ufpr | departamento de artes
anais
simpósio
depesquisa
emmúsica2005
ANAIS DO SIMPÓSIO DE PESQUISA EM MÚSICA
2005
Universidade Federal do Paraná
Reitor
Carlos Augusto Moreira Júnior
Vice-Reitora
Maria Tarcisa Silva Bega
Diretor do Setor de Ciências Humanas, letras e Artes
José Borges Neto
Chefe do Departamento de Artes
Maurício Dottori
Coordenadora do Curso de Música
Beatriz Ilari
ii
UFPR | Departamento de Artes
Norton Dudeque, Álvaro Carlini e Rogério Budasz
Organizadores
Anais do
Simpósio de Pesquisa
em Música 2005
Editora DeArtes | UFPR
Curitiba | 2005
iii
Comitê organizador do evento
Prof. Dr. Álvaro Carlini (coordenador)
Prof. Dr. Norton Dudeque
Prof. Dr. Rogério Budasz
Realização
Departamento de Artes da UFPR
Apoio
Fundação Araucária
UFPR
Simpósio de Pesquisa em Música (1.:2005:Curitiba)
Simpósio de Pesquisa em Música: Anais/Organização Norton Dudeque, Álvaro
Carlini e Rogério Budasz
- Curitiba: DeArtes-UFPR, 2005.
290p; - (Anais dos Simpósios de Pesquisa em Música 2005: v1)
Realizado em 4 e 5 de novembro de 2005 no Departamento de Artes da UFPR
ISBN: 85–98826–05–7
1-Musicologia-Congressos-Brasil.2-Música-Pesquisa.3-Música Popular Brasileira.4Música-Composição.5-Música-Análise.
I.Dudeque, Norton, Álvaro Carlini, Rogério Budasz. II.Departamento de Artes da
Universidade Federal do Paraná.
CDD:780.01
iv
|sumário|
ix
Apresentação
x
Programação
1
Repetição, diferença e poética na música instrumental indígena
Acácio Tadeu de Camargo Piedade (UDESC)
9
A relevância de entrevistas como ferramenta de pesquisa no estudo das manifestações
musicais oriundas da música popular
Afonso Cláudio Segundo de Figueiredo (UNIRIO)
15
Revisitando a Teoria de Síntese Sonora por Modulação de Freqüência
Anselmo Guerra de Almeida (UFG)
29
Por que resgatar o fandango?
Cintia B. Ferrero, Alberto T. Ikeda, (UNESP)
37
Musicalidade Clínica em Musicoterapia: construções a partir da Teoria da
Complexidade
Clara Márcia de Freitas Piazzetta & Leomara Craveiro de Sá (UFG)
50
A rabeca do fandango paranaense: a busca de uma origem utilizando o violino como
parâmetro
Guilherme G. B. Romanelli (UFPR)
60
Alceo Bocchino: Sonatina para piano – uma abordagem analítica-estrutural
Josely Maria Machado Bark (UNICAMP)
72
Ouvinte Modelo e Ouvinte Real: uma proposta de aproximação com a teoria do
Leitor Modelo
Judson Gonçalves de Lima (UFPR)
82
A musicologia histórica: herança e perspectivas
Juliana Noronha Dutra (UNESP)
94
Música eletroacústica e um novo escutar musical
Maria Cristina Dignart (UFG), Anselmo Guerra de Almeida (UFG)
105
Fatores do desempenho e realização
interdisciplinares
Maria Bernardete Castelan Póvoas (UDESC)
118
Iamurikuma: Música, Mito e Ritual
Maria Ignez Cruz Mello (UDESC)
músico-instrumental. Relações
v
131
Uma abordagem atuacionista da tipo-morfologia de Pierre Schaeffer
Rael Bertarelli Gimenes Toffolo, André Luiz Gonçalves de Oliveira
146
Cyro Pereira e a Brasiliana n. 2
Renato Kutner e Emerson De Biaggi
159
O limiar da Pós-Modernidade na obra de Gilberto Mendes
Rita de Cássia Domingues dos Santos (USP)
174
Educação Musical e Pedagogia
Sérgio Luiz Ferreira de Figueiredo (UDESC)
186
Análise semiótica de acalantos e cantigas de roda segundo o modelo de Luiz Tatit
Carlos G. González (UFPR)
197
A musicoterapia como auxílio físico-psicológico a portadores do HIV
Cristiano Steenbock (FAP)
210
A influência do folclore regional nos Acervos de Música Paranaense
Lílian Nakao Nakahodo (UFPR)
219
Aspectos da musicologia, etnomusicologia e música popular brasileira
Acácio Tadeu de Camargo Piedade (UDESC), Maiara Felippe Moraes (UDESC)
231
Congadas da Lapa: as músicas de um folguedo na educação musical
Márcio Horning (UFPR)
245
Manifesto 1946: “O Banquete” do Grupo Música Viva
Marcus Vinícius Marvila das Neves (UFES)
257
O desenvolvimento histórico da “música instrumental”, o jazz brasileiro
Marina Beraldo Bastos (UDESC); Acácio Tadeu de Camargo Piedade (UDESC)
268
resumos de pôsteres
268
Desconstruindo o “ursozinho de algodão” de Villa-Lobos
Marcos Mesquita (Universidade de Karlsruhe)
268
Cognição musical como enacção e algumas possibilidades de implicações
metodológicas em educação musical
André Luiz Gonçalves de Oliveira; Sabrina L. Schulz; Patrícia Mertzig (UEM)
268
A organização do discurso musical em Psappha, de Iannis Xenakis
Arthur Rinaldi; Edson Zampronha (UNESP)
269
Investigações acerca da música de hoje
Caio Manoel Nocko (PUC–PR)
269
A influência positivista na música paranaense
Charlene Neotti Gouveia Machado (UFPR)
vi
270
A influência da mensagem subliminar na música
Cristiano Steenbock (FAP–PR)
270
Música e comunicação
Cristine Roberta Piassetta Xavier (Secretaria de Educação da PMC)
271
Algumas informações de interesse para o estudo da música paulista no século XVIII
em “Documentos Interessantes para a história e costumes de São Paulo”
Dalton Martins Soares; Paulo Augusto Castagna (UNESP)
271
Relações dialógicas entre o sacro e o secular
Elisabeth Seraphim Prosser (EMBAP–UFPR)
271
Introdução à música microtonal
Felipe de Almeida Ribeiro (UFPR)
271
Tecnologias de gravação e fazer musical: algumas reflexões
Frederico Alberto Barbosa Macedo (UDESC)
272
Música, linguagem e a evolução da comunicação humana: uma tentativa de testar
empiricamente modelos de evolução da comunicação humana com base nas
vocalizações de bebês de até 12 meses de idade
João Pedro Troncoso Caserta (UFPR)
273
Uma nova visão sobre o aquecimento e desaquecimento vocal
Karissa Laiz Nuñez (FAP)
273
O Hip-Hop: suas oficínas e apresentações
Kleber Tiago Gregorio (UFPR)
273
Música e nação-cosmos: o legado de uma utopia brasileira
Luciana Rodrigues Gifoni; Alberto T. Ikeda (UNESP)
274
Uma concepção de relação entre arte e vida sob a ótica da filosofia de Friedrich
Nietzsche
Marcel Sluminsky; Fernando Nicknich (UFPR)
274
Representações numéricas de tempo como geradores de timbre: o Calendário Maia
como algoritmo musical
Marcelo C. Velho Birck; Anselmo G. de Almeida (UFG)
275
A encruzilhada musical: vivendo entre o sagrado e o profano
Miguel Locondo de Laet (MozarteumSP)
275
Formação de professores e educação musical; traçando um perfil
Mônica Zewe Uriarte; Paulo Chiesa (UFPR)
275
A audição em quatro propostas de educação musical
Patrícia Mertzig; André Luiz G. de Oliveira (UEM)
vii
276
Significação Musical: sons que vibram enquanto materialidade sonora e na
construção de significados e sentidos
Patrícia Wazlawick; Glauber Benetti Carvalho (FAP)
277
Um estudo técnico-pianístico do Mikrokosmos de Béla Bartók segundo a abordagem
de Cláudio Richerme (1996)
Sabrina Laurelee Schulz; André Luiz G. de Oliveira (UEM)
277
Educação musical nas séries iniciais na perspectiva de professores generalistas
Sérgio F. de Figueiredo; Vanilda Macedo Godoy (UDESC)
278
Aspectos do idioma pianístico de Heitor Villa-Lobos na peça Choros n. 5 - Alma
Brasileira
Tarcísio Gomes Filho; Mauricy Matos Martin ( UNICAMP)
viii
|apresentação|
A publicação dos Anais do Simpósio de Pesquisa em Música 2005 (SIMPEMUS2005) é motivo
de orgulho para todos aqueles envolvidos direta ou indiretamente na organização deste evento,
ocorrido entre 4 e 5 de novembro de 2005, no Departamento de Artes (DeArtes) da
Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Os Anais do SIMPEMUS2005 reúnem 16 artigos completos de docentes e pós-graduandos, 7
artigos completos de alunos de cursos relacionados à área da música de diversas instituições
acadêmicas brasileiras: UFPR, EMBAP, FAP-PR, UEM-PR, PUC-PR, UFG, UDESC,
UNIRIO, UNICAMP, UNESP, Mozarteum-SP, USP, UFES. Todos os resumos de artigos
apresentados para o SIMPEMUS2005 estão publicados nesses anais, totalizando 47 inscrições
ao evento.
Os assuntos abordados nos trabalhos ora publicados são bastante variados: desde música
eletroacústica até estudos sobre o fadango paranaense, passando por análises de obras de Alceo
Bocchino, de Cyro Pereira ou as de Gilberto Mendes. São assuntos oriundos de pesquisas
relevantes no estudo acadêmico da música brasileira.
Agradeço aos meus colegas de UFPR, os professores Norton Dudeque e Rogério Budasz–
membros da comissão organizadora do SIMPEMUS2005, aos alunos e ao pessoal da secretaria
do DeArtes pela dedicação e empenho na realização do evento. Agradeço também o apoio e o
financiamento concedido pela Fundação Araucária para a realização do SIMPEMUS2005.
Prof. Dr. Álvaro Carlini
Coordenador, Departamento de Artes/UFPR
Curitiba, novembro de 2005
ix
| programação |
Sexta-feira, 4 de novembro de 2005
8h
inscrições
9h
abertura
9:30h –10:00h
Anselmo Guerra de Almeida (UFG)
Revisitando a Teoria de Síntese Sonora por Modulação de Freqüência
10:00h–10:30h
Maria Bernardete Castelan Póvoas (UDESC)
Fatores do desempenho e realização músico-instrumental. Relações
interdisciplinares
10:30h–11:00h
Afonso Cláudio Segundo de Figueiredo (UNIRIO)
A relevância de entrevistas como ferramenta de pesquisa no estudo
das manifestações musicais oriundas da música popular
11:00h–11:30h
Cintia Bisconsin Ferrero; Alberto Ikeda (UNESP)
Por que resgatar o fandango?
11:30h–12:00h
Renato Kutner; Emerson de Biaggi (UNICAMP)
Cyro Pereira e a Brasiliana n.2
12h - 14h
recesso
14:00h–14:30h
Josely Maria Machado Bark (UNICAMP)
Alceo Bocchino: Sonatina para piano – uma abordagem analíticaestrutural
14:30h–15:00h
Acácio Tadeu de Camargo Piedade (UDESC)
Repetição, diferença e poética na música instrumental indígena
15:00h–15:30h
Guilherme Gabriel Ballande Romanelli (UFPR)
A rabeca do fandango paranaense: a busca de uma origem utilizando
o violino como parâmetro
15:30h–16:00h
recesso
16:00h–16:30h
Juliana Noronha Dutra; Alberto T. Ikeda (UNESP)
A musicologia histórica: herança e perspectivas
16:30h–17:00h
Judson Gonçalves de Lima (UFPR)
Ouvinte modelo: uma proposta de aproximação com a teoria do leitor
modelo
17:00h–19:30h
recesso
19:30h–21:00h
Palestra com o etnomusicólogo canadense Francis Corpataux
x
sábado, 5 de novembro de 2005
9:00h–9:20h
Marina Beraldo Bastos; Acacio Tadeu de Camargo Piedade (UDESC)
O desenvolvimento histórico da “música instrumental”, o “jazz
brasileiro”
9:20h–9:40h
Cristiano Steenbock (FAP)
A musicoterapia como auxílio físico-psicológico a portadores do HIV
9:40h–10:00h
Maiara Felippe Moraes; Acacio Tadeu de Camargo Piedade (UDESC)
Aspectos da Etnomusicologia, Musicologia e Música Popular
Brasileira
10:00h–10:20h
recesso
10:20h–10:40h
Marcus Vinícius Marvila das Neves (UFES)
Manifesto 1946: "O Banquete" do Grupo Música Viva
10:40h–11:00h
Lilian Nakao Nakahodo (UFPR)
A influência do folclore regional nos acervos de música paranaense.
11:00h–11:20h
Márcio Horning (UFPR)
Congadas da Lapa: As musicas de um folguedo na educação musical
11:20h–11:40h
Carlos Gustavo G. González (UFPR)
Análise semiótica de acalantos e cantigas de roda, segundo o modelo
de Luiz Tatit
12:00h–14:00h
recesso
14:00h–14:30h
Maria Cristina Dignart; Anselmo Guerra de Almeida (UFG)
Musica eletroacústica e um novo escutar musical
14:30h–15:00h
Maria Ignez Cruz Mello (UDESC)
Iamurikuma: Música, Mito e Ritual
15:00h –15:30h
Rael Bertarelli Gimenes Toffolo; André Luiz Gonçalves de Oliveira
(UEM)
Uma abordagem atuacionista da tipo-morfologia de Pierre Schaeffer
15:30h–16:00h
recesso
16:00h–16:30h
Sérgio Luiz Ferreira de Figueiredo (UDESC)
Educação Musical e Pedagogia
16–30h–17:00h
Rita de Cássia Domingues dos Santos (ECA-USP)
O limiar da Pós-Modernidade na obra de Gilberto Mendes
17:00h–17:30h
Clara Márcia de Freitas Piazzetta; Leomara Craveiro de Sá (UFG)
Musicalidade Clínica na Musicoterapia: construções a partir da
Teoria da Complexidade
17:30h–19:30h
recesso
19:30h–21:00h
Palestra com o etnomusicólogo canadense Francis Corpataux
xi
xii
Repetição, diferença e poética na música instrumental indígena
Acácio Tadeu de Camargo Piedade (UDESC)
Resumo: Esta comunicação tem como hipótese básica a idéia de que nas músicas
instrumentais indígenas pode estar vigente um caráter poético especial que se oculta,
para nós, no que tomamos por mera repetitividade. Nesta direção, comentarei o
repertório de flautas “sagradas” dos índios Wauja, habitantes do alto Xingu, no Brasil
Central, baseando-me em minha tese de doutorado. Discutirei a questão de uma
poética musical aplicada aqui à esfera motívica de um repertório instrumental,
comentando a aproximação entre plano melódico e fala. Por fim, pretendo sugerir que
outras músicas instrumentais indígenas sejam examinadas com atenção especial ao
aspecto de sua repetitividade e sua projeção temporal tanto no nível motívico quanto
em outros níveis de escala mais larga. Palavras-chave: música indígena, repetição,
poética musical.
Pode-se notar, nos relatos de viajantes que observaram rituais musicais ameríndios a partir
do século XVI, que um dos pontos mais salientados é a convicção sobre a repetitividade das
músicas destes povos. Séculos após a invasão da América do Sul pelos europeus, tal
interpretação persiste: toma-se, ainda hoje, as músicas indígenas por repetitivas. O fato é
que esta qualidade sempre ganha, no discurso do senso comum, um caráter de negativo
atribuído a uma falta: a ausência de elaboração, de cultivo, de sofisticação, enfim, a uma
pobreza. Pode-se argumentar que o caráter negativo atribuído à repetição na música
indígena tem suas raízes em uma visão evolucionista sobre estas sociedades e suas músicas,
apontando para um tipo de incapacidade aborígine de controle da forma musical e
revelando uma espécie encurtamento de seu pensamento musical que impede sua expansão
para além do meramente repetitivo. Naturalmente, o espelho destas idéias é uma concepção
da grandiosidade formal da música ocidental. A música européia, em seu desenvolvimento
histórico, é entendida como uma evolução que se inicia no canto gregoriano e se estende até
o dodecafonismo (Barraud, 1975; Leibowitz, 1975). Como resultante de um geist
hegeliano, a música traça este destino monumental, acima das idiossincrasias locais (cf. a
idéia de autonomia musical). Diante deste paradigma, a música indígena (bem como boa
parte da música popular)1 é compreendida como um estágio primitivo que, congelado no
tempo, é repetitivo e pobre. Entretanto, a convicção da repetitividade como característica
negativa das músicas ameríndias parece colocar-se em suspensão a julgar pelos resultados
de estudos recentes dedicados às músicas indígenas que se propuseram a transcrever e
analisar o texto musical de repertórios musicais indígenas (Bastos, 1990; Beaudet, 1997;
Mello, 2005a; Montardo, 2002; Piedade, 2004).
Para além de uma negatividade, primeiramente é necessário pensar sobre o que é repetição:
um tema com amplo interesse filosófico, relacionado à ontologia, pois se trata de
compreender a essência do “ser o mesmo”, ser uma cópia de um original que, por sua vez,
é. Neste sentido, desde há muito tempo, na filosofia, se discute a questão da repetição de
forma entrelaçada à da representação e à da diferença.2 No campo das artes, a repetitividade
é tomada como um fator central na produção de sentido estético: de fato, trata-se de um
problema da filosofia da arte (ver Kivy, 1993: 329).
Além de constituir um problema filosófico, a repetição musical é uma qualidade física do
som percebida pela audição e, portanto, entra em jogo também a questão da percepção e da
1
Ver Hamm (1995) e Middleton (1990).
Por exemplo, Deleuze discute este ponto desde Platão e Aristóteles, mostrando que a repetição é um
poder da diferença, capaz de condensar singularidades, acelerar ou retardar o tempo, alterar o espaço
(Deleuze, 1968). Recentemente, o pensamento deste filósofo tem sido bastante aplicado no campo da
música (ver Buchanan & Swiboda, 2004; ver também o estudo de Ferraz, 1998, sobre música
contemporânea).
2
2
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
cognição, bem como a profundidade das diferenças culturais, a pergunta sobre diferentes
formas de ouvir.3
Minha compreensão da repetitividade na música Wauja me leva a pensar que nesta música
há uma poética musical que trata da confecção da diferença, dada fundamentalmente do
eixo do tempo e da existência. Tratarei aqui da repetição musical como um princípio do
pensamento musical que é posto em operação em vários níveis formais e que reflete uma
visão de mundo.
Música kawoká: uma poética da música instrumental
Comentarei aqui aspectos do repertório musical de flautas “sagradas” dos índios Wauja,
habitantes do alto Xingu, no Brasil Central, utilizando dados de minha tese de doutorado
(Piedade, 2004).4 Estas flautas, chamadas de kawoká, são ligadas a entes invisíveis
poderosos e perigosos, sendo executadas somente por homens e não podendo ser vistas por
mulheres. É comum, nas sociedades amazônicas e na Melanésia, existir um complexo
mítico-ritual com estas características: aerofones interditos à visão para as mulheres;
punições terríveis para aquelas que porventura verem os instrumentos; estes instrumentos
são relacionados a espíritos perigosos; eles são utilizados em rituais masculinos; há um
mito que narra um tempo originário no qual os aerofones pertenceram às mulheres, tendo
sido tomados delas pelos homens. A este conjunto de elementos adiciona-se um, ainda que
hipoteticamente: a música destes ritos masculinos (aerofônica e instrumental) deve ser
ouvida pelas mulheres, que se escondem em seus lares (ver Piedade, 1997, 1999). Este rito
é usualmente chamado de ritual de “flautas sagradas”, exibindo, em todos os contextos
onde ocorre, profundos nexos com questões da socialidade, da cosmologia e de gênero.5
O discurso dos Wauja sobre a música das flautas kawoká aponta de forma clara o nível
motívico como camada principal: nas exegeses nativas sobre as peças musicais, uma
pequena alteração no nível motívico era destacada como o fator que fazia com que aquela
peça fosse outra, e não a mesma anterior. Minha percepção foi aos poucos se aguçando e, à
medida fui aprendendo a ouvir e a tocar estas sutis alterações, compreendi que não se
tratava variações fortuitas, mas de princípios de diferenciação que ali eram aplicados. Com
as transcrições musicais e análise musicológica, constatei o emprego estável de finas
operações de repetição e diferenciação entre motivos e frases musicais: aumentação,
diminuição, transposição, inversão, inclusão, exclusão, duplicação, triplicação, compressão,
fusão, reiteração, fechamento, comentário e elipse. O emprego sistemático destas operações
constitui um jogo que, para além do plano sonoro, aponta para uma sucessão de idéias:
trata-se de uma espécie de manipulação artística de estados formais pré-estabelecidos que
se assemelha a um procedimento poético, aplicado aqui na esfera motívica da música
instrumental.
Falar em poética aqui, no contexto de uma música instrumental, faz sentido com a exegese
nativa, que afirma que a música de kawoká é uma fala, a fala do ente sobrenatural
homônimo: portanto, o texto musical é tomado pelo discurso deste espírito, sua “língua”,
uma linguagem que, como a poesia, exibe características estruturais inexistentes na
linguagem humana cotidiana.
3
Sobre a repetição musical do ponto de vista psicológico e cognitivo, ver Ockelfort (2004). Sobre
diferentes formas de ouvir, ver Mello & Piedade (2005). Note-se que diferentes formas de ouvir estão
em jogo no ato da transcrição musical (ver Mello, 2005b).
4
Para poupar este artigo de uma introdução à cultura e pensamento Wauja, remeto o leitor para minha
tese para contextualizar o que será dito (Piedade, 2004 – versão on-line disponível em
http://www.musa.ufsc.br).
5
Ver o trabalho comparativo entre Amazônia e Melanésia Gregor & Tuzin (2001).
Repetição, diferença e poética na música instrumental indígena
3
Há muitos estudos antropológicos de canções nativas a partir da sua dimensão poética (por
exemplo, Firth & Mclean, 1991), mas o que estou chamando de poética musical aqui é algo
um pouco diferente: lembrando de que se trata aqui de uma música instrumental, portanto
sem poesia. Como na música Kamayurá, o processo de significação musical na música de
kawoká é basicamente temático,6 igualmente caracterizando-se por uma “construção de um
espaço-tempo memorial, altamente redundante, onde a repetição é o traço fundamental”
(Bastos, 1990, p. 519). A construção temática (a idéia musical) e a repetição, em suas várias
formas, são os motores do jogo motívico e do processo de significação, operações do
pensamento musical que constituem a poética da música kawoká. Esta poética musical se
aproxima do sentido dado por Jakobson ao termo “poética”, especialmente no que se refere
à questão do paralelismo.7 Lembro que, já no período final do renascimento e durante todo
o barroco, a idéia de uma poética musical esteve em voga na Europa,8 e que o que quero
dizer com poética recupera esta mesma direção. A questão de fundo é que na poética
musical a repetição não é uma redundância (nos termos de uma teoria da informação),9 mas
sim um princípio racional originário, presente não apenas nos discursos artísticos, mas
também nas filosofias e cosmologias nativas.
Quando se faz uma analogia entre música e linguagem, geralmente a poesia ocupa sempre
um lugar especial, talvez porque ambas as artes possuam em comum a possibilidade infinita
de evocação de certos elementos por outros (Ruwet, s/d). A função poética, que é
centralizada na mensagem e que é a função dominante na poesia (cf. Jakobson, 1995),
opera de forma correlata na música de kawoká, que é centralizada no texto musical. O
estabelecimento de relações de equivalência sobre o eixo sintagmático, resultando na
repetição regular de unidades equivalentes, princípio constitutivo da linguagem poética, é
igualmente constitutivo do jogo motívico: estas relações de equivalência estão na base das
operações de repetição e variação musical. Pode-se dizer que há, na música de kawoká, uma
projeção do nível motívico-frásico no plano sintático, ou seja, os motivos e frases são
combinados de tal forma que sua repetitividade e variabilidade configuram uma poética.
Portanto, o próprio jogo motívico constitui a poética da música de kawoká.
Por um lado, o paralelismo envolve o aspecto sônico da linguagem: há aqui um princípio
binário de oposição dos níveis de expressão fonêmico, sintático e semântico, por exemplo,
nas equivalências sonoras projetadas na seqüência, como as rimas. O paralelismo sonoro
envolve a repetição de sintagmas completos da estrutura fônica. Mas, por outro lado, e é o
que nos interessa mais aqui, há aquilo que Jakobson chamou de “paralelismo gramatical”, a
repetição das estruturas sintáticas. Este autor generalizou este paralelismo gramatical em
termos de um paralelismo “canônico” para pensar as variadas formas como este princípio
aparece na sintaxe das diversas tradições de arte oral (ver Fox, 1977). Para Jakobson,
enquanto a repetição envolve apenas identidade, o paralelismo envolve simultaneamente
identidade e diferença (op.cit: 73), daí seu alcance para além da linguagem: o paralelismo
está presente na música, dança e cinema, artes que utilizam a repetição, combinação,
justaposição de imagens, sons e gestos como recurso expressivo (Jakobson, 1970).
Estudos antropológicos sobre as artes verbais têm mostrado a importância do paralelismo
nas narrativas poéticas (ver Tedlock, 1983; Hymes, 1981; Sherzer & Woodbury, 1987).
Para alguns autores, a linguagem é inerentemente poética ela mesma, pois influencia a
imaginação de modo a possibilitar a inovação e a reordenação dos itens culturais e
6
Conforme mostra Bastos, seguindo a categoria ip_, “tema musical” (Bastos, 1999:153).
Para uma visão geral da questão do paralelismo em Jakobson, especialmente pelo seu interesse
antropológico, ver Fox (1977).
8
Ver o tratado de Burmeister, do início do século XVII (Burmeister, 1993 [1606]). Há uma vasta
literatura sobre a retórica musical e sua relação com a teoria dos afetos: ver Chasin (2004), Lópes
Cano (2000) e Palisca (1993).
9
Sobre a importância da repetição na música, ver Ruwet (1972).
7
4
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
lingüísticos (Friedrich, 1986). A linguagem ela mesma não é poética: a poética é um modo
da linguagem que a deforma segundo recombinações organizadas culturalmente. Esta
interferência na seqüencialidade narrativa da fala da linguagem é tal que extrapola e
extravasa a própria linguagem, subsistindo naquilo que se pode chamar de “essência da
arte”, no “fundamento da música” e, como afirma Lévi-Strauss, no pensamento mítico
(principalmente no sentido da bricolagem, cf. Lévi-Strauss, 1989).
No âmbito das terras baixas da América do Sul , a região do Alto Xingu é privilegiada nesta
área, devido aos estudos da arte verbal de dois povos de língua carib: os Kalapalo (Basso,
1985, 1987, 1995) e os Kuikúro (Franchetto, 1986, 2004).10 Parece-me interessante colocar
em diálogo estes estudos e as investigações sobre a música indígena, onde o paralelismo
gramático-musical é tão imperativo, e tem sido estudado sob a ótica da musicologia
(Coelho, 2003; Bastos, 1990; Piedade, 1997; entre outros).
Lembrando que o que importa aqui é o paralelismo gramatical, pode-se dizer que a poética
da música kawoká instaura uma relação entre regiões temáticas, que me referi como temas
“A” e “B” (ver Piedade, 2004). No tema/região “B” há sempre uma elevação de alturas
musicais, uma exploração da região mais aguda das flautas (em termos de performance, a
região dos orifícios destapados). Pode-se interpretar a dialética que aqui se instaura a partir
das concepções nativas de agudo e grave enquanto longe e perto, levando em conta o
estudo de Mello (1999). Esta autora mostra que, diferentemente do nexo ocidental, para o
pensamento musical Wauja o som agudo, magatukupai, é entendido como distante (longe),
enquanto o grave, autukupai, é entendido como próximo (perto). Neste sentido, a elevação
do canto para a região mais aguda “B” é uma tomada de distância em relação ao “A”. Na
poética musical kawoká, há um jogo de sair e voltar que, na dimensão espacial, corresponde
a ir longe e voltar. As formas como “B” engloba “A” podem expressar, a partir das
categorias Wauja, um distante que contêm o próximo.11
O jogo motívico é o paralelismo no plano temático da música de kawoká: as reiterações,
espécies de rimas reduzidas, são variações que lembram as estruturas micro-paralelísticas
nos versos e estrofes, e os temas “A” e “B” são seções maiores que abrigam a enunciação
da proposição inicial e o jogo variacional e transformativo dentro de seus limites,
remetendo à idéia de “cenas” (cf. Hymes, 1981), e juntamente com o jogo motívico entre as
peças dentro da suíte (que seria o bloco), envolvem um macro-paralelismo musical.12
Quanto à repetição, aqui em sua acepção mais comum, ou seja, de duplicação, noto que
estruturas duplicadas são muito comuns em toda a música xinguana, como no repertório da
música vocal do ritual de kaumai (mais conhecido como kuarúp), onde dois cantores
duplicam seus cantos, ou nos cantos dos entes invisíveis, cujas vozes só podem ser
reproduzidas por duas pessoas em estilo alternante (são os gritos dos espíritos). A
duplicação de um enunciado, ou seja, sua repetição integral imediata, constitui uma
operação que é fundadora da música e da musicalidade tanto quanto da poética (Ruwet,
1972).
10
Estou mencionando aqui apenas algumas obras mais especializadas na temática da arte verbal e
estudos das narrativas poéticas nativas. Na etnografia xinguana e das terras baixas da América do Sul
em geral, há muitas obras que, em algum momento, investigam estes aspectos. Dentre elas, o estudo
das letras dos cantos do Yawari (Bastos & Bastos, 1995), e dos cantos maï marakã dos Araweté
(Castro, 1986), e muitas outras. Para um estudo nesta temática voltado para as narrativas xamânicas,
aliás, trabalhando a reiteração, repetição e justaposição de imagens nas narrativas xamânicas, ver
Cesarino (2003). Para um estudo sobre a conexão da narratividade poética com o mito, ver Langdon
(1999).
11
Sobre o nexo espacial das categorias musicais Wauja, ver Mello & Piedade (2005).
12
Ver Franchetto (2004) para a utilização do paralelismo nestas categorias analíticas (cena, bloco, e
outras) em sua análise de narrativas kuikúro.
Repetição, diferença e poética na música instrumental indígena
5
Pude observar vários rituais de flautas kawoká entre os Wauja, e tentei mostrar, em minha
tese, através da análise do nível motívico destas peças musicais, que há nesta música um
pensamento sobre a repetição, a variação e a diferença. Utilizo a noção de “jogo” para falar
do jogo dos motivos que se estabelece neste repertório, mas com isto não pretendo apontar
para um aspecto de permeabilidade ou indeterminação, mas sim para o caráter regulamentar
do jogo, para o sentido das regras do jogo.
O jogo dos motivos na música kawoká é uma poética musical que trata da confecção da
diferença, dada fundamentalmente do eixo do tempo e da existência, ou seja, na
temporalidade. Os diferentes sistemas musicais do mundo resultam não apenas de poéticas
diversas, mas de diferentes formas de perceber a temporalidade. O pensamento musical é
uma expressão da cosmologia posta em ação na música, revelando concepções fundantes da
filosofia nativa no âmbito da temporalidade. Portanto, o sistema musical tem também um
caráter existencial, pois reporta a formas de temporalidade concebendo a finitude.
Neste sentido, a música kawoká é um exemplo forte de como a temporalidade nativa
instaura possibilidades de recortar e recombinar as estruturas temporais de forma poética.
Pode-se dizer que a música pronuncia formas da temporalidade, a partir de uma perspectiva
espacial. Quando ouvia as flautas kawoká à noite, na aldeia, ouvia os instrumentos
investidos de um máximo de significado, não apenas para mim, mas certamente para os
Wauja. Para os flautistas, o espírito presentificado, ele mesmo é que estava ali falando, a
música é sua fala, kawokagatakoja, “fala do kawoká”. O espírito apapaatai se pronuncia
pelo jogo dos motivos, entrecortando o tempo de forma poética. Esta qualidade do som
musical, entrelaçado originariamente no contexto do panorama sonoro onde foi concebido e
construído, aponta para a importância do que foi chamado de “acustemologia” (ver Feld,
1997). Neste sentido, ouvir uma gravação da música (ex-ótica) é como perceber uma
filmagem poética do espaço que revela as formas nativas da temporalidade. Trata-se da
experiência de “ouvir como o outro ouve o espaço e expressa o tempo”.13
Para os Wauja, a palavra kãi quer dizer “som”, qualquer fenômeno sonoro. Entretanto,
quando se trata dos sons musicais, não se fala kãi, mas sim onaapa, “canção”. O termo
pitsana, que traduzi por “música-timbre”, e watanapitsana “música-timbre aerofônica”,
expressam músicas entendidas como imagens acústicas de vozes de animais e outros entes.
Lembro que pitsana e watanapitsana informam que se trata de música instrumental, que é
sempre aerofônica, enquanto onaapa é usado para música instrumental ou vocal. Pitsana e
watanapitsana, portanto, são categorias internas de onaapa, a palavra nativa para música,
entendendo-se que, para os Wauja, música é canção: o lexema onaapa tem sua raiz no
verbo apai, “cantar”. Entretanto, o sentido nativo de cantar não aponta apenas para “entoar
canções”, mas para criar um enunciado musical, produzir um discurso musical, pronunciar
uma frase musical, uma idéia. O cerne da música de kawoká, aquilo que a torna música, é o
“canto” do kawokatopá, o flautista mestre que canta, apai, enquanto que os acompanhantes
apenas “sopram”, ejekepei. Pronunciar uma idéia não é apenas um fazer sem fundamento
ou conseqüências: uma idéia é uma possibilidade, uma antecipação do pensamento.14
Diante destas descobertas sobre a música de flautas kawoká, que podem ser em grande
parte generalizadas para o contexto xinguano, cabe a pergunta: será que nas músicas
instrumentais indígenas vige um caráter poético que se oculta no que ouvimos como mera
repetitividade? O que se pode dizer da repetição na música ameríndia?
13
Da mesma forma que na música, uma pintura de uma época do passado foi produzida segundo uma
visão de mundo ancorada em um contexto de origem (Baxandall, 1991), e, portanto, feita para ser
vista por um olhar que já não existe, que nos é apenas aproximável.
14
Estou pensando aqui simultaneamente no conceito de poesia na Poética de Aristóteles, em Dewey
(Logic II), para quem idéia, mais do que representação mental, marca uma possibilidade, antecipa o
real, e em Attali (1993).
6
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Mello (2005a) mostra que no ritual feminino iamurikumã manifesta-se o mesmo
pensamento musical que opera nos rituais masculinos de música instrumental de flautas
kawoká: o nível motívico e a fino balanço entre repetição e variação sutil. O ritual de
iamurikumã é pan-xinguano e, portanto, pode-se dizer que esta poética musical está
vigendo em toda a região, mesmo na música vocal.
De fato, Bastos (1990) mostra que há uma estrutura de longo espectro no ritual musical
yawari entre os Kamayurá do alto Xingu. A forma musical do ritual, que é um elaborado
jogo de inclusão, exclusão e re-seriação de canções, leva vários dias para se concretizar.
Esta grande forma exibe os contornos de um pensamento que progride e regride,
estendendo e comprimindo o tempo, sendo que a repetição é uma operação fundamental na
significação: o yawari é ele mesmo um ritual da memória e do esquecimento.
O estudo de Beaudet sobre a música de clarinetes tule dos Waiãpi (Beaudet, 1997),
habitantes da região do rio Oiapoque, mostra que há semelhanças desta música com a
música kawoká: há motivos marcadores temáticos, diferentes a cada parte da suíte, e
motivos marcadores de suíte, que funcionam como assinaturas da suíte (op.cit., pp. 95-116).
A acumulação do idêntico é entendida como uma forma estética que, acima de tudo, dá
prazer aos sentidos nativos. Para além da música, a estética da repetição se encontra
também em outros domínios artísticos, como nos motivos da cestaria. A repetição das
estruturas é uma necessidade estética que se manifesta em uma forma musical aberta:
acaba-se quando se considera que o que devera ser “dito” já o foi de maneira
suficientemente justa. Beaudet mostra que o grau de repetitividade de um repertório
musical tem relação com a esfera social onde ele funda: a música no âmbito doméstico se
repete menos que aquela no âmbito da identidade tribal Waiãpi, como no caso dos cantos
de guerra.
Para concluir este artigo: creio que estes estudos colocam em cheque a noção de repetição
musical e as idéias sobre uma pobreza estrutural das músicas indígenas. O que fica claro é
que, antes de tudo, é preciso aprender a ouvir estas músicas como muito mais atenção
musicológica do que se pressupunha normalmente: primeiramente, porque nem sempre o
que se entende por repetição de fato o é, e também porque há que se relativizar a própria
noção de repetição e de forma musical.
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Acácio Tadeu de Camargo Piedade é Doutor e Mestre em Antropologia (UFSC),
Bacharel em Música (UNICAMP); professor e pesquisador nas áreas de
musicologia/etnomusicologia e composição/arranjo no Departamento de Música da
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC); membro dos grupos de pesquisa
MUSICS (Música, Cultura e Sociedade)-UDESC/CNPq e MUSA (Arte, Cultura e
Sociedade na América Latina e Caribe)-UFSC/CNPq; membro do International
Council for Traditional Music (ICTM), da Associação Brasileira de Antropologia
(ABA), da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música (ANPPOM)
e da Associação Brasileira de Etnomusicologia (ABET).
A relevância de entrevistas como ferramenta de pesquisa no estudo das
manifestações musicais oriundas da música popular
Afonso Claudio Segundo de Figueiredo (UNIRIO)
Resumo: A dificuldade na obtenção de informações referentes à história da nossa
música popular, assim como dados biográficos dos seus principais personagens se
torna um desafio ao pesquisador uma vez que publicações sobre o assunto ainda são
fruto de raras iniciativas. Esse quadro se acentua quando estudamos músicos e
manifestações musicais que estiverem ausentes de exposição na mídia tradicional,
como rádio e televisão. Uma das mais eficientes ferramentas que dispões aqueles que
se dedicam a uma pesquisa dessa natureza são as entrevistas com músicos que atuem
dentro do universo musical a ser estudado que devem ser conduzidas ou partilhadas
com elementos que tenham a confiança dos entrevistados e que sejam capazes de
interagir com eles dentro dos jargões específicos da linguagem estudada uma vez que
dentro do próprio universo dessas manifestações musicais é comum que toda a
herança seja ensinada, e por conseguinte aprendida, dentro das tradições orais.
Palavras chave: tradição oral; música popular
Recentemente defendi a minha tese de doutorado na área musical de práticas interpretativas
com um estudo sobre a improvisação na música instrumental brasileira, mais precisamente
a improvisação com influência jazzística. A tese foi dividida em três partes, sendo a
primeira uma discussão a respeito do conceito de improvisação sobre o qual eu iria me
debruçar; a segunda parte sobre as influências mais presentes, principalmente entre os
saxofonistas – uma vez que o saxofone é o meu instrumento; e por último o trabalho se
concentraria em aspectos técnicos do desenvolvimento de um vocabulário específico para
prática da improvisação melódica dentro das estruturas formais do repertório standard da
música instrumental brasileira.1
A parte da pesquisa sobre as influências musicais teve como foco alguns dos proeminentes
saxofonistas da cena da música instrumental carioca.2 Como não havia nenhuma
bibliografia disponível sobre esses músicos tive de criar o meu próprio material de consulta
a partir da transcrição das entrevistas conduzidas por mim com esses artistas. Essas
entrevistas foram na verdade a gravação de conversas quase que completamente informais
pois todos eles são meus amigos e em nenhum momento pude sentir nenhuma formalidade
da parte dos entrevistados, o que contribuiu sensivelmente para a qualidade do material
obtido pois os músicos puderam se expressar livremente já que estavam diante de uma
pessoa com a qual tinham, além de intimidade, confiança.
Eu havia preparado um roteiro com alguns pontos nos quais havia interesse que eram:
1.
como o entrevistado havia despertado para a improvisação.
2 . quais eram as maiores influências musicais do entrevistado na área da
improvisação.
3.
qual a importância da improvisação na música produzida pelo entrevistado.
O primeiro a ser entrevistado foi Juarez Araújo, músico nascido no Nordeste que emigrara
para o Sudeste do país ainda na época das grandes orquestras de rádio. Durante a entrevista,
conduzida após uma apresentação de Juarez no Café Allegro, dentro da loja de discos
Modern Sound no Rio de Janeiro, pude notar a emoção com que Araújo falava de sua
1
Standard – entre os músicos de jazz, standard é uma peça que seria parte do repertório básico de
todo improvisador. Uma composição que obrigatoriamente “todos” devem saber.
2
Foram conduzidas entrevistas com as saxofonistas Juarez Araújo (1930-2003), Nivaldo Ornellas
(1941- ), Widor Santiago (1961- ), Eduardo Neves (1968- ) e Marcelo Martins (1969- ).
10
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
história, uma trajetória rica que possivelmente, ele jamais havia tido a oportunidade de
contar. Mesmo não sendo um dos focos da minha pesquisa, deixei ele contar a sua vida
musical. Alguns meses depois, Juarez Araújo viria a falecer e a minha entrevista, conduzida
para a minha tese, viria a ser o seu último depoimento. Nesse instante, decidi que ampliaria
o foco das entrevistas para tentar, mesmo dentro de uma tese sobre as práticas musicais,
tentar contar um pouco das vidas e das carreiras destes excelentes músicos. Em suma, uma
iniciativa de registrar, antes que se tornasse tarde demais, uma parte da memória musical da
minha cidade.
Tradição Oral
A cultura européia se desenvolveu durante grande período de nossa história se baseando em
formas de escrita onde até a escrita musical pode ser incluída. Se hoje estudamos Bach,
Mozart, Beethoven e tantos outros mestres é porque a obra construída por eles foi, dentro
dos padrões disponíveis a cada um, registrada em forma de partituras que foram passando
de geração para geração.
Outras culturas não tinham essa linguagem como ponto de comunicação ou registro e as
heranças culturais eram transmitidas de outras maneiras, utilizando-se basicamente da via
de transmissão oral. Na música da América do Norte, assim como na música da América do
Sul, manifestações musicais que não fossem oriundas das tradições européias e, por isso
mesmo, também não eram grafadas em forma de partitura, sem que isso significasse dizer
que não eram aprendidas pelos mais jovens. Em alguns casos, a música, na visão de alguns,
chegou-se a se tornar quase a essência dessa cultura. Ben Sidran (1971) na introdução de
seu livro Black Talk defende que nos Estados Unidos “a música não é apenas um reflexo
dos valores da cultura negra mas, de uma certa forma, a base sobre a qual essa cultura é
construída”(p.XXI).3 A música se tornou a verdadeira forma de arte de uma camada de
“novos” americanos impossibilitados de se expressarem de qualquer outra forma. Essa
música não só se criou fora das bases tradicionais da música ocidental – partituras,
conservatórios, etc – como se transformou em uma forma de arte complexa graças à
tradição da cultura oral:
Pode-se dizer com certo grau de precisão que a cultura oral foi, por natureza,
uma cultura “underground” no contexto cultural da América letrada; onde
simplesmente ser negro era razão suficiente para se sentir inconformado. Cada
membro da cultura oral, segundo os padrões letrados, era um elemento de
desvio, engajado num comportamento que durante a Era do Jazz (“jazz age”)
era sem dúvida alguma contrário às normas aceitáveis (Sidran, Black Talk, p.
80).4
O contrabaixista e compositor do jazz Charles Mingus, em sua biografia Beneath the
Underdog conta como os negros aprendiam um instrumento durante a primeira metade do
século passado:
Em Watts, professores itinerantes – nem sempre habilidosos ou bem educados
musicalmente – viajavam de porta em porta persuadindo famílias de cor a
comprar lições para as suas crianças. O Sr. Arson era um desses. Por alguns
3
Yet I contend that music is not only a reflection of the values of black culture but, to some extent, the
basis upon which is built.” (Sidan, Black Talk. p..xxi)
4
It could be said with a certain amount of accuracy that the oral culture was, by nature, an
underground culture in the context of literate America; that simply being a Negro in America was
grounds for nonconformity. Each member of culture was, in terms of the criteria of the literate
culture, a “deviant,’ engaging in behavior that reevaluated as it was during the “Jazz Age” was
nonetheless contrary to the accepted form. (Sidan, Black Talk. p.80)
A relevância de entrevistas como ferramenta de pesquisa
11
trocados que coletava semanalmente de algumas das famílias negras ele
pagava as suas contas em uma parte da cidade de Los Angeles só para brancos
(Mingus, Beneath the Underdog. p. 14).5
Quando um músico jovem procurava informação fora dos padrões da herança européia ele
tinha de recorrer à tradição oral. O próprio Mingus na infância vai estudar na escola
violoncelo e depois de se apaixonar pelo jazz muda para o contrabaixo, não sem antes
receber conselhos de um “amigo”:
Arrume um contrabaixo e nós te colocamos na banda de “swing” do
sindicato. Buddy me disse (…) “Isso mesmo! Você é negro. Nunca vai
conseguir nada na música clássica não importa como você toque. Se você
quiser tocar, tem de tocar um instrumento de negro (Mingus, Beneath the
Underdog. p. 41). 6
Mais adiante Mingus vai experimentar a melhor forma de aprender pela tradição oral
quando passa as tardes na casa do pianista Art Tatum e assimila o que de avançado se fazia
no jazz. Durante muitos anos foi assim no jazz, os músicos aprendiam uns com os outros. A
partir da década de setenta começam a aparecer alguns centros universitários nos Estados
Unidos que criam um jazz department. Atualmente é raro uma faculdade de música
americana que não tenha instituído um departamento exclusivo para o jazz.
Mas aqui no Brasil, essa prática, de aprender com colegas mais avançados é uma das mais
comuns dentro dos universos das músicas não-eruditas pois há poucas escolas onde o
material didático está organizado. Nos grandes centros existem algumas opções mas ainda
assim fora das universidades. Há algumas iniciativas em andamento mas ainda são
relativamente recentes como pude perceber durante as entrevistas com alguns músicos
atuantes no cenário instrumental visto que nenhum deles havia cursado uma faculdade.
Todos aprenderam com colegas e na busca de informações sempre que elas se tornavam
disponíveis.
O saxofonista mineiro Nivaldo Ornellas conta:
Eu perguntava para as pessoas sobre harmonia e elas me diziam que estava
bom o que estava tocando, mas eu sabia que não estava. Eu achava que elas
estavam escondendo o jogo e ficava revoltado. Só anos mais tarde descobri
que não era por causa disso, eram eles que também não sabiam coisa
nenhuma. Depois disso conheci um cara chamado Marilton, que era bom de
harmonia e tratei de colar nele. Comecei pelas musicas dos Beatles, que
aprendi todas, eram coisas mais simples e naquela época tinha muito Beatles
rolando. Ai comecei a conviver com o Chiquito Braga e eu ficava horas vendo
ele tocar, depois conversava com ele sobre improvisação. E me dei conta que
era impossível improvisar sem saber harmonia. (Figueiredo, 2005, p. 29).
Nivaldo conta uma interessante prática musical que experimentou nesse período:
Outras pessoas importantes para mim foram o Valtinho, o Toninho Horta, que
já fazia umas coisas muito legais, e o Milton (Nascimento), que tocava bem
também, e eu tratei de ficar colado nestes caras. Então comecei a botar em
prática. O Valtinho reunia a garotada, fazia uma roda, botava o Milton no
5
In Watts, itinerant teachers – not always skilful or well educated in music themselves – traveled
from door to door persuading colored families to buy lessons for their children. Mr. Arson was one of
them, out of the few bucks he collected weekly from each of many black families whose money paid
his bill in a “white only” section of LA.(Mingus, Beneath the Underdog. p. 14)
6
Go get yourself a bass and we’ll put in our Union swing band. Buddy told my boy. (…) That’s right.
You’re black. You will never make it in classical music how good you are. You want to play, you gotta
play a Negro instrument. (…) (Mingus, Beneath the Underdog. p. 41)
12
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
meio fazendo harmonia e agente ficava improvisando de boca. Cada um
improvisava um chorus. Pegava uma musica fácil, explicava a forma A A B e
ficávamos horas fazendo isso, ele tocava uns 200 chorus. Com isso todos nós
evoluímos muito. (Idem)7
Outro saxofonista, Widor Santiago conta experiência semelhante “eu e o Nelson (Henriquetrompetista) éramos vizinhos de parede e quando um ouvia o outro estudando batia na
parede e íamos estudar juntos” (Figueiredo, 2005, p. 51). E quanto mais músicos formos
procurar mais histórias assim ouviremos pois essa música começou a se desenvolver pela
tradição oral e ainda continua utilizando desse meio para evoluir.
Na verdade podemos e devemos disponibilizar nas nossas instituições de ensino musical
práticas oriundas de manifestações musicais não-eruditas pois são conhecimentos que nos
cercam e não há motivo para ignora-los e sim para aprendermos com eles e estimularmos o
seu desenvolvimento. Todavia, essa forma de contato onde os músicos trocam informações
de maneira informal está no cerne da prática dessas músicas e jamais irá, felizmente,
desaparecer.
Outra forma de transmissão de conhecimento pela tradição oral seriam as aulas particulares
que possivelmente dez entre dez músicos populares usufruíram em algum instante da sua
formação como ilustra o saxofonista Juarez Araújo:
e quando me mudei para outra cidade chamada Araguari, tive a felicidade de
conhecer o maestro Guerra Peixe (1914-1993) que me viu tocar em uma
orquestra muito boa que lá havia. Fazia sempre muitas perguntas a ele sobre
música e ele, ao ver meu interesse, se ofereceu para me dar aulas. (Figueiredo,
2005, p. 24)
As aulas particulares são a versão profissionalizada da transmissão do conhecimento pela
tradição oral. O interessante é que algumas manifestações apenas dispõe da tradição oral
como forma de ensino e aprendizado, ficando à margem de todas as vias
institucionalizadas. A discussão sobre os benefícios ou os problemas que trazer
manifestações musicais entendidas como populares para dentro de conservatórios ou
universidades podem acarretar vai além do proposto nesse trabalho que apenas reflete sobre
a tradição oral e sua relação com o conhecimento que se propaga, podemos dizer, quase que
de mão em mão.
Um dos desafios que posso afirmar, por experiência própria, existem quando a única forma
de conhecimento e estudo recai na tradição oral é a falta de registro histórico ou
publicações a respeito. Na minha tese de doutorado sobre improvisação havia dificuldade
quase total não só de publicações a respeito para comentar como não havia qualquer
registro histórico a respeito dos improvisadores. Para se saber algo sobre esses músicos só
indo diretamente até eles pois não há nada sobre eles nem em livros nem em revistas
especializadas.
Por essa razão dediquei um capítulo na tese que seria calcado apenas nas entrevistas.
Chamei esse capítulo de Genealogia das Influências pois queria traçar um painel das
principais influências para os saxofonistas improvisadores. Mas afinal, não seria a obtenção
de material de pesquisa por entrevistas ela própria uma vertente da tradição oral?
7
Toninho Horta (1948-) – guitarrista, violonista e compositor mineiro dos mais influentes na música
brasileira.
A relevância de entrevistas como ferramenta de pesquisa
13
Entrevistas
Desde do meu primeiro esboço do projeto que viria a se transformar na minha tese de
doutorado concluí que teria de fazer entrevistas para colher dados a respeito dos
improvisadores e suas influências pois não havia disponível nenhuma bibliografia a respeito
dos músicos, apenas alguns métodos de ensino editados pelo mercado editorial e encartes
de CDs. Muitos desses músicos, verdadeiros artistas com grande domínio instrumental
estavam à margem de qualquer registro impresso. Haviam, é claro, gravações onde eles
mostravam a sua habilidade mas isso apenas despertava mais curiosidade a respeito da
formação musical e experiência profissional.
Uma vez iniciado o doutorado comecei as entrevistas pelo saxofonista Juarez Araújo,
certamente por ele ser o mais velho do grupo selecionado para as entrevistas. Encontrei
com Juarez ao final de uma apresentação sua na loja de discos Modern Sound em
Copacabana, bairro na Zona Sul do Rio de Janeiro. A conversa fluiu com suavidade e
Juarez se emocionou ao contar a sua história e falar das pessoas que haviam sido
importantes na sua carreira. Mesmo sendo a história musical de Juarez além do escopo da
minha tese, deixei ele discorrer sobre esses fatos pensando inicialmente que esse material
seria descartado por mim quando estivesse trabalhando na edição final da entrevista.
Infelizmente algumas semanas após o nosso encontro Juarez viria a falecer e a minha
entrevista acabaria por ser o seu último depoimento.
Por ocasião de um tributo a Juarez fui contatado por uma das organizadoras que me pediu
uma copia escrita da entrevista pois havia sido além do último depoimento de Juarez, esse
era um onde ele contava a sua vida. Esse fato me fez pensar que possivelmente eu havia,
por caminhos do acaso, me deparado com uma questão que talvez fosse maior que a minha
tese: a questão histórica. E mesmo a minha tese sendo sobre a prática musical, dentro do
área de práticas interpretativas, eu deveria realizar as entrevistas tendo em pauta também a
questão documental.
Para entrevistar esse músicos eu recorri a um expediente que foi de extrema importância:
ser um insider, ou seja, ser também um músico com atuação profissional e portanto, estar
em condições de entender os jargões utilizados entre os músicos. Não ser tratado como um
estranho ao meio possibilitou um conversa franca onde a confiança do entrevistado foi
fundamental para o resultado final. Como obter essa confiança é algo que o pesquisador
deve refletir muito antes de começar qualquer entrevista sobre o risco de ser tratado como
um repórter ou algo similar. Muitas vezes o entrevistado pode não entender bem sobre o
que o pesquisador está trabalhando mas se há confiança do entrevistado o pesquisador pode
direcionar a entrevista sem que ocorra incertezas quanto a seus objetivos por parte de quem
está sendo entrevistado.
As diferenças que existem entre uma entrevista com o intuito de se colher material de
pesquisa ou uma entrevista dada a um repórter de jornal ou revista podem não ficar muito
claras pois as questões formuladas podem parecer similares e cabe ao pesquisador deixar
claro que essa entrevista não será publicada em poucos dias e que respostas como “lanço
semana que vem o meu novo CD e conto com os apoios…” não tem relevância. Ainda
assim é uma questão delicada pois todo artista está sempre preparado para divulgar o seu
trabalho sempre que há um oportunidade, principalmente aqueles que não despertam
atenção dos principais meios de comunicação. Não ferir sensibilidades e simultaneamente
manter o foco durante a entrevista pode ser a garantia de um resultado satisfatório.
14
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Conclusão
As entrevistas fazem uma ponte entre a tradição oral e o estudo teórico pois permitem que
se transcreva, edite e avalie o material obtido dentro do universo do assunto a ser
pesquisado. Aproximar o mundo acadêmico das práticas musicais que se processam, na
maioria das vezes, de forma oral em círculos artísticos distantes ou arredios ao estudo
institucionalizado é uma necessidade e talvez, uma função do pesquisador dos tempos
atuais quando observamos uma valorização dos processos criativos ditos populares.
Contar a história desses músicos que fazem a música não-erudita no nosso país é ajudar a
entender a música do nosso tempo que se desenvolve, na maioria dos casos, ainda fora dos
centro acadêmicos e em muitas vertentes fora das mídias principais. Essas manifestações
culturais que se desenvolveram pela tradição oral possivelmente devem ser abordadas
dentro dos mesmos parâmetros para depois, podermos estuda-las em toda a sua
complexidade.
Referências bibliográficas
FIGUEIREDO, Afonso Claudio. “Improvisação no Saxofone: A Prática da Improvisação Melódica na
Música Instrumental do Rio de Janeiro a partir de meados do século XX”. Tese de doutorado.
UNIRIO, 2005.
SIDRAN, Ben. Black Talk. Da Capo Press, New York, USA:, 1991.
MINGUS, Charles. Beneath the Underdog. Payback Press, Edinburgh EH1 ITE, 2000
Revisitando a Teoria de Síntese Sonora por Modulação de Freqüência
Anselmo Guerra de Almeida (LPqS –UFG)
Resumo: Este artigo fundamenta-se na teoria da síntese sonora por modulação de
freqüência desenvolvida por John Chowning, partindo do modelamento por
dispositivos espectrais descritos por Max Mathews. Apresentamos os modos de
configurações FM simples e complexas, com o objetivo de auxiliar no processo de
predição espectral – o ponto mais obscuro da técnica FM.. Dois modos de
implementação são exemplificados – Csound e MAX-MSP. Palavras-chave: música
computacional, métodos de síntese, música e tecnologia, síntese FM.
Introdução
Utilizando o programa MUSIC V, criado por Max Mathews, John Chowning desenvolveu o
que chamou-se Síntese Sonora por Modulação de Freqüência - ou simplesmente: Síntese
FM - por meio de configurações específicas dos dispositivos espectrais.
Dispositivos espectrais são algoritmos que modelam o funcionamento dos
elementos básicos de hardware, que combinados formam os instrumentos musicais
construídos para diversos tipos de síntese. Os dispositivos comumente encontrados nas
diferentes técnicas são (Mathews et al, 1969):
∑
Oscilador a tabela - gera formas de onda.
∑
Gerador de envoltórias - controla a variação de amplitude de osciladores.
∑
Gerador de ruídos - gera bandas de freqüências (geradores de envoltórias e de
ruídos são tipos particulares de oscilador a tabela).
