARRETT, Margaret. Children’s aesthetic decision-making: An analysis of children’s musical discourse as composers. International Journal of Music Education, Londres, v. 28, nº 1, p. 37-62, 1996. https:// doi.org/10.1177/025576149602800104 BARRETT, Margaret. Researching children’s compositional processes and products: connections to music education practice? In: SUNDIN, B.; McPHERSON, G.; FOLKESTAD, G. (Eds.). Children Composing. Malmö: Lund University, 1998. p. 10-34. BEINEKE, Viviane. Aprendizagem criativa e educação musical: trajetórias de pesquisa e perspectivas educacionais. Educação, Santa Maria, v. 37, n. 1, p. 45-60, jan./abr. 2012. BRITO, Mikely Pereira. O jovem e suas preferências musicais: revisão de literatura. 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Foi estabelecido as seguintes categorias: tempo e ritmo, melodia, textura e sonoridade. A cada uma destas categorias foram conferidos três possíveis níveis de dificuldade: pouca dificuldade, razoável dificuldade e muita dificuldade, que contribuirá para a classificação de dificuldade técnica mais específica em uma obra musical. PALAVRAS - CHAVE: Nível de dificuldade. Piano. Critérios Musicais. se-á um melhor conhecimento da escrita através do estabelecimento de ferramentas específicas para a realização de uma análise. No livro 36 Compositores Brasileiros: Obras para piano (1950 a 1988), de GANDELMAN (1997), consiste em mostrar as características dificuldade composicionais técnico-musical, e a classificando-se em níveis de dificuldade a produção pianística dos compositores selecionados, sendo esta avaliação feita a partir da observação desenvolvida ao longo dos anos de ensino da autora; o trabalho não trata, no entanto, das ABSTRACT: This study focuses on the investigation of categories and criterion, departing from its pianistic writing, that help to identify the existing difficulties in musical works for this instrument. Was made through the use of the following categories: tempo and rhythm, melody, texture and sonority. To each one of these categories three possible levels of difficulty were given: low difficulty, reasonable difficulty, much difficulty, which contribute to the technical difficulty of classification more specific in a musical work. KEYWORDS: Level of difficulty. Piano. Musical Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 práticas e ferramentas utilizadas para esta classificação. O Guia Prático e Temático n°1, RICORDI (1978), aborda a mesma questão, ao classificar todas as edições de composição para piano feitas pela editora Ricordi por grau de dificuldade, indicando músicas desde o primeiro ano do curso preliminar até o curso superior, contudo também não define quais mecanismos utilizados para tal definição. Consultas pianística, em incluindo tratados os livros Capítulo 16 de técnica Teoria da 154 Aprendizagem Pianística, de KAPLAN (1985) e Como devemos estudar piano de LEIMER e GIESEKING (1949), evidenciaram que os autores enfatizam a necessidade de um estudo consciente para uma execução pianística mais efetiva, estabelecendo padrões gerais relevantes para um estudo acerca de dificuldades técnico-musicais. A escolha do tema deste artigo justifica-se pela necessidade de tal conhecimento para o repertório didático-pianístico brasileiro, por um lado, assim como pela inexistência, até o momento, de um estudo que ofereça aos professores de piano, ferramentas pedagógicas que lidem especificamente sobre a identificação de dificuldade técnico-musical em uma obra. Para que isto seja possível, faz-se necessário o estabelecimento da seguinte metodologia: • Estabelecimento de categorias a serem utilizadas na investigação da dificuldade técnico-musical: tempo e ritmo, melodia, textura e sonoridade, assim como a classificação de três níveis a serem utilizados para o estabelecimento da dificuldade de cada categoria em cada peça: 1) pouca dificuldade; 2) razoável dificuldade e 3) muita dificuldade. Tais classificações estão descritas no capítulo 2, Categorias e Critérios de dificuldade pianística, onde parte de uma avaliação tanto quantitativa quanto qualitativa das categorias técnico-musicais analisadas; Haja vista a importância deste tema aqui abordado, assim como a necessidade de um estudo que vise à aplicação prática dos conhecimentos adquiridos, acredita-se ser relevante um trabalho que contribua para um melhor entendimento de obra pianística e que proporcione resultados que possam ser úteis tanto para a performance quanto para o ensino da mesma. 2 | CATEGORIAS E CRITÉRIOS DE DIFICULDADE PIANÍSTICA A análise musical, assim como qualquer avaliação acerca de determinado objeto, mesmo quando pautada por critérios objetivos, envolve considerável grau de subjetividade. O maestro e pensador Sérgio Magnani discorre a respeito: A estética, como disciplina teorética, é a reflexão em torno dos problemas da arte; como atividade prática, é a contemplação consciente da obra de arte, a integração com o processo criativo e com seus objetivos, o processamento interior dos dados que permitem a formulação de um juízo crítico. Note-se que todas estas operações do espírito são orientadas e potenciadas pela cultura; mas podem também independer dela, desenrolando-se por canais de identificação intuitiva ou não identificação intuitiva, (MAGNANI, 1989, pag.15). Contudo, para um melhor entendimento acerca do processo de classificação de dificuldade proposto, apresentamos aqui um detalhamento das diferentes categorias utilizadas nesta análise, tidas como fundamentais para a execução pianístico- musical: Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 16 155 1. Tempo e ritmo; 2. Melodia; 3. Textura; 4. Sonoridade. Para uma maior clareza quanto à avaliação destas categorias foram previamente estabelecidos três níveis de dificuldade, utilizados para uma análise tanto quantitativa quanto qualitativa: 1. Pouca dificuldade; 2. Razoável dificuldade; 3. Muita dificuldade. 2.1 Tempo e Ritmo De acordo com FALLOWS (2001), pg. 120, tempo - ou andamento - é “a velocidade na qual procede a performance”, enquanto que ritmo, conforme DÜRR e GERSTENBERG (2001), pg.804, é “a subdivisão de um período de tempo em seções perceptíveis pelos sentidos; o agrupamento de sons musicais, principalmente através de duração e acentuação”. Ritmo talvez seja o mais fundamental dos três elementos musicais básicos, os outros dois sendo melodia e harmonia; sua organização afeta toda a estruturação musical e seu maior ou menor nível de complexidade pode ser determinante quanto ao grau de dificuldade de uma obra. A velocidade de execução pode, igualmente, contribuir para a percepção relativa à dificuldade, já que envolve diferentes níveis da complexidade motora necessária à performance. 2.1.1 Pouca Dificuldade Neste nível incluímos andamentos lentos, como Larghetto, Adagio e Andante, em especial por possibilitarem maior tempo para o executante realizar a leitura, localizar-se ao teclado, assim como para uma execução com maior fluência e correção acerca de notas e ritmos. Andamentos extremamente lentos, como Grave e Largo, tornam a avaliação de dificuldade ainda menos objetiva, já que envolvem uma maior complexidade quanto à manutenção do pulso. Sobre a agógica destacamos a pouca incidência de indicações que alterem a mudança de andamento e que tenham apenas um ou dois tipos de expressões como, por exemplo, accelerando e rallentando. Consideramos também de pouca dificuldade a incidência de compassos binários, ternários e quaternários, assim como os tipos simples de ritmos e suas combinações. As peças que contenham predominantemente figuras como mínima, semínima e colcheia, ou uma mesma célula rítmica permeando toda a obra, serão classificadas neste primeiro nível. 2.1.2 Razoável Dificuldade Andamentos de velocidade moderada como Andantino e Allegretto que possibilitem uma execução tranquila, porém com maior fluência, serão aqui incluídos. Na agógica, destacamos uma maior incidência de expressões, e mais variações de indicações de mudança de andamento. Os compassos compostos binários, ternários e quaternários, subdivisões binárias e ternárias, a pouca incidência de síncopes simples e polirritmias Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 16 156 básicas (duas colcheias contra três colcheias, por exemplo.) serão também considerados como de razoável dificuldade. 2.1.3 Muita Dificuldade Tempos rápidos ou muito rápidos, caracterizados por uma complexidade maior quanto à realização motora e destreza e de caráter até virtuosístico (por exemplo, Allegro, Vivace, Presto e Prestíssimo), serão tidos como de muita dificuldade. Na agógica, destacamos uma ampla incidência e diversidade de expressões de andamento, assim como mudanças bruscas das mesmas. Também ficam neste nível a polimetria, a alternância e combinações diversas de compassos assim como uma maior variedade de pulsação dentro de uma mesma peça ou movimento. Os aparecimentos constantes de síncopes, polirritmias mais elaboradas (quatro semicolcheias contra cinco semicolcheias, por exemplo), diferentes combinações rítmicas justapostas, quiálteras acima de cinco notas, além da grande diversidade nas indicações de acentuações e seus deslocamentos também serão considerados elementos de muita dificuldade. 2.2 Melodia De acordo com RINGER (2001), pg. 363, melodia pode ser definida como “sons de alturas determinadas, organizados no tempo musical (...)”. Serão aqui avaliados, primariamente, a ocorrência de distâncias intervalares diversas, assim como dos vários sinais utilizados para denotar a articulação melódica, tais como ligadura, tenuta, staccato, entre outros, envolvidos na identificação e análise das frases musicais. O aspecto melódico de uma obra diz respeito, igualmente, à maior ou menor complexidade da invenção temática, resultando em “ideias musicais”, “temas” ou “melodias” que ocorrem em profusão pequena ou grande e podem se caracterizar como mais ou menos elaboradas. 2.2.1 Pouca Dificuldade Linhas melódicas de extensão restrita e com maior incidência de graus conjuntos, saltos pouco frequentes e predominantemente contidos em uma oitava, assim como pouca ou nenhuma diversidade de articulação caracterizarão a pouca dificuldade melódica; os temas são poucos, simples e facilmente identificáveis. 2.2.2 Razoável Dificuldade Neste nível as linhas melódicas podem ter maior extensão, os saltos são razoavelmente amplos (não maiores que duas oitavas) e aparecem com maior frequência; alguma diversidade pode ser notada quanto à articulação e organização das frases, e os temas podem apresentar maior diversidade. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 16 157 2.2.3 Muita Dificuldade Aqui poderemos encontrar linhas melódicas muito extensas, multiplicidade de temas com grande variedade inventiva, além de saltos rápidos e frequentes com âmbito de mais de duas oitavas. Uma grande diversidade de articulação e de organização fraseológica, assim como a sobreposição de diferentes tipos de articulação também serão tidos como elementos de muita dificuldade. 2.3 Textura Conforme THE NEW GROVE (2001), pg. 323, textura é “termo usado vagamente em referência a quaisquer dos aspectos verticais de uma estrutura musical, usualmente em relação à maneira em que partes ou vozes individuais são organizadas. “ Há dois tipos principais de textura: homofônica, na qual as partes são interdependentes ou há clara distinção entre melodia e acompanhamento; e polifônica, onde as vozes movemse independentemente ou em imitação. Entre estes dois tipos há ainda um “estilo livre” (free-part style), onde o número de partes pode variar em uma única frase. Pode-se ainda referir-se à textura como “densa” ou “leve”, com relação ao espaçamento de acordes e/ ou quantidade de vozes envolvidas. A textura pianística pode envolver consideráveis e variados níveis de complexidade, representando desafios diversos à performance. 2.3.1 Pouca Dificuldade Aqui deverá haver predominância de textura homofônica, em especial a incidência da relação melodia/acompanhamento, assim como uma organização textural mais “leve” da composição. 2.3.2 Razoável Dificuldade Incluiremos neste nível peças de textura homofônica com eventual adensamento na organização das partes, assim como aquelas de textura mista ou polifônica que envolva pouca complexidade contrapontística (número restrito de vozes e com pouca movimentação). 2.3.3 Muita Dificuldade Neste nível incluiremos composições de textura homofônica que compreenda grande adensamento das partes, assim como outras de textura mista e/ou polifônicocontrapontística mais densa e complexa, envolvendo maior número de vozes com considerável movimentação. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 16 158 2.4 Sonoridade Esta categoria será vista, aqui, como o conjunto de aspectos diversos relacionados à qualidade do som musical-pianístico, como, por exemplo, timbre, dinâmica, pedalização, utilizados na performance. Partir-se-á não somente das indicações expressamente grafadas no texto musical, mas também do que é indiretamente sugerido pelo mesmo. 2.4.1 Pouca Dificuldade Pouca variação de dinâmica caracterizará este nível, com a ocorrência de poucos planos de intensidade, assim como utilização restrita da extensão do teclado, efeitos timbrísticos simples e pedalização básica (esparso e simples uso do pedal da direita, preferencialmente sem uso da una corda). 2.4.2 Razoável Dificuldade Efeitos mais variados de dinâmica, com maior e mais diverso âmbito de intensidades utilizadas. O timbre poderá ser mais explorado, a partir da necessidade de utilização de diferentes tipos de toque (sugeridos por indicações como cantabile, dolce, sfz, etc.). A pedalização poderá requerer o uso da una corda, como também do pedal da direita de maneira mais extensa e variada. 2.4.3 Muita Dificuldade Neste nível será incluído o uso mais amplo e diversificado de dinâmica (desde o ppp até o ffff, por exemplo), como também abruptos e frequentes contrastes de toques visando alterações no timbre. O teclado poderá ser explorado em toda a sua extensão, e o uso do pedal dar-se-á de maneira mais diversificada e complexa, a partir, por exemplo, de trocas frequentes e/ou rápidas, uso de efeitos como meio ou um quarto de pedal, trêmulo de pedal, una corda, pedal tonal (sostenuto). Utilizou-se o termo “dificuldade” como um substantivo que pudesse representar o nível de complexidade pianística de cada uma das categorias avaliadas, assim como em oposição a “facilidade”, expressão que esta autora acredita não ser possível utilizar em relação a nenhuma das obras analisadas. Muito embora a avaliação proposta acima apresente vários critérios, não há como ver-se livre de um forte elemento subjetivo quando de sua efetivação. Acreditamos, no entanto, ser este um fator importante para que esta análise possa ser não somente quantitativa, mas, também qualitativa, o que, esperamos, possa contribuir de maneira ainda mais efetiva para a compreensão acerca dos diferentes níveis de dificuldade pianística presentes na obra. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 16 159 2.5 Resumo dos Critérios Para melhor entendimento, segue um resumo de todas as categorias e seus atributos, separados em quadros por nível de dificuldade, conforme critérios estabelecidos. 2.5.1 Tempo e Ritmo Quadro 1 Quadro 2 Quadro 3 Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 16 160 2.5.2 Melodia Quadro 4 Quadro 5 Quadro 6 2.5.3 Textura Quadro 7 Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 16 161 Quadro 8 Quadro 9 2.5.4 Sonoridade Quadro 10 Quadro 11 Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 16 162 Quadro 12 3 | CONSIDERAÇÕES FINAIS Consideramos importante este trabalho, no sentido de ser um auxílio na ocasião em que se precise classificar determinados níveis de dificuldades existentes principalmente em obras musicais dedicadas ao piano. Esta pesquisa coopera como uma ferramenta que instiga a observar certas Categorias e Critérios relevantes dentro de uma música. Os Níveis de Dificuldades estabelecidos neste trabalho, forma classificados e definimos em três níveis como: pouca dificuldade, razoável dificuldade e muita dificuldade, uma forma despretensiosa que contribuirá para a classificação descomplicada do grau de dificuldade técnica dentro de uma obra musical. É importante entender que cada categoria seja, Tempo e ritmo. Melodia; Textura e Sonoridade devem ser analisadas em uma partitura musical de forma distinta uma da outra, ou seja, o nível de dificuldade é disposto em separado em cada grupo. Sendo assim, uma mesma obra musical pode ter variados graus de dificuldade, evidentemente em categorias diferentes. Como exemplo, uma música pode estar com a categoria Tempo e Ritmo, em um nível de pouca dificuldade, já a sua Melodia e Sonoridade em alta dificuldade e por fim sua Textura em razoável dificuldade. Em síntese, o olhar para cada Categoria deve ser analisado de forma singular, pois é sabido que a uma música é composta pela combinação de diversos elementos e cada um carrega uma função particular. Acredita-se que os resultados desta pesquisa possam vir a lançar uma luz sobre o trabalho daqueles que venham a se debruçar sobre dificuldades de leitura pianística, assim como gradações de dificuldades tanto de leitura como também sobre a técnica pianística, sejam eles intérpretes, professores ou estudantes, a partir de uma maior consciência em relação aos níveis de dificuldade pianístico-musical presentes na obra. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 16 163 REFERÊNCIAS DÜRR, Walther e GERSTENBERG, Walter. Melody. Rhythm. Tempo. Texture. In: The New Grove nd Dictionary of Music and Musicians. 2 . ed. London and New York: Grove Macmillan Publishers Limited, 2001. a GANDELMAN, Salomea. 36 Compositores Brasileiros: Obras para Piano (1950 a 1988). 1 ed. Rio de Janeiro: Funarte/Relume Dumará, 1997. 335p. KAPLAN, José Alberto. Teoria da Aprendizagem Pianística. Porto Alegre: Editora Movimento, 1985. 112 p. LEIMER, Karl; GIESEKING, Walter. Como Devemos Estudar Piano. Trad. Tatiana Braunwieser. São Paulo: Editorial Mangione S. A., 1949. 63p. MAGNANI, Sérgio. Expressão e Comunicação na Linguagem da Música. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1989. MARCONDES, Marcos Antônio; RIBENBOIM, Ricardo. Enciclopédia da Música Brasileira: Erudita, Folclórica e Popular. 2 ed. rev. e aum. São Paulo: Art Editora, 1998. 912p. RICORDI, Guia Prático e Temático n°1. São Paulo: Ricordi Brasileira, 1978. 384p. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 16 164 CAPÍTULO 17 DOI 10.22533/at.ed.00000000000 ANÁLISE DA DIFICULDADE TÉCNICA PIANÍSTICA NA I SUÍTE BRASILEIRA DE OSCAR LORENZO FERNANDEZ Data de aceite: 16/04/2021 existing or not this suite obstacles. KEYWORDS: Analysis. Lorenzo Fernândez . Piano. Júnia Gonçalves Santiago http://lattes.cnpq.br/8205568667624773 1 | INTRODUÇÃO Oscar Lorenzo Fernândez (1897 – 1948) RESUMO: Este estudo enfoca uma análise sob os aspectos da escrita e técnica pianística existentes na I Suíte Brasileira para piano solo, de Oscar Lorenzo Fernândez (1897 – 1948), utilizando-se de ferramentas previamente estabelecidas que visa ajudar a identificar as dificuldades existentes na mencionada obra musical. A análise da obra foi feita a partir de categorias anteriormente estabelecidas como: tempo e ritmo, melodia, textura e sonoridade, produzida de forma tanto quantitativa quanto qualitativa. A partir dos critérios utilizados, percebeu-se de forma mais nítida os obstáculos existentes ou não nesta suíte. PALAVRAS - CHAVE: Análise. Lorenzo Fernândez. Piano. ABSTRACT: This study focuses on an analysis from the aspects of writing and technical pianistic existing in I Suite Brasileira for solo piano, Oscar Lorenzo Fernandez (1897 - 1948), using previously established tools aimed at helping to identify the difficulties in the mentioned work musical. The analysis of the work was made from categories previously established as: time and rhythm, melody, texture and sound, produced both quantitatively and qualitatively. Based on the criteria used, it was realized more clearly the Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 foi um compositor carioca que recebeu de sua irmã as primeiras noções de música e, orientado pela mesma, em 1917 ingressou no Instituto Nacional de Música do Rio de Janeiro, onde foi discípulo de Henrique Oswald, Francisco Braga, Frederico Nascimento e J. Otaviano. Foi responsável pela fundação da Sociedade Cultura Musical em 1920, onde ocupou diversos cargos, até sua extinção em 1926. Já em 1936, fundou o Conservatório Nacional de Música, no Rio de Janeiro, uma das mais importantes instituições musicais do país. Apaixonado pelo folclore, foi também um dos incentivadores do nacionalismo musical brasileiro, por meio de várias composições ricas em ritmos brasileiros e com temas de inspiração folclórica. Segundo MARIZ (2000), sua produção artística pode ser dividida em três períodos: o primeiro de 1918 a 1922; segundo de 1922 a 1938 e terceiro de 1938 a 1948. Sua obra compreende canções, suítes sinfônicas, balés, música de câmara, concertos (um para piano e outro para violino) e duas sinfonias, podendo ser citadas composições como Trio brasileiro Capítulo 17 165 Op.32 (1924, piano, violino e violoncelo), Suíte Sinfônica (1925, orquestra), Três Estudos em forma de Sonatina (1929, piano), O Reisado do Pastoreio (1930, orquestra), Toda para você (1930, canto e piano), Valsa Suburbana op. 70 (1932, piano), Primeira Suíte Brasileira (1936, piano), Segunda Suíte Brasileira (1938, piano) e Terceira Suíte Brasileira (1939, piano). Foi observado, em levantamento bibliográfico preliminar que, em Estudo Analítico e Interpretativo sobre as Três Suítes Brasileiras de Oscar Lorenzo Fernandez, escrito por ARAÚJO FILHO (1996), propõe-se um estudo histórico sobre a vida e a criatividade do compositor, seguido de um trabalho analítico da estrutura composicional das três Suítes Brasileiras, assim como conclusões interpretativas das obras sem, no entanto, tratar da questão relativa à dificuldade técnica das obras. Este trabalho propõe um estudo da I Suíte Brasileira, sob o ponto de vista pianístico, visando identificar e caracterizar sua dificuldade técnico- musical perceptível na obra. Será buscado um melhor conhecimento pianístico da composição através da utilização de ferramentas específicas para a realização da análise proposta. A I Suíte Brasileira compõese de três peças, conforme apresentado a seguir: • 1ª Suíte Brasileira - I Velha Modinha - II Suave Acalanto - III Saudosa Seresta A escolha desta Suíte Brasileira como tema deste artigo justifica-se pela sua popularidade no repertório didático-pianístico brasileiro, por um lado, assim como pela inexistência, até o momento, de um estudo que ofereça aos professores de piano, ferramentas pedagógicas que lidem especificamente sobre sua dificuldade técnico-musical na obra. Para que isto seja possível, faz-se necessário o estabelecimento da seguinte metodologia: • Levantamento bibliográfico de textos publicados sobre o compositor e sua obra que tenham relação com a pesquisa, incluindo livros, teses, monografias e artigos. Será feito um exame abrangente desses materiais, com vistas à obtenção de uma visão geral da vida e obra do compositor e, eventualmente, uma visão particular acerca da obra aqui abordada; • Aplicação de categorias a serem utilizadas na investigação da dificuldade técnico-musical: tempo e ritmo, melodia, textura e sonoridade, assim como a classificação de três níveis a serem utilizados para o estabelecimento da dificuldade de cada categoria em cada peça: 1) pouca dificuldade; 2) razoável dificuldade e 3) muita dificuldade. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 17 166 • Tais estabelecimento das categorias e classificações foram obtidas através do artigo científico de SANTIAGO (2007), onde parte de uma avaliação tanto quantitativa quanto qualitativa das categorias técnico-musicais; • Estudo da I Suítes Brasileiras ao piano, na busca de ferramentas que ajudem a identificar as dificuldades pianísticas, além de recursos técnicos que melhor atendam às exigências de interpretação colocadas pelo texto musical e que só podem ser percebidas através da experimentação no próprio instrumento; Haja vista a importância do compositor e da obra aqui abordada, assim como a necessidade de um estudo que vise à aplicação prática dos conhecimentos adquiridos, acredita-se ser relevante um trabalho que contribua para um melhor entendimento da obra e que proporcione resultados que possam ser úteis tanto para a performance quanto para o ensino da mesma. 2 | VELHA MODINHA Escrita em Lá Menor, a peça é caracterizada por um acentuado melodismo sentimental, inspirado nas canções sertanejas brasileiras. Agrupada em 34 compassos, possui uma forma unitária (A), constituída de introdução, três frases e coda distribuídas da seguinte forma: Introdução [1-4], 1ª Frase [5-12], 2ª Frase [13- 20], 3ª Frase [21-28] e Coda [29-34]. 2.1 Tempo e Ritmo Escrita em andamento moderato num compasso quaternário simples, esta peça é quase toda estruturada dentro de uma sucessão contínua e regular de colcheias, exceto em [18] e [19], onde o deslocamento do acento métrico feito pela mão direita nos dá uma ideia de quiáltera de três sons, tornando estes dois compassos polirrítmicos. Nesta obra aparece por três vezes a expressão ritardando, uma no final da introdução, e as outras em [18] e [28]. Já ao final da peça, o compositor escreve “mais lento”, criando assim um efeito de “morrendo” FIGURA 1 – Velha Modinha [3-5] NÍVEL DE DIFICULDADE: Pouca dificuldade Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 17 167 2.2 Melodia Destacam-se dois elementos que caracterizam a melodia desta obra: primeiro, a clareza da voz principal cantada durante toda a peça e, segundo, as marcações feitas pelo baixo, que constitui um eficaz contraponto à melodia. De estrutura consonante, esta peça é composta de uma pequena introdução, três frases e coda. A introdução é iniciada e cantada pela mão esquerda em anacruse, predominantemente em movimento cromático. Enriquecida pela variação da articulação entre legato e staccato, sugere um caráter mais instrumental, mais propriamente um som de violão, e é finalizado com uma fermata, o que gera certo suspense antes da entrada do motivo principal da obra. FIGURA 2 – Velha Modinha [1-4] A melodia central tem por base uma linha tipicamente vocal, executada pela voz do soprano, construída toda em legato e basicamente por graus conjuntos. Esta melodia estende-se por oito compassos, reaparecendo de maneira variada, por mais duas vezes, novamente com oito compassos para cada uma das frases. A coda é constituída pela repetição da introdução, acrescida do motivo principal, o qual permeou toda a obra. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 17 168 FIGURA 3 – Velha Modinha [31-34] NÍVEL DE DIFICULDADE: Pouca dificuldade 2.3 Textura A obra apresenta uma textura polifônica, um plano de três vozes assim organizadas: a linha do soprano como voz principal, tenor como complemento harmônico, utilizando algumas vezes fragmentos da linha melódica; e baixo que é o condutor da estrutura harmônica. Sendo assim, o intérprete deverá criar três planos sonoros distintos para dar clareza à construção polifônica. A disposição das vozes gera pouca simultaneidade sonora, tornando assim a textura leve. FIGURA 4 – Velha Modinha [3-6] NÍVEL DE DIFICULDADE: Razoável dificuldade 2.4 Sonoridade Em relação à dinâmica, a obra varia entre mf e f, com alguns sinais de crescendo e diminuendo, apresentando vozes sempre bem cantadas. A exploração da extensão do instrumento é restrita: o pianista usa predominantemente a parte central do piano, ou seja, as oitavas 2, 3 e 4, exceto na introdução e coda onde o registro alcança o grave. Lorenzo Fernândez coloca indicações claras de pedalização, indicando a troca basicamente a cada mudança harmônica. NÍVEL DE DIFICULDADE: Pouca dificuldade Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 17 169 3 | SUAVE ACALANTO Escrita em Fá Maior, tanto o título quanto a atmosfera da peça sugerem uma canção de ninar, o que é demonstrado pelo ostinato feito pela mão esquerda. Em 25 compassos, a peça possui uma forma unitária (A) em seis frases, onde as características rítmicas e melódicas são similares e constantes. As frases estão assim organizadas: 1ª Frase [1-4], 2ª Frase [5-8], 3ª Frase [9-12], 4ª Frase [13-16], 5ª Frase [17-20], 6ª Frase [21-24] e Codetta [24-25]. 3.1 Tempo e Ritmo Suave Acalanto é uma peça de andamento lento e tranquilo, sugerido pela indicação suavemente. Em compasso quaternário simples, a construção rítmica de Lorenzo Fernândez é caracterizada pela repetição contínua da mesma célula rítmica (na mão direita), quatro colcheias e uma mínima, e a sensação de acalanto se dá pela presença do ostinato (na mão esquerda), colcheia e pausa. Não há nenhuma indicação na partitura em relação à agógica. FIGURA 5 - Suave Acalanto [1-2] NÍVEL DE DIFICULDADE: Pouca dificuldade 3.2 Melodia Encontramos nesta peça seis frases musicais, todas com quatro compassos e início anacrúsico, o que realça simetria e proporção como elementos fundamentais utilizados pelo compositor. Todas as frases têm início com um movimento melódico ascendente. A melodia, simples e de extensão restrita, é cantada todo o tempo pela mão direita, com predominância de graus conjuntos. A articulação é simples, com presença de legato nas mínimas e stacatto com legato nas colcheias. NÍVEL DE DIFICULDADE: Pouca dificuldade Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 17 170 3.3 Textura A peça está elaborada em textura homofônica, sendo que a linha melódica, evidenciada nas notas superiores dos acordes, apresenta pouca e regular movimentação. Existe apenas um maior espaçamento na quarta frase, onde a mão direita se desloca para a região aguda do piano e se utiliza de acordes que abrangem uma oitava. FIGURA 6 - Suave Acalanto [13-15] NÍVEL DE DIFICULDADE: Pouca dificuldade 3.4 Sonoridade Suave Acalanto é quase toda elaborada em dinâmica pp e p, com presença de pequenos sinais de crescendo e diminuendo, exceto em [10], ponto culminante da peça, onde o compositor coloca um f. FIGURA 7 - Suave Acalanto [9-11] Já no final da peça o único ppp é alcançado de maneira bem gradual, pouco antes das duas únicas fermatas, no último compasso. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 17 171 FIGURA 8 - Suave Acalanto [23-26] Utilizando-se do mesmo material melódico, cria-se um contraste de registro na quarta frase, a qual é escrita em duas oitavas acima. Em toda a obra utiliza-se o pedal una corda, conforme indicação na partitura; nota-se também a troca do pedal direito a cada unidade de tempo, empregado com o objetivo de criar, através do ostinato, uma ressonância, resultando em uma atmosfera envolvente. NÍVEL DE DIFICULDADE: Razoável dificuldade 4 | SAUDOSA SERESTA Seresta possui o mesmo significado de serenata, que surgiu com este novo nome no Rio de Janeiro, no início do século XX1. De caráter sentimental, esta peça é escrita em Ré Menor, em forma ternária A – B – A, sendo A de [1-16], B de [17-48] e A’ de [49-64]. Considerando-se o desenho melódico, tem-se uma subdivisão na parte B, o que geraria o formato A – B – B’ – A, com dezesseis compassos para cada uma das seções. 4.1 Tempo e Ritmo A peça tem a indicação de andamento Allegro Cômodo e compasso ternário simples; na parte B este compasso ternário ganha um colorido especial conseguido a partir da mão esquerda que faz um acompanhamento de valsa, elaborado entre o tenor e baixo. As figuras rítmicas utilizadas são mínimas, semínima e colcheia, sendo esta última figura motora da linha melódica da seção B. Observamos que o rigor rítmico será fundamental para tornar a estrutura melódica simples e clara. Em relação aos sinais de rallentando que aparecem na partitura, ressaltamos a função de conexão entre o final de uma frase e início da outra. 1 Enciclopédia da Música Brasileira: Erudita, Folclórica e Popular, de MARCONDES e RIBENBOIM, p.724, (1998). Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 17 172 FIGURA 9 - Saudosa Seresta [31-34] NÍVEL DE DIFICULDADE: Razoável dificuldade 4.2 Melodia Esta peça está estruturada em quatro frases, a primeira na seção A, duas na seção B e a última na seção A’, com a distribuição simétrica de dezesseis compassos para cada uma das frases. A seção A tem como característica a melodia simples executada pelo baixo e um acompanhamento em terças feito pela mão direita. FIGURA 10 - Saudosa Seresta [01-08] A seção B [17-48] é mais cantada em relação à seção A, devido à mudança de registro da melodia e à indicação de uso do pedal. Nesta seção, observamos que a melodia foi posicionada duas oitavas acima, em relação à seção A e entregue à mão direita. Além disso, o tema principal exposto anteriormente é agora variado, recebendo tratamento melódico mais elaborado. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 17 173 FIGURA 11 - Saudosa Seresta [17-21] A seção A retorna levemente modificada nos últimos quatro compassos, onde a melodia recebe um novo desenho e caminha para um fechamento no grave. FIGURA 12 - Saudosa Seresta [61-64] As linhas melódicas estão todas desenvolvidas basicamente por graus conjuntos e em legato, exceto em [19], [39], [45], [47] e [48] onde aparece stacatto sob ligadura. NÍVEL DE DIFICULDADE: Pouca dificuldade 4.3 Textura Há, nesta peça, dois tipos de textura: na seção A temos uma textura polifônica com duas linhas melódicas, uma feita pelo baixo (responsável pela melodia principal) e a segunda linha pelo soprano e contralto, em terças; na seção B a textura é homofônica, contendo a linha melódica no soprano com o acompanhamento feito pelo tenor e baixo. Pode-se dizer, portanto, que a textura reveste-se aqui de uma função estruturante, já que caracteriza claramente cada uma das seções. NÍVEL DE DIFICULDADE: Razoável dificuldade 4.4 Sonoridade Assim como nas outras peças da I Suíte Brasileira, em Saudosa Seresta não há grandes deslocamentos de mão, apenas uma mudança de registro da seção A para B. Como a peça apresenta, predominantemente, uma escrita melódica em graus conjuntos, Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 17 174 o toque legato inviabiliza a presença do pedal na seção A (observe-se a indicação legato, ma senza pedale, no início da peça); porém, na seção B o uso do mesmo é indicado pelo compositor em todos os compassos da partitura. A utilização adequada do pedal deve levar em conta outros fatores como andamento, qualidades acústicas do piano e da sala, assim como o tipo de toque utilizado. FIGURA 13 - Saudosa Seresta [1-4] Lorenzo Fernândez coloca apenas um sinal de dinâmica na peça, um f no primeiro compasso da seção B, porém podemos perceber a dinâmica que o compositor deseja através do caráter sugerido, textura e registro sonoro utilizado. Na seção A, a melodia se encontra na mão esquerda em uma região média (com mais harmônicos), com um caráter levemente melancólico sugerido pelo ritmo do acompanhamento e simplicidade da melodia, além de uma textura polifônica, o que pode sugerir dinâmica em torno de p (piano); porém, na seção B a melodia está na mão direita em uma região mais aguda (com menos harmônicos), há maior fluência a partir do ritmo assumido, assim como um maior destaque dado à linha melódica com a adoção de textura homofônica, o que justifica a indicação f (forte) feita pelo compositor. Os sinais de crescendo e diminuendo que aparecem em [16] e [47] sugerem economia e simplicidade quanto à utilização destes recursos. FIGURA 14 - Saudosa Seresta [17-20] NÍVEL DE DIFICULDADE: Pouca dificuldade Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 17 175 5 | CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao estudar e analisar a I Suíte Brasileira de Oscar Lorenzo Fernândez, pode-se constatar que o Fernadêz se utiliza principalmente de pouca dificuldade na composição desta obra, principalmente nas categorias Tempo e Ritmo, Melodia e Sonoridade; com relação à categoria Textura, podemos considerar de razoável dificuldade. Acredita-se que os resultados desta pesquisa possam vir a lançar uma luz sobre o trabalho daqueles que venham a se debruçar sobre a I Suíte Brasileira, sejam eles intérpretes, professores ou estudantes, a partir de uma maior consciência em relação aos níveis de dificuldade pianístico-musical presentes na obra. Não obstante, novos dados referentes à interpretação pianística da obra aqui abordada poderão, sempre, ser acrescentados, em especial a partir de observações originais advindas da experiência única que cada intérprete pode ter com a obra. Alguns aspectos que podem ainda vir a ser trabalhados sobre gradação de dificuldade técnica dizem respeito, por exemplo, à expressividade musical, emprego da tonalidade, e utilização de movimentos pianísticos, toques e dedilhados. Por consequência, espera-se que este trabalho possa servir de estímulo para o surgimento de novos estudos relacionados também às três Suítes Brasileiras, em particular, e, em geral, à identificação dos diferentes níveis de dificuldade pianístico-musical em outras obras do repertório pianístico brasileiro. Este repertório, sabidamente rico em originalidade e diversidade, carece ainda de investigações que trabalhem diversas e importantes questões diretamente relacionadas à sua performance, vindo assim a contribuir para seu melhor conhecimento – e eventual reconhecimento – dentro do cenário musical brasileiro. REFERÊNCIAS KAPLAN, José Alberto. Teoria da Aprendizagem Pianística. Porto Alegre: Editora Movimento, 1985. 112 p. LEIMER, Karl; GIESEKING, Walter. Como Devemos Estudar Piano. Trad. Tatiana Braunwieser. São Paulo: Editorial Mangione S. A., 1949. 63p. MARCONDES, Marcos Antônio; RIBENBOIM, Ricardo. Enciclopédia da Música Brasileira: Erudita, Folclórica e Popular. 2 ed. rev. e aum. São Paulo: Art Editora, 1998. 912p. MARIZ, Vasco. História da Música no Brasil. 5 ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2000. 550p. ARAÚJO FILHO, Alfeu Rodrigues de. Estudo Analítico e interpretativo sobre as três Suítes Brasileiras de Oscar Lorenzo Fernândez. 1996. 164f. Dissertação (Mestrado em Artes) – Universidade Estadual de Campinas, São Paulo. SANTIAGO, Júnia Gonçalves. A progressão da dificuldade técnica para piano nas três Suítes Brasileiras para piano de Oscar Lorenzo Fernandez. 2007. 71f. Artigo (Mestrado em Música) Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 17 176 FERNÂNDEZ, Oscar Lorenzo. 1ª, 2ª e 3ª Suíte Brasileira. Irmãos Vitale-Editores. São Paulo, Rio de Janeiro, 1942. 9 Partituras (33p). Piano Solo Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 17 177 CAPÍTULO 18 DOI 10.22533/at.ed.00000000000 ANÁLISE DA DIFICULDADE TÉCNICA PIANÍSTICA NA II SUÍTE BRASILEIRA DE OSCAR LORENZO FERNANDEZ Data de aceite: 16/04/2021 difficulties or not this suite. KEYWORDS: Analysis. Lorenzo Fernândez. Piano. Júnia Gonçalves Santiago http://lattes.cnpq.br/8205568667624773 1 | INTRODUÇÃO Este artigo é um recorde de minha RESUMO: O presente trabalho expõe uma análise sob os aspectos da escrita e técnica pianística existentes na II Suíte Brasileira para piano solo, do compositor brasileiro Oscar Lorenzo Fernândez, empregando-se de métodos anteriormente estipulados que auxilia a apontar as reais dificuldades na mencionada obra musical. A análise da obra foi elaborada a partir de categorias previamente definidas como: tempo e ritmo, melodia, textura e sonoridade, estabelecida de forma tanto quantitativa quanto qualitativa. A partir dos critérios aplicados, notou-se de forma mais evidente as dificuldades existentes ou não nesta suíte. PALAVRAS - CHAVE: Análise. Lorenzo Fernândez. Piano. ABSTRACT: This work presents an analysis from the aspects of writing and technical pianistic existing in II Suite Brazilian solo piano, the Brazilian composer Oscar Lorenzo Fernandez, using methods previously stipulated that aims to help point out the real difficulties in said musical work. The analysis of the work was drawn from categories previously defined as: time and rhythm, melody, texture and sound, established both quantitatively and qualitatively. From the applied criteria, it was noted more clearly the Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 dissertação de mestrado intitulada “A progressão da dificuldade técnica para piano nas três Suítes Brasileiras para piano de Oscar Lorenzo Fernandez”, 2007. Oscar Lorenzo Fernândez (1897 – 1948), foi um importante compositor do cenário brasileiro. Fascinado pelo folclore, tornou-se um dos entusiastas do nacionalismo musical, através de diversas composições ricas em ritmos brasileiros e com temas de influência folclórica, sendo este um dos motivos pela escolha de suas Suítes para piano, melodias e ritmos com abundância de nossas raízes e cultura musical. Segundo MARIZ (2000), sua criação artística pode ser dividida em três períodos: o primeiro de 1918 a 1922; segundo de 1922 a 1938 e terceiro de 1938 a 1948. Sua obra contém canções, suítes sinfônicas, balés, música de câmara, concertos (um para piano e outro para violino) e duas sinfonias, também composições como Trio brasileiro Op.32 (1924, piano, violino e violoncelo), Suíte Sinfônica (1925, orquestra), Três Estudos em forma de Sonatina (1929, piano), O Reisado do Pastoreio (1930, orquestra), Toda para você (1930, canto Capítulo 18 178 e piano), Valsa Suburbana op. 70 (1932, piano), Primeira Suíte Brasileira (1936, piano), Segunda Suíte Brasileira (1938, piano) e Terceira Suíte Brasileira (1939, piano). Foi considerado, em sondagem bibliográfica anterior que, em Estudo Analítico e Interpretativo sobre as Três Suítes Brasileiras de Oscar Lorenzo Fernandez, escrito por ARAÚJO FILHO (1996), ressalta um estudo histórico sobre a vida e a criatividade do compositor, seguido de um trabalho analítico do alicerce composicional das três Suítes Brasileiras, assim como acabamentos interpretativos das obras sem, no entanto, olhar da questão relativa à dificuldade técnica das obras. Consultas em tratados de técnica pianística, incluindo os livros Teoria da Aprendizagem Pianística, de KAPLAN (1985) e, Como devemos estudar piano de LEIMER e GIESEKING (1949), demonstram que os autores evidenciam a inevitabilidade de um estudo racional para uma execução pianística mais concreto, estabelecendo modelos gerais significativos para um estudo acerca de dificuldades técnico-musicais. Este trabalho propõe um estudo da II Suíte Brasileira, sob o ponto de vista pianístico, objetivando discernir e evidenciar sua dificuldade técnico- musical perceptível na obra. Compõe-se de três peças, conforme apresentado a seguir: • 2ª Suíte Brasileira - I Ponteio - II Moda - III Cateretê A seleção desta Suíte Brasileira como assunto deste artigo fundamenta-se pela sua estima no repertório didático-pianístico brasileiro, por um lado, assim como pela ausência, até o momento, de um estudo que oferte aos professores de piano, mecanismos pedagógicos que lidem exclusivamente sobre sua dificuldade técnico-musical na obra. Para que isto seja possível, fez-se necessário o estabelecimento da seguinte metodologia: • Levantamento bibliográfico de textos publicados sobre o compositor e sua obra que tenham relação com a pesquisa, incluindo livros, teses, monografias e artigos; • Estudo da II Suítes Brasileiras ao piano, na busca de mecanismos que ajudem a apontar as dificuldades pianísticas, além de meios técnicos que melhor satisfaçam os requisitos de interpretação inseridas pelo texto musical e que só podem ser deduzidos através da experimentação no próprio instrumento; • Aplicação de categorias a serem utilizadas na investigação da dificuldade técnico-musical: tempo e ritmo, melodia, textura e sonoridade, assim como a classificação de três níveis a serem utilizados para o estabelecimento da dificuldade de cada categoria em cada peça: 1) pouca dificuldade; 2) razoável dificuldade e Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 18 179 3) muita dificuldade. Tais estabelecimento das categorias e classificações foram obtidas através do artigo científico de SANTIAGO (2007), onde parte de uma avaliação tanto quantitativa quanto qualitativa das categorias técnico-musicais; Tendo em vista a relevância do compositor e da obra aqui discutida, acredita-se ser expressivo um trabalho que coopere para uma melhor compreensão da obra e que proporcione resultados que possam ser proveitosos tanto para a performance quanto para a instrução da mesma. 2 | PONTEIO Ponteio, segundo o verbete da Enciclopédia da Música Brasileira: Erudita, Folclórica e Popular, de MARCONDES e RIBENBOIM (1998), significa “composição instrumental livre”. Desenvolvida em forma unitária (A), está escrita no modo de Mi Eólio e abrange cinco frases irregulares e coda: 1ª Frase [1-3], 2ª Frase [4-5], 3ª Frase [6-10], 4ª Frase [11-12], 5ª Frase [3-15] e coda [16-20]. 2.1 Tempo e Ritmo Esta é uma peça de andamento lento, evidenciado pela indicação Lento e expressivo. Lorenzo Fernândez ainda utiliza outros termos para alteração de andamento, como allargando, ritardando, diminuendo e morrendo. Apesar de a obra ser extremamente curta, Lorenzo Fernândez varia muito do compasso binário simples para o ternário simples, chegando a mudar quatro vezes de um para o outro; entretanto, devido ao emprego de allargando na construção ternária, o efeito das mudanças de compassos é sutilmente minimizado. Em alguns momentos, como que para enfatizar o allargando, o compositor emprega quiálteras de três colcheias, como na voz do soprano em [5], [10] e [15], e na voz do contralto em [18] e [19]. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 18 180 FIGURA 1 – Ponteio [12-17] As figuras rítmicas usadas são mínimas, semínimas, utilizadas na marcação dos baixos, e colcheias e semicolcheias, na construção dos arpejos e da melodia principal. Nos últimos três compassos os arpejos antes feitos por semicolcheias são agora distribuídos em colcheias, criando assim um efeito de rallentando. NÍVEL DE DIFICULDADE: Razoável dificuldade 2.2 Melodia A melodia é predominantemente em graus conjuntos, conduzida todo o tempo pela mão direita, especificamente pelo soprano e construída sobre arpejos por semicolcheias (também na mão direita) que auxiliam a formação harmônica da peça. O acompanhamento é feito pela mão esquerda quase todo tocado em oitavas, que apresenta um movimento melódico descendente, exceto no terceiro tempo de [5], e segundo e terceiro tempos de [12] e [15], onde juntamente com a mão direita o acorde é arpejado, fornecendo um pequeno fechamento para a frase. Em toda a peça existe a presença das ligaduras de expressão, assim como vírgulas de respiração em todas as mudanças de frase. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 18 181 FIGURA 02 - Ponteio [03-05] NÍVEL DE DIFICULDADE: Pouca dificuldade 2.3 Textura Nesta peça temos uma textura polifônica, com o desenvolvimento de três vozes distintas: soprano, contralto e baixo. Na 1ª. Frase [1-3] a polifonia é mais evidente, onde se percebe o contratempo do contralto e a linha em oitavas do baixo destacando-se do soprano. Em certos trechos, como em [15] e [16], as três vozes têm o papel de adensar a textura, pois todas são tocadas em movimentos paralelos ascendentes. FIGURA 03 - Ponteio [01-02] NÍVEL DE DIFICULDADE: Razoável dificuldade 2.4 Sonoridade Em relação à dinâmica, o compositor emprega pp, p e ff. Como o pp aparece somente no último compasso e o f apenas nos compassos nove e quinze, o plano sonoro mais predominante da obra é o p. O estudo dos planos sonoros distintos para cada uma das vozes é fundamental para a sua compreensão, obedecendo à seguinte hierarquia: soprano em primeiro plano, contralto em terceiro e baixo em segundo. O uso do pedal é indicado pelo compositor em toda a peça, com as mudanças Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 18 182 a cada troca de baixo, ou seja, com a utilização de pedal sincopado. O registro sonoro predominantemente utilizado é o da região média do teclado. FIGURA 04 - Ponteio [06-08] NÍVEL DE DIFICULDADE: Razoável dificuldade 3 | MODA Moda é um dos gêneros mais característicos da canção brasileira, tem sua origem na moda portuguesa. Tal canção era geralmente acompanhada pelo violão1. Nesta peça, em Mi Menor, temos 44 compassos, distribuídos em quatro frases na seguinte forma ternária: A [1-11]; B [12-29]; A [30-41] e CODA [42-44]. 3.1 Tempo e Ritmo Escrita em compasso quaternário simples, Moda apresenta a indicação Allegretto, andamento que não varia entre a primeira e última seção. Na seção B o compositor escreve animando em [15] e [23] e allargando em [19] e [26]; já na Coda Lorenzo Fernândez indica Mais Lento e as expressões um poco più lento entre parênteses, além de allargando molto, enfatizando consideravelmente a diminuição do andamento ao final da peça. Com relação às combinações rítmicas, a seção A utiliza o mesmo material musical em suas duas aparições, uma linha melódica principal e acompanhamento em contratempo. 1 Enciclopédia da Música Brasileira: Erudita, Folclórica e Popular, de MARCONDES e RIBENBOIM, p.525, (1998). Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 18 183 FIGURA 05 - Moda [01-02] Na seção B, onde as semicolcheias são figuras predominantes em ambas as mãos, ocorrem em [12-14] e [20-22] síncopes, alterações no acento métrico escrito, e em [17-19], uma polirritmia (quatro semicolcheias contra quiáltera de três colcheias). FIGURA 06 - Moda [12-14] FIGURA 07 - Moda [17-19] NÍVEL DE DIFICULDADE: Pouca dificuldade[Seção A] NÍVEL DE DIFICULDADE: Muita dificuldade [Seção B] Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 18 184 3.2 Melodia A obra apresenta quatro frases, onde predominam graus conjuntos na primeira e na última frase e graus disjuntos na segunda e terceira frases. Na parte A, a melodia é cantada pela mão direita e o acompanhamento é feito pelas duas mãos formando acordes em contratempo. Nesta seção as duas articulações usadas serão fundamentais para discernir a linha melódica – em legato – do acompanhamento – em non-legato – numa clara emulação da sonoridade violonística. A partir de [12] tem início a seção B, onde a melodia é novamente tocada em legato. Nesta seção a melodia recebe um tipo de deslocamento métrico a partir da síncope que surge em sua voz inferior (executada com o polegar), a qual gera outra linha melódica relacionada a uma sequência de arpejos, em intervalos predominantemente de sexta, na voz superior. A coda reafirma o motivo melódico fundamental para a construção da peça. FIGURA 08 - Moda [12-17] NÍVEL DE DIFICULDADE: Pouca dificuldade [Seção A] NÍVEL DE DIFICULDADE: Muita dificuldade [Seção B] 3.3 Textura A textura é de uma melodia acompanhada, com um contraste perceptível de espaçamento entre as seções A - A’ e B. Na primeira temos uma textura rarefeita e leve, já Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 18 185 na seção B temos vários intervalos predominantemente de sexta em movimentos paralelos tornando seu espaçamento bastante denso. NÍVEL DE DIFICULDADE: Pouca dificuldade[Seção A] NÍVEL DE DIFICULDADE: Muita dificuldade [Seção B] 3.4 Sonoridade Os planos de dinâmica na seção A são essenciais para a distinção entre a linha melódica, em mf, e o acompanhamento, em p. Aqui é utilizada predominantemente a região média do teclado. Na seção B a dinâmica chega a ff, cabendo ao intérprete timbrar as notas superiores dos intervalos, assim como utilizar-se de pequenos apoios de pedal, com vistas a uma maior clareza do discurso melódico. Nesta seção, que constitui o ponto culminante da peça, é utilizada toda a extensão do teclado. A pequena coda acontece nos três últimos compassos da peça, sendo o motivo principal executado de forma mais lenta e acrescido de um arpejo pedalizado sobre o acorde de Mi Menor, tonalidade da peça. Reforçando o gesto de fechamento, são utilizadas as três grandes regiões do teclado, iniciando-se na média e finalizando-se com um movimento ascendente com a mão direita em intervalos de quintas e sextas e movimento descendente com a mão esquerda. Com este movimento contrário para as extremidades do piano, atinge-se um pianíssimo, criando assim o efeito de morrendo indicado na partitura, reforçado ainda pela fermata final. FIGURA 09 - Moda [42-44] NÍVEL DE DIFICULDADE: Pouca dificuldade [Seção A] NÍVEL DE DIFICULDADE: Razoável dificuldade [Seção B] 4 | CATERETÊ Escrita em forma ternária A-B-A, a obra contém 75 compassos, com a seguinte Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 18 186 distribuição de compassos: A [1-39]; B [40-56] e A [57-75]. Cateretê é uma dança de origem ameríndia2 em Lá Maior, onde a seção A nos sugere um caráter mais percussivo contrastando com B, de caráter melódico e cantabile indicado pelo próprio compositor. 4.1 Tempo e Ritmo No Cateretê o andamento é um Allegro Vivo, com apenas uma indicação de allargando em [56], final da seção A e um animando em [71] da coda. Embora escrita em compasso binário simples, a seção A gera uma alteração rítmica devido à escrita (ß. ß. ß), subdividindo as semicolcheias em grupos de 3+3+2. FIGURA 10 – Cateretê [01-05] Este procedimento rítmico não tem continuidade na seção B. O ostinato feito pelo baixo que percorre quase toda a obra, sofre uma interrupção devido ao aparecimento de um novo elemento, a polirritmia, com a inclusão de tercinas no acompanhamento em [4850] e [52-54]. 2 Enciclopédia da Música Brasileira: Erudita, Folclórica e Popular, de MARCONDES e RIBENBOIM, p.181, (1998). Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 18 187 FIGURA 11 – Cateretê [48-50] NÍVEL DE DIFICULDADE: Muita dificuldade 4.2 Melodia Tanto na seção A como na seção B Lorenzo Fernândez estabelece quatro frases. Na parte A as frases são estruturadas em seis compassos ligados por pequenas pontes e, na parte B, em quatro compassos. A linha melódica principal está toda nas notas superiores da mão direita, tornando a ideia musical identificável e brilhante. Apesar de estar predominantemente escrita em graus conjuntos, também ocorrem alguns saltos, feitos tanto pela mão direita, a partir de [19], como pela mão esquerda, de [48] em diante, desta feita, mais amplos. É somente na seção B e na Coda que Lorenzo Fernândez indica sinais de ligadura. FIGURA 12 - Cateretê [40-42] NÍVEL DE DIFICULDADE: Razoável dificuldade Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 18 188 4.3 Textura Nas seções A e A’ a textura é homofônica, e na seção B, textura mista. O espaçamento da textura tem um gradual adensamento entre a primeira e a última frase da seção A, evidenciado pelo acréscimo de notas nos acordes, da mesma forma, na seção B, acontece adensamento similar. NÍVEL DE DIFICULDADE: Razoável dificuldade 4.4 Sonoridade Lorenzo Fernândez utiliza um gradual crescendo em todas as seções. Na parte A, começa em pp e chega ao fff em [29], um dos pontos culminantes da peça. Este aumento de sonoridade é caracterizado também pelo acréscimo de notas nos acordes e algumas mudanças de oitavas. Na seção B ele inicia em f e chega à terceira frase em fff. Já na parte final da peça, a partir de [57], a dinâmica vai de f ao ffff, grande crescendo utilizado para o desfecho da obra. FIGURA 13 – Cateretê [73-75] A partir de [15-39] e [47-75], o uso do pedal é indicado pelo compositor de forma bem clara e funcional, contudo, nota-se que no início aparece à indicação entre parênteses Sem pedal, assim como em [40]. FIGURA 14 - Cateretê [01-03 Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 18 189 Nesta obra são utilizadas as três regiões do instrumento, sendo que na parte A predomina a região grave e na parte B a região aguda. NÍVEL DE DIFICULDADE: Muita dificuldade 5 | CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao analisar e treinar no piano a II Suíte Brasileira de Oscar Lorenzo Fernândez, consegue-se perceber que Fernadêz emprega nesta obra um nível técnico-pianístico de razoável a muita dificuldade em sua escrita. Nas categorias Textura e Sonoridade; com razoável dificuldade em duas das três músicas deste ciclo, e muita dificuldade em relação à categoria Melodia, também em duas das músicas. Além disso, observou-se que na peça Moda, da segunda Suíte, a classificação Razoável dificuldade foi conferida a todas as categorias; já em Toada, da terceira Suíte, fez-se necessária uma classificação bipartida, sendo uma para seção A, Pouca dificuldade, e outra para seção B, Muita dificuldade. Contudo, nota-se que o mesmo não acontece no restante das peças, sendo que os níveis de dificuldade variam entre as categorias de cada uma das composições. Pode-se dizer que o grau de dificuldade de uma peça não pode ser facilmente determinado por uma única classificação, em função das diferentes categorias musicais presentes, como também pela existência de uma ou mais seções por vezes totalmente distintas. O fechamento deste trabalho, auxilia de forma expressiva a quem se propuser a compreender as Suítes Brasileiras, sejam eles mestres, intérpretes, ou estudantes, a partir de uma maior compreensão em relação aos níveis de dificuldade pianístico-musical presentes nesta obra de forma antecipada. Os resultados obtidos beneficiam a medida que o futuro performance tem conhecimento dos pontos altos e baixos das dificuldades técnicas já discriminados, subtraindo eventuais desistências da obra musical por falta de compatibilidade com seu nível técnico. A atuação pianística da obra aqui debatida ainda pode ser acrescida, a partir de ideias originais advindas da experiência singular que cada intérprete pode ter com a obra. Existe ainda alguns pontos que podem vir a ser adquiridos sobre a dificuldade técnica como por exemplo, determinados empregos de toques e dedilhados, expressividade musical, aplicação da tonalidade e movimentos pianísticos. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 18 190 REFERÊNCIAS KAPLAN, José Alberto. Teoria da Aprendizagem Pianística. Porto Alegre: Editora Movimento, 1985. 112 p. LEIMER, Karl; GIESEKING, Walter. Como Devemos Estudar Piano. Trad. Tatiana Braunwieser. São Paulo: Editorial Mangione S. A., 1949. 63p. MARCONDES, Marcos Antônio; RIBENBOIM, Ricardo. Enciclopédia da Música Brasileira: Erudita, Folclórica e Popular. 2 ed. rev. e aum. São Paulo: Art Editora, 1998. 912p. MARIZ, Vasco. História da Música no Brasil. 5 ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2000. 550p. ARAÚJO FILHO, Alfeu Rodrigues de. Estudo Analítico e interpretativo sobre as três Suítes Brasileiras de Oscar Lorenzo Fernândez. 1996. 164f. Dissertação (Mestrado em Artes) – Universidade Estadual de Campinas, São Paulo. SANTIAGO, Júnia Gonçalves. A progressão da dificuldade técnica para piano nas três Suítes Brasileiras para piano de Oscar Lorenzo Fernandez. 2007. 71f. Artigo (Mestrado em Música) Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. FERNÂNDEZ, Oscar Lorenzo. 1ª, 2ª e 3ª Suíte Brasileira. Irmãos Vitale-Editores. São Paulo, Rio de Janeiro, 1942. 9 Partituras (33p). Piano Solo Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 18 191 CAPÍTULO 19 DOI 10.22533/at.ed.00000000000 ANÁLISE DA DIFICULDADE TÉCNICA PIANÍSTICA NA III SUÍTE BRASILEIRA DE OSCAR LORENZO FERNANDEZ Data de aceite: 16/04/2021 KEYWORDS: Analysis. Piano. I Suíte Brasileira. 1 | INTRODUÇÃO O compositor Oscar Lorenzo Fernândez Júnia Gonçalves Santiago http://lattes.cnpq.br/8205568667624773 (1897 – 1948), foi um compositor brasileiro de pais espanhóis. Autor da fundação da Sociedade Cultura Musical em 1920, onde RESUMO: Foi elaborado neste presente trabalho, a análise da III Suíte Brasileira para piano solo, de Oscar Lorenzo Fernândez, sob aspectos da técnica pianística e da escrita existentes. Foi empregado procedimentos anteriormente definidos que auxiliasse a reconhecer as dificuldades presentes na referida obra musical. A análise da composição foi realizada fundamentada em classes determinados previamente, como tempo e ritmo, melodia, textura e sonoridade. Alicerçado na utilização de algumas normas, notou-se de modo explícito as complicações presentes neste ciclo musical. PALAVRAS - CHAVE: Análise. Piano. I Suíte Brasileira ABSTRACT: It has been prepared in this present study, the analysis of the III Brazilian Suite for solo piano, Oscar Lorenzo Fernandez, under aspects of piano technique and existing writing. procedures was employed previously defined which would help to recognize the present difficulties in that musical work. The composition analysis was performed based on predetermined classes, as time and rhythm, melody, texture and sound. Founded on the use of certain standards, it was noted explicitly the complications present in this song cycle. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 ocupou diversos cargos, até seu fim em 1926. Responsável também pela fundação em 1936 do Conservatório Nacional de Música, no Rio de Janeiro, que é ainda considerado uma das mais importantes instituições musicais do país. Admirador do folclore brasileiro, foi um dos entusiastas do nacionalismo musical brasileiro, através de variadas composições repletas de ritmos brasileiros com motivos de interferência folclórica. Sua criação artística pode ser classificada em três épocas, segundo MARIZ (2000). O primeiro de 1918 a 1922; segundo de 1922 a 1938 e terceiro de 1938 a 1948.Sua obra apreende canções, suítes sinfônicas, balés, música de câmara, concertos (um para piano e outro para violino) e duas sinfonias, podendo ser citadas composições como Trio brasileiro Op.32 (1924, piano, violino e violoncelo), Suíte Sinfônica (1925, orquestra), Três Estudos em forma de Sonatina (1929, piano), O Reisado do Pastoreio (1930, orquestra), Toda para você (1930, canto e piano), Valsa Suburbana op. 70 (1932, piano), Primeira Suíte Brasileira (1936, piano), Segunda Suíte Brasileira (1938, piano) Capítulo 19 192 e Terceira Suíte Brasileira (1939, piano). Em pesquisa bibliográfica anterior, foi verificado que, em Estudo Analítico e Interpretativo sobre as Três Suítes Brasileiras de Oscar Lorenzo Fernandez, escrito por ARAÚJO FILHO (1996), sugere um aprendizado histórico sobre a criatividade e vida do compositor, continuado de uma produção pormenorizado da essência composicional das três Suítes Brasileiras, assim como inferências interpretativas das obras sem, no entanto, discorrer do ponto relacionado à dificuldade técnica das músicas deste ciclo.. Neste artigo é apresentado um estudo da III Suíte Brasileira, sob a ótica pianística, pretendendo reconhecer e qualificar sua dificuldade técnico- musical observável na composição. Será investigado um maior entendimento pianístico da obra no decorrer do emprego de processos pertinentes para a efetivação da análise sugerida. A III Suíte Brasileira dispõe de três peças, segundo apresentado a seguir: • 3ª Suíte Brasileira - I Toada - II Seresta - III Jongo A preferência por esta Suíte Brasileira como objeto desta pesquisa, é evidenciada por sua reputação dentro do repertório didático-pianístico brasileiro, por um lado, assim como pela carência, até o momento, de um estudo que ofereça aos professores de piano, ferramentas pedagógicas que utilizem puramente sobre sua dificuldade técnico-musical nas composições. Para que isto seja viável, é fundamental que se estipule uma metodologia, tais como: • Investigação bibliográfico de trabalhos publicados a respeito do compositor e sua obra que possuam vínculo com a pesquisa, englobando monografias, livros, teses e artigos. Consistirá em uma averiguação ampla desses materiais, com perspectivas à obtenção de um olhar global da vida e obra do compositor e, provavelmente, uma vista especial a respeito da obra aqui interpelada; • Aprendizado da III Suíte Brasileira ao piano, na procura de meios que facilite a constatar as dificuldades pianísticas, além de modos técnicos que melhor satisfaçam às condições de interpretação disposto pelo texto musical e que só consiga ser concebidas por meio da experimentação no próprio instrumento; • Utilização de grupos a serem aplicados na verificação da dificuldade técnico-musical: tempo e ritmo, melodia, textura e sonoridade, assim como a espeficação de três níveis a serem aplicados para a criação da dificuldade de cada grupo em cada peça: 1) pouca dificuldade; 2) razoável dificuldade e 3) muita dificuldade. Tais divisões estão publicadas no artigo científico de SANTIAGO, (2007), onde parte de uma avaliação tanto quantitativa quanto qualitativa das categorias técnico-musicais investigada; Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 19 193 Exames em tratados de técnica pianística, abrangendo os livros Como devemos estudar piano de LEIMER e GIESEKING (1949) e Teoria da Aprendizagem Pianística, de KAPLAN (1985), confirmam que os autores destacam a necessidade de uma instrução lógica para uma aplicação pianística mais objetiva, constituindo moldes universais relevantes para um estudo em relação de dificuldades técnico-musicais Considerando-se a relevância da obra e do compositor aqui levantado, da mesma maneira, a indispensabilidade de um aprendizado que intencione à função prática dos conhecimentos assimilado, considera ser significativo uma produção que colabore para uma melhor percepção da composição e que permita proveitos que seja frutífero tanto para o ensino quanto para a performance da mesma. 2 | TOADA Toada é uma canção de caráter triste e andamento arrastado1 , nesta peça, temos como característica principal uma linha melódica com variações de textura em suas repetições. Escrita na forma A – B – A’ – B’, em quatro frases que coincidem com as seções, a primeira e terceira frases estão na tonalidade de Mi Maior e a segunda e quarta frases com centro harmônico em Ré Menor. 2.1 Tempo e Ritmo Escrita em andamento moderado num compasso binário simples, Toada começa com uma pequena introdução de quatro compassos, na qual é estabelecido um ostinato na mão esquerda. FIGURA 01 - Toada [01-04] As figuras rítmicas utilizadas são mínimas, semínimas, colcheias e semicolcheias; note- se que as colcheias colocadas em contratempo, assim como a articulação sobre as semicolcheias feitas pelo baixo, geram certa instabilidade rítmica. Tal variante rítmica aparece em toda a obra em forma de ostinato, ora feito pela mão esquerda, ora feito pelas duas simultaneamente. Lorenzo Fernândez trabalha com um ostinato similar ao utilizado 1 Enciclopédia da Música Brasileira: Erudita, Folclórica e Popular, de MARCONDES e RIBENBOIM, p.776, (1998). Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 19 194 no Cateretê da 2ª. Suíte, a partir do ritmo básico colcheia pontuada / colcheia pontuada / colcheia (♪. / ♪ / ♪.). Nos finais de frases ou ideias, como em [56], Lorenzo Fernândez utiliza-se sempre de allargando e logo em seguida indica a tempo para o início de uma nova frase. FIGURA 02 - Toada [55-58] NÍVEL DE DIFICULDADE: Razoável dificuldade 2.2 Melodia Todo material musical está distribuído em quatro frases de extensões diferentes, a maior com dezenove compassos [35-53] e a menor com oito [5-15] e [57-64]. Apesar de predominantemente escrita em graus conjuntos ou movimento intervalar próximo, acontecem saltos entre [35-53], feitos pela mão esquerda. A linha melódica é toda cantada pela voz do soprano em legato, sendo que em [50-52] atinge-se o ponto culminante. Lorenzo Fernândez utiliza a tenuta sobre as notas mais agudas dos acordes, para tornar ainda mais evidente a linha melódica. FIGURA 03 - Toada [50-52] NÍVEL DE DIFICULDADE: Razoável dificuldade Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 19 195 2.3 Textura A obra apresenta um misto entre textura homofônica e polifônica, com a linha melódica do soprano e um ostinato feito pelo contralto, tenor e baixo. A cada frase há maior adensamento na organização das partes, principalmente na terceira frase, onde existe uma maior quantidade de notas. FIGURA 04 - Toada [35-38] NÍVEL DE DIFICULDADE: Razoável dificuldade 2.4 Sonoridade Em Toada, Lorenzo Fernândez emprega diversos sinais de dinâmica, iniciando com p na introdução, passando pelo mf, f e chegando ao ff em [51], ponto culminante da peça. Notam-se dois planos sonoros básicos, a linha melódica fundamental mais timbrada e brilhante e o ostinato presente em toda a obra, de intensidade mais suave. Em relação ao registro sonoro, utilizam-se todas as três regiões no teclado, predominando o registro médio. O uso do pedal é indicado em [21-29], [35-53] e [58- 64]. FIGURA 05 - Toada [21-24] NÍVEL DE DIFICULDADE: Muita dificuldade Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 19 196 3 | SERESTA A peça está no formato ternário A – B – A, sendo a seção A em tonalidade de Mi Menor e a seção B em Mi Maior. Observa-se nesta estrutura a simetria entre as seções, com dezesseis compassos para cada uma das partes. 3.1 Tempo e Ritmo Seresta é uma composição em andamento Allegro Agitado, compasso quaternário simples, rica em indicações de rallentandos e ritardandos, o que sugere certa liberdade rítmica para finalização de uma ideia e preparação para a próxima. FIGURA 06 – Seresta [07-09] Nesta peça observamos a utilização de mínimas, semínimas e uma predominância de colcheias, figura motora da peça. As quiálteras e polirritmias que aparecem na segunda parte da seção B, em [26] e [28-32], proporcionam o momento rítmico mais tenso da obra assim como considerável contraste em relação à seção A. FIGURA 07 – Seresta [25-26] NÍVEL DE DIFICULDADE: Razoável dificuldade Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 19 197 3.2 Melodia A organização melódica da peça se dá em seis frases, duas em cada seção, com oito compassos para cada frase. Toda a linha melódica é escrita em legato e algumas tenutas são marcadas na linha do tenor na seção B. O staccato só aparece nas últimas quatro notas feitas pelo baixo. Ressalta-se a predominância de graus conjuntos com pequenos saltos a partir da seção B, em [17-20] e [25-31], na mão esquerda. FIGURA 08 - Seresta [16-18] NÍVEL DE DIFICULDADE: Razoável dificuldade 3.3 Textura A textura da peça é polifônica, enriquecida com a entrada da voz do tenor a partir de [17]. As linhas melódicas são distintas, sendo o baixo a voz principal, com uma linha evidente e ininterrupta, e soprano e contralto vozes secundárias, com o uso de desenhos rítmicos idênticos. Na seção A temos uma escrita densa e na seção B uma amplitude maior entre as vozes. NÍVEL DE DIFICULDADE: Muita dificuldade 3.4 Sonoridade A valorização sonora da linha do baixo é muito importante para o entendimento da obra. Contudo, as notas superiores, soprano e contralto, deverão ser timbradas, para uma maior clareza da linha melódica secundária. Com relação à dinâmica temos uma grande variação, começando em mf e chegando entre a terceira e quarta frases a ff e fff, valorizando o ponto culminante da obra, com o uso de blocos de acordes; tal gradação sonora de intensidade deverá ser cuidadosamente executada pelo intérprete para que o auge da peça fique evidente. A dinâmica p começa na quinta frase e a peça é finalizada em pp. A pedalização é indicada em toda a partitura, devendo ter como ponto de apoio básico a linha melódica principal; sugere- se o uso de trêmulo no pedal em intervalos conjuntos, Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 19 198 minimizando-se assim as dissonâncias. Utilizam-se os três registros sonoros principais (grave, médio e agudo), porém é na quarta frase que uma extensão mais ampla do teclado é empregada. FIGURA 09 – Seresta [01-03] NÍVEL DE DIFICULDADE: Muita dificuldade 4 | JONGO Jongo, segundo verbete da Enciclopédia da Música Brasileira: Erudita, Folclórica e Popular, de MARCONDES e RIBENBOIM (1998), significa “dança-afro-brasileira do tipo batuque ou samba”. Esta obra é toda construída sobre um ostinato rítmico, iniciando de maneira misteriosa (ver indicação soturno e misterioso, no início da peça) e evoluindo para um final agitado, pesado e denso. Desenvolvida no modo Si Eólio, em forma unitária (A), contém introdução e cinco frases organizadas da seguinte maneira: Introdução [1-2], 1ª Frase [3-14], 2ª Frase [15-26], 3ª Frase [27-38], 4ª Frase [39-50] e 5ª Frase [51-62]. 4.1 Tempo e Ritmo Com a indicação Allegro Pesante, Jongo é uma peça que não determina compasso nem, consequentemente, barras de compasso. A construção da obra tem como fundamento a célula rítmica colcheia / duas semicolcheias / colcheia / quatro semicolcheias / colcheia , em ostinato. A partir desta estruturação rítmica (e também da indicação metronômica) pode-se adotar a semínima como unidade de referência, assim como um provável compasso ternário simples, o que facilitaria a fluência e precisão rítmica da execução2. 2 Na ausência de barras de compasso será utilizada, como referência, a célula rítmica básica do ostinato, contando-se cada uma para efeito de localização na partitura Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 19 199 FIGURA 10 - Jongo [01-03] As figuras predominantemente utilizadas são colcheia e semicolcheia. A partir de [39], na única frase que começa com um ritmo anacrústico, semínimas são também utilizadas. O único – e fundamental – recurso de agógica expressamente indicado por Lorenzo Fernândez é um animando sempre, como em [48]. FIGURA 10 - Jongo [01-03] FIGURA 11 – Jongo [48] NÍVEL DE DIFICULDADE: Muita dificuldade Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 19 200 4.1 Melodia O Jongo estrutura-se sobre em uma ideia melódica básica, trabalhada em cinco frases. A própria composição da melodia é fragmentada, especialmente em função da ênfase dada ao aspecto rítmico: os motivos são curtos e repetitivos, com intervalos predominantemente restritos, não aparecendo nenhuma ideia melódica mais extensa. A proporcionalidade na organização fraseológica é fator importante, esta sempre subordinada à organização dos ostinatos rítmicos em grupos de doze células rítmicas básicas. O compositor indica sforzando de [35-49], [53], [57] ao [62], reforçando tanto a execução dos próprios ostinatos quanto da melodia principal. FIGURA 12 - Jongo [60-62] NÍVEL DE DIFICULDADE: Razoável dificuldade 4.2 Textura A textura básica é homofônica, privilegiando-se uma base rítmica sobre a qual se desenrola uma melodia simples. Variações importantes são observadas quanto ao adensamento progressivo da escrita (reforçado pela dinâmica progressivamente mais forte) que se dá na peça, tanto no ostinato quanto na melodia: estes têm início com notas simples ou duplas, restritas a uma mesma região do teclado, até chegarem a acordes densos para as duas mãos, em diferentes regiões, culminando em ampla exploração espacial e timbrística do piano. NÍVEL DE DIFICULDADE: Razoável dificuldade 4.3 Sonoridade Começando em ppp e terminando em fff, com as indicações cresc. poco a poco ou cresc. ma sempre poco a poco, esta é uma peça que tem na progressão gradativa de dinâmica uma de suas maiores dificuldades de execução. Tal crescendo gradual deve ser cuidadosamente trabalhado pelo intérprete, já que se trata de um importante efeito sonoro, de cunho estrutural, da obra. Tal efeito é reforçado, a partir de [48], por um acelerando, o Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 19 201 qual contribui para o senso de clímax atingido ao final. FIGURA 13 - Jongo [04-10] Os níveis de intensidade sonora sugeridos pela textura apontam para um destaque da linha melódica sobre um ostinato menos sonoro, este colocado sempre na região grave; já a melodia, reforçando a ideia de um longo e contínuo crescendo, tem início no grave e finaliza no agudo, explorando o teclado em toda a sua extensão. Dois tipos de pedal são indicados na partitura, o pedal una corda nos seis primeiros ostinatos e o pedal tonal (sostenuto) a partir de [15] até o final. A organização da pedalização (com o pedal de ressonância) tomará como referência as notas pertencentes à linha melódica e não o ostinato; tal procedimento, se não estiver aliado a um toque adequado e, eventualmente, até ao uso de trêmulo no pedal, poderá misturar indevidamente a sonoridade do ostinato, mas se devidamente utilizado tornará nítida e correta a percepção da linha melódica. NÍVEL DE DIFICULDADE: Muita dificuldade 5 | CONSIDERAÇÕES FINAIS Depois de averiguar e estudar a III Suíte Brasileira de Oscar Lorenzo Fernândez, evidencia-se que o compositor emprega neste ciclo musical um nível técnico-pianístico de razoável a muita dificuldade em sua escrita. Nas categorias Tempo e Ritmo e Textura, é verificado uma razoável dificuldade em duas das três músicas deste ciclo, já a categoria Melodia, é constatado uma razoável dificuldade em todas as três músicas, e por último, muita dificuldade em relação à categoria Sonoridade, em todas as três músicas desta suíte. Julga-se que os efeitos deste trabalho consigam contribuir com relação a elaboração daqueles que encaminham a se inclinar acerca das três Suítes Brasileiras, quer sejam Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 19 202 eles alunos, intérpretes ou docentes a partir de um maior discernimento em relação aos graus de dificuldade pianístico-musical contidos nesta suíte. Posto que, novas informações relacionados à interpretação pianística da obra aqui debatido é capaz, a todo momento, ser amplificados, em particular a partir de reflexões autênticas vindas da experiência única que cada intérprete pode ter com a obra. Outros enfoques podem ainda vir a ser aprimorado sobre as classes de dificuldade técnica, como por exemplo, à expressividade musical, emprego da tonalidade, e aplicação de movimentos pianísticos, toques e dedilhados. Deseja-se, portanto assim, que este artigo possa oferecer impulso para o nascimento de outros trabalhos associados às três Suítes Brasileiras, em especial, e, em extensivo, ao reconhecimento das diversas categorias de dificuldade pianístico-musical em outras obras do repertório pianístico brasileiro. Tal seleção, é abundante em singularidade e excentricidade, merece ainda de pesquisas que produzam inúmeras e oportunas assuntos pertinentes à sua performance, vindo assim a auxiliar para um maior entendimento dentro do contexto musical brasileiro. REFERÊNCIAS KAPLAN, José Alberto. Teoria da Aprendizagem Pianística. Porto Alegre: Editora Movimento, 1985. 112 p. LEIMER, Karl; GIESEKING, Walter. Como Devemos Estudar Piano. Trad. Tatiana Braunwieser. São Paulo: Editorial Mangione S. A., 1949. 63p. MARCONDES, Marcos Antônio; RIBENBOIM, Ricardo. Enciclopédia da Música Brasileira: Erudita, Folclórica e Popular. 2 ed. rev. e aum. São Paulo: Art Editora, 1998. 912p. MARIZ, Vasco. História da Música no Brasil. 5 ed. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2000. 550p. ARAÚJO FILHO, Alfeu Rodrigues de. Estudo Analítico e interpretativo sobre as três Suítes Brasileiras de Oscar Lorenzo Fernândez. 1996. 164f. Dissertação (Mestrado em Artes) – Universidade Estadual de Campinas, São Paulo. SANTIAGO, Júnia Gonçalves. A progressão da dificuldade técnica para piano nas três Suítes Brasileiras para piano de Oscar Lorenzo Fernandez. 2007. 71f. Artigo (Mestrado em Música) Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. FERNÂNDEZ, Oscar Lorenzo. 1ª, 2ª e 3ª Suíte Brasileira. Irmãos Vitale-Editores. São Paulo, Rio de Janeiro, 1942. 9 Partituras (33p). Piano Solo Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 19 203 CAPÍTULO 20 DOI 10.22533/at.ed.00000000000 BRASILIANAS IV E V PARA PIANO DE RADAMÉS GNATTALI: UMA ANÁLISE MUSICAL TIPIFICADA, INTERPRETATIVA E COMPARATIVA Data de aceite: 16/04/2021 Data de submissão: 02/03/2021 Felipe Aparecido de Mello UNESP – Programa de Pós-Graduação em Música São Paulo – SP http://lattes.cnpq.br/6419372757963416 RESUMO: O presente texto apresenta os resultados parciais da pesquisa sobre a análise musical tipificada, interpretativa e comparativa das Brasilianas IV e V para piano do compositor brasileiro Radamés Gnattali. Para tanto, utilizouse metodologias contidas em Kostka (1999), Schoenberg (1996, 2001), Rink (2002) e Berry (1987), considerando-se ainda os fundamentos metodológicos de Mário de Andrade (1972, 1989) e José Ramos Tinhorão (2015). Evidenciou-se, ainda, os elementos etnográficos empregados pelo compositor em suas obras, bem como elementos notacionais que expõem aspectos nacionalistas, jazzísticos e impressionistas de sua escrita musical. PALAVRAS - CHAVE: Análise musical. Interpretação musical. Música para piano. Brasilianas IV e V. Radamés Gnattali. BRASILIANAS IV AND V FOR PIANO BY RADAMÉS GNATTALI: A TYPIFIED, INTERPRETATIVE AND COMPARATIVE MUSICAL ANALYSIS ABSTRACT: This text presents the partial results of the research on the typified, interpretative and comparative musical analysis of Brasilianas IV and V for piano by Brazilian composer Radamés Gnattali. For that, methodologies contained in Kostka (1999), Schoenberg (1996, 2001), Rink (2002) and Berry (1987) were used, also considering the methodological foundations of Mário de Andrade (1972, 1989) and José Ramos Tinhorão (2015). It was also evident the ethnographic elements used by the composer in his works, as well as notational elements that expose nationalist, jazz and impressionist aspects of his musical writing. KEYWORDS: Musical analysis. Musical interpretation. Music for piano. Brasilianas IV and V. Radamés Gnattali. 1 | INTRODUÇÃO Os gêneros musicais empregados nas Brasilianas IV e V para piano de Radamés Gnattali se manifestam, originalmente, no folclore e na música urbana brasileira. Diante disso, a análise musical tipificada dessas obras intenta identificar estes gêneros notacionalmente, bem como seus elementos etnográficos associados a completude de seu estilo composicional, posto toda confluência cosmopolita Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 desenvolvida Capítulo 20 em sua escrita 204 musical. Entretanto, quais metodologias de análise musical podem conduzir a um eficiente reconhecimento dos aspectos de sua escrita para a interpretação? Nessa perspectiva, o presente texto apresentará algumas particularidades contidas nas Brasilianas IV e V para piano do compositor brasileiro Radamés Gnattali. Para tanto, utilizou-se as metodologias aportadas em Kostka (1999), Schoenberg (1996, 2001), Rink (2002), Réti (1951), Persichetti (2012) e Berry (1987), considerando-se ainda os fundamentos metodológicos de Mário de Andrade (1972, 1989) e José Ramos Tinhorão (2015), bem como considerações relevantes propostas pelo pesquisador Ricieri Carlini Zorzal (2005). Nas fundamentações depreendidas em Kostka (1999), Rink (2002), Schoenberg (1996, 2001) e Persichetti (2012), as análises geraram gráficos das flutuações de tempo e dinâmica das obras, bem como tabelas demonstrativas de suas formas estruturais1, evidenciando informações sobre as subdivisões, tonalidades, modulações e seus respectivos números de compassos. Por intermédio dos tratados musicais de análise propostos por Réti (1951) e Berry (1987), foi possível constatar algumas características motívicas nas obras analisadas, além de questões relacionadas sobre a textura musical que as norteiam. Com relação aos apontamentos apreendidos em Andrade (1972, 1989), Tinhorão (2015) e Zorzal (2005), as inferências e considerações convergiram em demonstrações acerca dos gêneros brasileiros explorados, esclarecendo-se, de um modo geral, aspectos da escrita musical de Radamés Gnattali nas Brasilianas IV e V para piano. Diante disso, as metodologias corroboram informações relevantes sobre o estilo da escrita composicional de Radamés Gnattali que se voltam, sobretudo, para as práticas interpretativas e performance musical ao piano. Nas Brasilianas IV e V para piano2 emprega-se os gêneros musicais folclóricos e urbanos da música brasileira, que são apresentados em diferentes formatos e que norteiam cada uma das obras. Na Brasiliana IV, composta por quatro títulos separados, faz-se alusão a uma pequena suíte musical, por sua vez, na Brasiliana V percebe-se uma obra de maior extensão e em formato rapsódico, sendo composta por uma sucessão de temas folclóricos (de domínio popular), entremeados ainda por desenvolvimentos e variações com inserção de trechos que nos remetem a pequenos improvisos. Radamés Gnattali demonstra ser um compositor enriquecido pela poesia carioca, sem, contudo, abandonar as influências jazzísticas, nacionalistas e da música clássica europeia em sua escrita musical. 2 | BRASILIANA IV PARA PIANO: CONSIDERAÇÕES GERAIS, ANÁLISE MUSICAL TIPIFICADA E COMPARATIVA O primeiro título da Brasiliana IV, designado Prenda Minha (Moda Gaúcha), compõese de uma Toada. No Dicionário Grove de Música (1994) o termo é denominado como cantiga geralmente melancólica ou arrastada, sendo empregado regionalmente no sentido 1 Os gráficos e tabelas estão dispostos exclusivamente no formato integral desta pesquisa. 2 As Brasilianas IV e V para piano foram editoradas e editadas pelo autor deste trabalho. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 20 205 de entonação ou linha melódica. Mário de Andrade (1972) no livro Ensaio sobre a Música Brasileira, evidencia que o refrão instrumental do tema de Prenda Minha serve a uma dupla função: de introdução e término da canção. O poema do verso é disposto na seguinte prosódia: Vou-me embora, vou-me embora, prenda minha, tenho muito que fazer. Tenho de ir para rodeio, prenda minha, no campo do bem querer. Noite escura, noite escura, prenda minha, toda noite me atentou. Quando foi de madrugada, prenda minha, foi-se embora e me deixou (ANDRADE, 1972, p. 137). Ainda nessa questão acerca do folclore gaúcho, no livro Assim Cantam os Gaúchos (1984), elaborado pelo Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore, consta-se uma relevante alegação a respeito do título e do poema desta canção: “Prenda” é a namorada, a moça gaúcha, num sinônimo de joia ou valor muito estimado. O termo talvez tenha sido trazido ao Rio Grande do Sul pelos colonos dos Açores, pois naquele arquipélago lusitano é tradicional uma cantiga de tirana com o seguinte refrão: “Tirana, atira, tirana, vem a mim, tira-me a vida: a prenda que eu mais amava, já de mim foi suspendida”. O primeiro registro do texto data de 1880, feito por Carlos von Koseritz, precursor dos estudos folclóricos no Rio Grande do Sul. A melodia foi recolhida por Teodomiro Tostes, na interpretação de um velho gaiteiro, nos anos de 1920, e reproduzida em São Paulo por Mário de Andrade em seu “Ensaio sobre a Música Brasileira”. A partir de então, essa cantiga teve grande acolhida pelos rio-grandenses residentes no Rio de Janeiro após a revolução de 1930, difundindo-se com menor ênfase nos meios urbanos do Rio Grande do Sul (IGTF, 1984, p. 13). Uma das características marcantes desta obra é o emprego da harmonia de efeito policorde (cromático) juntamente da dinâmica sforzato. A melodia conduzida no registro grave mantém ligada a última nota em comum por quatro compassos seguidos, delineando a modulação entre as Seções A² e B², que se define na tonalidade de Mi bemol maior. Na conclusão da obra (Seção A³) os mesmos elementos fraseológicos de A¹ e A² são desenvolvidos, porém na tonalidade do IV grau3 (A¹ / A² – Ré maior; B² – Mi bemol maior; A³ – Sol maior). 3 Grafia empregada no livro Fundamentos da composição musical de Schoenberg (1996). Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 20 206 Figura 1 – Brasiliana IV (Prenda Minha) c. 23-37: Seção A² com elementos fraseológicos e motívicos de A¹ e uso de procedimentos cromáticos (policordes). O segundo título da Brasiliana IV denomina-se por Samba-canção (Rio de Janeiro). Esta obra apresenta em sua introdução de dois compassos três motivos principais, que são expostos e trabalhados no decorrer de sua forma. Diante da profusão de motivos musicais constatados neste título utilizou-se – para uma melhor ilustração – a análise motívica fundamentada no livro The Thematic Process in Music de Rudolph Réti (1951). O autor define motivo da seguinte forma: Nós chamamos de motivo qualquer elemento musical, seja uma frase ou fragmento melódico ou mesmo apenas uma característica rítmica ou dinâmica que, por ser constantemente repetida e variada ao longo de uma obra ou seção, assume um papel no desenho composicional um tanto semelhante ao de um motivo nas belas artes (RÉTI, 1951, p. 11-12, t.n.). Outro fator importante compreende a figura rítmica utilizada no acompanhamento, sobretudo na Seção A¹. Similarmente fiel aos acompanhamentos empregados pelos violonistas no gênero do samba-canção esta figura rítmica outorga – aliado as sugestões rítmico/dinâmicas – o caráter deste gênero transposto para o piano, que por sua vez percorre toda a Seção A¹, bem como partes da Seção A². Podemos observar também procedimentos octatônicos utilizados por Gnattali nesta obra, no qual o acorde de Gm7 é intercalado com acordes provenientes de duas escalas octatônicas, onde a nota Sol, tônica do trecho, é encontrada. No c. 3, o acorde inicial é sucedido do acorde Abº7M(b13) – presente na escala formada por Sol, Láb, Sib, Dob, Réb, Ré, Mi, Fá – e no c. 4, a alternância é realizada com o acorde de A7(#4b9), proveniente da escala Sol, Lá, Sib, Do, Do#, Ré#, (Mib), Mi e Fá#. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 20 207 Figura 2 – Brasiliana IV (Samba-canção) c. 1-4: introdução com três elementos motívicos, ritmo do samba-canção ao piano e acordes octatônicos. O terceiro título da Brasiliana IV denomina-se por Desafio (Nordeste). Este gênero musical é entoado por cantadores de algumas regiões específicas do Brasil, sobre este aspecto, constata-se no Dicionário Grove de Música (1994): Cantador, também chamado de violeiro, é um correspondente moderno dos antigos menestréis, que se apresenta em feiras e quermesses do nordeste, leste e centro do Brasil acompanhado de uma viola caipira. Com sua voz caracteristicamente fanhosa e estridente, o cantador descreve feitos heroicos ou narrativas imaginosas, em que a parte do texto supera amplamente em importância o contexto propriamente musical. Os cantadores se enfrentam uns aos outros em desafios, rivalizando na capacidade de improvisação e em presença de espírito (GROVE, 1994, p. 163). Em contrapartida, no Dicionário Musical Brasileiro de Mário de Andrade (1989), este gênero é descrito “mostrando que o Desafio entra em qualquer música, qualquer dança, sendo apenas um processo de cantar improvisado” (ANDRADE, 1989, p. 186), o autor ainda prossegue: “Mas há uma diferença no Desafio campeiro; hoje é com gaita e não viola, conforme era primeiro (gaita é acordeona). Um verso contra outro verso, qual facão contra facão, sempre no tempo de polca, da polca da relação” (1989, p. 186). O termo Rojão, utilizado por Gnattalli no início da Seção B¹, corrobora com os elementos em alusão ao nordeste, não obstante o emprego das harmonias típicas, este termo assim é definido por Andrade: “trecho instrumental que introduz ou encerra a participação de um cantador no desafio” (ANDRADE, 1989, p. 443). Embora Andrade argumente sobre o caráter finalizador do Rojão, nesta peça ele tem uma clara função de refrão, apresentado, cada vez, em uma tonalidade diferente. Na seção B² (c. 37-40) o termo Rojão reaparece em mesmo formato fraseológico, contudo com o emprego de dois modos diferentes, que associados, caracteriza-se como intercâmbio modal (PERSICHETTI, 2012). Constata-se nesta obra o fator harmônico modulante constante em consonância de cada seção musical explorada. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 20 208 Figura 3 – Brasiliana IV (Desafio) c. 17-20: início da seção B¹ com elementos modais e alusivos à música nordestina. Em cada retorno do tema principal da seção A ocorre o emprego de variações melódicas, tornando-o em cada aparição mais elaborado. O Desafio, similarmente do título Prenda Minha, é finalizado de maneira extremamente rítmica e movida. Figura 4 – Brasiliana IV (Desafio) c. 61-68: emprego do tema principal mais elaborado na Seção A4. O quarto título da Brasiliana IV, denominado Marcha de Rancho (Rio de Janeiro), encerra em referência ao estado carioca, berço deste gênero em questão. Em Andrade (1989), marcha-rancho assim é definida: “no Brasil, a marcha popularizou-se nos blocos carnavalescos como marcha-rancho e marcha de salão, e segue a fórmula introdução instrumental e estrofe-refrão” (ANDRADE, 1989, p. 307). Por sua vez, José Ramos Tinhorão Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 20 209 (2015) discorre amplamente sobre este gênero musical, citando diversas curiosidades a respeito: A lenta e bucólica marcha-rancho, compreendida como gênero de música carnavalesca paralela à marcha, ou marchinha de andamento mais vivo e letra maliciosa ou irônica, é uma criação relativamente moderna e, constitui a produção consciente de profissionais da primeira geração de compositores do rádio da década de 1930, interessados em capitalizar o espírito musical e a beleza dos desfiles dos ranchos cariocas. Surgidos em meados do século XIX entre os núcleos de moradores nordestinos da zona portuária do Rio de Janeiro, ligados todos a uma origem rural (foram os baianos migrados para o Rio que tiveram a ideia de desfilar com ranchos de carnaval), […] a mais antiga dessas marchas foi a famosa “A jardineira”, uma marcha do folclore nordestino, lembrando a figura clássica das mocinhas “pastoras” enfeitadas de flores, e teve sua adaptação carioca talvez na década de 1870. […] Os ranchos carnavalescos são estas belas sociedades que, com luxo e esplendor, vão aos poucos substituindo os antigos cordões, havendo a necessidade de se criar um tipo de música coerente com o espírito de seus desfiles, diferenciando-se dos simplórios blocos e cordões carnavalescos (TINHORÃO, 2015, p. 153-154). Um fator importante do início desta obra, decorre do procedimento de pedalização manual proposto por Gnattali, favorecendo as articulações do ritmo da marcha-rancho também por intermédio de staccati, tenuti e pausas, que se evidenciam por meio deste processo. Este procedimento é empregado, possivelmente, pelo fato da escrita pianística poder reproduzir com maior fidelidade este gênero, advindo originalmente do violão. Figura 5 – Brasiliana IV (Marcha de Rancho) c. 1-9: elementos peculiares da articulação da marcha-rancho empregados no tema de A¹ em seu antecedente e consequente. Adiante, esta obra caracteriza-se por uma crescente em sua textura temática, que se torna – em cada posterior exposição – mais grandiosa, ainda assim, toda a obra é Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 20 210 elaborada sobre o singelo motivo rítmico da marcha-rancho, inclusive em sua coda, que conclui a obra em caráter igualmente rítmico. 3 | BRASILIANA V PARA PIANO: CONSIDERAÇÕES GERAIS, ANÁLISE MUSICAL TIPIFICADA E INTERPRETATIVA A Brasiliana V para piano é uma obra extensa em caráter de rapsódia, estilo que se estende ao longo de seus quatrocentos e trinta e sete compassos. Em Mário de Andrade (1989), este gênero musical é definido como “forma livre de composição musical, peça característica, sem conteúdo programático” (1989, p. 427), por sua vez, no Dicionário Grove de Música (1994), verifica-se também algumas peculiaridades acerca deste gênero musical: Termo oriundo da poesia épica grega antiga, usado pela primeira vez como título musical por Tomásek para um grupo de seis peças para piano em cerca de 1803. Este e outros exemplos mais antigos têm um caráter contido, mas fantasias livres de caráter épico, heroico ou nacional receberiam mais tarde o mesmo título. Entre os Exemplos incluem-se as 19 Rapsódias húngaras de Liszt, e as Rapsódias de Brahms e Dohnányi (para piano), de Dvorák, Enescu, Chabrier e Vaughan Williams (para orquestra) e de Bartók (para instrumentos solistas e orquestra) (GROVE, 1994, p. 765). Esta obra compõe-se da concatenação de diversos temas do folclore musical brasileiro (Cantos de Roda, Acalanto e Trabalho), empreendendo variações amplas e pormenorizadas sobre os cantos de roda do repertório folclórico brasileiro, sobre os acalantos (conhecidos popularmente por canções ou cantigas de ninar) e, sobre os cantos do trabalho, canções entoadas por trabalhadores, sobretudo das regiões interioranas, geralmente no cumprimento das funções braçais aos mais diversificados contextos dos recantos brasileiros. O primeiro tema trabalhado, sobre os Cantos de Roda, compreende a canção Terezinha de Jesus; o tema, de fato, é exposto na Seção A¹ (c. 7 a 29), mantendose ainda as mesmas características de textura expostas na introdução, com adição de algumas notas no registro grave. Essa textura se modifica no c. 11, ocorrendo menor polirritmia até o término desta primeira exposição temática, que se prolonga na tonalidade de Do menor até o c. 16. A partir deste ponto, o tema modula para a tonalidade de Lá menor, sincronicamente ao surgimento de polimetria no c. 17, perdurando-se até o c. 23. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 20 211 Figura 6 – Brasiliana V (Cantos de Roda) c. 16-20: emprego de polimetria e modulação. A harmonia decorrida na breve transição compreende acordes que denotam afastamento para outra tonalidade, entretanto, por ocorrerem em um curto espaço de tempo e serem muito distantes da tonalidade anterior, o emprego cromático se faz presente, harmônica e melodicamente. O aspecto da textura musical desta transição nos revela a influência do impressionismo no estilo de Radamés Gnattali, podendo-se aferir também, neste contexto, a seguinte definição deste termo no Dicionário Grove de Música (1994): “um conceito útil particularmente para a música que dissolve os contornos da progressão tradicional com aspectos modais ou cromáticos” (p. 450). Figura 7 – Brasiliana V (Cantos de Roda) c. 30-31: Breve Transição. A seção B (tema B¹), encontra-se inicialmente na tonalidade de Sol bemol maior, porém em sua totalidade esta seção tem característica politonal. Composta por dezesseis compassos (c. 32 a 47), com fraseologia irregular, encontra-se disposta da seguinte forma: 7 compassos (antecedente) + 7 compassos (consequente) + 2 compassos (pequena transição). A fraseologia atípica desta canção decorre possivelmente das constantes mudanças na sua fórmula de compasso (2/4 nos c. 32, 33, 36, 40, 43 e 47 – 3/4 nos c. 34, 37, 38, 39, 41, 44, 45 e 46 – 4/4 nos c. 35 e 42), atribuindo-lhe peculiar característica fraseológica. O tema trabalhado em B constitui-se sobre a canção de roda A mão direita tem uma roseira, no c. 39 ocorre modificação na tonalidade do tema para Lá maior (tema Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 20 212 B²), seguindo-se até o c. 46. Uma breve transição sugere alteração para a tonalidade de Sol maior, concomitantemente à mudança temática para a breve Seção C com a canção Marcha do remador (popularmente conhecida como Se a canoa não virar - c. 48). Vale salientar que em meio as canções de roda, este tema foge da prescrição contida no subtítulo desta obra, sendo a única marchinha de carnaval utilizada na Brasiliana V. Na Seção D explora-se a segunda estrofe do tema da canção Ciranda, cirandinha. A segunda parte da Brasiliana V, constituída acerca dos Cantos de Acalanto, compreende um dos pontos onde considerar-se-á algumas comparações texturais. A clareza, onde em determinadas passagens ocorrem nítidas referências a outros estilos composicionais, além das citações aos temas de acalanto, evidencia, via de regra, influências composicionais de algumas esferas do universo erudito ao estilo composicional de Radamés Gnattali. Em Andrade (1989), consta-se breve passagem sobre o termo cantiga de ninar: “cantiga para adormecer criança, mesmo que acalanto. Segundo Renato Almeida é uma canção ingênua, sobre uma melodia simples, com que as mães ninam os filhos” (ANDRADE, 1989, p. 104). O próximo tema, constituído sobre a canção Boi da cara preta, dispõe de cromatismo constante na linha melódica intermediária e linha do baixo, conferindo também caráter contrapontístico a textura desta obra, contudo, esta disposição cromática não altera suas funcionalidades harmônicas, devido sua aplicação ocorrer nos contratempos ou em tempos de fraca pulsação, sucedendo-se também harmonias dissonantes e em profusão. Atenta-se para o uso constante dos termos subjetivos de andamento Suavemente e Um pouquinho mais, que auxiliam o intérprete para a delineação das características interpretativas empregadas aos temas. A partir do c. 196 uma nova atmosfera sonora se estabelece, induzindo a um acompanhamento extremamente romântico, muito similar ao utilizado na Consolação nº3 do compositor Franz Liszt, inclusive com relação ao emprego da mesma tonalidade em Ré bemol maior. Acerca da influência do romantismo na linguagem musical de Radamés, o pesquisador Ricieri Carlini Zorzal (2005) numa leitura de Meyer (2000), nos apresenta o romantismo como: “um período no qual os compositores idealizavam uma individualidade, através da concepção e utilização de estruturas convencionais sobre estratégias composicionais, ocultando a convenção sem renunciar a ela” (MEYER apud ZORZAL, 2005, p. 23). O autor ainda prossegue referindo-se que essas estruturas convencionais são igualmente empregadas – de forma oculta ou menos evidente – por Gnattali. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 20 213 Figura 8 – Brasiliana V (Acalanto) c. 199-206: Seção E, tema E4 em Ré bemol maior. Figura 9 – Consolação nº 3 (Franz Liszt - Ed. Peters) c. 19-24: excerto a título de comparação entre as texturas musicais das Fig. 8 e 9. A próxima subdivisão temática na Seção F compreende outro tema de Acalanto. Elaborada sobre o tema da canção Tutu Marambá, constitui-se também por outra canção de ninar. Em Andrade (1989) consta-se breve citação acerca deste cântico: Um dos tipos de tutus, bicho-papão, assombrador de crianças, que aparece nas cantigas de ninar. Expressão composta por palavra de origem quimbunda (Angola), quitutu, que significa papão, e a palavra de origem indígena marã, que significa mau, velhaco, ruim. Os tutus, que variam conforme a região, são animais informes e negros mencionados em acalantos. Não existe uma descrição detalhada do mesmo, mas é com ele que se amedronta a criança que não quer dormir. Além do tutu-marambá, ou marambaia, há ainda o tutuzambê, o tutu-do-mato, ou bicho-do-mato, que figuram em cantigas populares (ANDRADE, 1989, p. 541). A próxima transição estende-se do c. 254 ao c. 259 e tem um caráter composicional impressionista, mais precisamente “debussyano”. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 20 214 Figura 10 – Brasiliana V (Acalanto) c. 254-259: Transição com caráter impressionista. A influência de Debussy na música de Radamés foi reconhecida por Zorzal (2005) em sua análise sobre os Dez estudos para violão (1967), evidenciando-se características como o uso de escalas não tonais, escalas de tons inteiros, cromatismo e instabilidade tonal: “A harmonia deixa de ser sintática e toda relação com forte sentido de processo tende a ser evitada” (ZORZAL, 2005, p. 27-31). Figura 11 – Prelúdio nº 12 (Claude Debussy - Ed. Durant) c. 36-38: ilustração com finalidade comparativa entre a textura da Transição e a Escrita de Debussy (Fig. 10 e 11). Acerca dos Cantos de Trabalho, sabe-se que estes compreendem uma prática antiga e tradicional na história da música brasileira, principalmente no espaço rural. Mário de Andrade (1989) os descreve da seguinte forma: Cantos usados durante o trabalho e destinados a diminuir o esforço e a aumentar a produção, os movimentos seguindo os ritmos do canto. “Em geral são melopeias, empregando às vezes ditongos e palavras meramente onomatopaicas, que servem para determinar o ritmo, conforme a natureza do trabalho (ANDRADE, 1989, p. 108). Um fator importante a ser ressaltado sobre o próximo tema decorre da característica impressionista. Acerca deste aspecto, podemos também nos ater sobre a influência composicional de Maurice Ravel a Radamés Gnattali, com um olhar mais atento para a sua Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 20 215 composição Miroirs - Une barque sur l’océan, que faz alusão aos movimentos das ondas do oceano, dispondo-se de um barco como protagonista. A melodia trabalhada por Gnattali sobre o tema do Canto do barqueiro, em diversos momentos, nos remete aos movimentos de um barco sobre as ondas das águas, bem como em Une barque sur l’océan. Diante disso, é razoável presumir – com o auxílio da comparação textural – que a influência impressionista se estende de Debussy a Ravel para este tema em questão. Figura 12 – Brasiliana V (Trabalho) c. 274-279: Seção G (b¹). A partir do c. 269, o tema (b¹) torna-se extremamente modal e circula por diversos modos (lídio, mixolídio, eólio e frígio), sendo conduzido por um acompanhamento com constantes arpejos e eventuais notas acentuadas ou sobressalentes, advindas de uma linha melódica secundária. No que se refere a textura musical (subjetiva e extremamente impressionista) em alusão a Ravel, podemos depreender algumas considerações interpretativas que corroboram a relação dos excertos dispostos nas figuras 12 e 13, onde o abstrato e o pictórico – por meio da notação musical – se fazem presentes nesta imagética sonora. Figura 13 – Miroirs - Une barque sur l’océan (Maurice Ravel - Ed. Dover) c. 3-6: tema com ampla pedalização e arpejos com notas enfatizadas (excerto comparativo - Fig. 12 e 13). Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 20 216 O último tema empregado por Gnattali, na Brasiliana V, é desenvolvido sobre a canção Fulô, a fulô do vapor. Entoada pelos carregadores de piano do Recife, fora gravado por Mário de Andrade em seu projeto Missão de Pesquisas Folclóricas. Vale salientar ainda que a melodia utilizada por Gnattali não é extremamente fiel – em relação ao tema original gravado por Mário de Andrade (1938) –, porém sua estrutura orgânica se mantém coesa aos propósitos de base e tessitura empregados pelo tema original. Figura 14 – Fulô, a fulô do vapor (c. 1-8): tema original gravado por Mário de Andrade. O tema da Seção H se estabelece na tonalidade de Mi maior, apresentando configuração temática em H¹ por oito compassos (c. 346 a 353). O último membro de frase deste tema alterna-se para a fórmula de compasso em ternário simples, possivelmente para não danificar a fluência fraseológica dos temas em suas diversas repetições até a coda. Figura 15 – Brasiliana V (Trabalho) c. 346-353: Seção H (tema H¹). A coda caracteriza-se por utilização ampla e constante da dissonância. Essa configuração dissonante e suspensiva conecta-se a um pedal da nota Si (comum aos acordes de Sol maior e Si maior), que conduz – por meio do registro em várias alturas ao longo dos c. 430, 431 e 432 – para o acorde em terceira inversão de Si maior com 6ªM, 7ªm e 9ªm (c. 433 e 434 – arpejado), com função suspensiva e ao mesmo tempo de dominante / diminuta. É razoável supor que esta harmonia (c. 433 e 434), também pode ser proveniente de uma escala octatônica enarmonizada sobre o acorde de Aº7M – presente na escala formada por La, Si, Si#, Ré, Ré#, Mi#, Fá# e Sol# – com resolução no acorde de Mi maior Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 20 217 nos c. 435, 436 e 437. Figura 16 – Brasiliana V (Trabalho) c. 432-437: compassos finais da coda na Seção H. 4 | CONCLUSÃO Por intermédio da análise musical tipificada, interpretativa e comparativa das Brasilianas IV e V para piano algumas características da escrita musical de Radamés Gnattali puderam ser depreendidas, bem como peculiaridades de alguns aspectos da historiografia musical embutidos em sua escrita pianística. Verificou se, nestas obras, a influência do nacionalismo musical brasileiro, além de procedimentos harmônicos e texturais provenientes do jazz e da música clássica europeia (com maior ênfase no repertório romântico e impressionista), corroborando aspectos musicais que, em síntese, se voltam para as práticas interpretativas e performance musical especificamente ao piano. REFERÊNCIAS ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre a música brasileira. 3ª Ed. São Paulo: Martins,1972. ____________. Dicionário musical brasileiro. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1989. BERRY, Wallace. 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Data de aceite: 16/04/2021 Luiz Renato da Silva Rocha Professor na Faculdade de Música do Espírito Santo Vila Velha - ES http://lattes.cnpq.br/0280021954520363 Rafael da Silva Rocha ESCOLA BRITÂNICA Rio de Janeiro - RJ http://lattes.cnpq.br/2263512828552308 Roger da Silva Rocha Faculdade de Música do Espírito Santo Vila Velha - ES https://orcid.org/0000-0002-3792-7219 RESUMO: A pesquisa a ser defendida terá como foco central analisar a importância das transcrições a partir do ponto de vista de compositores influentes como Bach. Pretendese apresentar todo o levantamento sobre transcrição de músicas para que se acompanhe todo o processo, desde a criação até escrita. A base metodológica será um levantamento de literatura relacionado ao tema e transcrições das obras. Por fim, nas considerações finais procurou-se apresentar o resultado musical através das análises e processos de transcrições influenciadas pelas extensas interpretações de obras originais de grandes compositores, envolvendo principalmente aspectos pertencentes a outros ambientes musicais. PALAVRA - CHAVE: Arranjo Musical. Transcrição Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 ABSTRACT: The research to be defended will focus on analyzing the importance of transcriptions from the point of view of influential composers like Bach. It is intended to present the entire survey on music transcription so that the whole process can be followed, from creation to writing. The methodological basis will be a survey of literature related to the theme and transcriptions of the works. Finally, the final considerations sought to present the musical result through analysis and transcription processes influenced by the extensive interpretations of original works by great composers, mainly involving aspects belonging to other musical environments. KEYWORDS: Musical Arrangement. Music Transcription. Music partiture. Composition. Music adaptation. INTRODUÇÃO Pesquisas sobre transcrições vem ganhando espaço e popularidade ao longo dos últimos anos, especialmente devido à sua facilidade de acesso como um componente inteligente dentro da música, o que poderá permitir as pessoas pesquisarem nos dispositivos atuais da Internet os trabalhos dos compositores, no caso as partituras. Esta pesquisa terá como objetivo analisar a importância da transcrição musical, desde a composição, performance à improvisação que pode ser chamado de processo criativo da Capítulo 21 220 música, porém, consciente. Portanto, a prática da transcrição em música mantém uma série de aspectos e características comuns. Nesta pesquisa, iremos buscar de forma exploratória alguns métodos que poderão estimular a análise crítica da transcrição musical iniciando por autores do período barroco como Bach até compositores russos como Stravinsky. Serão ainda discutidos alguns conceitos básicos para a compreensão do fenômeno da transcrição, como obra, originalidade, interpretação e autoria. Ainda assim, acredita-se que a transcrição de música pode levantar questões sobre certos conceitos básicos como o conceito de obra, de autoria e de interpretação. Mesmo desempenhando um papel importante para a compreensão musical, esses conceitos as vezes passam desapercebidos no decorrer da formação dos músicos, ou seja, o que não é problemático e não gera discussão. Dessa forma, as universidades equivocadamente podem ter se esquecidos desses conceitos, pois existem autores dentro do próprio corpo acadêmico que até hoje direcionam para a formação especificamente de intérpretes e compositores. No caso, a transcrição musical pressupõe a existência prévia de um trabalho identificável. A intenção do transcritor é transcrever esse trabalho para uma realização bem-sucedida na boa intenção onde é possível existir um trabalho transcrito bem feito. Neste ponto trivial vale a pena fazer a fim de distinguir casos de transcrição daqueles, como os seguintes, que em outros aspectos são muito semelhantes. A orquestração de The Wedding deu a Stravinsky muitos problemas. Ele escreveu o acompanhamento para os solistas vocais e coro primeiro para uma orquestra muito grande, depois para pianos, e finalmente para quatro pianos e percussão. Embora a versão final não duvida, semelhante e derivada das versões anteriores, não é um transcrição. Stravinsky teve dificuldades com a composição, mas o trabalho não foi finalizado até que a terceira versão fosse concluída (Isso permaneceria verdadeiro mesmo se Stravinsky tivesse disponibilizado o Versões recentes). A versão final não pode ser uma transcrição, pois não existe um trabalho escrito para se tornar uma transcrição. Como as obras musicais não se referem apenas ao trabalho pessoal do compositor, os compositores geralmente não podem copiar suas próprias obras. Stravinsky transcreveu Pulcinella três vezes – em 1925 para violino e piano, em 1932 como Suíte Italiana para violoncelo e piano, e em 1933, também como Suíte Italiana, para violino e piano. Logo depois que Mozart percebeu um grupo de instrumentos de sopro que costumam ser tocados nas ruas, transcreveu, e outros compositores reduziram as obras para piano em orquestrais. A transcrição deve se afastar o suficiente do original para contar como um peça distinta e não apenas como cópia do original. Algum aspecto do original deve ser alterado na transcrição. Normalmente, há uma significativa alteração no meio para o qual o trabalho foi escrito. E, geralmente, uma mudança no meio envolve uma mudança na instrumentação (e as mudanças de nota consequentes nisto). É possível produzir uma nova peça por meio de uma mudança em instrumentação, porque a maioria das obras musicais são específicas do meio. Isto é um dos complexos de critérios de identidade em termos dos quais a Quinta Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 21 221 Sinfonia é a obra que é, e o fato de ter sido escrita para um padrão orquestra sinfônica (incluindo trombones e flautim). (Obras que não são obviamente específicos do meio, como The Art of the Fugue, de JS Bach, são raros). Na maior parte, a possibilidade de transcrição musical depende do fato de que pode-se escrever uma nova peça, preservando o conteúdo musical do original peça na qual a nova peça é baseada, alterando o meio pelo qual esses conteúdos são apresentados. Assim, uma obra orquestral pode ser transcrita para piano, ou banda de sopro, ou dueto de violoncelo, ou vice-versa. A mudança de um meio musical para outro não pode ser alcançada mecanicamente ou mesmo automaticamente pela especificação de uma mudança na instrumentação. Não se transcreve um concerto para cravo apenas por riscar a palavra ‘cravo’ na partitura e substituindo-a pela palavra ‘piano’. Embora uma mudança na instrumentação tenha sido especificada, os instrumentos são tocados de maneira semelhante e compartilham a participação na família dos instrumentos de teclado. A re-orquestração de Stravinsky de Petrushka, que envolveram reduções no número de partes do vento e alterações semelhantes, fornece um exemplo semelhante. Uma versão diferente da mesma obra foi produzida por Stravinsky e não há nenhuma cópia nela, pois a nova versão não contém alterações no meio, portanto, não difere muito do original e, portanto, não é uma transcrição. Há pelo menos mais uma maneira de especificar uma mudança de instrumentação que não equivale a uma mudança de meio, ou seja, que a tentativa de mudança falha porque a especificação não é facilmente realizável. Por exemplo, é impossível transcrever composição orquestral no piano simplesmente transferindo as notas tocadas pela orquestra para os agudos e graves da pauta e especificando que a partitura gerada deve ser tocada no piano. É impossível para alguém escrever em um contexto específico até que alguém considere que um músico está envolvido e não precisa colaborar ou trabalhar naquele contexto. A transcrição criativa é polêmica entre tentar conciliar o conteúdo musical da obra original e as limitações e vantagens da mídia que não projetou o conteúdo. O transcritor não pode se desviar do conteúdo original de acordo com o quanto ele se adequa ao meio que escreveu, não havendo regra alguma como base. Mas para que uma tentativa de transcrição falhe como resultado da modificação muito extensa do conteúdo musical do original é bem fácil. Não basta ao compositor transcrito usar a obra como modelo e reconhecer esse modelo na obra final. O compositor de ‘arranjos’, ‘variações’, e ‘homenagens’ faz isso sem produzir transcrições. O objetivo de uma tentativa de transcrição bem-sucedida é e ter uma fidelidade maior ao conteúdo musical original do que, por exemplo, uma tentativa bem-sucedida de escrever um conjunto de variações sobre o assunto de outras pessoas. Uma tentativa de transcrição que falha através de sua falta de fidelidade ao conteúdo musical do poder original teria sido uma homenagem bem sucedida se as intenções do compositor fossem diferentes. Se a tentativa de transcrição for bem-sucedida e a transcrição alterar as notas do original, essas alterações não destruirão as configurações Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 21 222 que dão um caráter original, em vez disso, recriam dentro do meio para o qual a transcrição é escrita equivalente às configurações. (Menciono algumas das técnicas empregadas pelos transcritores, discutindo a criatividade envolvida na transcrição na terceira seção.) Alguns exemplos ilustram a maneira como as transcrições devem ser ouvidas respeitando o conteúdo musical de seus modelos. A peça para piano de Debussy (de cerca de 1910) ‘Homage to Haydn’, balé de Stravinsky The Fairy’s Kiss, baseado em A música de Tchaikovsky e as Variações Diabelli de Beethoven, baseadas na música de Diabelli, tudo teria sido um fracasso se tivessem sido concebidos como transcrições, porque eles se afastam muito de suas fontes para contar como transcrições dessas fontes. Cada uma dessas obras reconhece a origem de sua inspiração musical, mas continua a recompor e decompor o conteúdo musical de seu fonte (de uma forma perfeitamente apropriada para ser uma homenagem, um arranjo ou um conjunto de variações, mas de uma forma que não teria sido apropriada para a realização de uma intenção de produzir uma transcrição). Em contraste, as orquestrações de peças para piano de Chopin reunidas como o balé Les Os silfetos são devidamente contados como transcrições porque visam e conseguiram preservar o conteúdo musical de seu modelo. Porque eles são tão fiel aos originais, que não é impróprio que a obra seja atribuída a Chopin. (Na verdade, os nomes dos transcritores que colaboraram no trabalho não são amplamente conhecidos.) Dois outros exemplos de transcrição se aproximam ao risco de fracasso em ser mais aventureiro. Suíte No. 4 de Tchaikovsky, Op.61, conhecido como ‘Mozartiana’, transcreve para orquestra música de (ou atribuída a) Mozart. Nesse caso, a orquestração é tanto tchaikovskiana quanto mozartiana. Ainda mais interessante é Pulcinella de Stravinsky. Stravinsky faz mais do que recompor e orquestrar a música de Pergolesi, simplesmente acrescenta. Mas ele faz isso com um leve toque, com o objetivo de adicionar uma “borda” ao som em vez de recompor a música de Pergolesi. Portanto, embora Pulcinella tenha um som parecido com o de Stravinsky, ninguém associado a Pergolesi, torna o trabalho mais como uma transcrição do que qualquer outra coisa. É uma obra de Pergolesi / Stravinsky, não apenas de Stravinsky. A transcrição pode ter um uso pedagógico usada no ensino e domínio da orquestração, do contraponto e da harmonia. As atividades de transcrição proporcionam aos alunos uma experiência direta e prática que não pode ser obtida facilmente com materiais musicais. Transcrevendo para orquestra uma peça para piano que já é uma transcrição de uma obra orquestral, o aluno consegue comparar seus esforços com o do compositor. A principal motivação para JS Bach e Mozart são as transcrições de obras de Vivaldi parecem ter sido pedagógicas. O ‘mercado’ para usos pedagógicos da transcrição sempre foi muito limitado, no entanto, pode explicar o número de transcrições produzidas. Mais uma função importante da transcrição era tornar as obras musicais mais