∑
Multiplicador - multiplica as amplitudes de dois sinais.
∑
Somador - acumula um sinal com outros produzidos no mesmo intervalo de
tempo.
∑
Filtros digitais - selecionam a passagem de determinadas faixas de freqüências.
Na seção seguinte descrevemos a síntese FM, partindo da configuração FM simples,
passando pelas diferentes configurações complexas: portadoras paralelas, modulantes
independentes; portadoras paralelas, uma modulante; modulantes paralelas e modulantes
em série. Em todos os casos são apresentados os conteúdos espectrais gerados, nos
parâmetros freqüência e amplitude. Ao final, apontamos caminhos para implementações no
contexto da contemporaneidade.
Síntese por modulação de freqüência
A síntese conhecida como modulação de freqüência - FM - descrita em (Chowning, 1973,
1986) (Roads, 1987), pode ser classificada como uma técnica de distorção, do tipo em que
uma freqüência é modulada por outro sinal. Enquanto a síntese aditiva usa um oscilador
para cada componente espectral, a técnica de síntese por distorção, também chamada nãolinear, usa um pequeno número de osciladores para criar um espectro com uma grande
quantidade de componentes espectrais. Cada técnica de síntese por distorção permite um
controle único sobre a complexidade espectral do som. Então, o desenvolvimento temporal
do espectro pode ser produzido com relativa facilidade, ainda que de difícil
controlabilidade.
16
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Configuração FM simples
O instrumento FM básico consiste em dois osciladores senoidais. Um sinal de freqüência
constante c (chamada portadora) somado à saida do oscilador modulante com freqüência
m, e o resultado é aplicado à entrada de freqüência do oscilador da portadora. Se a
amplitude do sinal modulante for zero, não há modulação e a saída do oscilador da
portadora será simplesmente uma senóide com freqüência c. Quando a modulação ocorre,
o sinal proveniente do oscilador modulante varia a freqüência portadora proporcionalmente
à amplitude do sinal do oscilador modulante, como podemos ver representado graficamente
na Fig. 2.1:
m = freq. moduladora
c = freq. portadora
d = amplitude da moduladora
a = amplitude da portadora
I = d/m = índice de modulação.
Freqüências:
c ± k.m ,
[k = 0, 1, 2, 3...n onde n = I + 2]
Amplitudes: Jk(I) (funções de Bessel)
Fig. 2.1 – configuração FM simples
No estudo sistemático do espectro produzido por este tipo de configuração encontram-se
algumas propriedades relevantes (Chowning, 1973):
(i) Os componentes espectrais derivados de c e m seguem o seguinte padrão:
c ± km
para k = 0, 1, 2, ..., n
Quando as componentes estão à esquerda da portadora, são chamadas inferiores, e à direita,
superiores. Segundo o mesmo critério, as freqüências podem ser agrupadas em banda
superior e banda inferior. Para referir-se a um componente específico de uma banda, usa-se
o valor de k, denominado ordem (ver Fig. 2.2).
O desvio de pico da freqüência (d) é definido como sendo a máxima quantidade de variação
na portadora c que é produzida. O desvio é determinado pelo valor aplicado à entrada de
amplitude do oscilador modulante, expresso em termos de Hertz.
Revisitando a Teoria de Síntese Sonora
17
A
F
… c - 3m
c - 2m
c–m
c
c+m
c + 2m
c + 3m …
Fig. 2.2 – espectro FM simples no gráfico de amplitude x freqüência.
A distribuição de energia entre as componentes espectrais depende em parte da quantidade
de desvio d produzida pelo oscilador modulante. Quando d = 0, toda a energia do sinal
reside na componente da portadora. Incrementando o desvio, provoca-se o aumento de
energia nas laterais às custas da energia que era da portadora. Quanto mais largo o desvio,
mais distribuída é a energia entre as bandas laterais e maior número de componentes das
bandas laterais terão amplitudes significativas.
A amplitude de cada componente espectral é determinada tanto pelo desvio como pela
freqüência de modulação. Ao descrever-se matematicamente a amplitude de cada
componente, é usual definir o índice de modulação como:
I = d/m
(ii) O número de bandas laterais significativas para um determinado par c:m com índice de
modulação I, é determinado pelo maior inteiro próximo de I+2:
c ± km
para k = 0, 1, 2, ..., n => n ~ I + 2
A determinação das amplitudes relativas dos componentes de freqüência de uma dada razão
c:m é proveniente das funções de Bessel do 1o. tipo de ordem k, relacionada com a k-ésima
ordem de freqüência, superior e inferior. Então:
g(t) = A(t) { Jo (I(t)).sen(wc.t)
+J1(I(t)).[sen(wc+wm)t - sen(wc-wm)t]
+J2(I(t)).[sen(wc+2wm)t + sen(wc-2wm)t]
+J3(I(t)).[sen(wc+3wm)t - sen(wc-3wm)t]...}
onde:
wc = 2p.fc
wm = 2p.fm
Jk(...) é a função de Bessel do 1o. tipo, de ordem k.
A amplitude de cada banda lateral depende do índice de modulação como mostra a tabela
abaixo:
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
18
k
banda inferior
banda superior
freqüência
amplitude
freqüência
amplitude
1
c-m
-J1(I)
c+m
J1(I)
2
c - 2m
+J2(I)
c +2 m
J2(I)
3
c - 3m
-J3(I)
c + 3m
J3(I)
4
c - 4m
+J4(I)
c + 4m
J4(I)
…
…
…
…
…
Tabela 1 - Bandas laterais da configuração FM simples
A amplitude da portadora é igual a Jo(I). Então, o valor absoluto da amplitude da k-ésima
banda lateral é dada por Jk(I), onde J é uma função de Bessel de primeira classe, k é a
ordem da função e o argumento é o índice de modulação. Quando não há modulação, o
índice de modulação é zero e as funções de Bessel de todas as ordens, exceto a da
portadora, valem zero. Devido a Jo(0) = 1, espera-se que toda a energia do sinal resida na
freqüência portadora. Os gráficos mostram que para se obterem amplitudes significativas
em bandas laterais de ordem mais alta, o valor de I deve ser maior.
Nota-se que as funções de Bessel indicam que as componentes podem ter amplitudes
positivas ou negativas dependendo do valor preciso de I. Quando a amplitude é negativa,
significa que a fase é 180o . A fase de uma componente espectral não tem um efeito audível
a não ser que outras componentes de mesma freqüência estejam presentes. Neste caso, a
amplitude dessa componente irá somar ou subtrair um do outro, dependendo das respectivas
fases.
Fig. 2.3 – Funções de Bessel
Como se pode observar, a modulação de freqüência produz componentes tanto acima como
abaixo da portadora. É inteiramente comum para algumas componentes das bandas
laterais possuírem freqüências negativas. Para a visualização do espectro, é conveniente
reformatar as componentes, de modo a refletir as freqüências negativas em torno de 0Hz
para as suas posições correspondentes no domínio positivo. O ato de reflexão da
Revisitando a Teoria de Síntese Sonora
19
componente negativa inverte sua fase, ou seja, é equivalente a uma componente positiva
com fase oposta.
Exemplo:
c = 400 m = 200 d = 400 I = d/m = 2
banda inferior
freqüência
banda superior
amplitude
freqüência
amplitude
1
c - m = 200
-J1(I) = -0,5767
c + m = 600
J1(I) = 0,5767
2
c - 2m = 0
+J2(I) = +0,3528
c +2 m = 800
J2(I) = 0,3528
3
c - 3m = - 200
-J3(I) = - 0,1289
c + 3m = 1000
J3(I) = 0,1289
4
c - 4m = - 400
+J4(I) = + 0,0339
c + 4m = 1200
J4(I) = 0,0339
Tabela 2 – espectro produzido
Colocando no gráfico:
Fig. 2.4 – gráfico do espectro produzido
Rebatendo as freqüências para o campo positivo, invertendo as fases, combinando com as
freqüências existentes:
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
20
Fig. 2.5 – espectro ao rebater para a banda superior
Outras propriedades:
(iii)
Se c/m = co/mo , co e mo inteiros primos entre si então a fundamental será: fo = c/co
= m/mo.
(iv)
Se co = 1, então o espectro contém todos os harmônicos de fo.
(v)
Se mo = m , inteiro > 1, então todo m-ésimo harmônico de fo é ausente.
(vi)
Quando mo = 1 ou 2 os componentes negativos refletidos irão coincidir com os
componentes positivos, sendo então combinados.
(vii)
Se mo ≠ 1 e 2, nenhuma das freqüências negativas refletidas irá coincidir com uma
positiva.
(viii)
Se c/m for um número irracional, o espectro será inarmônico.
(ix)
Se co e mo são inteiros grandes e primos entre si, o ouvinte tenderá a perceber o som
como inarmônico, porque co e mo irão implicar relações entre harmônicos distantes
com uma fundamental grave onde nenhuma função tonal consiga lugar. Por exemplo,
o som produzido pela razão5:7 (1:1,4) é próximo produzido pela razão1:÷ 2
(1:1.4142...) :
Revisitando a Teoria de Síntese Sonora
21
Fig. 2.6 - Espectros das razões 7:5 e 1:÷2
Com apenas dois osciladores senoidais é possível produzir um espectro com tal riqueza,
que raramente é necessário procurar modulação com ondas complexas. De fato, quando
uma forma de onda com um grande número de componentes modula outra, o espectro
resultante pode ser tão denso que produza um som áspero ou indefinido.
Configuração FM complexa
Na configuração FM complexa tem-se duas ou mais portadoras e/ou duas ou mais
modulantes que podem ser dispostas em série ou paralelo. (Almeida 1992)
(i) Onda portadora complexa
(i.1) - portadoras paralelas, modulantes independentes: é a forma mais simples de
modulação complexa, que consiste na soma dos respectivos espectros. Considera-se a saída
de cada portadora como uma configuração FM simples, somando-se o conjunto.
(i.2) - portadoras paralelas, uma
modulante: aplica-se a mesma freqüência e o mesmo
índice de modulação a elas. Comparando-se com a configuração anterior, verifica-se que os
dois algoritmos oferecem possibilidades diferentes: enquanto economizam-se operadores,
perde-se a opção de ter diferentes índices de modulação.
amplitudes
1
2
1
2
Jki(Ii)
freqüências
n
S ci ± ki.mi
1
Jk(I)
n
S ci ± ki.m
1
3
3
Fig. 2.7 – portadoras paralelas
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
22
(ii) Modulantes paralelas
Com a modulação paralela chega-se ao aspecto mais complexo da síntese FM pois, ao se
aplicarem duas ou mais modulantes mesma portadora, significa modular com uma onda
complexa, resultando numa explosão do número de componentes de freqüência que são
produzidos.
(ii.1) Quando existem duas modulantes e uma portadora, as componentes de freqüência
são dadas pela combinação:
c ± k1.m1 ± k2.m2
onde
Jk1(I1).Jk2(I2) é o fator de amplitude relativa
para k1 = 0, 1, 2,...,n1 onde n1 = I1 + 2
k2 = 0, 1, 2,...,n2
onde n2 = I2 + 2
Enquanto k2 = 0 e k1 percorre de 0 a n e quando k1 = 0 e k2 percorre de 0 a n, as ordens de
freqüência concordam com o caso das portadoras paralelas, diferindo nas amplitudes por
serem o resultado da multiplicação dos coeficientes de Bessel. Além dessas ordens de
freqüência, existem as componentes resultantes de todas as combinações entre k1 e k2. A
combinação das freqüências laterais ocorre quando k1 e k2 são diferentes de zero. Quanto
maiores os valores de I1 e I2, maior o número de componentes resultantes.
(ii.2) Quando tem-se 3 modulantes atuando sobre uma portadora as componentes de
freqüência são dadas pela combinação:
c ± k1.m1 ± k2.m2 ± k3.m3
onde
Jk1(I1).Jk2(I2).Jk3(I3) é o fator de amplitude relativa
para k1 = 0, 1, 2,...,n1
onde n1 ~ I1 + 2
k2 = 0, 1, 2,...,n2
onde n2 ~ I2 + 2
k3 = 0, 1, 2,...,n3
onde n3 ~ I3 + 2
A simples inclusão de uma modulante incrementou a complexidade do espectro. Entretanto,
se a razão das freqüências for um valor inteiro pequeno, então a complexidade não deve ser
aparente dada a existência de muitas componentes em comum.
1
1
2
2
amplitudes
Freqüências
Jk1(I1).Jk2(I2)
c ± k1.m1 ± k2.m2
Jk1(I1).Jk2(I2).Jk3(I3)
c ± k1.m1±k2.m2± k3.m3
3
Revisitando a Teoria de Síntese Sonora
1
2
3
n
n
…
P Jki(Ii)
1
23
n
c ± S ki.mi
1
Fig. 2.8 - Modulantes em paralelo
(iii) Modulantes em série.
As expressões que descrevem as amplitudes e freqüências resultantes dos operadores em
série são parecidas com as em paralelo, com uma importante diferença: a ordem do
primeiro modulador k1 é usada como escala do índice do segundo modulador, I2.
(iii.1) Quando existem duas modulantes em série, obtemos as componentes de freqüência
pela combinação:
c ± k1.m1 ± k2.m2
onde
Jk1(I1).Jk2(k2.I2) é o fator de amplitude relativa
para
k1 = 0, 1, 2,...,n1
k2 = 0, 1, 2,...,n2
onde n1 ~ I1 + 2
onde n2 ~ I2 + 2
(iii.2) Para 3 modulantes em série atuando sobre uma portadora tem-se as componentes de
freqüência pela combinação:
c ± k1.m1 ± k2.m2 ± k3.m3
onde
Jk1(I1).Jk2(k1.I2).Jk3(k1.k2.I3) é o fator de amplitude relativa
Para k1 = 0, 1, 2,...,n1
onde n1 ~ I1 + 2
k2 = 0, 1, 2,...,n2
onde n2 ~ I2 + 2
k3 = 0, 1, 2,...,n3
onde n3 ~ I3 + 2
2
1
amplitudes
freqüências
Jk1(I1).Jk2(k1.I2)
c ± k1.m1 ± k2.m2
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3
Jk1(I1).Jk2(k1.I2).Jk3(k1.k2.I3)
c ± k1.m1 ± k2.m2 ±
k3.m3
2
1
Jk1(I1).Jk2(k1.I2) … Jkn(k1.k2. … .kn1.In)
n
…
n
c ± S ki.mi
1
3
2
1
Fig. 2.9 - Modulantes em série
Implementação
Ao contrário de outros métodos clássicos de síntese, como a síntese aditiva e a síntese
subtrativa, a síntese FM teve sua origem no domínio digital. Apresentamos uma breve
introdução à implementação desse método em dois ambientes de programação bem
distintos: usando o programa Csound e o ambiente de programação MAX-MSP.
Implementando síntese FM com Csound
Atualmente podemos observar muitos dos fundamentos do MUSIC V traduzidos para o
programa Csound, linguagem baseada na linguagem ‘C’, com a qual vamos a seguir
apresentar alguns exemplos de implementação (Vercoe 1992). Em sua biblioteca de
funções existe uma unidade composta que agrega em uma só função a configuração FM
simples. Chama-se foscil. Sua sintaxe é a seguinte:
ar foscil
xamp, kcps, kcar, kmod, kndx, ifn[, iphs]
onde:
xamp = amplitude
kcps* kcar = freq. portadora
kcps * kmod = freq. moduladora
kndx = índice de modulação
ifn = identificação da função da forma de onda
iphs = fase inicial
Entretanto, para nossos propósitos, torna-se mais didático usarmos aqui a conexão de
unidades básicas de osciladores, método que nos será útil para implementarmos também as
configurações complexas.
Revisitando a Teoria de Síntese Sonora
25
; configuração FM simples:
amod
oscili indice*ifq2, ifq2, 1 ; moduladora
a1
oscili iamp, ifq1+amod, 1 ; portadora
out
a1
Assim como idealizado em MUSIC V, Csound utiliza a metáfora da orquestra para o
arquivo textoem que estrutura as funções em forma de intrumentos virtuais, assim como
utiliza a metáfora do score para o arquivo texto onde estão registrados numericamente
todos os parâmetros musicais. Segundo esse método, todos os parâmetros estão pré-fixados,
de tal forma que o programa crie o arquivo sonoro a partir da renderização pelo cruzamento
dos arquivos ‘.ORC’ e ‘.SCO’ (extensões que identificam os arquivos ORChestra e o
SCOre) gerando o arquivo “.AIF” ou “.WAV”, de acordo com as diversas plataformas em
que Csound é oferecido.1
Implementando síntese FM em MAX-MSP
Se o nosso objetivo é a performance interativa em tempo real (Almeida 1996, 1997),
precisamos de programas específicos, como o ambiente de programação orientada ao objeto
MAX-MSP2 (OPCODE 1995). MAX-MSP trabalha tanto com o gerenciamento de
mensagens MIDI (IMA 1983) (Loy 1985), como o processamento digital (DSP) em tempo
real. Através dos possíveis despositivos de entrada, podemos manipular parâmetros durante
uma performance ao vivo.
Na Fig. 3.1 temos um exemplo de implementação de um módulo de FM simples. Os
patches formados pelas conexões entre funções básicas da biblioteca do MAX-MSP são
encapsulados na função “simpleFM~”:
Fig. 3.1 – função FM simples em MAX-MSP
Por sua vez, “simpleFM~” pode receber em suas entradas os parâmetros de outros patches,
como no exemplo da Fig. 3.2, extraído dos tutoriais MAX-MSP:
1
Csound é um programa freeware (www.csounds.com) e, por ser código aberto, conta com
desenvolvedores em toda a comunidade acadêmica mundial. Uma introdução aos métodos clássicos
de síntese implementados em Csound, incluindo síntese FM pode ser encontrada em (Fishman, 2000),
no livro Csound Book. No mesmo livro, encontramos um capítulo específico para SínteseFM
(Pinkston, 2000).
2
Diferentemente de Csound, MAX-MSP é um programa comercializado (www.cycling97.com).
Entretanto, seu criador Miller Puckette desenvolveu uma versão freeware, chamado Pure Data (PD),
disponível em (www.puredata.org), também multiplataforma.
26
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Fig. 3.2 – função interativa” FM synthesis” em MAX-MSP
O exemplo acima é uma das inúmeras possibilidades de introduzir parâmetros em uma
performance musical, podendo contar com elementos gráficos em tela, tais como knobs,
sliders, box numéricos, ou mesmo por meio de dispositivos externos via protocolo MIDI,
como teclados e outros controladores (Roads, 1996).
De modo geral, tornar um sistema interativo significa dar ao compositor diferentes níveis
de acesso, seja no nível timbrístico, no nível de construção de eventos sonoros, ou no nível
macro, no planejamento da estratégia composicional. Sob esse ponto de vista, o sistema
seria um tipo de assistente musical, cabendo ao compositor a terefa de formular o melhor
possível o problema a ser resolvido, e escolher o assistente mais adequado. Um ambiente
interativo de composição musical se assemelha a uma caixa de ferramentas. A flexibilidade
dessas ferramentas permite aos compositores o domínio dos processos composicionais.
Quando estudamos o comportamento do som nos instrumentos musicais, verificamos a
grande importância dos aspectos acústicos dinâmicos – as variações temporais de amplitude
global, da variação individual das envoltórias nos parciais, das variações de freqüência, da
movimentação do som no espaço sonoro. E, na síntese FM temos a oportunidade de realizar
essas transformações com gestos relativamente simples.
Conclusões
O método de síntese por modulação de freqüência causou grande impacto na década de
1970, primeiramente na comunidade acadêmica que trabalhava com computer music, pelo
fato de proporcionar uma economia de tempo de processamento nos computadores da
época. Afinal, com poucos dispositivos espectrais era possível gerar sons com grande
complexidade espectral. Em seguida, surgiu o interesse da indústria, que lançou no mercado
os primeiros sintetizadores com base na síntese FM. Se, por um lado, houve o grande
mérito em popularizar e tornar economicamente acessível o instrumento sintetizador, por
outro, consolidou-se um perfil de usuário dependente dos timbres acessíveis nos presets da
máquina. A interface disponível para programação de novos timbres era complicada e
limitada a um número restrito de parâmetros.
Atualmente, a motivação passa a ser outra. Ao retomarmos os experimentos desenvolvidos
em MUSIC V (Mathews et al, 1969), sobretudo os registrados por John Chowning (1973,
1986 e 1969), agora transcritos em Csound (Vercoe, 1992), podemos abordar questões
próprias do design timbrístico. Podemos apontar também a exploração da síntese FM em
tempo real, ao usarmos, por exemplo, o ambiente MAX-MSP (Puckette e D. Zicarelli,
1990), aproveitando a agilidade computacional proporcionada pelo método e a facilidade de
Revisitando a Teoria de Síntese Sonora
27
interação em performance interativa. Apontamos este como o caminho para a
continuidade desta pesquisa.
Referências bibliográficas
Almeida, Anselmo Guerra. “Composição Musical Algoritmica com Árvores de Tempos em Síntese
FM”. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-graduação do Departamento de Ciência da
Computação. Brasília: UnB, 1992.
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Anselmo Guerra de Almeida é formado em piano pelo Conservatório Musical de
Santos/SP. Concluiu curso de Composição e Regência no Instituto de Artes da
UNESP em 1986. Em 1992 concluiu mestrado em Ciência da Computação na
Universidade de Brasília, na linha de pesquisa em música computacional. Foi
pesquisador visitante na Universidade da Califórnia em San Diego/EUA no período
letivo de 1995/6, como parte de seu projeto de doutorado. Concluiu sua tese na PUCSP, com o título: "Ambientes Interativos de Composição Musical Assistidos por
Computador", em julho de 1997. Em setembro do mesmo ano tornou-se professor de
Composição e Tecnologia Musical na Escola de Música e Artes Cênicas da UFG. Foi
coodenador do Mestrado em Música entre 1999 e 2001. Em 2000 criou os
Laboratórios de Pesquisa Sonora da EMAC (LPqS), que coordena até a data atual. É
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
28
atual vice-presidente
(www.sbme.com.br).
da
Sociedade
APOIO:
FUNAPE – Fundação de Apoio à Pesquisa - UFG
Brasileira
de
Música
Eletroacústica
Por que resgatar o fandango?
Cintia B. Ferrero, Alberto T. Ikeda, (UNESP)
Resumo: Neste texto, pretendo refletir sobre alguns aspectos sócio-culturais que
envolvem o uso da viola branca no fandango de Iguape e Cananéia, litoral Sul
paulista. Mais que buscar respostas a estas questões, busco direções para analisá-las.
Tais reflexões partem da leitura e análise de textos de 3 autores: Hal Foster, Néstor
García Canclini e José Jorge de Carvalho. Discute-se quais são os interesses
envolvidos no “resgate” de uma tradição cultural e a postura de pesquisadores, neste
caso, os pesquisadores músicos, diante das comunidades pesquisadas. Palavras-chave:
fandango, viola branca, Iguape, Cananéia, cultura caiçara.
Introdução
O foco da minha pesquisa é a viola branca, instrumento utilizado no fandango do litoral
Sul brasileiro. A investigação se constitui do estudo detalhado deste instrumento nas
localidades de Iguape e Cananéia, litoral Sul do Estado de São Paulo. A pesquisa se
caracteriza, sobretudo, como etnomusicografia, abordando, ainda, aspectos sócio-culturais
que envolvem o uso do instrumento no fandango, enfocando-se também elementos técnicomusicais e explorações das possibilidades de execução do instrumento, além daquelas já
conhecidas e praticadas na região, gerando um material técnico-bibliográfico acompanhado
de CD áudio ilustrativo.
A viola branca guarda mais diferenças do que semelhanças com a viola caipira, desde a sua
construção e afinação até a técnica de execução. Pouco se sabe sobre ela, pois ao contrário
do que acontece com a viola caipira, não encontramos, até o momento, registros de estudos
específicos sobre este instrumento peculiar, provavelmente uma reminiscência do séc. XVI.
O instrumento é basicamente utilizado no fandango, com a função de acompanhar as
canções.
A viola branca é citada por alguns autores - como Maynard Araújo e Kilza Setti-,
principalmente como instrumento típico encontrado no litoral Sul brasileiro, utilizado no
fandango. Roberto Corrêa, violeiro e pesquisador, cita o instrumento em seus dois trabalhos
editados sobre viola caipira:
No litoral paulista, foram encontradas violas com sete cordas (dois pares e três singelas),
nove cordas (quatro pares e uma singela), e dez cordas (cinco pares), todas mantendo as
cinco ordens de cordas. (1989, p. 16).
A viola que mais se diferencia é a viola beiroa, pois, além do cravelhal normal, com dez
cravelhas – onde as cordas são esticadas – apresenta outro pequeno cravelhal, ao lado da
caixa de ressonância, em cima do braço, com duas cravelhas. No litoral Sul do Estado de
São Paulo e no litoral do Paraná, encontram-se, ainda hoje, violas também com este
pequeno cravelhal ao lado da caixa de ressonância, mas com apenas uma cravelha. (2000,
p. 22).
O artigo de Toninho Macedo (outubro de 1997) foi o primeiro trabalho onde encontramos
informações mais específicas sobre o instrumento. Há também em nossa bibliografia
trabalhos que tratam, em caráter mais geral, do fandango do litoral Sul. De qualquer
maneira, poucos deles se aprofundam em questões técnicas e específicas sobre o
instrumento.
No litoral Sul do Estado de São Paulo, nas localidades de Iguape e Cananéia, o folguedo
chegou à beira do esquecimento. Alguns fatores como a criação de uma reserva ambiental
de proteção integral, a influência de grupos religiosos e a busca de novos meios de vida
tiveram alguma influência para tal fenômeno. Há cerca de dez ou quinze anos, alguns
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
30
moradores de Iguape se mobilizaram em direção ao resgate da cultura caiçara e do
fandango, criando a Escola Caiçara da Juréia:
No meio da Mata Atlântica do litoral Sul do Estado de São Paulo, na Estação
Ecológica Juréia Itatins (EEJI), foi criada a Escola Caiçara da Juréia.
Idealizada por moradores e pela Associação Jovens da Juréia (AJJ) a escola
nasce da busca por garantir o direito à educação de crianças, jovens e adultos
da região e evitar o abandono de seus locais de origem em busca de estudo e
trabalho [...] Nesse sentido, a escola tem reunido moradores e ex-moradores
para troca de saberes relacionados à pesca, agricultura, extrativismo, arte,
culinária, cura, dança, jeito de falar, música e religião. (Dias, julho/set 2003,
p. 12).
Diversas questões permeiam o projeto de pesquisa:
1.
Como se dá o processo de construção do instrumento?
2.
O instrumento é utilizado somente no fandango?
3.
Qual sua função no fandango?
4.
Quais são as afinações?
5.
Quais as técnicas de execução (performance instrumental)?
6.
Quais os ritmos do fandango executados na viola?
7.
Ela também se apresenta como um instrumento solista ou apenas para acompanhar
a canção?
8.
Qual o perfil dos construtores e dos instrumentistas (tocadores)?
9.
Por que ainda se constrói este instrumento de maneira artesanal?
10. Qual o papel do fandango nessas comunidades?
11. Por que a viola branca não teve a mesma difusão da viola caipira?
A construção ainda tradicional da viola, de modo artesanal e com material da própria
região: a madeira (a caixeta), cola vegetal etc, é uma das questões mais pertinentes. Chama
a atenção de qualquer pesquisador o por quê essas comunidades não abandonaram esta
forma artesanal de construir o instrumento e substituí-lo pela viola caipira, já fabricada
industrialmente e de fácil acesso.
Em 1986 foi criada a Estação Ecológica Juréia-Itatins, caracterizada como Unidade de
Conservação de Proteção Integral, que abrange também a região de Iguape. “Trata-se de
uma categoria que não permite a existência de moradores e uso no interior de seus limites,
sendo seu principal objetivo a preservação da natureza, admitindo-se apenas o uso indireto
de seus recursos naturais” (Nunes, 2003, p. VI). Até o momento, não encontrei registros
sobre em que medida estas restrições afetaram a construção do instrumento. A caixeta é
utilizada na construção dos dois principais instrumentos utilizados no fandango: a viola
branca e a rabeca. A partir do momento em que há restrições para o seu manejo,
provavelmente a construção é afetada de alguma maneira.
Os objetivos mais específicos da pesquisa são:
1 . Fazer um levantamento das causas que levaram ao quase desaparecimento do
fandango no litoral Sul paulista, por meio de fontes bibliográficas e documentais
existentes e entrevistas com os grupos de fandango da região e associações de
preservação da cultura caiçara;
Por que resgatar o fandango?
31
2.
Analisar os efeitos da criação da Estação Ecológica Juréia-Itatins/SP na prática do
fandango e na construção do instrumento;
3.
Analisar as transformações que tal tradição sofreu;
4.
Fazer um estudo detalhado sobre a viola branca em Iguape e Cananéia, desde sua
construção à sua performance e técnicas de execução, tendo em vista a escassez de
informações técnicas e científicas sobre o instrumento em nossa bibliografia;
5 . Analisar a performance do instrumento e a partir daí, com o auxílio dos
conhecimentos técnicos desta pesquisadora, experimentar algumas técnicas de
execução;
6. Fazer um levantamento das ações e projetos realizados até o momento para a
manutenção do fandango na região objetivando o levantamento de propostas para
a difusão da viola branca.
7.
Elaborar um material acompanhado de um CD de áudio ilustrativo (desde que haja
condições para tal), contendo informações técnico-musicais.
As questões que mais têm incomodado ultimamente são referentes ao interesse, por parte
destes moradores, em “resgatar” a cultura caiçara e principalmente a dança do fandango
como era dançada antigamente: com os passos e coreografias de cada ritmo (que eles
chamam de marcas) e com os tamancos de madeira, utilizados principalmente no sapateado
do fandango rufado. Há o envolvimento de instituições em colaboração com as
comunidades locais para alavancar projetos que tem por objetivo resgatar a cultura caiçara
e suas tradições, como, neste caso, o envolvimento da Universidade de São Paulo (Usp) por
meio do Núcleo de Apoio a Pesquisa sobre Populações Humanas e Áreas Úmidas
Brasileiras (NUPAUB). Por um lado, há um trabalho em parceria entre comunidade e
pesquisador, onde existe uma troca mútua de saberes e realização de projetos sociais,
ambientais, educacionais e culturais. Por outro lado, tal fato torna-se como uma lente de
aumento sobre um objeto, atraindo a atenção do poder público e da indústria de
entretenimento, que leva o folguedo a festivais e apresentações, além da comercialização de
gravações, podendo até distorcer as características do folguedo como função popular , a
partir do momento em que ele sobe aos palcos.
O que pretendo refletir neste texto é o que move uma comunidade resgatar e manter uma
tradição cultural e também, se tal fato, quando atrai interesses políticos e comerciais, não
corre o risco de interferir no objeto dando-lhe outro valor artístico e transformando o objeto
de tradição cultural popular distorcendo suas funções inerentes à comunidade e ao ambiente
de sua procedência. Pretendo também refletir sobre a postura do pesquisador - neste caso o
pesquisador músico – diante deste tipo de objeto de pesquisa. Desta forma, busco direções,
mais até do que respostas neste momento, às questões sócio-culturais que permeiam a
pesquisa. Tais reflexões partem principalmente do texto “The Artist as Ethnographer?”, de
Hal Foster e do livro Culturas Híbridas, de Néstor Garcia Canclini.
O pesquisador-músico
Hal Foster, em seu ensaio, remete ao texto de Walter Benjamin – O autor como produtor –
fazendo uma comparação a partir da abordagem de Benjamin sobre a intervenção do artista
nos meios de produção artística:
Para Benjamin é imprescindível o artista “avançado” intervir, como o
trabalhador revolucionário, nos meios de produção artística – para mudar as
“técnicas” do meio tradicional, para transformar o “aparato” da cultura
burguesa. (Foster, 1995, p. 302, tradução nossa) .
32
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Para o autor, “há hoje um paradigma relacionado com a arte avançada de esquerda: o autor
como etnógrafo” (Foster, 1995, p. 302, tradução nossa) . E o que muda é o sujeito da
contestação, que passa a ser, segundo Foster, “o cultural e/ou o outro étnico” (Foster, ibid,
tradução nossa) :
E ainda, apesar desta mudança, suposições básicas com o velho modelo produtivista
persiste no novo paradigma quase-antropológico. Primeiro existe a suposição que o lugar
da transformação artística é o lugar da transformação política, e mais, que este lugar está
sempre localizado noutro lado, no campo do outro: no modelo produtivista, com o outro
social, o proletário explorado; no modelo quase-antropológico, com o outro cultural, o póscolonial oprimido, subalterno, ou sub-cultural (1995, p. 302, tradução nossa) .
Neste sentido, o autor chama atenção ao “perigo para o artista como etnógrafo, do
‘patrocínio ideológico’” (Foster, 1995, p. 303, tradução nossa):
O que quero dizer é mais simples do que parece. Assim como o produtor
procurou fixar-se na realidade do proletariado, em parte somente para situarse no lugar do patrão, então o artista quase-antropológico deve hoje procurar
trabalhar reunido com comunidades, com os melhores motivos do
engajamento político e transgressão institucional, em parte, somente ter este
trabalho re-decodificado pelos seus patrocinadores como escape social,
desenvolvimento econômico, relações públicas... ou arte. (1995, p. 303,
tradução nossa).
O que quero reter aqui é o conceito de “artista quase-antropológico”. O autor também trata
em seu texto, entre outras coisas, da perda do espaço físico como “o lugar da arte”, como,
por exemplo, os museus. Ele atenta também para a utilização dos métodos etnográficos por
estes artistas quase-antropólogos.
No entanto, transferindo estas reflexões para meu objeto de estudo, questiono se tal
fenômeno não poderia também ser notado em trabalhos etnomusicológicos? Quero dizer, o
pesquisador, principalmente quando músico – e neste sentido, incluo-me entre eles – não
corre o risco de assumir este papel, o do artista quase-antropológico? Certamente
desconhecendo as ferramentas da Antropologia, como alerta Foster para a utilização dos
métodos etnográficos por esses artistas, parece-me possível traçar uma comparação. Neste
caso, pode haver o envolvimento do pesquisador-músico com o objeto pesquisado, e o
perigo de interferir numa tradição é iminente. O conhecimento de procedimentos
metodológicos das áreas da Antropologia e da Sociologia é fundamental para o
pesquisador-músico, que em alguns casos, só passa a ter contato com temas dessas áreas na
pós-graduação.
Outro ponto a ser levado em consideração são os interesses envolvidos no “resgate” de uma
tradição. Há seis anos, em pesquisa de campo sobre o fandango de Iguape, principalmente
com a Associação Jovens da Juréia, notava-se por meio de relatos dos moradores e
dirigentes da associação, que a necessidade de resgatar o folguedo nascia da carência
naquela comunidade de suas raízes culturais e principalmente o abandono da região pelos
mais jovens. Atualmente, o envolvimento de instituições externas em projetos da
comunidade pode acabar atraindo o interesse do poder público e o da indústria cultural. Há
necessidade de identificar até que ponto existe interferência destes interesses externos no
resgate do folguedo. José Jorge de Carvalho, em seu texto sobre tradições performáticas
afro-brasileiras, alerta para o interesse da indústria de entretenimento no que ele chama de
“patrimônio cultural imaterial”, que aqui são as artes performáticas da cultura de tradição
popular (música, dança, teatro e autos dramáticos). Carvalho sugere que o pesquisador seja
mediador entre comunidade e indústria cultural:
Por que resgatar o fandango?
33
Para que esse conflito se resolva, penso que o pesquisador deverá informar à
comunidade exatamente todos os acordos e conseqüências de sua inserção na
indústria cultural [...] Será necessário um compromisso explícito do
pesquisador de tornar-se não apenas porta-voz da fala do grupo para o
mercado de espetáculos, mas também de tornar-se um porta-voz para o grupo,
de fora para dentro, instruindo os artistas populares sobre as regras e os
valores desse mundo plenamente capitalista que agora os solicita e absorve.
(2004, p. 75).
Portanto, para Carvalho, o pesquisador deve “assumir um compromisso com a devolução,
para as comunidades guardiãs de origem, dos materiais, publicações e atos públicos que os
pesquisadores venham a realizar na condição de especialistas nas tradições por elas
preservadas” (2004, p. 82). No caso da presença do NUPAUB na localidade de Iguape,
junto a Associação Jovens da Juréia, nota-se tal contribuição recíproca, como, por exemplo,
a implementação e desenvolvimento da Escola Caiçara da Juréia. O objetivo da escola é
evitar que os jovens abandonem a região em busca de estudo e trabalho. Há uma
valorização dos saberes das populações tradicionais da Juréia e a preservação ambiental.
A função popular e seu contexto sócio-cultural
Néstor Garcia Canclini questiona o valor da tradição na modernidade. Para Canclini, há a
necessidade de ciências nômades, que permitam o estudo por inteiro do objeto cultural. Tal
assunto é mencionado por Foster, guardada as proporções. Mas quando ele menciona, por
exemplo, que a Antropologia “é a disciplina que toma a cultura como seu objeto, e é este o
campo expandido de referência que arte pós-modernista e crítica tem buscado construir
como o seu próprio campo” (Foster, 1995, p. 305) , encontramos alguma congruência com
o pensamento de Canclini. Para este, o trabalho em conjunto dessas disciplinas (em relação
às ciências nômades anteriormente mencionadas) “pode gerar outro modo de conceber a
modernização latino-americana e também que esse olhar transdisciplinar sobre os circuitos
híbridos tem conseqüências que extrapolam a investigação cultural” (Canclini, 1997, p. 19).
Canclini faz uma abordagem pós-moderna sobre arte, focando sempre o hibridismo.
Entretanto, alguns aspectos de suas abordagens nos interessam, como, por exemplo, o que
determina um objeto ser arte:
O que é arte não é apenas uma questão estética: é necessário levar em conta
como essa questão vai sendo respondida na intersecção do que fazem os
jornalistas e os críticos, os historiadores e os museógrafos, os marchands, os
colecionadores e os especuladores. Da mesma forma, o popular não se defini
por uma essência a priori, mas pelas estratégias instáveis, diversas, com que
os próprios setores subalternos constroem suas posições, e também pelo modo
como o folclorista e o antropólogo levam à cena a cultura popular para o
museu ou para a academia, os sociólogos e os políticos para os partidos, os
comunicólogos para a mídia. (1997, p. 23).
O autor ressalta o paradoxo na arte moderna. Segundo ele:
[...] o discurso estético deixou de ser a representação do processo criador para
tornar-se um recurso complementar destinado a “garantir” a verossimilhança
da experiência artística no momento do consumo. (1997, p. 64).
Assim como Marcus e Meyers colocam em seu texto introdutório do livro “The trafic in
culture – refiguring art and anthropology”, que “a questão central para arte moderna tem
sido o relacionamento ou limite entre ‘arte’ e ‘não arte’” (1995, p. 6), Canclini também
tenta encontrar este limite no caso latino-americano.
34
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
A questão que quero levantar dentro dessa discussão é o lugar ocupado pelo objeto de arte
da tradição popular. O fandango é uma função popular, e esta entendida e praticada dentro
de um contexto social. No momento em que é transplantado do seu contexto, perde-se a
origem e o sentido de sua função. Há o risco, conforme mencionado no início do texto, de
outras influências distorcerem o que é tradição popular, ao torná-la um objeto de consumo
da indústria cultural. Para esclarecer melhor, remeto-me uma vez mais ao texto de José
Jorge de Carvalho:
O pagamento do espetáculo, que sela a compra e a garantia de um tempo de
lazer para o consumidor branco, significa retirar o tempo de que o artista
popular (quase sempre negro) necessita para exibir sua arte humanizante. O
que me leva a refletir que talvez o próprio tempo seja um dos maiores
patrimônios culturais intangíveis das comunidades indígenas e afrobrasileiras. Um tipo de patrimônio ameaçado justamente pela compreensão do
tempo na indústria cultural do capitalismo contemporâneo. (2004, p. 71).
No caso do fandango, como função popular, ele ocorre (ou ocorria!) após os mutirões.
Dança-se e toca-se a noite toda, até o dia amanhecer, seguindo quase que uma espécie de
ritual. No momento em que é levado ao palco, seja em festivais ou apresentações própria,
grande parte da função é “amputada”, já que na indústria do entretenimento, o tempo de
duração do espetáculo na maioria das vezes é determinante, de acordo com Carvalho.
Outra questão que pretendo discutir, a partir do trabalho de investigação científica, é em
que medida a apropriação da tradição popular dessas áreas rurais, por acadêmicos e/ou por
comunidades de áreas urbanas, interfere na função popular em si. Tomando a viola caipira
como exemplo, pode-se esclarecer um pouco melhor a questão. Houve um momento em
que o crescente interesse pelo instrumento por parte de pesquisadores – pesquisadoresmúsicos, como Roberto Corrêa e Paulo Freire, entre outros – fez com que a viola caipira
fosse transportada do meio rural para os palcos e escolas de música. Hoje em dia, o
instrumento está presente em curso universitário no Estado de São Paulo (USP de Ribeirão
Preto, professor Ivan Vilela). Claro que não se pode fazer uma comparação integral com a
viola branca e o fandango, já que é possível que eles não sigam o mesmo percurso da viola
caipira.
Conclusão
O que reflito neste texto é o perigo, parafraseando Foster, do pesquisador-músico quaseantropológico. O trabalho de pesquisa etnomusicológica sem o devido respaldo
antropológico e/ou sociológico pode acarretar a execução de um trabalho ineficiente e
equivocado. Há também o risco, já mencionado, do envolvimento de interesses políticos e
comerciais nas comunidades e na tradição cultural popular, levando à deturpação de sua
função.
Sobre os estudos da cultura popular, Canclini diz o seguinte:
[...] grande parte dos estudos folclóricos nasceu na América Latina graças aos
mesmos impulsos que os originaram na Europa. De um lado, a necessidade de
arraigar a formação de novas nações na identidade de seu passado; de outro, a
inclinação romântica de resgatar os sentimentos populares frente ao
iluminismo e ao cosmopolitismo liberal. Assim condicionados pelo
nacionalismo político e humanismo romântico, não é fácil que os estudos
sobre o popular produzam um conhecimento científico. (1997, p. 211).
A produção do conhecimento científico sobre cultura de tradição popular depende da
postura do pesquisador frente às comunidades pesquisadas, de acordo com Carvalho, além
do respaldo antropológico e sociológico que o mesmo precisa ter, de acordo com Foster. No
Por que resgatar o fandango?
35
Brasil, quando o pesquisador é músico – intérprete ou bacharel em Composição e Regência,
por exemplo -, muitas vezes lhe falta este conhecimento, já que não faz parte de sua
formação acadêmica. Neste caso o estudo é redobrado, sendo que o contato com estas áreas
do saber acaba ocorrendo somente na pós-graduação e tal formação torna-se
imprescindível, principalmente na utilização dos procedimentos metodológicos.
O que leva a comunidade da Juréia a resgatar uma tradição que chegou a beira do
esquecimento? Não arrisco responder a esta questão neste momento, mas alguns caminhos
podem ser apontados a partir de alguns tópicos discutidos neste artigo:
1.
A evasão da região: A Estação Ecológica Juréia-Itatins afetou o modo de vida dos
moradores daquela localidade. Devido às características da estação ecológica, o
manejo daquelas terras pelos moradores foi sensivelmente restringido. Tal fato
provocou a evasão de muitos moradores da Juréia, principalmente em busca de
novos meios de vida, já que viviam da pesca e da cultura de subsistência. Desta
forma, houve uma ruptura na tradição cultural local e na sua transmissão;
2 . A perda de referências culturais pelos mais jovens: Muitos jovens também
abandonam a localidade em busca de estudo e emprego, e já não demonstram
interesse pelos saberes locais.
Entretanto, alguns moradores que permaneceram na região tomaram a iniciativa do resgate
da tradição cultural caiçara, tomando como ponto de partida o fandango. Então, a
Associação Jovens da Juréia idealizou a escola caiçara, buscando justamente o equilíbrio
perdido após a instalação da reserva ecológica:
Preservar a biodiversidade da mata e a cultura do povo caiçara é um dos
desafios que movimentam o projeto pedagógico da escola. A idéia é oferecer à
comunidade uma escola que, além dos conhecimentos valorizados pelo ensino
formal, trabalhe com os saberes construídos pelas populações tradicionais da
Juréia na estreita relação com a floresta, com rios e mares [...] O modelo
adotado para a criação da reserva foi inspirado em modelos norte-americanos
que preconizavam a ausência do ser humano na natureza. O que na época foi
desconsiderado – a presença das comunidades na mata e seu entorno, suas
culturas e conhecimentos sobre a natureza – é, atualmente, avaliado pelos
pesquisadores como fundamental para que se efetive a preservação da
biodiversidade dos remanescentes de Mata Atlântica do Estado de São Paulo.
(Dias, julho/set 2003, pp. 12–13).
A contribuição do Núcleo de Apoio a Pesquisa sobre Populações Humanas e Áreas Úmidas
Brasileiras (NUPAUB) tem se mostrado estratégico na realização dos projetos da
comunidade. Nota-se o pesquisador como mediador, conforme proposto por Carvalho em
seu texto.
Todos estes fatores afetam diretamente a viola branca:
1.
Sua construção depende da permissão da extração da madeira presente na região;
2.
A transmissão da técnica de construção assim como de execução do instrumento é
afetada quando não há o interesse por estes saberes pelos mais jovens;
Neste sentido, estas questões são pertinentes neste trabalho de pesquisa sobre a viola
branca, além de ser quase inexistente informações mais específicas sobre este instrumento,
diferente do que ocorre com a viola caipira.
Portanto, como mencionado no início, busco com este artigo refletir sobre algumas
questões sócio-culturais que permeiam o projeto de pesquisa, mais que respostas fechadas.
36
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Dessa forma, aponto aqui os rumos que deverão tomar tais discussões em meu trabalho de
investigação.
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Musical. São Paulo: Ática, 1985.
Cintia B. Ferrero é bacharel em Música, habilitada em Composição e Regência
formada pelo Instituto de Artes da Unesp, São Paulo. Teve bolsa CNPq de Iniciação
Científica no projeto Gêneros de Música Popular Brasileira: fundamentos técnicoestruturais e histórico-sociais, orientada pelo Prof. Dr. Alberto T. Ikeda. Parte do
projeto esteve dedicado a pesquisa de campo sobre a música caiçara praticada no
litoral Sul paulista. Foi assistente de gerência da Orquestra Sinfônica do Estado de
São Paulo (Osesp) por dois anos, mantendo paralelamente atividades como violonista,
compositora e professora de violão. No curso 2003/2004 realizou especialização em
seu instrumento (violão) em Madri, Espanha, com bolsa da Fundación Carolina.
Atualmente, realiza pós-graduação (mestrado) em Música no Instituto de Artes da
Unesp, São Paulo, orientada pelo Prof. Dr. Alberto T. Ikeda, com apoio da Fapesp.
Musicalidade Clínica em Musicoterapia: construções a partir da Teoria da
Complexidade1
Clara Márcia de Freitas Piazzetta & Leomara Craveiro de Sá (UFG)
Resumo: Este trabalho apresenta resultados parciais da pesquisa “Musicalidade
clínica: uma compreensão da escuta e da produção musical do musicoterapeuta no
contexto clínico musicoterápico”. A partir da análise do registro em VHS de seis
sessões de musicoterapia realizadas com um único cliente, alguns acontecimentos são
discutidos a partir de pressupostos da Teoria da Complexidade, de Edgar Morin
(2001) e da Biologia do Conhecer, de Maturana & Varela (2001), que fundamentam a
referida pesquisa. O tema em questão privilegia a atuação musical do musicoterapeuta
no espaço clínico da Musicoterapia. Palavras-chave: música, Musicoterapia,
musicalidade clínica, complexidade.
Prelúdio a duas vozes
A narração e os trechos de transcrições musicais, apresentados a seguir, retratam
fenômenos ocorridos na primeira e na sexta sessões de Musicoterapia desenvolvidas com
Marcos,2 um menino de dez anos, portador de distúrbio de conduta com déficit de
comunicação. Ele freqüenta a 1ª série de uma escola pública, em um programa de inclusão.
Atualmente, não faz uso de medicamentos e conta com atendimentos também em
psicopedagogia e psicomotricidade.
Marcos entra na sala e segue encostado à parede até perto da bateria que está do lado oposto à porta.
Enquanto caminha, sempre olhando extasiado para a sala, eu, sua musicoterapeuta, toco o piano no
grave e depois no agudo, em pulsação binária simples (mínimas no grave, colcheias no agudo, soando
quase como uma pergunta e resposta) quebrando o silêncio da sala. Ao escutar o som do piano,
Marcos faz: Pssiu!!! Pede silêncio sem sair do compasso da minha produção. Ao chegar na bateria,
experimenta alguns dos instrumentos logo após eu percutir duas vezes no ‘tambor grande’, como que
sugerindo uma pulsação que chamou sua atenção e ele torna a indicar que quer silêncio de minha
parte [Fig. 1]. Eu concluo esta busca por interação, ou seja, perturbação3 sonora, com uma sonoridade
que ao mesmo tempo cresce na velocidade e diminui na intensidade, criando um clima de expectativa.
Fig. 1
Enquanto estou em silêncio, afasto-me do tambor grande, passando pela frente da bateria. Marcos,
usando duas baquetas, produz sonoridades intercalando os instrumentos: tom-tom/ pratos; tom-tom/
1
Trabalho apresentado no Seminário de Pesquisa em Música da UFPR, Curitiba, novembro, 2005.
Visando proteger a identidade do cliente, usamos um nome fictício (Marcos). Ele foi atendido no
Laboratório de Musicoterapia da UFG, durante a primeira fase de uma pesquisa qualitativa,
desenvolvida pela musicoterapeuta mestranda Clara Márcia Piazzetta, sob supervisão clínica e
orientação da Profa. Dra. Leomara Craveiro de Sá.
3
‘Perturbação’ é um termo usado pela abordagem de Maturana e Varela (2001) A Biologia do
Conhecer e refere-se a estados, inter-relacionais que se diferenciam de influências, de ações causas
–efeitos e de estímulos – respostas. Perturbar um ser humano, em um determinado momento, depende
“não só de características estruturais de sua própria espécie, como de características presentes de uma
estrutura dinâmica, flexível e plástica, que tem uma história de interações particular no meio em que o
ser em questão vive, de maneira sempre congruente com o ambiente” (Magro, 1999, p. 71).
2
38
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
surdo; tom-tom / chimbal; até que consegue fazer tudo ao mesmo tempo. Não olho para Marcos, mas
ele me acompanha e sua expressão facial parece ser de satisfação. Esse momento teve uma duração
aproximada de 2’ e 35” (tempo observado no registro da gravação). Na seqüência, Marcos dirige-se
ao piano e experimenta as teclas agudas. Digo que vou buscar uma baqueta para mim no armário.Ele
volta à bateria sozinho, experimenta o tambor e por último o chimbal [Fig. 2]. O clima de expectativa
continua.
Fig. 2 Expectativa no ar
Quando chego com a baqueta maior, ele diz: “deixa ver”, usando a baqueta no tambor (uma batida no
centro e uma na lateral). Eu pergunto: “quer trocar uma das baquetas?” Ele, então, percute no tomtom três colcheias e responde “não”.Volta para o tambor grande e, olhando para mim, faz duas
semínimas, duas colcheias e uma semínima, eu o escuto e o imito [Fig. 3]. Já na minha primeira
batida, ele olha para minha mão e pára de tocar; eu olho para ele e não paro de tocar;ele aceita este
contato que acontece através do olhar e continuamos... ele no tambor e eu na caixa. Ele segue a
pulsação com a cabeça e então olha para o carrilhão, aponta com a baqueta e fala para eu tocar no
carrilhão. Acelera a célula rítmica. Eu, no carrilhão, faço um pulso rítmico passando para o prato,
marcando a pulsação na velocidade sugerida por ele e depois buscando a reverberação que é
acompanhada por um movimento de cabeça dele enquanto toca no tambor grande, acompanhando o
pulso. Volta-se para o tom tom e eu o convido: vamos lá! Ele levanta a baqueta contra mim, mas eu
continuo a contagem: 1,2,3 e... Marcos interrompe a produção fazendo uma pergunta sobre o chimbal,
que eu esclareço.
Fig. 3 Tocando juntos
Nesses aproximados 4’ minutos de atendimento, Marcos já me informou sobre sua capacidade de
pulso rítmico e sobre sua possibilidade de escolhas: ‘eu te aceito, não te aceito; pode tocar comigo,
não pode tocar comigo; posso ser agressivo; tenho idéias e iniciativas próprias’. De minha parte,
percebi que posso escutá-lo, posso perturbá-lo e posso ser perturbada por ele; posso estar ou não
musicalmente com ele e, também, que aparentemente ignorei a ameaça da baqueta. Neste início de
Musicalidade Clínica em Musicoterapia
39
atendimento, onde estaria Marcos? Como musicalmente ele se mostra? Estaria em seu momento de
criação, mantendo um pulso e ainda procurando controlar minha movimentação?
Nos momentos seguintes pergunto se ele conhece alguma música, sua resposta foi: “assim oh!” de sua
resposta cantamos e tocamos sua ‘primeira melodia’ repetindo a frase proposta por ele intercalada
com experimentações na bateria tocando todos os instrumentos que alcançou. O tema apresentado
inclui uma formação em semicolcheias, colcheias e semínimas com uma marcação definida, [Fig. 4]
uma característica de sua produção musical.
Fig. 4 Primeira melodia
A conclusão dessa experimentação musical se deu com muita vibração: “EH! EH! Viva!!” levantando
os braços e olhando para a câmera, eu vibro junto com ele: “muito bem!”.
Na exploração de outros instrumentos da sala, antes de tocar Marcos sempre me perguntava o que era
e como tacava, assim, para o xilofone brincamos sobre a célula rítmica inspirada em sua ‘primeira
melodia’ [Fig. 5] recorte do tema.
Fig. 5 xilofone 1
40
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Para a apresentação das castanholas eu trouxe uma célula melódica [Fig. 6] repetida por Marcos na
íntegra e uma terça acima, soando como pergunta e resposta. Até o final de nosso primeiro encontro
essa célula foi se transformando [Fig. 6a e 6b]
Fig. 6 canção da castanhola
Fig. 6a canção da castanhola
1ª variação
Fig. 6b canção da castanhola 2ª variação
Este foi apenas um pequeno recorte de uma sessão de musicoterapia, logo na fase inicial do
tratamento, fase esta reconhecida, por nós, musicoterapeutas, como a etapa da “Testificação
Musical”. Aqui, o cliente vai se desvelando através do corporal, do sonoro e do musical,
abrindo possibilidades para o estabelecimento do vínculo terapêutico. E seguimos juntos, eu
e Marcos, tocando, cantando, dançando, falando, na busca de caminhos que levem a um
encontro. Desta forma, “as relações que emergem na musicoterapia,(...) são multifacetadas,
podendo se apresentar de formas variadas: relações intra e interpessoais, relações intra e
intermusicais, relações sócio-culturais e relações ambientais” (Craveiro de Sá, 2002, p. 62).
A análise do processo musicoterápico, desenvolvido no primeiro mês de atendimentos,
revela mudanças tanto em Marcos quanto em mim, sua musicoterapeuta. Os mecanismos
presentes nessa rede de interações envolvem a complexa relação existente no setting
quando nos aproximamos do campo “música em Musicoterapia”. Não se trata apenas de
função para a música. Os fenômenos musicais, durante os atendimentos, abrangem toda
uma estrutura organizada4 para esse fim, a música em uma relação de ajuda. Isso envolve
uma dimensão de produções sonoro-musicais diretamente ligadas às musicalidades do
musicoterapeuta e do cliente. E é exatamente sobre essa dimensão relacional
“musicoterapeuta — música/musicalidades — cliente” que tratamos neste artigo.
4
No desenvolvimento de cada atendimento, uma rotina de sessão define-se a partir dos objetivos
musicoterapêuticos previamente estabelecidos. A organização dos atendimentos de Marcos deu-se em
três momentos: 1) o acolhimento, com uma canção surgida de um motivo melódico retirado da
primeira sessão, ‘boca de jacaré’; 2) o desenvolvimento da sessão, preservando os momentos de
interação musical considerando-se, principalmente, a musicalidade do cliente; 3) uma canção de
despedida que indica o retorno ao setting musicoterapêutico na próxima semana.
Musicalidade Clínica em Musicoterapia
41
Musicalidade para Blacking (1973) não está apenas nas mãos de especialistas, músicos
profissionais, mas é uma capacidade humana para música. Da mesma forma, Zuckerkandl
(1973, 1976) apresenta-a como além de habilidades, como uma capacidade humana inata.
Todas as pessoas são musicais por natureza e essência, e essa capacidade não está
simplesmente voltada para o desenvolvimento artístico-musical, mas como forma de
percepção do mundo à sua volta. Musicalidade é constitutivo do ser humano, ou seja,
encontra-se no “domínio de nossas interações e relações”, constituindo-se assim, “no
domínio de nossas condutas humanas” (Maturana, 2002, p. 109).
Os estudos de Mechtild Papousek (1996), Trevarthen (1999), Trevarthen e Dissanayake
(2000), focalizam na musicalidade das interações cuidador-bebê a origem das formas
relações do ser humano, inclusive, com a música. Os estudos de Trevarthen et all.(1999,
2000) defendem a existência de intrinsic motive formation (IMF)e intrinsic motive pulse
nas relações mãe-bebê (apud CROSS, 2000, p. 34, tradução nossa). Desses estudos,
originaram os termos protomusicality e communicative musicality (apud Ansdell, 2004, p.
69). Para Mechtild Papousek (1996), este espaço de cuidados e atenções, comunicação
mãe-bebê desde a vida intra-uterina, faz-se na “indivisibilidade da música e movimento e
pelo fato deles aparecerem envolvendo padrões de comportamento culturais” (apud Cross,
2000, p. 34, tradução nossa). Também “Hannus Papousek tem notado que ‘elementos
musicais participativos no processo de comunicação desenvolvem-se muito cedo’,
sugerindo que ‘eles preparam o caminho para capacidades lingüísticas antes que os
elementos fonéticos apareçam” (apud Cross idem, tradução nossa). Sendo assim, as
interações entre mães-bebês constituem-se eficientes pela intenção expressada nos
movimentos corporais, tonalidade e melodiosidade da voz cantada ou falada. A construção
do domínio relacional do ser humano constitui-se, originalmente, imerso em um universo
de musicalidade que potencializa a compreensão do significado no domínio lingüístico.
O trabalho musicoterápico desenvolvido por Nordoff - Robbins, também conhecido por
“musicoterapia criativa” (Bruscia, 1989), constitui-se pelas “idéias de Rudolf Steiner, o
fundador da Antroposofia, pelas idéias de Abraham Maslow, um dos fundadores da
Psicologia Humanista” (apud Alvares, 2005, p. 2) e pela concepção de Música defendida
pelo filósofo Victor Zuckerkandl (Queiroz, 2003; Aigen 2005). Um dos princípios desta
abordagem é que em cada pessoa existe uma Music child e isso
denota uma organização das capacidades receptivas, expressivas e cognitivas
que podem ser o ponto central da organização da personalidade A criança é
estimulada a utilizar estas capacidades com grande envolvimento. Tal
envolvimento, de modo responsivo e criativo, leva a funções de identificação,
percepção e memória. Segurança, inteligência e determinação são expressas
de forma espontânea na medida que a criança se entrega ao processo musical”
(Nordoff & Robbins, apud Alvares, 2005, p. 3)
Outro princípio é o condition child que representa os aspectos relacionados à sua condição
especial ou à sua deficiência. A ampliação da music child leva a mudanças nessa condition
child e, com isso, a criança pode encontrar novas possibilidades de ser no mundo e um
novo sentido para o self , uma vez que
o processo de ‘despertar e expandir o music child está relacionado com o que
Maslow (1999) descreve como o processo de auto-atualização, que envolve
experienciar a vida de forma plena, fazer escolhas, sentir-se autoconfiante,
42
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
descobrir o próprio potencial e estar aberto a experiências culminantes (peak
experience) (Alvares, 2005, p. 3).
Como constitutiva do ser humano, a musicalidade encontra-se em nossa estrutura biológica
(em nosso sistema nervoso). Pelos estudos da Psicologia da Música, buscou-se mapear
áreas cerebrais como responsáveis pela resposta à música. Os estudos mais recentes das
Neurociências têm defendido que não existem partes fixas no cérebro responsáveis pela
apreciação musical, mas sim toda uma rede de interações neurais se estabelece em contato
com a música (Koelsch, Shroger & Gunter, 2002; Tervaniemi et all, 1997; Baeck, 2002).
Trazendo estes conceitos apresentados acima (musicalidade como nas estruturas biológicas
e estabelecendo-se nas relações humanas) para o setting de musicoterapia, para este
atendimento em especial, temos um universo de incertezas com alguns pontos previsíveis.
Assim sendo, o que fazer para compreender melhor a produção musical que emerge em
uma sessão de musicoterapia? Este não é um questionamento isolado de nossa parte.
Barcellos (1999), em seus estudos sobre o “tecido musical”, sugere o modelo Tripartido de
Molino para atender às dimensões dessa produção musical, por envolver tanto a obra, como
quem a fez (cliente) e, ainda, quem a está escutando (musicoterapeuta e cliente).
No momento de um atendimento musicoterápico estamos (musicoterapeuta e cliente)
experienciando interações musicais. Assim sendo, para melhor visualização desses
momentos musicais, transcrevemos os acontecimentos em forma de partituras. Contudo,
transcrever as sonoridades que compartilhamos, usando um modelo tradicional de partitura,
foi parcialmente possível. Alguns acontecimentos musicais, se “congelados”, nada
significam para a análise musical no contexto musicoterápico (Craveiro de Sá, 2002).
Assim, fez-se necessária a descrição, na forma de texto sobre a pauta, de alguns
movimentos corporais que acompanhavam as sonoridades. Por outro lado, essa mesma
forma de transcrição, colocando-nos como partes de uma obra, em uma mesma grade
musical, possibilitou uma visualização das interações e intervenções. Olhar para a produção
sonora, agora descrita, coloca-nos, principalmente, diante das recursividades presentes no
momento da criação sonora no setting. Considerando a existência de subjetividades nesse
fazer musical terapêutico, o que podemos apreender desse sonoro para o desenvolvimento
do processo musicoterápico de nosso cliente?
A abordagem Nordoff &Robbins traz um importante aspecto envolvendo a formação do
musicoterapeuta Nordoff / Robbins. As possibilidades de construções musicais no setting,
realizadas pelo musicoterapeuta, são desenvolvidas em uma clinical musicianship5. Esta
habilidade se faz pelo uso equilibrado de suas habilidades e intenções musicais com sua
sensibilidade, responsabilidade e intervenção clínica (Turry, 2001).
É possível, também, uma compreensão da dinâmica das relações musicais e não musicais
existentes no fazer musicoterápico a partir da
capacidade do musicoterapeuta de perceber os elementos musicais contidos na
produção ou reprodução musical de um paciente (altura, intensidade, timbre,
5
Termo sem uma tradução direta para a língua portuguesa. Abrange a formação técnica/musical de
um músico profissional treinada para construir sua capacidade de ‘falar música’ ou seja, traduzir para
elementos estruturais musicais as percepções clínicas que tem de cada cliente em cada momento dos
atendimentos individuais que realiza (Alvares, 2005 curso ministrado na UFG).
Musicalidade Clínica em Musicoterapia
43
compasso e todos aqueles que formam o tecido musical) e a habilidade em
responder, interagir, mobilizar ou ainda intervir musicalmente na produção do
paciente, de forma adequada (Barcellos, 2004, p. 83).
Mas o que seria responder de ‘forma adequada’? Na recursividade, presente em nossos
momentos musicais, construímos com Marcos o seu processo. Ao construir ‘com’ e não
‘para’ Marcos o processo, permitimos uma correspondência entre nós dois. Pela
recursividade, esta correspondência não é acidental “é o resultado necessário dessa história
(...) nenhum de nós está aqui por acidente” e estabelecemos uma ‘congruência’. Segundo
Maturana (2002)“isso, em si mesmo e em princípio, explica os aspectos mais salientes da
conduta adequada. A conduta adequada é a conduta que é congruente com as circunstâncias
nas quais ela se realiza” (Maturana, 2002, p. 62).
Marcos mostrou-se muito interessado nesta nova experiência de sua vida. Sua musicalidade
é fato presente. Considerando que o continente sonoro-musical de uma sessão de
musicoterapia é ofertado pelo musicoterapeuta, desde as primeiras notas executadas por
mim ao piano, passando pelo acompanhamento das percussões de Marcos até a
apresentação de melodias, o objetivo primeiro era compor um espaço sonoro. Pequenas
canções inspiradas nas condutas de Marcos, em momentos distintos da sessão, foram
usadas como estratégias juntamente com as produções instrumentais, ora imitando-o, ora
interrogando-o, algumas vezes concordando com ele, outras tantas discordando dele e com
isso buscando a ampliação de sua musicalidade.
Traduzir para uma organização sonoro /musical as percepções clínicas que tenho de Marcos
durante o atendimento, constituem um grande desafio à minha produção musical. O que
realizo tem mais eficiência na relação terapêutica quão mais envolverem esse ambiente de
sensações e sentimentos de Marcos. Isso constitui o ‘perfil musical clínico’ do
musicoterapeuta (Brandalise, 2001, p. 19).
Durante nosso sexto encontro, Marcos estava muito irritado pela ausência da bateria no
setting. Recorto trechos de um momento de interação sonoro / musical / corporal / verbal
que chamei de ‘dormir e acordar’. Foi uma interação mais prolongada que as anteriores e a
célula melódica de nosso primeiro encontro [Fig. 6b] fez - se presente. Aqui,
compartilhamos uma brincadeira envolvendo as sonoridades do violão e os movimentos
sonoros / corporais de Marcos primeiro me desafiando ao lamber um instrumento musical e
depois entregando-se às sonoridades harmônicas do vilão [Fig. 7].
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Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Musicalidade Clínica em Musicoterapia
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Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Fig. 7 Dormir e acordar
Pela intensidade das produções musicais diversificadas, presentes desde o primeiro
encontro, e pelo cansaço expresso pela musicoterapeuta ao final da primeira sessão,
percebemos que estar musicalmente com Marcos é estar musicalmente fragmentada. Nessa
sua complexa organização desconexa, a musicoterapeuta, através da ação de sua
musicalidade, precisou favorecer a emergência de “fios sonoros” (Barcellos, 1999). Os
pequenos, mas significativos momentos de interação musical, apresentados no início deste
artigo, tornaram-se pontos de certezas que constituíram amarras sonoras que foram se
transformando em uma verdadeira teia sonora. Essa teia, por sua vez, cria um espaço de
segurança, confiança e cooperação mútua (Craveiro de Sá, 2002).
Coda
A melodia sugerida pela musicoterapeuta para as castanholas (boca de jacaré, fig 6; 6a e
6b) usou de elementos rítmicos e intervalares já conhecidos de Marcos: colcheias mais
semicolcheias, semínimas e o intervalo de 2ªM. A nota inicial dessa célula melódica foi a
mesma da ‘primeira melodia’ de Marcos [Fig. 4], entoada no campo melódico de uma
escala pentatônica. A surpreendente aceitação de Marcos para esta melodia é fato.
No sexto encontro, a seqüência de acordes que envolveu Marcos e sua musicoterapeuta
[Fig. 7] está, também, em um campo pentatônico. Olhando para o aspecto sociológico desta
escala, temos que “é a mais universal entre todas [escalas](...) ela corresponde a um
movimento ou a um estado de corpo e de espírito. (...) um modo (...) uma estrutura de
recorrência sonora ritualizada por um uso.(...) uma escala correspondente ao jogo – estável
e instável” (Wisnik, 2001, p. 74).
Ao analisar estes atendimentos, e nos depararmos com as formas e as dimensões com que
as interações sonoras /musicais / verbais / corporais se deram entre Marcos e sua
musicoterapeuta, percebemos que uma mudança de pensamento fazia-se presente. Dessa
forma, um pensamento linear, que concebe construções dentro de causas e efeitos,
estímulos e respostas, não era possível. O que desvelava-se à nossa frente envolvia uma
complexa relação entre a música, o musicoterapeuta e o cliente. Pesquisar a construção
destas relações exige então uma metodologia aberta e flexível, uma metodologia qualitativa
com uma leitura fenomenológica, onde um caminho não está construído, mas faz-se em
cada passo do caminhante (o pesquisador) em seu campo de trabalho. Uma metodologia
Musicalidade Clínica em Musicoterapia
47
concebida em prol da compreensão das regras de organização estabelecidas entre as partes a
partir de um pensamento sistêmico, um pensamento complexo. Mas, o que é pensamento
complexo? Primeiramente é parte da Ciência, é concebido no seio do desenvolvimento
científico. Contudo, não deve ser compreendido “como receita, como resposta”, mas sim
deve ser considerado “como desafio e como uma motivação para pensar”. Estar na
complexidade é estar em contato, não com a ordem e a clareza, mas “a complexidade
aparece como uma procura viciosa da obscuridade. Ora, repito o problema da complexidade
é, antes de tudo, o esforço para conceber um incontornável desafio que o real lança a nossa
mente” (Morin, 1998, p. 176). O paradigma da complexidade apresenta-se como uma
continuidade do paradigma da simplicidade,
aparece à partida como uma espécie de buraco, de confusão, de dificuldade
(...) na visão complexa, quando se chega por vias empírico-racionais às
contradições, isto significa não um erro, mas o atingir de uma camada
profunda, não pode ser traduzida para a nossa lógica (Morin, 2001, p. 99).
Construir alguns princípios para acolher essa mudança paradigmática na Ciência constitui a
obra de Edgar Morin, Teoria da Complexidade. Importamos, deste sociólogo da atualidade,
alguns princípios que nos ajudam a compreender um pouco mais o fenômeno ‘música na
Musicoterapia’, assim como importamos dos biólogos Matura & Varela alguns conceitos da
Biologia do Conhecer. Optamos, então, por conceber as formas de interações sonoras /
musicais / verbais / corporais entre Marcos e sua musicoterapeuta como um acontecer de
‘acoplamentos estruturais’6 em que nossas musicalidades, ao se tocarem de forma
consensual, possibilitaram a construção de caminhos que levaram a transformações.
Construímos uma relação dialógica,7 convivendo, de forma harmônica, com a ordem e a
desordem, o estável e o instável, com a certeza e a incerteza, a caminho da unidade, a partir
das interações musicais consensuais.
Dentro de uma recursividade organizacional,8 nossas condutas não foram por mero acaso,
uma vez que “os produtos e os efeitos são ao mesmo tempo causas e produtores daquilo que
os produziu” (Morin, 2001, p. 108). Também, consideramos que não apenas a parte está no
todo, mas o todo está na parte (o princípio da forma holográfica), ou seja, a fragmentação
musical de Marcos não é apenas uma parte de sua musicalidade e de sua personalidade, mas
sua musicalidade e personalidade estão em cada parte fragmentada, oferecendo, ao
musicoterapeuta, pistas, pontos a serem costurados.
A partir da análise musicoterápica, tomando por base o conceito de “serendipididade”, de
Morin (2004), detalhes aparentemente insignificantes, que muitas vezes aparecem nos
elementos da música, em ritmos, melodias, timbres, harmonias, gestos e tempos musicais
etc., contribuíram para favorecer a reconstrução da história pessoal de Marcos. “A partir
6
Acoplamento estrutural para Maturana & Varela (2001) constituem-se nas “congruências entre a
estrutura da unidade e a estrutura do meio que atuam como fontes de perturbações mútuas (domínio
das perturbações), desencadeando mutuamente mudanças de estado (domínio das mudanças de
estado)” (p. 87)
7
Princípio Dialógico: a Teoria da Complexidade considera a existência de um pensamento que
congregue as diferenças, acolha a complementaridade de conceitos aparentemente contrários, que
permita a ordem e a desordem, a certeza e a incerteza de forma dialógica “mantendo a dualidade no
seio da unidade” (Morin, 2001, pp. 107–109).
8
Princípio da Recursividade Organizacional.
48
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
de” e “nas” experiências musicais, foi possível compor uma nova história, um prelúdio a
duas vozes inspirado em nossas musicalidades. Este, apesar de ainda inacabado, traz
consigo a força de uma energia transformadora.
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Clara Márcia Piazzetta: Musicoterapeuta; Mestranda no Programa de Pós-Graduação
em Música da Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás;
Pesquisadora vinculada ao NEPAM – Núcleo de Estudos, Pesquisas e Atendimentos
em Musicoterapia da UFG/CNPq. Leomara Craveiro de Sá: Doutora em Comunicação
e Semiótica; Musicoterapeuta; Professora-pesquisadora vinculada ao Programa de
Pós-Graduação em Música da EMAC-UFG.
A rabeca do fandango paranaense: a busca de uma origem utilizando o violino
como parâmetro
Guilherme G. B. Romanelli (UFPR)
Resumo: Discorrendo sobre a rabeca, instrumento típico do fandango, esta
comunicação parte do entendimento da constituição deste instrumento, assim como
alguns detalhes de seu processo de construção e as formas de execução, para levantar
paralelos com o violino tradicional, em especial na forma como se apresentava no
período barroco, a fim de estabelecer alguns parâmetros de comparação. A revisão de
literatura defronta autores pioneiros no estudo do fandango como Pinto (1992) e
Azevedo (1978), com estudos mais atuais de Marchi, Saenger e Corrêa (2002).
Finalmente, apresentam-se alguns fundamentos da etnomusicologia, como proposta
para a realização de um estudo mais aprofundado sobre a rabeca e o rabequeiro.
Palavras-chave: rabeca; violino barroco; fandango paranaense; etnomusicologia
Introdução
A riqueza cultural brasileira é, em grande parte, decorrente da diversidade de suas origens.
Ao incorporar influências artísticas das mais variadas etnias, foi construída uma densa
trama musical que se manifesta em diversos gêneros e estilos. Procurar identificar os
elementos musicais que fazem parte desta teia multicultural é uma constante busca dos
brasileiros para entender a constituição de sua própria identidade.
Contribuindo para entender os elementos que constituem o fandango, dança relacionado aos
caiçaras dos litorais do Paraná e São Paulo, esta comunicação discorre sobre a origem da
rabeca, procurando referenciais nas particularidades do violino do período barroco. Esta
aproximação se justifica nas semelhanças entre estes dois instrumentos, que vão desde
elementos de construção até modos de execução.
A literatura sobre o fandango aborda com freqüência os instrumentos que lhe são
característicos: as violas, o adufe e a rabeca. No entanto, no que se refere a este último, as
análises são excessivamente superficiais, prendendo-se unicamente em critérios de
observação empírica, sem o estabelecimento de relações mais aprofundadas, o que provoca
equívocos científicos. Como aspecto agravante, partindo de um conhecimento também raso
sobre o violino, muitos autores entendem a rabeca com um instrumento rústico, no sentido
pejorativo, que é resultado da falta de conhecimento e de recursos materiais de seus
fabricantes, ou seja, simplesmente consideram-na um violino de pouca qualidade que é
fruto de cópias mal feitas por construtores ignorantes. Partindo deste panorama, propõe-se
neste trabalho uma aproximação com o violino, não como única forma de análise, mas
como uma possibilidade de clarificar o entendimento da origem deste instrumento,
enfatizando as particularidades que o fazem um instrumento único e digno de ser estudado.
O fandango
O fandango, para Fernando Corrêa de Azevedo (1978) é o nome genérico de uma festa de
caboclos das regiões isoladas dos litorais do Paraná e sul de São Paulo, que ocorre desde o
tempo do entrudo (festividade do litoral precursora do carnaval) em que se dançam diversas
coreografias denominadas “marcas”. Segundo Marchi e Saenger (2002), esta dança está
relacionado ao mutirão (ou pixirão), ocasião em que membros de uma comunidade se
reúnem para realizar uma tarefa que exige muita mão de obra. O “pagamento” deste
trabalho se dá por meio da oferta de uma festa: o fandango, conforme sua definição
apresentada por Leonildo Pereira que vê nesta ocasião o momento em que a família a e
comunidade se reúne para “... trabalhar, tocar viola e cantar” (in Marchi, 2002, p. 41). Estes
eventos populares são extremamente complexos, pois além de uma reunião coletiva, é
nessas ocasiões em que se aprende a executar os instrumentos do fandango por meio da
A rabeca do fandango paranaense
51
imitação e da prática: “E foi aonde nós aprendemos, tudo meus irmãos, não teve um que
não aprendesse” (Leonildo Pereira in Marchi, 2002).
Apresentando características de influência ibérica, esta dança é acompanhada de um
conjunto instrumental formado por uma ou duas violas, uma rabeca e um adufe.1 Apesar de
fazer parte da indumentária da dança, os tamancos utilizados pelos homens, especialmente
em marcas batidas, podem também ser considerados instrumentos do fandango, uma vez
que fazem marcações rítmicas que certamente são parte da trama musical da dança,
conforme defende Roberto Correia (2002). Ainda de acordo com este autor, no que se
refere à viola, é necessário destacar que existem variantes deste instrumento: a meia viola
(ou machetão) e o machetinho, ambos menos comuns que a viola propriamente dita e
freqüentemente relacionados com instrumentos intermediários para a aprendizagem da
viola.
A maioria dos pesquisadores que se dedicaram ao estudo do Fandango ressalta o gradativo
desaparecimento desta dança que, em muitos lugares, já não expõe suas características
tradicionais. Nas comunidades mais próximas a centros urbanos como Antonina e Morretes
(no Paraná), o Fandango já desapareceu, pois, tratando-se de uma tradição transmitida
apenas pela oralidade, ela sucumbiu juntamente com os seus protagonistas mais antigos.
Este fato não acontece da mesma forma em Paranaguá - PR, pois nesta localidade esta
dança ainda acontece, mesmo que de duas formas distintas: como experiência
parafolclórica,2 no caso do grupo de fandango Mestre Romão e como manifestação
tradicional, na Ilha dos Valadares (parte do município de Paranaguá), localidade onde há
bailes de fandango sem qualquer fim turístico. Existem também regiões remotas do litoral
sudeste de São Paulo e nordeste do Paraná que ainda preservam estas festas tornando-se um
campo de estudo importante. Tratando-se de uma região costeira bastante recortada e de
difícil acesso rodoviário, as tradições folclóricas puderam atravessar o século XX resistindo
em algumas comunidades de pescadores, que se tornam um dos poucos locais onde o
fandango pode ser estudado.
Mesmo havendo locais que, devido ao seu isolamento, ainda preservam um fandango
bastante autêntico, ultimamente, devido à crescente facilidade em acessar meios de
comunicação de massa, como a TV e o rádio, existe uma tendência das gerações mais novas
se desinteressarem pela dança tradicional concentrando a atenção nas novas tendências
artísticas de abrangência nacional ou internacional, presentes nestes veículos de
comunicação.
Conforme dito anteriormente, o fandango ocorre por ocasião do mutirão, momento em que
também se aprende a sua música e suas marcas. Entretanto, como estas reuniões são menos
freqüentes diante do êxodo das populações das regiões isoladas, as possibilidades de se
aprender o fandango também diminuíram. Os caiçaras tendem a deixar suas casas isoladas
para tentar melhores condições de vida e trabalho, aproximando-se de centros urbanos,
locais em que o mutirão é raro. Para Juliana Saenger (2002) este efeito pode ser verificado
em depoimentos nostálgicos de fandangueiros mais antigos que vêm na urbanização do
litoral um dos fatores que dificultam a preservação do fandango.
1
Também denominado adulfe, adulfo, ou adufo, trata-se de uma espécie de pandeiro que pode ou não
apresentar platinelas.
2
Este grupo é considerado parafolclórico, pois já há uma descaracterização dos elementos do
fandango original, fato provavelmente impulsionado pelo modo performático que grupo se apresenta,
distanciando-se da dança com a adoção de roupas padronizadas e coreografias diferenciadas. Esta
observação não pretende fazer o julgamento do valor cultural de um grupo parafolclórico, mas apenas
diferenciá-lo das manifestações tradicionalmente ligadas à dança como opção de lazer.
52
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Diante de um panorama aparentemente pessimista, percebe-se que ainda há muitas
manifestações de música tradicional brasileira que preservam sua autenticidade, apesar da
influência dos meios de comunicação de massa. No que se refere ao fandango, novas
gerações de fandangueiros e construtores de instrumentos encontraram nesta dança a
ocasião de fortalecer a sua identidade cultural, como é o caso de Aorélio Domingues em
Paranaguá. Este caiçara é construtor de rabecas e promove regularmente festas de
fandango, sem qualquer pretensão turística, mas tendo como estímulo a continuidade de
uma tradição que herdou de seus avós.
A construção dos instrumentos do fandango
Existem várias pesquisas feitas sobre o fandango, mas a maioria se concentra
principalmente no levantamento das coreografias e da melodia principal das marcas. Sem
desconsiderar a dança, também foram realizados estudos direcionados à música do
fandango, abordando seus aspectos melódicos, harmônicos e instrumentais, como expõe
Inami Custódio Pinto (1992). No entanto, ainda se faz necessário estudar com mais
profundidade o papel que cada músico ocupa como protagonista desta manifestação, além
vê-lo como difusor desta sabedoria popular que inclui o manejo e a construção de seu
instrumento.
De acordo com Roberto Corrêa (2002), a relação com os instrumentos tradicionais do
fandango começa desde a infância, sendo uma aprendizagem baseada no desenvolvimento
de intimidade com os instrumentos. A habilidade na construção dos instrumentos utilizados
no fandango é transmitida oralmente entre as gerações e segue materiais e técnicas
particulares e totalmente adaptados a esta região litorânea.
Um fenômeno que paradoxalmente dificulta a preservação do fandango é a crescente
preocupação ambiental das áreas em que vivem os caiçaras. Tratando-se dos últimos
remanescentes da Serra do Mar, região que coincide com a área de manifestação do
fandango, foram impostas novas leis ambientais visando a preservação deste ecossistema.
Conseqüentemente, estas restrições influenciam diretamente os construtores de
instrumentos, que, por exemplo, não podem mais coletar matéria prima para a fabricação de
seus instrumentos em seu próprio ambiente de vida no risco de incorrer a um crime
ambiental. Sem madeira não há instrumentos, e sem instrumentos não há fandango.
Como será visto mais adiante, cada rabeca apresenta características únicas que identificam
o seu construtor. O mesmo acontece com todos os outros instrumentos do fandango, pois
cada artesão trabalha de acordo com sua memória, e suas possibilidades (que incluem
habilidades, matéria prima e ferramentas). A realização de um projeto de construção de
instrumentos baseado apenas na observação é uma das características mais marcantes destes
construtores. Cada um dá ênfase àquilo que, de alguma forma, considera mais importante.
A rabeca e sua origem
A rabeca (ou rebeca, como corruptela, Hasse, 1977) é um instrumento de corda friccionada
a arco que é mais reconhecido como uma variante popular do violino, instrumento
característico da música européia. Possuindo geralmente três cordas (quatro, em alguns
casos), a rabeca segue padrões de afinação variados preservando quase sempre um intervalo
de quinta justa entre as duas cordas mais agudas. Como se trata de um instrumento de corda
friccionada, o arco é parte fundamental do instrumento e pode ser definido como uma
“vareta” de madeira que tenciona o elemento que vai friccionar as cordas de forma
perpendicular. Este elemento é normalmente feito de crina de cavalo (como no violino
A rabeca do fandango paranaense
53
tradicional), fitas formadas pelo miolo do cipó timbopeva, ou ainda de fios de nylon (em
substituição aos materiais tradicionais).
Este instrumento do fandango do litoral paranaense e paulista é construído em caixeta, uma
madeira típica da região que tem qualidades muito particulares (como leveza, maleabilidade
e resistência a certas pragas). Para os acessórios que exigem uma dureza maior (como o
cavalete, o estandarte e o arco), são utilizadas a canela preta ou o cedro, entre outras
madeiras duras. Desta forma, a construção da rabeca depende do conhecimento dos
elementos da natureza por parte de seus construtores.
A rabeca não é de forma alguma exclusiva do fandango, pois pode ser encontrada em várias
partes do Brasil, sempre relacionada com alguma manifestação folclórica, seja dança ou
folguedo, ou até mesmo na América andina e na América Central em que este instrumento
é comum na música popular, como afirma Dominic Gill (1984). Segundo este autor, a
origem dos instrumentos de corda friccionada está relacionada às primeiras experiências em
friccionar um arco de caça em uma corda livre (que poderia inclusive ser outro arco) a fim
de produzir som. A adaptação de uma caixa de ressonância para amplificar a vibração da
corda deu origem à instrumentos de corda friccionada das mais variadas formas. No
entanto, a rabeca do fandango paranaense apresenta particularidades que não são
encontradas em seus semelhantes em outras regiões do Brasil.
Segundo Aldo Hasse (1977), e conforme escrito anteriormente, os instrumentos do
fandango são feitos pelos próprios executantes e seguem particularidades de construção
muito especiais. Quanto à aprendizagem da rabeca, normalmente passa-se antes por outros
instrumentos, como o adufe e a viola, como exemplifica a própria experiência de Leonildo
Pereira de Guaraqueçaba, Paraná “...Era a vez que eu comecei a ver tocar viola. E meio
devagarzinho, e logo também, entrei em entendimento e já aprendi a tocar na viola (...)
Depois meu padrinho me deu uma rabeca, comecei a tocar rabeca...” (in Marchi, 2002).
Nas diferentes variantes de rabeca do fandango, é possível encontrar a rabeca de coxo e a
rabeca de aro. No primeiro caso a denominação se refere à maneira de construção onde o
corpo do instrumento, juntamente com o braço e o cravelhal3 é esculpido em um só bloco
de madeira, à maneira de escavação de um coxo (ou de uma canoa de um só tronco), sendo
apenas o tampo colado para fechar a caixa de ressonância do instrumento. A rabeca de aro
recebe esta denominação, pois suas partes: tampo, fundo, braço e faixas laterais, são
esculpidos ou moldados em pedaços distintos de madeira e mais tarde unidos por cola. O
aro da nomenclatura se refere às faixas laterais que se formam um contorno de madeira
antes do instrumento ser montado, seguindo um padrão de construção semelhante ao do
violino.
Conforme dito anteriormente, as características pessoais dos artesãos que constroem estes
instrumentos estão presentes em cada detalhe e, como a sua construção não segue uma
padronização acadêmica, mas depende da memória e da observação, cada construtor tem
uma maneira única de elaborar os instrumentos (Corrêa, 2002). Este fato resulta em rabecas
únicas e com detalhes que identificam o seu construtor (fato bem mais complicado de
identificar em violinos, por exemplo, que seguem uma tradição centenária de construção
que é bastante acadêmica).
Tomando como exemplo Martinho dos Santos de Morretes e Aorélio Domingues de
Paranaguá, que constroem rabecas de aro é possível encontrar alguns pontos interessantes:
3
O cravelhal se encontra na extremidade do instrumento e é o espaço onde se fixam as cravelhas que
servem para tencionar as cordas da rabeca.
54
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Uma das marcas registradas das rabecas de Martinho dos Santos é a voluta4 esculpida com
uma curva invertida. Neste ponto é interessante notar que Yehudi Menuhin (1996) descreve
a voluta do violino como o toque final do luthier,5 ou seja, como a síntese de sua criação,
indicando as habilidades únicas do construtor. Esta é uma característica que também se
observa nas rabecas do fandango. Outro aspecto notável nas rabecas de Martinho dos
Santos é a confecção do tampo e fundo nos padrões da construção do violão ou da viola, ou
seja, com barras que fortalecem a estrutura do instrumento. Trata-se, além de um indício de
exclusividade de cada instrumento, e de um vestígio da fonte de conhecimento deste
construtor, que adaptou técnicas de construção de violas para a rabeca. A mesma adequação
acontece para as faixas laterais que são feitas a partir de um único pedaço de madeira muito
fina que é dobrada para fazer o formato em “8” do instrumento (diferentemente, em um
violino, este formato é composto de quatro secções distintas, a fim de fazer as angulações
necessárias).
Quanto aos instrumentos de Aorélio Domingues, destaca-se o fato de possuírem uma
grande bombatura6 o que se reflete em um som bastante característico, experiência acústica
semelhante aos violinos construídos por Jacob Stainer e Nicolo Amati no séculos XVI e
XVII (Gill, 1984). Também são encontrados nas rabecas construídas por este caiçara
detalhes em marchetaria7 que são um exemplo de refinamento na decoração do
instrumento, uma vez que não têm qualquer objetivo acústico, sem influenciar os aspectos
timbrísticos do instrumento.
Os dois exemplos citados acima são uma amostra da riqueza que existe no universo das
rabecas. Como cita Ana Salvagni (1997) cada rabeca é sempre um instrumento novo que
conseqüentemente apresenta novos timbres. Esta exclusividade é resultado de uma maneira
de construir totalmente baseada na experimentação.
A origem da rabeca ainda não é totalmente conhecida, o que estimula a pensar em todas as
possibilidades de procedência, incluindo as principais etnias que formaram os primeiros
brasileiros: os índios, os negros e os portugueses.
Ao reclamar sua origem indígena, não se descobrem muitas pistas. Encontra-se na música
indígena uma predominância de instrumentos idiófones, aerófones e membranófones (em
ordem de incidência). Os instrumentos cordófones são incomuns, sendo inexistentes os de
corda friccionada.8 Como raro exemplo de instrumento de corda, há o ka-txo-stê dos índios
Ramkôkâmekra do Maranhão, que é feito com um talo de buriti (espécie de palmeira), em
que fibras são desfiadas sem serem desprendidas da peça principal e são tencionadas por
meio de cavaletes. Segundo Helza Camêu (1979) que realizou estas pesquisas, não há
informações sobre como este instrumento é tocado.
4
Também conhecida como a cabeça do instrumento, a voluta fica logo acima da caixa de cravelhas,
ou cravelhal.
5
Luthier; aquele que constrói e repara instrumentos de corda.
6
Bombatura pode ser entendido como as curvas esculpidas no tampo e no fundo que dão maior
volume interno à caixa de ressonância do instrumento.
7
Marchetaria é a arte de incrustar finíssimas lâminas de madeira de diversas cores e tonalidades, no
corpo do instrumento, a fim de produzir símbolos e desenhos.
8
Esta constatação é resultado de exaustivas buscas de instrumentos de corda friccionada na literatura
sobre a música das comunidades indígenas. No entanto, para fazer esta afirmação, não foram
consideradas as comunidades que tiveram um contato pós-descobrimento com a rabeca, como é o
caso dos índios Guarani da aldeia Karuguá, em Curitiba. Tampouco foi possível fazer esta alegação
referindo-se a grande quantidade de tribos isoladas, cujas características musicais ainda não foram
documentadas.
A rabeca do fandango paranaense
55
Na tentativa de se estabelecer uma procedência africana para a rabeca, não se encontram
muitas pistas, mesmo que neste continente haja uma grande quantidade de instrumentos de
corda friccionada. Entretanto, os instrumentos a arco presentes na África não têm a caixa de
ressonância com a forma em “8”, característica da rabeca do fandango (e também do
violino e sua família). Este fato não indica de forma alguma a falta de criatividade na
invenção de instrumentos cordófones a arco, o que se demonstra pela existência de um
instrumento muito semelhante ao exemplo indígena descrito acima (o ka-txo-stê), só que
desta vez em Moçambique, de acordo com as pesquisas de Margot Dias (1986). Trata-se do
Nkungulandi, uma espécie de cítara tubular, também chamada cítara tubular
idiomonocórdica. Assim como o instrumento dos índios Ramkôkâmekra, esta espécie de
cítara também é feita a partir do desprendimento de uma fibra do corpo do instrumento,
desta vez uma secção de bambu, complementado por cavaletes tencionadores.
Os dois exemplos apresentados acima apontam que o formato em “8” não pode ter surgido
ao acaso, uma vez que em várias regiões onde a cultura musical inventou inúmeros
instrumentos de corda friccionada, este formato que se assemelha ao violino não é
encontrado. A partir destes levantamentos, esta comunicação defende que a origem ibérica
da rabeca parece ser a mais plausível. De acordo com Aldo Hasse (1977) a rabeca
(provavelmente com violino) deve ter sido introduzida no Brasil pelos padres Jesuítas no
século XVI, que viam a música como um importante instrumento de evangelização. Esta é,
aliás, uma característica importante da estética da música do período barroco, momento em
que nasce a Companhia de Jesus, a ordem dos Jesuítas. Este período da história da música é
marcado pela emancipação do violino como um instrumento fundamental da música
daquela época, lugar que ocuparia durante todos os períodos que se seguiram, constituindose (juntamente com os outros instrumentos da família do violino) como base da orquestra.
Quanto ao violino barroco, é interessante observar alguns detalhes que o fazem diferente do
violino moderno, ou clássico; são eles, conforme Dominic Gill (1984): um espelho mais
curto; braço do instrumento paralelo ao corpo, tendo, conseqüentemente, um espelho
angular para acompanhar a inclinação da corda que vai da pestana ao cavalete; a ausência
de queixeira, indicando que o instrumento era tocado apoiado no peito, ou levemente
colocado sobre o ombro.
Todos os detalhes do violino barroco descritos acima poderiam perfeitamente servir para
descrever a rabeca. Esta constatação intrigante pode indicar que a rabeca é a “cópia
popular” dos violinos trazidos pelos Jesuítas há 500 anos, ou seja, a rabeca é um
instrumento que teve suas técnicas de construção transmitidas oralmente, preservando por
gerações maneiras de conceber um instrumento de acordo com o período barroco, sendo
uma testemunha do tempo antes da chegada da reforma ocorrida no violino,9 que se
mantém até hoje.
Detendo-se principalmente na investigação sobre a origem da rabeca, esta comunicação não
pretende exceder sua proposição inicial, no entanto existe a intenção de propor futuras
pesquisas no que se refere ao espaço que o rabequeiro ocupa no grupo musical que
acompanha as danças do fandango. Entre as diferenças notáveis que envolvem a rabeca e os
outros instrumentos utilizados no acompanhamento do fandango, a postura do
instrumentista parece ser um vasto campo de estudo. Enquanto a viola e o adufe são
instrumentos que se beneficiam de uma certa popularidade, encontrando um maior número
de músicos que saibam manejá-los, a rabeca parece ser uma tradição passada a poucas
9
A reforma de alguns elementos do violino (e sua família) data de 1830, período em que a nova
estética musical (relacionada com a ascensão da burguesia e salas de concerto maiores) exigia uma
emissão sonora com mais potência e brilho.
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
56
pessoas que são, de certa forma, selecionadas por sua facilidade em manejar um arco que
fricciona as cordas e em dedilhar o instrumento sem o auxílio de trastes (referência tátil de
posicionamento de dedos, comum na maioria dos instrumentos de corda dedilhados como a
viola ou o violão). A partir desta busca, propõe-se utilizar a etnomusicologia como
categoria científica mais adequada no estudo deste problema.
A etnomusicologia
Na necessidade de aprofundar os estudos sobre fandango considera-se importante utilizar
métodos que sejam criteriosos na coleta de dados e bem fundamentados na análise do
material sistematizado. Desta forma, entende-se que a etnomusicologia pode apresentar
respostas satisfatórias para a realização de uma investigação que pretende entender não
apenas a rabeca, mas o seu tocador: o rabequeiro.
Dentro da necessidade que o homem tem de entender a sua existência, e sua relação com o
meio no qual vive, foram desenvolvidos diversos caminhos científicos. Dentre as várias
vertentes, o campo das humanidades procura entender o homem no tempo e no espaço a
partir do ponto de vista humano. A esse nível, a etnomusicologia almeja compreender o
homem por meio de sua expressão musical (Mukuma, 1983, p. 23).
Segundo Mukuma (Ibid, p. 24), evitando uma definição obsoleta de música com
concepções eurocêntricas (“arte de organização de sons em padrões agradáveis ao ouvido”),
a etnomusicologia considera outra aproximação conceitual: “música é tudo aquilo que é
assim designado pelo seu produtor”. A etnomusicologia se concentra, então, no estudo da
música na cultura destes povos. Alam Merian ampliou este conceito de música, utilizandose de uma visão behaviorista assumindo, segundo Bastos (1978, p. 40), a difícil tarefa de
juntar música com cultura. A música pode ser definida como um produto do
comportamento humano da sociedade:
Um produto estruturado do homem, mas a sua estrutura não pode ter uma
existência própria divorciada do comportamento de quem a produz. Para
compreender por que é que a estruturação da música existe como tal, devemos
também compreender o como e o porquê dos conceitos subjacentes a esse
comportamento que são ordenados de modo a produzirem uma forma
particular desejada de som organizado. (Merian, 1964, p. 7 in Mukuma, pp.
24, 25).
Apesar de bastante abrangente, esta definição apresenta a música como instrumento
importante para a compreensão do comportamento humano. Desta forma, a
etnomusicologia é considerada uma disciplina humanista, preocupando-se com o homem e
usando a música como meio de estudo. Mukuma exemplifica a função do etnomusicólogo
comparando-o com o crítico musical. Enquanto este último se satisfaz em descobrir a
mensagem presente em uma manifestação artística, o primeiro utiliza o conhecimento
desenvolvido para determinar a razão de uma certa expressão musical.
Ao analisar outros aspectos da etnomusicologia, Mukuma (1983) entende que este método
científico de investigação deriva de campos distintos do conhecimento humano, tornandose um processo interdisciplinar de estudo. A esse respeito, Bastos (1978) apresenta as três
tradições musicológicas no ocidente:
1.
Musicologia histórica, ou simplesmente musicologia, é a mais antiga, datando dos
tempos da civilização grega clássica. Deriva, como disciplina, da história.
A rabeca do fandango paranaense
2.
57
Sociologia da música, ou sociomusicologia. Surgida em fins do século XIX, é uma
vertente sociológica da musicologia histórica e está mais relacionada ao campo da
sociologia.
3 . Etnomusicologia, também conhecida como psicomusicologia quando aborda o
aspecto psicológico da música. É uma vertente antropológica da musicologia
histórica. Surgida junto com a sociologia da música, também é contemporânea ao
desenvolvimento do folclore.
Esta última se apresenta mais próxima do que é necessário estudar no fandango paranaense,
impedindo a retirada dos protagonistas desta dança de seu local natural de vida, o que evita
pesquisas artificiais que levantam dados que se tornam pouco úteis no processo de
preservação da memória cultural.
Jonathan Stock (2000), em sua página eletrônica dedicada ao tema, considera como uma
das mais interessantes definições para etnomusicologia, a de Jeff Todd Titon: “o estudo de
gente fazendo música”. A partir desta curta definição, Stock entende que etnomusicólogos
estão tão interessados no processo de criação musical de certas pessoas, quanto na música
por elas produzidas. Desta forma, o interesse não se limita apenas às estruturas musicais
descobertas, mas a todo o processo e contextos pelos quais ela foi imaginada e elaborada. A
etnomusicologia estuda a produção musical no mundo inteiro, sempre procurando entender
o que esta arte representa para cada grupo particular de pessoas, descobrindo qual a
importância da música em suas vidas.
Domingos Morais (1983), que considera a etnomusicologia um “instrumento privilegiado
de análise e compreensão da vivência musical contemporânea”, salienta que o principal
objetivo deste estudo está na preservação de valores culturais.
Segundo este autor (1983, p. 15), as culturas que estão em rápida transformação ou em
desaparecimento, têm a necessidade de resgatar e registrar, para as próximas gerações, uma
parcela importante do patrimônio cultural humano. Desta forma, considerando as várias
finalidades da etnomusicologia, afirma que “(...) a Etnomusicologia (...) é hoje parte e
instrumento indispensável na formação de profissionais de diferentes sectores de
actividade, desde os especificamente musicais ao ensino nos vários níveis, sem esquecer os
mass-media”.(Morais, 1983, p. 15).
Observando este ponto de vista, fica claro que a etnomusicologia tem objetivos
educacionais quando pretende resgatar valores culturais, preservando-os para gerações
futuras.
Ainda relacionando a etnomusicologia com a educação, foi considerado importante
transcrever abaixo um trecho escrito por Bastos, diferenciando os graus de abrangência de
duas abordagens musicais diferentes.
Note-se que ‘falar sobre’ e ‘fazer’ música são categorias que delimitam
respectivamente os discursos ‘antropológico geral’ (‘cultura musical’) e
‘etnomusicológico’ (‘música’). Como se vê, também aqui se manifesta aquela
idéia da prevalência da ‘cultura’ ante a ‘música’. Ainda sobre as duas
primeiras categorias, vale a pena refletir, de passagem, sobre o fato do
insucesso musical do estabelecimento de ensino musical por excelência no
Brasil, o conservatório: este insucesso parece que se deve, entre outras coisas,
ao fato de o estabelecimento se dedicar muito mais ao ‘falar sobre’do que,
efetivamente, ao ‘fazer’ música. (Bastos, 1978, p. 60).
Segundo Monique Desroches (1983), os conceitos sobre música, sua percepção,
estruturação e funções mudam entre diferentes povos e culturas. Diante deste quadro de
58
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
tantas variações, o estudo e o registro destas formas de expressão cultural estarão
diretamente relacionados com os métodos e aproximações empregados pelos pesquisadores.
Assim, cria-se um dilema: ocorre uma individualização gradativa nos métodos de
investigação, um dos problemas fundamentais da etnomusicologia.
Baseando-se na exposição apresentada acima sobre etnomusicologia, percebe-se que não se
trata de um caminho de investigação científica que está livre de problemas, no entanto,
diante de uma proposta de aprofundamento sobre a relação do rabequeiro com o fandango,
devido ao campo de estudo bastante limitado, deve-se primar ao máximo pelos métodos
científicos utilizados. A etnomusicologia parece ser uma alternativa viável para futuros
estudos.
Considerações finais
A preocupação com o desaparecimento dos tocadores e construtores de rabeca já pode ser
notada no texto de Aldo Hasse, em 1977. Após quase trinta anos, nem o dança e tampouco
a rabeca desapareceu, muito menos seus executantes ou construtores. Este fato expõe o
dinamismo dos processos de transmissão cultural que desafiam as preocupações da
academia, alimentando esperanças e demonstrando que a cultura popular tem sólidos, e
ainda desconhecidos, processos de sobrevivência que merecem ser estudados.
Uma análise do fandango apenas preocupada em descrever uma manifestação popular a
partir de um certo distanciamento já foi o caminho percorrido por muitos pesquisadores.
Sem desmerecer a importância das primeiras aproximações sobre esta dança, que
certamente foram fundamentais para esta comunicação, enfatiza-se a necessidade de
promover estudos mais aprofundados na área, envolvendo os aspectos humanos da
pesquisa. Esta proposta é sem dúvida desafiadora, uma vez que a pesquisa em ciências
humanas e sociais tende a ser extremamente complexa, no entanto, é por este caminho que
poderá ser desvendado um universo que é certamente mais sedutor do que o foi pesquisado
até então, revelando-nos muitos aspectos inimagináveis sobre o fandango. Isto certamente
despertaria a atenção que esta manifestação popular merece.
Finalmente, a tentativa de procurar uma explicação para a origem da rabeca é uma forma de
propor novas aproximações científicas com o fandango. Esta comunicação tinha a
pretensão de se contrapor a generalizações baseadas apenas em uma observação superficial,
tão presente em muitas pesquisas sobre o fandango. Acredita-se que com os argumentos
expostos foi possível entender que a rabeca não tem origem africana nem indígena.
Tampouco é verossímil imaginar que tal instrumento simplesmente partiu da imaginação de
algum artesão mais talentoso. Conclui-se que a rabeca se caracteriza como uma construção
artesanal transmitida oralmente que reside na memória de seus construtores remontando
gerações até a época em que algum caiçara teve contato com um violino barroco que veio
de Portugal ou da Espanha (especialmente nos casos dos Jesuítas). A partir deste contato,
começou a produzir um novo instrumento com base nas imagens que estavam em sua
memória.
Referências bibliográficas.
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BASTOS, Rafael J. de M. A musicologia Kamayura para uma antropologia da comunicação no AltoXingu. Brasília: Funai, 1978.
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Janeiro: FUNARTE, 1979.
A rabeca do fandango paranaense
59
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Folclore – FUNARTE, Ano 3, nº 3 , Agosto de 1977.
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Guilherme Romanelli: Violinista e violista, iniciou seus estudos musicais em 1980
com a professora Bianca Bianchi. Recebeu prêmios no Brasil e nos Estados Unidos
(país onde também estudou). Foi violista da Orquestra Sinfônica do Paraná durante
vários anos e foi músico convidado de diversas outras orquestras, como a Orquestra
de Câmara de Curitiba e a Orquestra de Câmara de Blumenau. Atuou em grupos de
música de câmara, em especial no Quarteto da PUC-PR, com o qual representou a
América Latina no Festival International de Musique Universitaire, em Belfort,
França. Participou da gravação de vários Cds. Foi aluno de construção de rabecas com
Aorélio Domingues em 2003. Ainda hoje é aluno de violino dos professores Marco
Vinícius Damm e Paulo Bosísio. Mestre em educação é professor de metodologia do
ensino da música, prática de ensino e estágio supervisionado, e oficina de construção
de instrumentos no departamento de Teoria e Prática de Ensino do Setor de Educação
da UFPR. Atualmente é aluno do curso de doutorado em educação da mesma
universidade, desenvolvendo uma pesquisa na linha Escola, Cultura e Ensino.
Alceo Bocchino: Sonatina para piano – uma abordagem analítica-estrutural
Josely Maria Machado Bark (UNICAMP)
Resumo: O presente trabalho reúne informações obtidas na pesquisa concluída no
curso de mestrado (IA/UNICAMP, 2002). Como objetivo, realiza uma análise da
Sonatina para Piano de Alceo Bocchino, a qual compreende três movimentos:
Toccata, Invenção e Cadenza. Para a análise musical, utiliza as técnicas
desenvolvidas por A. Schoenberg, que investiga os motivos e suas variações, e por J.
White, que observa o comportamento dos parâmetros: ritmo, melodia, harmonia e
sonoridade. Desse estudo são levantadas informações sobre a linguagem empregada,
os elementos composicionais característicos utilizados pelo compositor e como ele os
manipula. A conclusão destaca as informações de maior interesse obtidas da análise
efetuada, o que contribui para a melhor compreensão e interpretação da obra.
Palavras-chaves: Bocchino; Sonatina; Piano; Análise.
Introdução
Nas primeiras décadas do século XX, ocorreram profundas transformações na linguagem –
dissonância - e nos estilos – pluralismo – da arte musical.
Com relação à questão da dissonância, já ao final do século XIX, compositores envolvidos
pelo sistema tonal mas preocupados com os conflitos gerados pelos choques de
sonoridades, observaram o relativismo implícito da teoria clássica sobre “tensão/repouso”,
através de ocorrências como: o emprego simultâneo de um si sustenido e um si natural por
Georges Bizet (1838–75) numa passagem de L’Arlésienne (1872);1 o emprego sutil e
inusitado das apogiaturas por Maurice Ravel (1875–1937); o emprego de um número amplo
de tonalidades diversas por Wagner no início do prelúdio de Tristão e Isolda (1865); o uso
de modos medievais2 e orientais por Debussy (1862-1918), como por exemplo, o modo
frígio no segundo dos Nocturnes (1893–1899).3
Numa segunda fase, a dicotomia “tensão/repouso” foi explicada científica e culturalmente
pelo compositor austríaco Schoenberg. O ponto nodal de sua teoria incide na emancipação
do conceito tradicional de dissonância. O decodificador das mensagens dos discursos
musicais habituou-se, durante séculos, à oposição sons consonantes versus sons
dissonantes, devido à inserção dos sons dissonantes entre os últimos harmônicos.4 Em
contrapartida, as escutas mais freqüentes dessas sonoridades mais remotas favoreceram as
emancipações dos acordes de sétima, de sétimas diminutas, de quintas aumentadas; e
tornaram audíveis com maior nitidez, os empregos de dissonâncias nas obras de Wagner,
Strauss, Mussorgsky, Debussy, Mahler e Puccini.
1
L’Arlésienne (A Arlesiana): Música incidental muito popular de Bizet para a peça do mesmo nome
de Alphonse Daudet. Da partitura original foram extraídas duas suítes orquestrais, uma pelo próprio
Bizet, em 1872, e outra por Guiraud, após a morte do compositor.
2
Os modos medievais se originam da escala pitagórica grega, e têm como base o que hoje são as
notas brancas do piano, com certas diferenças de afinação. Por volta do séc. II d.C., os gregos
utilizavam a escala pitagórica de sete maneiras diferentes. Estas foram adaptadas no séc. IV por Santo
Ambrósio, bispo de Milão, para uso eclesiástico em quatro modos, mais tarde conhecidos como
modos autênticos. No séc. VI, São Gregório Magno aperfeiçoou os modos ambrosianos e
acrescentou-lhes mais quatro, então designados modos plagais. Esses oito modos são os chamados
modos eclesiásticos. Finalmente, no séc. XVI, o monge suíço Henricus Glareanus definiu 12 modos e
atribuiu-lhes os nomes gregos: dórico, hipodórico, frígio, hipofrígio, lídio, hipolídio, mixolídio,
hipomixolídio, eólio, hipoeólio, jônico e hipojônico. Com o desenvolvimento da harmonia, dois
desses modos – o jônico e o eólio – passaram a ser mais utilizados, e ficaram conhecidos, a partir do
séc. XVII como escala maior e escala menor.
3
Coleção de três peças para orquestra e coro feminino. Os movimentos são “Nuages”, “Fêtes” e
“Sirènes”.
4
Wisnik, José Miguel. O som e o sentido. São Paulo: Brasiliense, 1983, pp. 195–204.
Alceo Bocchino: Sonatina para piano
61
O pluralismo estilístico da arte musical no século XX passou a se fundamentar em
diferentes critérios composicionais como: polifonia harmônica ou fusão do contraponto e
harmonia; dissolução do conflito consonância/dissonância; o poema sinfônico e a ópera
teatral como formas mais significativas; o modo cromático atonal; o modo enarmônico;
diversos tipos de relações de acordes e timbres; o compositor como autor do texto do
poema dramático; a utilização do verso livre para se atingir a liberdade polirrítmica.
“Ser moderno”, independentemente de uma tendência estético-cultural específica,
implicava o desejo de o compositor reformular radicalmente os critérios conhecidos para
escrever música. Em geral, nos principais pólos culturais europeus – Paris, Milão, Berlim,
Viena–, os compositores de vanguarda almejavam contestar as culturas oficiais preservadas
pela burguesia e aristocracia, durante o século XIX até a eclosão da Primeira Guerra
Mundial (1914–1918).
A fragmentação do sistema tonal – centro da chamada música universal no Ocidente –
implicou o afloramento de movimentos modernistas, caracterizados pelos novos tipos de
combinações e relações de agrupamentos sonoros. A apresentação de novas
experimentações em peças como Pierrot Lunaire, de Schoenberg (1912), A Sagração da
Primavera, de Stravinsky (1913), e Parade, de Satie (1917)5 foram duramente criticadas.
As transformações técnico-estéticas desencadearam choques entre os artistas de vanguarda
e o gosto musical sacralizado como uma “verdade histórica” pelas elites culturais e
governantes da época.
No Brasil, o gosto musical dominante nos principais pólos culturais desse momento
histórico, incluindo São Paulo e Rio de Janeiro (décadas de 1910 e 1920), circunscrevia-se
num repertório calcado na tradição clássico-romântica. As obras consagradas e
apresentadas nos programas de concertos restringiam-se a compositores do passado como
Bach, Haendel, Mozart, Beethoven, Chopin, Schumann, Wagner, Brahms, Verdi e
contemporâneos como Richard Strauss, Puccini, Pietro Mascagni e Gustav Mahler entre
outros.
A circulação de partituras desses compositores propiciou, através do piano e do canto, uma
invasão sonora, sem precedentes históricos nos teatros, cafés e mansões burguesas dos
principais núcleos urbanos e rurais no Brasil.6
Essa efervescência cultural ocorreu na Europa, no período de 1848 (as revoluções da
primavera) a 1914 (Primeira Guerra Mundial), momento da aceleração da fusão do gosto da
aristocracia oriunda do Ancien Regime e das burguesias liberais do século XIX.7 O belo
musical como justificativa social, recreativa e utilitária conforme o pensamento iluminista,
5
Pierrot Lunaire op. 21 (1912). Escrita por Arnold Schoenberg. Peça atonal de colorações
expressionistas. Compreende 21 melodias para uma Sprechstimme (fala cantada), piano, flauta,
clarinete e violoncelo. A Sagração da Primavera (1913). Escrita para balé por Igor Stravinsky, com
base nas lendas do folclore russo, utilizando novas estruturas de ritmo, de timbres e organizações de
alturas. Parade, ballet réaliste en un tableau (1917). Escrita por Erik Satie; texto de Jean Cocteau;
cenografia de Pablo Picasso; coreografia de Massime e Diaghilev. Satie incorporou músicas
populares dos cafés-concertos; ruídos diversos, tais como máquinas de escrever e sirenes de
ambulâncias.
6
Contier, Arnaldo. Modernismos e brasilidade: música, utopia e tradição. Tempo e História
/organização Adauto Novaes. São Paulo: Companhia das Letras - Secretaria Municipal da Cultura,
1992.
7
Mayer, Arno. A Força da Tradição. A Persistência da Tradição do Antigo Regime, 1848–1914. São
Paulo: Companhia das Letras, 1987.
62
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
consolidou-se na mentalidade de segmentos sociais consumidores de música de concerto
(óperas, poemas sinfônicos, sonatas).
Em busca de novas formas de expressão, alguns modernistas negaram a própria História e
passaram a teorizar as suas novas experimentações, a partir de “arte autônoma ou
independente”, nos textos escritos por Schoenberg, em sua fase atonal ou expressionista
(1908–21).
Em geral, os compositores modernistas partidários das mais diversas concepções técnicoestéticas tais como Debussy (1862-1918), simbolismo (Pelléas);8 Schoenberg,
expressionismo, atonalismo, “Escola de Viena” (Op. 10, 1907); o Grupo dos Seis: Milhaud
(1892–1974), Honneger (1892–1955) e Poulenc (1899–1963), em especial; Schoenberg,
dodecafonismo (Suíte para piano op. 25); Webern (1883–1945) e Alban Berg (1885–1935),
música serial; Bartók (1881–1945); Manuel de Falla (1876-1946); Satie, dadaísmo,
futurismo; Eisler; Kurt Weill (1900–1950), arte engajada; entre outros, almejaram renovar
o pensamento musical modificando as mentalidades então dominantes.
No Brasil, nas décadas de 1920 e 1930, os modernistas, preocupados com o ideal de
atualização técnico-estética no campo musical em face dos modernismos europeus,
passaram a defender, com veemência, a construção de um projeto em prol da criação de
uma música brasileira nacionalista em suas especificidades rítmicas, melódicas, timbrísticas
e formais.