prontamente disponíveis do que estariam em sua forma original. Obras eram transcrito para os instrumentos comumente encontrados em casa, o que explica a popularidade do Intabulierung (para alaúde) no século XV e Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 21 223 do piano transcrições no século XIX. (Além dos custos e inconvenientes causados pela orquestra que organiza aulas de treinamento e ensaio para cantores de ópera, corais, companhias de balé e solistas de concerto, também é motivo de algumas transcrições para piano das partes orquestrais de óperas, obras de coral, balés e concertos). Para ouvintes que se interessam por música e podem ver o trabalho de compositores que tanto apreciam, torna então a transcrição valiosa e pode fornecer muitas oportunidades. Na verdade, é improvável que a prática da transcrição alcançou a importância que tem feito se não fosse o caso de servir esta função socialmente útil. No entanto, é óbvio que não podemos explicar a continuação do interesse em transcrições apenas desta forma pragmática. A peça orquestral de Stokowski transcrição de Tocata e Fuga em Ré menor de Bach para órgão, BWV 565, provavelmente é menos acessível que o original, mas não é menos interessante ou valioso como uma transcrição desse fato. Uma consideração ainda mais impressionante é que a tecnologia tornou as apresentações musicais mais prontamente disponíveis do que nunca. Rádios, gravadores, toca-fitas, torna as apresentações de uma grande variedade de músicas acessíveis a um grande público. Isto é, mais fácil agora de ouvir música, aprendendo como apertar um botão do que aprendendo como tocar piano. Se a transcrição for como uma tradução - rejeite o manuscrito original se possível - essas mudanças técnicas prejudicarão nosso interesse e apreciação pela transcrição. Portanto, se a transcrição apenas nos atrai como meio de obter a obra original e não como um direito próprio, não teremos mais que nos preocupar em ouvir ou copiar a transcrição. Sugerese que as transcrições musicais sejam consideradas como tendo valor intrínseco e não meramente ‘pobres substitutos para a coisa real’. Uma razão para valorizar uma transcrição por si só pode ser para a habilidade composicional demonstrada pelo transcritor. Mas tal interesse em uma transcrição não explicaria como ela é avaliada como uma transcrição; o fato da obra ser uma transcrição é incidental a esse interesse. Também por ser uma transcrição do trabalho que seria relevante, no entanto, o foco recaiu na habilidade de composição do transcritor como um transcritor na adaptação do conteúdo musical do original para o meio no qual a transcrição foi escrita. Mas, embora tal interesse possa emprestar uma transcrição de um valor por si só, não explica em geral porque a atividade de transcrição deveria continuar a ser de relevância e valor. Admirando a habilidade demonstrada por um mestre em alguma atividade não exige de forma alguma que se admire essa atividade. A transcrição é uma criativa atividade de uma forma que a gravação e a cópia não são. É inevitável que o transcritor apresente o conteúdo musical do original a partir de uma perspectiva, embora apresentando-os de uma forma fiel, visto que aqueles conteúdos são filtrados por um meio diferente. Porque uma transcrição é mais do que uma mera cópia de seu modelo, reflete sobre seu modelo através da forma como re-apresenta seu modelo. Uma transcrição não pode deixar de comentar o original em re-apresentar o conteúdo musical do original, então uma transcrição convida, considera e compara o original. A Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 21 224 transcrição não é apenas valorizada para tornar o conteúdo musical do modelo mais fácil de obter, mas também para enriquecer nossa compreensão e apreciação das vantagens e desvantagens do modelo. A transcrição envolve a interpretação de a obra do compositor por um transcritor que fica entre o compositor e sua ou seu público. Além disso, o objetivo do transcritor é recriar fielmente o obra do compositor. Nestes aspectos, o papel do transcritor não é diferente de um intérprete da obra do compositor. Além disso, o desempenho, como a transcrição, necessariamente envolve uma intenção apropriada e a reconhecível preservação do conteúdo musical da obra. Desempenho e transcrição leva fidelidade às idéias musicais gravadas do compositor como uma de seus objetivos primários e, em ambos os casos, a realização deste objetivo requer o exercício da iniciativa criativa. Porque as transcrições podem ser mais ou menos fiéis, como performances, eles podem ser avaliados por seu grau de autenticidade. A autenticidade da transcrição é um conceito relativo que desempenha um papel na lacuna entre a transcrição quase irreconhecível e a transcrição pode proteger completamente o conteúdo musical da peça original, simplesmente porque está em conformidade com as características do meio em que foi transcrita. Embora tanto o transcritor quanto o executante tomem fidelidade à especificação do compositor como um de seus objetivos principais, o transcritor é menor constrangido do que o executor na busca desse objetivo. A base para isso mostra uma discrepância, o que não é difícil de discernir. O compositor é capaz de expressar em um notação musical e suas intenções quanto à forma do trabalho que deve ser realizado em virtude de seu conhecimento das convenções de notação, compartilhado com os músicos que executam o compositor. De acordo com essas convenções, alguns dos compositores expressam a melhor das intenções e são mais determinantes do que deve ser na realização determinante do trabalho em performance. E, de acordo com essas convenções, outras das intenções expressas do compositor são apenas recomendatórias (e não determinante). Um desempenho idealmente autêntico é aquele que é fiel ao que é determinado na notação musical de acordo com as convenções adequadas à interpretação dessa notação. Em contraste, o transcritor trabalha em um meio diferente daquele usado pelo compositor e mesmo assim nem sempre é possível, no meio da transcrição, duplicar o que é determinante na pontuação da obra a ser transcrita. Recursos que estão facilmente presentes em um meio podem não estar presentes em outro meio. Considerando que o intérprete pode dar o seu melhor para concretizar a ideia musical do compositor ao apresentar a partitura fielmente, e o escriba tem mais licenças para deixar a partitura do compositor na tentativa de apresentar a ideias de uma forma que leve em consideração o meio para que estão sendo transcrito. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 21 225 SISTEMA DE NOTAÇÃO MUSICAL Até hoje, a transcrição parece ter relação com a etnomusicologia, o tema encontrou resistência e Hood o chama de problema da crônica de 1893. Francis Taylor Piggott (1893) disse sobre a música japonesa: ...and although I think that Western notation is capable of expressing these phrases to one who has already heard them, I feel a little uncertain wether their more complicated forms could be set down in it with sufficient accuracy to enable a stranger to interpret them satisfactoraly. (PIGGOTT apud HOOD 1983, p. 85) No entanto, alguns argumentos apóiam o uso de sistemas de notação ocidentais para representar música não ocidental. Muitos estudiosos até questionam a universalidade das notas ocidentais para os ocidentais. Por exemplo, Reid (1977: 416) questionou o que acontece com colegas nas ciências sociais e naturais, que nunca tiveram a oportunidade de aprender a ler símbolos ocidentais quando confrontados com símbolos ocidentais em pesquisas de etnomusicologia. Hood também criticou severamente o uso do sistema de notação musical ocidental em músicas não ocidentais, oferecendo três soluções para o problema da transcrição musical, as quais ele chama de Hipkins Solution, Seeger Solution e Laban Solution. Em suma, o primeiro sistema pode ser entendido como usando a notação êmica sem transcrever o sistema ocidental. Uma outra solução encontra-se nos aparelhos de transcrição eletrônica, desde a Phonophotography de Metfessel, ao Melógrafo, de Charles Seeger. Além das soluções apresentadas, tem-se o The Laban Solution, sendo o que o autor acreditava ser o futuro para o problema da transcrição musical. Ao escolher uma representação específica para representar um objeto sonoro, não se deve considerar apenas suas vantagens e desvantagens, pois o destinatário da informação compreenderá verdadeiramente a representação, pois o sucesso do texto reside na sua compreensão pelo destinatário do conteúdo. TRANSCRIÇÃO DE MÚSICA NO PERÍODO BARROCO No período barroco, a música Italiana difundiu-se rapidamente por toda a Europa, tendo passado também pela mesa de trabalho de Johann Sebastian Bach, que sabemos ter-se interessado por alguns dos numerosos concertos de Vivaldi, transcrevendo-os para cravo, instrumento este que nunca escolheu para solista de concertos. Curiosamente, a primeira experiência direta de Johann Sebastian Bach (1685-1750) no tratamento da matéria orquestral propriamente dita foi transcrever e adaptar para órgão concertos instrumentais de outros compositores. É necessário levar em conta a primeira parte do instrumento musical. A rigor, as primeiras cantatas não merecem ser classificadas como música instrumental. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 21 226 Estas transcrições foram efetuadas por Bach durante a segunda estada em Weimar (1708-1717). Bach mudou-se para esta cidade como Hoforganist, mas, passado pouco tempo, desempenhava também o cargo e as tarefas de Kammermusicus, tendo ascendido a Konzertmeister em 1714, com o conveniente lugar logo abaixo do Kapellmeister Drese, segundo consta no documento de nomeação. Durante muito tempo, pensou-se que essas transcrições se desviam ao desejo de Bach de aprofundar a forma e a essência do concerto orquestral, mas estudos recentes indicam que foram fruto de uma encomenda do jovem príncipe de Weimar Johann Ernst (1696-1715). Durante a segunda estada em Weimar (1708-1717), e por encomenda do jovem príncipe Johann Ernst (1697-1716). Bach escreveu e adaptou para órgão concertos instrumentais de outros compositores. Este trabalho, que, mais do que uma transcrição, se pode considerar uma reelaboração, foi a primeira experiência direta do músico no tratamento da orquestra. Se, como parece, esta teoria, está correta, essas transcrições de Bach datariam do período de 1713 a 1715. Trata-se de duas séries, transcritas para órgãos e para cravo. A primeira é constituída por cinco concertos, correspondentes aos números 592-596 do Thematisch-Systematisches Verzeichnis der Musikalischen Werke von Johann Sebastian Bach, de Wolfgang Schmider, dois sobre concertos originais do príncipe Johann Ernst de Weimar e três sobre concertos de Antonio Vivaldi. A série de cravo contém um total de dezesseis peças, sete das quais se baseiam em obras de Vivaldi, uma em Alessandro Marcello, uma em Benedetto Marcello, uma em Giuseppe Torelli, três no príncipe Joahnn Ernst, uma em Telemann e duas num autor desconhecido. Correspondem aos números 972-987 do BWV. Bach voltou, mais tarde, a esta prática das transcrições, mas naquela altura interrompeu-a. Nesse momento prévio ao século XVIII, a música era socialmente considerada como uma ars mechanica, ou seja, um artesanato, e seu aprendizado se dava de maneira similar aos demais ofícios exercidos nas sociedades de corte européias. Sendo assim, não possuindo status de Grande Arte, a música geralmente era ensinada primeiramente no ambiente doméstico e seu aprendizado estava estreitamente ligado à tradição familiar: tal condição pode ser verificada na existência das várias famílias de músicos profissionais (ELIAS, 1995). No entanto, se as condições sociais de aprendizado e vivência musical, se transformaram significativamente durante o século XVIII na Europa, a cópia de partituras à mão foi uma prática que persistiu durante mais tempo, sendo possível encontrá-la com alguma regularidade ainda no século XX. Sendo assim, era comum que os aprendizes de composição se inserissem no meio musical como copistas de música, atividade que, apesar de ter um estatuto considerado menor, era exercida inclusive com fins pedagógicos, visto que assim os jovens compositores poderiam ter um contato mais íntimo com a poética musical dos compositores já consagrados e aprenderiam, com isso, técnicas de composição. Um exemplo disso é Hector Berlioz (18031869), que mesmo tendo nascido mais de um século depois dos compositores barrocos acima citados, interessava-se em copiar partituras que considerava Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 21 227 obras-primas, como, por exemplo, a Sinfonia 9, de Beethoven, com objetivo de aprender com esta música a arte da composição dos “grandes mestres” (Cf. BERLIOZ, 2000). Em duas versões para cravo e para órgão, BWV 595 e 984, aparece uma composição original. É importante sublinhá-lo, porque nem nestas nem noutras composições que transcreveu Bach se limitou a fazer uma reprodução mais ou menos exata do original, antes compondo obras novas, pessoais. De fato, na peça a que nos referimos, aumentou a versão para órgão em dezesseis compassos em relação à de cravo, a fim de obter um resultado mais espetacular do efeito eco, que não se podia conseguir naquele. Mas pelo menos relativamente às edições conhecidas, as mudanças introduzidas por Bach são, por vezes, tão profundas, no que toca à tonalidade das obras, ao desenvolvimento melódico e temático que se chegou a pensar que os arranjos de Bach se basearam em cópias dos originais diferentes das edições definitivas. E nos casos em que se mantém mais fiel ao original fá-lo apenas porque assim se adapta melhor ao instrumento para que realize a transcrição. Portanto, em geral, tomando um dos maiores e mais importantes gênios da música dentro do período barroco (Bach), a transcrição seria uma nova escrita dos modelos musicais com objetivos didáticos quando submete um estudante às dificuldades das músicas originais, como a forma, harmonia e contraponto. Evidentemente, não se trata de acreditar que as distribuições dos instrumentos pelas partes (por exemplo: qual tipo de viola deve tocar a voz mais aguda etc.) eram completamente aleatórias no período em que a instrumentação não era especificada em partitura. Essas especificações eram realizadas tendo como base as tradições e os costumes locais da execução do repertório, além da própria limitação de tessitura natural de cada instrumento. Contudo deve-se ressaltar que a especificação instrumental, própria da revolução proporcionada por Monteverdi e alguns outros compositores, possibilitou a complexificação do léxico musical, que foi fundamental posteriormente quando surgiram formações instrumentais ainda maiores (HARNONCOURT, 1988). COMPOSITORES DO SÉCULO XX Desde os meados do século XIX alguns compositores como Liszt e Wagner já vinham pressentindo o esgotamento da linguagem musical baseada no sistema tonal, que foram consolidados no século XVIII por Johann Sebastian Bach e Jean-Philippe Rameau. Liszt, em sua última fase criativa, realizou várias experiências buscando novas formas de organizar as estruturas musicais e, a partir de Tristão e Isolda, a música de Wagner parecia romper os limites finais do sistema tonal. Para escapar ao que era considerado como uma crescente inadequação deste sistema aos anseios expressivos da época, os compositores passaram, na construção de Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 21 228 suas obras, a dar cada vez mais importância a parâmetros como o ritmo, os motivos cíclicos e o timbre. É mesmo possível afirmar que, com a introdução de novos instrumentos e o rápido aprimoramento dos antigos, a orquestra foi, durante o século XIX, um dos campos mais férteis para a expansão das ideias musicais, adquirindo assim uma importância cada vez maior para nova produção musical. Nos dois últimos decênios do século surgiram estilos como, por exemplo, os de Debussy, Scriabin e Strauss, em que os compositores, sem abandonar completamente a tonalidade, organizaram o discurso musical por meio de estruturas harmônicas estranhas ao sistema tonal, tais como os modos medievais e as escalas pentatônicas, ou então mediante o uso de contrastes e de combinações tímbricas originais, bem como de um tratamento mais livre e menos tradicional das dissonâncias. Alvorecer do novo século, cada uma das grandes escolas buscou um caminho próprio para sair da crise sistêmica em que se encontrava a linguagem musical europeia. A história da música orquestral durante a primeira metade do século XX seria escrita tanto pelo desenvolvimento específico de cada uma das escolas quanto pela interação de algumas de suas características. AS INFLUÊNCIAS DE COMPOSITORES RUSSOS Com apresentação, em 1910, de O Pássaro de Fogo em Paris, pela companhia de balé de Sérgio de Dhiagilev, o nome de Igor stravinsky surgiu como uma nova estrela no cenário mundial. A música deste discípulo de Rimsky-Korsakov voltaria a causar sensação no ano seguinte com o novo balé, Petruska, para, em 1913, escandalizar o público parisiense com o balé A Sagração da Primavera. Esta triologia de música para balé, com seus ritmos bárbaros, as suas melodias exóticas e uma orquestração de um colorido vivo e brilhante, colocou o compositor na vanguarda da criação musical da época e mostrou ao mundo a importância da escola russa de composição. Autor prolífico e polêmico, que incorporou ao seu estilo musical os mais diversos elementos, como folclore russo, o jazz, aliado às técnicas de composição mais modernas, stravinsky estabeleceu novos padrões estéticos e influenciou uma parte significativa da produção musical contemporânea. Além das obras tipicamente russas, como os três balés mencionados, e obras posteriores, como a ópera Mavra e o balé Les Noces, ele experimentou novas formas, com a música teatral de A história do soldado, para voz e instrumentos solistas, e seu concerto para piano e instrumentos de sopro. Por outra ótica, em seu período neoclássico, Stravinsky utilizou várias formas históricas da música renascentista e barroca, como Monumentum (pro Gesualdo di Venosa) e balé (Pulcinella), inspirados na música de Pergolesi. Sergey prokofiev foi o outro aluno formado pela escola de Rimsky-Korsakov a Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 21 229 causar um forte impacto no mundo musical da primeira metade do século. Enquanto ainda estudava no Conservatório de São Petersburgo, publicou composições como as duas primeiras sonatas e os dois primeiros concertos para piano, obras muito criticadas na época por fugirem aos cânones formais. Em 1914, Dhiagilev encomendou-lhe um balé que teve apresentação cancelada pelo advento da Primeira Guerra Mundial. Esta composição permanece, contudo, no repertório orquestral com o título de Suíte Scita. Sua primeira sinfonia, conhecida como Sinfonia Clássica, foi escrita em 1917. Nesta obra, o compositor fez uma brilhante paródia do estilo de Haydn e inaugurou o uso de formas neoclássicas que iria caracterizar boa parte de sua obra instrumental. Sua produção para orquestra inclui sete sinfonias, além de cinco concertos para piano, dois para violino, dois para violoncelo e uma Sinfonia Concertante. Prokofiev foi um dos pioneiros da composição de trilhas sonoras para cinema. Sua música para os filmes Alexander Nevsky e Ivan, o Terrível, coloca esse gênero em um patamar muito elevado, o primeiro deles transformado em cantata sinfônica coral e permanece no repertório atual de concertos sinfônicos. O terceiro compositor notável desta escola foi Dmitri shostakovich. Formado também pelo Conservatório de São Petersburgo, ele se consagrou internacionalmente em 1926, aos 20 anos de idade, com a apresentação em Moscou de sua primeira sinfonia. Entusiasta da revolução de 1917, ele resolveu consagrar sua produção musical aos ideais do socialismo soviético. Entretanto, após ver suas óperas O nariz e Lady Macbeth do Distrito de Mtsensk violentamente criticadas e retiradas de cartaz, ele se voltou para a música instrumental, produzindo 15 sinfonias, concertos para piano e violino e um grande número de composições para filmes. Considerado por muitos musicólogos como um dos mais importantes do século XX, o conjunto da obra de Shostakovich combinou elementos musicais das diversas nacionalidades soviéticas com influências de compositores ocidentais, como Mahler e Alan Berg, para criar um estilo pessoal extremamente original, no qual os timbres orquestrais, ora em cores vivas, ora em tons sombrios, dão um caráter altamente dramático ao discurso musical. Além dos três compositores citados acima convém acrescentar nomes de alguns contemporâneos seus como Aram Katchaturian e Dmitri Kabalevsky e de sucessores como Alfred schnittke e Rodion Schedrin, cuja produção, tanto lírica quanto instrumental, contribuiu para afirmar historicamente o merecido prestígio da escola russa de composição. CONSIDERAÇÕES FINAIS Nesta pesquisa, tentamos explicar a atividade de transcrição musical que pertence à criação artística. Compositores e arranjadores, em particular, enfrentam muitos problemas, especialmente na formação dos grupos com novos instrumentos. Eles não querem deixar Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 21 230 de lado as características tonais de diferentes funções do instrumento. Nessa busca pelo entendimento da importância das obras contemporâneas, procuramos demonstrar a importância da prática de transcrição e arranjo musical influenciadas pelas extensas interpretações de obras originais de outros compositores, envolvendo principalmente aspectos pertencentes a outros ambientes musicais. Nessa perspectiva, desde que se torne uma prática inerente ao processo de composição, é possível verificar se a transcrição pode determinar uma nova atitude estética. Ademais, parece que a marca do estilo de transcrição existe no material transcrito e se torna um produto complexo, pois contém as marcas de direitos autorais do compositor e do autor original da transcrição da música. Portanto, são vastas as contribuições dos compositores perpassando pela processo de adaptação quanto da criação tornando o processo de transcrição importante também como ferramenta técnica e eficaz. Assim, a transcrição tornou-se uma prática extremamente importante, pois fornece uma biblioteca de repertórios. No entanto, transcrever é uma prática muito comum hoje em dia. Ao contrário do que se pensa, a composição do repertório original produzido recentemente para grupos de jazz (como quartetos ou quintetos) não descartou a possibilidade de produzir transcrições para grupos maiores (como quartetos). Com base nas descobertas, vários compositores se dedicaram à produção dessa maneira. Com base nisso, ao analisar como a transcrição musical acontecia, viu-se que dentro do contexto existia um processo de adaptação da obra que poderia assim sofrer modificações e novas releituras nessa processo. Do ponto de vista estético, o ponto básico levantado ao mesmo tempo desta proposta é acreditar que a transcrição deve respeitar as características do timbre do instrumento e prestar atenção na formação encontrada no grupo, para não prejudicar o equilíbrio sonoro da música da transcrita. REFERÊNCIAS ALBIN, Cravo. Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira. Disponível em http://www. dicionariompb.com.br. Acesso em 28 de maio, 2010. ALMEIDA, Alexandre Zamith. Verde e amarelo em preto e branco: as impressões do choro no piano brasileiro. Dissertação de Mestrado. PPGM/UEC, campinas, 1999. BINDER, Fernando Pereira. Bandas Militares no Brasil: Difusão e Organização entre 1808-1889. Dissertação de Mestrado. PPGM/USP, São Paulo, 2006. CARDOSO, Antônio Marcos Souza. O Grupo Brasil e a música do Maestro Duda para quinteto de metais: Uma abordagem interpretativa. Dissertação de Mestrado. PPGM/UniRio, Rio de Janeiro, 2002. HARNONCOURT, Nikolaus. O discurso dos sons: caminhos para uma nova compreensão musical. Trad. Marcelo Fagerlande. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 21 231 HOOD, Mantle. 1983. The Ethnomusicologist. New York: McGraw-Hill. HORNBOSTEL, Erich M. von and Otto Abraham. 1909. “Vorschläge für die Transkription Exoticher Melodien”, SIMG, xi. JAIRAZBHOY, Nazir A. 1977. “The ‘Objective’ and Subjective View in Music Transcription.” Ethnomusicology 21 (2): 263-74. MOTA JUNIOR, Pedro Francisco. dois estudos de caso do trompete no choro: flamengo de bonfiglio de oliveira e peguei a reta de porfírio costa. 2011. 92 f. Monografia (Especialização) - Curso de Mestrado em Música, Programa de Pós-graduação em Música, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2011. Disponível em: <http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/ handle/1843/AAGS-8T7NNX/disserta_ao_pedro_mota.pdf?sequence=1>. Acesso em: 15 set. 2016. REID, James. 1977. “Transcription in a New Mode.” Ethnomusicology 21 (3): 415-33. SEEGER, Charles. 1977. Studies in Musicology: 1935-1975. Berkeley: University of California Press. SZENDY, Peter (org). Arrangements, dérangements: La transcription musicale ajord´hui. Les Cahiers de l`Ircam. 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Data de submissão: 05/02/2021 Andréia Miranda de Moraes Nascimento UNIMEP (Universidade Metodista de Piracicaba), Faculdade de Ciências Humanas Piracicaba – SP http://lattes.cnpq.br/9054134430523069 Julia Raquel Ismael Azzi UNIMEP (Universidade Metodista de Piracicaba), Faculdade de Ciências Humanas Piracicaba – SP http://lattes.cnpq.br/4523324821471806 Larissa Cristine Ladeia UNIMEP (Universidade Metodista de Piracicaba), Faculdade de Ciências Humanas Piracicaba – SP http://lattes.cnpq.br/7563268301129858 MUSIC AND INTERDISCIPLINARITY: PEDAGOGICAL AND REFLEXIVE ACTIONS IN EARLY CHILDHOOD EDUCATION ABSTRACT: This work presents an experience report of musical education with Early Childhood Education students. It was part of an university extension project of the Music Degree at UNIMEP an its main objective is to promote the continuing education of teachers for the reflexive pedagogical action of Music in this field. Based on the principles of popular education, it consists of the participation of two university students in the pedagogical collective working classes held at EMEI “Maria de Lourdes Fuzetti Lorenzi” in the city of Piracicaba/SP. KEYWORDS: Musical education. Early childhood education. Interdisciplinarity. 1 | INTRODUÇÃO RESUMO: Este trabalho traz um relato de experiência de educação musical com alunos de Educação Infantil. Fez parte de um projeto de extensão do Curso de Música-Licenciatura da UNIMEP e tem como objetivo geral a promoção da formação continuada de professores para a ação pedagógica reflexiva da Música neste campo de atuação. Fundamentado nos princípios da educação popular, consiste na participação de duas alunas da universidade nas aulas de trabalho pedagógico coletivo realizadas na EMEI “Maria de Lourdes Fuzetti Lorenzi” na cidade de Piracicaba/SP. PALAVRAS - CHAVE: Educação musical. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 A arte é frequentemente considerada a mais elevada forma de expressão humana. Ela tem sido tratada como algo com que se nasce, algo que brota, intuitivamente, do indivíduo sensível. O homem aprende através dos sentidos. A capacidade de ver, sentir, ouvir, cheirar e provar proporciona as formas pelas quais se realiza uma interação do homem com seu meio. É somente através dos sentidos que a aprendizagem pode se processar, e a Arte é a única disciplina que se concentra no desenvolvimento de experiências sensoriais. Capítulo 22 233 Ela tem a função de desenvolver na pessoa aquelas sensibilidades criadoras que tornam a vida satisfatória e significativa. Atualmente, o sistema educacional está voltado para um único aspecto do desenvolvimento: o intelectual. No entanto, a aprendizagem não significa meramente acumulação de conhecimentos, mas também uma compreensão de como esses conhecimentos podem ser utilizados. Num sistema educacional bem equilibrado, em que o desenvolvimento do ser total é realçado, o pensamento, o sentimento e a percepção do indivíduo devem ser igualmente desenvolvidos, a fim de que possa desabrochar toda a sua capacidade criadora em potencial. A arte desempenha um papel vital na educação das crianças. Desenhar, pintar ou construir constituem um processo complexo em que a criança reúne diversos elementos de sua experiência, para formar um novo e significativo todo. “A educação artística pode proporcionar a oportunidade de aumentar a capacidade de ação, de experiência, de redefinição e a estabilidade que é necessária numa sociedade prenhe de mudanças, de tensões e incertezas.” (LOWENFELD, 1970, p. 33). Para a criança, a arte é uma comunicação significativa consigo mesma. É importante para seus processos de pensamento, para seu desenvolvimento perceptual e emocional, para sua crescente conscientização social e para seu desenvolvimento criador. A auto identificação da criança com seu próprio trabalho só pode ser uma experiência muito importante, quando o professor é capaz de se identificar com seus alunos, de modo a proporcionar a motivação adequada e as condições ambientais favoráveis a uma expressão significativa. Qualquer motivação artística deve estimular o pensamento, os sentimentos e a percepção da criança. Segundo Duarte Junior (1988, p. 118), A arte é um fator importante na vida humana, na medida em que permite o acesso a dimensões não reveladas pela lógica e pelo pensamento discursivo. Na medida em que, através dela, se opera a educação dos sentimentos, auxiliando, dialeticamente, na educação do pensamento lógico. Para o adulto, a arte está usualmente associada à área da estética, da beleza externa. Ele age como espectador e fruidor de objetos estéticos. Para a criança, ela é algo muito diferente e constitui primordialmente, um meio de expressão. A criança é um ser dinâmico; para ela, a arte é uma comunicação do pensamento. Vê o mundo de forma diferente daquela como o representa e, enquanto se desenvolve, sua expressão muda. A atividade artística, no mundo infantil, adquire características lúdicas, em que “a ação em si é mais significante que o produto final conseguido” (DUARTE JUNIOR, 1988, p. 112). Ela permite à criança uma organização de suas experiências, uma maior auto compreensão, além de proporcionar um meio de desenvolvimento social. Todos os seres humanos necessitam da vivência em arte como parte fundamental do seu processo de desenvolvimento e aprendizado. Mais do que qualquer outra disciplina, Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 22 234 o ensino de arte pode proporcionar não só o desenvolvimento da criatividade, mas também incentivar o apreço pela sua cultura e a valorização do patrimônio cultural de sua sociedade. Envolve, ainda, questões que fogem aos domínios da palavra, da escrita ou da lógica, perceptível somente por meio da sensibilidade. “Como a matemática, a história e as ciências, a arte tem um domínio, uma linguagem e uma história. Se constitui, portanto, num campo de estudos específicos e não apenas em mera atividade.”, pontua Ana Mae Barbosa (2004, p. 6) sobre o ensino de arte nas escolas. Ademais, discorre sobre a necessidade e a importância de seu ensino da seguinte maneira: Não é possível uma educação intelectual, formal ou informal, de elite ou popular, sem arte, porque é impossível o desenvolvimento integral da inteligência sem o desenvolvimento do pensamento divergente, do pensamento visual e do conhecimento presentacional que caracterizam a arte. (BARBOSA, 2004, p. 5) Desta forma, a autora traz para discussão áreas que somente através do estudo da arte na escola podem ser desenvolvidas e contempladas. E conclui: “O que diferencia a música, a literatura e as demais artes das ciências é a força da conexão com as histórias culturais e pessoais” (2004, p. 36). Defendendo o poder da música ao agir no apreciador, define como “mais uma tentativa de descrever e avaliar aquelas experiências que parecem nos alcançar para fora das rotinas da vida e as quais temos chamado variadamente de transcendentais, espirituais, elevadas, ‘epifânicas’ [...]” (2004, p. 33). Nesse sentido, vemos o valor da música enquanto um processo de entendimento e interpretação extra corporal. Algo que vai além do entendimento, completamente envolto por um plano além do racional, sendo perceptível a noção atribuída por Platão ao “mundo das ideias”, uma forma de diferenciar a razão da intuição, o mais perfeito método de criação artística, como é apresentado por Nunes (1999). Sobre a função da arte na escola, a autora ainda afirma que “uma sociedade só é artisticamente desenvolvida quando ao lado de uma produção artística de alta qualidade há também uma alta capacidade de entendimento desta produção pelo público.” (BARBOSA, 2004, p. 32). Assim, ela complementa que o trabalho deve possibilitar, por meio da sua apreciação, análise, fruição e decodificação, alinhada juntamente com o fazer artístico, meios para que o homem possa entender a sociedade em que vive e suas mudanças ao longo dos anos, incentivando, assim, uma sociedade altamente desenvolvida e conhecedora da arte. Nessa mesma linha, encontra-se o educador musical Keith Swanwick (2003) defendendo um ensino de música nas escolas, não voltado para a formação de músicos e instrumentistas, mas sim possibilitando a apreciação e a fruição artística. A educação musical é mais eficiente na medida em que dá ferramentas para que o aluno compreenda e se posicione criticamente frente à realidade sonora. Existe uma necessidade de trabalhar sempre com contextos musicalmente significativos, num sentido de atingir a completude antes da complexidade musical. Mais particularmente falando sobre a Educação Infantil, trata-se da primeira Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 22 235 etapa de educação escolar para criança de 0 a 5 anos, oferecida em período parcial ou integral. Sendo assim, exerce grande influência sobre a formação da criança pequena ao desenvolver a função pedagógica do cuidar e educar contribuindo com as famílias para a constituição da criança como sujeito. Nessa perspectiva, conforme previsto pela LDBEN 9394/96 seção II, artigo 29º, a educação infantil, primeira etapa da educação básica, tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança de até 5 (cinco) anos, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade. (BRASIL, 1996) No que diz respeito ao trabalho com música nesta etapa de educação, o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI) prevê que o conteúdo seja organizado em dois eixos temáticos: o do fazer musical, no qual o professor explora atividades de composição, improvisação e execução musical, e o da apreciação musical, no qual a criança entra em contato com a literatura musical e interage com ela (BRASIL, 1998). 2 | RELATO DE EXPERIÊNCIA A experiência aqui relatada fez parte de um projeto de extensão realizado no Curso de Música-Licenciatura da UNIMEP (Universidade Metodista de Piracicaba) em parceria com a Escola Municipal de Educação Infantil “Maria de Lourdes Fuzzetti Lorenzi” na cidade de Piracicaba, interior de São Paulo, entre agosto de 2016 e julho de 2017. Contou com a participação de duas alunas do curso, que semanalmente se deslocavam para a escola para desenvolver os trabalhos. O objetivo geral desta experiência foi promover a formação continuada de professores em Escola de Educação Infantil, para a ação pedagógica reflexiva da Música para crianças de 0 a 5 anos. Além disso, contaram-se como objetivos específicos: a formação inicial das alunas bolsistas do Curso de Música-Licenciatura da UNIMEP; a contribuição para a formação das crianças em âmbito cultural; a contribuição para a constituição de um ambiente propício à musicalização infantil na escola parceira; o incentivo à criação de novos espaços de reflexão e estudos sobre a temática abordada; a integração da universidade com as escolas de Educação Básica municipais, na perspectiva de promover a construção de novos conhecimentos, promovendo a integração da teoria com a prática contextualizada nos espaços onde ela ocorre, a partir dos agentes e instituições responsáveis. A metodologia foi orientada por princípios da Educação Popular, conforme preconizados por Freire (1996), e consistiu na participação das alunas bolsistas nas Aulas de Trabalho Pedagógico Coletivo (ATPCs), na perspectiva de construírem, coletivamente com os professores e gestores da escola parceira, um plano de formação continuada desses professores em Educação Musical, a partir das demandas que o Plano Pedagógico Anual da escola apresentava e das demandas próprias de cada nível de ensino existente na Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 22 236 escola, assim como as demandas específicas de cada turma de alunos e seus professores. Para alcançar tais objetivos, foi elaborada uma proposta de trabalho organizada em módulos, a saber: “Música e interdisciplinaridade”, “Confecção de instrumentos musicais”, “Jogos e brincadeiras rítmicas”, “A música do universo infantil”, “Percepção musical” e “Integrando som e movimento”. No entanto, este relato se concentra apenas nas atividades desenvolvidas no primeiro módulo (“Música e interdisciplinaridade”). Para este primeiro módulo, pensou-se em desenvolver atividades musicais como subsídio para aquisição de conhecimentos gerais, como o processo de alfabetização, a aprendizagem dos números, das formas, cores, o trabalho com lateralidade, dentre outros. A cada semana, as alunas levavam às ATPCs propostas de canções e brincadeiras rítmicas envolvendo os conteúdos trabalhados em cada nível da educação infantil (berçário, maternal e jardim). Diálogo da música com a literatura veio na sequência e tentou-se abordar diferentes áreas da literatura como poesia, conto, romance, fábula e história em quadrinhos. Dentro da própria linguagem artística, contemplou-se a relação da música com as artes visuais, buscando estabelecer associações da pintura e escultura com elementos musicais por meio da apreciação musical. Finalizando o módulo, o trabalho buscou unificar os itens anteriores, conduzindo as discussões para o campo da educação sonora, no sentido de chamar a atenção dos professores e alunos da escola parceira para essa questão significativa do mundo contemporâneo. 2.1 Música e Alfabetização O conteúdo se formou com pesquisas e materiais que foram trazidos pelas alunas e professora orientadora do projeto. Depois da análise desses materiais, foram separados aqueles que melhor se encaixavam com a faixa etária dos alunos, sempre pensando em maneiras simples de utilização para que as professoras da escola conseguissem reproduzir em sala de aula. Ao falar em alfabetização, foi decidido expandir esse universo e não somente pensar no alfabeto em si. Escolheu-se também trabalhar com formas geométricas, cores, números e lateralidade, com a preocupação de buscar o estímulo visual (cores e formas animadas para prender a atenção das crianças), materiais adequados para a idade e adaptações das atividades para poder trabalhar com todas as faixas etárias. As aulas aconteceram de forma tranquila. Os alunos se interessaram nas atividades e tiveram vontade de fazê-las, embora com dificuldades em relação à coordenação motora, mas com facilidade em relação às canções que foram trabalhadas, as quais decoraram rapidamente. Com as professoras, nos encontros de ATPCs, as atividades foram passadas uma a uma, com explicações sobre o porquê da escolha e mostrando diferentes maneiras de aplicação das mesmas em sala de aula. 2.2 Música e Literatura O objetivo deste tópico foi trabalhar com os gêneros literários, dos quais se escolheu Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 22 237 três: poesia, fábula e história em quadrinhos. Foram selecionados vários poemas para explorar e criar ritmos, melodias e sonorização. Lalau e Laurabeatriz foram os autores mais explorados e utilizados com o berçário, colocando o elemento visual (fantoches) para chamar a atenção, além de favorecer o estímulo corporal. Com alunos do maternal, o foco se deu na sonorização de histórias. Já com alunos do jardim, explorou-se bastante a questão das rimas. O trabalho foi além do esperado. Os alunos participaram das aulas, tentaram pensar e criar novas rimas e cantaram junto. O mais interessante foi ver que uma das professoras trabalhou com eles fora das aulas de musicalização e juntos criaram novas rimas com a métrica da música, sem ter algum instrumento por perto. 2.3 Música e Artes Visuais Neste tópico, tentou-se fazer uma analogia entre as duas linguagens artísticas no que se refere à Som e Cor, estabelecendo relações entre o som e suas propriedades e as cores quentes, frias e suas texturas. Com alunos do berçário, foram realizadas atividades que instigassem o estímulo corporal e a fala. Com as turmas do maternal e jardim, a dinâmica foi bem semelhante: os alunos foram colocados em roda, e cada um recebeu uma folha de papel sulfite e giz, com a instrução de que, conforme fossem ouvindo a música, desenhassem o que íam sentindo ou o que a música estivesse “falando”. As músicas escolhidas foram “Bicharia” dos Saltimbancos, “Allunde Alluya” do Grupo Mawaca e “Una Mattina” de Ludovico Einaudi. A atividade ocorreu tranquilamente, as crianças puderam ter um momento de apreciação musical e de relaxamento. Para as professoras, foi apresentada a relação que a música/som tem com as artes visuais/cores e assim realizaram as mesmas atividades que os alunos, porém com elas foram pedidas nuances dos desenhos, conforme a música ia alternando de intensidade (forte ou fraca) e duração (rápida ou lenta). 2.4 Música e Educação Sonora Este tópico foi baseado nos educadores da segunda geração dos métodos ativos: Murray Schafer, George Self e John Paynter. Foram realizadas várias atividades com palavras e poemas sonoros, além de experimentos durante os encontros com alunos e professores. As crianças puderam explorar os movimentos corporais junto com a música, buscar elementos sonoros da voz junto com o movimento corporal e explorar a imaginação, criando o seu próprio gesto e som, além de expandir a percepção auditiva ao trabalhar a paisagem sonora. Às professoras, foram apresentados os educadores da segunda geração e suas principais ideias. Trabalhou-se com alguns poemas e atividades sonoras que o livro “O Ouvido Pensante” (SCHAFER, 1991) sugere e a paisagem sonora. As professoras ficaram por um tempo de olhos fechados apenas ouvindo o som ambiente e depois escreveram o que ouviram. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 22 238 3 | CONSIDERAÇÕES FINAIS Foi bastante visível os desdobramentos do trabalho realizado com as professoras na escola. Elas demonstraram bastante interesse pelas atividades e assuntos propostos. Um ponto de dificuldade que relataram foi o fato delas não saberem cantar ou serem afinadas. Algumas atividades foram melhor absorvidas, o que gerou continuidade do trabalho fora das aulas de música, como o trabalho com as formas geométricas e as cores, no tópico “Música e Alfabetização”. O tópico “Música e Literatura” foi bem aproveitado por todas as turmas. Criaram em cima da atividade proposta e se divertiram fazendo. Foram aulas lúdicas e orgânicas, uma atividade complementava a outra. Em relação às professoras, demonstraram interesse e gostaram das atividades, porém poucas deram continuidade com os alunos nas aulas seguintes. Com relação ao tópico “Música e Artes Visuais”, foi interessante analisar os desenhos que os alunos fizeram. O mais chocante foi de um garoto que desenhou seu próprio rosto com um aspecto infeliz. Uma questão que foi levantada foi a utilização do termo “cor de pele” em sala de aula por uma professora e seus alunos. Isso gerou algumas discussões a respeito de racismo e outras questões que fogem um pouco do foco, que é a musicalização, mas que se fez necessário naquele momento. Em relação às professoras, elas se divertiram fazendo e fizeram com vontade as atividades propostas. Ouviram a música e começaram a ter uma percepção maior em relação aos sons. No que se refere ao último tópico, “Música e Educação Sonora”, houve certo desconforto das professoras em realizar algumas atividades nos encontros de ATPCs, como fechar os olhos e se concentrar, ficar apenas ouvindo. Mas o interessante foi que elas conseguiram expandir e captar sons distantes, pois durante a conversa ficaram surpresas com o que tinham conseguido ouvir, sendo que muitos desses sons eram dentro da própria escola, como, por exemplo, outras professoras dando aula. REFERÊNCIAS BARBOSA, Ana Mae. A Imagem no Ensino da Arte. São Paulo: Pespectiva, 2004. BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, LDB. 9394/1996. BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E DO DESPORTO. SECRETARIA DE EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL. Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil. Volumes: I, II e III. Brasília: MEC/SEF, 1998. DUARTE JUNIOR, João-Francisco. Fundamentos Estéticos da Educação. Campinas: Papirus, 1988. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 22 239 LOWENFELD, Viktor, BRITTAIN, W. Lambert. Desenvolvimento da Capacidade Criadora. São Paulo: Ed. Mestre Jou, 1970. NUNES, Benedito. Introdução à Filosofia da Arte. 4. ed. São Paulo: Ática, 1999. SCHAFER, R. Murray. O ouvido pensante. São Paulo: Ed. Unesp, 1991. SWANWICK, Keith. Ensinando Música Musicalmente. São Paulo: Moderna, 2003. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 22 240 DOI 10.22533/at.ed.00000000000 CAPÍTULO 23 A PRÁTICA DA DANÇA NA ESCOLA POR MEIO DO BALLET CLÁSSICO E SUA CONTRIBUÍÇÃO PARA O DESENVOLVIMENTO COGNITIVO DE CRIANÇAS DA EDUCAÇÃO INFANTIL Data de aceite: 16/04/2021 Data de submissão: 10/04/2021 Maria Laura Porto Calil Graduada em Educação Física – ISECENSA Campos dos Goytacazes – RJ http://lattes.cnpq.br/5910025922261059 Nayra de Souza Mothé Alvarenga Graduada em Educação Física – ISECENSA Campos dos Goytacazes – RJ http://lattes.cnpq.br/5143867985194259 Priscilla Gonçalves de Azevedo Doutoranda e Mestra em Cognição e Linguagem – UENF Docente do curso de Graduação em Educação Física – ISECENSA Campos dos Goytacazes - RJ http://lattes.cnpq.br/5201345262630506 https://orcid.org/0000-0003-2340-0691 RESUMO: O educar e o cuidar envolve, o trabalho do desenvolvimento cognitivo da criança na Educação Infantil. O presente trabalho busca investigar se a prática da dança em ambiente escolar, especificamente pelo ballet clássico, colabora com o desenvolvimento cognitivo das crianças entre 2 a 5 anos na educação infantil, auxiliando no processo de aprendizagem na sala de aula. Como estratégia metodológica, foi feita uma revisão sistemática de literatura e uma análise de periódicos publicados em língua portuguesa, entre os anos de 2012 a 2020, utilizando as bases de dados google Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 acadêmico, scielo, bvs e pubmed. Nosso estudo foi realizado no período entre fevereiro e novembro de 2020. Os resultados mostraram que a dança é um instrumento valioso no desenvolvimento cognitivo, pois o aluno é levado a pensar, compreender e resolver problemas quando executa os movimentos específicos dessa atividade. Nosso trabalho é de importante necessidade pelo fato de ainda existirem poucos estudos que tratem especificamente sobre a dança e o desenvolvimento cognitivo, se tornando assim mais um documento de pesquisa necessário para estudos futuros. Concluímos que a dança contribui para o desenvolvimento cognitivo dos alunos como um meio proposto através dos seus ritmos, passos e sequencias coreográficas. PALAVRAS - CHAVE: Dança na escola; Ballet Clássico; Desenvolvimento Cognitivo; Educação Infantil; Educação Física. THE PRACTICE OF DANCE IN SCHOOL THROUGH CLASSIC BALLET AND ITS CONTRIBUTION TO THE COGNITIVE DEVELOPMENT OF CHILDREN IN CHILDHOOD EDUCATION ASBSTRACT: Educating and caring involves the work of the child’s cognitive development in Early Childhood Education. The present work seeks to investigate whether the practice of dance in a school environment, specifically for classical ballet, collaborates with the cognitive development of children between 2 and 5 years old in early childhood education, helping in the learning process in the classroom. As a methodological strategy, a systematic literature Capítulo 23 241 review and an analysis of journals published in Portuguese between the years 2012 to 2020 was carried out, using the google academic, scielo, bvs and pubmed databases. Our study was carried out between February and November 2020. The results showed that dance is a valuable instrument in cognitive development, as the student is led to think, understand and solve problems when performing the specific movements of this activity. Our work is of great need because there are still few studies that deal specifically with dance and cognitive development, thus becoming yet another necessary research document for future studies. We conclude that dance contributes to students’ cognitive development as a means proposed through their rhythms, steps and choreographic sequences. KEYWORDS: Dance at School; Classic Ballet; Cognitive Development; Child Education; Physical Education. 1 | INTRODUÇÃO O presente trabalho se manifesta sobre a dança e o desenvolvimento cognitivo da criança na Educação Infantil, envolvendo ao mesmo tempo dois processos complementares e indissociáveis, que são o educar e o cuidar. A Proposta de pesquisar sobre o ensino de Dança voltada para a Educação Infantil foi pensada no contexto que ela pode ser adaptada a quaisquer segmentos de ensino. Para que a Dança se efetive na Educação Infantil, temos a intenção de compreender e oferecer alternativas para que os professores se tornem autores, sujeitos de suas experiências e criadores de suas próprias práticas em Dança para crianças entre 3 e 5 anos de idade. A análise da prática do ballet clássico no ambiente escolar, poderá propiciar o entendimento sobre o assunto para profissionais que atuam na área, podendo proporcionar a aprimorar sua metodologia enquanto colaboradores ao trabalho da professora que atua em sala de aula. As crianças na faixa etária de 3 a 5 anos têm necessidades de atenção, carinho, segurança, sem as quais elas dificilmente poderiam sobreviver. Ao mesmo tempo, nesta etapa as crianças começam a ter contato com o mundo que as cerca, por meio das experiências diretas com as pessoas, as coisas e as formas de expressão que nele ocorrem. Esta integração das crianças no mundo não seria possível sem que atividades voltadas para educar e cuidar estivessem presentes simultaneamente (CRAIDY & KAERCHER, 2001). Para as crianças, o ballet clássico serve não apenas como uma atividade lúdica, mas também para o desenvolvimento de várias áreas como: coordenação motora, melhoria postural, ajudando na expressão e nas relações interpessoais (ESCOLA DE DANÇA et al., 2020). Sendo assim, a principal importância de nossa pesquisa é fazer informar sobre a contribuição do ballet no desenvolvimento cognitivo de crianças nas aulas de educação infantil. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 23 242 2 | A EDUCAÇÃO INFANTIL NA LDB A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB; BRASIL, 2017) aprovada em 1961, foi uma das primeiras leis a citar a Educação Infantil, ainda como “Educação Pré-primária”, incluindo-a no sistema de ensino. A LDB que foi revalidada em 1996, inseriu a educação infantil na educação básica, partindo do reconhecimento de que a educação começa nos primeiros anos de vida. Além disso, a lei traz no artigo 29 da Sessão II do Capítulo II, a indivisibilidade do educar e do cuidar, apresentando a educação infantil como a base da educação de qualquer indivíduo e, portanto, essencial para todos. A educação infantil, primeira etapa da educação básica, tem com finalidade o desenvolvimento integral da criança até os seis anos de idade, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade (BRASIL, 2017, p.17). Também sobre a LDB de 1996, um outro assunto ilustrado é a avaliação, garantindo que durante a Educação Infantil será executada como uma forma de registro do processo de desenvolvimento da criança e não com o objetivo de aprovação ou não. Diante isso, o acompanhamento do processo de desenvolvimento de cada criança é reconhecido, bem como suas atividades e potencialidades também passaram a ser valorizadas. O Art. 62 da LDB de 1996 define que “(...) admita para formação mínima para o exercício do magistério na educação infantil e nas quatro primeiras séries do ensino fundamental, a oferecida em nível médio, na modalidade normal” (BRASIL, 2017, p.26). As orientações adotadas na LDB para a formação de professores deixa uma grande divergência entre o professor escolar e o educador leigo, ou seja, aquele que não possui condições de trabalho equivalente ao foco dos jovens que conseguem um maior nível de escolaridade. 3 | O BALLET CLÁSSICO O Ballet surgiu de danças folclóricas e da sua espetacularização. O termo Ballet surge na Itália derivado de palavras como “ballare” e “bailati”, que possuíam o sentido e a significância de bailar, deslizar. Com o passar dos anos e o crescimento da prática, esta passou a ser exercida como profissão, começaram-se a se organizar companhias que viajariam para a realização de espetáculos, passando o Ballet a ser apresentado em grandes teatros. O Ballet passou a ser um ambiente de julgamento feminino quando em suas remodelações passou a ser valorizada a delicadeza, a leveza e suavidade dos movimentos. A sapatilha de pontas, conhecida como “a máquina voadora”, viria para colocar a mulher no lugar de destaque: a leveza dos movimentos exercidos pelas bailarinas que a usavam chamava a atenção dos mais variados públicos e espectadores. Assim, o espetáculo começou a explorar essa técnica e aos poucos o lugar que era prioritariamente masculino ganha uma vertente totalmente feminina e inovadora. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 23 243 O Ballet de repertório começa a ser criado visando a figura feminina e os homens foram colocados para enaltecer e valorizar os movimentos das bailarinas (PEREIRA, 2003). No Brasil, os livros de Dança geralmente atuam como aporte teórico que direcionam a compreensão da sua história e suas possibilidades de produção e formatos estéticos, embora seu número de publicações tenha sido muito pouco, durante o século XX, quando comparados às outras áreas das Artes. Depois da grande influência dos balés importados da Europa, e logo depois da dança moderna americana, os artistas da Dança tiveram o importante objetivo de consolidar estas práticas no país, construindo um ambiente para sua inserção, implementação e consolidação, cujas Danças sociais eram pouco valorizadas como expressões artísticas legítimas. Diante da falta de produções literárias, muitos estudiosos rotulavam os artistas e pesquisadores da Dança pela sua falta de intelectualismo. Isso, devido tanto a hiper utilização do corpo, pela própria natureza da Dança, quanto pela inexistência dos aportes teóricos da área, criando assim um estereótipo dos dançarinos e alimentando uma ideia de dualismo entre mente e corpo, teoria e prática. Diante desse fato, jornalistas e outros profissionais de outras áreas acabaram ocupando os espaços de elaboração das teorias e narrativas da Dança. A História da Dança que se passava a conhecer no Brasil era baseada nas tradicionais Histórias das Danças construídas pelos europeus e norte-americanos, importando grande parte de sua bibliografia desses lugares. Sendo assim, a História da Dança que começou a ser construída no país foi um reflexo das narrativas históricas dessas importações, deixando as histórias nacionais quase sempre no esquecimento histórico (SILVA, 2012). 3.1 O Ballet Clássico e a Educação Física Escolar A dança ainda é vista no Brasil como uma atividade para meninas, uma atividade feminina. Para a autora “há o preconceito de diretores, professores e mesmo das crianças” (STRAZZACAPA, 2001, p. 49) e, segundo a autora, as escolas que já têm a atividade da dança em seu currículo, normalmente, são escolas de Educação Infantil ou dos anos inicias do Ensino Fundamental, e essas escolas são pertencentes à rede particular de ensino. Para que a dança seja vista com outros olhos e passe a ser tratada para ambos os sexos sem preconceitos ou barreiras, é necessário que ela seja inserida na fase da pré-escola, para que seja reconhecido o seu papel de grande importância na vida do ser humano, e na criação de um caráter e de uma identidade, que respeitem as diferenças e valorizem seu corpo e o outro. (BREGOLIN; BELLINI, 2015) Trazendo o ballet para os dias atuais e para mais precisamente dentro da escola e sua importância, estaríamos levando muito mais que uma cultura e uma repetição de coreografias folclóricas já existentes, mas sim conteúdos bem mais amplos e completos como o conhecimento sobre o seu corpo, sua capacidade, sua desenvoltura, na evolução de cada passo. A utilização da Dança, sob o enfoque educacional, é de extrema importância para o desenvolvimento físico, mental, afetivo e social do ser humano. Através da Dança, Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 23 244 a criança tem a oportunidade de desenvolver suas capacidades expressiva e criadora, conseguindo adquirir maior domínio dos seus gestos, bem como de suas atitudes. Essa possibilidade da Dança na Escola é defendida por Ferraz e Fusari (1993), na qual acreditam que a Dança pode contribuir para a formação da criança na medida em que ação educativa criadora ativa estiver centrada no aluno. A dança na escola deve parar de ser trabalhada como “arte e expressão”; “corpo e movimento”; recreação”; e começar a ter seu valor e conhecimento como de fato, dança. Logo sendo reconhecido a importância de um profissional adequado para a pratica e não a antiga ideia de que qualquer um pode fazer com as crianças mexam seus corpos. Ao pensar na prática do balé no contexto escolar, nos referimos a um ambiente que oportunize a criança a brincar com o corpo, explorar o movimento, alfabetizando-se com esta linguagem (FELTES; PINTO, 2015, p. 17). Ao pesquisar a dança na escola, encontram-se ideias divergentes a respeito do método de ensino a ser utilizado, visto que a dança apresenta diversas formas e estilos de ser praticada e lecionada, em qualquer que seja o processo de ensino da dança, tanto na escola, quanto em cursos específicos de dança. Na maioria das escolas de ensino infantil, as meninas praticam aulas de ballet clássico, sendo que sua abordagem metodológica se refere tanto a técnica introdutória prevista do ballet clássico, quanto a utilização de atividades lúdicas que requerem da criança a utilização da criatividade, autonomia, sensibilização corporal, rítmica, entre outros elementos. Estes pressupostos também são empregados no ensino de outros estilos de dança na escola (FUSCO; BERNARDES, 2007). Nessa perspectiva, existem muitas dificuldades na aplicação da aula do ballet clássico, poucas são as escolas que têm a visão de que dança também é educação. O ensino das artes nas escolas ainda sofre preconceito, os valores entre a arte e educação acabam sendo interpretados como apenas uma distração ou algo para eventos, como é o caso de que muitos diretores, coordenadores, pedagogos, professores, por exemplo. Portanto, necessita-se de uma reflexão sobre o corpo como praticante de atividades nas aulas de Educação Física, buscando humanizar a disciplina, superar desafios e criar possibilidades sobre a cultura corporal por meio dos movimentos. Sabe-se, entretanto, que o cotidiano da Educação Física tem se restringido quase que exclusivamente ao desporto, havendo uma supervalorização deste enquanto conteúdo escolar (ALTMANN, 2015). Logo, dificultando ou até mesmo excluindo do conhecimento dos alunos, nas aulas de educação física, a diversidade e importância de outros conteúdos que são mais associados, as expressões corporais e a cultura. A Dança, como as outras práticas corporais, muitas vezes passa a deixar de fazer parte do conteúdo programático regular da disciplina de Educação Física, se faz a parte da relação de competição que a sociedade capitalista explora, e que o desporto se relaciona por meio de disputas por medalhas e melhores colocações, se coloca naturalmente como atividade lúdica de diversão descompromissada (MEDINA,1992). Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 23 245 3.2 Benefícios do Ballet Clássico para Crianças da Educação Infantil Dançar não só é divertido como também muito favorável ao bem-estar físico e emocional das crianças. Além de melhorar a coordenação motora, a dança também ajuda a criança a ser mais disciplinada e mais esforçada. Ballet clássico é uma das danças mais recomendadas às crianças quando são pequenas. O Ballet favorece a criatividade, a musicalidade e o trabalho em grupo (BONATO, 2016). Na Educação Infantil as crianças estão em processo de crescimento e de aprendizagem, momento em que sua imaginação é fértil e sua criatividade é absoluta. Tem o poder de criar o que quiserem e vivenciar sua imaginação na realidade, promovendo um desenvolvimento psicológico e motor. Através da dança, especificamente do ballet, outras áreas de conhecimento podem ser trabalhadas através de jogos e brincadeiras em que não se perde a essência e o aprendizado da dança (CARDOSO,2017). Nesta faixa etária o ballet contribui na vida social, afetiva e motora da criança, pois o ambiente pode proporcionar que mantenha contato de uma forma prazerosa com todas essas áreas. Evangelista et al. (2011 apud BREGOLIN; BELLINI, 2015) afirmam que a dança pode ter como um acréscimo a atividade física, possibilitando ao aluno os desenvolvimentos psicomotor, cognitivo, afetivo e social, assim consideramos a dança uma das formas de conhecer o corpo e motivar a criação a partir do incentivo à qualidade de vida e a saúde, podendo desfrutar dos movimentos através da consciência corporal. As aulas de dança inseridas nesse contexto podem ser uma maneira de incentivar o aluno a praticar aulas de dança frequentemente, sempre buscando ligar o corpo ao movimento de maneira livre e espontânea, para, assim, construir um hábito de dança no ser humano desde cedo, livre de preconceitos e barreiras estipulados pela sociedade. A aprendizagem cognitiva é a forma como a informação é memorizada, organizada e posteriormente mostrada diante de diversas situações. É apresentar instrumentos para as crianças e adolescentes na criação de um pensamento crítico, possibilitando a utilização de movimentos no auxílio de retenção, recordação, tomadas de decisões e aplicação de um elemento de cognição (GALLAHUE; DONNELLY, 2008). Gariba e Franzoni (2007) afirmam que a dança funciona como um importante instrumento para a formação educacional, sendo capaz de possibilitar muitas experiências positivas e um pensamento mais sensível as novas visões, ações e atitudes que estão inseridas em nossa sociedade, propiciando o surgimento de um acervo motor e cognitivo amplo, através de fatores que transcorrem até mesmo o ato de dançar. Desse modo que a dança está no contexto da Educação Física escolar, contribuindo para o desenvolvimento dos alunos e os auxiliando na convivência com os colegas e professores, promovendo maior concentração, afetividade, além de provocar estímulos ao interesse de aprendizado dos outros conteúdos que fazem parte das disciplinas escolares (SILVA, 2012). Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 23 246 4 | METODOLOGIA Como estratégia metodológica para este trabalho, optamos por uma revisão de literatura sistemática, para analisar se a dança contribui ampliando algum efeito cognitivo entre crianças de 3 a 5 anos, matriculadas na Educação Infantil. De acordo com Sampaio e Mancini (2007) uma revisão sistemática é um tipo de pesquisa que utiliza como fonte de dados a literatura sobre determinado tema, disponibilizando um resumo das evidências relacionadas a uma estratégia de estudo específico, a partir da aplicação de métodos regulares de busca, apreciando e sintetizando as informações selecionadas, compondo uma coleção de estudos realizados sobre um determinado assunto, podendo apresentar diferentes resultados, positivos ou não, identificando os temas que precisam de maior ênfase, auxiliando na orientação para futuras investigações. A partir da definição metodológica, verificamos diversos artigos publicados em quatro bases de dados, sendo elas: Google acadêmico, Scielo, Pubmed e BVS. Entretanto, somente foram extraídos trabalhos das bases de dados do Google acadêmico e do Scielo, pois foram onde encontramos mais fontes compatíveis com a proposta da nossa pesquisa. Para a pesquisa foram feitas as buscas nas fontes de informação, por meio de vocabulários como: “ballet + educação física escolar”; “ballet na escola”; “ballet + educação infantil”, “benefícios do ballet infantil”. Para a inclusão foram abordados os seguintes aspectos: publicações entre 2012 e 2020 em português e como principal desfecho, artigos que abordem as contribuições da dança escolar no desenvolvimento cognitivo e foram excluídas teses, artigos repetidos, estudos conduzidos com animais e pesquisas que não tem relação com o tema proposto. 5 | RESULTADOS Identificação Rastreio Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Registros identificados através de pesquisa de banco de dados: Google Acadêmico: 49 Scielo: 27 BVS: Pubmed: 0 Registros selecionados (n= 107 ) Registros excluídos por duplicidade (n = 1) Total de registros excluídos (n = 94) Pela análise do título = 76 Pela análise do resumo =18 Capítulo 23 247 Elegibilidade Avaliado para elegibilidade (n = 13) Registros excluídos após análise do artigo completo (n = 9) Estudos incluídos na síntese qualitativa (n = 4 ) Incluídos Quadro 1 - Diagrama de fluxo dos estudos selecionados. Fonte: Elaboração própria Para chegarmos a essa conclusão, e ter atingido apenas 4 resultados, utilizamos critérios de inclusão tais como: idade entre 3-5 anos; Desenvolvimento cognitivo, ano de publicação; idioma em português; artigos e pesquisas realizadas em campo. Autor/Ano Objetivos Bruna Bresolin Bregolin e Magda A. B. C. Bellini (2015) Investigar se a dança nesse contexto é reconhecida pela importância, pelo lazer, pelos seus benefícios e conteúdos além de investigar se a dança auxilia nos desenvolvimentos motor e cognitivo da criança, podendo ser inserida como aulas regulares nas escolas de Educação Infantil. Isabelle de Vasconcellos Corrêa dos Anjos; Alexandre Archanjo Ferraro (2018) Comparar o desenvolvimento motor de crianças que praticaram dança educativa com o desenvolvimento motor de crianças que não a praticaram e a permanência dos resultados obtidos, após seis a oito meses do término da intervenção. Cláudia Moraes Rezende et al. (2012) Oportunizar a dança educativa como uma forma de se expressar corporalmente, uma experiência que proporciona a ampliação da criatividade, o respeito ao próprio corpo e ao do outro, e também a oportunidade de ver na dança uma atividade físico-recreativa. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 N 209 85 105 Metodologia Principais resultados Pesquisa de campo A percepção em relação às aulas de dança evoluiu bastante, pois certos preconceitos criados pela sociedade já estão sendo quebrados, e os benefícios que a dança traz faz com que ela seja vista como uma atividade importante nessa etapa da educação e para o futuro dos pequenos, visto que é trabalhada de forma lúdica, divertida e prazerosa, de maneira desafiadora e exploratória. Pesquisa de campo Estudos afirmam que o desenvolvimento cognitivo está atrelado ao desenvolvimento motor. Essa associação não foi testada neste trabalho, mas se o ganho motor implicou também ganho cognitivo, os benefícios da intervenção podem ter sido maiores e mais duradouros do que aqueles medidos. Pesquisa de Campo Acreditamos que a dança, enquanto atividade física pode contribuir positivamente na melhoria da qualidade de vida humana, pois é uma área repleta de conhecimentos teóricos e práticos capazes de possibilitar a evolução cognitiva e motora do ser humano. Capítulo 23 248 Janaína Antônia Batista da Costa, Sílvia Flávia Fernandes dos Santos Silva e Felipe Dêivid dos Santos Silva (2017) Analisar as repercussões da dança na construção dos saberes cognitivos nas aulas de Educação Física Escolar. -- Revisão de Literatura A dança ou linguagem não verbal possibilita o desenvolvimento da atenção, percepção, raciocínio, memória e imaginação do aluno, tornando-se um discente participativo, comunicativo, crítico e autônomo. A dança é uma temática poderosa, que involuntariamente assimila conceitos e regras no processo ensino aprendizagem. Quadro 2 - Resumo dos trabalhos selecionados para revisão de literatura. Fonte: Dados da pesquisa 6 | DISCUSSÃO Bregolin; Bellini (2015), acreditam que a dança traz para as crianças benefícios no âmbito escolar e fora dela, proporcionando os desenvolvimentos cognitivo, motor, socioafetivo, ao mesmo tempo acredita que beneficia no futuro daquele que a pratica. No estudo destacam o preconceito com relação a dança vista pela sociedade, acreditando ser uma prática feminina, ou seja, aqueles meninos que ousam participar são taxados de vários nomes pejorativos, além de ser vista como uma prática de luxo onde poucos podem ter o prazer de praticar e custear e que a dança é apenas mais uma opção de movimento da criança, dando a entender que tal modalidade não traz benefícios ao seu desenvolvimento. Para a dança ser vista de uma outra forma pela sociedade, as diferenças entre os sexos deve ser respeitada, sendo necessário que seja inserida nas escolas desde a pré-escola, para que desde pequenos entendam os benefícios da dança e que esse preconceito existente comece a ser encerrado, assim quando crescerem teremos uma sociedade sem preconceitos e sem o medo de se expressar da forma de deseja, fazendo assim desenvolver o interesse pela dança desde crianças e quando adultos enxerguem como uma nova perspectiva de conhecimento. Anjos; Ferraro (2018), relatam em seu estudo uma deficiência relacionada ao desenvolvimento motor das crianças, devido ao fato que atualmente as crianças não brincam mais na rua, não reunirem os amigos para brincar, mas sim, uma geração de crianças que fazem muito uso de celulares, tablets, vídeo games e brincadeiras que não demandam de muitas vivências corporais, prejudicando os desenvolvimentos motores, cognitivos, as relações sociais, emocionais, afetivas e escolares. A intervenção foi baseada na metodologia de Rudolf Laban, chamada Dança educativa, que consiste nos movimentos naturais de cada um, com propostas criativas e lúdicas, estimulando os participantes a descobrir e experimentar novos movimentos e novas formas de realizar movimentos já conhecidos, conhecendo os próprios limites e melhorando seu relacionamento interpessoal. Após a intervenção, o grupo apontou uma evolução significativa em comparação ao Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 23 249 grupo controle, exceto nas bases: esquema corporal, organização espacial e organização temporal. Após o terceiro teste, os dois grupos aproximaram seus resultados; o grupo intervenção manteve o ganho que obteve e o grupo controle evoluiu conforme o esperado para a idade cronológica. Para a conclusão desse trabalho, os resultados evidenciaram melhoria significativa no desenvolvimento motor dos alunos expostos às aulas de dança educativa. Sendo assim, os benefícios da intervenção da presente pesquisa podem ter sido maiores e mais duradouros do que aqueles medidos. Rezende et. al. (2012), acreditam que a dança pode contribuir positivamente com a melhoria da qualidade de vida dos indivíduos. A dança educativa tem o objetivo de proporcionar uma forma de se expressar corporalmente, como uma experiência que possibilita a ampliação da criatividade, o respeito ao próprio corpo e ao corpo do outro, as autoras trabalharam com os elementos da linguagem criativa, figurativa e coreográfica, por meio dos movimentos da dança, compreendendo a dança enquanto educação corporal, propiciando benefícios físicos, psicológicos e sociais para as crianças e jovens. Costa; Silva; Silva (2017), dizem que é função do desenvolvimento cognitivo, a aprendizagem, memória, atenção, vigilância, raciocínio, solução de problemas e a percepção, sendo algumas dessas desenvolvidas em aulas de dança como a memória, para conseguir se lembrar de cada passo sendo ele novo ou não, cada correção e as sequências coreográficas, atenção para conseguir memorizar o que é passado, raciocínio para conseguir distinguir e idealizar um passo ou sequência de aula para o lado oposto, em uma nova formação ou em um lugar diferente do que se é acostumado a ensaiar, esses são alguns dos benefícios que o ballet pode ajudar no desenvolvimento cognitivo. 7 | CONSIDERAÇÕES FINAIS A dança ou linguagem não verbal possibilita o desenvolvimento da atenção, percepção, raciocínio, memória e imaginação do aluno. Tendo em vista a amplitude de benefícios proporcionados ao aluno através da dança, é importante que o professor proporcione condições e oportunidades, de forma que o discente consiga criar e desenvolver habilidades individuais para que ele tenha uma experiência com a dança que vá além da reprodução coreográfica e cultural. Por tanto, A dança contribui no desenvolvimento cognitivo do aluno no momento em que é preciso raciocinar para se adequar ao ritmo. Os benefícios da prática da dança para aqueles que a executam, porém com o foco principal nascrianças em idade de educação infantil, pois é justamente nessa fase, onde acontece o descobrimento de cada uma delas, onde há curiosidade, onde elas criam vínculos e aprendizados para a vida toda. E é justamente onde a prática da dança atua, criando em seus participantes aprendizados que levarão para o resto da vida, mesmo que não tenham a consciência disso, o benefício que lhes foi atribuído nunca serão perdidos. Nesse sentido, a prática do ballet clássico, praticada em ambiente escolar, Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 23 250 contribui para o desenvolvimento cognitivo das crianças na educação infantil e para o desenvolvimento cognitivo das crianças na educação infantil. REFERÊNCIAS ALTMANN, Helena. Educação física escolar: relações de gênero em jogo. Cortez Editora, 2015. ANJOS, Isabelle de Vasconcellos Corrêa; FERRARO, Alexandre Archanjo. A influência da dança educativa no desenvolvimento motor de crianças. Revista Paulista de Pediatria. vol.36 no.3 São Paulo. Jul/Set. 2018. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/rpp/v36n3/0103-0582rpp-2018-36-3-00004.pdf Acesso em: 22 mar 2021. BONATO, Helena. O benefício do Ballet Clássico para crianças. Bailaci Academia de Danças, 2016. Disponível em: http://blog.mundodanca.com.br/2016/06/27/os-beneficios-do-ballet-classico-paracriancas/ Acesso em 16 abril de 2020 BRASIL. Lei de diretrizes e bases da educação nacional. 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Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 23 252 CAPÍTULO 24 DOI 10.22533/at.ed.00000000000 ASPECTOS DA FOTOGRAFIA SURREALISTA: UM ESTUDO DE CASO Data de aceite: 16/04/2021 Carolina Bento Safi Universidade de São Paulo Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Departamento de História da Arquitetura e Estética do Projeto http://lattes.cnpq.br/6804813760671980 Agnaldo Farias São Paulo RESUMO: Este trabalho terá como objetivo prático a exposição de discussões realizadas ao longo do andamento da pesquisa de iniciação científica, com um enfoque na análise geral do surrealismo, bem como de um caso específico dentro do movimento: as fotografias de Fernando Lemos, entre os anos de 1949 e 1952. Para tanto, será necessária a sintetização das bibliografias recolhidas ao longo do processo e entendimento do que fora, primeiramente, o Movimento Surrealista, que será alvo de análise nesse primeiro relatório. Dessa forma, será traçada uma linha de análise baseada no surgimento do Surrealismo como movimento artístico e sua evolução até atingir Portugal, cujo contexto político-social será de extrema relevância para o entendimento de como ocorreu o desenrolar da vanguarda. A constante diluição da noção estética compreendida dentro de moldes tradicionais será a marca característica do movimento Surrealista, que buscará uma requalificação do que é o real, através de Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 embasamentos nas teorias psicanalíticas de Freud. O resultado é uma produção artística calcada num mundo aparentemente alógico, em que os fenômenos psíquicos escapam do controle da razão, havendo uma valorização do estado de automatismo psíquico e do mundo onírico, como será explorado ao longo do relatório. André Breton, uma das figuras centrais do movimento, exalta, no Manifesto do Surrealismo (1924) a necessidade de uma arte que se espelhasse nas profundezas do espírito humano, passando a buscar no inconsciente a motivação para essa nova manifestação artística. PALAVRAS - CHAVE: surrealismo, fotografia, Fernando Lemos. ASPECTS OF THE SURREALISTA PHOTOGRAPHY: A CASE STUDY ABSTRACT: This work will have as a practical objective the presentation of discussions held during the course of scientific initiation research, with a focus on the general analysis of surrealism, as well as a specific case within the movement: the photographs of Fernando Lemos, between the years of 1949 and 1952. To do so, it will be necessary to synthesize the bibliographies collected throughout the process and understand what was, first, the Surrealist Movement, which will be analyzed in this first report. In this way, a line of analysis will be drawn based on the emergence of Surrealism as an artistic movement and its evolution until reaching Portugal, whose political-social context will be extremely relevant to the understanding of how the vanguard unfolded. The constant dilution of the aesthetic notion understood within traditional Capítulo 24 253 molds will be the hallmark of the Surrealist movement, which will seek a requalification of what is real, based on Freud’s psychoanalytic theories. The result is an artistic production based on an apparently logical world, in which psychic phenomena escape the control of reason, with an appreciation of the state of psychic automatism and the dream world, as will be explored throughout the report. André Breton, one of the central figures of the movement, exalts, in the Surrealism Manifesto (1924), the need for an art that is mirrored in the depths of the human spirit, starting to search the unconscious for the motivation for this new artistic manifestation. KEYWORDS: surrealism, photography, Fernando Lemos. O MOVIMENTO SURREALISTA André Breton e o primeiro manifesto André Breton pode ser considerado o principal teórico do movimento Surrealista, tendo iniciado sua carreira na universidade de Sorbonne, como médico. Apesar das divergências em relação à sua atuação e formação, sua experiência na área da medicina como assistente em Nantes e, posteriormente como psiquiatra no centro de Saint-Dizier, em um contexto de Primeira Guerra Mundial, fora essencial para o desenvolvimento de uma mentalidade crítica em Breton, especialmente no que diz respeito às relações estabelecidas entre o inconsciente e a personalidade do indivíduo. Ao se expor aos traumas e desilusões de soldados afetados pelos efeitos da Primeira Guerra, bem como a seus comportamentos alterados, fantasias e sonhos, Breton passa a, gradualmente, questionar o estado de consciência e validação dos parâmetros tradicionalmente concebidos como “reais” (HULTER, 1990), se recusando a ver a loucura como um problema mental, mas associando-a ao processo de criação. Tão ocupado estava eu com Freud nessa época, e familiarizado com os seus métodos de exame que eu tivera alguma ocasião de praticar em doentes durante a guerra, que decidir obter de mim o que se procura obter deles, a saber, um monólogo de fluência tão rápida quanto possível sobre o qual o espírito crítico do sujeito não emita nenhum julgamento, que não seja, portanto, embaraçado com nenhuma reticência, e que seja tão exatamente quanto possível o pensamento falado. (BRETON, 1924) Em 1919, Breton abandona a faculdade de medicina e, juntamente com Louis Aragon (colega da faculdade e de treinamentos militares) e Philippe Soupault, funda a revista Littérature que se torna o palco das novas experimentações do movimento, que ainda recebia influências diretas do movimento dadaísta. Porém, o “inerente niilismo do Dada, com a rejeição de qualquer forma de teoria” (HULTER, 1990) passaram a afastar Breton das ideias de Tzara, resultando no rompimento com o dadaísmo e consolidação, em 1924, do Surrealismo como movimento artístico, quando é escrito o primeiro Manifesto do Surrealismo, por André Breton. As teorias psicanalíticas de Freud foram essenciais na elaboração do manifesto, que passa a buscar no inconsciente a motivação para a nova Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 24 254 expressão artística. O entendimento do mundo dos sonhos e de fenômenos psicológicos do subconsciente fora fundamental para a compreensão do que seria a libertação total do imaginário em oposição ao império da lógica e ao racionalismo absoluto. Talvez esteja a imaginação a ponto de retomar seus direitos. Se as profundezas de nosso espírito escondem estranhas forças capazes de aumentar as da superfície, ou contra elas lutar vitoriosamente, há todo interesse em captá-las, captá-las primeiro, para submetê-las depois, se for o caso, ao controle de nossa razão. (BRETON, 1924) A polarização entre o mundo dos sonhos e o estado de vigília, considerado um fenômeno de interferência, conduz a linha de pensamento de Breton, que busca entender, a partir dos princípios Freudianos, de que maneira esse estado de devaneio poderia ser utilizado a favor da produção artística. O sonho se reduz a um parêntese, sendo o momento em que o homem não é mais joguete de sua própria memória, que o priva de qualquer liberdade do imaginário e de configurações distintas da realidade. O retorno ao estado de vigília significa, portanto, a retomada da razão. Dessa maneira, Breton entende que a união de ambos os estados psíquicos resultaria na realidade absoluta, denominada por ele de Surrealidade, em homenagem ao escritor Guillaume Apollinaire, que se utiliza dessa expressão pela primeira vez em 1917. O surrealismo seria, portanto, um novo modelo de expressão pura, que estaria livre das interferências do racionalismo absoluto, pregando o funcionamento real do pensamento e sua difusão. A crítica ao modelo convencional de produção artística é abordada por Breton ao longo de todo o manifesto, havendo um enfoque à produção literária descrita como “maravilhosa”, termo usado para se referir às “ruínas românticas, o manequim moderno ou qualquer outro símbolo próprio a comover a sensibilidade humana por algum tempo” (BRETON, 1924). Dessa maneira, Breton analisa a necessidade de se romper com toda a preocupação estética ou moral, baseada na onipotência do sonho e do pensamento falado como novas estratégias de produção literária e artística. O “MODO DE FAZER” SURREALISTA O automatismo psíquico O automatismo psíquico pode ser considerado a principal prática artística surrealista, já que seria, de acordo com Breton, o caminho central para se acessar o merveilleux. Essa ferramenta fora inicialmente utilizada em produções escritas, como na poesia surrealista, as quais deveriam originar do encadeamento das primeiras palavras ou imagens que ocorressem à mente (BRADLEY, 2001), enfatizando a força criativa da linguagem visual e verbal. Para as artes plásticas, esse método evidenciou a importância da mancha como um possível veículo para a produção de imagens automáticas, já que a criação artística tinha início com o desenho de rabiscos em um estado total de alheamento mental, resultando Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 24 255 em formas e manchas às quais, em um segundo momento, eram atribuídas formas e significados. SURREALISMO, s.m. Automatismo psíquico puro, por meio do qual alguém se propõe a expressar – verbalmente, utilizando a palavra escrita, ou de qualquer outra maneira – o verdadeiro funcionamento do pensamento, na ausência do controle exercido pela razão, livre de qualquer preocupação estética ou moral. (BRETON, 1924) A individualidade das obras era vista pelos surrealistas como um possível empecilho ao automatismo, sendo importante a negação da criatividade individual dos participantes. Um exemplo de obra de caráter coletivo fora publicado em uma das edições da revista La Révolution Surréaliste, e contou com a participação de quatro artistas do movimento: Yves Tanguy, Joan Miró, Max Morise e Man Ray. Denominado de Cadavre Exquis, o jogo verbal e visual se baseava no princípio de liberação do imaginário, sendo dividido entre os participantes, cada qual contribuindo para a realização de uma parte do desenho, alheio àquilo que fora executado pelos demais artistas. O resultando é uma obra única, com princípios estéticos de grande valor ao movimento artístico. A técnica de colagem tornou-se também de grande importância para o surrealismo, tendo sido introduzida ao movimento por Max Ernst. A colagem, como procedimento estético, nasceu no século XX com o cubismo sintético, sendo os elementos moldados e combinados de forma a tanto representar (sendo parte de uma imagem), quanto apresentar (ser ele próprio). O objetivo, portanto, era conferir um sentido figurativo, mantendo a identidade original do fragmento. No surrealismo, a colagem será utilizada de maneira distinta, propondo uma magistral irrupção do irracional em todos os domínios da arte (BRADLEY, 2001), ou seja, será utilizada de forma a criar diferentes cenários, realidades e interpretações, possibilitando combinações infinitas de imagens que, muitas vezes, pertencerão à contextos bastante distintos. Com Max Ernst (1891-1976), ampliam-se as possibilidades da colagem. Notase uma articulação imprevista dos elementos e uma abertura mais direta ao irracional, no que é seguido pelos surrealistas, que levam ao limite a ideia de associação de elementos díspares e de construção de uma “realidade irreal”. (Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras) O automatismo psíquico, explorado pelo movimento, tem uma fundamental ligação com as teorias psicanalíticas de Freud, que serão intensamente exploradas por André Breton e pelos demais membros, como mencionado anteriormente. O chamado pensamento falado, portanto, será uma interpretação psicopatológica do automatismo mental à luz do conceito de inconsciente, visando recuperar os elementos que foram afastados do discurso através da censura da própria razão. Dessa forma, o fluxo livre de pensamentos resultará em uma liberdade de associação como quebra do aspecto lógico, Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 24 256 com a subversão da ordem de organização entre as coisas, e da realidade. O resultado do automatismo psíquico, portanto, é uma produção artística cuja linguagem, tanto escrita como visual, sofre perturbação, com quebras de linearidades, introdução de elementos estranhos e constante ruptura de contextos. SURREALISMO ONÍRICO De certa maneira, é possível concluir que o Surrealismo Onírico se concretizou como uma fase posterior àquela caracterizada pelo automatismo psíquico, que já tinha praticamente cumprido seu curso dentro do movimento ao longo da década de 1920. A alusão aos fenômenos Freudianos será intensamente explorada, especialmente no que diz respeito às teorias do sonho como lugar de atividade mental, sendo um possível caminho para se atingir o tão exaltado estado do maravilhoso. Na pintura automática, supunha-se que as justaposições inesperadas da imagem surrealista se fixassem na tela de maneira natural e espontânea. Na pintura de sonhos, a imagem era conscientemente escolhida e pintada com realismo. A fim de “fotografar” imagens da “irracionalidade concreta”, sugestivas de um estado onírico... (BRADLEY, 2001) O universo das pinturas oníricas é dotado, ao mesmo tempo, de uma familiaridade, conferida pela minuciosa técnica, e de uma estranheza, reconhecida pelo contexto dos objetos e cenários criados dentro da produção artística, que eram selecionados pelos artistas de maneira precisa e consciente. As obras surrealistas do período relacionavamse de forma direta com as pesquisas contemporâneas de Freud e Jacques Lacan, teórico e psicanalista francês, exaltando o sonho como um importante meio de investigação psicológica. A manipulação dos objetos dentro das obras torna confusa a fronteira entre o real e o imaginário, levando o espectador e duvidar de sua própria percepção das coisas, já que no espaço dos sonhos objetos ganham significados distintos, fazendo com que a imagem se torne indigna de confiança por parte do observador, já que o sonho e o inconsciente são locais de constante metamorfose. O público, dentro dessa lógica, seria atingido pelas imagens como se elas tivessem sido criadas por sua própria mente. Não se trataria mais de apreciálas pelo viés do artista, cujo simbolismo só a ele pertence, mas sim através dos olhos do próprio espectador, com os significados por ele atribuídos e projetados. Uma vez experimentadas por intermédio da obra de arte, essas projeções deveriam ser analisadas de forma crítica, avaliadas pelas pessoas para quem elas significavam algo. (LIMA, 2014) O Manifesto do Surrealismo (1924) demonstra preocupação com a utilização do estado onírico como fonte de inspiração, sendo o estado de vigília considerado por Breton como um fenômeno de interferência. O sonho, é contínuo e possui traços de organização, sendo a memória e a razão fontes subversivas. Dessa forma, é necessário o reconhecimento Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 24 257 do sonho como uma importante fonte de inspiração, já que carrega o mais puro fruto do subconsciente. É que o homem, quando cessa de dormir, é logo o joguete de sua memória, a qual, no estado normal, deleita-se em lhe retraçar fracamente as