A música como os imaginários da literatura e do folclore, e a interpretação sobre uma
determinada concepção da história do Brasil favoreceram a construção de um programa em
prol da brasilidade modernista, baseada nas pesquisas temática e técnica da cultura popular.
Assim, a criação artística brasileira das primeiras décadas deste século representa a lenta
preparação para a grande revolução da Semana de Arte Moderna de 1922,9 movimento que
abalou profundamente a vida cultural de São Paulo e que, pouco a pouco, atingiu todo o
país, levantando um protesto contra o academismo reinante, pregando a modernização das
linguagens artísticas e a necessidade de dar-lhe um caráter essencialmente nacionalista.
Villa-Lobos (1887–1959) era o compositor da Semana de Arte Moderna, realizando
concertos com a colaboração de músicos que com ele vieram do Rio de Janeiro. Junto a ele
salientaram-se Francisco Mignone (1897–1986) e Mozart Camargo Guarnieri (1907–1993),
compositores que derivavam de modo direto do movimento modernista e da orientação de
Mário de Andrade, e que representaram os melhores frutos da concepção mais científica do
estudo do folclore e da utilização direta – e às vezes bem simples, como desejava Mário de
Andrade - da temática popular.
Alceo Bocchino desponta dentro do conjunto atual de compositores brasileiros como
herdeiro direto das orientações dos três compositores supracitados, figuras de primeira
importância na história da música no Brasil. Além de Villa-Lobos, Francisco Mignone e
8
O termo impressionista, freqüentemente usado para descrever a música de Debussy, só em parte é
apropriado: o próprio Debussy sempre se sentiu mais perto do movimento simbolista. Não obstante,
suas obras parecem, muitas vezes evocar imagens através da sugestão de uma atmosfera e de um
estado de espírito que seriam os equivalentes musicais do impressionismo nas artes visuais.
9
Contier, Arnaldo D. Música e Ideologia no Brasil. São Paulo: Novas Metas, 1985. A Semana de
Arte Moderna, realizada no Teatro Municipal de São Paulo, em fevereiro de 1922, visava renovar a
linguagem artística abrangendo todas as artes. Na música, os artistas apoiados pelos agentes sociais
dominantes ligados à burguesia agrário-exportadora, buscavam romper com a arte tradicional (música
romântica), que envolvia técnicas e uso de temas musicais com influências européias. Compunha-se
de exposições, conferências sobre a estética modernista, leituras de poemas e concertos.
Alceo Bocchino: Sonatina para piano
63
Camargo Guarnieri, recebeu também orientação de Dinorah de Carvalho, Eleazar de
Carvalho e Tomás Teran.
Nascido a 30 de novembro de 1918 na cidade de Curitiba, Paraná, as atividades de Alceo
Bocchino foram sempre bastante auspiciosas, não só como compositor, mas também como
acompanhador, pianista, orquestrador, diretor musical de várias emissoras e como regente.
Foi eleito para a Academia Brasileira de Música a convite de Villa-Lobos, que lhe deu a
honra de organizar um recital com obras suas. Bocchino também tomou parte em uma
excursão artística ao Norte e Nordeste do Brasil, organizada por Villa-Lobos. Foi assessor
musical do ministro da Educação e Cultura, Clóvis Salgado, para as obras do chamado
“barroco mineiro”, havendo dado apoio às pesquisas do musicólogo Curt Lange.
Além de ser membro compositor da Academia Brasileira de Música (Cadeira no 37),
pertence também à Academia Paranaense de Letras e à Academia Brasileira de Artes. É
patrono da Cadeira de Música do Centro de Letras do Paraná, professor de Regência e
Composição da Escola Villa-Lobos do Rio de Janeiro, e um dos fundadores da Orquestra
Sinfônica Nacional (OSN) da Rádio MEC, onde foi regente titular por treze anos.
Essa Orquestra, a OSN, formada em 1961 através de um decreto assinado pelo então
presidente Juscelino Kubitschek, reuniu alguns dos mais importantes nomes da música
brasileira do século XX. Seus integrantes estiveram envolvidos na atividade de produzir e
freqüentemente registrar em fita um vasto repertório musical que incluiu, em grande
proporção, música brasileira. Música composta por brasileiros das variadas regiões do país
desde o período colonial. Música de influência folclórica, européia, africana e indígena.
Música vocal e instrumental. Um pouco do vasto aspecto cultural do Brasil. E foi
precisamente voltada para a educação e a cultura do país que a emissora foi criada.
Sobre a Orquestra Sinfônica Nacional, diz o maestro Alceo Bocchino: “Pela cultura dos que
vivem em nossa terra e pelo progresso do Brasil – essa era uma frase que a gente sempre
tinha na cabeça.”10
A OSN era uma orquestra atuante num sistema oficial de radiodifusão, seguindo o exemplo
das ORTF francesa, BBC inglesa, RAI italiana e Bayerische Rundfunk de Munique,
Alemanha, com o objetivo de, segundo Edino Krieger, “preencher uma lacuna na
divulgação do repertório sinfônico, priorizando a música brasileira e música
contemporânea, ambas minoritárias na programação das demais orquestras do país.”11 Sua
audiência não seria apenas aquela das salas de concerto mas, também, dos ouvintes da
Rádio.
Nas fichas da Rádio MEC estão registradas gravações de 101 obras12 de autores brasileiros
pela OSN, no período entre a sua criação, em 1961, até 1972.13 Este processo envolveu 31
regentes, tendo Alceo Bocchino sido o mais freqüente na tarefa, aparecendo à frente da
orquestra 39 vezes.
Alceo Bocchino foi ainda presidente da comissão artística da Orquestra Sinfônica Brasileira
e regente titular da mesma de 1960 a 1964. É também um dos fundadores da Orquestra
10
Azevedo, Cláudia. “A Rádio MEC como centro difusor da música de concerto no Brasil”.
Brasiliana. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Música, n. 5, 2000, p. 5. O maestro Alceo
Bocchino concedeu entrevista à autora em 18.09.98, na Escola de Música da UFRJ.
11
Krieger, Edino. “OSN – uma orquestra para a música brasileira”. O Amigo Ouvinte, Informativo da
Sociedade dos Amigos da Rádio MEC, ano V, n. 18, julho de 1997, p. 4.
12
Azevedo, Cláudia. Op. cit. 2000, p. 8. Considerando-se os movimentos das obras, elas somam 193.
13
Ibidem. A OSN existiu na Rádio MEC até 1984, quando foi incorporada à UFF, mas o
arquivamento mais recente nas fichas é de 1972.
64
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Sinfônica do Paraná, da qual foi maestro titular desde sua criação (1985), e atualmente é
maestro emérito. É Cidadão Honorário do Município do Rio de Janeiro e Cidadão
Benemérito do Estado do Paraná.
Como educador, foi fundador e professor titular da Escola de Música e Belas Artes do
Paraná, ministrando aulas de diversas matérias teóricas. Lecionou no Conservatório
Musical de Santos e na Escola de Música Villa-Lobos, no Rio de Janeiro. Foi co-fundador
da Academia de Música Lorenzo Fernandez, com Arnaldo Estrella, Eleazar de Carvalho e
Lúcia Branco, entre outros, onde hoje é professor titular. Professor e lançador de maestros
consagrados, sua vasta atividade pedagógica revela um homem preocupado com o futuro e
com a formação musical.
Como compositor, sua obra está completamente inserida na corrente nacionalista e inclui
páginas sinfônicas e camerísticas, além de canções e peças para instrumentos solistas,
apresentadas também na França, Inglaterra, em Portugal, na Argentina e em Israel. Segundo
o musicólogo Vasco Mariz, pode-se dividir a obra do compositor em três períodos: um
anterior a 1944, de peças juvenis; o segundo, fortemente influenciado por Camargo
Guarnieri, bastante rebuscado e de fisionomia claramente polifônica (como Trova para
piano e Canção de Inverno para canto); e o terceiro período, que começa em fins de 1951 e
evidencia tendência para maior simplicidade, de pesquisa da essência da música brasileira,
talvez de maior sinceridade, técnica mais singela e maior expressividade também. Nesse
último período as diretrizes gerais foram traçadas por Villa-Lobos, a quem estava ligado
intimamente.14
Hoje, Alceo Bocchino mora no Rio de Janeiro, onde, além de compor, atende a diversos
convites para reger e dar aulas. Também pode ser encontrado na Academia Lorenzo
Fernandez e na Escola de Música Villa-Lobos duas vezes por semana, ministrando com o
mesmo entusiasmo as cadeiras Ritmo, Transposição, Acompanhamento ao Piano e
Regência.
Sonatina para Piano - estrutura e material
A Sonatina para Piano de Alceo Bocchino representa o ápice de sua produção pianística.
Escrita entre 1950/51 foi dedicada ao pianista brasileiro Joel Bello Soares e é considerada
por Edino Krieger “uma das mais significativas obras da literatura pianística do século XX
no Brasil, juntamente com a Toccata de Cláudio Santoro”.15 Segundo Bocchino: “A
Sonatina é una Piccola Toccata, uma pequena Toccata”.16
Compreende três movimentos: I. Com humor (Piccola Toccata); II. Invenção – Andante
mosso; III. Cadenza: Tranquillo - Galhofeiro (Allegretto).
Os movimentos Com Humor (I) e Cadenza (III) estão escritos na Forma-Sonata. No
entanto, a Forma-Sonata empregada diverge da forma das Sonatas e Sonatinas dos séculos
XVIII e XIX, pois possui a diferença de não apresentar a segunda idéia (Parte B) – ou
segundo tema - na Reexposição. Os dois movimentos contêm na Reexposição
exclusivamente a Parte A, exatamente como na primeira vez que ocorre. Esses dois
movimentos se compõem de seis seções: Introdução, Parte A, Parte B, Desenvolvimento,
Reexposição da Parte A e Coda. No movimento inicial – Com Humor – a Introdução, o
Desenvolvimento e a Coda apresentam-se reduzidos em extensão. Já o terceiro movimento
14
Mariz, Vasco. História da Música no Brasil. 5.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, p. 286.
Secretaria de Estado da Cultura (PR). Música erudita paranaense. Curitiba, v.1, 2000, p. 6.
16
Comunicação pessoal. Curitiba, maio/1999. O compositor refere-se aqui especificamente ao
primeiro movimento "Com humor".
15
Alceo Bocchino: Sonatina para piano
65
– Cadenza – amplia essas partes, o que permite o desenvolvimento sobre maior variedade
de materiais.
O movimento intermediário (II) recorre ao processo contrapontístico da Invenção, contendo
três seções: Exposição, Desenvolvimento e Reexposição.
Primeiro movimento - Com humor (Piccola Toccata)
O primeiro movimento da Sonatina possui caráter predominantemente rítmico. A
manutenção do desenho rítmico inicial, com unidade de tempo subdividida em quatro
pulsos iguais, andamento rápido e em contratempo com a voz inferior, estabelece um motoperpétuo bem característico de uma Toccata, o que justifica a denominação Piccola
Toccata indicada pelo próprio compositor junto ao andamento (Ex. 2.1).
Ex. 2.1. Bocchino, Sonatina para Piano, primeiro movimento - Com Humor - (cc. 1 a 4)
A Seção 3 intermediária (Parte B, cc. 30 a 45, Ex. 2.2). introduz um contraste, ao evidenciar
a melodia sobre os outros elementos. Com o tratamento polifônico das vozes, traz o caráter
mais expressivo e cantado.
Ex. 2.2. Bocchino, Sonatina para Piano, primeiro movimento - Com Humor - (cc. 30 a 33)
– Início da Seção 3
Esse movimento inicial é construído a partir de seis motivos básicos (Tab. 1).
66
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Tabela 1 Motivos básicos do primeiro movimento - Com Humor
Durante o primeiro movimento da Sonatina, o Motivo 4 é o que apresenta maior número e
tipos de variações. São variações rítmicas, intervalares, por transposição, melódicas, na
articulação, por preenchimento harmônico dos intervalos, e por fragmentos, tal como
ilustrado na Tabela 2.
O Motivo 1, apesar de introduzir a obra, possui menor número de variações. Como
conserva sua característica rítmica praticamente inalterada durante o primeiro movimento
(com exceção da Parte B intermediária, Ex. 2.2), faz com que o ritmo seja o elemento
predominante.
O Motivo 3 pode ser considerado como uma variação do Motivo 1 ou mesmo do Motivo
1.1, como ilustra o Ex. 2.3.
Nesse caso o Motivo 3 seria uma variação rítmica por ampliação dos anteriores, com
supressão dos intervalos intermediários (3as) e das notas formadoras dos intervalos de 6as.
No entanto, optou-se por classificá-lo como motivo básico, pois é a célula introdutória e de
conclusão do terceiro e último movimento - Cadenza.
Também as escalas pentatônica e de tons inteiros foram classificadas como motivos
básicos, uma vez que aparecem com freqüência, seja como simples repetição, ou
modificadas, em variações.
Alceo Bocchino: Sonatina para piano
Tabela 2 Variações do Motivo 4 no primeiro movimento - Com Humor
Ex. 2.3 O Motivo 3 como variação dos Motivos 1 e 1.1
67
68
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Segundo movimento – Invenção
O termo Invenção usado como título desse movimento está plenamente de acordo com a
forma e estilo da composição. A textura é contrapontística a duas vozes, e se desenvolve
sobre material motívico reduzido – somente dois motivos básicos (Motivos 7 e 8, Ex. 3.1) –
com o uso extensivo do contraponto inversível.17
Ex. 3.1. Bocchino, Sonatina para Piano, segundo movimento – Invenção – (cc. 1 a 3) –
Motivos básicos
Da utilização do contraponto inversível, para o ajuste dos Motivos 7 e 8, então
denominados Motivo e Contramotivo, existem Episódios18 rítmicos, formados
predominantemente por porções desses motivos básicos.
No segundo movimento da Sonatina os dois Motivos formadores possuem quantidades
aproximadas de variações. Assim, com suas respectivas variações, constroem a obra em
conjunto e se desenvolvem em igual proporção. Isso está de acordo com a definição de uma
Invenção, a qual se constitui de uma obra contrapontística centrada no desenvolvimento de
material derivado de um ou dois Motivos.19
Esse movimento estabelece alto contraste com o primeiro, devido a fatores como: caráter
mais melodioso, forma da composição, estilo polifônico, andamento mais calmo,
simplicidade dos motivos empregados e redução do número de motivos.
Fato interessante a se observar da comparação entre os dois primeiros movimentos é o uso
da semicolcheia como figura padrão, majoritária, porém construindo ambientes totalmente
contrastantes. No primeiro movimento, a unidade de tempo formada por quatro
semicolcheias (compasso 2/4 nos dois movimentos) estabelece uma sonoridade viva,
dançante e “bem humorada”. Isso ocorre também devido ao andamento rápido, ao toque
mais seco – staccato, e ao tratamento harmônico dos intervalos. No segundo movimento, a
unidade de tempo também subdividida em quatro semicolcheias produz o ambiente vocal,
17
Kennan, Kent. Counterpoint – Based on Eigtheenth-Century Practice. 4.ed. Upper Saddle River:
Prentice Hall, 1999, p. 115. O Contraponto Inversível ou Duplo Contraponto ocorre quando duas
vozes são “inversíveis”, ou seja, quando qualquer uma delas pode ser utilizada como voz superior ou
inferior, com bons resultados. Para três vozes, utiliza-se também o termo Triplo Contraponto. A
palavra “inversão” deve ser entendida aqui como o nível ou posição relativa entre as vozes, e não
deve ser confundida com o artifício da variação por movimento contrário, ao qual freqüentemente se
denomina “inversão”.
18
Kennan, Kent. Op. cit. 1999, p. 134. Episódios são seções derivadas de uma porção do motivo ou
do contramotivo, ou até mesmo de outro material novo. Podem ser de qualquer extensão, mas
freqüentemente ocupam dois a quatro compassos. O motivo, quando utilizado como base, geralmente
não aparece na sua forma completa, mas em segmentos menores. Os Episódios são quase sempre
seqüenciais. Suas funções principais são: a modulação de uma tonalidade para outra, e a interrupção
de repetições demasiadas e sucessivas do motivo.
19
Ibidem, p. 126.
Alceo Bocchino: Sonatina para piano
69
singelo, melodioso. O estilo polifônico, com o uso do contraponto inversível, o toque
legato, e o andamento Andante mosso – contribuem conjuntamente para a formação dessa
sonoridade.
O segundo movimento da Sonatina para Piano demonstra a possibilidade de se utilizar, no
século XX, um estilo de composição, que remonta ao século XVIII (Invenções de Bach). O
compositor exibe nesse movimento sua alta habilidade contrapontística, uma vez que utiliza
material motívico extremamente reduzido, e consegue, de forma criativa e interessante, o
pleno desenvolvimento da obra.
Terceiro movimento – Cadenza
A Cadenza se desenvolve sobre variações dos motivos básicos dos movimentos anteriores
Com Humor e Invenção, apresentando portanto forma cíclica de composição.20 Como o
primeiro movimento apresenta característica predominantemente rítmica e o segundo
movimento contrasta com o anterior por evidenciar a melodia, não existe, para toda a
Cadenza, um aspecto predominante entre os quatro elementos analisados: ritmo, melodia,
harmonia e sonoridade. Contudo, ao se tomar cada seção individualmente, é fácil perceber
sua qualidade prioritária e os contrastes entre as seções inferidos pelas mudanças dessa
característica principal.
Já na Introdução, a célula inicial provém do primeiro movimento (Ex. 4.1), porém apresenta
o Motivo 3 ritmicamente modificado e o Motivo 2b com variação intervalar. Em toque
legato, esses Motivos assumem caráter melodioso, expressivo.
Ex. 4.1. Bocchino, Sonatina para Piano, terceiro movimento – Cadenza – Célula inicial
Para a composição do terceiro movimento – Cadenza – observa-se que nem todos os
motivos do primeiro movimento são empregados. Os Motivos 1 e 5, por exemplo, não estão
presentes na Cadenza.
Entre os motivos envolvidos, os de número 3, 4 e 7 são os que aparecem com maior número
de variações. O Motivo 3 compõe a célula inicial e final do movimento. Aparece no início
em andamento lento, com caráter tranquillo e expressivo, destacando o elemento melódico.
Ao final, em andamento rápido, reforça o elemento rítmico, em toque staccato seco e com
intensidade fff.
O Motivo 4 possui originalmente forte qualidade rítmica, uma vez que é composto por
conjuntos de quatro pulsos iguais para a unidade de tempo, os quais estabelecem um ritmo
motor na maior parte do primeiro movimento. Na Cadenza, esse motivo é bastante
explorado, sofrendo ampliações rítmicas por toda a sua extensão ou parte da mesma.
20
Soleil, Jean-Jacques e Lelong, Guy. As Obras-Primas da Música. Tradução: Eduardo Brandão. São
Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 245. Forma Cíclica é a expressão aplicada ao procedimento de
composição musical que, a partir de um tema dito gerador ou tema cíclico, consiste em repetir
periodicamente um ou vários elementos desse tema nos diferentes movimentos da obra, a fim de
reforçar a unidade estrutural da mesma. Deve-se a expressão Forma Cíclica a Vincent d’Indy, que
apontou Beethoven como o inventor do procedimento e considerava César Franck como seu primeiro
utilizador consciente.
70
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Assim, em oposição ao seu caráter rítmico original, faz com que a melodia ressalte,
contribuindo para o contraste ritmo-melodia entre as seções do movimento.
O Motivo 7, original do segundo movimento – Invenção –, é o que apresenta maior número
de variações na Cadenza. Na Invenção é utilizado como célula principal para a construção
da polifonia a duas vozes. Na Cadenza, especialmente nas seções Exposição da Parte A (cc.
25 a 43), Reexposição da Parte A (cc. 63 a 81) e Coda (cc. 82 a 91), comporta-se de
maneira contrária ao Motivo 4, pois em andamento rápido e com toque staccato, destaca o
elemento rítmico e galhofeiro dessas seções.
O Ex. 4.2 a seguir ilustra uma variação do Motivo 7 durante a Cadenza, que transforma sua
característica original melodiosa e expressiva, com toque legato, para uma qualidade
rítmica, com toque staccato saltitante.
Ex. 4.2. Bocchino, Sonatina para Piano, terceiro movimento – Cadenza – Utilização dos
Motivos 2 (a e b), 3 e 7 durante a Exposição da Parte A
Conclusão
O estudo analítico da Sonatina para Piano de Alceo Bocchino permite um conhecimento
mais aprofundado da obra, de forma a demonstrar a coerência estrutural da composição.
Através da análise percebe-se a utilização de motivos básicos determinados e variações em
torno dos mesmos. Esse procedimento caracteriza um método construtivo bastante
praticado, podendo ser encontrado em uma grande variedade de estilos musicais e,
igualmente, nos materiais da música contemporânea.
Da análise motívica da obra conclui-se que existem oito motivos básicos, e que todos eles
são apresentados nos primeiros dois movimentos – Com Humor e Invenção. O último
movimento – Cadenza – é construído por variações de alguns desses oito motivos (Motivos
2, 3, 4, 6, 7 e 8). Esse procedimento – a forma cíclica de composição – é utilizado como
proposta para reforçar a unidade estrutural de toda a Sonatina, permitindo maior coesão
entre os movimentos.
O terceiro movimento – Cadenza - ora recorda características do primeiro movimento, ora
características do segundo. O compositor procura uma combinação entre os motivos
anteriormente apresentados, utilizando para isso, artifícios que transformam a qualidade
original dos mesmos, e que acarretam efeitos estéticos opostos, como por exemplo, de
rítmico para melódico.
A abordagem analítica-estrutural da Sonatina aponta respostas para a questão “Como
funcionam os elementos do discurso musical e quais são suas relações?” Esse estudo
sistemático orienta e sugere opções para uma interpretação mais consciente em torno de
aspectos como: graus de dinâmica, diferenças de sonoridade entre as vozes, andamento,
Alceo Bocchino: Sonatina para piano
71
caráter expressivo, pontos de tensão x repouso, tipo de toque, uso do pedal. Dessa forma, a
análise promove uma relação íntima entre a obra e o executante o que, como conseqüência,
favorece maior compreensão por parte do ouvinte.
Referências Bibliográficas
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WHITE, John D. Comprehensive musical analysis. London: The Scarecrow Press, 1994.
Josely Machado Bark graduou-se na EMBAP/PR. Freqüentou cursos ministrados por
Beatriz Balzi, Moura Castro, Yara Bernette, Caio Pagano, Antônio Bezzan, Homero
Magalhães, Eudóxia de Barros, Timothy Shafer (EUA), Paul Rutmann (EUA),
Gyorgy Sandor (EUA) e Wolfgang Leibnitz (Alemanha). Após a graduação,
transferiu-se para os Estados Unidos (Ohio), onde se apresentou junto aos renomados
flautista Michel Debost e oboísta Alex Klein. No Brasil, atuou como solista da
Orquestra Sinfônica do Paraná e como professora de piano da EMBAP/PR (1998 a
2000). Premiada em concursos nacionais, participou do 21o Concurso Internacional
de Piano & Festival Bartók-Kabalevsky-Prokofiev (EUA/2001), classificando-se entre
os três primeiros lugares. Na banca examinadora estava Gyorgy Sandor, ex-aluno de
Bartók. Foi pianista acompanhadora oficial das 20a e 21a Oficinas de Curitiba
(2002/2003). Realizou Mestrado na UNICAMP, onde atualmente cursa Doutorado em
Música. Residente em São Paulo/SP desde 2000, participou do VI Fórum 2004 do
CLM na ECA/USP, e do XV Congresso da ANPPOM 2005, no RJ.
Ouvinte Modelo e Ouvinte Real: uma proposta de aproximação com a teoria do
Leitor Modelo
Judson Gonçalves de Lima (UFPR)
Resumo: Umberto Eco, no livro Lector in fabula, propõe à teoria da recepção a
existência do leitor modelo¨, que é uma estratégia textual, um “conjunto de condições
de êxito, textualmente estabelecidas, que devem ser satisfeitas para que um texto seja
plenamente atualizado no seu conteúdo potencial”. O que este trabalho vem levantar é
a possibilidade de pensarmos um ouvinte modelo para a canção popular. E a partir
daí, estendermos o debate ao Ouvinte Real de canções. Palavras-chave: “Lector in
fabula”, leitura, escuta, canção, recepção.
INTRODUÇÃO
A intenção deste artigo é buscar uma adaptação, ou aproximação, da teoria de “leitor
modelo” com uma possível teoria sobre o “ouvinte modelo”, e a partir daí chegarmos ao
ouvinte real, também em aproximação com o leitor real.
A bibliografia que serve de base é quase toda da área da literatura. Isso por dois motivos
principais: 1) este artigo é fruto de um requisito de avaliação para uma disciplina de pósgraduação em literatura e; 2) a escassez de bibliografia desse ponto de vista aplicado à
música, ao menos em nosso idioma.
Segundo Vincent Jouve (2002, p. 12), “é a expansão da pragmática que vai levar os
estudiosos da literatura a se interessar pelos problemas da recepção.” Algumas teorias
desenvolvidas que obtiveram relevância foram: a de H. R. Jauss, sobre a “estética da
recepção”; a de Wolfgang Iser sobre o “leitor implícito”; de Lintvelt, a do “leitor abstrato”;
de Umberto Eco, sobre o leitor-modelo e; de Michel Picard, sobre o “leitor real”.
Essas teorias prosperaram e tiveram um motivo de existência quando se pensou a leitura, ou
o leitor. A partir do momento em que se admitiu que um texto é escrito para que alguém o
leia, e só a partir dessa leitura tome vida –exista– começou a se pensar o ato, ou o processo
da leitura.
Da mesma forma, esse artigo só tem motivo para ser escrito se considerar que a música é
feita para o ouvinte, e que a música só existe de fato, a partir do momento da audição, ou
escuta1 – até então, ela é apenas música em potencial. O objetivo, portanto, é o de adaptar,
ou aproximar, algumas teorias da leitura para a recepção em música, mais precisamente, a
de leitor modelo.
O que seria o ouvinte modelo?
Algumas questões foram levantadas, mas nem todas respondidas, porque isso demandaria
uma pesquisa muito maior do que a que foi realizada. A música implicada aqui é a canção,
ou seja, a música com letra, e limitaremos os exemplos à canção brasileira.
Do leitor modelo ao ouvinte modelo
A teoria do leitor-modelo foi profundamente influenciada pela teoria do leitor implícito de
W. Iser, que data de 1976. Para Iser, “o leitor é o pressuposto do texto” (Jouve, 2002, p.
14). Assim, todo texto prevê um leitor (o leitor está implícito) que o execute. O texto é o
mesmo para todos os leitores e o seu objetivo é organizar e dirigir a leitura. Para que isso
funcione, o escritor deve criar para um determinado leitor que “reage no plano cognitivo
1
Barthes, Roland. O óbvio e o obtuso.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. No capítulo 2, O corpo
da música, Barthes discute A escuta, e diz que “Ouvir é um fenômeno fisiológico; escutar é um ato
psicológico”, p. 217. Assim, mais ligado à atividade estética.
Ouvinte Modelo e Ouvinte Real
73
aos percursos impostos pelo texto” (Jouve, 2002 p. 14). Nas palavras de Iser: “repertório e
estratégias textuais se limitam a esboçar e pré-estruturar o potencial do texto; caberá ao
leitor atualiza-lo para construir o objeto estético.” (Iser, 1999, p. 9).
Estrutura do texto e estrutura do ato são assim os dois pólos da situação comunicativa. O
primeiro se realiza no segundo; o texto, portanto, não pode ser tido como resultado, ele
necessita do ato da leitura para ser concretizado. “É preciso descrever o processo da
leitura”, diz Iser, “como interação dinâmica entre texto e leitor, pois os signos lingüísticos
do texto, suas estruturas, ganham sua finalidade em razão de sua capacidade de estimular
atos, no decorrer dos quais o texto se traduz para a consciência do leitor”. E continua “o
autor e o leitor participam, portanto, de um jogo de fantasia; jogo que sequer se iniciaria se
o texto pretendesse ser algo mais do que uma regra de jogo. É que a leitura só se torna um
prazer no momento em que nossa produtividade entra em jogo, ou seja, quando os textos
nos oferecem a possibilidade de exercer as nossas capacidades” (Iser, p. 10).
Em Lintvelt (1981), também reconhecemos a teoria de Iser e um passo a mais para o leitor
modelo. O leitor implícito aparece em Lintvelt como “leitor abstrato”: “O leitor abstrato
funciona, por um lado, como imagem do destinatário pressuposto e postulado pela obra
literária e, por outro lado, como imagem do receptor ideal, capaz de concretizar o sentido
total da obra numa leitura ativa. (Jouve op.cit. Lintvelt, p. 44 Grifo nosso).” Essa
capacidade de concretizar o sentido total de uma obra será o ponto-chave do leitor-modelo
de Eco, aqui chamado de “receptor ideal”.
O leitor modelo
Na sua obra “Lector in Fabula”, Umberto Eco trabalha demoradamente a questão da
recepção da leitura. O que interessa aqui é seu leitor-modelo. Segundo Eco, o “leitor
modelo” é um tipo de estratégia textual. “O Leitor-Modelo constitui um conjunto de
condições de êxito, textualmente estabelecidas, que devem ser satisfeitas para que um texto
seja plenamente atualizado no seu conteúdo potencial”. (Eco, 1986, p. 45)
Para que um texto seja plenamente atualizado, são exigidas do leitor habilidades como
“competência gramatical” e “enciclopédia básica”. Isso é necessário porque o texto é um
“mecanismo preguiçoso (ou econômico)”, “que vive da valorização de sentido que o
destinatário ali introduziu.” Ou seja, o leitor-modelo deve ser capaz de atualizar todos os
“não-ditos”, os “espaços brancos”, os “interstícios”, “as referências”, programados pelo
texto. Deve, enfim, participar desse “jogo”, cooperando2 para que o “conteúdo potencial”
de um texto se concretize. Essa idéia de “jogo” é importante na teoria da leitura e foi
desenvolvida por muitos teóricos.3 Como Eco trata de como o texto programa sua recepção,
deve ser lembrado que Iser diz que o texto não pretende ser mais que uma regra de jogo, ou
seja, o texto organiza e dirige a leitura (ou então, ‘programa sua recepção’).
2
Umberto Eco diz que “como cooperação textual não se deve entender a atualização das intenções do
sujeito empírico da anunciação, mas as intenções virtualmente contidas no enunciado”.
3
Essa questão do jogo não se restringe à teoria da leitura, também em outras artes isso é discutido.
Johan Huizinga discute amplamente em Homo Ludens a questão do jogo nas culturas e nas artes,
assim como Schiller. Referente ao texto, Michel Picard escreveu “A leitura como um jogo”, onde
destaca o leitor real.
74
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Claro que o “leitor modelo” é apenas um modelo, um ideal. Há textos em que, por demais
complexos, o jogo pode ser ilimitado e por isso inalcançável ao leitor real, e até mesmo ao
autor real – a propósito, deve ser lembrado que a regra do jogo é o texto, e o que está
ativado no texto deve ser atribuído à intenção do “autor modelo”, mesmo que ela não seja a
intenção do autor empírico, ou autor real. (Eco, 1986, p.46).
O ouvinte modelo
Ora, sendo o leitor-modelo uma estratégia textual, devemos encarar o ouvinte-modelo, para
modo de aproximação, como uma estratégia de escuta. A princípio é simples e podemos
definir o ouvinte modelo como sendo um conjunto de condições de êxito, musicalmente e
textualmente estabelecidas, que devem ser satisfeitas para que uma canção seja plenamente
atualizada no seu conteúdo potencial. Praticamente a mesma definição que Umberto Eco
deu ao leitor modelo.
É preciso destacar o caráter musical e textual da canção. Como esta possui texto é possível
utilizar a teoria da leitura para a análise textual –sobretudo as de análise de textos poéticos;
embora as referências aqui citadas não tenham explorado esse tipo de escrita, que se mostra
mais complexa às vezes, com mais “não-ditos”, “espaços brancos”, “interstícios”, além de
uma preocupação muito grande com as qualidades musicais das palavras. O leitor modelo,
entretanto, pode ser parte do ouvinte modelo de canção.
O que deve, afinal de contas, ser atualizado pelo ouvinte modelo de canção?
Ora, pretendemos fazer aqui apenas uma proposta primária e na medida do possível
adaptando características do leitor modelo.
Parece que o texto, além de ser atualizado como outros textos poéticos ou narrativos, deve
ser também visto como condutor de uma melodia (assim como a melodia do canto deve ser
tomada como condutora de um texto). É claro que a palavra, independentemente de onde
ela esteja, traz em si uma melodia, mas a melodia na música desempenha um papel muito
destacado, e a palavra ganha contornos que não conhece na fala diária – nem na leitura
poética, apesar de desempenhar papel importante. Então deve ser pensada a relação de
notas dentro da palavra (do texto), assim como sua prosódia e suas características rítmicas.
Wolfgang Kayser4 ao analisar o poema “La Lune Blanche” de Verlaine, segue o seguinte
método: análise da forma; análise do ritmo; da sonoridade e do significado. Parece que esse
método é apropriado, também, para a análise de textos de canção.5
Além das capacidades de interpretação textuais, o ouvinte modelo deve ser capaz de
atualizar as características musicais da canção. E nesse momento a questão deixa de ser
4
Kayser, Wolfgang. Análise e interpretação da obra literária. Sucessor-Coimbra: Armênio Amado,
1976. p. 164.
5
Dizemos “textos de canção” porque apesar de alguns autores considerá-los poemas isso é discutível.
Poderia ser usada então apenas a expressão “letras de música”, ou ainda “letras”, no entanto, estas
deixariam de fora poemas, textos em prosa e outros textos quaisquer que foram musicados mas que
não foram compostos para esse fim. Mas é preciso esclarecer, já que citamos R. Barthes, que não
entendemos “texto” como ele entende. “Texto” aqui são textos escritos, quaisquer textos musicados –
para Barthes, qualquer prática significante é um texto.
Ouvinte Modelo e Ouvinte Real
75
simples. Em uma aproximação com a teoria do leitor modelo, poderia ser dito agora que o
ouvinte modelo deve possuir, além da capacidade auditiva, uma espécie de “dicionário
mínimo” e de “enciclopédia básica”. Mas o que seria esse dicionário e essa enciclopédia
musicais? Prematuramente podemos dizer que um dicionário de base em música,
corresponde a um conhecimento mínimo de harmonia, melodia e ritmo.6 E uma
enciclopédia seria o conhecimento do uso desses aspectos. Porque no seu uso ocorrem
“jogos”. Por exemplo: na canção “eu te amo” de Tom Jobim e Chico Buarque, a harmonia7
segue uma relação não muito comum na canção “popular”, o que pode ser entendido como
um jogo - há quebra de expectativas e se o ouvinte não percebe é como se não houvesse.
Na canção “O pulsar”, Caetano Veloso musicou um poema de Augusto de Campos. No
poema, as vogais são inicialmente substituídas por símbolos como estrelas e bolas; ao
musicar, Caetano buscou trazer essa intenção ao atribuir para cada vogal uma determinada
nota.
Na frase:
Onde aparece o pequeno círculo, canta-se com a nota dó, onde aparece uma estrela, a nota
ré numa oitava superior e onde aparece “a”, a nota sol. Além de saber quais notas são, seria
interessante saber que essas notas correspondem ao I, II e V graus da escala, nas quais boa
parte da música se baseia.
O ouvinte deve fazer atualização das citações. A citação musical pode não ser tão freqüente
quanto a textual, mas também ocorre. Às vezes ela ocorre de forma muito clara, em
fonogramas introduzidos durante a execução da canção. Em “Jack Soul Brasileiro”, Lenine
faz uma homenagem a Jackson do Pandeiro. Nesta canção ocorre referência no texto:
“quem foi? / que fez a ema gemer na boa”,
aludindo à canção “O canto da ema”; citação textual:
“Tião. Oi/ Foste? Fui/ Compraste? Comprei/ Pagaste? Paguei/
Me diz quanto foi/ foi quinhentos réis”,
que é um trecho da canção “Cantiga do sapo”; citação cantando um trecho de “Chiclete
com Banana”; e citação com inserção de fonograma da “cantiga do sapo”.
Um outro tipo de citação é a da melodia. Na canção “Baião de Quatro Toques”, por
exemplo, de Zé Miguel Wisnik e Luiz Tatit, a melodia cita quase que na canção inteira a
Quinta Sinfonia de Beethoven, baseando-se no mesmo motivo rítmico-melódico que a
sinfonia e ainda no texto faz-se a referência e dá a pista:
6
Esses são considerados os pilares da música tonal, que abrange quase toda a canção brasileira, pelo
menos a chamada MPB, de onde extraímos nossos exemplos.
7
A harmonia é a relação entre as notas, quando notas são relacionadas simultaneamente tem-se um
acorde. A seqüência dos acordes segue uma determinada lógica dentro da música tonal, música que
abrange a maior parte das canções brasileiras.
76
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
“pra quem compôs, pra quem tocou e pra quem ouve / é o destino que sempre se quis / é
uma quinta sinfonia de Beethoven / que decantou e só ficou a raiz”.
Além dessas, podemos lembrar o arranjo. A identificação dos instrumentos, seus timbres e
o uso desses pode interferir na escuta. Na canção “Terra”, Caetano Veloso, ao cantar a
palavra Paraíba ao final da seguinte frase:
“Mando um abraço pra ti, pequenina
Como se eu fosse o saudoso poeta,
E fosses a Paraíba”.
um triângulo, instrumento fundamental nos arranjos de forró e baião, começa a ser tocado8 mas não aparece em “primeiro plano”. Esse detalhe do arranjo é parte do jogo: a letra faz
referência à “Paraíba” de Luiz Gonzaga (“O rei do baião”)e Humberto Teixeira, no qual se
canta:
“Hoje eu mando um abraço pra ti, pequenina.
Paraíba masculina, muié macho sim, sinhô.”
Em “samba de uma nota só” acontece um jogo interessante. A letra canta o que acontece
com a linha melódica. Quando se canta:
"Eis aqui este sambinha/ feito numa nota só/ outras notas vão entrar/ mas a base é uma
só",
a melodia é toda tocada na nota ré. Um jogo explícito.
Quanto à percepção musical, José Estevam Gava faz uma afirmativa importante acerca de
João Gilberto, que serve para pensarmos a condição da escuta em geral. Diz Gava que no
“num mundo ‘minimalista’, como é o de João Gilberto, uma pequena diferença é o que
conta. Mas só adquire sentido quando é bem ouvida, com a devida reverência. Por isso
requer atenção e, outra condição básica, silêncio total. Caso contrário, os minúsculos
detalhes cuidadosamente trabalhados se perdem inutilmente, diluem-se em algo
aparentemente repetitivo e monótono” (Gava, 2002 p. 97). Os jogos de João Gilberto
ocorrem, sobretudo, nos aspectos musicais (harmonia, melodia e arranjo).
Isso é importante para destacar duas questões: 1) em quais condições se escuta a canção, e;
2) cada canção requer seu ouvinte modelo.
Podemos perguntar se a canção é um mecanismo preguiçoso, ou então, tão preguiçoso
quanto o texto. A princípio parece que não. Uma pessoa pode entrar em um restaurante e
ser tomada de assalto por uma música, inclusive uma música que não gosta, a qual nunca
escutaria em casa. Mas ela esta sendo tocada, contra a sua vontade. Basta sua faculdade
auditiva para perceber. Ao contrário, pode ser sua música preferida, e então ela ficará
8
Esse arranjo se encontra no disco Prenda Minha de 1999, faixa 4. Importante notar que é muito
comum a mudança de “roupagem” das canções. Nesse sentido ela é muito mais flexível que um texto.
Pode-se cantar uma canção sendo acompanhada por uma orquestra, ou por um violão apenas. Sem
dúvida isso interfere na escuta.
Ouvinte Modelo e Ouvinte Real
77
satisfeita em ouvi-la e lhe dará atenção. Mas como, em um ambiente com "ruídos", alguém
pode realizar o jogo da cooperação?
Nesse momento precisamos nos apoiar em Barthes e dizer que a escuta é um exercício de
“inteligência, isto é, de seleção”. Então o ouvinte pode direcionar sua escuta para uma
canção mesmo em um ambiente ruidoso. Mas, como lembra o próprio Barthes, “se o fundo
auditivo invade todo o espaço sonoro (se o ruído ambiente é demasiadamente forte), a
seleção, a inteligência do espaço já não é possível, a escuta é lesada.” (1990, p. 218) Assim,
é possível escutar canção em ambiente não silencioso, mas a escuta é lesada (o que
impossibilita a cooperação ideal).
Por isso, muitas vezes o ouvinte real, se distancia do ouvinte modelo: a condição de escuta
não é adequada. Ouve-se música no trânsito, enquanto se realiza uma leitura (que exige
atenção), enquanto bate papo, enquanto janta em um restaurante, enquanto bebe em um bar
etc. (Nesses casos parece que a canção desempenha uma espécie de função: uma função de
passatempo prazeroso, ou de “preenchedora” de ‘espaço sonoro’, enquanto outra atividade
é praticada).
Além disso, há uma questão de tecnologia: os alto-falantes mais acessíveis no comércio,
muitas vezes não são adequados para a execução de uma canção - eles tendem a prejudicar
a audição dos sons mais agudos e mais graves.
Ou então, o ambiente ruidoso foi uma opção. Cada canção, pressupõe seu ouvinte modelo
(assim como o texto o seu leitor). O ouvinte modelo de Chico Buarque pode se parecer com
o de Caetano Veloso, que pode se parecer com o de Tom Jobim, ou João Gilberto. Mas
certamente eles são bem distintos do ouvinte de “Festa no apê”, versão do cantor Latino.
Usamos esses extremos para lembrar que se a música, assim como o texto, é apenas a regra
do jogo, o jogo proposto em uma, pode ser completamente diferente do jogo proposto em
outra. Enquanto necessita silêncio para seguir as regras do jogo numa gravação de João
Gilberto, necessita a dança para seguir as regras do jogo de um “funk”, ou de uma “música
axé” executada em cima de um trio elétrico. Cada canção requer seu próprio ouvinte
modelo.
O ouvinte real
Se o ouvinte modelo, como o leitor modelo, são estratégias e ideais de interpretação, não
podemos perder de vista a “lei pragmática”, segundo a qual “a competência do destinatário
não é necessariamente a do emitente” (Eco, 1986, p. 38), e nesse caso podemos pensar no
próprio texto como emitente, e ter em vista sua ilimitada gama de referências possíveis.
Michel Picard diz que o leitor real, e podemos estender ao ouvinte real, é aquele que
“apreende o texto” e a canção (no caso proposto), “com sua inteligência, seus desejos, sua
cultura, suas determinações sócio-históricas e seu inconsciente” (Jouve, 2002, p. 15), e por
esses fatores delimitados. Jouve diz que apesar de Umberto Eco ter feito uma leitura com
“intensidade cooperativa”, “lucidez” e “clareza” da novela “Un Drame Bien Parisien”, é
legítimo questionar se o resultado seria o mesmo de uma outra leitura lúcida, clara e
intensamente cooperativa realizada por outro teórico (2002, p. 48). O mesmo pode ser dito
para uma análise de canção.
78
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
O ouvinte real é, na maioria das vezes, leigo ou amador no que tange aos conhecimentos
musical e literário. Mas isso não impede que a canção seja obra demasiadamente apreciada
– talvez o gênero musical mais consumido atualmente, e certamente o é no Brasil. O
ouvinte, mesmo não especializado, extrai prazer dessa prática.
Nesse ponto queríamos chegar: é preciso possuir mesmo amplos dicionário e enciclopédia
musicais e textuais para ser bom ouvinte? Para extrair prazer?
Como já foi proposto antes, essas seriam condições para ser o ouvinte “modelo” de canção,
mas para ser simplesmente ouvinte não parecem necessárias. Não queremos, no entanto,
fazer a defesa da estupidez. É certo que participa mais do jogo quem conhece melhor as
regras e sabe delas desfrutar. Por conseguinte, como uma canção não é um produto que
surge do nada, ou seja, faz parte de uma história, o conhecedor de canções tem mais
condições de apreciar uma obra do que quem não tem contato com esse tipo de gênero.
Parece viável propor que o ouvinte em geral busque participar do jogo. Sendo ou não
ouvinte modelo (mesmo porque esse não existe – nos termos postos por Eco, nem o autor
real é um receptor modelo!), o que deve ser buscado é a interação, é a cooperação. Mas por
quê? Por que deve? Por que essa obrigação? Arriscamo-nos responder: porque a canção
serve para isso. Ela é uma proposta que só se concretiza no ato da escuta, assim como o
texto só se concretiza no ato da leitura, ela existe porque existe o receptor e quando o
esforço pela sua concretização é maior, mais ela se concretiza, mais largamente, então: ela
se torna “maior”. O tamanho dela dependerá do seu ouvinte. E um dos prazeres do ouvinte
está justamente nesse ato de atualização.
O que postulamos é que um ouvinte atento pode possuir um determinado “senso prático”
(ou um “conhecimento prático”), que o possibilita a apreciação. Ele é capaz de definir
alturas melódicas, ter uma noção da orientação produzida pela harmonia (tensão e repouso,
cromatismo...), reconhecer instrumentos, ter senso rítmico, possuir uma memória auditiva
que o permite fazer comparações etc. A mesma capacidade que as pessoas em geral
desenvolvem para o texto. Ninguém precisa saber o que é um lexema ou um morfema para
aprender a ler. Ninguém precisa ter a definição de semântica para entender o sentido de um
texto.
Tentemos um exemplo para afirmar a possibilidade de escutas musicais sem o necessário
auxílio do conhecimento técnico: a canção “O Extremo Sul” de Zé Miguel Wisnik.
Afirmamos que há uma citação de uma outra canção, uma citação sutil.
Pois bem, o que se exige do ouvinte para que se perceba isso? (como podemos perguntar: o
que se exige do ouvinte para perceber o cromatismo de “Eu Te Amo?”). Talvez a resposta
seja: perspicácia!
Claro que se ele nunca tiver ouvido “Felicidade” do gaúcho Lupicínio Rodrigues, não será
possível tecer relação alguma. Mas um ouvinte perspicaz pode perceber a semelhança na
curva melódica entre esses dois trechos apresentados, sem saber quais notas formam os
intervalos semelhantes. A letra ainda dá a dica da citação para os mais desavisados: “te
amo tanto te chamo tanto / será sempre mais ao sul / ou mais azul / felicidade / o sonho de
viver”.
Ouvinte Modelo e Ouvinte Real
79
O que estamos rodeando, e pensamos como conclusão para a questão do ouvinte real, é o
seguinte: leitor e ouvinte modelos não existem. O que existe são leitores e ouvintes reais,
uns mais arrojados que outros, para os quais o conhecimento técnico é fundamental para o
profundo desfrute de uma obra, qualquer que seja. Mas não podemos afirmar que um
conhecedor de música e texto tenha uma percepção de uma canção necessariamente melhor
do que a do não conhecedor (é bem provável que seja, mas não o é necessariamente), que
um ouvinte seja melhor que um outro. O certo é que o ouvinte capaz de atualizar com
argúcia os jogos propostos pela letra e pela música poderá ter mais prazer que o ouvinte
muito delimitado – e a argúcia não é um privilégio de técnicos.
Ninguém precisa abdicar do prazer da audição por não possuir um extenso dicionário e
enciclopédia musicais.
Podemos fazer por fim, mesmo que superficialmente, um comentário acerca do ouvinte
brasileiro. Essa intenção vem da leitura dos primeiros capítulos do “Dispersa Demanda” de
Luis Costa Lima. Nesse livro, Costa Lima faz uma crítica dura ao sistema intelectual
brasileiro no que tange, sobretudo, à sua formação, e tenta encontrar as causas dos
problemas que ele enxerga na nossa intelectualidade. Segundo ele, a cultura brasileira é
preponderantemente “auditiva”, herança de uma forte cultura oral, mas diferente dela,
porque já possui contato com a escrita, com sistema universitário etc.
A Literatura seguiu por esse caminho, era “cúmplice da oralidade”: “e a maneira de
converter a página escrita em forma oral consistia em oferecer uma leitura fácil, fluente,
embalada pela ritmicidade dos versos iguais (Gonçalves Dias) e pela prosa digestiva (...)
(Lima, 1981, p. 7)”. Assim também os cursos superiores, como o Direito, foram calçados
não na realidade dos fatos, não nas confirmações factuais e sim, baseados no falar bem, nos
artifícios retóricos. Os desdobramentos dessa prática são facilmente identificados nas
tribunas políticas. Costa Lima faz questão de não desmerecer, simplesmente, as culturas
orais. Explica sua crítica ao sistema intelectual “auditivo”: “A base da nossa crítica à
oralidade, entre nós dominante, se baseia no fato de que ela no entanto se dá no interior de
uma civilização da escrita (Lima, 1981, p. 15)”.
Pois bem, talvez isso possa ser aproveitado por um outro aspecto. Essa cultura auditiva
brasileira pode exercer uma influência positiva para o aspecto musical. Não é nada
incomum vermos elogios ao jeito musical do brasileiro, do tino musical, do ouvido do
brasileiro para a música. No Brasil, a canção é marca demasiado forte, às vezes considerada
das melhores do mundo (restringindo ao âmbito da canção popular).
Não são poucos os críticos literários que já salientaram para a força da canção popular no
Brasil. Inclusive, vale lembrar que em quase todos os outros países do mundo, quando se
fala em música popular, pensa-se sobretudo em música folclórica (Carlos Sandroni,9 Philipe
Tagg10). Augusto de Campos no seu “Balanço da Bossa e Outras Bossas” (Campos, 1978)
9
Sandroni, Carlos: “Adeus à MPB”. In: Berenice, C., (Org,) Decantando a República: inventário
histórico e político da canção popular moderna brasileira. Vol. I, Rio de Janeiro, Nova Fronteira/
São Paulo, Perseu Abramo, 2004. Nesse artigo, Sandroni faz uma reflexão sobre o termo MPB e
conclui que ele não é mais eficaz para definir a canção moderna brasileira.
10
Tagg, Philip, “Analisando a musica popular: teoria, método e prática”. In: Em Pauta. Vol. I, n. I.
Pós-graduação em Música, Mestrado e Doutorado, Porto Alegre, 1989. Nesse artigo, escrito pelo
80
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
diz que poesia de qualidade no Brasil depois da década de 60 é encontrada, sobretudo, na
música popular e elege Caetano Veloso e Gilberto Gil como os melhores poetas brasileiros
durante o período que ficou conhecido como Tropicália.
Charles A. Perrone (Perrone, 1998) também fez um longo estudo sobre as letras de músicas
da MPB (sigla hoje em dia um tanto vaga), considerando seu potencial poético. Claro que é
destacado que por mais que uma letra de canção tenha qualidades poéticas, ela não
sobrevive sem a música que a acompanha.
A relevância disso é que pode haver uma relação intrínseca entre a “auditividade” e a
canção. Se o caráter auditivo é tão forte quanto assinala Luis da Costa Lima, ele pode ser
um responsável pela força da canção no Brasil. Canção é transmissão oral, e mais que isso:
é transmissão oral com a preocupação estética, que pode tornar a palavra ainda mais forte.
Se a cultura auditiva se manifesta nas tribunas palacianas, manifesta-se também na canção
de protesto, com voz política mais potente do que muitos discursos ideológicos, e também
na produção de parte da “poesia” brasileira. Dificilmente será negada a qualidade poética
de um Chico Buarque, ou de um Caetano Veloso – para ficarmos no lugar-comum.
Sabemos que esse artigo não dá conta de levar ao fim essa aproximação da teoria de
recepção em literatura com a recepção em música. Inclusive, parece-nos indicar uma
solução para o tema da recepção, a idéia do jogo – que não foi aprofundada, mas apenas
comentada. Outra consideração que não foi feita, é referente às teorias de “emoção em
música”, que em determinado ponto pode assemelhar-se à idéia de prazer.
Seria pretensioso querer mais que uma aproximação em tão poucas páginas. Percebemos
que poderia demandar muito mais trabalho e pesquisa, e consequentemente tempo, para
chegarmos a resultados mais sólidos sobre as questões discutidas. Durante a redação,
muitas questões foram salientadas e muitas não resolvidas. Assim, se há prazer na leitura e
na escuta, e prazer na descoberta, teremos prazer em retomar esse jogo que apenas
iniciamos aqui.
Referências bibliográficas
BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso.Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
BERENICE, C., (Org,) Decantando a República: inventário histórico e político da canção popular
moderna brasileira. Vol.I, Rio de Janeiro, Nova Fronteira/ São Paulo,Perseu Abramo, 2004.
CAMPOS, Augusto. Balanço da Bossa e outras boissas. São Paulo. Perspectiva, 1978.
ECO, Umberto. Lector in fabula. São Paulo: Perspectiva, 1986.
Em Pauta. Vol.I, n.I. Pós-graduação em Música, Mestrado e Doutorado, Porto Alegre, 1989.
GAVA, J. E. A linguagem harmônica da Bossa Nova. São Paulo: Editora UNESP, 2002.
ISER, W. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. São Paulo: Editora 34, 1999. 2v.
JOUVE, Vincent. A leitura. São Paulo: Editora UNESP, 2002.
inglês Philip Tagg, professor de musicologia da Universidade de Montreal, fica bem nítido o que se
entende por música popular para os pesquisadores da Europa e América do Norte.
Ouvinte Modelo e Ouvinte Real
81
KAYSER, Wolfgang. Análise e interpretação da obra literária. Sucessor-Coimbra: Armênio Amado,
1976.
LIMA, L. Costa. Dispersa demanda. Rio de Janeiro: Ed. Francisco Alves, 1981.
Judson G. Lima: Licenciado e Bacharelado em Geografia pela Universidade Federal
do Espírito Santo. Graduando em Educação Musical pela Universidade Federal do
Paraná. Mestrando em Literatura no Departamento de Letras da Universidade Federal
do Paraná
A musicologia histórica: herança e perspectivas
Juliana Noronha Dutra (IA-UNESP)
Resumo: Nesse trabalho propomos uma reflexão sobre os principais paradigmas que
nortearam a pesquisa em musicologia no Brasil, cujas matrizes de pensamento
principais foram o romantismo, o historicismo e o positivismo. A partir dos anos 80
começou-se a elaborar um novo paradigma de pesquisa em musicologia, cujos
contornos apontam para uma abordagem interpretativa e interdisciplinar.
Consideramos que nessa nova abordagem a análise sócio-histórica desenvolvida por
Pierre Bourdieu traz uma valiosa contribuição ao analisar a relação entre produção
musical e seu lugar na economia dos bens simbólicos. Palavras-chave: Musicologia
histórica, positivismo, romantismo, historicismo, Bourdieu.
A visão Romântica
A musicologia constituiu-se como disciplina a partir de 1919, desde então, várias
concepções do que é música e modos de entender o mundo, influenciaram suas práticas de
pesquisa. A concepção do que é música influencia, não só o objeto de pesquisa, mas o
método e as seleções de materiais e fontes. Havendo, portanto, em cada época objetos
priveligiados ou reconhecidamente dignos de pesquisa e outros relegados ao esquecimento.
Entre as visões históricas que mais influenciaram na pesquisa musicológica brasileira, duas
merecem especial destaque e analisa: a visão romântica e o positivismo. Tais influências
não podem ser qualificadas apenas como momentos históricos do desenvolvimento da
musicologia enquanto ciência, mas que perduram até hoje em muitos trabalhos na área, da
mesma forma como ainda persiste no meio artístico a noção de “gênio artístico” como algo
totalmente desvinculado de seu contexto histórico e social. O que revela que nenhuma
corrente de pensamento influenciou tão decisivamente a estética e concepção de arte em
geral como o Romantismo, cujas marcas ainda podem ser notadas na forma como o
imaginário coletivo vê os artistas e na forma como eles próprios vêem a si mesmos.
O Romantismo, que tem início na segunda metade do século XVIII, se contrapõe ao
racionalismo do século XVII e seu desdobramento no Iluminismo que viam na razão a
única fonte legítima de conhecimento. Ele busca no sentimento, na imaginação, na
experiência uma nova maneira de conhecer o mundo e o próprio homem.
No Romantismo o indivíduo encontra o caminho livre para fazer sua interpretação pessoal
da vida. Nesse esforço interpretativo, alguns românticos chegam a dotar a sensibilidade
artística de um poder transcendental, como uma força criadora capaz de ultrapassar as
limitações humanas em direção a um ideal que só pode ser intuído pelo gênio artístico.
Dessa forma, a essência da personalidade romântica é o gênio do artista. Para os
românticos, só a arte é capaz de nos aproximar do indizível, pois nela encontramos algo de
intuitivo, não racionalizado, que nos permite uma aproximação maior com o sentido
profundo das coisas que, muitas vezes, é ocultado pelo conhecimento metódico da ciência.
O gênio seria aquele cuja sensibilidade é capaz de trazer à tona, através da expressão
artística, o sentido profundo oculto para ciência. Shelling afirma que o gênio artístico é a
encarnação do divino no humano.
Esse conceito eterno do ser humano em Deus, como causa imediata de suas
produções, é aquilo que se chama gênio, o “gênio”, por assim dizer, o divino
que habita o ser humano. Ele é por assim dizer, um pedaço da absolutez de
Deus. Por isso, cada artista também só pode produzir tanto quanto esteja
A musicologia histórica: herança e perspectivas
83
vinculado ao conceito eterno de sua própria essência em Deus. Ora, quanto
mais o universo é intuído já nesse conceito por si, tanto mais orgânico é o
artista; quanto mais une a finitude à infinitude, tanto mais produtivo ele é.
(Schelling, 2001, p. 119)
Desse modo, a produção artística é vista como uma emanação de uma força criadora
transcendente e, portanto, como algo dissociado de qualquer influência externa, tais como o
contexto social e histórico em que o artista está inserido. Por contraditório que possa
parecer, o artista é aquele que é capaz de captar o espírito universal dominante de sua
época, mesmo que não tenha o propósito de fazê-lo, pois esse é capaz, por assim dizer, de
sentir “o espírito do tempo” o que explicaria a concordância entre a produção dos “grandes
mestres” e a forma estética dominante em determinada época.
Nas épocas de florescimento da arte é a necessidade do espírito universal
dominante, é a prosperidade e, por assim dizer, a primavera daquele período
que produz, em maior ou menor medida, a concordância universal entre os
grandes mestres, de modo que, como também mostra a história da arte, as
grandes obras surgem e amadurecem muito próximas umas das outras, quase
simultaneamente, como que por um mesmo alento e sob um mesmo sol (...).
(Schelling, 2001, p. 23)
Disso decorre que, para entender uma época e o espírito dominante desta época, deve-se
pesquisar os grandes gênios e suas grandes obras. Assim o estudo das obras artísticas
concentram –se assim sobre as características do autor e de sua grande obra.
Mesmo em termos não tão idealistas o filosofo filósofo Herder desenvolveu uma teoria da
história em que afirma que cada época da história tem um valor próprio e cada povo sua
forma de ser, ou seja sua própria alma, mas, ao mesmo tempo, ao expressarem sua
peculiaridade, atingem algo de universal.
A História, nessa medida, constitui-se desses esforços dos homens que, em
cada época, em cada lugar, e de um modo concreto, buscam tornar-se
Humanität, manifestando-se como povos particulares. Não é o progresso do
homem em geral, mas a sucessão dos povos, cada qual com sua peculiariedade
e força, e que, ao progredirem e atingirem a plenitude, também entram em
declínio: o tempo impede a eternização da plenitude.(Valverde (ed.), 1987, p.
476)
Essa visão de história contribuiu para o sentimento de identidade própria de cada nação,
inspirando o romantismo nacionalista que se interessava sobretudo pela história de seu
povo, sua língua e pela cultura popular.
Historicismo
A chamada “escola historista” ou historicismo, corrente de estudos históricos cujo principal
representante foi Wilhelm Dilthey (1833–1911), apesar de partir de uma matriz bastante
diversa tanto em termos metodológicos como de referencial teórico, também chega a
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Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
resultados próximos aos da abordagem romântica. Ao afirmar que só é possível entender
textos e fatos que aconteceram no passado a partir da própria vivência do pesquisador.
Como já havia observado Vico, “o sujeito que investiga a história é o mesmo que faz a
história”. Nesse sentido, o conceito de vivência ocupa um papel fundamental. Para Dilthey,
a biografia individual é o que permite atribuir um sentido às vivências individuais
asseguradas pelo eu-identidade. Ela permite estabelecer uma conexão entre a vivência
individual e a existência coletiva na medida em que as experiências vitais se desenvolvem
em um processo histórico em que as significações atribuídas individualmente se constituem
a partir de um sistema de referências compartilhadas. Assim o historiador escolhe em cada
época as figuras mais representativas capazes de traduzir em sua biografia individual todo o
sentido daquele período histórico e nessa biografia individual os feitos que seriam os mais
decisivos.
O que surge da vida diária se encontra sobre o poder de seus interesses. O que
se vai derramando continuamente no passado se encontra também
determinado na sua interpretação pelo momento. Há algo terrível nisto em
que, na luta dos interesses práticos, qualquer expressão nos pode enganar e até
a nossa própria interpretação muda pela mudança de nossa postura. Mas
quando, como ocorre nas grandes obras, o espiritual se emancipa do seu
criador, o poeta, o artista, o escritor, entramos em um domínio no qual se
acaba o engano. Nenhuma obra de arte verdadeiramente grande pode, a modo
da relação que aqui impera, e que mais tarde desenvolveremos, simular-nos
um conteúdo espiritual estranho ao seu autor e mesmo nada pretende dizer de
seu autor. Verdadeira em si, se encontra fixada, duradoura, visível, e assim é
possível uma compreensão artística segura dela mesma. Temos, pois, que nas
fronteiras entre o saber e o fazer se estende um círculo no qual a vida se nos
revela em umas profundidades que não são acessíveis à observação, à reflexão
nem à teoria. (Dilthey, 1944, p. 231)
A influência romântica e historicista na musicologia brasileira
Percebe-se a influência da visão romântica e historicista na pesquisa musical brasileira
principalmente nas obras de caráter biográfico de autores consagrados. Através delas o
biógrafo procura captar qual o “espírito da época”, a alma brasileira cuja expressão maior
encontra-se na alma do artista.
Os trabalhos biográficos pouco nos dizem sobre a música em si, mas pretendem mostrar
traços psicológicos do compositor e comparar com o caráter de sua obra. Em um artigo,
Antônio Alexandre Bispo cita um texto de Andrade Muricy, que exemplifica esse
tratamento subjetivo dos escritos sobre música:
Heitor Villa Lobos é o maior pioneiro da sondagem heróica na alma
desconforme, multiforme, do instintivismo, por assim dizer, da infância da
gente brasileira(...) Deverão ser, um dia, estudadas em profundidade as
aventuras vertiginosas desse lançador de sonda no oceano sônico, complexo,
A musicologia histórica: herança e perspectivas
85
desnorteador, de nossa raça, que opõe ao artista e ao pesquisador aparentes
impossibilidades de captação e absorção. (Bispo, 1983, p. 24)
Essa visão subjetiva, muitas vezes tinha a intenção de enaltecer a nação. O nacionalismo
brasileiro estava interessado principalmente nos compositores que conseguiram de alguma
forma expressar o sentimento nacional em suas obras, não se interessando então por
compositores de uma época mais remota por entenderem que no início a música que se
fazia no Brasil era totalmente nos moldes da música européia. Por outro lado, uma grande
contribuição dos nacionalistas à musicologia brasileira foi a de desenvolver a prática da
pesquisa musical das músicas folclóricas brasileiras.
Outra prática recorrente de inspiração historicista é a de pensar a história como um todo
homogêneo em que cada momento histórico deve ser preenchido para que este não tenha
‘descontinuidades’ ou ‘lacunas’. Assim, a tarefa do musicólogo brasileiro seria a de
preencher as lacunas que existem no cânon de obras e autores consagrados. É sob este
pensamento que Luiz Heitor Corrêa de Azevedo escreve:
A música brasileira que o historiador pode apreciar à luz da crítica começa no
século XIX(...) Mas é necessário que as pesquisas para a reconstituição
prossigam ativamente, pois o interesse histórico que apresenta não padece
discussão; e há que contar com as surpresas, que podem invalidar o que acima
ficou dito e trazer à luz obras mais importantes, que façam recuar aquele
marco prematuro, estabelecido, de acordo com os nossos conhecimentos
atuais, para assinalar o início em memórias históricas, mas, também, por
intermédio de realizações dignas de permanência, em nossos programas de
concertos ou outros atos da vida musical contemporânea (Bispo, 1983, p. 27).
Em seu artigo “Descoberta e restauração” Paulo Castagna aponta algumas conseqüências
dessa visão historicista no tratamento de arquivos musicais. Ele descreve o que chama de
visão romântica do pesquisador que se vê como um herói a desbravar os arquivos musicais
em busca de grandes obras do passado ou da música mais remota a fim de recuar o marco
do início da composição musical no Brasil. Nessa visão, o pesquisador trata os arquivos
musicais de forma seletiva, escolhendo segundo seus critérios as obras que merecem ou não
ser preservadas .
Na musicologia “heróica” como denomina Paulo Castagna, “arquivos musicais são usados
apenas como depósitos, nos quais se descobrem obras-primas de grandes mestres do
passado, desprezando-se as demais, elegendo-se cópias ou versões específicas como as
corretas e interferindo-se na partitura sem critérios cientificamente estabelecidos”
(Castagna, 1998, p. 107). Como conseqüência desse procedimento, a compreensão que se
tem da produção musical de cada época histórica é sempre parcial e fragmentada por se
tratar sempre de um recorte realizado de maneira discutível e desvinculado do contexto
social no qual a obra se insere.
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
86
A visão Positivista
A visão positivista, ao contrário da visão historicista, pretende construir uma ciência isenta
de juízos de valor, tendo como modelo as ciências naturais. A relação não é mais de um
sujeito com outro sujeito e sim entre sujeito e objeto. Émile Durkheim considerado o
fundador da Sociologia, inspirado pelos estudos de Comte tenta fazer da Sociologia uma
“física social”. Durkheim pretende tratar os fatos sociais como “coisas”, para que dessa
forma possa afastar-se definitivamente da tradição das ciências do espírito e se aproximar
do modelo das ciências naturais.
Tratar certos fatos como coisas não é, portanto, classificá-los numa ou noutra
categoria do real: é ter para com eles uma certa atitude mental; é abordar o seu
estudo partindo do princípio de que se desconhecem por completo e que as
suas propriedades características, tal como as causas de que dependem, não
podem ser descobertas pela introspecção, por mais atenta que seja (Durkheim,
1983 , p. 76)
Dessa forma, os positivistas pregam o afastamento do pesquisador em relação ao seu objeto
de pesquisa buscando atingir a mesma neutralidade de que gozam as ciências naturais. A
empatia, a proximidade da vivência, buscada pelo pesquisador romântico ou historicista é
vista como algo que deforma e prejudica a análise científica dos fatos. Ao mesmo tempo, o
pesquisador positivista recusa a tentativa de explicar os fatos com base em pressupostos
metafísicos ou noções absolutas, formulando apenas teorias de alcance limitado a serem
complementadas por estudos posteriores. Como afirma o próprio Comte fundador do
positivismo:
Enfim, no estado positivo, o espírito humano, reconhecendo a impossibilidade
de obter noções absolutas, renuncia a procurar a origem e o destino do
universo, a conhecer as causas íntimas dos fenômenos, para preocupar-se
unicamente em descobrir, graças ao uso bem combinado do raciocínio e da
observação, suas leis efetivas, a saber, suas relações invariáveis de sucessão e
de similitude. A explicação dos fatos, reduzida então a seus tempos reais, se
resume de agora em diante na ligação estabelecida entre os diversos
fenômenos particulares e alguns fatos gerais, cujo número o progresso da
ciência tende cada vez mais a diminuir ( Comte, 1983, p. 4).
Garantindo-se o rigor do método, os positivistas acreditam que o conhecimento tenderá a
alargar-se progressivamente em um contínuo, como se o progresso científico não
implicasse, na maioria das vezes, na derrubada de todas as teses em que se acreditava até
então. Os positivistas acreditavam que os fenômenos tanto sociais quanto naturais estariam
regidos pelas mesmas leis gerais e que, através da pesquisa científica, poderíamos reduzir
cada vez mais o número dessas leis e, através delas, unificar todas as ciências, através da
unidade em termos de método de pesquisa, o que implica na indiferenciação entre
fenômenos naturais e fatos sociais.
A musicologia histórica: herança e perspectivas
87
A influência da visão positivista na musicologia brasileira
A influência da visão positivista na musicologia brasileira é bem apontada no artigo de
Alberto Ikeda:
Por fim, no que toca às pesquisas, continuamos regidos marcadamente por
posicionamentos originados no pensamento positivista, no qual, pelo lado
perverso, se preconizava a impossibilidade de se conhecer além dos
fenômenos em si, sem indagações dos porquês, das causas e finalidades dos
fatos sociais e dos aspectos mais reflexivo-compreensivos relacionados aos
fenômenos estudados. Daí é que, quando muito, nas pesquisas musicais, se
procedem a análises internas e técnicas co objeto de estudo (análise
estrutural), que, no entanto, permanece reificado do seu contexto social (ou
histórico social, no caso da musicologia histórica), dificultando a sua
compreensão (Ikeda, 1998, p. 66).
No entanto, a advogada neutralidade do positivismo, isto é, de que você não pode conhecer
para além dos fenômenos em si, se revela como ideologia, na medida em serve como forma
de ocultamento dos critérios e pressupostos na seleção dos fenômenos que são dignos de
serem pesquisados ou não. Na musicologia de orientação positivista, o pesquisador escolhe
os autores e obras que, invariavelmente, coincidem com aqueles já consagrados pela
história tradicional e que são considerados como clássicos da cultura universal. Em geral,
os musicólogos positivistas brasileiros se dedicam ao estudo da música erudita européia
etnocentricamente considerados os maiores exemplos desta cultura universal.
A visão positivista da musicologia influencia também na escolha de fontes para a pesquisa,
pois, considera apenas a grafia da música de preferência aos manuscritos como fonte válida.
Apesar de seus pressupostos, não podemos deixar de reconhecer a contribuição da pesquisa
de orientação positivista na musicologia ao tentar estabelecer critérios de cientificidade e
métodos de pesquisa.
Um novo paradigma na Musicologia histórica latino-americana
Na busca pela autonomia do campo da musicologia brasileira e latino-americana, vários
autores apontam uma mudança de enfoque da disciplina por volta do fim dos anos 80. Esse
novo paradigma se caracteriza pela superação do positivismo por um método mais
interpretativo, como diz Maria Elizabeth Lucas:
Minha experiência docente e de pesquisa tem acolhido sinais de uma guinada
qualitativa no tratamento de certos temas e problemas de investigação da
produção musical brasileira. Caracterizo essa guinada como a da superação
positivista e categórica do fazer científico, para uma postura mais reflexiva e
relativizadora do modus operandi.(Lucas, 1998, pp. 69–70).
Ricardo Tacuchian também percebe essa mudança quando diz:
Dessa forma, inaugura-se uma terceira fase nas pesquisas musicológicas
brasileiras, isto é, uma reflexão interdisciplinar sobre o fato histórico-musical
representado pelo documento exumado e uma análise técnico-estrutural da
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
88
partitura musical. Esta fase interpretativa ou reflexiva da musicologia
brasileira ainda está nos seus primórdios (Tacuchian, 1994, p. 100).
Outros apontam uma mudança metodológica, para acompanhar o desenvolvimento
científico das ultimas décadas do século XX, como propõe Gerardo Huseby:
Especialmente nos últimos anos, a musicologia internacional ha refletido
também os novos ventos que sopram no mundo das idéias. Cada vez mais se
comprova a impossibilidade de trabalhar em compartimentos estanques, e
cada vez mais se percebe a necessidade de abrir-se a interdisciplinariedade, a
enfoques de bases mais amplas e abrangentes. As velhas perguntas se
recolocam à luz dos aportes da sociologia, da antropologia, dos
conhecimentos proporcionados pela lingüística ou da semiologia. Estudam-se
as relações entre o texto e o contexto através de diversos marcos teóricos e
estratégias metodológicas (...) não podemos permanecer à margem das
correntes de pensamento contemporâneas (Huseby, 1995, p. 22).
O novo paradigma que se apresenta à musicologia brasileira está em desenvolvimento, o
que torna precoce a tentativa de estabelecer quais as técnicas e abordagens que lhe são
características. Porém, esse novo jeito de fazer musicologia, já tem uma configuração
suficiente que nos permite elencar algumas mudanças:
1
∑
novos objetos de pesquisa – ao deixar de privilegiar exclusivamente como objeto
de pesquisa as grandes obras dos grandes mestres do passado, a nova abordagem
da musicologia se depara com várias partituras, muitas vezes anônimas em
arquivos pouco explorados e catalogados. A pesquisa desses materiais, dentro
desse novo enfoque musicológico, levam a novas suposições de como eram as
atividades musicais do nosso passado.
∑
novas fontes de pesquisa – além das fontes musicais dos arquivos musicais como
já dito, muitas vezes não catalogados, pouco explorados e muitas vezes sob perigo
de extinção1, a nova musicologia utiliza também com mais freqüência outras
fontes extra musicais , que portanto podem dar a pesquisa informações
importantes de como era a vida musical de uma determinada época, comunidade,
grupo, etc; ou até sobre o desenvolvimento do pensamento musical por um
período. Essas novas fontes podem ser periódicos , revistas musicais , jornais ,
ordem de pagamento para músico etc.
∑
novas questões – A questão posta pela musicologia até então era o que as grandes
obras e os grandes compositores diziam de sua época. Na nova abordagem
musicológica várias perguntas se colocam:. Qual o cenário musical de cada
Sobre o tratamento dos arquivos musicais e sua situação ver: Conclusões e Recomendações do I
Colóquio Brasileiro de arquivologia e Edição Musical. I Colóquio Brasileiro de Arquivologia e
Edição Musical, Mariana, 18-20 jul. 2003. Anais. São Paulo, s.n. 1995. pp. 148–159.
A musicologia histórica: herança e perspectivas
89
época? Quais as relações entre diferentes grupos de músicos em uma determinada
sociedade?
∑
enfoque multidisciplinar – para se responder as novas questões que a
musicologia atual se propõe, torna-se necessário se valer da contribuição de outras
disciplinas como a sociologia e a antropologia cultural que nos ajudam a entender
melhor as relações sociais e os conflitos de classe no qual a produção artística se
desenvolve, assim como o ambiente cultural de uma determinada época.
∑
não hierarquização sobre esses elementos- a maior característica desse novo
enfoque musicológico é a não hierarquizações dos objetos de pesquisa e das
fontes. Tanto na musicologia de orientação romântico-historicista como na
positivista, autores e obras eram hierarquizados segundo um padrão um tanto
arbitrário de importância histórica. Hoje o importante é compreender a produção
de uma época em seu conjunto, em sua trama interna de influências recíprocas.
Musicologia e contexto histórico-social
Os estudos em musicologia, como foi visto, tiveram várias maneiras de abordar a pesquisa
musical, as pesquisas biográficas de caráter subjetivo desenvolvidas dentro de uma visão
historicista; o tratamento seletivo de arquivos a fim de se “descobrir” as peças que
preencheriam as lacunas do cânon das grandes obras e artistas que refletiram o “espírito de
uma época” ou análise interna e técnica da música reificada de seu contexto social.
Frente à insuficiência dessas abordagens, tem-se buscado nos últimos tempos uma mudança
metodológica nos estudos de musicologia. Essa nova abordagem nos leva a crer que a
pesquisa musicológica não pode ser desvinculada do aspecto histórico e social. Nesse
sentido, as ciências sociais, em particular a antropologia e a sociologia da cultura, podem
oferecer uma contribuição significativa como referencial teórico e metodológico. A
pesquisa de Pierre Bourdieu sobre a economia das trocas simbólicas traz importantes
contribuições nesta perspectiva.
Bourdieu afirma que a história da literatura tradicional, assim como acontece também na
musicologia, ainda resiste a analisar os autores e obras sociologicamente, querendo analisálos em si mesmos. Tal apreensão tem em vista tratar uma individualidade “criadora” cuja
“originalidade deliberadamente cultivada parece propícia a suscitar o sentimento da
irredutibilidade e a reverência” (Bourdieu, 2004, p. 183). Dessa forma, a tradição positivista
permanece presa a ideologia romântica do “gênio criador”.
Tais obstáculos à compreensão de um artista ou obra são também uma fonte para o
sociólogo interpretar a ideologia que está por trás disso e que é capaz de revelar qual é a
posição do artista na estrutura do campo intelectual, que, por sua vez, está incluído em um
campo político e em uma determinada posição na fração intelectual e artística.
É só na era romântica em que a biografia do escritor vira ela mesma uma obra de arte e
tenta dessa forma estabelecer uma comunhão entre a “pessoa” do leitor e a “pessoa” do
90
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
criador. O objetivo de tal culto romântico da biografia é parte integrante de um
“mandarinato intelectual” fundado “nos princípios de um aristocratismo da inteligência e de
uma representação carismática da produção e da recepção das obras simbólicas” (Bourdieu,
2004, p. 185). Para Bourdieu são esses os princípios que engendram ainda hoje a
representação que os intelectuais possuem do mundo social e de sua função no mundo.
Também é ainda a orientação romântica que predomina na análise das obras desvinculandoas do contexto social. Portanto, a tarefa a que Bourdieu se propõe é a de analisar por que se
constituiu esse determinado corpus e qual sua posição no campo do poder e no campo
intelectual.
Para se realizar um estudo da produção cultural e artística, Bourdieu considera que três
passos metodológicos são fundamentais que mantêm entre si uma relação de ordem tão
estrita como os três níveis da realidade social que apreendem:.
Primeiramente, uma análise da posição dos intelectuais e dos artistas na
estrutura da classe dirigente(...) Em segundo lugar, uma análise da estrutura
das relações objetivas entre as posições que os grupos colocados em situação
de concorrência pela legitimidade intelectual ou artística ocupam num dado
momento do tempo na estrutura do campo intelectual.(...)O terceiro e último
corresponde à construção do habitus como sistema das disposições
socialmente constituídasque, enquanto estruturas estruturadas e estruturantes,
constituem o princípio gerador e unificador do conjunto das práticas e das
ideologias características de um grupo de agentes. (Bourdieu, 2004, p. 191).
Dessa forma, a primeira coisa que o pesquisador deve analisar é qual o papel da produção
musical e da produção de bens simbólicos em geral na sociedade capitalista.
Para que seja possível romper com a problemática tradicional (...) a condição
básica consiste em constituir o campo intelectual (por maior que seja a sua
autonomia, ele é determinado em sua estrutura e em sua função pela posição
que ocupa no interior do campo de poder) como sistema de posições
predeterminadas abrangendo, assim como os postos de um mercado de
trabalho, classes de agentes providos de propriedades de um tipo determinado.
Tal passo é necessário para que se possa indagar não como tal escritor chegou
a ser o que é, mas o que as diferentes categorias de artistas e escritores de uma
determinada época e sociedade deviam ser do ponto de vista do habitus
socialmente constituído, para que lhes tivesse sido possível ocupar as posições
que lhes eram oferecidas por um determinado estado do campo intelectual e,
ao mesmo tempo, adotar as tomadas de posição estéticas ou ideológicas
objetivamente vinculadas a estas posições ( Bourdieu, 2004, p. 190).
Por exemplo segundo Bourdieu a produção erudita, compreendida dentro do campo dos
bens simbólicos, cumpre a função de assegurar a conservação e a transmissão seletiva dos
bens culturais e dos consumidores dispostos e aptos a consumi-los. O consumo dos bens
simbólicos necessita de instrumentos de decodificação desses bens. Portanto, as obras de
arte erudita derivam sua função de distinção social da raridade dos instrumentos destinados
A musicologia histórica: herança e perspectivas
91
ao seu deciframento, como por exemplo, através do acesso às instituições escolares e
também das disposições para adquirir tal código como ser de uma família de músicos.
Desse modo, a escola é um veículo de reprodução dos meios de consagração da cultura
erudita.
A escola não cumpre apenas a função de consagrar a “distinção” – no sentido
duplo do termo – das classes cultivadas. A cultura que ela transmite separa os
que a recebem do restante da sociedade mediante um conjunto de diferenças
sistemáticas: aqueles que possuem como “cultura” ( no sentido dos etnólogos
) a cultura erudita veiculada pela escola dispõe de um sistema de categorias
de percepção, de linguagem, de pensamento e de apreciação, que os distingue
daqueles que só tiveram acesso à aprendizagem veiculada pelas obrigações de
um ofício ou a que lhes foi transmitida pelos contatos sociais com seus
semelhantes. (...) Falar em cultura popular é acreditar que o sistema dos
esquemas que constitui a cultura (no sentido subjetivo) das classes populares
poderia ou deveria, em condições que nunca são especificadas, constituir-se
em cultura ( no sentido objetivo) objetivando-se sob a forma de obras
“populares” capazes de exprimir o povo de acordo com os esquemas de
linguagem e pensamento que definem sua cultura ( no sentido subjetivo).(...)
Logo, não se pode desconhecer o fato de que a cultura popular define-se, em
sua essência, como se estivesse privada da objetivação e até da intenção de
objetivação que define a cultura erudita (Bourdieu, 2004, pp. 221–222).
Assim se constitui duas categorias de bens simbólicos: a arte erudita destinada às pessoas
que adquiriram as disposições para compreendê-la, e a arte média, produto da indústria
cultural, destinada a um público “médio” que é socialmente heterogêneo.
Os produtos da indústria cultural utilizam-se de recursos imediatamente acessíveis, em
busca da rentabilidade e da extensão máxima do público. Por sua vez, a arte erudita por se
destinar a um público reduzido e contar, muitas vezes, com a subvenção do Estado, pode
fazer experimentos de vanguarda que poderão ser apropriados pela arte média por seus
resultados já testados e garantidos. Assim a arte média é sempre subsidiária da cultura
erudita, pois qualquer inovação poderia por em risco o contato com o grande público, por se
tratar de um efeito ainda não testado. Disso decorre que a arte média é sempre uma cópia
mais acessível da cultura legítima.
Bourdieu explica que não se pode falar propriamente de uma cultura popular porque
enquanto a cultura da classe dominante é transmitida na escola e encontra sua
complementação fora dela como cultura erudita, a cultura popular é desprovida de ambos.
Assim para que possa existir uma cultura popular deveria haver uma forma de produção de
obras “populares” capazes de exprimir o povo de acordo com esquemas de linguagem e
pensamento que definem sua cultura. Mas isso equivaleria, segundo Bourdieu, “a exigir ao
povo que tome de empréstimo à cultura erudita a intenção e os meios de expressão (como
fazem os escritores populistas, burgueses ou trânsfugas) a fim de exprimir uma experiência
estruturada segundo os esquemas de uma cultura (no sentido subjetivo) que, por definição,
exclui tal intenção e tais meios” (bourdieu, 2004, p. 221)
92
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Porém, ao pesquisar a história da produção cultural dos países da América Latina, em
particular do Brasil, podemos perceber em inúmeros casos que técnicas e inovações da
música partiram de práticas de uma cultura popular como no caso da modinha e do choro.
A dinâmica da produção cultural não se restringe às categorias de arte média e arte erudita.
Existem espaços de produção cultural que não são rentáveis o suficiente para serem
absorvidos pela indústria cultural e tampouco transmitem o status simbólico de que goza a
cultura erudita. É possível que nesses espaços se desenvolvam formas de produção artística
muito mais ligadas a expressão cultural de grupos dominados não reificados pelo sistema de
cultura legítima.
Ao levar esse fato em consideração, a musicologia história não pode ter como objeto de
estudo apenas a música erudita, mas sim todas as expressões musicais de cada época e suas
inter-relações. Dessa forma, os estudos em musicologia devem não tanto focar uma obra ou
autor, mas o conjunto da produção musical em uma determinada época como expressão no
campo simbólico das contradições sociais e da forma como os homens pensam e vivenciam
essas contradições.
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A musicologia histórica: herança e perspectivas
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Institudo de artes da UNESP, mestranda do programa de pós-graduação em Música da
UNESP sob a orientação do Prof. Dr. Alberto T. Ikeda.
Música eletroacústica e um novo escutar musical
Maria Cristina Dignart (UFG), Anselmo Guerra de Almeida (UFG)
Resumo: Ao utilizar recursos de fixação e processamento sonoro como estratégia
composicional, a música eletroacústica traz uma nova problemática: a questão da
escuta. Ao utilizar materiais que focam a interioridade do som esta forma
composicional trouxe conseqüências irreversíveis para o pensamento musical como
um todo. O presente artigo discute novos conceitos e a nova visão para a escuta que a
trazidos com o surgimento da música eletroacústica. Palavras-chave: Música
eletroacústica, escuta e Escuta Reduzida.
Introdução
A música eletroacústica, desde seu surgimento na década de 1950, trouxe consigo questões
relacionadas a estratégias composicionais que vieram refletir no processo histórico da
música como um todo. Durante anos, simpatizantes da linha Musique Concrète (França) e
os que seguiram a linha da Eletronische Musik (Alemanha), trouxeram à tona discussões
que propiciaram novos meios de realização e vinculação de obras musicais. Tanto a
utilização de sons gravados em diversos ambientes, manipulados e estruturados em estúdio,
quanto a busca da criação e recriação de sons e timbres através de síntese eletrônica foram
incorporados ao conjunto de possibilidades do compositor contemporâneo. E a fusão destes
elementos de natureza distinta gerou basicamente o conceito atual da música eletroacústica.
Esta tendência tem como característica principal o rompimento com a supremacia dos
parâmetros altura e duração, propondo assim, uma nova categoria de escuta, que busca uma
percepção da interioridade dos dados sonoros que trouxeram novos conceitos instaurando
um novo pensar, fazer e ouvir musical.
Boa parte dos estudos relacionados à análise da música contemporânea dedica sua atenção
às músicas conduzidas pelos parâmetros regentes da musica tradicional – altura, duração,
dinâmica e timbre – enquanto suportes para as análises que se apóiam na representação
gráfica em partitura.
Ao utilizar recursos de fixação e processamento sonoro como estratégia composicional, a
música eletroacústica traz uma nova problemática: a questão da escuta no processo
analítico. A escuta musical toma um sentido bem profundo nesta forma composicional, por
esta não possuir o elemento referencial de origem – o instrumento, no sentido tradicional -,
e ainda por não possuir uma notação gráfica objetiva. Caesar (2000) a esse respeito afirma
que “o novo arsenal de ferramentas ocupava um espaço privilegiado, cuja suficiência
poderia prescindir daquilo que de mais próprio a música tinha - seu canal específico - a
escuta”. Por não ser registrada graficamente, mas sim, gravada, esta música irá trazer um
desafio mais intenso para o órgão principal que conduz a atividade musical: o ouvido. O
importante é o som por ele mesmo, as suas relações com outros e a construção temporal
desse discurso musical, tornando inviável o uso da notação tradicional. Varèse (1936, p. 58)
acerca deste abandono de notação impulsionado pela implantação dos instrumentos
elétricos cita: “E aqui é curioso notar, como ao início de duas outras eras – a alta Idade
Média e a nossa era primitiva [...] – que nos defrontamos com o mesmo problema: o de
encontrar uma simbologia gráfica apta a transformar em som o pensamento do compositor”.
Desta maneira, a escuta será vista neste contexto como ponto de partida da análise.
Com a nova fase digital de composição eletrônica, outras possibilidades estão se abrindo no
âmbito da composição onde o desafio da escuta permanece e defronta-se com as formas de
articulação do sonoro apresentados nesta maneira de criação musical. O fenômeno da
música em meios eletrônicos trouxe novas possibilidades de combinação rítmicas e
sonoras, oferecendo assim, uma nova visão da criação musical, dotada de uma diferenciada
Música eletroacústica e um novo escutar musical
95
estética que na maioria das vezes não é compreendida pelos apreciadores de música
tradicional.
Devido à falta de registro gráfico tradicional, existe aqui a dificuldade na descrição da
experiência auditiva, pois neste contexto de criação não há uma grafia clara que sirva de
subsídio para o trabalho analítico, então voltamos à questão da escuta como base de
diagnósticos dos signos presentes neste fazer musical, além da dificuldade encontrada na
descrição do material utilizado que muitas vezes não está previamente distribuído em
sistemas intervalares. Sobre isso Caesar (1994) ressalta que “a ausência de notação - e
conseqüentemente de um átomo elementar, uma unidade mínima - está na base mesma da
especificidade da música eletroacústica: sua irredutibilidade. Não se pode reconstituir uma
obra eletroacústica a partir de sinais gráficos, mas, mais do que isso, falta a ela qualquer
ponto de apoio que permita análises objetivas [grifo nosso]”.
Uma das primeiras tentativas de implantar subsídios para a descrição da experiência
eletroacústica surgiu do compositor Pierre Schaeffer a partir da publicação da sua obra
intitulada Tratado dos objetos musicais (1993) em 1966. Neste livro foram discutidas
formas de trabalhar e classificar o que ele denominou os objetos sonoros e musicais.
Instaurando novos conceitos relacionados à percepção dos eventos sonoros que compõe
uma obra musical. Para essa classificação, foi proposto o exercício da “escuta reduzida”,
que, sugere um tipo especial de atenção musical aos sons: uma ferramenta para avaliação
dos objetos sonoros.
O presente trabalho tem o objetivo de abordar a escuta como principal eixo de condução
para uma apreciação analítica que procura não se utilizar o padrão tradicional instaurados
ao longo da história da música, fundamentando-se nos conceitos trazidos pelo compositor
Pierre Schaeffer, que foi um dos pioneiros a discutir a questão do ouvir como forma de
análise da música eletroacústica.
Novos conceitos
A presença cada vez maior de tecnologias na produção musical contemporânea evoca
questões que se fazem presentes desde a década de 50, quando surgiram as primeiras
vertentes de criação musical em meios eletrônicos. A música eletroacústica tornou possível
que o compositor trabalhe seu material de forma direta criando seus próprios sons em sua
peça. Assim, o envolvimento com o material musical tornou-se muito mais imediato, sendo
oportuno na época em que o serialismo era considerado uma forma de viagem objetiva de
descoberta científica em música.
Duas grandes vertentes de produção musical em meios eletrônicos trouxeram à superfície
técnicas exclusivas que influenciaram a música atual, sabe-se que o corte entre as vertentes
francesa e alemã – conhecidas como musica concreta e música eletrônica, respectivamente
– deveu-se basicamente às diferentes origens dos sons utilizados por ambas (gravados vs.
sintetizados). Em conseqüência dessa diferença, cada uma dessas escolas teria optado por
abordagens do trabalho de composição distintas: o determinismo da escrita, para os de
Colônia, em oposição à complexidade dos sons gravados, para os de Paris.
Essas vertentes, e suas técnicas deixaram algumas discussões estéticas internas que
surgiram em sua época e ainda persistem hoje no discurso musical. O compositor Pierre
Schaeffer – que liderava a corrente parisiense – a partir da publicação de seu Traité des
objets musicaux (Tratado dos Objetos Musicais), em 1966, discutiu novos conceitos que
foram adotados ou reformulados pela música eletroacústica atual e por outras vertentes
musicais contemporâneas. Abordagens como as formas de se trabalhar e qualificar os
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
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objetos sonoros e musicais, bem como a maneira ideal de se ouvir e entender esse tipo de
linguagem musical, e a nova noção de instrumento musical foram novos conceitos
propostos por Schaeffer que se encaixam em toda e qualquer música, e alguns destes serão
discutidos neste artigo.
O objeto sonoro
O trabalho de Pierre Schaeffer veio trazer não apenas um novo mundo sonoro e musical,
mas também, através de suas conceituações intermináveis indagações que originaram
inquietações sempre experimentadas por muitos compositores e estudiosos de música. Seus
conceitos até hoje são importantes ferramentas para análise e temas para discussões em
cima de uma visão mais íntima para com o fenômeno musical.
Um dos conceitos amplamente discutido e adotado pelos compositores é o que vem a ser o
objeto sonoro. No seu Tratado dos Objetos Musicais, Schaeffer, busca essa definição
lidando com a percepção do sonoro e do musical, decompondo a experiência musical em
alguns quadros e categorias de conceitos. O compositor propõe essa conceituação através
da experiência de uma escuta atenta aos sons, e que ao escutá-los, deve-se desligar qualquer
referência que não seja exclusivamente pertinente às características internas deste som.
Palombini (1999) acerca da nova conceituação Schaefferiana de objeto sonoro coloca que
este:
não é um produto estético, mas uma prática significante; não é uma estrutura,
mas uma estruturação; não é um objeto, mas um trabalho e um jogo (...); não é
um grupo de signos fechados, mas um volume de traços em deslocamento;
não é a significação, mas o Significante; não é a velha obra musical, mas o
Texto da Vida.
Inicialmente antes de definir propriamente o objeto sonoro, Schaeffer começa discutindo o
que não é, e a primeira afirmação é a de que um objeto sonoro não é o instrumento tocado,
pois ele defende que para escutarmos o objeto musical devemos abdicar da função causal
do instrumento, ele reforça dizendo que:
a distinção que desejamos estabelecer entre ‘instrumento’ e ‘objeto sonoro’ é
ainda mais radical: se nos for apresentada uma fita sobre a qual está gravado
um som cuja origem somos incapazes de identificar, o que é que estamos
ouvido? Precisamente aquilo que chamamos de objeto sonoro,
independentemente de toda referencia causal, designada pelos termos de
corpo sonoro, fonte sonora ou instrumento. (Scheffer, 1993, p. 87).
Mesmo que materializado pela fita magnética, o objeto tal como Schaeffer busca definir,
não está tampouco sobre a fita, a fita não é nada mais nada menos que um suporte sonoro,
ou sinal acústico. Daí surge a próxima afirmação do autor: o objeto sonoro não é a fita
magnética, mas sim, apenas relativo à escuta . Sem a escuta de um determinado ouvinte,
estes sons passam a ser apenas sinais físicos fixados em um meio material, pois somente a
escuta é que dará contas do resultado perceptível, necessário para a identificação do objeto
sonoro. E, através das possibilidades de manipulações na fita, é possível a modificação e até
a criação de novos objetos, mas não é este fato que definirá o objeto sonoro, mas sim a
percepção que o ouvinte terá deste, pois existe na verdade “uma ‘correlação’ entre as
manipulações que se infligem a uma fita ou às suas diversas condições de leitura – as
condições da nossa escuta e o objeto percebido” (Schaeffer, 1993, p. 87).
Por ser fruto da percepção, o objeto sonoro tem a aparência de estar fundamentado apenas
na subjetividade de um indivíduo. Entretanto, o autor coloca que apesar de existir uma
variação de percepção de um indivíduo para outro, ele não se modificará. Nota-se que
Música eletroacústica e um novo escutar musical
97
Schaeffer busca o conceito de objeto sonoro em cima de uma percepção apurada sobre a
matéria escutada, para ele o objeto sonoro irá existir quando for completado, ao mesmo
tempo materialmente e individualmente uma redução rigorosa na escuta, ou seja, não se
deve restringir apenas às informações dadas pelo ouvido, não se procura mais obter
informações do evento sonoro (como sua fonte, sua altura precisa, por exemplo), mas sim é
o próprio som em sua essência é que deve ser “observado”.
Deve-se ter em mente - segundo essa teoria proposta por Schaeffer – que o objeto sonoro
pode possuir as propriedades fundamentais de outros objetos percebidos (como o agente
produtor do som, por exemplo), então é “preciso reconhecer, que em um som, é mais fácil
confundir o objeto percebido e a percepção que dele tenho” (Schaeffer, 1993, p. 244), ou
seja, a percepção é algo particular do indivíduo, mas o objeto sonoro não modificará ao ser
apresentado a diferentes ouvintes.
Outro ponto que deve ser colocado em questão é a relação do objeto sonoro com o sinal
físico. Schaeffer defende que o sinal físico não é sonoro em sua essência, pois se deve levar
em consideração o que é captado pelo ouvido. Para a física o conceito deste objeto é
relacionado com as normas e sistemas de referência desta, e a percepção deve ser
fundamentadas em suas grandezas particulares (deslocamento, velocidade, pressões, etc.).
O físico considera que o objeto sonoro não passa de um sinal mensurável, e assim ele acaba
por colocar o sinal físico no começo das análises, e a audição virá posteriormente, o que
contrariará o que Schaeffer quando diz que “é o objeto sonoro, dado na percepção que
designa o sinal a ser estudado, e que não se poderia, portanto, cogitar de reconstruí-lo a
partir do sinal” (Schaeffer, 1993, p. 245).
Schaeffer, ainda coloca que para escutar o objeto sonoro é necessário abdicar de qualquer
referência a alguma fonte que este pode trazer, ou seja, devemos renunciar ao
condicionamento criados por hábitos anteriores. Para essa percepção é necessário voltar à
experiência auditiva, recapitular as impressões, para ser possível encontrar informações
sobre os objetos sonoros, e não a sua fonte.
Tipologia e morfologia do objeto sonoro
Ao se estabelecer uma definição para o objeto sonoro, surgiu a preocupação se ordenar
critérios auxiliares para uma escuta da música, especialmente a feita com as novas
tecnologias. Com a música eletroacústica surgiram alguns problemas composicionais e
analíticos, só poderiam ser passados adiante através da descrição da escuta. Seus conceitos
baseiam-se em grande parte em cima de uma escuta atenta aos sons com o objetivo de um
relato mais apurado das características ou traços distintivos da experiência musical,
buscando uma análise diferente do que a proposta da análise tradicional.
Através da experiência de fragmentação e repetição de um objeto sonoro fixado em um
meio, Schaeffer, volta sua atenção ao som em si, como já dito anteriormente, abdicando da
preocupação com causa sonora, para voltar-se ao objeto, passar a ouvi-lo de outra maneira,
pela escuta reduzida, que será comentado mais adiante.
Ele coloca que de tanto manipular os sons tão diversificados, chegou à seguinte conclusão:
“primeiro foi a necessidade de renunciar toda classificação musical prematura. Mas foi
preciso também, por falta de critério musical, comparar os sons em função das
características banais [...]: eles tinham um começo um meio e um fim” (Schaeffer, 1993, p.
328). Desta forma, surgiu a necessidade de uma morfologia comparativa, pois uns sons
possuíam a característica de serem mais harmoniosos que outros, e essa comparação surgiu
da decomposição do som em três partes: seu ataque, seu corpo e sua queda. E esta seleção
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Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
não podia ser feita, a não ser segundo diferenças morfológicas. E vale lembrar que na visão
schaefferiana, é mais importante e prioritário constatar e compreender o aspecto
morfológico e tipológico do objeto sonoro, do que descrevê-lo, prematuramente por
intermédio de uma notação.
A morfologia surge do exame de efeitos e comportamento através do tempo do objeto
sonoro. Já a tipologia surge do confronto das coleções de sons, dos quais, na intenção de
identificá-los, não se detém mais do que as características mais gerais deste som. Assim, a
morfologia tende a uma qualificação do sonoro enquanto a tipologia está relacionada à
necessidade de identificação os objetos.
Depois de renunciado a todas as referências do objeto, resta então em uma análise,
compará-los entre si, de todas as formas possíveis em seu contexto e suas organizações,
isso seria a atividade da morfologia. Enquanto a tipologia é o ato de separar estes objetos e
identificá-los, e estes são feitos a partir de dados morfológicos.
Na procura de uma caracterização do objeto sonoro, Schaeffer propõe levar da prática de
corpos produtores de som, uma musicalidade universal através de uma técnica de escuta – a
escuta reduzida -, esta é a proposta do denominado Solfejo dos objetos musicais.1 E para a
realização deste solfejo são necessárias fases que compreendem: uma etapa preliminar,
quatro operações e um epílogo ou síntese. Na etapa preparatória, ou etapa preliminar, os
corpos sonoros heterogêneos são colocados em vibração por processos variados e os sons
resultantes são registrados. Na primeira operação que é a da Tipologia, objetos são
extraídos de contínuos sonoros e selecionados ou descartados de acordo com uma tendência
que ele coloca como sendo musical, ou seja, faz-se uma triagem dos objetos que conduzem
à determinação de seu tipo; na segunda fase, a da Morfologia, os objetos selecionados são
comparados, os critérios de percepção que os compõe são nomeados e os objetos são
qualificados enquanto amostras destes critérios; na terceira etapa, o denominado interlúdio
arqueológico, interações de critérios são identificadas no âmbito de um objeto sonoro dado,
sendo então referidas a um evento produtor de som; na quarta, a da Análise, os objetos que
elucidam os critérios são confrontados com os campos perceptivos das alturas, das durações
e das intensidades, a fim de se estabelecerem escalas cardinais (absolutas) ou ordinais
(relativas) de critérios. No epílogo, ou síntese, tem-se a intenção de se produzir novas
músicas baseadas em estruturas de referência dadas pelos critérios de percepção.
A partir da escuta atenta é que se delineia os critérios da morfologia do objeto sonoro – o
qual Schaeffer coloca como sendo potencialmente musical, ou seja, passíveis de emergir
como valores musicais no contexto de estruturações.
Estes critérios, também são denominados critérios de percepção os quais o autor
estabeleceu dois tipos: os critérios de forma e os critérios de matéria. Os critérios de forma
descrevem evoluções temporais sobre o fundo dos critérios de matéria. Estes são separados
como perfis: melódico - em relação às modificações na altura -, dinâmico - em relação à
intensidade - e os de massa em relação ao conjunto das intensidades e dos componentes do
espectro de um som. Já os critérios de matéria têm a função de descrever as qualidades
imediatas, espaciais, dos sons e da massa: sua densidade, espessura e complexidade (em
oposição à “tonicidade” dos sons de espectro harmônico dos instrumentos musicais);
avaliando ainda o timbre harmônico existente em determinadas massas.
1
Jean-Claude Risset (in Menezes, 1996, p. 185) define os Solfejo dos objetos musicais, de Schaeffer,
como sendo uma “cartografia” do domínio sensível que permite a referência de qualquer objeto
sonoro no espaço de sons percebidos, consistindo no que ele chama de um “esboço metódico”
suscetível de esclarecer e de nortear uma procura de correlações entre as particularidades do som e os
critérios da sensibilidade.
Música eletroacústica e um novo escutar musical
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Existe na região que está entre forma e matéria ainda dois outros critérios, que são: o grão,
que descreve a experiência que fica na fronteira entre pulso espaçado - aspecto temporal - e
diferentes rugosidades ou outras qualidades quase palpáveis - aspectos espaciais - da
massa; e a allure, que seria um modo de “andar” do objeto sonoro, em outras palavras,
modos ondulatórios de se mover no tempo, tais como o vibrato (de altura), o tremollo
(dinâmica) e ainda uma allure de massa.
Poderia haver ainda outras maneiras de descrever do sonoro ao musical como recorrer a
analogias, como as que usamos diariamente, por exemplo “som agudo”, “penetrante”,
“ácido”, “tenso”, etc; mas Schaeffer condena o uso de analogias para o descrever sonoro,
defendendo que esta “apenas traduz a profunda dificuldade em que nos encontramos para
descrever o objeto em si, fora de toda estrutura” (Schaeffer, 1993, p. 388).
Conhecidos as categorias e funções do objeto, cabe ao compositor impor limitações
pertinentes para se trazer à luz tal ou qual mecanismo ligado a essas classificações é próprio
para o ato musical, pois localizar o critério é uma coisa, outra coisa é calibrá-lo, esta
consiste em uma tarefa mais complexa. O compositor deve ter uma primeira atitude de
explorador, para assim se tornar conhecedor desses critérios e categorizações, para que se
conceba uma obra dotada de grande originalidade e autenticidade. E para reforçar esta
questão, pertinentemente Schaeffer afirma:
o progresso musical se dá talvez por tal preço: talvez a meta de um compositor
inteligente não devesse mais ser a de uma casualidade elíptica que o levasse
diretamente à obra, ele deveria optar pelo âmbito estreito [...] de um exercício
preparatório. [...] É no nível do solfejo que propomos a abordagem
experimental, pré-condição de uma inspiração musical autêntica e realista.
(Schaeffer in Menezes, 1993, p.159).
Um novo escutar musical
A escuta musical toma um sentido bem profundo no que diz respeito à música atual, e na
música eletroacústica essa questão é amplamente discutida por esta não possuir o elemento
referencial de origem, e ainda por não haver uma notação gráfica objetiva.
Parece que a partir de um momento da história da música, a escuta, tão importante no ato
musical, de certa forma, mudou seu foco, tendo ela não mais o caráter primordial de
análise. Com o processo de representação sonora através da notação musical, o ouvir foi
sacrificado no sentido analítico de percepção do sonoro. Sobre esta questão Gubernikoff
(1997) afirma:
A composição musical, [...] só pode partir da escuta, sem a qual os conceitos
de som e de música, e, conseqüentemente, o de tempo, não existiriam.
Entretanto, o estatuto da escuta no ato de compor é um tema que está longe de
ser equacionado e recebe uma nova potencialização a partir da opção da
música culta pela notação musical. [...]. Com a notação musical rompeu-se a
relação direta e contígua entre a escuta e a composição.
Parece um tanto quanto bizarra a afirmação de que a música admitiu que a audição,
qualidade principal da existência musical, estivesse deixada de lado como questão. A
escrita aparentemente trouxe uma mudança de foco para a escuta na música. Praticamente
abdicou dos procedimentos reguladores baseados na memória e na improvisação, que
constituem um princípio da prática musical tradicional. Mas, ao contrário, por consistir num
aspecto na exterioridade em sua base, a escritura musical exige uma organização lógica
prévia.
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
100
A música eletroacústica a partir do seu surgimento, trouxe então de volta esta questão do
escutar como principal recurso analítico, que até então a música havia de certa forma dado
uma menor atenção em relação à escrita durante muitos séculos, por ser a grafia musical um
principal suporte de análise. Sua elaboração com novos materiais e matérias no interior do
som, trouxe conseqüências irreversíveis para o pensamento musical. As novas tecnologias
ainda não se tornaram capazes de apontar modelos de análise determinantes e objetivos
para descrever, ou de qualquer outra forma representar as obras dessa nova música. Essas
novas ferramentas para a composição ocuparam um espaço privilegiado e suas habilidades
trouxeram a possibilidade de voltar a atenção àquilo que de mais próprio a música tinha, o
seu canal característico - a audição.
Schaeffer, como já mencionado ao longo deste artigo, foi o responsável pelas primeiras
tentativas de sistematizar aportes para a escuta de músicas feitas com as novas tecnologias.
Seu trabalho era motivado pela inquietação em buscar contribuições que levassem a um
conhecimento mais profundo da música. Suas pesquisas eram desenvolvidas sob a visão de
que a música deve permanecer em seu território como uma arte para ser “escutada” por um
sujeito “ouvinte”.
Com o desenvolvimento da música em meios eletrônicos, surgiram problemas com os
novos meios de realização sonora, pois os resultados finais solicitavam conhecimentos para análise e para síntese – que até então não eram discutidos pela teoria tradicional. Não
sendo suscetível de notação gráfica de partituras tradicionais, esta música dependia
unicamente do ouvido para ser apreciada e analisada. Havia então, a necessidade de uma
nova linguagem para sua descrição. O material, na música eletroacústica, não é de natureza
discreta, ou seja, não está previamente distribuído em sistemas intervalares. Ele pode ser
analisado na sua natureza física, mas, a análise não estará em seqüência com a imagem
sonora produzida na percepção. Esta série de rupturas, de não causalidades, entre o som e
sua origem, o gesto que o originou, é responsável pelo grande esforço em encontrar um
repertório de equivalências que dêem conta da complexidade sonora e composicional da
música eletroacústica. Por este fato, Pierre Schaeffer assumiu esta nova problemática pelo
caminho que lhe era mais pertinente, o da escuta orientada com seu projeto mais
ambicionado, o de uma comunicação universal.
As quatro escutas
Na busca de uma escuta significativa dos objetos sonoros e musicais, e em busca do seu
conceito de “escuta reduzida”, Schaeffer propõe a teoria de quatro funções para esse ouvir
mais atento: o ouvir; o escutar; o entender e o compreender.
1.
Escutar: Trata-se do processo de captar os sons exteriores e dirigir-se a eles por
eles. Nas Palavras do autor: “não é forçosamente interessar-se pelo som. Pode-se
dizer mesmo que só excepcionalmente é interessar-se por ele, pois por seu
intermédio, visa-se outra coisa” (Schaeffer, 1993, p.93). Por exemplo: um
indivíduo ao escutar sons de vozes fora do recinto em que se encontra, tem a
capacidade de as situar, calcular a distância, ou então distinguir se são vozes de
crianças ou adultos, se estão brigando ou tendo uma conversa alegre, ou seja, fazer
uma descrição rápida com algumas informações. O escutar então terá o objetivo
principal de entender melhor um evento sonoro atingido pelo ouvido, e através da
apreensão instantânea do som, busca-se visar algo além dele mesmo que seria uma
“natureza” que este som apresenta no conjunto da percepção.
Música eletroacústica e um novo escutar musical
101
2.
Ouvir: É o perceber do ouvido, porém de uma forma diferente do escutar que se
refere a uma atitude mais ativa, o que se ouve é aquilo que é dado na percepção,
em outras palavras: “não é ‘ser tocado por sons’ que chegam ao meu ouvido sem
atingir minha consciência. Só em relação a ela é que o fundo sonoro adquire uma
realidade” (Schaeffer, 1993, p. 91). Este é o caso de sempre pela reflexão ou pela
memória, torna-se possível tomar consciência de uma ambiência sonora. É situar,
relacionar e fazer seleções dos dados ouvidos. Exemplificando: um sujeito ao
ouvir o toque do relógio, sabe que ele tocou através da reconstituição no
pensamento de toques escutados anteriormente, e através deste toque situa-se as
horas. Se não houvesse a intenção de se saber as horas, o toque escutado não seria
relacionado aos toques anteriores que informaram o horário.
3.
Entender: Ter uma intenção sobre algo, neste caso o som apreendido. Captar um
sentido. Aplicar o ouvido para buscar uma interpretação do dado sonoro, dar
atenção. Para ilustrar: ao participar de uma conversa com diversas pessoas, o
indivíduo passa de um locutor a outro conforme seu interesse, sem se dar conta da
mistura de vozes, risadas e ruídos que envolvem o ambiente. E Schaeffer (1993,
p.89) complementa acerca do entender: “dirigir o seu ouvido para, por onde,
receber a impressão de sons”.
4.
Compreender: Assim como o entender, significa captar um sentido, porém com a
diferença que o compreender tem o sentido de “tomar para si”. Segundo Schaeffer
(1993, p. 96): “Eu compreendo pelo êxito de um trabalho, de uma atividade
consciente de espírito, que não se contenta mais em acolher uma significação, mas
abstrai, compara, deduz, relaciona informações de fontes e naturezas diversas.
Trata-se de precisar a significação inicial, ou extrair uma significação
suplementar.” Exemplificando: Ao participar de uma conversa, um sujeito entende
o que o interlocutor expõe, porém com uma análise dos fatos colocados por ele, o
sujeito saberá se a conversa é verdadeira ou não. O ato de compressão então, irá
combinar com uma atividade da escuta: todo o trabalho de dedução, de
comparação, de abstração, é conduzido em um patamar além do conteúdo do ato
de entender. Compreende-se o que é apontado na escuta, graças ao que foi
selecionado para entender. Mas reciprocamente, o que já foi compreendido é o que
vai conduzir a escuta e irá informar aquilo que se entende.
Em outras palavras poderíamos definir cada processo da seguinte maneira: Escutar trata-se
do gesto de dar atenção aos objetos sonoros captados pelo ouvido; ouvir é estabelecer
relações de semelhança entre significante e significado;2 entender é instituir relações de
causalidade entre estes significantes e significados a aplicar intencionalmente um sentido a
eles. Compreender é o promover relações simbólicas; porque ouvir, escutar, entender e
compreender são acepções de entender – em relação ao significado etimológico que é o de
“ter a intenção de”. Desta forma, Schaeffer definiu a palavra entendre no sentido de: ouvir,
escutar, entender e compreender com a consciência de uma intenção.
Ao definir estas funções, foi proposto o que ele denomina “balanço funcional do ouvido”,
onde sugere que nosso ouvido possui um caminho de percepção em etapas. Mas sua
intenção é a de - numa finalidade metodológica - descrever os objetivos que correspondem
a funções da escuta, e não a de decompor a escuta em uma seqüencialidade cronológica de
acontecimentos que procedem uns dos outros como os efeitos decorrem de causas.
2
Significante aqui é visto como parte física ou material que representa qualquer signo; e o significado
é o valor representativo do signo (Objeto em sua essência).
102
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Este balanço funcionará da seguinte maneira: primeiro, recebe-se a mensagem energética
revelada pelo som (escutar), então se tem a percepção bruta deste evento sonoro (ouvir),
então virá um momento de apreciação e seleção relacionadas a experiências passadas e
intenções dominantes (entender), e por fim, essas percepções se referenciarão em um
conjunto de conhecimentos com o intuito de chegar a uma significação abstrata em relação
ao objeto (compreender) (Fig. 1).
4.
1.
compreender
escutar
3.
2.
entender
ouvir
FIG. 1. Representação do balanço funcional do ouvido
É necessário ter em mente que “não se deve inferir das nossas divisões e numerações nem
uma cronologia nem uma lógica, a que se devesse conformar o nosso mecanismo
perceptivo” (Schaeffer, 1993, p. 101).
A escuta reduzida
Preocupado com a problemática da escuta instaurada pela música eletroacústica, Pierre
Schaeffer buscou uma metodologia de análise dos fenômenos sonoros que fosse baseado
pricipalmente no ato de ouvir. Esta análise se dava pelo processo perceptivo dos dados
qualificáveis dos sons, em oposição aos dados notáveis da partitura tradicional. E através do
que denominou escuta reduzida, o autor procurou identificar os aportes da escuta através da
descrição os objetos sonoros. Estes aportes da escuta foram identificados pela descrição dos
objetos sonoros através da escuta reduzida. E este conceito abriu a porta para uma crescente
vitalização dos modelos de escuta na música de um modo geral. Sobre a escuta reduzida
Caesar (2000) diz que o modelo “gerou diversos desmembramentos que hoje arborizam os
saberes da música e de sua escuta. Depois da música em si, como obra, esses
conhecimentos têm sido o maior aporte das tecnologias recentes, mesmo quando acontecem
a despeito de seus instigadores”.
A proposta schaefferiana trata-se de uma nova escuta fenomenológica dos tipos e
morfologias sonoras fundamentando-se nos conceitos e formulações de Edmund Husserl. A
escuta reduzida então consiste em exercitar a escuta dos objetos sonoros desligando
Música eletroacústica e um novo escutar musical
103
qualquer referência que não seja exclusivamente pertinente às características internas deste,
esta afirmativa é baseada na “redução fenomenológica” de Hursserl – daí advém o nome
“escuta reduzida”.