circunstâncias do sonho, em privar este de toda consequência atual, e em despedir o único determinante do ponto onde ele julga tê-lo deixado, poucas horas antes: esta esperança firme, este desassossego. (BRETON, 1924) SURREALISMO EM PORTUGAL Um panorama geral Com o fim da Segunda Guerra Mundial, Portugal assistiu à permanência do regime ditatorial Salazarista no poder. Em um âmbito político, o Estado Novo português se caracterizava pelo seu viés anticomunista, regime autoritário, nacionalista e de inspiração fascista, com um caráter antiliberal. No quesito social, o governo de Salazar representou para a população portuguesa um período de “ansiedades, expectativas e projetos, que a arte não apenas registrou mas promoveu também, já que a arte se cumpriu como elaboradora dos primeiros sinais das necessárias transformações de mentalidade” (GONÇALVES, 1986). Com a criação de um aparelho repressivo próprio, o governo implantou a censura em várias áreas da sociedade, além de perseguir qualquer um que representasse uma ameaça ou oposição ao sistema político. A livre expressão tornou-se, portanto, perigosa. Nesse contexto, a necessidade de um espaço de reflexão crítica fez com que os novos artistas se agrupassem de acordo com seus princípios éticos e poéticos, dando origem ao surgimento de uma vanguarda que, pela primeira vez, se dividiria em três correntes artísticas distintas, sendo elas o abstracionismo geométrico, o neorrealismo e o surrealismo. As esquematizações doutrinárias provocaram cisões, destacando-se a que deu origem ao movimento surrealista, a partir de 1947. Os neorrealistas colocavam-se explicitamente ao lado do proletariado na luta de classes e, na mesma luta, os surrealistas proclamavam a necessidade de juntar à ação o sonho, o humor e os dados do acaso. (GONÇALVES, 1986) As relações entre artista e público passaram a se tornar cada vez menos visíveis. As discussões em cafés e ateliês demonstravam uma necessidade do grupo de artistas de lutar contra o isolamento e o anacronismo da cultura artística portuguesa e, apesar da constante dispersão de tendências das novas vanguardas, “os artistas dos anos 40 e 50 deram ao seu público a consciência do tempo que se vive e mostraram, através de suas tendências simultâneas, que a arte pode ser ilustração do momento histórico, pode ser mais que ilustração e pode ser outra coisa muito diferente, sem deixar por isso de contar para o momento histórico, bem pelo contrário” (GONÇALVEZ, 1986). Em um âmbito internacional, observava-se o surgimento das primeiras galerias e bienais de arte moderna, porém, as Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 24 258 estruturas estagnadas da sociedade portuguesa mantiveram-se agarradas à tradição rural, recusando as novas manifestações artísticas que estavam surgindo. De maneira geral, observa-se que o tal culto ao passadismo era, nas mãos de Salazar, uma barreira para que o povo, considerado infantil e ingênuo, não percebesse as condições do presente e do devir, tão questionadas pelas novas manifestações artísticas. Apesar da oposição salazarista, a Sociedade Nacional de Belas Artes de Portugal (SNBA), democraticamente organizada, continuava se modernizando e, apesar de perder compradores e subsídios, o aumento do número de exposições organizadas diretamente pelos jovens artistas contribuiu para a criação de uma ação cultural própria, fazendo com que os artistas dependessem cada vez menos dos “Salões do Estado” como forma de financiamento. A evolução artística dos diferentes grupos deu-se de forma bastante característica, não houve muitos escritos, já que a maioria das ideias eram trocadas por meio de conversas e discussões nos cafés e ateliers. Dessa maneira, como descreve Rui Mário Gonçalves: O surrealismo, o neorrealismo e o abstracionismo tiveram surtos de desenvolvimento relacionáveis com o que se ia passando em Paris sensivelmente nos mesmos anos; ora, esses fatos foram geralmente considerados positivos pelos artistas quando se tratava da tendência que defendiam, e eram considerados negativos quando se tratava da tendência que atacavam. (GONÇALVES, 1986) Com as pressões oferecidas pela Guerra Fria, Portugal se sentiu no dever político de corresponder a eventos internacionais de arte, já que nesse período as relações entre arte e propaganda política nunca estiveram tão fortes. Foram enviados, portanto, artistas portugueses à Bienal de Veneza e à Bienal de São Paulo, por exemplo, sempre tentando representar um perfil histórico de progresso, segundo os critérios que estavam sendo revelados na Galeria de Março (1952-1954), que procurava desenvolver um programa artístico mais completo possível, sempre em defesa da modernidade. O movimento surrealista português Como mencionado anteriormente, o surrealismo teria surgido em Portugal a partir de uma derivação vanguardista que se dividiria em três correntes distintas. Diferentemente do neorrealismo e do abstracionismo geométrico, observou-se no movimento surrealista uma nova linguagem plástica, com intenções subversivas, anarquicamente. A destruição de componente semânticas, livres associações de imagens e palavras, utilização do humor e exploração do acaso seriam algumas das novas características da linguagem surreal, resultando em sentidos imprevisíveis de compreensão estética. Notícias da grande Exposição Internacional Surrealista de 1938, bem como do regresso de Breton à Paris encorajou, em Portugal, a formalização do movimento, que se baseava apenas em encontros casuais, discussões esporádicas entre os membros e exposições pontuais. Além disso, intervenções políticas na II Exposição Geral de Artes Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 24 259 Plásticas (1947) fomentaram, ainda mais, a necessidade de multiplicação das experiências plásticas e poéticas, fazendo com que no mesmo ano se formalizasse o chamado Grupo Surrealista de Lisboa. Preparou-se, portanto, uma forte representação para a III Exposição Geral da Artes Plásticas, que ocorreria em 1948. Porém, a partir dessa mostra, fora imposta censura prévia às obras, bem como aos nomes que estariam no catálogo da exposição. Para abafar o escândalo, os organizadores da exposição optaram pela destruição dos catálogos, porém, como analisa Rui Mário Gonçalves, esse era um “escândalo que os surrealistas, pelo contrário, gostariam que fosse amplificado, convidando os organizadores a apresentarem o salão vazio, como forte protesto público contra a censura”. As manifestações provocatórias, ataques políticos e estéticos passou a caracterizar o grupo surrealista, cuja comunicação com o resto do mundo, ou até mesmo com a própria população portuguesa, passou a se tornar cada vez mais difícil, já que em Portugal recusava-se a psicanálise e perseguiase o marxismo, princípios esses essenciais no entendimento e elaboração dos valores surrealistas. Em 1949 o grupo realizou sua primeira e única exposição de arte, que fora alvo de escândalos e ameaças policiais e cujo cartaz fora levado à censura por apoiar a campanha eleitoral de Norton de Matos, oposição ao regime salazarista. Da exposição, participaram artistas como O’Neill, Pedro Azevedo, Moniz Pereira, José Augusto França, Dacosta e António Domingues, e a principal atração da mostra fora o quadro coletivo cadavre Exquis. Inspirado no jogo coletivo surrealista, inventado em 1925, na França, autores portugueses retomaram a técnica de maneira a criar imagens que subvertessem completamente as convenções tradicionais de discurso estético, já o desenho é subdividido entre os colaboradores da pintura, de forma que cada um deles pudesse realizar, no espaço a que lhe foi atribuído, um desenho liberto de preocupação moral, apenas atendendo ao repertório imagético e onírico que se apresentasse no automatismo (GINGA, 2009). Apesar da grande importância da obra no universo artístico, sua incompreensão por parte da imprensa resultou em comentários confusos e provocativos em relação, tanto à obra, quanto à exposição como um todo. Em tão grandes dimensões (180cmx150cm) e inteiramente pintado, este quadro foi talvez o primeiro, senão o único, que se realizou no mundo segundo o processo cadavre exquis. (GONÇALVEZ, 1986) Inicia-se, portanto, uma constante dispersão por parte dos membros do movimento, incrédulos com a continuação dessa manifestação artística. Apesar disso, no ano de 1952, é realizada uma exposição na Casa Jalco, em Lisboa, organizada por Fernando Lemos e Marcelino Vespeira, onde foram expostos uma coleção de guaches, desenhos, pinturas a óleo, bem como uma série de composições fotográficas de Lemos bastante enigmáticas, cujos efeitos peculiares de iluminação e sobreposição de planos, conferiam um caráter Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 24 260 surpreendente à obra, nunca antes visto no cenário artístico português. Ainda no mesmo ano, é organizada a Galeria de Março, como comentado anteriormente, porém a ausência de interesse público e compradores levou ao encerramento prematuro da galeria. Nesse cenário de constante perseguição política e oposição ao regime então vigente, artistas passam a se dispersar ou migrar para outros países, como é o caso de Fernando Lemos que, em 1953 decide se mudar para o Brasil e iniciar uma série de exposições nos museus nacionais. O surrealismo português, portanto, fora fundamental na compreensão da problemática cultural portuguesa, com ajuda das teorias até então marginalizadas de Freud, Marx e da própria história da arte, se constituindo como um importante meio de resistência política. ...o caso português era o mais marginal de quantos conhecia no mundo inteiro (Surréalisme périphérique, Universidade de Montroyal, 1983) constituía afinal a experiência que conduziu às mais penetrantes reflexões sobre a arte e sobre a sociedade contemporânea. (GONÇALVEZ, 1986). FERNANDO LEMOS E A FOTOGRAFIA SURREALISTA José Fernandes de Lemos nasceu em Lisboa, no ano de 1926, tendo frequentado a Escola de Artes Decorativas Antonio Arroio entre os anos de 1938 e 1943 e, posteriormente, estudado pintura na Sociedade Nacional de Belas Artes de Lisboa. Sua formação acadêmica fora o ponto de partida para que o artista tenha se destacado nas vertentes de design gráfico, desenho, pintura, tecelagem, gravação, literatura e, principalmente, fotografia, à qual dedica-se com veemência a partir da década de 1950. Como explorado anteriormente, Lemos será uma personagem fundamental no que diz respeito ao ambiente intelectual de resistência à ditadura salazarista, utilizando de seu aparato artístico como forma de protesto à realidade portuguesa da década de 1950. Apesar da dura repressão durante a primeira exposição de arte surrealista realizada em 1949, cujas ameaças policiais levaram à censura da mostra, o ano de 1952 fora um importante marco na carreira de Lemos como fotógrafo. A exposição na Casa Jalco, em Lisboa, organizada por Fernando Lemos e Marcelino Vespeira, contou com um conjunto de 55 obras, sendo 25 composições e 30 retratos, como será analisado mais adiante. As produções enigmáticas de Lemos, cujos efeitos peculiares de iluminação e sobreposição de planos conferiam um caráter surpreendente à obra, nunca antes visto no cenário artístico português: “trata-se de um importante marco prenunciador de novas ordens plásticas, uma operação de ruptura com toda a estética dominante” (PROENÇA, 2010). Por conta do aspecto altamente inovador de suas produções visuais, a exposição fora alvo de protestos por parte da alta burguesia frequentadora da Casa Jalco, importante estabelecimento comercial de decoração e mobiliário. No final de 1952, Lemos viria a expor uma segunda vez suas fotografias, mas agora na galeria de março, em uma mostra intitulada “fotografia Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 24 261 de várias coisas”. A aproximação com a obra de Max Ernst, bem como com a de Man Ray, será visível na obra do fotógrafo, que se utilizará de métodos de unificação de elementos díspares como peças distintas e autônomas de forma a criar suas mais diversas composições. Diferentemente dos dadaístas, os surrealistas buscavam a integridade plástica e não a fragmentação, algo que, na fotografia, será essencial para garantir uma credibilidade à imagem de realidade transformada, bem como fornecerá meios para a exteriorização dos desejos psíquicos do fotógrafo. A câmera de Lemos, portanto, funciona quase como um elemento protésico, uma extensão de seu próprio corpo que aumenta, assim, suas capacidades perceptivas. A utilização de elementos estranhos em suas composições, como objetos de ferro, madeira, tecidos, cortantes, entre outros, bem como a manipulação de elementos de luz criando ofuscamentos, manchas de claridade ou escuridão proporcionarão uma atmosfera de grande estranhamento ao espectador, modificando a noção do chamado agente significante, ou seja, a ausência de uma dimensão surreal em uma prova fotográfica implica no surgimento de um significado convencional para a prova, uma vez que não passa de uma captação da própria realidade. O conceito de ostranenie, ou estranhamento, utilizado pelo crítico literário russo Viktor Chklovsky em “A arte como processo” refletirá muito bem a forma como as imagens surrealistas como um todo, mas especialmente as de Lemos, serão percebidas pelo espectador. Esse conceito nasce de discussões entre formalistas russos acerca da função da arte na sociedade e da mimese, sendo que para Chklovsky: A finalidade da arte é dar uma sensação do objeto como visão e não como reconhecimento; o processo da arte é o processo de singularização ostranenie (estranhamento) dos objetos e o processo que consiste em obscurecer a forma, em aumentar a dificuldade e a duração da percepção. O ato de percepção em arte é um fim em si e deve ser prolongado; a arte é um meio de sentir o devir do objeto, aquilo que já se ‘tornou’ não interessa à arte. (TODOROV, 1999) Sendo assim, o estranhamento seria fruto dos efeitos criados por uma determinada obra de arte afim de nos distanciar do modo comum como apreendemos o mundo, criando uma nova dimensão de percepções. É interessante como esse conceito se expressará nas provas de Lemos já que, como mencionado, a fotografia irá conferir veracidade aos objetos de realidade transformada pelo artista. Um outro aparelho teórico que pode ser utilizado para se analisar as provas surrealistas é o conceito de espaçamento de Derrida. O conceito metafísico de tempo, entendido como uma sucessão de “agoras”, será desconstruído na fotografia a partir do deslocamento dos segmentos de realidade. Além disso, as molduras externas às fotografias também podem ser compreendidas como uma aplicação do conceito de espaçamento, indicando que o que está dentro da moldura é apenas um fragmento da Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 24 262 realidade que, por sua vez, será manipulada de acordo com os termos do próprio fotógrafo (KRAUSS, 1981). A câmera, dessa forma, intromete-se entre o observador e o mundo. Eu, Auto Retrato Eu, Auto Retrato – 1949 | 1952 Dimensões: 59cm x 49,8cm Acervo: Museu de Arte Moderna de São Paulo O contraste luminoso será explorado por Lemos na fotografia de nome “Eu, Auto Retrato”, sendo possível observar duas concentrações de luz específicas, sob fundo escuro. Lemos, com o rosto a três quartos, parece estar sentado, algo que talvez corresponda a uma leitura imediata da imagem. Porém, uma análise mais cuidadosa permite identificar linhas diagonais de tábuas corridas no plano de fundo da imagem, indicando que o fotógrafo estaria deitado, conferindo uma horizontalidade oculta a essa prova. A região iluminada da imagem, sobre a cabeça do retratado, cria um efeito difuso quase como uma nuvem de luz, que parece fumo. A silhueta de uma lâmpada à direita da fotografia permite a interpretação dessa explosão como o surgimento de uma ideia, como ressalta Proença: “lembra-nos e energia vibrante e selvagem de uma ideia quando nasce, pungente, referenciando um momento exato no contínuo do tempo”. Expelidas para o exterior, é possível identificar dois elementos distintos na massa luminosa, sendo esses o que parece ser a lâmina de um punhal e uma carta de tarot. Os significados simbólicos Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 24 263 desses elementos são inúmeros, mas uma possível explicação para o posicionamento desses na prova de Lemos faz referência à certeza da morte, afirmada pelo punhal, e a incerteza do destino, como demonstra a carta (FERREIRA, 2020). Em entrevista realizada por António Gonçalves, Fernando Lemos desmascara um dos possíveis significados da figura de “O Dependurado”, presente na carta de tarot: “Escolhi o enforcado para declarar à própria polícia, à própria repressão que se me quisessem enforcar já iam atrasados porque eu já estava enforcado por minha vontade” (GONÇALVES, 2011) A partir da fala de Lemos, observa-se novamente uma prova fotográfica que carrega, entre seus inúmeros significados, uma força de oposição ao Estado Novo, sendo o próprio punhal um possível símbolo da violência política. O rigor nas escolhas e posicionamento dos objetos na cena não limita seus sentidos, muito pelo contrário, multiplica-os, tornando a composição dotada de diferentes perspectivas de análise. É interessante notar uma semelhança dessa prova com a fotografia de Man Ray denominada Explosant Fixe, que também retoma a técnica de movimento suspenso que pode ser observada na explosão de ideias de Lemos, criando um efeito onírico na cena, em que a complexidade da montagem se destaca em relação à simplicidade do disparo da câmera fotográfica. CONCLUSÃO Fernando Lemos, em suma, desconstrói em seus trabalhos a compreensão de uma fotografia mimética, perturbando a ordem de perspectiva, enquadramento, luz, sombras e criando uma composição única em suas provas a partir da introdução de elementos estranhos ao contexto imagético, criando situações cujas interpretações fogem da ordem do convencional. De forma a construir novas vias de representação, o fotógrafo adotou aspectos como a encenação, uso de figuras inanimadas (como manequins e bonecos articulados), bem como jogos luminosos, contribuindo para a criação de uma inquietante estranheza na apreensão de suas imagens por parte do espectador, que se confunde em relação à veracidade da cena construída pelo artista. É de extrema importância ressaltar que seu trabalho não se deu de maneira isolada, mas contou com a contribuição e influência da vanguarda surrealista francesa, no que diz respeito aos ideais Bretonianos de exteriorização do psíquico nas formas de representação artística, além de ter sido fortemente impactado pelo contexto de produção, estando traços do governo autoritário e ambiente repressivo do Estado Novo português registrados de maneira implícita em diversas de suas provas. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 24 264 REFERÊNCIAS ALEXANDRIAN, Sarane. O Surrealismo. Cacém: Gris, impressores, S. A. R. L, 1972 BRADLEY, Fiona. Movimentos da arte moderna: Surrealismo. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 2001 FERREIRA, Tereza Jorge. A lente incerta da poesia: Herberto Helder e Fernando Lemos. Revista Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 55, n. 1, p.27-38, jan./mar. 2020. GINGA, Adelaide. Cadavre-exquis. Museu de arte contemporânea do chiado, 2009. Disponível em <http://www.museuartecontemporanea.gov.pt/pt/pecas/ver/337/artist>. Acesso em 6 de Abril de 2020, às 15:43. GONÇALVES, Rui Mário. História da Arte em Portugal: De 1945 à atualidade. Lisboa: Publicações Alfa, 1986. KRAUSS, Rosalind [1981] “The Photographic Conditions of Surrealism”, October 19. LIMA, Álvaro. Método crítico-paranoico. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2014. Disponível em: <https://www.ufrgs.br/psicopatologia/wiki/index.php?title=M%C3%A9todo_ cr%C3%ADtico-paran%C3%B3ico> Acesso em 14 de Abril de 2020, às 13:56 PROENÇA, Miguel. Fernando Lemos: ‘Eu Sou a Fotografia’. Dissertação de Mestrado – Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2010 TODOROV, Tzevetan. A arte como processo”, em Teoria da Literatura I: Textos dos Formalistas Russos. Lisboa: edições 70, 1999. Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Capítulo 24 265 SOBRE O ORGANIZADOR FABIANO ELOY ATÍLIO BATISTA - Doutorando e Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Economia Doméstica (PPGED) - área de concentração em Família e Sociedade - pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), atuando na linha de pesquisa Trabalho, Consumo e Cultura. É bacharel em Ciências Humanas, pelo Instituto de Ciências Humanas da Universidade Federal de Juiz de Fora (BACH/ICH - UFJF); licenciado em Artes Visuais, pelo Centro Universitário UNINTER; e, tecnólogo em Design de Moda, pela Faculdade Estácio de Sá -Juiz de Fora/MG. Realizou cursos de especialização nas seguintes áreas: Moda, Cultura de Moda e Arte, pelo Instituto de Artes e Design da Faculdade Federal de Juiz de Fora (IAD/UFJF); Televisão, Cinema e Mídias Digitais, pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora (FACOM/UFJF); Ensino de Artes Visuais, pela Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora (FACED/UFJF); e, Docência na Educação Profissional e Tecnológica, pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sudeste de Minas Gerais - Campus Rio Pomba (IF Rio Pomba). Tem interesse nas áreas: Moda e Design; Arte e Educação; Relações de Gênero e Sexualidade; Mídia e Estudos Culturais; Corpo, Juventude e Envelhecimento, dentre outras possibilidades de pesquisa num viés da interdisciplinaridade. E-mail: fabiano.batista@ufv.br Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Sobre o Organizador 266 ÍNDICE REMISSIVO A Ações Pedagógicas 8, 233 Alunos 7, 2, 3, 6, 8, 10, 11, 14, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 26, 30, 31, 34, 36, 39, 40, 41, 42, 43, 83, 84, 85, 86, 87, 88, 89, 90, 91, 93, 95, 96, 98, 99, 100, 128, 129, 131, 132, 133, 134, 135, 136, 137, 138, 143, 144, 145, 146, 147, 148, 149, 150, 203, 223, 233, 234, 237, 238, 239, 241, 245, 246, 250 Arte 5, 6, 7, 1, 7, 8, 9, 10, 12, 14, 15, 20, 24, 32, 35, 37, 42, 44, 45, 46, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58, 59, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 67, 68, 69, 73, 79, 80, 83, 84, 85, 86, 90, 91, 92, 93, 97, 100, 109, 111, 121, 123, 130, 131, 138, 139, 151, 153, 155, 227, 228, 233, 234, 235, 239, 240, 245, 251, 252, 266 Arte-Educação 7, 79, 80, 83, 84, 91 Artesanato 61, 62, 227 Artesania 6, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 66, 69 Artes Visuais 7, 8, 50, 56, 59, 70, 71, 72, 80, 84, 237, 238, 239, 266 Artista 7, 22, 53, 54, 60, 61, 62, 63, 66, 67, 71, 73, 85, 106, 128, 129, 130, 132, 138 Ateliês 7, 70, 76 B Ballet 9, 241, 242, 243, 244, 245, 246, 247, 250, 251, 252 Brasil 8, 15, 19, 35, 52, 70, 71, 80, 81, 88, 91, 105, 114, 115, 117, 118, 121, 122, 176, 191, 203, 208, 209, 231, 236, 239, 243, 244, 251, 252 Brasileira 8, 24, 25, 114, 115, 121, 164, 165, 166, 172, 174, 176, 177, 178, 179, 180, 183, 187, 190, 191, 192, 193, 194, 199, 202, 203, 204, 205, 206, 215, 218, 231, 252 C Cena Teatral 6, 57, 58, 59, 60, 63, 66, 69 Ciência 6, 1, 2, 6, 7, 8, 14, 15, 24, 49, 57, 58, 67, 69, 72, 119, 130, 266 Composição Musical 7, 99, 140, 141, 142, 143, 144, 149, 150, 206, 211, 219 Corpo 6, 7, 3, 20, 23, 24, 26, 28, 29, 45, 46, 47, 48, 49, 60, 62, 64, 67, 106, 115, 123, 124, 126, 127, 128, 130, 132, 138, 139, 221, 244, 245, 246, 248, 250, 251, 252, 266 Corpo-Objeto-Obra 6, 45 Cotidiano 6, 16, 19, 20, 23, 27, 30, 35, 37, 51, 64, 245 Criação 5, 7, 13, 22, 23, 24, 28, 31, 45, 46, 47, 49, 52, 53, 57, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 66, 67, 69, 70, 71, 73, 74, 75, 78, 80, 83, 84, 86, 90, 91, 105, 106, 111, 114, 123, 124, 126, 127, 130, 141, 143, 144, 145, 146, 147, 149, 150, 178, 192, 193, 210, 220, 229, 230, 231, 235, Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Índice Remissivo 267 236, 244, 246 Criança 1, 17, 23, 40, 101, 135, 136, 141, 143, 145, 150, 152, 213, 214, 234, 236, 241, 242, 243, 245, 246, 248, 249, 251 Criatividade 5, 7, 20, 31, 36, 68, 69, 80, 81, 91, 98, 100, 140, 141, 146, 147, 148, 149, 150, 151, 166, 179, 193, 223, 235, 245, 246, 248, 250 Cultura 15, 27, 35, 50, 52, 58, 68, 70, 71, 72, 73, 74, 75, 76, 96, 98, 121, 142, 155, 165, 178, 192, 235, 244, 245, 266 D Dança 9, 21, 26, 28, 31, 45, 46, 49, 59, 111, 122, 123, 127, 130, 131, 132, 133, 134, 135, 138, 139, 142, 152, 187, 199, 208, 241, 242, 244, 245, 246, 247, 248, 249, 250, 251, 252 Desenvolvimento 9, 8, 14, 31, 34, 36, 45, 79, 80, 81, 88, 91, 93, 94, 95, 97, 100, 105, 113, 116, 119, 130, 132, 143, 144, 145, 148, 149, 182, 228, 229, 233, 234, 235, 236, 240, 241, 242, 243, 244, 246, 247, 248, 249, 250, 251 Design 7, 1, 7, 79, 80, 81, 84, 85, 86, 90, 91, 92, 150, 266 Docente 6, 34, 46, 57, 58, 59, 60, 63, 64, 65, 66, 67, 86, 89, 241 Dramaturgia 23, 60, 61, 104, 105, 107, 113, 114, 115, 118, 121 E Educação Infantil 8, 9, 233, 235, 236, 237, 239, 241, 242, 243, 244, 246, 247, 248, 250, 251 Educar 7, 140, 236, 241, 242, 243 Efêmera 6, 50, 52, 55 Ensino 6, 7, 1, 10, 16, 18, 19, 21, 22, 26, 28, 31, 33, 34, 38, 42, 43, 44, 45, 72, 73, 79, 80, 81, 83, 87, 91, 92, 93, 94, 95, 97, 98, 99, 100, 101, 102, 119, 128, 129, 131, 139, 140, 141, 142, 143, 144, 145, 146, 147, 148, 150, 151, 152, 154, 155, 167, 194, 223, 235, 236, 239, 242, 243, 244, 245, 249, 266 Ensino-Aprendizagem 6, 26 Escola 6, 9, 1, 7, 16, 19, 20, 21, 22, 23, 25, 33, 39, 40, 43, 45, 46, 49, 73, 74, 79, 80, 84, 86, 93, 95, 96, 97, 98, 99, 100, 101, 113, 121, 128, 131, 133, 140, 143, 144, 145, 146, 150, 229, 230, 235, 236, 237, 239, 241, 242, 244, 245, 247, 249, 251, 252 Escola Pública 6, 16, 19, 20, 22, 80 Estratégias 6, 23, 33, 34, 35, 36, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 59, 83, 94, 97, 100, 128, 129, 148, 149, 213 Experiência 6, 7, 6, 10, 11, 13, 20, 23, 24, 25, 28, 34, 37, 39, 43, 45, 47, 57, 62, 64, 67, 68, 72, 80, 84, 87, 89, 92, 104, 105, 110, 128, 129, 130, 131, 134, 135, 136, 137, 138, 143, 149, 176, 190, 203, 223, 226, 227, 233, 234, 236, 248, 250 Experiência Sensorial 7, 128, 129, 138 Experimentações 6, 1, 58, 64 Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Índice Remissivo 268 F Formação 5, 16, 27, 43, 45, 46, 48, 57, 60, 63, 64, 65, 66, 67, 68, 69, 80, 81, 83, 84, 94, 95, 96, 97, 98, 100, 101, 102, 113, 114, 117, 119, 126, 128, 129, 131, 138, 145, 151, 181, 221, 230, 231, 233, 235, 236, 243, 245, 246, 250, 252 H História em quadrinhos 39, 237, 238 I Imaginação 57, 58, 60, 62, 63, 64, 65, 69, 80, 138, 238, 246, 249, 250 Interdisciplinaridade 8, 14, 233, 237, 266 M Metodologia 6, 26, 32, 38, 52, 119, 247, 248 Movimento 7, 9, 12, 19, 22, 24, 30, 46, 47, 48, 49, 52, 66, 71, 89, 104, 108, 123, 124, 125, 126, 127, 129, 130, 131, 132, 134, 137, 138, 139, 149, 157, 164, 168, 170, 176, 181, 186, 191, 195, 203, 237, 238, 245, 246, 249, 252 Mulheres 7, 18, 65, 113, 114, 115, 116, 118, 120, 122 Música 8, 11, 18, 20, 21, 30, 93, 94, 95, 96, 97, 99, 100, 101, 102, 128, 129, 132, 133, 134, 135, 136, 137, 140, 141, 142, 143, 144, 145, 146, 148, 149, 150, 151, 152, 153, 163, 164, 165, 172, 176, 178, 180, 183, 187, 191, 192, 194, 199, 203, 204, 205, 206, 208, 209, 210, 211, 212, 215, 218, 219, 220, 221, 223, 224, 226, 227, 228, 229, 230, 231, 232, 233, 235, 236, 237, 238, 239, 240 Musical 7, 8, 93, 94, 95, 96, 97, 99, 100, 101, 102, 128, 129, 130, 131, 132, 133, 134, 135, 136, 137, 138, 139, 140, 141, 142, 143, 144, 145, 146, 147, 148, 149, 150, 151, 152, 153, 154, 155, 156, 157, 158, 159, 163, 165, 166, 167, 176, 178, 179, 183, 188, 190, 192, 193, 195, 202, 203, 204, 205, 206, 207, 208, 210, 211, 212, 213, 216, 218, 219, 220, 221, 222, 223, 224, 225, 226, 227, 228, 229, 230, 231, 232, 233, 235, 236, 237, 238 O Objetos 6, 3, 5, 6, 27, 45, 46, 48, 51, 61, 109, 110, 134, 135, 234 P Patrimônio 50, 51, 55, 56, 235 Pesquisa 7, 7, 9, 16, 22, 23, 24, 25, 34, 35, 38, 39, 44, 46, 47, 48, 50, 51, 55, 57, 58, 60, 66, 68, 69, 72, 73, 76, 80, 81, 82, 83, 84, 86, 88, 89, 101, 106, 113, 114, 115, 116, 118, 119, 120, 121, 122, 123, 128, 130, 131, 132, 134, 147, 150, 163, 166, 176, 179, 193, 204, 205, 220, 221, 230, 241, 242, 247, 248, 249, 250, 266 Piano 8, 65, 115, 132, 133, 154, 155, 163, 164, 165, 166, 167, 169, 171, 175, 176, 177, 178, 179, 186, 190, 191, 192, 193, 194, 201, 203, 204, 205, 207, 208, 211, 217, 218, 221, Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Índice Remissivo 269 222, 223, 224, 229, 230, 231 Prática 6, 9, 10, 16, 19, 22, 25, 26, 28, 30, 31, 33, 35, 44, 45, 48, 58, 60, 61, 62, 63, 64, 67, 73, 74, 75, 79, 81, 83, 84, 85, 86, 87, 89, 90, 92, 95, 98, 99, 105, 114, 127, 132, 138, 142, 148, 155, 167, 194, 215, 221, 223, 224, 227, 231, 236, 239, 241, 242, 243, 244, 245, 249, 250 Processos Criativos 2, 5, 9, 68, 72, 150 Processos Formativos 7, 128 Projeto 6, 7, 1, 7, 9, 11, 14, 16, 19, 21, 23, 31, 47, 59, 68, 72, 90, 93, 94, 97, 98, 99, 100, 101, 102, 132, 152, 217, 233, 236, 237 S Seminário 48, 70, 71, 74, 75, 252 T Teatro 7, 16, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 28, 29, 31, 57, 58, 59, 60, 64, 65, 66, 67, 68, 69, 103, 104, 105, 106, 108, 109, 110, 111, 112, 113, 114, 115, 116, 119, 120, 121, 122, 127, 128, 129, 130, 131, 132, 133, 134, 138, 139 Técnica 6, 8, 24, 39, 45, 46, 47, 52, 60, 62, 68, 80, 104, 109, 111, 128, 131, 154, 163, 165, 166, 176, 178, 179, 190, 191, 192, 193, 194, 203, 231, 243, 245 Tecnologia 6, 1, 2, 7, 8, 9, 14, 15, 57, 58, 72, 92, 224, 266 Trabalho 6, 7, 13, 16, 20, 22, 23, 24, 30, 31, 33, 46, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 66, 67, 69, 71, 72, 73, 74, 76, 79, 80, 81, 82, 84, 85, 86, 87, 88, 89, 90, 91, 93, 98, 99, 100, 103, 104, 105, 106, 107, 109, 110, 111, 113, 114, 115, 116, 117, 119, 121, 128, 129, 130, 131, 132, 135, 138, 140, 146, 147, 154, 155, 163, 166, 167, 176, 178, 179, 180, 190, 192, 202, 205, 211, 215, 216, 217, 218, 221, 223, 224, 225, 226, 227, 233, 234, 235, 236, 237, 238, 239, 241, 242, 243, 246, 247, 248, 250, 266 Processos Criativos e Educacionais em Artes 2 Índice Remissivo 270