Na tentativa de descrição deste experiência, o autor coloca que o objeto é o pólo de
identidade inerente às vivencias particulares3 do indivíduo que o percebe e, no entanto
transcendente em sua identidade que ultrapassa essas vivencias particulares, ou seja, o
objeto percebido não se confunde de forma alguma com a sua percepção, é necessário por
“entre parênteses” sua relação com o mundo exterior, e perceber o “objeto em si” mesmo,
sem sua referencialidade exteriores – neste caso o instrumento gerador do som. É o que
Husserl chama de epoché, que é o “colocar entre parênteses”, isto é, desvencilhar o objeto
do mundo e percebê-lo em sua essência.
Assim, através desta escuta especializada é que encontramos o objeto sonoro, fruto da
epoché. Primeiramente é necessário renunciar às formas tradicionais de percepção, é
indispensável buscar esvaziar a consciência dos conteúdos habituais e rejeitar índices e
valores que orientam a percepção de qualquer indivíduo, ou seja, uma suspensão de
relações simbólicas e indiciais (como referências ao solfejo tradicional e à fonte ou à
causalidade do som).
Desta maneira, este processo implicará em uma escuta com um caráter autêntico de análise,
e este exercício de redução do campo perceptivo por eliminação das origens mecânicas ou
referenciais dos sons consistirá em enumerar nos mesmos, apenas suas características
conforme a redução fenomenológica. Os sons são apreciados quanto às suas texturas,
densidades de massa, perfis melódicos, dinâmicos, etc – critérios de percepção
mencionados anteriormente.
O exercício da escuta reduzida se resume então, à construção de uma escuta generalizada e
integral, a escuta que não só ouve e escuta, mas entende e compreende à conclusão do
processo.
Conclusão
Alguns compositores e teóricos acreditam ser um erro projetos para análise de obras de
música eletroacústica, por esta não possuir critérios de análises práticos instituídos pelos
parâmetros de percepções tradicionais. O ouvir analítico da música eletroacústica porém
nos remete a uma experiência única no contato mais íntimo com a obra. Através da atenção
voltada aos eventos sonoros em si, há uma certa obrigação em estabelecer uma relação mais
íntima com a música. Ao mesmo tempo, torna-se difícil esse contato, devido ao
condicionamento adquirido ao longo do processo de aprendizagem musical, que busca
auxílio nas características mensuráveis do som, critérios estes estabelecidos pela prática da
escritura musical. Porém este processo trata de uma experiência singular, por estabelecer
uma relação extremamente próxima ao fenômeno sonoro/musical em si.
Novos conceitos são adotados ao se perceber a interioridade do som, e o exercício da escuta
reduzida, proposto por Schaeffer, pode ser considerado uma abertura para uma escuta
generalizadora, onde se busca voltar a atenção para efeitos mais amplos e conseqüências
conceituais radicais derivadas da diversidade desse universo qualitativo e não quantitativo
do evento sonoro, chamando a atenção para a necessidade de re-direcionamento do foco
analítico para a escuta.
3
É através do que ele denomina como unidade de intenção, ou atos de síntese que o objeto se dirige à
essas vivencias.
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Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Referências bibliográficas
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recente”. In: I Colóquio de Pesquisa e Pós-Praduação, Anais, Rio de janeiro: UFRJ, 2000.
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Federal do Rio de Janeiro, 1994. Disponível em http://acd.ufrj.br/lamut/lamutpgs/mel.htm>
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GUBERNIKOFF, Carole. “Escuta e Eletroacústica: composição e análise”. Debates. Rio de Janeiro:
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Eletroacústica: histórias e estéticas. São Paulo: USP, 1996.
Maria Cristina Dignart é graduada em Educação Musical pela pela Universidade
Federal de Mato Grosso, onde concluiu o seu curso em 2004. No ano de 2005
ingressou no mestrado em música na Universidade Federal de Goiás na linha de
pesquisa Composição e Novas tecnologias, onde está com o projeto de dissertação em
andamento “Processos Composicionais na Música Eletroacústica”, sob a orientação
do professor. Dr. Anselmo Guerra de Almeida. Anselmo Guerra de Almeida é
formado em piano pelo Conservatório Musical de Santos/SP. Concluiu curso de
Composição e Regência no IAP/UNESP em 1986. Em 1992 concluiu mestrado em
Ciência da Computação/UnB, na linha de pesquisa em música computacional. Foi
pesquisador visitante na Universidade da Califórnia em San Diego/EUA no período
letivo de 1995/6, como parte de seu doutorado. Concluiu na PUC-SP a tese:
"Ambientes Interativos de Composição Musical Assistidos por Computador”, em
julho de 1997. Em setembro do mesmo ano tornou-se professor da EMAC/UFG. Foi
coodenador do Mestrado em Música entre 1999 e 2001. Em 2000 criou os
Laboratórios de Pesquisa Sonora da EMAC (LPqS), que coordena até a data atual. É
vice-presidente da Sociedade Brasileira de Música Eletroacústica.
Fatores do desempenho e realização músico-instrumental. Relações
interdisciplinares
Maria Bernardete Castelan Póvoas (UDESC)
Resumo: Nesse trabalho são apresentados aspectos sobre fatores do desempenho que
intervêm na prática instrumental, mais especificamente, força, fadiga, flexibilidade,
rapidez de movimento e coordenação motora. Busca-se estabelecer relações entre os
fatores em destaque e a ação pianística, visando à eficiência do trabalho técnicoinstrumental. Vêm sendo agregados argumentos interdisciplinares para o
desenvolvimento de uma consciência anatômica e cinesiológica dos membros
superiores em conexão com a prática, resultado sonoro e a manutenção da saúde das
estruturas anatômicas ativas durante o trabalho instrumental. Correlações entre
argumentos e situações específicas de treinamento pianístico permitem antecipar que
há benefícios na prática de recursos técnico-instrumentais que consideram aspectos
inerentes a fatores do movimento humano. Palavras-chave: ação pianística; fatores do
desempenho; prática instrumental; técnica; interdisciplinaridade.
Introdução
Esta investigação é um recorte da pesquisa "Fatores do Desempenho e Ação Pianística Uma Perspectiva Interdisciplinar" cujo foco é o estudo de determinados fatores do
desempenho (movimento) que intervêm na prática pianística, mais especificamente, força,
fadiga, flexibilidade, rapidez de movimento e coordenação motora. Tem sua origem em
argumentos apresentados por Póvoas (1999) e como referencial os pressupostos de Rasch
sobre o desempenho humano, este entendido como “a expressão de vários componentes
denominados fatores do desempenho” (Rasch, 1991, p. 183–193).
Entre seus objetivos estão: investigar e discutir sobre os fatores em destaque e suas
implicações na utilização de recursos técnico-instrumentais, estabelecer relações entre
aspectos a eles inerentes e a ação pianística1 com vistas à eficiência do trabalho técnicoinstrumental e discutir sobre implicações que a utilização das relações levantadas, na
prática, têm no desempenho. O movimento é considerado o elemento-meio da atividade em
foco cuja ação físico-motora está sujeita à intervenção de vários fatores e,
conseqüentemente, aspectos a eles relacionados interagem na atividade instrumental.
A revisão bibliográfica tem por base pressupostos teóricos interdisciplinares. Integra
abordagens da área pianística e de áreas que tratam de questões referentes ao movimento
humano, a citar, cinesiologia, biomecânica e ergonomia. São discutidos procedimentos para
o desenvolvimento de uma consciência anatômica e cinesiológica dos membros superiores
em suas relações com a prática, resultado sonoro e a manutenção da saúde das estruturas
anatômicas mais ativas durante o trabalho instrumental objetivando a otimização do
desempenho. As áreas que tratam do movimento humano como meio de produção de uma
atividade seguem a tendência de buscar uma melhor compreensão dos fenômenos
envolvidos na interdisciplinaridade. Esta permite uma maior abrangência dos recursos
teóricos e práticos alicerçados tanto na funcionalidade dos recursos já disponíveis quanto
nos resultados de novas investidas e experimentos específicos.
Resultados de estudo piloto (experimento biomecânico), realizado em etapa anterior desta
pesquisa, apontam para o aprofundamento das relações entre questões técnico-instrumentais
e aspectos mais específicos a cada um dos fatores em estudo. Neste sentido, estão sendo
1
Ação pianística: atitude criativa e interpretativa construída através do processamento das questões
envolvidas na música selecionando, coordenando e realizando tanto os elementos da construção
musical que constituem e caracterizam cada obra quanto os movimentos que possibilitam esta ação
(Póvoas, 1999, p. 81).
106
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
avaliadas conexões teóricas entre os fatores de desempenho pesquisados e a aplicabilidade
de argumentos levantados, na prática instrumental. Um segundo experimento deverá ser
realizado utilizando-se a cinemetria, método quantitativo de avaliação do movimento em
que são usados equipamentos para a medição de parâmetros do movimento como trajetória
e deslocamento nas coordenadas x, y e z.
Para esta apresentação, foi construída uma proposta de trabalho sobre uma situação
específica de prática para a realização musical de um exceto da Sonata No. 5 de Sckriabin,
compassos 47 a 56. No planejamento da trajetória do movimento foram consideradas
questões técnico-musicais relacionadas a aspectos inerentes aos fatores do desempenho, em
conexão com a aplicação dos ciclos de movimento (Póvoas, 1999).
Ação pianística e fatores de desempenho. Aspectos teóricos e discussão
A prática pianística é uma atividade que tem como meta a produção sonora. Para a
obtenção de um resultado sonoro adequado a determinado trecho musical é essencial que
haja controle a potência de movimento a ser aplicada. Assim, a potência muscular é
definida como o produto da força e velocidade (Nigg; Herzog, 1994), havendo uma relação
de causa e efeito entre força e flexibilidade. Na biomecânica, “os parâmetros
codeterminantes do decurso do movimento, [como] impulsos de força a serem coordenados
na ação motora” (Meinel, 1987, p. 2), são considerados dentro do conceito de coordenação.
Os parâmetros que indicam a potência de movimento a ser aplicada durante a realização de
um determinado trecho musical são determinados, entre outros aspectos, pelo design
musical. Para que se estabeleça uma correta aplicação desta potência, é essencial que o
pianista controle tal processo (Schmidt & Wrisberg, 2001).
De acordo com Rasch (1991, p. 183), “qualquer desempenho pode ser formal ou
informalmente analisado para determinar seus componentes em termos de fatores gerais ou
específicos. Uma vez identificados tais fatores, pode-se formular programas de
desenvolvimento ou treinamento”. Segundo Rasch (1991) e Hall (1993), a força pode ser
classificada como força dinâmica, estática e explosiva, sub fatores que podem ser separados
e “desenvolvidos de modo diferencial”. Assim, o satisfatório desenvolvimento deste fator
depende, significativamente, do repouso entre períodos de atividade, havendo também
relação entre o tempo de manutenção e com a velocidade de ativação muscular. Força e
velocidade são definidas pelas relações existentes entre a força máxima muscular e a taxa
de mudança instantânea de comprimento. A força muscular tem, portanto, relação com a
velocidade de encurtamento, ao comprimento e ao tempo de ativação de um músculo
(Rasch, 1991; Hall, 1993). Outra maneira de definir força “é dizer que ela é um empurrão
(compressão) ou uma tração (tensão)” (Lehmkul,1989, p. 28).
O uso inadequado da força é destacado por Meinke (1998) como a causa mais comum de
problemas músculo-esqueléticos em músicos. Dentro desta perspectiva, para que haja uma
correta aplicação de força e conseqüente preservação destas estruturas, deve-se ter,
previamente, uma concepção do resultado sonoro que se espera produzir ao executar um
trecho musical. Quanto ao controle do movimento e regulação da potência (força) a ser
aplicada, de acordo com o resultado sonoro desejado, o professor de instrumento exerce o
papel de orientador de uma tarefa em que o planejamento do treinamento e a avaliação
permanente de resultados são estratégias essenciais no processo de desenvolvimento das
habilidades específicas de uma ação.
Contudo, a obtenção um bom resultado sonoro não pode ser atribuída somente à potência
de movimento. Aspectos de natureza diversa, envolvidos na prática pianística, devem ser
levados em consideração durante o trabalho. Por esta razão e para se alcançar uma maior
Fatores do desempenho e realização músico-instrumental
107
eficiência da uma ação com resultados ótimos (Meinel, 1987), a busca por um equilíbrio
entre o uso de força com outros parâmetros, deve ocorrer. Este conceito se aplica à ação
pianística quando se pretende que os movimentos adequados ao design da obra, ou de
partes da obra em estudo, sejam organizados e realizados em função de uma sonoridade
prevista. Desta forma, a “razão do movimento” deve determinar quais os procedimentos
mais eficazes para que a relação causa - efeito sonoro seja otimizada. Tal condição pode ser
o resultado da conexão entre a realização da técnica, e aqui se inclui o equilíbrio entre a
aplicação da força, a real necessidade de energia que o texto musical requer que seja
despendida e o tempo de treinamento ou prática instrumental.
Um dos fatores do desempenho que está diretamente associado à resistência muscular é a
fadiga. Assim sendo, o estudo sobre causas e efeitos da fadiga na atividade humana é de
interesse para a área pianística. Entre as definições de resistência, uma delas diz que “a
resistência é a capacidade de realizar o mesmo trabalho durante um período de tempo [e] a
fadiga é definida como uma falha em manter a força necessária ou esperada de contração
muscular” (Lehmkul & Smith, 1989, p. 115). Segundo os autores, uma atividade muscular
prolongada pode levar a conseqüências que incluem “a acumulação dos produtos das
reações químicas que diminui a velocidade das reações subseqüentes”. Assim, a realização
de tarefas exaustivas pode resultar em fadigas musculares que são, mais precisamente, o
produto do ácido láctico acumulado no sangue e nos músculos devido ao trabalho físicomuscular além do limite saudável.
Quanto ao efeito da fadiga em termos bioquímicos, o relaxamento de um músculo depende
da disponibilidade de adenosina trifosfato (ATP) e, igualmente, do nível de oxigênio e
nutrientes adequados para prover este músculo de ATP e mantê-lo apto para responder, por
um período mais longo respostas de baixa freqüência de tetania, ou seja, contraturas dos
membros superiores. Assim, para que o músculo possa sintetizar a ATP, esta freqüência
deve ser baixa a uma taxa suficiente para manter a taxa de quebra de ATP durante a
contração (Nordin & Frankel, 2003).
A informação acerca da fadiga muscular pode ser obtida quando, depois de determinado
número de repetições, há uma redução de tenção máxima (torque) de um grupo muscular. A
fadiga de um grupo muscular pode ser causada por falha de um ou mais mecanismos
neuromusculares que participam da contração muscular (Fox, 1993) e a ausência de
contração voluntária pode ocorrer devido a falhas do nervo motor, da junção
neuromuscular, do mecanismo contrátil e do sistema nervoso central. Entre as falhas
relacionadas ao sistema nervoso está a incapacidade de retransmissão dos impulsos
nervosos para as fibras musculares. Assim sendo, a habilidade do músculo de exercer
tensão durante um período de tempo é a resistência muscular. Nela, a tensão pode ser
constante ou variável e “fatigabilidade é o oposto da resistência [e] quanto mais rápido um
músculo fadiga-se, menor é sua resistência” (Hall, 1993, p. 71).
Se a fadiga dentro do mecanismo contrátil pode ser causada pelo acúmulo de ácido láctico
no sangue e nos músculos, a recuperação deste estado para um de não fadiga depende da
remoção do ácido e o tempo de remoção pode variar dependendo da forma de repouso. A
que se considerar, também, que a fadiga está diretamente relacionada aos princípios da
amplitude de movimento e de recuperação que pode ser acelerada durante pausas de
repouso por meio de massagens e movimentos ou exercícios de alongamento (Rasch,
1991). Fox (1993) chama de repouso-recuperação a recuperação que consiste em um
repouso total, ou seja, a completa ausência de exercício durante o tempo de descanso. O
chamado repouso-exercício é aquele no qual a recuperação é acompanhada de exercícios
leves, como o também chamado “esfriamento” para o atleta. Este mesmo argumento pode
ser altamente válido na prática pianística. Segundo Fox, “o acido láctico é removido mais
108
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
rapidamente durante o exercício-recuperação do que durante o repouso-recuperação”. (Fox,
1993, p. 40).
É no período de repouso que ocorre uma restauração ou reparo acompanhado por uma
supercompensação que deve elevar a capacidade do indivíduo para um novo nível de
resistência física e mental. Conforme o princípio do treinamento excessivo relacionado,
sobretudo, com o desenvolvimento da força e energia, um estado de fadiga crônica pode
acarretar alterações tanto morfológicas como psicológicas (Rasch, 1991). Assim sendo, o
treinamento a intervalos além de prevenir a fadiga pode eliminá-la.
Perrot (in Rasch, 1991) sugere cuidados para se evitar a fadiga, entre eles: eliminar
movimentos desnecessários, fazer uso da gravidade para a realização do trabalho e
posicionar o corpo o mais confortavelmente possível para que grupos musculares possam
trabalhar adequadamente. O estudo de aspectos ergonômicos, em relação ao piano, também
pode ajudar na prevenção da fadiga. Por exemplo, o banco do piano deve estar a uma altura
que permita manter o cotovelo paralelamente ao teclado e os pés apoiados no chão, e a uma
distância que permita a livre movimentação do tronco diante do teclado.
O conhecimento acerca das causas e as conseqüências da fadiga, são de extrema utilidade
para músicos instrumentistas, no sentido de prevenir contra danos causados pelos excessos
atividade muscular. Como em toda a atividade físico-muscular, na ação pianística a
manutenção da energia está relacionada à resistência, e esta à intensidade do trabalho e à
duração de realização da tarefa e o tempo e/ou a intensidade do trabalho são determinantes
durante o treinamento e na avaliação dos resultados (Lehmkuhl e Smith, 1989). Desta
forma, o espaço de tempo entre sessões de treinamento deve ser suficiente para dar tempo
ao organismo de se recompor fisiologicamente e suficientemente freqüente para permitir o
desenvolvimento da habilidade (Rasch, 1991; Magill, 2000).
Flexibilidade é um termo qualitativo usado para representar os arcos de movimento
presentes em uma articulação2 em diferentes direções. (Hall, 1993, p. 86). A associação
entre flexibilidade e o desempenho motor depende da atividade praticada. Segundo
Farinatti (2000, p. 92), “uma síntese das pesquisas na área apontaria para a noção de que
atletas teriam padrões de mobilidade estreitamente associados ao ato motor executado
habitualmente”. Na ação pianística busca-se o desenvolvimento de flexibilidade com o
objetivo de evitar lesões e de facilitar movimentos de abertura dos segmentos. Dentro da
perspectiva de otimizar a ação pianística, embora a flexibilidade permita um melhor
aproveitamento de força, velocidade e coordenação, os excessos de movimento e de tensão
devem ser evitados (Kaplan, 1987). Neste sentido, posições articulares extremas podem
comprometer a fluência ou continuidade do movimento e ocasionar um quadro álgico.
Levando-se em conta que “em geral apenas uma amplitude média, que evita uma posição
articular extrema, possibilita uma forma econômica de trabalho da musculatura” (Meinel,
1964, p. 163), pressupõe-se que, para a prática pianística, a utilização da amplitude média
durante a execução da maioria dos movimentos, consiste em um grau de flexibilidade mais
adequado. É necessário desenvolver ou manter um nível mínimo de flexibilidade,
considerando-se que, durante a ação pianística, os movimentos dos segmentos são
realizados nos eixos x, y e z.
Uma flexibilidade mínima é necessária, mas o excesso de flexibilidade não é aconselhável.
Um quadro de hiperflexibilidade leva a uma diminuição da estabilidade muscular e
2
Articulações são conjuntos de elementos, anatomicamente definidos, que fazem ligações entre os
ossos. As articulações do membro superior, diartroses, são amplamente móveis e permitem ao corpo
mover-se.
Fatores do desempenho e realização músico-instrumental
109
ligamentosa, gerando um limitado controle corporal, má coordenação e menor capacidade
de percepção corporal (Voigt, 2002). A hiperflexibilidade pode ser genética ou adquirida
através de supertreinamento. Porém, mesmo nesses casos, há um certo grau de genética
envolvido (Farinatti, 2000; Voigt, 2002). Para haver equilíbrio, um bom programa de
treinamento deve aliar um trabalho de força ao treinamento de flexibilidade, uma vez que
um músculo trabalhado resulta em diminuição da flexibilidade (Voigt, 2002).
Existem diversas técnicas de alongamento, que se dividem em alongamento estático (sem
movimento, mantendo a posição de alongamento) ou dinâmico (com movimento, pode ser
denominado balístico, quando os movimentos forem livres), sendo que podem ser
executadas de formas diferentes. Vários autores concordam que o alongamento estático
seria o mais seguro e eficiente em relação à prevenção de lesões. Fernandes, Marinho et.
al. (2002) explicam que a menor chance de lesão neste tipo de alongamento deve-se à
menor atividade dos fusos musculares em comparação com o alongamento dinâmico e há
menor chance de ocorrência de dor muscular. Os benefícios deste tipo de alongamento vêm
do tipo de técnica que é lenta e produz maior relaxamento do músculo, permitindo um
alongamento adicional, além de diminuir a fadiga muscular (Amaral, 2001). O método
estático com uma movimentação lenta até o limite de desconforto e a posterior manutenção
da postura parece ser o mais difundido pela sua facilidade de aplicação, aprendizado,
menores riscos de lesões e eficiência (Viveiros de Castro e Simões, 2001).
A prática de alongamentos é um procedimento indicado na atividade pianística,
anteriormente ao início da atividade, como aquecimento, durante o treinamento e ao final
do trabalho. O desenvolvimento da flexibilidade é possibilitado através de exercícios de
alongamento, cuja prática ao início do treinamento pianístico é essencial para aliviar a
tensão muscular. Os músculos da extremidade do membro superior recebem menos sangue
porque os vasos sangüíneos são pequenos, fazendo os músculos pequenos ainda mais
vulneráveis a lesões. Músculos são compostos de fibras individuais e um pequeno músculo
depende de relativamente poucas fibras para realizar um movimento. A prática de um
instrumento musical faz extrema demanda aos músculos pequenos e somente dois minutos
de alongamento podem auxiliar, enormemente, a circulação sanguínea dos tecidos corporais
e os músculos da periferia do corpo (Bruser, 1997).
O alongamento distende os tecidos de cicatrização ajudando a realinhar as fibras
musculares e as fibras de colágeno do tecido conjuntivo circundante na direção da tensão e
previne retrações musculares incapacitantes. (Amaral, Gomes et al, 2001, p. 39). Porém, os
mesmos autores advertem que uma técnica inadequada ou um excesso de estiramento
poderão provocar microrupturas musculares predispondo a acidentes. Geoffrey afirma que
“os exercícios de alongamento possuem um papel preventivo e importante, preparam a
musculatura, favorecem a recuperação de lesões e permitem evitar problemas tendinosos,
musculares articulares e circulatórios”. (Geoffroy, 2001, p. 17). Farinatti (2000), porém,
lembra que as lesões são desencadeadas por fatores múltiplos e que é difícil discernir
relações de causa e efeito com base nos dados disponíveis pelo componente do acaso, pelo
fato de que as exigências em termos de flexibilidade variam para cada atividade e,
finalmente, que a flexibilidade considerada nas pesquisas é a flexibilidade passiva, não a
dinâmica, usada na atividade esportiva. Tais informações se adaptam à atividade pianística.
Quanto à utilização de exercícios de alongamento como aquecimento para tais atividades,
há controvérsias. Num estudo de Murphy (in Castro e Simões, 2001), o método estático
contribui para o aquecimento geral, sofrimento muscular, prevenção de lesões e melhoria
da performance e a opinião crítica a essas observações são discutidas em função do
pequeno aumento da temperatura corporal, que parece insuficiente para proporcionar um
aquecimento geral do organismo e diminuir os riscos de lesões, sendo ainda um método
110
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
com quase nenhuma velocidade de movimento que pouco favoreceria o sistema circulatório
e o relaxamento. Exercícios de alongamento anteriormente à prática pianística vêm sendo
praticados com o objetivo de preparar as estruturas do membro superior para um esforço
maior e gerar uma maior consciência corporal e sensação do movimento.
Para Pereira (in Voigt, 2002), exercícios de flexibilidade não devem ser realizados
momentos antes de competições, pois a flexibilidade excessiva pode ser tão prejudicial
quanto à falta de flexibilidade. Pode haver risco de lesão “devido a uma instabilidade
articular causada pela deformação dos ligamentos”. Os ligamentos, por serem componentes
plásticos, “não retornam à sua forma original, promovem [o] relaxamento da musculatura
envolvida no trabalho de flexibilidade, diminuindo a capacidade de esses músculos e
ligamentos atuarem como estabilizadores das articulações” (Pereira in Voigt, 2002, p. 48).
Outro fator do desempenho a ser considerado na atividade pianística é a rapidez de
movimento. Segundo Rasch, a rapidez máxima de um movimento está sujeita, em parte, a
características individuais inatas. Os tempos de reação e resposta que podem ser
minimizados por treinamento da atenção, estado mental e habilidades influem na rapidez do
movimento que pode ainda ser reduzida “pela incapacidade de os músculos antagonistas se
relaxarem adequadamente; até certo ponto, esta é uma habilidade e está sujeita a influência
do treinamento” (Rasch, 1991, p. 187).
Kaplan (1987) apresenta três fatores que influem na velocidade do movimento durante a
ação pianística: a imagem clara e objetiva a ser alcançada, direção do movimento e as
alavancas ósseas utilizadas: ombro, cotovelo, punho e dedo, as quais há uma velocidade
limite passível de ser atingida (Kotchevitsky, 1967; Kaplan, 1987), podendo-se inferir uma
flexibilização do braço ao punho, por exemplo, com o objetivo de aumentar a velocidade.
“A freqüência de vibração do punho pode ser aumentada com a ajuda de movimentos
coordenados do braço inteiro em conexões com divisões métricas” (Kotchevitsky, 1967, p.
33, tradução nossa). Quanto à imagem clara e objetiva a ser alcançada e a direção do
movimento na ação pianística, Kaplan (1987) chama atenção no sentido de evitar mudanças
de direção e cuidados com o dedilhado. Póvoas (1999) sugere uma análise anterior da
partitura e um planejamento do movimento em seus ângulos e trajetórias anterior à
execução.
Póvoas (1999, p. 90) apresenta um “recurso estratégico de utilização do movimento, no
sentido de explorar a organização espacial do movimento em sua trajetória”, através de uma
racionalização (realização objetiva do movimento de acordo com o design musical),
“diminuindo o somatório de distâncias a serem percorridas significando menos carga de
trabalho com menor desgaste físico-muscular”. Propõe a autora etapas de preparação, de
acompanhamento e de avaliação de resultados: “uma fase de análise prévia (preparação)
para a definição das ações, uma fase de controle (acompanhamento) durante o treinamento
e aplicação dos recursos selecionados e uma fase de análise dos resultados (avaliação)”. A
análise prévia seria anterior à execução, investigando sobre movimentos a serem utilizados,
adequados á realização do design da obra, “em função da velocidade e dos resultados
sonoros pretendidos”. Durante a segunda fase, para o melhor o desempenho motor, devem
ser considerados e desenvolvidos ao nível de consciência e domínio, os fatores força,
resistência, coordenação e flexibilidade articulares. A correspondência do controle
cinestésico, sensação física experimentada a cada movimento com o resultado sonoro,
torna-se essencial. Um terceiro momento no processo seria dedicado à avaliação dos
resultados (Op. Cit., pp. 98–99).
A racionalização e a consciência do movimento são de extrema importância para ações
muito rápidas e produzidas em ambientes estáveis e previsíveis (Schmidt & Wrisberg,
Fatores do desempenho e realização músico-instrumental
111
2001). Após um movimento rápido ter sido iniciado, o controle consciente sobre este
movimento diminui, ou seja, se o executante perceber a necessidade de modificação, haverá
um espaço de tempo entre o comando de mudança ou correção do movimento até o
processamento da informação (Schmidt, 1993).
Rasch e Burke (1987, p. 111) afirmam que “se uma habilidade refinada exige grande
velocidade e muita precisão (...), as práticas devem enfatizar essas duas qualidades desde o
princípio, tanto quanto possível” e que se for dada uma maior importância à precisão em
detrimento da velocidade, terá de se reaprender muito nas fases finais da prática, quando se
necessita de maior velocidade, daí a importância da clareza mental e do planejamento do
movimento. Neste contexto, Kaplan (1987) afirma para o estudo de movimentos deve-se
levar em conta o andamento pretendido para a performance, mesmo que em andamento
lento. Póvoas (1999, p. 92) posiciona-se de maneira equivalente quando orienta:
Durante a etapa inicial de treinamento do repertório, os ciclos de movimentos devem ser
organizados visando a sua realização instrumental no andamento pretendido. Este
procedimento poderá diminuir a diferença entre a reação muscular durante o período de
estudo em que determinada obra é executada em andamento mais lento e a reação muscular
nos estágios de treinamento em que a velocidade de execução da peça é mais próxima da
velocidade pretendida.
Habilidades manuais de direcionamento têm, na sua maioria, uma característica comum que
consiste no desempenho rápido e preciso de uma habilidade. Velocidade e precisão, quando
relacionadas a um desempenho bem-sucedido de uma habilidade, constituem um dos
princípios fundamentais do desempenho motor: um compromisso entre a velocidade e a
precisão (Maggil, 2000, p. 75). Na medida em que o tamanho do alvo vai sendo reduzido
ou à medida que a distância se torna maior, a velocidade do movimento diminui para que o
movimento seja preciso. Relacionando com a ação pianística, na execução de uma
passagem musical que apresente deslocamento dos segmentos em movimento contrário,
cujo posicionamento de uma mão deva estar localizada na região aguda do teclado e a outra
na região grave ao mesmo tempo, a visão poderia ser disponibilizada, primeiramente, para
o ponto mais crítico ou de maior distância com relação ao eixo do corpo no momento da
execução do evento musical. Um treinamento neste sentido pode reduzir a dependência de
necessidade da visão. Neste sentido, a habilidade para estimar distâncias é um elemento
decisivo para a prática pianística, especialmente em trechos que apresentem saltos em
velocidade. (Kotchevitsky, 1967).
Há conexão entre a velocidade de ataque do dedo na tecla e resultado sonoro. As variações
de toque vão gerar diferentes gradações de intensidade sonora, variações dinâmicas que
dependem da rapidez de retirada do dedo da profundidade da tecla ou duração do toque,
que produzem a articulação requerida pelo design do texto musical. Por exemplo, para
produzir-se um staccato,3 é necessária uma saída rápida da tecla e, para realizar-se um
legato, é preciso uma retirada do dedo mais lenta da nota e, dependendo da situação musica
e de andamento requerido, com transferência do peso de braço para a nota seguinte
(Breithaup, 1909). A coordenação motora é um fator que está relacionado a rapidez de
movimentos, em diferentes situações de realização instrumental.
Nas áreas da cinesiologia e anatomia funcional entende-se por coordenação às ordenações
próprias da atividade de cada músculo e de grupos musculares. Na biomecânica, dentro do
conceito de coordenação são considerados “os parâmetros coodeterminantes do decurso do
3
Indicação de articulação que diminui pela metade a duração da nota, muitas vezes produzindo um
toque “seco”.
112
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
movimento, como impulsos de força a serem coordenados na ação motora” (Meinel, 1987,
p. 2). No campo da ação pianística, o executante, ou agente do ato coordenado, terá
condições de apropriar-se do decurso de um movimento na medida em que tiver uma
correta compreensão da tarefa a que se propõe realizar, de seus objetivos e da razão do
movimento. Quanto mais exatamente for compreendida a ação, maiores são as
possibilidades de sucesso na aprendizagem de novos movimentos (Meinel, 1987).
Na ação pianística, um trabalho de coordenação motora refere-se à utilização dos músculos
necessários para a realização de cada situação específica de desempenho, quando os demais
músculos devem manter-se relaxados, ao máximo possível, para que se evitem as tensões
na seqüência da execução instrumental. “A compreensão e a elaboração exatas das
informações sensoriais de movimento como base de uma direção e regulação corretas do
decurso de movimento já nos são conhecidas como processo parcial essencial da
coordenação motora” (Meinel, 1984, p. 153).
Neste contexto, postula-se que, para um desempenho motor mais eficiente na ação
pianística, é necessário proceder-se à análise prévia da peça a ser executada e o
planejamento dos movimentos mais adequados. Muitas vezes o pianista adquire o hábito de
executar um determinado trecho utilizando-se de gestos mais complexos do que os
necessários, fato este que pode ocasionar um acúmulo de tensões e, ao longo do tempo,
lesões. Além do mais, a utilização de gestos desnecessários pode impedir a execução de
algumas passagens, em geral, aquelas de maior velocidade. Portanto, deve-se entender por
coordenação, a realização organizada de movimentos segundo um objetivo antecipado.
Outro aspecto a ser mencionado, diz respeito à educação das sensações de movimento que
auxilia no processo cinestésico da aprendizagem motora. No caso da ação pianística, podese coordenar movimentos complexos através da “automatização” e sensação ou consciência
dos mesmos. As coordenações mais complexas não podem ser dominadas até que certos
movimentos básicos não tenham atingido um adequado nível de automatização. As novas
habilidades em geral, se baseiam em recombinações de habilidades já adquiridas.
Habilidades de coordenação complexas no piano são, por exemplo, movimentos alternados
entre horizontais e verticais em cada mão, movimento paralelo das mãos, realização
instrumental de texto polifônico, entre outros. Após adquirir o domínio de diferentes
maneiras de coordenação, o pianista obterá maior controle e segurança para realizar
movimentos que exijam habilidades complexas.
A utilização de movimentos complexos exige do executante uma coordenação bastante
elaborada e um alto nível de dissociação muscular. Para Kaplan (1987), “dissociação
muscular” é o domínio das sensações de contração e de relaxamento e que além de um
controle sobre as sensações, a dissociação possibilita desenvolver a capacidade de autoobservação e, igualmente, a controlar e a coordenar conscientemente o próprio corpo em
função do objetivo musical a ser atingido. Dissociar e coordenar movimentos que abrangem
a musculatura dos dois membros superiores, sobretudo dos segmentos braços, antebraços,
mãos e dedos, e o emprego dos pedais que exige o controle e a coordenação dos
movimentos das pernas direita e esquerda constituem-se em uma tarefa bastante complexa.
Somente através de uma prática planejada e consciente pode-se obter uma habilidade
motora mais eficiente e otimizada.
Segundo Magill (2000), o termo habilidade é uma palavra que serve para designar uma
tarefa com uma finalidade específica a ser atingida, portanto, voluntária. A habilidade
motora é parte integrante da prática pianística uma vez que esta exige movimentos
voluntários do corpo e/ou de membros para atingir o objetivo. A ação pianística utiliza-se,
mais precisamente, da habilidade motora fina que requer o controle de músculos pequenos,
Fatores do desempenho e realização músico-instrumental
113
tais como aqueles envolvidos no movimento das mãos/dedos, que exigem um alto grau de
precisão para tocar ou pressionar as teclas na seqüência e no tempo certos. Embora os
grandes músculos possam estar envolvidos no desempenho de uma habilidade motora fina,
os músculos pequenos são os mais acionados.
O desenvolvimento da capacidade motora é o que permite a realização de movimentos
complexos com o menor dispêndio possível de energia, evitando lesões e fadigas
musculares. A habilidade motora é o elemento da atividade que capacita o executante a
realizar grande quantidade de trabalho físico com um esforço relativamente pequeno, sendo
adquirida, especificamente, através de um processo de aperfeiçoamento da coordenação dos
diversos grupos musculares. “A perfeita coordenação do sistema muscular necessária para
realizar uma determinada ação (movimentos), faz com que o gasto de energia necessária
para executá-la seja muito menor que no caso daquela estar ausente” (Kaplan, 1987, p. 32).
A consideração de alguns aspectos relacionados ao desenvolvimento da coordenação
motora torna-se essencial. O primeiro relaciona-se à idade do indivíduo: “O indivíduo deve
ter a idade apropriada para aprender uma certa atividade antes que a sua prática tenha um
efeito favorável. A idade necessária não é a idade cronológica, e sim a idade fisiológica,
isto é, o grau de maturidade atingido pelo sistema nervoso da criança ou do adolescente”.
(Kaplan, 1987, p. 52). A dissociação e a maturação são condições essenciais para a
coordenação. Assim, dissociação pode ser definida como a contração dos músculos
necessários à realização de uma ação e relaxamento dos que, momentaneamente, não são
necessários e/ou podem perturbar a mesma ação. Maturação é a preparação física do
sistema nervoso central necessária para a realização de um repertório (Kaplan, 1987). Para
Knapp (1989), a maturação pode ser definida como o ‘amadurecimento’ fisiológico de um
organismo.
Toda tarefa que demande a coordenação de movimentos muito precisos e de extrema
rapidez, como no caso da execução no piano, está baseada em hábitos que são reações
adquiridas pela repetição do estudo correto, com reforço de uma mesma rede de integração
neuromuscular. A repetição deve estar baseada na garantia que nos oferecem os hábitos que
não são outra coisa senão reações automáticas adquiridas e/ou esteriotipadas pela repetição
de situações estimuladoras idênticas, com reforço da mesma rede de integração
neuromuscular. Assim, os hábitos devem ser o resultado de atos voluntários transformados
em automatismos, sendo que uma vez alcançados, escapem à atividade consciente do
indivíduo. O hábito é, pois, o produto final da aprendizagem motora. “Do ponto de vista da
execução instrumental, a aquisição e posterior reorganização dos hábitos constitui a base
sobre a qual irá se construir a técnica” (Kaplan, 1987, p. 45).
Através da preparação e desenvolvimento de um ato motor complexo, se desenvolve a
habilidade motora e, com estudos intensivos que automatizam as habilidades motoras, se
desenvolve o hábito sobre o qual se fundamenta a técnica pianística. A diferença básica
entre hábito e habilidade motora é que esta é adaptável e flexível, enquanto que os hábitos,
uma vez adquiridos, são executados mecanicamente sem referência às conseqüências. Um
ato executado de forma hábil “distingue-[se] pelo seu ajustamento minucioso às
circunstâncias do momento com o propósito de obter-se um resultado final, ao passo que
um hábito é essencialmente uma reação sem um fim que o justifique ou oriente”. (Kaplan,
1987, p. 46).
Postula-se que hábitos motores corretos a partir da individualização dos movimentos
primários de maneira que possam, posteriormente, serem reorganizados de acordo com as
exigências de cada obra, se estabelece como procedimento essencial para a construção de
uma técnica adequada. O treinamento de elementos isolados tem se revelado mais eficaz,
114
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
não só porque simplifica os conceitos intelectuais, como também a coordenação motora
(Knapp, 1989). A possibilidade de uma parte ou ação ser trabalhada separadamente,
possibilita a integração posterior das partes com maior detalhamento (Knapp, 1989).
Partindo-se dos pressupostos anteriores, o instrumentista poderá, primeiramente, adquirir
uma forma motora o mais próximo possível daquela que será em princípio a melhor para,
depois, se dedicar ao trabalho desta forma a fim de torná-la um habitual.
A redução de solicitações da atenção de uma habilidade pode ser obtida com a prática de
movimentos diferentes que deverão ser realizados simultaneamente, independentemente
(Magill, 2000). Isso permite que o pianista fique atento ao movimento dos segmentos
separadamente, assimilando o conteúdo musical (partitura) determinado para cada mão (ou
lado do corpo) sem o compromisso de fixar-se na coordenação de todo o conjunto de
eventos musicais, otimizando, desta forma, o aprendizado e, conseqüentemente, o tempo de
estudo. “Depois de praticar cada parte independentemente, o aluno pode reuni-las para
praticá-las em uma única unidade, com a sua atenção agora dirigida para as solicitações da
coordenação temporal e espacial da ação dos braços (...)”. (Magill, 2000, p. 279).
O correto uso das estruturas corporais implica na constante atenção e observação ao que
ocorre com as estruturas anatômicas envolvida enquanto executamos qualquer ação, seja
ela pianística ou não. Para tanto, é necessário que estejamos predispostos a buscar meios de
desencadear processos que venham a propiciar a tomada da consciência corporal, com o
objetivo de tornar nossa motricidade mais variada e harmoniosamente coordenada.
Um modelo para aplicação de ciclos de movimento
No modelo seguinte são apresentados ciclos de movimento. Contém linhas de orientação da
trajetória que são direcionamentos para a movimentação dos segmentos durante a execução
dos compassos 47–56 da Sonata no 5 de Sckriabin. O trecho caracteriza o movimento
assimétrico, movimento geral em que as mãos direita e esquerda executam movimentos
diferentes tanto ritmicamente como melodicamente. O design da linha da mão direita
apresenta acordes de três sons em deslocamentos, cujo caráter melódico e articulações
correspondentes caracterizam a escrita de uma grande parte da temática da obra (segundo
tema). Nesta passagem, a realização destas questões, aliada à graduação sonora e à
velocidade indicadas na partitura, além da independência rítmica necessária entre os
movimentos a serem realizados pelas mãos direita e esquerda, apresenta alguns desafios a
serem resolvidos. A aplicação de conceitos relacionados ao fator força na realização deste
trecho musical deverá estar subordinada às indicações de dinâmica, textura, andamento e
caráter.
A execução desta passagem requer que os movimentos sejam organizados no sentido de
melhor operacionalizar todas estas questões e de tornar a ação pianística mais eficiente.
Conforme a Fig. 1, as formas das linhas de trajetórias que orientam a movimentação dos
segmentos para a execução da mão direita, estão delineadas no sentido de permitir maior
flexibilização dos movimentos buscando otimizar a ação pianística em função dos aspectos
anteriormente levantados. A linha de trajetória que orienta a execução da mão esquerda
(LT, m.e.) encontra-se somente sob os dois primeiros compassos da segunda linha pode ser
aplicada aos demais compassos de trecho. A graduação da intensidade sonora pode aqui ser
mediada pela distribuição da força (peso) nos impulsos intermediários entre eventos e a
maior ou a menor participação da ação muscular dos segmentos.
Fatores do desempenho e realização músico-instrumental
115
Fig. 1: Ciclos de Movimento- Linha de Orientação da Trajetória - Ciclos de Movimento.
Sonata n. 5 de Sckriabin, compassos 47–56.
O modelo apresentado mostra opções para a organização de movimentos na execução de
situações específicas e pode, oportunamente, ser transportados ou servir de referencial para
a resolução de situações técnico-instrumentais equivalentes na organização de movimentos
e no sentido de otimizar a ação pianística. Esta otimização depende da adequação de
movimentos corporais a serem praticados (aspecto técnico-instrumental e questões físicomusculares) às características individuais de cada executante, de sua relação com o
instrumento de trabalho (técnica) e com a resolução dos aspectos musicais que
correspondem ao design. Requer, igualmente, o planejamento destes movimentos
anteriormente à ação (análise prévia), o controle sobre as ações a serem praticadas (fase de
treinamento e controle) e avaliação dos resultados, visando relacionar os resultados obtidos
com as ações realizadas e com as ações necessárias à resolução de novas situações.
Conclusões
Nesta investigação sobre fatores do desempenho e sua inter-relação com a ação pianística
foram levantados argumentos significativos para a área da técnica instrumental.
Considerando-se a necessidade de organização dos processos envolvidos na prática
pianística, os pressupostos levantados nesta investigação se aplicam a esta atividade. Os
procedimentos praticados durante o período desta investigação apontam para uma atenção à
consciência corporal, que auxilia na otimização do uso do fator força e a prevenção da
fadiga em decorrência do desenvolvimento de consciência da consciente das estruturas
corporais envolvidas na ação pianística. A aplicabilidade de conceitos relacionados a estes
fatores na realização de trechos musicais deverá, na medida do possível, estar subordinada
às indicações de contidas no design.
Como a força está relacionada com o tempo de manutenção e com a velocidade de ativação
muscular, o controle sobre este fator tem reflexos diretos na maior ou menor velocidade de
realização de movimentos e na produção de intensidades sonoras. Uma das conseqüências
do treinamento excessivo de uma atividade motora ou também de uma atividade mental
prolongada é tornar o indivíduo vulnerável à fadiga. Esta se reflete na provável ocorrência
116
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
de erros de natureza físico-muscular ou execução da ação e de memória a que o
instrumentista fica exposto. Em princípio, tais situações não devem ocorrer em situação de
controle, ou seja, se a fadiga for eliminada ou amenizada durante os intervalos entre
períodos de treinamento ao piano.
Exercícios de alongamento são um meio para desenvolver a flexibilidade. Treinamentos de
flexibilidade e força atuam de forma oposta, sendo previdente o equilíbrio entre
procedimentos de treinamentos. Quanto à rapidez de movimento, a clareza mental e o
planejamento da trajetória do movimento são considerados fundamentais para a realização
de trechos que envolvem velocidade. Com base nos pressupostos estudados verificou-se
que através da preparação e desenvolvimento de um ato motor complexo, se desenvolve a
habilidade motora e, com estudos intensivos que automatizam as habilidades motoras, se
desenvolve o hábito sobre o qual se fundamenta a técnica pianística.
A partir da situação músico-instrumental apresentada, observou-se que para a realização
técnico-musical deste trecho, faz-se necessária uma prática minuciosa com treinamento dos
segmentos direito e esquerdo, separadamente, para melhor consciência das trajetórias
necessárias para a execução das linhas musicais. Pressupõe-se que as informações obtidas e
as estratégias apresentadas poderão servir de recursos na busca do aumento no índice de
eficiência do desempenho pianístico através do controle, aproveitamento e aprimoramento
de movimentos, no sentido de torná-los mais objetivos durante o treinamento. Estes
resultados poderão contribuir como suporte para profissionais e alunos, no sentido de que a
ação pianística possa ser realizada com maior rendimento técnico-musical e menos esforço.
As correlações entre os argumentos até então levantados e os resultados parciais de
situações específicas de treinamento pianístico, permitem antecipar que há benefícios em
uma prática cujos recursos técnico-instrumentais utilizados levem em conta aspectos
inerentes a fatores do movimento humano.
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Maria Bernardete Castelan Póvoas – Doutora em Música – Práticas Interpretativas
pelo PPG – UFRGS com um ano de residência na Universidade de Iowa (EUA).
Professora no Curso de Bacharelado em Música do Centro de Artes e Professora
Orientadora do Curso de Pós-Graduação, Mestrado em Educação e Cultura, da
Universidade do Estado de Santa Catarina onde desenvolve atividades de Pesquisa e
Extensão. Participa de Eventos Científicos na área da música com apresentação e
publicação de pesquisa interdisciplinar sobre desempenho pianístico. Foi Chefe do
Departamento de Música do CEART-UDESC em várias gestões, Diretora de ensino
de CEART-UDESC, Coordenadora de eventos, entre eles “Ciclo Intercâmbio MúsicoInstrumental (2001 a 2004) e I Concurso Nacional de Piano – Cidade de Florianópolis
(2003). Vem participando de comissões técnicas e comitês, de projetos de
reformulação curricular e de novos cursos. Como pianista atua como solista, camerista
e em acompanhamentos de solistas e corais.
Iamurikuma: Música, Mito e Ritual.
Maria Ignez Cruz Mello (UDESC)
Resumo: O presente texto é um resumo de minha recém defendida tese de doutorado
em antropologia social (Mello 2005), que tem como foco o ritual de iamurikuma entre
os índios Wauja do Alto Xingu, MT. Com base na mitologia e no discurso nativo, o
universo em torno deste ritual é analisado especialmente em sua dimensão musical. A
música, através de sua formalização e do jogo em torno dos sentidos e das proporções,
é considerada o elemento central do ritual, constituindo a forma ideal de expressão
dos afetos. Palavras-chave: Música Indígena; Alto Xingu; Ritual; Antropologia da
Música.
Os Wauja e o sistema xinguano
Os índios Wauja são hoje cerca de trezentas pessoas,1 vivendo em uma aldeia circular com
dezoito casas, próxima à lagoa Piulaga, na região dos formadores do rio Xingu. Os Wauja
são um dos dez grupos indígenas que fazem parte do que se conhece na literatura etnológica
como povos xingüanos, aqueles que habitam a região sul da Terra Indígena do Xingu (TIX)
no estado do Mato Grosso. Os xingüanos são atualmente cerca de 3.000 mil pessoas,
vivendo no interior da TIX, local de grande diversidade lingüística: os Wauja, Mehináku e
Yawalapití são falantes de línguas aruak, os Kamayurá e Awetí de língua tupi, os Kuikúro,
Kalapálo, Matipú e Nahukuwá são falantes de línguas karib e os Trumaí falam uma língua
isolada. Apesar desta diversidade lingüística cada membro de um grupo fala quase que
exclusivamente sua própria língua, além do português, que é falado por uma minoria, e que
também é a língua de comunicação com o mundo do branco. Entre os xingüanos, não falar
a língua do outro parece ser uma questão de honra, pois mesmo que se entenda o que as
pessoas de um outro grupo estão dizendo, segue-se falando a própria língua, como em uma
atitude de insubmissão. Este aspecto do monolingüismo é um importante dado da
socialidade, na medida em que a língua falada é um dos fortes sinais diacríticos das
múltiplas identidades étnicas na região.2 Ainda assim, verifica-se um discreto
polilingüismo, decorrente dos estreitos laços de parentesco que os casamentos por aliança
fomentam.
Os povos xingüanos mantêm relações intertribais através de rituais, trocas materiais, e de
matrimônios. A relação entre os diferentes grupos aponta, a princípio, para uma área
culturalmente estável e, aparentemente homogênea. Contudo, há uma lógica de
diferenciação interna, cuja dinâmica passa não somente pela língua, mas também pela
etnohistória, pelas especializações técnicas, musicais e iconográficas, articulando-se em de
um sistema intertribal de trocas. Esta lógica prevê tanto solidariedade e cooperação, quanto
disputas e conflitos.
Os rituais Wauja
É esta convivência na diferença que chama a atenção do pesquisador xingüanista,
especialmente ao observar os rituais intertribais. É através destes rituais que vários povos
da região se encontram, lutam, cantam e dançam, é quando dialogam e se relacionam.
Durante estas práticas, entretanto, uma forte tensão é expressa: a tensão que advém da
necessidade de haver uma aceitabilidade comunicatória dentro de um quadro que inclui, de
forma congênita, a diferença e mesmo a divergência (Menezes Bastos, 2001). Durante os
rituais intertribais, apesar de um povo não falar a língua do outro, a maioria dos cantos são
entoados na língua de origem do ritual, sendo legítimo, desta forma, pronunciar uma língua
alheia, mas somente no contexto músico-ritual. Os grandes rituais intertribais, tais como
1
2
De acordo com censo realizado por mim em 2002.
Sobre este ponto ver Franchetto (2001).
Iamurikuma: Música, Mito e Ritual
119
kwaryp, iamurikuma, yawari, constituem o espaço no qual as regras e padrões da
socialidade e comunicabilidade pan-xingüana são colocadas em ação, promovendo a
constituição da diferença e do conflito no seio da convivência e solidariedade. Como nota
Basso (1985, p. 244), o ritual xingüano tem um espaço pequeno para falas, há nele uma
certa economia de objetos simbólicos, que, no entanto, são altamente elaborados. Neste
contexto, os atos de composição e performance musical, comunicando e expressando idéias
profundamente sentidas, são cruciais no próprio estabelecimento do ritual. Disto decorre
que o estudo dos sistemas e ritos musicais da região são uma importante colaboração no
esforço de compreensão do mundo xingüano e do modo de vida destes povos.3
De modo geral, pode-se dizer que o sistema xingüano tem como um de seus pilares o jogo
entre semelhança e diferença. Para além de seu significado no nível sócio-político, que
envolve disputas faccionais dentro de um só grupo ou entre os diversos grupos, este jogo
constitui um eixo fundamental nas cosmologias e nas artes locais: é, de fato, neste universo
que a diferença é construída em um plano poético-musical. Nesta direção, Piedade, ao
analisar o ritual das flautas kawoká, conclui que “a poética musical Wauja trata da
confecção da diferença, dada fundamentalmente no eixo do tempo e da existência, ou seja,
na temporalidade (2004, p. 230)”.4 Se no Alto Xingu se pode afirmar que a música institui o
ritual, este devendo ser considerado musical por excelência (cf. Basso, 1985), isto é porque,
ao lidar com proporções, repetições e variações, a música instaura o conflito ao mesmo
tempo em que o mantém sob controle.
Além dos rituais intertribais, há uma série de rituais intratribais que fazem parte, de forma
preponderante, da vida cotidiana Wauja. O termo genérico em Wauja para todas estas
práticas é naakai, com o qual se referem a uma série de diferentes ritos, constituídos por
conjuntos de eventos particulares, cada qual pertencente a um complexo simbólico que se
sustenta em mitos, repertórios musicais, danças, máscaras, pinturas corporais, enfim, em
uma série de elementos típicos de cada ritual. Os momentos rituais são considerados pelos
Wauja como espaços carregados de expressividade, de mudança na postura física, nas
atitudes, comportamentos e, principalmente no humor.5
3
Nesta mesma direção, desde o final dos anos setenta, as investigações sobre as músicas dos povos
indígenas das terras baixas da América do Sul têm revelado, sob a perspectiva do campo da etnologia,
sistemas musicais e cosmologias densamente elaboradas, com trabalhos como os de Aytai (1985),
Menezes Bastos (1990,1999), Beaudet (1983, 1997), Fucks (1989), Smith (1977), Travassos (1984),
Seeger (1987) e Hill (1992, 1993), Ermel (1988), Estival (1994), Olsen (1996), que abordaram,
respectivamente, a música entre os Xavante, Kamayurá, Waiãpi (Beaudet pesquisou no lado da
Guiana Francesa e Fucks no lado brasileiro), Amuesha, Kayabi, Suyá, Wakuénai, Cinta-Larga,
Assuriní e Arara, e Warao. A partir do final dos anos 90, ocorre um crescimento nesta linha de
pesquisa nos quadros universitários brasileiros, através de trabalhos como os de Bueno da Silva
(1997), sobre a música Kulina (Alto Purús); Piedade (1997), sobre os Tukano; meu trabalho sobre a
música Wauja (Mello, 1999); Cunha (1999), entre os Pankararú; Montardo (2002), sobre amúsica
Guarani; Werlang (2001), sobre os Marubo e Piedade (2004) sobre a música das flautas kawoká entre
os Wauja.
4
A tese de Piedade (2004) é fundamental para a compreensão do complexo musical que envolve as
flautas masculinas e os cantos femininos, na medida em que o repertório instrumental por ele
analisado serve de modelo para as análises que empreendo sobre a música vocal.
5
Peirano (2001) apresenta uma síntese das perspectivas antropológicas que lidam com o ritual na
atualidade e assume o pensamento de Tambiah como forma de escapar da rigidez das definições que
impedem que percebamos que “o caráter performativo do ritual está implicado na relação entre forma
e conteúdo que, por sua vez, está contida na cosmologia” (op. cit: p. 26). Para Tambiah (1985), o
ritual é um sistema de comunicação simbólica culturalmente construído, composto de eventos
especiais, mais formalizados, esteriotipados, redundantes e condensados do que aqueles da vida
120
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Esta pesquisa analisou mais detidamente o ritual feminino de iamurikuma, e sua relação
com o ritual masculino das flautas kawoká. Estes rituais apresentam uma relação profunda
entre si e constituem um único complexo músico-mítico-ritual. No contexto intertribal,
estes dois rituais podem ser chamados de “rituais de gênero”, entendidos como rituais nos
quais questões relativas às relações de gênero são enfatizadas.6 Eles podem também ocorrer
em versões intratribais, quando participam apenas os membros do próprio grupo. É
importante destacar que os rituais de kawoká e iamurikuma, principalmente em suas
versões intratribais, estão relacionados ao xamanismo, e desta forma, às doenças cuja causa
é a ação dos seres apapaatai, “espíritos”.7 Os apapaatai têm a capacidade de ouvir os
pensamentos e desejos dos humanos e podem detectar insatisfações e desejos não
realizados pelas pessoas. O estado de insatisfação torna possível que estes seres penetrem
nos corpos dos humanos na tentativa de roubar suas almas. Esta explicação, um tanto
sintética neste texto, serve aqui para fornecer a dimensão metafísica e ética em que os
rituais estão inseridos, bem como lançar alguma luz sobre as concepções Wauja de doença
e cura.8
Note-se que são vários os rituais promovidos para curar doenças provocadas pelos
apapaatai, estes rituais sendo em sua maioria intratribais e seu repertório musical podendo
tanto ser masculino (vocal e/ou instrumental), feminino (sempre vocal), ou misto, quando
homens e mulheres cantam juntos. Conforme o discurso nativo, na verdade são incontáveis
os rituais de cura, visto que a doença é percebida como resultado da ação dos apapaatai e
estes seres existem em um número desconhecido. O iakapá, o “pajé”, é o responsável por
descobrir qual apapaatai é o causador do mal que acomete o doente e, a partir de seu
diagnóstico, uma série de procedimentos e comportamentos rituais poderão ser adotados.
cotidiana. Para este autor, a eficácia do ritual advém de três fatores: primeiramente, dizer algo na
performance ritual significa efetivamente fazer algo, ou seja, o dito é um feito (inspirando-se aqui nas
idéias de Austin); além disso, no ritual são utilizados vários meios de comunicação através dos quais
os participantes experimentam os eventos de forma intensa; por fim, há no ritual uma profusão de
valores indexicais vinculados ou inferidos pelos atores durante o ritual.
6
Ficando aqui com esta definição preliminar, a questão de haver rituais especificamente dedicados à
oposição ou complementaridade dos sexos é muito trabalhada na literatura antropológica da
Amazônica e da Melanésia (ver MCallum, 2001; Gregor & Tuzin, 2001; Herdt, 1982), sendo tomada
ora como uma guerra dos sexos (Gregor, 1985), resultado do antagonismo sexual (S. Hugh-Jones,
1979), por cultos de fertilidade (Hill, 2001), ou como derivação da questão mais funda da
maternidade (Biersack, 2001) ou ainda como expressão de aspectos da consagüinidade e afinidade
(Descola, 2001). Lembro também que a própria ênfase na questão de gênero pode ser vista como
resultante do viés ocidental (cf. Overing, 1986; Piedade, 2004, revela uma posição semelhante).
Destaco ainda que entendo o complexo iamurikuma-kawoká como simultaneamente rituais de gênero
e rituais musicais (cf. Basso, 1985).
7
A categoria apapaatai pode ser traduzida muito aproximadamente por “espíritos”. Estes seres
sobrenaturais habitam o cosmos Wauja, podendo provocar doenças e mortes, ou se tornarem aliados
dos humanos, desde que estes últimos realizem os rituais apropriados para cada caso. Os apapaatai
povoam a maioria das narrativas míticas e representam um elemento fundamental na atividade do
xamã, atividade que pode ser vista como uma política cósmica com estes seres. Esta política, que é
uma negociação do xamã com os seres sobrenaturais visando que eles não roubem as almas dos vivos,
engendra, por sua vez, uma ética e uma estética que se explicitam tanto no ritual, através das mais
diferentes formas visuais e sonoras, quanto na economia da vida diária.Os Wauja distinguem as
doenças causadas por apapaatai daquelas outras que chamam, em português, de “doença de branco”,
estas sendo causadas por outros processos e curáveis através de remédios “de branco”: por exemplo,
gripe, sarampo, leishmaniose, malária, etc. Tal distinção é comum entre os xingüanos (ver Menezes
Bastos, 1999a).
8
Todos estes conceitos são densamente elaborados ao longo da tese (Mello 2005), bem como estão
respaldados em amplo corpus mítico recolhido durante a pesquisa de campo.
Iamurikuma: Música, Mito e Ritual
121
Para os Wauja, está sempre em aberto o campo de possibilidades para o aparecimento de
apapaatai até então desconhecidos e a subseqüente criação de novos ritos de cura, apesar
de se observar a reincidência de um número limitado de festas.
Ressalto que o interesse pelo ritual está também na esfera das distinções sociais, pois é sinal
de prestígio pessoal poder bancar um ritual, patrocinando alimento a todos os participantes,
colocando várias pessoas para trabalharem em torno desta construção e manutenção de
distintividade. Assim, o ritual Wauja está fundado na esfera política, tendo um papel
regulador em termos cosmológicos, vigendo no mundo da cura e da beleza, da ética e da
estética, como explicitarei a seguir.
O mito de iamurikuma: quebra da reciprocidade entre homens e mulheres.
De modo um tanto resumido, pode-se dizer que iamurikuma é um ritual que atualiza o mito
cuja temática é a transformação das mulheres em apapaatai poderosos e perigosos
chamados iamurikuma. As mulheres, no mito, se transformam nestes seres após serem
enganadas pelos homens, que, ao invés de irem para uma pescaria coletiva, conforme
haviam combinado, passam a fabricar máscaras para se transformarem em vários
apapaatai, na intenção de matar suas mulheres. Estas, em represália, comem determinadas
frutas que as deixam “loucas” e passam a cantar e dançar no centro da aldeia - como
normalmente só os homens fazem -, se pintam e se adornam como os homens, abandonam
os filhos homens dentro de grandes pilões na aldeia, e partem dali através de um buraco na
terra. Quando os homens são alertados sobre esta transformação, voltam correndo para a
aldeia a fim de dissuadi-las, porém elas seguem cantando e vão embora. Pessoas de outras
aldeias passam a seguí-las nesta jornada, e partem juntas cantando até chegarem do outro
lado do céu, na yuwejokupoho, “aldeia dos mortos”, onde fundam uma aldeia na qual só
vivem as iamurikuma. Um rapaz as segue até este local, a fim de reencontrar sua namorada,
mas é alertado por ela para que volte à sua aldeia de origem. Ao retornar, o jovem conta
tudo o que viu e ensina a todos as músicas que ouviu as mulheres cantarem na “aldeia dos
mortos”.
O ritual de iamurikuma: música e relações de gênero.
Este ritual é realizado quase que anualmente, mas não possui uma data certa, como é o caso
de outras festas. É um ritual intertribal -envolvendo convidados de outras aldeias da regiãofeito apenas por mulheres, sendo que o chefe da aldeia muitas vezes toma parte conduzindo
os cantos. Entretanto, acompanhei um ritual de iamurikuma em sua versão intratribal, do
qual participaram apenas os Wauja, de agosto a novembro de 2001. Neste período,
presenciei muitos finais de tarde em que um grupo de mulheres se reunia no centro da
aldeia para cantar e dançar. Algumas madrugadas também foram preenchidas pelos cantos
femininos que se estendiam até o amanhecer. Por vezes os homens saíram para pescarias
coletivas em função da festa e, em outras ocasiões, ocorreram agressões e provocações
entre homens e mulheres, sempre de forma comedida e dentro dos limites impostos pela
ética local. O motivo da festa era que havia na aldeia cinco grandes pilões de madeira que
tinham sido feitos pelas mulheres em um ritual de iamurikuma há cerca de dez anos. Elas
haviam feito estes objetos para cinco homens que ficaram doentes naquela época por causa
do apapaatai iamurikuma. Em 2001 os pilões já estavam velhos e corroídos, o que motivou
as mulheres a realizarem uma festa para queimá-los e, quem sabe, no futuro fabricarem
novos pilões.
Durante todo o período, a temática dos cantos femininos girou em torno das relações
afetivas, do ciúme, inveja, namoro, sexo, além de muitos cantos fazerem referências diretas
122
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
ao mito de origem da festa. Também foi comum ver as mulheres usarem deste espaço ritual
para reclamarem de atitudes dos homens através de canções especialmente compostas por
elas. Ao longo de todo o período, foram executados cerca de duzentos cantos diferentes,
organizados em quatro sub-repertórios, dos quais, pode-se destacar o de iamurikuma
propriamente (aqueles cantos que se referem ao mito), e o de kawokakuma (cuja referência
das canções são as flautas kawoká) como os principais sub-repertórios.
Com base nas análises de mitos e em análises musicológicas busquei compreender a ligação
entre a música vocal do ritual de iamurikuma e a música instrumental das flautas kawoká,
pois as mulheres afirmavam que “música de iamurikuma é música de flauta”. No entanto,
pelo fato delas serem proibidas de ver as flautas, esta afirmação parecia um contra-senso.
Caso aconteça de alguma mulher ver as tais flautas kawoká -tanto em repouso quanto ao
serem tocadas-, ela será estuprada por todos os homens da aldeia, não importando se ela
infringiu a regra propositalmente ou involuntariamente. Contudo, não se tem registro de
que tenha ocorrido tal fato nos últimos quarenta ou cinqüenta anos.
A partir dos mitos e músicas, das exegeses e traduções de canções, e do discurso nativo
sobre música, surgiu a temática das relações de gênero como fator a ser problematizado,
bem como verificou-se que há uma raiz comum, dada pela estrutura musical, para o
conjunto de canções de iamurikuma e para a música instrumental das flautas kawoká, onde
se nota que os temas principais em ambos repertórios são frases muito próximas do ponto
de vista rítmico-melódico, como variações de uma frase básica realizada tanto pelas flautas
quanto pelo canto feminino.9 A partir destas observações pode-se dizer que o repertório de
flautas kawoká é como que “transponível” para os cantos femininos, ou vice-versa.
A música e a dança, através do canto das mulheres, são os marcadores dos momentos
densos do rito. A movimentação coreográfica varia de acordo com o número de
participantes, com a disposição das dançarinas entre si, e o deslocamento destas pelo
perímetro da aldeia. Tais variáveis estão relacionadas ao repertório musical, pensado aqui
como um roteiro, que, por sua vez, deve se adequar aos períodos do dia (manhã, tarde, noite
e madrugada) e aos momentos específicos do rito, tais como pescaria dos homens, abertura,
encerramento. Há uma série de diferentes disposições coreográficas ao longo do ritual que
apontam para momentos com distintas motivações, “enquadrando” comportamentos que
podem ir da brincadeira à agressão. As idéias que Bateson desenvolve em sua teoria sobre a
brincadeira e enquadre (1998 [1972]) ajudam a pensar sobre os conjuntos de mensagens
que estão em jogo em cada um dos diferentes contextos ao longo do ritual. Há um pano de
fundo que é dado pela diferença entre homens e mulheres, uma disputa por espaço, presente
na maioria das falas dos rapazes e no comportamento das moças. Iamurikuma aitsa
awojopai, “iamurikuma não é legal” (tradução livre), dizem os rapazes a todo o momento.
Iamurikuma apokapai, peietepei, “iamurikuma está louca, brava”, afirmam os mais velhos.
As mulheres parecem indiferentes às provocações, mantendo-se sempre altivas e distantes,
exceto nos momentos em que resolvem, em grupo, atacar os homens. Elas tanto podem
bater, arranhar, dar beliscões, quanto atacar sexualmente, indo, também em grupo, até suas
redes. Bateson chama a atenção para o fato de que não há entre a brincadeira, o blefe, e a
ameaça uma delimitação clara, na verdade “formam juntos um único e indivisível complexo
de fenômenos” (op.cit. p. 61). Há, portanto, que se adotar o frame correto para não
extrapolar os objetivos.
9
Esta hipótese já havia sido levantada anteriormente em minha dissertação de mestrado (Mello,
1998), sendo que só se confirmou após trabalho de campo mais aprofundado durante as pesquisa de
doutorado desenvolvidas por mim e por Piedade (2004).
Iamurikuma: Música, Mito e Ritual
123
Parte do repertório musical deste ritual, aquele aqui classificado como iamurikuma, é como
que um roteiro para o ritual, baseado no script do aunaki, o “mito”. Cada canto narra um
momento do mito e pode se repetir em diferentes dias, o que evoca uma não linearidade do
ritual. Há algo semelhante àquilo que Menezes Bastos (1990) detectou no yawari como
uma compressão e distensão do tempo. Este autor usa a imagem do fole de uma sanfona
para evocar a alternância entre momentos de total retraimento (pensados como
adensamentos) e de completa distensão dos eventos rituais.
Análise de um canto de kawokakuma.
Se uma parte do repertório musical é ligada ao mito, a outra, chamada de kawokakuma, não
se atém a este, mas às paixões, aos sentimentos de homens e mulheres, e fazem a ponte
sonora entre o iamurikuma e o kawoká. São estes cantos, os kawokakuma, que mereceram
maior aprofundamento analítico ao longo da tese. Através da análise de uma parcela deste
repertório, nota-se que ele está ancorado em operações musicais complexas, que exigem um
alto grau de conhecimento por parte das mulheres cantoras, principalmente da cantoracompositora central. Estes cantos podem ou não ter letra, mas em todos os casos estão
relacionados aos sentimentos e emoções experimentados pelos Wauja ao londo de suas
vidas.
Para chegar às classificações musicais apresentadas na tese, foi necessária uma audição
atenta de aproximadamente um total de setenta horas de gravação. Nestas audições, foram
classificadas cerca de duzentas músicas diferentes, pertencentes a gêneros musicais
específicos. Para alcançar estas subdivisões, foi preciso realizar uma transcrição preliminar
do conjunto total de peças, e efetuar uma análise prévia deste conjunto que pudesse ajudar
nesta classificação inicial. Diferentemente do repertório das flautas kawoká, sempre
executado em blocos de suítes nomeadas, os cantos de kawokakuma são cantados
alternando cantos de diferentes estilos, além destes cantos serem intercalados por cantos
propriamente de iamurikuma. A conclusão de que estes repertórios constituem gêneros
diferentes, iamurikuma e kawokakuma, só pôde ser alcançada mediante tais audições e
transcrições. Como não pude contar com uma classificação nativa para empreender um
ordenamento dos cantos, a atenção durante as audições teve que ser duplicada em vista da
semelhança de algumas peças. Por vezes, a letra dos cantos auxiliou na identificação,
outras, no entanto, em vista da ausência de letra, dependeu única e exclusivamente de uma
escuta acurada.
Nos cantos de kawokakuma cada peça é constituída por um conjunto de temas e motivos.
Dependendo da peça, cada motivo pode ser curto, com poucas notas, ou não tão curto,
quase uma frase, sendo designados por letras (a), (b), (c), etc., podendo ter uma ou mais
variações cada um, designadas então por (a’), (a’’), etc. As variações são entendidas como
aplicações de princípios fundamentais de diferenciação no interior dos motivos, operações
tais como transposição, pequena alteração intervalar ou rítmica no início ou no final do
motivo, adição ou exclusão de uma nota, entre outras. Variações em conjuntos de motivos,
entendidos como frases que constituem os temas, podem ser pensadas como
transformações, que ocorrem por mecanismos de inclusão e exclusão de motivos, ou
através de variações nos seus motivos constituintes. A diferença entre uma variação e um
motivo novo é a resposta estrutural da seqüência de notas organizada no interior da peça.
Os motivos, portanto, são as partes constitutivas dos temas a que chamei de
e . Há
também uma frase, chamada na análise de , que surge geralmente no início das peças,
e , e ainda no final, correspondendo sempre ao centro tonal
como separação dos temas
das canções.
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
124
Resumidamente, a relação entre os temas
e
é dialógica e dialética, o primeiro tema
constituindo o material básico da peça, e o segundo configurando uma elaboração deste
material em uma camada superior (em termos de alturas), geralmente atingindo a nota mais
aguda da escala. Nesta espécie de transposição, muitas vezes ocorre uma série de
transformações, que variam de peça para peça. Um outro fato observado é o englobamento
de
por , ou seja: a antítese elabora a tese de forma a incluí-la em sua terminação, às
funciona como âncora, indicador
vezes integralmente. Observa-se também que o motivo
e reforço do centro tonal, vinheta de separação entre temas e entre canções. Um outro ponto
importante é o tema , que é o tema com letra adicionada.
Segue abaixo um exemplo de transcrição e análise de um dos duzentos cantos realizados
neste ritual. Estou utilizando transcrições reduzidas seguindo o modelo criado por Piedade
em sua análise da música das flautas kawoka (2004), pois, se as transcrições fossem
apresentadas integralmente, facilitariam a leitura, mas ocupariam demasiado espaço sem
proporcionar maior rendimento analítico. A transcrição reduzida porta a informação
essencial, encontrada através do discurso musical nativo, que ressalta as construções
motívicas. Desta forma, os motivos, conforme citados acima, aparecem escritos
integralmente somente uma vez na transcrição, nas demais repetições, aparecem apenas as
letras correspondentes a eles (a), (b), (c), etc., grafadas sobre uma linha, e não sobre o
pentagrama.
O canto aqui apresentado foi executado duas vezes durante todo o ritual, uma de
madrugada, e outra no final de uma tarde. A composição deste canto é atribuída às
mulheres de uma outra etnia, às mulheres Mehinaku. Contudo, pelo fato deste povo falar
também uma língua de origem aruak, os cantos de ambos os grupos são compreendidos e
incorporados mais facilmente em seus repertórios rituais.
Letra do canto em Wauja (Mehinaku) e sua tradução:
Aunumana, aunumana
Venha aqui, venha aqui
Patuwato Ukaruwã
traga (sua mulher) Ukaruwã
Aunumana, aunumana
Venha aqui, venha aqui
Patuwato Ukaruwã
traga (sua mulher) Ukaruwã
Maka aunupa okanato
Para nós vermos a boca dela
Itsapai Tupat okanatu
Parece com a boca de tupatu (espécie de peixe)
Ukaruwã
Ukaruwã
Segundo a cantora principal, de nome Kalupuku, a explicação para a letra deste canto é a
seguinte: “Havia um homem Mehinaku chamado Ukaruwã que se casou com mulher de
nome Mukura, talvez ela fosse índia Matipú. As mulheres Mehinaku fizeram esta música
para a mulher falando de sua boca, pois quando ela sorria, ficava com a boca torta, igual ao
tupatu, um peixe que tem a boca de lado, torta. Com esta música elas queriam dizer assim:
Ukaruwã, traz sua mulher para cá, para a gente ver a boca torta dela”.
Iamurikuma: Música, Mito e Ritual
125
Transcrição analítica do canto.
Quadro analítico da seqüência dos motivos e frases:
acrescido de letra, pois ele é repetido
Neste canto, a ênfase está no tema , o tema
várias vezes. Aqui ocorrem operações já observadas em outros cantos, precisamente o fato
126
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
deste iniciar com o tema , que aparece por duas vezes antes que o
seja cantado. Em
nota-se que o motivo (f) está em diálogo estreito com o motivo (e), cuja alternância é do
tipo pergunta e resposta. É provável que o intervalo descendente, que atinge a nota Fá,
carregue tal característica, apontando para o caráter dialógico entre os motivos. O tema
está englobado em e, portanto, a aparição tardia de não causa surpresa. Após cantarem
,
e novamente
, iniciam uma grande seção de , que será apresentada quatro
vezes, sendo que entre a segunda e a terceira vez, reaparecem, , , , . Nesta peça,
fica evidente uma preponderância de
e , que pode ser considerada uma marca desta
face feminina do gênero musical kawokakuma-kawoká. Além disso, há um destaque para a
letra, que trata da jocosidade: as mulheres Mehináku estão aqui ridicularizando uma mulher
Matipú, que quando sorri exibe uma “boca torta”: trata-se do mote do defeito físico, muito
freqüente em vários cantos. Neste, as cantoras se dirigem ao marido desta mulher, um
homem Mehináku que se casou com uma mulher de outro grupo, fato que é sempre motivo
de reações deste tipo, e que, no fundo, demonstra o ciúme coletivo provocado por
casamentos interétnicos.
Das cerca de cinqüenta transcrições apresentadas ao longo da tese, as análises musicais
destacam várias operações fundamentais no âmbito motívico das músicas de kawokakuma,
que podem ser resumidas em: variação tética, variação sufixal, fusão, tipo bordadura, jogo
alternante 3M/3m, motivo justaposto de citação, adição, exclusão, prolongamento rítmico,
motivo de dissolução e motivo de retomada. Nota-se a importância das terminações de
motivos, frases e temas, bem como o englobamento do tema
pelo tema . No âmbito
das letras, encontrou-se nexos entre a canção, o mito e as paixões, aparecendo algumas
temáticas recorrentes, como por exemplo o do mote do defeito físico, quando a cantora
expõe na letra da canção qualquer defeito que a pessoa a quem ela queira atingir possua. Na
relação letra-música, notou-se fatores importantes como a inversão de texto e a
flexibilização rítmica. A distribuição de todas estas operações composicionais acentua a
idéia de que a música do ritual de iamurikuma não constitui um único gênero musical, mas
sim dois: iamurikuma e kawokakuma, este último sendo a face feminina de um supergênero
que tem na outra face a música do ritual de flautas k a w oká. Estudar os processos
composicionais dos repertórios masculino e feminino, sob um prisma comparativo, se
configura como um caminho estimulante para futuros trabalhos.
Considerações finais
Homens e mulheres usam da tática de se provocarem mutuamente através dos cantos,
principalmente incitando o sentimento de uki, “ciúme-inveja”, inserindo uma terceira
pessoa na situação descrita pela letra das canções. Muitos cantos de kawokakuma procuram
provocar uki nos homens ou em mulheres que estejam rivalizando com as cantoras. É
através da criação poético-musical que os conflitos suscitados por sentimentos como uki
são contornados. A positividade ou negatividade de uki, contudo, é uma questão de grau:
todas as estratégias de que eles lançam mão para lidar com este sentimento, através de
brincadeiras, mitos, e ritos específicos,10 tudo isto concorre para a busca de um ponto
intermediário em um continuum entre o excesso e a ausência de uki. Segundo os Wauja,
ciúme-inveja não é algo com relação a que se deva mostrar indiferença ou rejeitar por
completo, diferentemente de sentimentos como kamusixiapa, “raiva ou ódio”,11 que devem
10
Ver na tese em questão as explicações sobre o Ritual do Pequi. Esta festa gira em torno de disputas
entre homens e mulheres, durante a qual realizam diferentes brincadeiras físicas e provocações
musicais.
11
A raiz desta palavra, usixa, significa “queimar”.
Iamurikuma: Música, Mito e Ritual
127
ser prontamente aplacados. Ao contrário, uki deve ser cultivado, e se deve aprender a lidar
com isto desde cedo. Segundo os Wauja, uki é a faísca que acende as relações: como me
disse um informante, “é como a pimenta que arde, mas é boa”, sem a qual a comida ficaria
insossa. O mérito de saber lidar com estes sentimentos estaria no controle da medida certa
em provocar e em aceitar provocações, em saber a hora certa para o revide, em não
provocar além do limite aceitável. Durante as brincadeiras jocosas, avalia-se muito o
quanto homens ou mulheres agüentam de provocação sem revidar, mas também é esperada
e até mesmo apreciada a boa resposta no momento certo. Vê-se que, através de toda a
elaboração estético-ritual, detectada desde o tratamento detalhista na construção motívica
dos cantos, passando pela transferência dos cantos de kawokakuma de um gênero sexual a
outro, e por re-elaborações de fatos do cotidiano que são inseridos nos moldes dos cantos,
todo este processo, enfim, só surge durante a performance ritual, que acaba por dar
concretude ao mito e significado às questões existenciais. Toda a criação ritual trata da
demarcação de limites, de estabelecer proporções, de precisar doses, criar diferenças,
construir fronteiras, criar o espaço humano de agência no mundo. E este espaço se instaura
no ritual, onde a música é o “dito” que se torna “feito”.
A linguagem enfeitada e pintada que é o canto, os corpos enfeitados e produzidos, as
formações coreográficas e seus traçados entrecortando a aldeia, indicam a necessidade da
elaboração ritual por meio de uma alta formalização. Assim, as regras que observamos nas
práticas rituais Wauja, bem como nas construções composicionais, aparecem
explicitamente como uma forma de codificação, no sentido exposto por Bourdieu,12 e
apontam para a construção de um sistema coerente que dê conta das tensões suscitadas
pelos afetos.
Aqui está, creio, a centralidade da música no ritual: onde se encontra a formalização em seu
grau máximo. Basso (1985) afirma que esta posição fundante da música no ritual xingüano
está diretamente ligada ao fato dos nativos crerem que, através da execução musical, podem
compensar as ilusões da criação verbal. Opinião confirmada por Franchetto ao afirmar que,
neste cenário, há um continuum indo da fala ao canto, em cujos extremos estariam situadas
a mentira e a verdade, o mais humano e o sobrenatural (1986, p. 249). Para esta autora, os
mitos fundamentam a execução ritual, e esta, por sua vez, tem a música como seu aspecto
mais importante, pois os nativos, “através da sensualidade e dos sentimentos que a
musicalidade inspira, transformam a consciência de si, a consciência coletiva e a apreensão
do mundo” (1986, p. 288).
Estudar, de forma detalhada, todos os aspectos envolvidos no ritual, como a pintura
corporal, a música, a dança, os discursos e as narrativas míticas, é uma forma de acessar
esta codificação e, assim, buscar uma compreensão mais substancial do evento como um
todo. É no momento do ritual que a sociedade Wauja cria condições privilegiadas para que
homens e mulheres, através de um jogo em torno dos sentidos e das proporções, tratem, de
forma intensa e musical, de questões importantes como namoro e sexo, e de afetos
fundamentais como o ciúme e a inveja.
12
Bourdieu chama a atenção para o fato de que o grau de codificação adotado por um determinado
grupo em relação a diferentes situações deve variar de acordo com o grau de risco em que tal situação
está envolvida. É quando o habitus dá lugar à condutas reguladas por rituais metodicamente
instituídos e mesmo codificados (1990, p. 98).
128
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
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130
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
WERLANG, Guilherme. Emerging Peoples: marubo myth chants. Tese de
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Maria Ignez Cruz Mello é professora do Departamento de Música da Universidade do
Estado de Santa Catarina, UDESC; pesquisadora e membro do Grupo de Pesquisa
Música, Cultura e Sociedade - MUSICS, UDESC/CNPq; pesquisadora e membro do
Núcleo de Pesquisa Arte, Cultura e Sociedade na América Latina e Caribe – MUSA,
UFSC/CNPq. Doutora em Antropologia Social, formada pela Universidade Federal de
Santa Catarina – UFSC; Mestre em Antropologia Social, formada pela UFSC;
Especialista em Estudos Culturais, formada pela UFSC; e Bacharel em Composição e
Regência, formada pela Universidade Estadual de Campinas – UNICAMP. Realiza
pesquisas sobre música indígena amazônica, música popular brasileira, percepção
musical, e sobre música e relações de gênero. Atua como compositora, tendo sido
recentemente selecionada para participar da XVI Bienal de Música Contemporânea.
Uma abordagem atuacionista da tipo-morfologia de Pierre Schaeffer
Rael Bertarelli Gimenes Toffolo, André Luiz Gonçalves de Oliveira (UEM)
Resumo: O presente artigo pretende desenvolver uma nova perspectiva para a
descrição da percepção (écoute) utilizada por Pierre Schaeffer, apoiada na
fenomenologia pontyana e na teoria do conhecimento atuacionista de Maturana
(1995) e Varela et al (1991). O trabalho de Schaeffer desenvolve-se centrado na
fenomenologia de Hussler que por sua vez já sofreu inúmeras reformulações ao
decorrer do desenvolvimento histórico da fenomenologia moderna. Neste trabalho
apresentamos os conceitos chaves da teoria de Schaeffer (1966) e apontamos algumas
reformulações necessárias, para que dessa forma tais conceitos acompanhem as
transformações ocorridas na fenomenologia. Palavras-chave: Pierre Schaeffer,
Marleau-Ponty, fenomenologia, atuacionismo, audição corporificada e situada.
Introdução
Desde sua primeira publicação em 1966 o Traité des objets Musicaux de Pierre Schaeffer
tem sido uma obra referencial para a composição e para o estudo da música contemporânea,
principalmente as que se enquadram na vertente acusmática. Dentro desse panorama, o
Traité também se tornou obra teórica central para o estudo e desenvolvimento de estéticas
musicais que colocam a percepção como fundamento para a construção de técnicas e
procedimentos composicionais. Diversos autores deram seguimento ao trabalho de
Schaeffer no intuito de completar e expandir sua perspectiva de música contemporânea, dos
quais podemos destacar Simon Emmerson (1987), François Bayle (1993) e Michel Chion
(1994). É a noção de acusmática que possibilita a colocação da percepção (écoute para
Schaeffer) como foco central para a atividade composicional. Essa transformação de foco
da dupla fazer/ouvir para um ouvir/fazer, entendendo o fazer como o próprio processo
composicional, é decorrente de um amplo estudo e críticas às posturas tradicionais da
atividade musical ocidental.
Schaeffer parte de uma análise, breve, porém profunda da situação da música que lhe era
contemporânea, esboçando alguns problemas a serem resolvidos e críticas a posturas
composicionais dominantes de sua época. Aponta para as transformações que a musicologia
deveria enfrentar, decorrentes das mudanças das noções de escala de alturas como base para
a construção musical; o crescente desenvolvimento de formas de produção sonora, advindas
dos equipamentos eletrônicos e dos instrumentos não ocidentais; os problemas que a crítica
musical enfrentava por não apresentar nem conteúdo nem terminologia apropriada para a
explicação do fenômeno musical.
O autor afirma que o surgimento da postura estruturalista em música, do início do século
XX, foi uma reação a esses “impasses” da musicologia, já que fica justificada, em meio a
tal crise, o apoio sistemático em parâmetros “seguros” da física. Dessa forma, Schaeffer
refere-se à perspectiva estruturalista como geradora de uma música a priori, por esta
colocar a construção e manipulação abstrata de símbolos musicais, que apresentam uma
analogia com parâmetros acústicos, como fato primeiro em relação à escuta. Criticando
essa postura que não toma a experiência do material sonoro que ocorre na escuta, Schaeffer
sugere uma alternativa que inverta a ordem da conduta composicional estruturalista e a
denomina de música concreta e posteriormente de música experimental.
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
132
Les Quatre Écoutes
O autor lança-se então à uma descrição do funcionamento da escuta baseando-se em
situações e ações específicas de um ouvinte hipotético. Divide a escuta em quatro tipos
funcionais:
1.
Écouter: É disponibilizar o ouvido, interessar-se por. Eu me dirijo ativamente a
alguém ou a alguma coisa que me é descrita ou assinalada por um som. (Schaeffer,
1966, p. 104)
2.
Ouïr: É perceber pelo ouvido. Por oposição a escutar, que corresponde à atitude
mais ativa, aquilo que ouço é aquilo que me é dado na percepção. (Schaeffer,
1966, p. 104)
3. D´entendre: É o estágio da escuta no qual ocorrem as qualificações do ouvir,
dependendo de uma intenção. Segundo Schaeffer, a origem etimológica da palavra
aponta que entender é “ter uma `intenção´. Aquilo que entendo, aquilo que me é
manifesto, é função dessa intenção.” (Schaeffer, 1966, p. 104).
4.
Comprendre: Realizado a partir da qualificação do entender, é o ato de perceber
um sentido onde o som torna-se um signo que possui relações com um código
cultural. (Schaeffer, 1966, p. 104)
O quadro de funcionalidades da escuta é a base sobre a qual o autor fundará toda a sua
investigação sobre a atividade musical para a construção de uma vertente acusmática e
experimental, ao lidar com o fenômeno sonoro. É a partir dele que Schaeffer realiza uma
análise das diferentes situações de escuta decorrentes de diferentes situações humanas.
Posteriormente, propõe uma descrição do fenômeno musical para além daquela fornecida
pela física acústica. Para que tal tarefa seja exeqüível, o autor recorre à noção de redução
fenomenológica de Edmund Hussler. Tal noção será de suma importância para a construção
do seu objeto sonoro e este por sua vez será a base para o desenvolvimento de seu solfejo.
Além da divisão da escuta em quatro funcionalidades, Schaeffer organizará posteriormente
formas diferentes de agrupar tais funcionalidades. Uma subdivisão que apresenta relevância
para este texto é a organização do quadro de funcionalidades da escuta em dois pólos
opóstos: Banale/Praticienne. Na abordagem crítica de Windsor (1995), para a análise de
música acusmática, encontramos corroboração à relevância da descrição desses dois modos
de percepção tal qual realizada por Schaeffer, de forma a opor dois pólos que são
responsáveis pela caracterização de uma escuta de dia-a-dia (banalle) e de uma escuta
especializada (praticienne) que remete à um sistema simbólico.
This is not to suggest that Schaeffer’s ideas per se have no relevance to the
analyst. His discussions of the relationship of listening to culture and nature,
his perspicacious accounts of the problems inherent within traditional views of
listening and musical discourse (Schaeffer, 1966) have been instrumental in
defining the challenges posed by the acousmatic and have been instrumental
in shaping this thesis. (Windsor, 1995, p. 34)
A descrição das funcionalidades da escuta organizada nesses dois pólos será de suma
importância para as reformulações que apresentamos no presente artigo. Porém para
chegarmos aos resultados pretendidos realizaremos uma revisão no quadro das quatre
écoutes para posteriormente retornarmos a esse ponto.
Uma abordagem atuacionista
133
A delimitação schaefferiana das quatre écoutes apresenta algumas inconsistências
decorrentes de redundâncias conceituas. Na definição de écouter, que descreve uma escuta
“mais ativa” que a presente na definição de ouïr, não fica claro quão mais ativo deve ser o
comportamento para ser caracterizado como écouter. Schaeffer considera que tal atividade
de um suposto sujeito, própria do escutar, centra-se na busca da fonte sonora
(referencialidade), o que não ocorre no ouvir. O problema aqui apontado está na tentativa
de separar as funções que ocorrem no escutar e no ouvir. Para Schaeffer o ouvir seria a
atividade realizada por um ouvido que recebe estímulos de um mundo dado e que não
realiza nenhum tipo ação sobre eles. Aqui podemos apontar ao menos três problemas para a
descrição da percepção, a saber: a) um ouvir que é incessante; b) um mundo dado antes da
experiência do mundo; c) um sujeito suposto antes da experiência.1
a) para o autor (Schaeffer, 1966, p. 104) o sujeito jamais cessa de ouvir e encontra-se em
um mundo que jamais cessa de estar ai. Em uma experiência de dia-a-dia estamos
constantemente realizando escolhas de hábitos de audição que resultam em um cessar de
ouvir algo para ouvir outro algo. A psicologia ecológica de Gibson e Baeteson, a
fenomenologia pontyana e a ciência cognitiva atuacionista de Maturana e Varela, mesmo
com suas diferenças de abordagens, oferecem uma explicação mais adequada para tal
conduta. De acordo com tais áreas de estudos, é necessário a substituição de uma
abordagem da percepção como um receptor2 de sensações, que conduz os estímulos ao
processamento interno, para as abordagens: ecológica, fenomenológica e autopoiética, que
apresentam a noção de sistemas perceptivos, que se fazem no seu viver, isto é, na sua
história de acoplamentos estruturais com o meio. Tais sistemas caracterizam-se por uma
ação no meio em busca de um acoplamento adequado com a situação vivida. No conhecido
exemplo do coktail-party phenomenon (Gibson, 1966, p. 84), o indivíduo orienta sua
atenção e passa a ouvir especificamente aquilo que quer. O sistema auditivo se auto-ajusta
através do tensionamento do músculo estapédico que regula o padrão de tensão da
membrana timpânica de acordo com o controle do sistema nervoso central, para melhor
detectar o padrão sonoro desejado (Guynton e Hall, 1997). Se a membrana timpânica está
ajustada para ressoar a um tipo de padrão sonoro, não irá ressoar com outros padrões,
resultando numa seleção e, portanto, na interrupção da audição de tais padrões sonoros, os
quais podem estar sendo ouvidos por outras pessoas com outros padrões de comportamento
auditivo.
b) para que a descrição de Schaeffer de um ouvir passivo, que capta o mundo
ininterruptamente, possa equivaler ao real, é necessário conceber um mundo existente
independente da experiência de existência desse mundo. Essa noção de mundo dado é
decorrente de um posicionamento dualista cartesiano sujeito/objeto que tem como
correlatos outros dualismos importantes na filosofia: mente/corpo e natural/cultural. A
fenomenologia desde Hussler e inclusive desde Hegel em sua Fenomenologia do Espírito
tem sido marcada por uma orientação para a eliminação de tais dualismos.
1
As alternativas explicativas aos problemas conceituais apresentados nesta seção serão descritos em
maior profundidade nas próximas seções.
2
A palavra receptor designa uma passividade no sentido de que o órgão recebe o estímulo ao invés de
buscar por ele. (Gibson, 1966).
134
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
c) a crença em um mundo dado, anterior à experiência resulta também em uma crença em
um sujeito hipotético independente da experiência. A circunscrição da noção de sujeito tem
sido um dos problemas centrais na Filosofia da Mente contemporânea. Estão ligados a tal
circunscrição conceitos como consciência, psiquê, self, mente, espírito, alma, etc. Desde
seu nascimento, a filosofia se ocupa com a descrição de tais conceitos sem chegar a uma
resposta conclusiva. Há uma marca cartesiana3 muito forte na filosofia moderna que
apresenta o sujeito como algo desligado de seu corpo. Na Fenomenologia da Percepção, MPonty supera esse dualismo apresentando uma descrição da mente (psique) e corpo como
entidades não separáveis:
O homem concretamente considerado não é um psiquismo unido a um
organismo, mas este vai-e-vem da existência que ora se deixa ser corporal e
ora se dirige aos atos pessoais. Os motivos psicológicos e as ocasiões
temporais podem-se entrelaçar porque não há um só movimento em um corpo
vivo que seja um caso absoluto às intenções psíquicas, nenhum só ato
psíquico que não tenha encontrado seu germe ou seu esboço geral nas
disposições fisiológicas. (M-Ponty, 1994, p. 130).
M-Ponty propõe a noção de um sujeito incorporado e situado. É a mesma noção proposta
por Varela et al., Maturana e Haselager (2003) de um sujeito corpóreo que se faz através de
sua ação no mundo. A noção de sujeito presente no trabalho de Schaeffer é filiada à
perspectiva hussleriana de sujeito transcendente, que é oposta a noção de sujeito encarnado
e situado no espaço e no tempo. (cf. M- Ponty, 1990, p. 159).
Resta-nos agora abordar os conceitos de entendre e comprendre. O entendre segundo
Schaeffer caracteriza-se por uma ação intencional na escuta. O problema do conceito de
entender centra-se no conceito de intencionalidade. O estudo de tal noção é central na
filosofia, especificamente na Filosofia da Mente. São referenciais nesta área de estudos os
trabalhos de Tomás de Aquino, Bretano, Dennet, Dretske, Fodor, Searle, Putnam, entre
outros. Não encontra-se no escopo deste artigo abordar especificamente problemas com a
noção de intencionalidade, o que é tarefa para futuros trabalhos. Ocorre que Schaeffer
encontra-se numa tradição dualista cartesiana na utilização de tal conceito, incorrendo com
isso em noções problemáticas tanto para a explicação da percepção quanto para a própria
demarcação de organismo, mente e sujeito conforme podemos na verificar na citação
abaixo:
Brentano argued both (A) that this reality-neutral feature of intentionality
makes it the distinguishing mark of the mental, in that all and only mental
things are intentional in that sense, and (B) that purely physical or material
objects cannot have intentional properties—for how could any purely physical
entity or state have the property of being “directed upon” or about a
nonexistent state of affairs? (A) and (B) together imply the Cartesian dualist
thesis that no mental thing is also physical. And each is controversial in its
own right.Thesis (A) is controversial because it is hardly obvious that every
mental state has a possibly nonexistent intentional object; bodily sensations
such as itches and tickles do not seem to, and free-floating anxiety is notorious
in this regard. (...) Dualism and immaterialism about the mind are unpopular
3
Há alternativas à Descartes que são contemporâneas a ele mesmo como é o caso de Spinoza. No
entanto, o cartesianismo já em sua época tornou-se tendência dominante.
Uma abordagem atuacionista
135
both in philosophy and in psychology—certainly cognitive psychologists do
not suppose that the computational and representational states they posit are
states of anything but the brain—so we have strong motives for rejecting
thesis (B) and finding a way of explaining how a purely physical organism
can have intentional states. (The MIT encyclopedia of the cognitive sciences,
1999, p. 414)
Na abordagem que propomos neste artigo apresentaremos uma explicação para a percepção
que não necessita deste conceito de intencionalidade por utilizar uma perspectiva não
dualista-cartesiana.
Em relação ao comprendre, Shaeffer o descreve utilizando noções próprias da tradição do
paradigma do processamento de informação para a explicação da percepção. Para o autor,
este estágio envolve a organização de significações que foram selecionadas
intencionalmente no entendre. Como Schaeffer coloca, o suposto sujeito é autor de
deduções, abstrações, comparações e relações de informações de fontes e naturezas diversas
(1966, p. 110). As atividades realizadas no entender e no compreender são próprias de um
sujeito metafísico, cartesiano e independente da experiência incorporada e situada no
mundo.
Conforme exposto no início desta seção, apresentaremos uma alternativa explicativa para as
funcionalidades da escuta de Schaeffer, porém para que isso seja possível buscaremos na
fenomenologia pontyana e no atuacionismo de Varela, fundamentos filosóficos mais
adequados para a descrição da percepção.
Um novo paradigma para o estudo da percepção
Os estudos feitos sobre percepção em diferentes áreas como a biologia (fisiologia), ou a
psicologia, ou ainda a filosofia vêm recebendo contribuições ao longo dos últimos 50 anos
que apontam o desenvolvimento de um novo paradigma, distinto daquele denominado por
processamento de informação originário da concepção dualista-cartesiana de mundo. Com
intenção de apresentar brevemente alternativas explicativas para a percepção auditiva a
presente seção trata da noção de percepção para dois autores que podem ser considerados
exemplares na busca por alternativas às propostas dualista-cartesianas. São eles MerleauPonty e Francisco Varela.
A experiência do corpo no mundo
A perspectiva apresentada na Fenomenologia da Percepção permite escapar de
encruzilhadas conceituais dualistas, sobretudo por retomar a experiência como objeto
central de seu estudo e colocá-la como fundamento ontológico de toda e qualquer descrição
sobre ela, como afirma o prefácio:
Tudo aquilo que sei do mundo, mesmo por ciência, eu o sei a partir de uma
visão minha ou de uma experiência do mundo sem a qual os símbolos da
ciência não poderiam dizer nada. Todo o universo da ciência é construído
sobre o mundo vivido, e se queremos pensar a própria ciência com rigor, (...),
precisamos primeiramente despertar essa experiência do mundo da qual ela é
a expressão segunda. A ciência não tem e não terá jamais o mesmo sentido de
ser que o mundo percebido, pela simples razão de que ela é uma determinação
ou uma explicação dele. (Merleau-Ponty, 1996, p. 3)
136
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Ao retomar a experiência como um retorno ao fenômeno, antes da explicação desse
fenômeno, Merleau-Ponty critica Descartes por colocar uma representação do mundo no
lugar do próprio mundo vivido, e apontar para tal representação como fundamento de toda
atividade cognitiva e mesmo perceptiva. Para Merleau-Ponty (1996, p. 7):
A percepção não é uma ciência do mundo, não é nem mesmo um ato, uma
tomada de posição deliberada; ela é o fundo sobre o qual todos os atos se
destacam e ela é pressuposta por eles. O mundo não é um objeto do qual
possuo comigo a lei de constituição; ele é o meio natural e o campo de todos
os meus pensamentos e de todas as minhas percepções explícitas.
Tal maneira de entender percepção e mundo é uma grande novidade ainda hoje, tanto para a
tradição filosófica quanto para a ciência cognitiva, ou psicologia e neurociência. As
conseqüências dessa amostra do pensamento de Merleau-Ponty podem ser destrutivas para
teorias que propõe seus fundamentos do conhecer em uma metafísica dualista cartesiana,
que tendem a deixar de fora a própria experiência cotidiana do conhecer e do perceber.
M-Ponty inicia sua Fenomenologia pela descrição do papel do corpo nas atividades
perceptivas. Criticando o dualismo-cartesiano o autor busca alternativas à perspectiva do
corpo-objeto da fisiologia e da psicologia clássica. Inicialmente a noção de corpo fora da
perspectiva dualista possibilita M-Ponty dispensar a noção de representação mental e
explicar a percepção como em conjunto com a ação (movimento) formando um sistema que
se modifica como um todo. Continuemos a citação:
Se, por exemplo, percebo que não querem obedecer-me e em conseqüência
modifico meu gesto, não há ali dois atos de consciência distintos, mas vejo a
má vontade de meu parceiro e meu gesto de impaciência nasce dessa situação,
sem nenhum pensamento interposto. (M-Ponty, 1996, p. 160)
Nesse sentido é o corpo no mundo que dá condições de comportamentos considerados
inteligentes. M-Ponty fala especificamente do hábito, mas como não estando nem no
pensamento, ou seja, como algum tipo de representação mental, nem no corpo-objeto, mas
no corpo como mediador de um mundo. Através do exemplo específico de um organista
que vai tocar em um órgão que não conhece, o autor explica de forma não mecanicista o
que ocorre. M-Ponty (1996, p. 201) afirma que o tal organista durante o curto ensaio que
precede o concerto, (...) não se comporta como o fazemos quando queremos armar um
plano. Mas ao contrário o organista usa todo tempo que tem para experimentar os pedais, as
teclas, utilizar com seu corpo o instrumento, vesti-se dele. Segundo o próprio autor o
organista:
(...) avalia o instrumento com seu corpo, incorpora a si as dimensões e
direções, instala-se no órgão como nós nos instalamos em uma casa. O que ele
aprende para cada tecla e para cada pedal não são posições no espaço objetivo
e não é à sua memória que ele os confia. Entre a essência musical da peça, tal
como ela está indicada na partitura, e a música que efetivamente ressoa em
torno do órgão estabelece uma relação tão direta que o corpo do organista e o
instrumento são apenas o lugar de passagem dessa relação. (M-Ponty 1996, p.
20 e 201).
O corpo tem papel fundamental para a explicação fenomenológica da percepção ele é o
próprio espaço expressivo, e é pela experiência do corpo no mundo que eu alcanço o
mundo. E na segunda parte da Fenomenologia M.-Ponty aborda o mundo percebido, não
Uma abordagem atuacionista
137
como um mundo objetivo, existente independente de um percebedor, como foi posto pela
tradição dualista. Nem como um mundo construído em mim como representação de um
mundo objetivo fora de mim. Mas como um mundo vivido, experimentado. Segundo o
próprio autor, pela experiência perceptiva me afundo na espessura do mundo. (M.-Ponty,
1996, p. 275.). Estando então ‘afundado’ no mundo, não necessito copiá-lo dentro de mim.
Isso não quer dizer que a fenomenologia negue a ocorrência de atividade neuronal, por
exemplo. O que ocorre é que com a fenomenologia há uma orientação para que o foco do
estudo da percepção esteja na experiência perceptiva, e não em supostas causas ou
conseqüências. Em outras palavras, a orientação dualista direciona o estudo das atividades
perceptivas como se fossem ou conseqüências ou causas das atividades neuronais (que
seriam as próprias representações mentais), e a fenomenologia aponta para a necessidade de
se focalizar a experiência de um corpo em um mundo se a intenção é estudar a percepção.
Com isso M.-Ponty apresenta uma definição de percepção completamente diferente daquela
trazida pelo processamento de informação. Entendendo o mundo, as coisas como
correlativos de meu corpo, M.-Ponty (1996, p. 429) afirma que a coisa nunca pode ser
separada de alguém que a perceba, nunca pode ser efetivamente em si, porque suas
articulações são as mesmas de nossa existência. Nesse caminho não faz sentido a noção de
um sujeito que processe as informações recebidas de um mundo dado de antemão. Para a
fenomenologia não há esse mundo dado antes da experiência, ou nas palavras do autor: o
que é dado não é somente a coisa, mas a experiência da coisa (...). (M.-Ponty, 1996, p.
436). Também esse sujeito não existe desligado do mundo, M.-Ponty é muito claro e direto
ao afirmar que:
O mundo é inseparável do sujeito, mas de um sujeito que não é senão um
projeto do mundo, e o sujeito é inseparável do mundo, mas de um mundo que
ele mesmo projeta. (M-Ponty, 1996, p. 576)
Assim, não há como argumentar em favor da percepção e da significação que ocorre na
percepção, como reelaboração construída por um sujeito que opera interpretando um
mundo que lhe é estranho e externo. Mas abre-se a perspectiva para entender a percepção
como certa maneira de agir no mundo, certa maneira de ser no mundo. Tal perspectiva será
desenvolvida também por outros autores além de M.-Ponty, como Varela, por exemplo, que
no início da década de 90 mostra-se comprometido com uma perspectiva que valoriza a
experiência para a explicação dela mesma. Há diversos outros autores que desenvolvem
pesquisas acerca de percepção e cognição e que vêm engrossando as fileiras de um
paradigma não dualista-cartesiano. Escolhemos abordar o trabalho de Varela por entender
que ele acaba condensando todo um conjunto de esforços que se desenvolve sob um nome
comum de ciência cognitiva e dialoga diretamente com a filosofia da mente.
O conhecimento faz o mundo, ou, o mundo e eu somos feitos na experiência.
Também é à tradição dualista e representacionista cartesiana que se encaminham as críticas
de Varela, Thompson e Rosh (2003, p. 150) quando falam de um tipo de ansiedade
cartesiana vivida com as questões sobre os fundamentos objetivos do mundo ou do sujeito
que conhece o mundo: Ao tratar a mente e o mundo como pólos opostos – o subjetivo e o
objetivo –, a ansiedade cartesiana oscila indefinidamente entre os dois na busca de uma
fundação. De acordo com os autores, a postura dualista-cartesiana gera ansiedade na
medida em que tais fundamentos objetivos (independentes da experiência) para o mundo e
138
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
para a mente não são alcançados suficientemente. Tal ansiedade é ainda geradora de
niilismo conforme afirmam na seqüência (Varela, Thompson e Rosh, 2003, p. 152): (...)
nossa ganância por um alicerce, seja ele interno ou externo, é a origem profunda de
frustração e ansiedade. A concepção de cognição como um tipo de representação de um
mundo dado, construída por uma mente é que temos apontado e criticado naquilo que
chamamos de adesão ao paradigma dualista-cartesiano.
Além da preocupação crítica Varela, Thompson e Rosh se incubem da tarefa de descrever
cognição de uma nova maneira, não dualista e que leve em conta, sobretudo o
conhecimento na experiência cotidiana do viver. Eles descrevem a cognição através da
noção de enacção4 ou atuação5, sempre como cognição corporificada e ação situada. Nesse
sentido apontam uma nova maneira de descrever atividades perceptivas, como a
discriminação de cores, por exemplo:
Vimos que as cores não estão “lá fora”, independentes de nossas capacidades
perceptivas e cognitivas. Vimos também que as cores não estão “aqui dentro”,
independentes do mundo biológico e cultural à nossa volta. Contrariamente à
visão objetivista, as categorias de cores são experienciais; contrariamente à
visão subjetivista, as categorias de cores pertencem ao nosso mundo biológico
e cultural. (Varela, Thompson e Rosh, 2003, p. 176)
Colocando as coisas dessa maneira, os autores apontam um caminho contrário ao dualismo,
e com isso a possibilidade de evitar as conseqüências problemáticas de tal opção teórica. A
abordagem atuacionista que vem sendo desenvolvida por mais de dez anos no seio da
ciência cognitiva e da filosofia da mente tem demonstrado importantes frutos quando
aplicadas por áreas de estudo tão diferentes como as artes, a lingüística, ou a robótica
evolucionária.
Os autores propõem a noção de percepção como ação perceptivamente orientada, e afirmam
também que as estruturas cognitivas emergem dos padrões sensório-motores recorrentes
que possibilitam a ação ser perceptivamente orientada. (Varela, Thompson e Rosh, 2003, p.
177). Isso é a própria definição da abordagem atuacionista para os autores citados. Para
essa abordagem do estudo da percepção não é importante, como no caso do paradigma
dualista-cartesiano, determinar como um mundo independente de um observador pode ser
recuperado, mas sim determinar os princípios comuns entre os sistemas sensorial e motor
que explicam como a ação pode ser orientada em um mundo dependente de um observador.
(Varela, Thompson e Rosh, 2003, p. 177). Em trechos subseqüentes os próprios autores
reconhecem sua filiação à tradição fenomenológica de M.-Ponty e trazem claramente sua
concepção de percepção não só como parte (ou embutida) de um mundo, mas como
colaboradora com a atuação desse mesmo mundo.
Aí está, de forma resumida, um conjunto de argumentações destacando possibilidades
explicativas da percepção e cognição no contexto da ciência cognitiva e filosofia da mente.
Acabamos de apresentar a abordagem denominada atuacionista de Varela, Thompson e
Rosh, que se desenvolve a partir de e concepções fenomenológicas de M.-Ponty. Tais
abordagens para o estudo da percepção (de M.-Ponty e Varela, entre outros) apontam para
uma alternativa no contexto das explicações sobre percepção. Elas não concebem nem um
4
5
De acordo com tradução de ennaction para o portugês de Portugal em edição do Instituto Piaget.
De acordo com tradução do termo ennaction para o portugês do Brasil em edição da Artmed.
Uma abordagem atuacionista
139
sujeito absoluto que existe e age separado de um mundo (que por sua vez também existe e
age independente do sujeito), nem um mundo objetivo, com coisas que existem
independentes de algum percebedor que as possa distinguir. Concebem então um
percebedor e um mundo que se fazem enquanto estão atuando acoplados estruturalmente
mantendo sua organização. Nesse sentido foi o título dessa seção afirmando que o conhecer
é atuar, viver, possuir uma história de acoplamento estrutural com o meio. E perceber é a
própria ação no mundo, que nunca existe sem orientação perceptiva, e não com
representações ou orientações para um mundo externo.
Um outro autor bastante importante para a pesquisa sobre cognição e percepção, H.
Maturana, que não será aprofundado no presente texto por uma questão do recorte
momentâneo, tem uma citação muito rica para concluir a presente seção. Com ela Maturana
amplia a noção de percepção, saí da perspectiva do per-capere (literalmente: obtido por
captação) e entende percepção como o nome que um observador atribui a uma conduta
específica, ou um mundo de ações. Nas palavras do autor:
O mundo cognitivo que vivemos, através da percepção, se assemelha a isso:
produzimos um mundo de distinções através de mudanças de estados que
experimentamos enquanto conservamos nosso acoplamento estrutural com os
diferentes meios nos quais estamos imersos ao longo de nossas vidas, e, então,
usando nossas mudanças de estado como distinções recorrentes em um
domínio de coordenações de coordenações de condutas consensuais
(linguagem), produzimos um mundo de objetos como coordenações de ações
com as quais descrevemos nossas coordenações de ações. (Maturana,
1997/2001, p. 103).
Les Quatre Écoutes como hábitos de escuta
Após esta apresentação das propostas de M-Ponty e Varela, estamos aptos a desenvolver as
críticas e alternativas explicativas esboçadas na segunda seção.
Conforme citamos acima, apontamos como relevante para nosso estudo a catagorização
schaefferiana das funcionalidades da escuta como banalle e praticienne. Tal organização
pode ser relacionada com aquela descrita na teoria da percepção direta de Gibson (1966 e
1979).
Segundo Michaels e Carello (1981), todas as teorias que estudam a percepção partem do
pressuposto de que o comportamento dos animais demonstra o quanto conhecem seu meioambiente. Porém, existe uma diferença em como cada teoria explica esse tipo de
conhecimento. Essa diferença, segundo as autoras, divide os estudos sobre percepção em
Teorias da Percepção Indiretas (uso de representações mentais) e Teoria da Percepção
Direta.
Gibson e seus seguidores adotaram uma perspectiva Ecológica ao afirmar que perceber é
um processo que se dá num sistema mutuamente informacional formado por animal e meio
ambiente, e não somente no animal tal como ocorre com a percepção Indireta. Outro ponto
crucial que diferencia esses dois blocos que estudam a percepção é que a Teoria da
Percepção Direta não concorda com o uso de memórias e representações mentais, ou seja,
não há mediação na atividade perceptual, por isso ser denominada como uma teoria da
140
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Percepção Direta, ao contrário das teorias da Percepção Indireta que explicam os processos
perceptuais com o uso da mediação.6
Para explicar a atividade de acoplamento estrutural entre organismo e meio na experiência
sonoro-musical, Oliveira & Oliveira 2003 utilizam-se de noções advindas da Teoria da
Percepção Direta de Gibson:
A percepção quando descrita como o acoplamento estrutural entre organismo e meio,
elimina a noção de representação da explicação da atividade perceptiva. Essa maneira de
abordar a percepção como um ciclo de percepção-ação é o que Gibson denomina como
percepção direta (Gibson, 1979). De acordo com tal teoria, Gibson categoriza a percepção
em dois tipos: primeira e segunda mão. Naquilo que Gibson denomina por percepção de
primeira mão encontra-se um tipo de ação que é caracterizada pela imediatidade. O
organismo percebe o mundo e age sem que tal ação envolva aquilo que se caracterize por
um planejamento anterior (representação mental). Como exemplo desse tipo de ação,
podemos tomar o caso de alguém que caminha em um terreno acidentado. No seu caminhar
ele desvia dos acidentes e procura um caminho estável para que seu andar possa ocorrer.
No entanto ao visualizar um buraco, por exemplo, nosso caminhante não tem tempo de
planejar que tipo de posição de perna, de pé, enfim, o de corpo inteiro, ele irá tomar. Seu
corpo se coloca, imediatamente, em condições de superar o obstáculo. Não há como
observar aí um plano prévio, por mais rápido que pudesse ocorrer. O corpo se molda à
situação, age sem intermediários, age orientado diretamente pela percepção. Em se tratando
de música, os exemplos de percepção de primeira mão são também esclarecedores.
Tomemos o caso de um regente à frente de uma orquestra. Por mais que o regente tenha
preparado previamente seu conjunto de movimentos, fundamentado no estudo da partitura,
o momento da execução exige um tipo de ação imediata do regente, para adequar a
sonoridade resultante da performance, a cada momento. Variações em diferentes aspectos
musicais (dinâmica, agógica, articulação...) ocorrerão e cabe ao regente adequá-las para
conseguir a sonoridade esperada. A realização de seus padrões gestuais, é sempre orientada,
no momento da execução, pela percepção daquilo que está sendo gerado na performance da
orquestra. Forma-se assim o ciclo percepção-ação. Em contra-partida, o planejamento do
gestual para a performance, e todo o conjunto de conceitos teóricos musicais utilizados para
a construção de tal planejamento caracterizam-se pelo que Gibson, Maturana, M-Ponty e
Varela entendem como percepção de segunda mão7. Essa percepção caracteriza-se por um
nível superior de recorrência do acoplamento estrutural, por isso ser um segundo, que é
sempre orientada e orienta a primeira mão. Com isso podemos observar a ação de um corpo
(encarnado) em uma situação específica (situado) num ciclo de percepção-ação que ocorre
com diferentes níveis de recorrência. Se optarmos pela descrição de cognição de Varela et
al (1991) e Maturana (1995) podemos entender que aquilo que denominamos por percepção
e por conhecimento são descrições condutuais consensuais mais ou menos recorrentes
observadas nos diferentes níveis de sub-redes sensóriomotoras em seu operar no meio,
6
Gibson não nega a existência das representações mentais, mas afirma que na atividade perceptual
elas não são utilizadas. Para uma visão aprofundada sobre a crítica à representação mental no
processo perceptual ver Haselager (2003).
7
Apenas Gibson utiliza o termo second-hand perception. No entanto os outros autores citados
também apresentam um tipo de categorização da percepção que pode ser descrito adequadamente
segundo a noção gibsoniana referida.
Uma abordagem atuacionista
141
guardando suas identidade e mantendo seu acoplamento estrutural. Tal nível maior ou
menor de recorrência está diretamente relacionado com aquilo que entendemos por
percepção de primeira mão (baixa recorrência) e percepção de segunda mão (alta
recorrência).
Como já afirmamos, Schaeffer se aproxima muito dessa categorização ao agrupar as
funcionalidades da escuta na dupla banale e praticienne. O agrupamento do escutar e do
ouvir em uma escuta banale, de dia-a-dia segundo Windsor (1995), corresponderia à
primeira mão tal qual descrevemos acima e a dupla entender/compreender agrupada em
uma escuta praticienne corresponderia à segunda mão. Temos assim uma substituição
possível às funcionalidades schaefferianas da escuta que resolveria os problemas de
conceituação e de explicação da percepção apoiadas em uma abordagem dualistacartesiana, que era exatamente o que Husserl e a tradição fenomenológica pretendia
expurgar.
Devemos ressaltar que nossa reformulação não apresentará prejuízos para o retorno que
Schaeffer realiza ao quadro das funcionalidades no intuito de realizar a passagem da música
tradicional para a música experimental. Para isso Schaeffer propõe a inversão no
direcionamento das atitudes perante o fenômeno sonoro. Na música tradicional esse
direcionamento ocorre de uma etapa de identificação dos valores musicais, que englobam o
compreender e o escutar como domínio da musicalidade, para uma qualificação, que
engloba o ouvir e o entender em um domínio da sonoridade. Temos assim o domínio da
musicalidade que representa as identificações abstratas e conceituais sendo posteriormente
efetivadas no mundo no domínio da sonoridade. A inversão se da a partir de uma
qualificação realizada no domínio da sonoridade, através da escuta reduzida e sua
decorrência no objeto sonoro, para posteriores identificações e organizações de coleções de
significações no domínio da musicalidade. Ao reorganizarmos o quadro das
funcionalidades da escuta, teremos a escuta como um todo, que num nível de recorrência
inferior é caracterizado pela percepção de primeira-mão e num nível de recorrência superior
pela percepção de segunda-mão.
A inversão da atividade composicional, do fazer-ouvir para um ouvir-fazer, pode ser
melhor descrita, nos termos das teorias abordadas aqui, como um caminho de valorização
da percepção de primeira mão. Da maneira que Schaeffer apresenta sua inversão, não é
possível, ou melhor, não é objetivo da escuta reduzida a ocorrência de significação na
percepção de primeira mão, mas ela própria é a proposição de um segundo nível de
recorrência (segunda mão) sobre a percepção imediata. Nesse sentido o autor nem
considera a possibilidade da emergência de significação na percepção de primeira mão. O
que consideramos central para a crítica e proposições realizadas no presente estudo é
apontar que diversos autores8 indicam um tipo de significação perceptiva, próprios da
ocorrência do ciclo percepção-ação de um corpo em um meio específico. O caminho que os
referidos autores propõem é um tipo de descrição para as significações próprias de cada
uma das duas categorias de percepção. É relevante observar que Gibson, ao argumentar em
favor de uma significação própria da percepção de primeira mão, não rejeita a possibilidade
de um tipo de significação que ocorra utilizando mediações. Ao contrário, tal autor afirma
8
Gibson, Maturana, Varela e M-Ponty, por exemplo.
142
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
que o caso de um tipo de significação indireta, mediada por representações,9 pode ser
descrito adequadamente como de segunda-mão, ou seja, com um nível maior de recorrência
da coordenação condutual consensual no operar do organismo em seu meio.
Essa reformulação do quadro de escutas nos direciona para uma reformulação do próprio
conceito de objeto sonoro. Como afirmamos, o objeto sonoro de Schaeffer é obtido pela
redução fenomenológica. Tal redução visa a eliminação dos condicionamentos culturais
(hábitos) da escuta, para que seja desvelado o objeto sonoro. Tal objeto está relacionado à
noção de essência, o que coloca a experiência apenas como um aspecto passageiro e menos
importante na percepção. Nesse sentido a experiência é uma das etapas na construção das
significações possíveis para o objeto sonoro. Com tal posição Schaeffer incorre ao mesmo
erro cartesiano criticado por M-Ponty, de substituir o mundo por uma representação do
mundo, ou mais especificamente no caso hussleriano, substituir a experiência do mundo por
suas essências. Tais essências se configuram em um conjunto de características universais
dos múltiplos objetos possíveis à escuta. Com isso Schaeffer espera criar um sistema de
categorização que seja independente de qualquer situação de escuta. Ao comparar as
escutas do músico, do engenheiro e do ouvinte comum, Schaeffer encontra diferenças de
significação decorrentes da escuta especializada de cada um deles e atribui à escuta
reduzida a função de revelar o objeto sonoro, enquanto essência, e a função de possibilitar
uma classificação que será comum a todas as pessoas em todas as situações de escuta. No
entanto, ao propor um tipo de escuta próprio para acessar a essência da experiência sonora,
seu objeto sonoro, o autor acaba por substituir um grupo de hábitos de escuta, por um outro
hábito, denominado por ele mesmo como antinatural, como podemos ler:
Como posso descrever no plano puramente sonoro um galope? (...) Necessito
volver à experiência auditiva, recapitular minhas impressões, para reencontrar,
através das mesmas, informações sobre o objeto sonoro, e não mais sobre o
cavalo. (...) Na verdade se trata de um retorno às fontes, à ‘experiência
originária’, como diria Husserl – que se tornou necessária por uma ‘mudança
do objeto’. Antes que um novo treinamento me seja possível e que possa ser
elaborado um outro sistema de referências, desta vez apropriado ao objeto
sonoro, eu deveria libertar-me do condicionamento criado por meus hábitos
anteriores, passar pela prova da époché. Não se trata de forma alguma de um
retorno à natureza. Nada nos é mais natural do que obedecer à um
condicionamento. Trata-se de um esforço ‘antinatural’ para perceber aquilo
que antes determinava a consciência inadvertidamente. (Schaeffer, 1966, p.
270)
É especificamente quando qualifica a experiência à qual se deve recorrer (experiência
originária) para descrever adequadamente um evento sonoro, que Schaeffer tira a
experiência do evento sonoro-acontecendo do centro da descrição dele próprio e coloca em
seu lugar um tipo de representação mental anteriormente elaborada e armazenada na
memória. Tal representação seria uma espécie de essência do evento percebido, ou seja, o
objeto sonoro encontrado a partir da escuta reduzida.
A partir dessas observações sobre essa importante citação, confirma-se que a noção de
objeto sonoro, que Schaeffer desenvolve no Traité, está relacionada diretamente à própria
noção de representação mental adequadamente elaborada. A experiência de estar ouvindo
9
Estamos nos referindo à noção de representação não como representação interna/mental.
Uma abordagem atuacionista
143
um evento sonoro em uma situação específica é apenas o início do processo de
desvelamento do objeto essencial, a ser alcançado por um hábito específico (escuta
reduzida). A experiência de ouvir o evento sonoro em um meio específico não é suficiente
para caracterizar o objeto sonoro schaefferiano, é antes, apenas o início do processo de
desvelamento desse objeto, que será completado por outras etapas realizadas na mente do
ouvinte. Dessa forma, Schaeffer incorre em um erro de acreditar que buscava uma
descrição para a percepção de todo o possível acústico em meios fenomenológicos, que
pudessem ser estendidos a qualquer indivíduo. A busca da essência da escuta, que
eliminaria qualquer referência a condicionamentos pessoais, através da escuta reduzida,
garantiria tal universalidade. Porém, o que temos é que Schaeffer cria mais uma forma
especializada de escutar o mundo em que a tipo-morfologia, base fundamental para o seu
solfejo dos objetos, acaba por ser um a priori que guiará toda a escuta do mundo.
Poderíamos dizer que o solfejo dos objetos é a escuta praticienne do compositor acusmático
que deve ser apreendida e condicionada para que funcione de acordo com o esperado por
Schaeffer, portanto não pode configurar-se como uma explicação dos fundamentos da
percepção, já que ela encontrar-se-ia na segunda-mão, sendo uma elaboração sobre a
percepção de primeira-mão e não seu fundamento.
Nossa proposta alternativa à escuta reduzida pode ser denominada como audição
corporificada e situada. Com um tipo de significação que se dá sempre a partir de um
ouvir/agir de um corpo específico em uma situação específica. Com isso é necessário que
tenhamos claro dois conceitos, a saber: som situado e audição corporificada e situada:
The sonic phenomenon is result of a mechanic event generated by the
movement of any body composed with some elastic material, or a simulation
of it in a computerized environment. This event, in all case, is always
embedded in a specific situation, with a specific characteristics deriving of the
relation between the perceiver and his environment. (Oliveira e Oliveira,
2003)
A partir de tal citação podemos descrever adequadamente o que propomos como audição
corporificada e situada. De acordo com Gibson (1966) o estudo da percepção não deve ser
concebido apenas a partir da noção de órgão do sentido, aliás ele troca “órgão do sentido”
por “sistema perceptivo”. O autor ressalta que os ouvidos estão na cabeça sobre o pescoço,
sobre os ombros e sobre o resto do corpo. Tal corpo se movimenta no meio em busca de
operar em congruência com o ambiente para adequar o acoplamento estrutural no sentido
de manter sua identidade.
Após toda exposição acima podemos apresentar uma alternativa à noção do objeto sonoro
schaefferiano. Tal noção encontra-se, como vimos, enraizada na metafísica dualistacartesiana, e como tal, carece de estrutura argumentativa tanto epistemológica quanto
ontológica. O que propomos como alternativa é o conceito de objeto sonoro como
distinções realizadas por um organismo em sua história de condutas operacionais no sentido
de manter sua identidade, mantendo seu acoplamento estrutural. Aqui fica claro que nos
apoiamos em uma epistemologia própria especificamente de autores como M-Ponty e
Maturana, como já nos referimos anteriomente.
Assim esperamos também propor uma alternativa de fundamentação filosófica para a
metodologia schaefferiana de circunscrever o objeto sonoro através da redução
husseleriana. Acreditamos que a fenomenologia pontyana pode ser muito mais interessante
144
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
para a composição musical contemporânea, uma vez que fundamenta a explicação sobre a
percepção em bases alternativas ao dualismo cartesiano.
Dessa forma, ao abordar a tipo-morfologia de Schaeffer e sua estruturação final no quadro
de solfejo dos objetos musicais, podemos pensar que todo o seu conjunto de categorizações
pode ser entendido como uma possibilidade de escuta entre muitas possíveis. Como
afirmamos acima, tais categorizações podem ser a descrição das distinções que afirmamos
acima, porém em uma história de acoplamentos estruturais típicas de um compositor
acusmático que passou pelo treinamento (aquisição de hábitos) de perceber segundo os
critérios tipo-morfológicos de Schaeffer. O mais importante dessa abordagem é que a tipomorfologia passa a ser não um fundamento essencial da percepção, mas sim uma possível
descrição de um tipo de escuta de um indivíduo que possui essa história de acoplamentos
com o meio. Em Toffolo 2004, sugerimos uma re-adequação do quadro do solfejo dos
objetos musicais que visava uma simplificação das inúmeras categorias. Tal simplificação
foi no sentido de limpar alguns conceitos presentes no quadro que apresentavam grande
dubiedade e tal dubiedade é decorrente dos problemas aqui apresentados. Ao reorganizar os
conceitos chaves da teoria de Schaeffer chegamos à um quadro mais funcional e enxuto da
tipo-morfologia que se apresentou como uma ferramenta interessante tanto para a
composição como para a análise do repertório acúsmático e de Paisagens Sonoras.
Com o apresentado neste trabalho acreditamos contribuir para uma renovação da teoria de
Schaeffer tornando-a atual e condizente com as bases fenomenológicas modernas, o que só
reforça a importância e a grandeza do Traité e o seu caráter de indispensável para o estudo
da percepção e da composição musical contemporânea.
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Rael Bertarelli Gimenes Toffolo: Compositor, professor de Composição e Matérias
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ecológica, inteligência artificial aplicada à música e ciência cognitiva. André Luiz
Gonçalves de Oliveira: Licenciado em Música pela Universidade Estadual de
Londrina – 1997. Mestre em Filosofia – Universidade Estadual Paulista – 2002.
Compositor e professor de música em ensino superior, fundamental e pós-graduação.
Pesquisador na área de ciência cognitiva e filosofia da mente.
Cyro Pereira e a Brasiliana n. 2
Renato Kutner; Emerson De Biaggi (UNICAMP)
Resumo: Este artigo apresenta aspectos estilísticos, formais e históricos da Brasiliana
n. 2 para viola e orquestra de Cyro Pereira, levantados até o momento. Esta peça foi
por nós editada, e é objeto de nossa dissertação de mestrado. Palavras-chave: Cyro
Pereira- Brasiliana n. 2- Viola.
Introdução
Grande parte do repertório musical brasileiro ainda está por revisar, e é de difícil acesso, a
exemplo de muitas obras de Villa-Lobos que ainda não foram editadas, e as que estão, em
sua maioria na França e Estados Unidos, ou as de Camargo Guarnieri, que só atualmente
estão sendo editadas também no exterior, ou ainda da nossa produção mineira do período
colonial que tem muito por revisar e editar. Em contraste com essa situação, ao
executarmos peças de compositores europeus, além de encontrarmos várias edições da obra,
encontramos literatura sobre o compositor, sobre sua obra e inúmeras gravações, podendo
assim começar o trabalho interpretativo munidos de informações sobre o universo artístico
do compositor. A tudo isto se some o fato de o repertório de viola não ser muito extenso
comparado ao de outros instrumentos como piano ou violino. Estas razões nos motivaram a
escolher dentro do repertório nacional uma peça que justificasse uma pesquisa.
Tivemos nos últimos 15 anos contato com o compositor Cyro Pereira por participarmos
como violista da Orquestra Jazz Sinfônica do Estado de São Paulo, onde ele atua como
maestro, compositor e arranjador1 tendo assim a oportunidade de conhecermos uma grande
parte de sua obra.
Justificativa
Cyro Pereira é, na nossa opinião, um dos grandes compositores brasileiros da atualidade.
Apesar de se considerar um músico popular2 e ter militado nesse tipo de música quase toda
sua vida, a sua obra indica que muitas vezes os limites entre música popular e erudita talvez
não sejam tão delineados. Sua obra é imensamente diversificada, desde peças para
instrumentos solo, passando por música de câmara e chegando a grandes formações
orquestrais. Dentro destas últimas, existem peças de sua autoria assim como arranjos de
músicas populares. Cyro3 não foi vinculado à escola nacionalista, apesar de ter sido
influenciado por ela no contato que teve em seus anos de trabalho em radiodifusão com
1
A Jazz Sinfônica é uma orquestra que foi criada por Arrigo Barnabé em 1990, na gestão de
Fernando de Moraes como secretário de cultura do Estado de SP. Seu primeiro diretor artístico foi o
compositor Eduardo Gudin. Seu maior objetivo é o de resgatar o passado das orquestras de rádio que
existiram no Brasil até a década de 70, em que a música brasileira era tocada com arranjos sinfônicos.
Esta proposta foi sendo ampliada para as diversas vertentes da música brasileira. Nestes 15 anos de
existência, ela além de ter acompanhado quase todos os grandes nomes da música popular brasileira,
sejam cantores ou instrumentistas, abriu campo para novos arranjadores que muitas vezes estavam
restritos ao mercado fonográfico ou publicitário. Passaram pelos palcos da Jazz muitos nomes, dos
quais citaremos alguns apenas para ilustrarmos a diversidade: Tom Jobim, Milton Nascimento,
Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Edu Lobo, Dori Caymmi, Zélia Duncan, Sivuca, Naná
Vasconcelos, Cássia Eller, MPB4, Os Cariocas, Leila Pinheiro, Ivan Lins, Zizi Possi, Chico César,
grupos instrumentais como Pau Brasil e Uakti, arranjadores como Edmundo Villani e Luís Arruda
Paes, e nomes internacionais como Joe Zawinul, Turtle Island Quartet, Arturo Sandoval entre muitos
outros. Ela dispõe de um acervo de mais de 700 arranjos e músicas quase todos escritos especialmente
para ela e conta até esta data com 9 CDs gravados.
2
Entrevista concedida ao autor em 17/05/2004
3
Ao nos referirmos a Cyro Pereira, optamos usar o primeiro nome, Cyro, do que seu sobrenome.
Cyro Pereira e a Brasiliana n. 2
147
alguns compositores desta escola. Sua obra tem uma linguagem própria, sempre
despretensiosa como uma boa música popular, e com grande refinamento de escrita e
orquestração.
Esta peça, a Brasiliana n. 2, se mostrou apropriada para uma pesquisa por ter sido pouco
tocada,4 divulgada e não estar editada. Ela é uma obra escrita na forma suíte-concerto, em
três movimentos (rápido-lento-rápido), para viola e orquestra. Estes movimentos são
escritos em formas bem brasileiras, um Samba, uma Valsa Brasileira e um Choro. É uma
peça virtuosística, de grande desafio técnico ao solista, pela mestria da instrumentação, e
pela originalidade aliada à simplicidade das formas. Sua revisão, com possibilidade de
esclarecimento de possíveis dúvidas com o próprio compositor, somando-se sua edição e
execução, tem como objetivo preservar, enriquecer, e difundir o repertório musical
brasileiro para viola e a obra de Cyro Pereira.
Objetivos
a) Fazer análise interpretativa verificando sua estrutura formal, sua orquestração, sua
harmonia, aspectos idiomáticos, bem como comentários técnicos de execução.
b) Editar, revisar, executar com orquestra e reduzir a partitura orquestral para piano para
aumentar a possibilidade de execução.
Executar a obra em concertos.
d) Discutir a questão dos caminhos possíveis de interpretação da obra.
Procedimentos técnicos:
1.
Edição do manuscrito: A partitura foi digitalizada a partir de cópia do original.
Foram extraídas da partitura as partes de cada instrumento, e editadas, tendo sido
comparadas com as partes copiadas pelo compositor, anotando-se todas
contradições encontradas em uma tabela. Foi discutida com o compositor cada
uma dessas anotações e acrescentadas as conclusões a esta tabela. A partitura foi
digitalizada em versões de tamanhos A 4 e A3. A partitura e as partes foram
revisadas duas vezes, uma delas por um outro músico,5 para corrigir erros de
digitação ou do autor.
2 . Redução: Realizamos uma redução para piano do 1º e 3º movimentos. O 2º
movimento já existia nesta versão feita pelo próprio Cyro Pereira. O objetivo desta
redução é, além servir para estudo e conhecimento da obra, o de tornar possível
sua execução com piano em recitais de música de câmera. Esta redução foi
mostrada ao compositor, que aprovou o resultado final.
3 . Estudo da Obra para sua execução: Este estudo consiste da leitura e estudo
práticos da obra no instrumento, anotando-se todas as dificuldades,
desenvolvimento de dedilhado, arcadas, articulações, enfim, tudo o que se refere à
execução propriamente dita. Está agendada a apresentação da obra para o
compositor, para discussão dos diversos caminhos técnicos e interpretativos.
4
Até onde pudemos apurar, além de Marcelo Jaffé, esta peça foi tocada, até esta data, somente por
Newton Carneiro e Alexandre de Leon com a Orquestra Jazz Sinfônica e estes últimos, apenas o 3º
movimento.
5
O violista Alexandre de Leon.
148
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Cyro Pereira
O compositor e arranjador Cyro Pereira, nasceu na cidade de Rio Grande, RS, em
14/08/1929. Mudou-se para São Paulo em 1950, onde vive e desenvolveu sua extensa
carreira. Trabalhou na rádio e televisão Record e posteriormente na TV Tupi. Na TV
Record participou como maestro e arranjador dos memoráveis Festivais de Música Popular
Brasileira de 1966 a 1969. Foi o criador em 1965, em parceria com Mário Albanese do
ritmo Jequibau, ritmo este que alcançou grande sucesso no exterior e foi gravado em 23
países. Ganhou diversos prêmios entre eles o Roquette Pinto em 1957 e 1966, e o Prêmio
Carlos Gomes em 1996. A partir de 1989 foi professor da Unicamp de orquestração dentro
do curso de graduação em música popular até se aposentar em 1999. No mesmo ano de
1989 participou da criação da Orquestra Jazz Sinfônica do Estado de São Paulo, onde
permanece até hoje como Maestro e compositor residente.6
A Suíte Brasiliana n. 2
Cyro Pereira escreveu quatro suítes Brasilianas até esta data. Como ele próprio define em
entrevista7, Brasiliana refere-se a uma suíte com danças e ritmos brasileiros.
Este nome, Brasiliana, é inspirado na obra de Radamés Gnattali, que usou este termo para
inúmeras peças (Barbosa, 1984, p. 73). Ele comenta nesta entrevista que ouvia muito os
arranjos de Gnattali no rádio, e que este tipo de música foi que o impulsionou mais tarde a
querer aprender a escrever para orquestra. Sua primeira Brasiliana foi escrita para o
Concurso de Composição Cidade de São Paulo, em que ganhou menção honrosa e foi
estreada em 29 de abril de 1963, com a Orquestra Municipal de São Paulo (Shimabuco,
1998, p. 22, 23). Ela está escrita numa forma um pouco diferente das outras subseqüentes,
contando com cinco movimentos tendo o caráter mais usual de suíte. Estes movimentos se
enquadravam na forma pedida no concurso, a saber: Dobrado, toada, valsa, choro e baião.
Já as outras três Brasilianas são na verdade concertos para instrumento solo, a segunda para
viola, a terceira para violoncelo e a quarta para trompete. A segunda consta de três
movimentos: Samba, Valsa e Choro. A terceira também conta com três movimentos,
Choro, Prelúdio e Frevo, sendo o prelúdio uma adaptação da primeira peça da Pequena
suíte para grandes amigos de 1998 para piano solo (Shimabuco, 1998, p. 51). Sua
orquestração conta com cordas e bateria. Até o momento permanece inédita. A quarta é
para trompete solo e orquestra de sopros, e foi estreada no Festival de Inverno de Campos
de Jordão de 2005, por Daniel D’Alcântara no trompete acompanhado pela Orquestra Jazz
Sinfônica. Seus movimentos são: Choro, Canção e Frevo. Seu terceiro movimento foi uma
adaptação do frevo Ventania para orquestra completa, de autoria do próprio compositor.
A Brasiliana n. 2 foi dedicada ao violista Gualberto Estades Basavilbaso8 e estreada em
01/03/94, em São Paulo, com a Orquestra Jazz Sinfônica tendo Marcelo Jaffé9 como solista
6
As informações contidas nesta pequena biografia foram retiradas principalmente da dissertação de
mestrado de Luciana Sayuri Shimabuco (1998, p. 11–48), além de outras fornecidas pelo próprio
compositor.
7
Entrevista cit.
8
O Prof. Basavilbaso foi professor de viola da Universidade de Campinas. Em sua tese de doutorado,
Origens e desenvolvimento técnico da viola, Unicamp, Campinas, 1995, insere três fragmentos facsímiles da Brasiliana n. 2 dentro de uma série de exemplos musicais sobre obras violísticas nas
páginas 275 a 277.
9
Marcelo Jaffé é um dos mais atuantes violistas brasileiros. Nascido em 1963 em São Paulo é
professor de viola da Universidade de São Paulo, violista do Quarteto de Cordas da Cidade de São
Paulo e foi diretor artístico da Orquestra Jazz Sinfônica do Estado de São Paulo.
Cyro Pereira e a Brasiliana n. 2
149
(Shimabuco, 1998, p. 51). Sua orquestração conta com os seguintes instrumentos: Cordas
completas, 3 flautas com a terceira revezando com flautim, 2 oboés, 2 clarinetas em si
bemol, 2 fagotes, 4 trompas, harpa, bateria e tímpano. A percussão não é usada no segundo
movimento enquanto que a harpa somente é utilizada nele.
Mesmo sendo uma suíte, a Brasiliana n. 2 é também um concerto na sua forma mais
corriqueira: “Uma peça instrumental que mantém contraste entre um conjunto orquestral e
um grupo menor ou um instrumento solista, ou entre vários grupos e uma orquestra inteira”
(Fuller, in Grove, v.4, p. 626, tradução nossa). Apesar das suítes geralmente serem
formadas por mais de três movimentos, esta obra possui apenas três. Este fato não
descaracteriza esta forma, mesmo porque, as formas sempre apareceram na história da
música de maneira muito variada (Bas, 1947, p. 296). Vale lembrar que os concertos
barrocos têm sua origem na forma suíte, contando geralmente com quatro movimentos com
caráter de dança.(Zamacois, 1985, p. 206 e 207), passando em época posterior a possuir três
movimentos, como por exemplo, os concertos de J.S. Bach para violino solo.
1º movimento: Samba
O Samba10 é um gênero que aparece em formas bem variadas. Suas características
principais são: compasso 2/4 (às vezes 4/4), melodia sincopada sobre uma batucada
característica. Os tipos mais popularizados são: samba canção, samba enredo, samba de
breque, samba-choro, entre outros. Geralmente a forma mais usada consta de duas partes
podendo ser uma delas um estribilho ou refrão: A letra da música vai mudando numa delas,
e na outra, o refrão, ela se repete. Esta forma se parece com um rondó, com a diferença que
no rondó uma das partes vai sendo variada, não na letra, porém na música, enquanto que a
outra, que é o estribilho, aparece inalterada. Este movimento difere principalmente do que
conhecemos por samba por ter sido escrito para viola, instrumento que tradicionalmente
não toca este tipo de música. Cyro usou a batida característica do samba na bateria, com
partes na viola solista escritas como se a viola fizesse o papel de um cantor (c. 41 a 47, Ex.
1):
Ex.1: cc. 41–47. Uso da viola de maneira melódica
E em outros de maneira instrumental, idiomática11 (Kubala, 2004, pp. 47–51) e mais
virtuosística, como nos compassos 2 e 3, Ex. 2 ou nos compassos 62 a 66 Ex. 3:
10
Fontes consultadas sobre o samba: Andrade, 1965, p. 145; Cascudo, 2000, p. 614 e Enciclopédia da
Música Brasileira, 1998, p. 704.
11
O termo idiomático e sua aplicação foram amplamente discutidos na dissertação de mestrado de
Ricardo Kubala (vide bibliografia). Adotaremos também este termo, pois ele descreve
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
150
Ex. 2: c. 2–3. Uso da viola de maneira especificamente instrumental.
Ex. 3: cc. 62–66. Uso da viola de maneira mais virtuosística.
Neste movimento o compositor cria temas ambientados na música popular brasileira,
principalmente do período da bossa nova. A harmonia usada e o caráter da peça remetem a
este período da música popular muito admirado pelo compositor e sobre o qual realizou
inúmeros arranjos e fantasias.
Um fato que nos chama a atenção é que estes ritmos brasileiros exigem para sua execução
um conhecimento prévio da tradição musical ligada a este tipo de música. Segundo Cyro
Pereira,12 é quase impossível escrever o que realmente é interpretado num samba ou choro.
O baterista que executar esta música deve ter experiência na execução de sambas e choros.
Este fato poderá dificultar a execução desta peça no exterior por músicos não brasileiros
que não tenham tido contato com a música brasileira. Mesmos músicos da chamada
formação erudita, em nosso ponto de vista, teriam de se familiarizar com este tipo de
música antes de executar esta peça, sob o risco de tocá-la totalmente fora de contexto, sem
a característica “ginga” brasileira.
2º movimento: Valsa
O segundo movimento da Brasiliana n. 2 é uma Valsa, e foi inspirada na peça para piano
solo, Pois é!!! Nem parece! de 1993. Sobre este nome da peça quando na versão para piano
solo, o autor explica que, por ocasião do 65º aniversário de sua esposa, fez uma brincadeira
e lhe dedicou essa música.13 Realizou também uma adaptação para piano e viola deste
movimento e outra para violoncelo e piano. Esta última está um tom abaixo do original. As
duas foram compostas em novembro de 1993. Esta valsa é feita de uma forma bem
peculiar, onde às vezes não se sente o compasso, com muito rubato e fermatas, no estilo
que Cyro chama de Valsa Brasileira (Ex. 4).14
satisfatoriamente quando uma escrita musical está bem aplicada às particularidades de um
determinado instrumento.
12
Entrevista cit.
13
Reunião entre o autor e Cyro Pereira em 28/01/2005.
14
Entrevista cit.
Cyro Pereira e a Brasiliana n. 2
151
Cabe aqui um aparte sobre a história dessa forma abrasileirada de valsa. Segundo a
Enciclopédia Da Música Brasileira (1998, p. 803), a valsa aqui aportou com a vinda da
família real portuguesa, em 1808, e tornou-se popular nos salões. Logo passou a ser um
gênero popular influenciando as modinhas, que passaram a ser ternárias. Através dos
conjuntos de choro transforma-se em um gênero seresteiro, e Ernesto Nazareth a torna uma
de suas principais formas de composição. As valsas foram registradas desde as primeiras
gravações realizadas e tiveram seu apogeu na rádio na década de 1930 nas vozes de grandes
cantores. Foi também utilizada por diversos compositores brasileiros eruditos.
Vejamos o que diz Cazes a respeito:
A valsa, dança ternária oriunda da Áustria e da Alemanha, que chegou ao
Brasil com a corte portuguesa, desenvolveu aqui características próprias, com
andamentos bem lentos, para dar vazão a tanto sentimentalismo e um esquema
de modulações similar ao das polcas. Nazareth aprofundou as possibilidades
desses gêneros com uma obra volumosa e de qualidade homogênea. (Cazes,
1998, p. 36).
Ex. 4: Valsa da Suíte Brasiliana n. 2
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
152
Na opinião de Cyro este gênero foi desenvolvido com maestria por Ernesto Nazareth,
Francisco Mignone e Radamés Gnattali.15
3º movimento: Choro
O terceiro movimento está na forma de choro. Este segundo Cazes teria surgido devido a
uma nacionalização de vários gêneros trazidos de colonizadores, principalmente a Polca, e
que foram adquirindo caráter nacional. Este processo ocorreu de modo semelhante em
vários países, somando-se o sotaque do colonizador e a influência negra, originando assim a
música popular urbana que hoje conhecemos (Cazes, 1998, p. 17). De acordo com ele as
características do choro seriam:
[...]Em resumo: Choro foi primeiro uma maneira de tocar. Na década de 10,
passou a ser uma forma musical definida. O Choro como gênero tem
normalmente três partes (mais modernamente duas) e se caracteriza por ser
necessariamente modulante. Mais recentemente, Choro voltou a significar
uma maneira de frasear, aplicável a vários tipos de música brasileira. A
obediência à forma rondó (em que sempre se retorna à primeira parte) aos
poucos tem sido flexibilizada (Cazes, 1998, p. 21).
Este choro possui duas partes, e sua forma geral é A-B-A mais uma coda. Nos choros de
Pixinguinha observamos que em geral há 3 partes, como por exemplo, nos choros:
Chorando Sempre (As partes estão respectivamente nas tonalidades de Sol, mi e Dó).16
Naquele Tempo (ré, Fá, Ré), Um a Zero (Dó, Sol, Fá) e Vou Vivendo (Fá, ré, Si bemol),
porém há exceções com apenas duas partes como Carinhoso, Atencioso, etc..
Já o famoso Brasileirinho de Waldir de Azevedo tem somente duas partes, mas a casa dois
da primeira parte pode quase ser considerada uma segunda parte por sua extensa dimensão.
A primeira está em Fá maior e a segunda em fá menor na partitura consultada.17
Com o passar do tempo o choro foi sendo composto mais em duas partes como nos choros
Noites Cariocas (Sol, Do e coda em Sol) e Nosso Romance (Do lá) entre muitos outros de
Jacob do bandolim, ou Choro Negro (sol e Sol) de Paulinho da Viola.18
Colocamos as tonalidades das partes dos choros entre parênteses para demonstrar que as
modulações nestes choros, que são uma amostragem expressiva do gênero, são feitas em
direção às tonalidades vizinhas como as relativas maiores ou menores, dominantes e
subdominantes. Nos choros tradicionais são usados acordes maiores, menores, de sétima de
dominante, menores com sétima e diminutos, mas raramente acordes com maiores
alterações. Nesta obra Cyro utiliza uma harmonia mais complexa, com acordes de nona,
décima primeira, etc., quartas superpostas, e utiliza-se de harmonia jazzística (Ex. 5).
Cyro escreve quase que exclusivamente sem armadura de clave em suas obras.
Inquirimos o compositor se a obra estaria escrita em uma tonalidade específica sobre o que,
ele nos explanou, que apesar de começar numa região tonal e terminar na mesma, ele
procurou não se fixar em nenhuma, modulando sempre rapidamente e passando por muitas
tonalidades, sendo essa uma característica geral de suas obras desde muitos anos atrás. Esta
15
Entrevista cit.
As tonalidades maiores serão descritas com a letra inicial maiúscula e as menores com minúscula
17
TA-389, Rio de Janeiro: Todamérica Música Ltda. 1950.
18
Cyro Pereira fez uma versão deste choro para viola e piano ainda manuscrita e que faremos uma
edição futuramente.
16
Cyro Pereira e a Brasiliana n. 2
153
maneira de utilizar a harmonia remete-nos ao conceito de polarização apresentado por
Stravinsky em sua Poética musical, na qual ele afirma:
Por mais de um século, a música vem nos oferecendo seguidos exemplos de
um estilo em que a dissonância alcançou sua emancipação. Ela já não está
amarrada à sua função antiga. Tendo se tornado uma entidade auto-suficiente,
muitas vezes não prepara nem antecipa alguma coisa (Stravinsky, 1995, p.
40).
E mais à frente:
Tendo atingido esse ponto, torna-se indispensável obedecer não a novos
ídolos, mas a eterna necessidade de afirmar o eixo de nossa musica, e
reconhecer a existência de alguns pólos de atração. A tonalidade diatônica é
apenas um dos meios de orientar a música na direção a esses pólos. [...] De
modo que nossa principal preocupação é menos o que se chama de tonalidade
do que o que poderíamos chamar de atração polarizada do som, de um
intervalo ou mesmo de complexo de notas. [...] (Stravinsky, 1995, p. 41).
Este uso da tonalidade foi abordado Antenor Ferreira Corrêa em seu artigo Poliônimo, para
os anais da 15ª ANPPOM de 2005, ainda a ser publicado, que é chamado de tonalidade
flutuante, e aproxima-se muito da maneira de compor de Cyro:
Processo composicional que não se atém a um único pólo atrativo, mas
“flutua” ao redor de várias tônicas sem se direcionar efetivamente para um
centro exclusivo. Com isto, uma vagueza harmônica é impingida ao discurso
musical. Pode haver o uso de harmonia triádica, embora sem sugerir
subordinações a nenhuma tônica em especial. Guarda semelhança com as
sucessões de acordes empregadas nas seções de transição, sem que, como
estas, atinjam objetivos harmônicos específicos. É um estado estrutural no
qual várias tônicas exercem simultaneamente seu poder de atração, sem que
uma destas torne-se o pólo conclusivo.[...] (Corrêa, 2005, p. 6).
Estas questões sobre a estrutura harmônica e aspectos formais serão analisados na
dissertação, sempre do ponto de vista interpretativo, ou seja, sempre que forem relevantes
para a interpretação da peça.
Conclusão
Quando nos defrontamos com a obra de Cyro Pereira, deparamo-nos com várias questões
que serão aprofundadas no decorrer de nosso trabalho de dissertação: Em que contexto se
insere esta obra e a qual tradição se vincularia? Mesmo Cyro considerando-se um músico
popular, este fato implicaria que seu método composicional seja o de um músico popular?
Estes termos, música popular e erudita, se não os definirmos claramente, podem não
explicar certo tipos de obras que se situariam na “fronteira”. Henrique Pedrosa, no seu livro
Música Popular Brasileira Estilizada, discute extensamente o que ele chama de música
estilizada, que seria aquela música popular que tem uma elaboração muito próxima da
música de concerto, a que chamamos de erudita ou mais popularmente de clássica. Entre
exemplos que são citados na obra, temos Joaquim Antônio Calado, Ernesto Nazaré, Baden
Powel, Egberto Gismonti e poderíamos acrescentar inúmeros outros, em que o termo jazz
ou música popular não seriam completos para definir o tipo de obra que fazem.
Pensamos que Cyro Pereira pertenceria a esta classe de músicos que não estão nem bem em
um estilo nem no outro. Esta questão está diretamente ligada aos caminhos a serem
tomados na interpretação da obra.
154
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Ex. 5 Choro, cc. 1–28, redução para piano e viola.
Outra questão a ser levantada é quanto à edição da partitura, como por exemplo, quais
informações de performance, tanto técnicas quanto estilísticas deveriam ser acrescentadas à
partitura, ou melhor, qual o grau de interferência do revisor é possível sem alterar as
intenções do compositor.
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Santa Úrsula, 1988.
SHIMABUCO, Luciana S. “Dá licença, maestro!: A trajetória musical de Cyro Pereira”. Dissertação
(Mestrado em Música)- Instituto de Artes, UNICAMP. Campinas, 1998.
STRAVINSKY, Igor. Poética Musical em 6 lições. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.
ZAMACOIS, Joaquín Curso de Formas Musicales 6.ed. Barcelona : Editorial Labor, 1985.
Renato Kutner: natural de São Paulo, é bacharel em viola e licenciado em Educação
Artística pela USP. É mestrando desde 2004 em práticas interpretativas na Unicamp
sob orientação do Prof. Dr. Emerson de Biaggi. Estudou com Perez Dworecki, Elisa
Fukuda, Paulo Bosísio, Alejandro de León e Alberto Jaffé. Em 1984 foi para Israel,
onde permaneceu cinco anos, estudando com Yuval Kaminkowisky, na Jerusalem
Rubin Academy of Music and Dance e participou da Rishon Le Zion Symphony
Orchestra. É membro da Orquestra Jazz Sinfônica do Estado de São Paulo, desde sua
fundação em 1990, e da Orquestra Sinfônica Municipal de Santos. Desenvolve intenso
trabalho didático, tendo lecionado no Conservatório do Brooklin-SP, Conservatório
Estadual de Pouso Alegre-MG, no Projeto Guri-SP, Festival de Música Internacional
de Campos-RJ (2001) , Universidade Livre de Música Tom Jobim-SP de 1993 a 2003,
entre outros. Emerson De Biaggi: Formou-se em violino com Lola Benda e viola sob
orientação de Johannes Oelsner. Bacharel em Música pela USP, foi aluno de Perez
Dworecki, Horácio Shaeffer e Marcelo Jaffé. É mestre pela Boston University sob
orientação de Rafael Hillyer e Steven Ansell e doutor pela Universidade da Califórnia
sob orientação de Heiichiro Ohyama, Donald MacInnes e Ronald Copes. Integrou a
Boston Philharmonic, a Vermont Symphony Orchestra e a Boston Modern Music
orchestra, e regressou ao Brasil em 1997 para integrar a Orquestra Sinfônica Estadual
de São Paulo. Foi professor de viola e música de câmara no Depto. de Música da
Unesp de 1997 a 2004 e leciona desde 1998, no Instituto de Artes da Unicamp.
Integra o duo de viola e cravo Sebastian, o trio de cordas Camaleon e o quinteto de
cordas Quintal. Como solista, tem se apresentado em diversas orquestras entre as
quais a de Câmara São Paulo, de Câmera do Teatro São Pedro de Porto Alegre, de
Câmera de Jundiaí, Sinfônica da Unicamp, Sinfônica Jovem do Estado de São Paulo,
Experimental de Repertório, de Câmara de Curitiba, Sinfônica de Santo André e
Sinfônica Municipal de Santos.
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Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
ANEXOS: Páginas de face de cada movimento da Brasiliana n. 2
Cyro Pereira e a Brasiliana n. 2
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Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
O limiar da Pós-Modernidade na obra de Gilberto Mendes
Rita de Cássia Domingues dos Santos (USP)
Resumo: Este estudo foi realizado para contextualizar a revisão musicológica e edição
de partitura da “Abertura da Ópera Issa”, de Gilberto Mendes, de 1995. Os
questionamentos que surgiram com esta pesquisa de mestrado foram: como a pósmodernidade se manifesta, em linhas gerais, nas sociedades pós-industriais, como se
configura o pós-modernismo na história da música do século XX e, finalmente, como
a pós-modernidade se apresenta em algumas obras de Gilberto Mendes. Palavraschave: pós-modernidade, Gilberto Mendes, história, modernismo, filosofia.
Introdução
Percebe-se que a pós-modernidade não se vincula propriamente a uma circunscrição
geográfica e nem tampouco a um período histórico, pelo menos não se o intuito for
delimitá-la de uma forma geral. A respeito do tempo da pós-modernidade, Nicolau
Sevcenko se manifesta:
Pós-moderno, como está evidente, é um conceito que supõe uma reflexão
sobre o tempo, antes de mais nada. Segue-se a pergunta inevitável, a que
tempo se refere então? Não a um tempo homogêneo, linear, em que se
pudesse estabelecer um recorte e fixar uma data decisiva, um ato inaugural,
como se poderia esperar da visão simplista da história na qual somos
zelosamente educados. (Sevcenko, 1988, p. 45)
Ela parece atender melhor a uma classificação por especificidade de assuntos, segundo
Fernando Iazzetta: “A definição do pós-modernismo ainda é um assunto em discussão, e
sua delimitação temporal depende do âmbito do qual se está tratando.” (In: Guinsburg, J. e
Barbosa, Ana Mae, 2005, p. 228)
Não há ainda um acordo sobre a pós-modernidade, seja quanto aos seus atributos, seja
quanto à sua própria existência, ou não. João Adolfo Hansen corrobora nossa opinião,
afirmando: “O objeto implicado nas discussões do ‘pós-moderno’ é, assim, o ‘moderno’,
falado a partir de vários posicionamentos, e sobre o qual não há nenhum consenso.” (In:
Chalhub, Samira, 1994, p. 38)
Ao tratarmos o assunto “pós-modernismo”, invariavelmente recorreremos também ao
modernismo, pois é pela comparação, no mais das vezes não simétrica, entre ambos, que se
estabelece o que é próprio de um ou de outro. Jair Ferreira dos Santos esclarece bem este
aspecto:
Mas se a pós-modernidade significa mudanças com relação à modernidade, o
fato é que não se pode dispensar o aço, a fábrica, o automóvel, a arquitetura
funcional, a luz elétrica – conquistas associadas ao modernismo. Assim, no
fundo, o pós-modernismo é um fantasma que passeia por castelos modernos.
(Santos, J. F., 2004, p. 18)
Conclui-se daí que a pós-modernidade, antes de ser algo com existência histórica
demarcada ou circunscrita geograficamente, é algo mais apropriadamente estudado no
âmbito filosófico, sendo bem identificada no modus vivendi, no comportamento e nas artes.
Quanto à terminologia “pós-moderno”, Ricardo Timm de Souza afirma que:
Federico de Onís (...) utilizou este termo, pela primeira vez, opondo-o ao
movimento ultramodernista (...) pela antologia dedicada ao poeta Antonio
Machado e publicada em 1934, organizada por Onís segundo esse esquema de
oposição – em que o postmodernismo representaria um “reflexo conservador”
no modernismo, um retorno a um intimismo reativo ao ultramodernismo e seu
vigor universal –, e que contava com colaboradores tão ilustres como o
160
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
próprio Lorca, Pablo Neruda, Jorge Luís Borges e Vallejo. (In: Guinsburg, J. e
Barbosa, Ana Mae, 2005, p. 88)
Esta conotação foi bastante restrita a um determinado aspecto, não apresentando um caráter
universalista. No entanto, Souza prossegue: “Vinte anos depois, o termo é novamente
empregado, desta vez como categoria de interpretação histórica, por Arnold Toynbee, no
oitavo volume de seu A Study of History – desta vez localizando o surgimento da pósmodernidade nas origens do século XX.”(In: Guinsburg, J. e Barbosa, Ana Mae, 2005, p.
88). Porém, só adquire a conotação com que hoje é mais usualmente empregado, segundo
Fernando Magalhães:
(...) seu status decisivo dá-se em 1979 com o lançamento do primeiro trabalho
em filosofia a fazer uso da concepção de pós-modernidade. É nesse ano que
Lyotard publica, em Paris, seu famoso livro La Condition Postmoderne.
Lyotard, contudo, aborda o problema no âmbito da superestrutura e refere-se à
posição do saber nas sociedades industrialmente desenvolvidas. (Magalhães,
2004, p. 62)
Antes de avançarmos, parece-nos apropriado estabelecer uma padronização quanto à
terminologia usada neste trabalho para designar a pós-modernidade, ou o pós-modernismo.
Com este fito, novamente nos servimos da afirmação de Magalhães:
Não obstante se reconheça uma diferença conceitual entre pós-modernismo e
pós-modernidade – a primeira refletindo na cultura as mudanças operadas no
meio político –, qualquer um dos dois termos pode ser utilizado de forma
abrangente, em virtude da estreita relação entre eles. ( Magalhães, 2004, p. 63)
Isto posto, cremos imprescindível um breve apanhado histórico para situarmos tanto a
modernidade como a pós-modernidade no âmbito desta pesquisa. Para tanto, nos apoiamos
em Teixeira Coelho:
O “projeto da modernidade” é lançado no século XVIII e firma-se ao longo do
XIX – marcado, neste, por processos como o da Revolução Industrial, de um
novo pensamento sobre o social (como o de Karl Marx) e o dos passos iniciais
da psicanálise, para ficar nos mais evidentes. “Nossa” modernidade, porém,
parece cristalizar-se e assumir contornos mais bem trabalhados nos primeiros
anos deste século XX. (Coelho, 1995, p. 25)
O século XX pode ser alcunhado de “o século do conflito”, pois nele se sucederam duas
guerras com menos de trinta anos de intervalo, para citar apenas aquelas que assumiram
proporções mundiais. Também não se pode olvidar que, após a última grande conflagração,
finda em 1945, estabeleceu-se a chamada “Guerra Fria”, cujo eixo era a disputa pela
hegemonia global entre as duas superpotências da época, Estados Unidos e União
Soviética. Sobre este século conflituoso, Anthony Giddens afirma:
Não apenas a ameaça de confronto nuclear, mas a realidade do conflito
militar, formam uma parte básica do “lado sombrio” da modernidade no
século atual. O século XX é o século da guerra, com um número de conflitos
militares sérios envolvendo perdas substanciais de vidas, consideravelmente
mais alto do que qualquer um dos séculos precedentes. (Giddens, 1991, p. 19)
E é neste contexto que a modernidade se firma no cenário mundial, sob a égide do avanço
tecnológico, da produção industrial, inovações em todos os setores, a ciência como esteio,
O limiar da Pós-Modernidade
161
com a força do átomo, com o receio da fissão de seu núcleo para fins militares e com a
convivência, no mais das vezes não-pacífica, entre várias culturas, cada qual em seu
momento histórico. Sobre a modernidade deste período, Jameson elucida:
(...) o modernismo deve ser visto como correspondendo de forma singular a
um momento desigual do desenvolvimento social (...) a coexistência de
realidades de momentos radicalmente diferentes da história – o artesanato ao
lado dos grandes cartéis, as plantações de camponeses com as fábricas da
Krupp ou da Ford à distância. (Jameson, 1997, p. 312)
Este cenário de coexistência proporcionou uma grande circulação de idéias e de
mercadorias, dando origem a uma maior mobilidade social, que predispôs as condições para
a identificação da novidade como valor máximo do modernismo. Foi a secularização da era
moderna com fé irrestrita no progresso e na história. Perante esta visão, importa reconhecer
o pós-moderno não apenas como novidade em relação ao moderno, mas também, e
principalmente, como dissolução desta mesma categorização do novo, exemplificada como
uma experiência de ‘fim da história’, mais do que como uma mera apresentação de uma
etapa diferente, seja mais evoluída ou mais retrógrada, da própria história. Com
propriedade, Gianni Vattimo expõe seu pensamento:
O pós de pós-moderno indica, com efeito, uma despedida da modernidade,
que, na medida em que quer fugir das suas lógicas de desenvolvimento, ou
seja, sobretudo da idéia da ‘superação’ crítica em direção a uma nova
fundação, busca precisamente o que Nietzsche e Heidegger procuraram em
sua peculiar relação ‘crítica’ com o pensamento ocidental. (Vattimo, 2002, p.
VII)
Nesta referência à procura nietzschiana e heideggeriana, podemos depreender que, para
eles, a modernidade está vinculada à idéia da história do pensamento como uma iluminação
gradual, de caráter linear e evolucionista, uma apropriação gradativa das bases racionais do
conhecimento, exprimida pela noção de superação, qual seja, o surgimento de novos
entendimentos que selecionam o que tem valor do que não tem, no que diz respeito à
acumulação do conhecimento. E o que eles buscavam era justamente o distanciamento
desta noção de superação crítica, superação esta tão cara ao Iluminismo.
A modernidade revela também, como característica, o desejo do consenso universal, o
discurso das argumentações, a “necessidade” de uma metanarrativa como uma finalidade
entre os vários discursos existentes. E é justamente o desencanto com as grandes narrativas,
com os metarrelatos de estrutura totalizante, que começa a delinear na face das sociedades
os traços da pós-modernidade. A este propósito, Jean-François Lyotard se pronuncia:
(...) não parece possível, nem mesmo prudente, orientar, como faz Habermas,
a elaboração do problema da legitimação no sentido da busca de um consenso
universal em meio ao que ele chama o Diskurs, isto é, o diálogo das
argumentações (...) Compreende-se bem qual é a função deste recurso na
argumentação de Habermas contra Luhmann. O Diskurs é o último obstáculo
oposto à teoria do sistema estável. A causa é boa, mas os argumentos não o
são. O consenso tornou-se um valor ultrapassado, e suspeito. A justiça, porém,
não o é. É preciso então chegar a uma idéia e a uma prática da justiça que não
seja relacionada à do consenso. (Lyotard, 1986, pp. 118–119)
162
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Na época moderna, a inovação era o valor fundamental, ao qual todos os demais valores
eram referenciados. A necessidade de enumerar e categorizar foi significativa nesta época,
a tudo estabelecendo um paralelo em termos de juízo, ou seja, criando juízos de valor,
apoiados na ânsia do progresso e no ímpeto da ruptura, pilares destes tempos modernos.
Como já vimos, Nietzsche sintetizou de forma lúcida que a modernidade era a época da
superação. Ora surgem sinais de fadiga, compondo este sintoma um sinal próprio da pósmodernidade, embora paradoxalmente, seja justamente o desejo da ruptura com tudo o que
as sociedades viveram nestes últimos séculos que anuncie este surgimento de um novo
estado de coisas. Sérgio Paulo Rouanet, citado por Raymundo de Lima em seu artigo “Para
entender o pós-modernismo”, descreve muito bem este paradoxo:
Depois da experiência de duas guerras mundiais, depois de Aushwitz [sic],
depois de Hiroshima, vivendo num mundo ameaçado pela aniquilação
atômica, pela ressurreição dos velhos fanatismos políticos e religiosos e pela
degradação dos ecossistemas, o homem contemporâneo está cansado da
modernidade. Todos esses males são atribuídos ao mundo moderno. Essa
atitude de rejeição se traduz na convicção de que estamos transitando para um
novo paradigma. O desejo de ruptura leva à convicção de que essa ruptura já
ocorreu ou está em vias de ocorrer (...). O pós-moderno é muito mais a fadiga
crepuscular de uma época que parece extinguir-se ingloriosamente que o hino
de júbilo de amanhãs que despontam. À consciência pós-moderna não
corresponde uma realidade pós-moderna. Nesse sentido, ela é um simples
mal-estar da modernidade. É literalmente falsa consciência, porque
consciência de uma ruptura que não houve, ao mesmo tempo, é também
consciência verdadeira, porque alude, de algum modo, às deformações da
modernidade (Lima, 2005)
Por este prisma, o niilismo preconizado por Nietzsche e o ultrapassamento da metafísica
ambicionado por Heidegger estão, ambos, se concretizando, profeticamente, na sociedade
atual, tendo em vista que o niilismo dirige-se para a mobilidade do simbólico e para a
maneira como vivemos, individualmente e coletivamente, na sociedade pós-moderna. Nela,
o sentido da história não tem a peremptoriedade metafísica e teológica que havia na
moderna, o que confirma Heidegger, que discursa sobre a necessidade de “abandonar o ser
como fundamento”, para “saltar” em seu “abismo”. Eugênio Rondini Trivinho indaga para
depois explicar, nas suas palavras:
O que é viver hoje?... Hoje, em vista das reciclagens contínuas e da aceleração
dos processos, é possível viver centenas de anos em um ano, três ou quatro
gerações em uma década. Doravante, a vida precisa ser vista não mais como
duração (extensão), mas como espiral de imersões no instante, como absorção
em seqüências condensadas em momentos perenes, como magma invisível de
várias eras. (Trivinho, 1992, pp. 72–73)
A crítica ao humanismo, e o niilismo consumado, nos remetem para uma experiência
“fabulizada” da realidade, levando hoje à indefinição do que é aparência e realidade,
indicando uma nova possibilidade para a experiência humana, como observamos na
declaração de Ariza:
(...) trata-se de uma tendência à estetização da vida cotidiana, propiciada a
partir da art pop, do dadaísmo, e do surrealismo, através de suas propostas de
integração da arte e da vida, como também o surgimento de uma cultura do
O limiar da Pós-Modernidade
163
consumo impulsionada pela reprodução constante, levando à indefinição do
que é aparência e realidade... A proximidade das obras de arte dos produtos
comerciais foi ficando mais estreita na medida em que as artes estavam mais
perto do grande público e no caso de que a produção de mercadorias de luxo
eram substituídas pelas produzidas em massa, que procuravam cada vez mais,
os recursos estéticos da arte para seduzir os consumidores, satisfazê-los e
identificá-los com diversos produtos. (Ariza, 1999, p. 32)
Na pós-modernidade, época da consagração dos meios de comunicação em massa e das
“redes” (Internet, por exemplo), o ceticismo diante de uma verdade dita como “única”
(metarrelato) abre as portas para uma nova visão que busca a possível harmonização dentro
da multiplicidade inevitável, fazendo ressaltar algumas das qualidades pós-modernas tais
como o inclusivismo, a citação ao passado, o ecletismo, dentre outras tantas que podemos
verificar na cultura e na arte pós-modernas. Neste âmbito da multiplicidade, estabelecendo
um pequena análise da política cultural da pós-modernidade, podemos nos apoiar nas
palavras de Steven Connor: “A análise e a política culturais pós-modernas por certo
marcam um estágio importante e, com efeito, provavelmente epocal, no desenvolvimento
da consciência ética, no reconhecimento da irredutível diversidade de vozes e interesses.”
(Connor, 2000, p. 198)
Uma questão que surge naturalmente é quanto à propriedade de se falar de pósmodernidade no Brasil, uma vez que nosso país está em (eterno) desenvolvimento
econômico-industrial. Sobre a possibilidade da pós-modernidade numa sociedade como a
brasileira, Fernando Iazzetta traduz suas reflexões desta maneira:
Configurando-se enquanto movimento da sociedade pós-industrial, é natural
que o pós-modernismo apresente características muito mais salientes nos
países economicamente mais desenvolvidos. Portanto, é um movimento
tipicamente norte-americano e da Europa ocidental. Certamente, na sociedade
globalizada em que vivemos, os efeitos desse contexto se fazem sentir, nos
países menos desenvolvidos, porém de forma mais diluída e menos
sintomática. (In: Guinsburg. J. e Barbosa, Ana Mae, 2005, p. 229)
Com esta introdução delineamos alguns aspectos da pós-modernidade para
contextualizarmos as transições que a música erudita sofreu no século XX e como estas
atingiram o processo composicional de Gilberto Mendes no período compreendido de 1982
a 1995.
Justificativa
Gilberto Mendes é um dos mais profícuos compositores do Brasil. Nasceu em Santos em 13
de outubro de 1922, sendo que seus mestres foram Cláudio Santoro e Olivier Toni. Criador
de uma extensa obra, abarcando repertório para instrumentos solistas, voz e piano, música
de câmara, peças corais e orquestrais, não optou pela insistência em uma única poética,
mas, sim, preferiu a riqueza da diversidade.
Instituiu o Festival Música Nova, em 1962, e é um dos seus responsáveis até hoje. De
espírito inquieto e questionador, foi um dos pioneiros, no Brasil, da música aleatória,
concreta e visual e, em 1963, foi co-autor do manifesto Música Nova. Sua peça coral de
1966, Moteto em Ré menor (Beba Coca-cola), alcançou popularidade internacional, sendo
164
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
apresentada em todos os continentes. Sua obra Blirium A-9 foi selecionada, em 1970, pela
Tribuna Internacional de Compositores - UNESCO, para difusão nas rádios da Europa. Em
1971 ganhou o prêmio da APCA pela melhor obra experimental, com Santos Football
Music.
Como professor convidado deu aulas de composição na Universidade de Milwaukee
(E.U.A), em 1978 e 1979. É autor do livro Uma Odisséia Musical (EDUSP) e suas obras
vem sendo executadas nas principais cidades do país e em vários eventos internacionais,
como Festival Internacional de Músicas Experimentais em Bourges (França); Sonidos de
las Américas no Carnegie Hall, em Nova York (E.U.A.); Festival de Música Brasileira em
Bonn (Alemanha); Inter-American Music Festival em Washington (E.U.A) e Festival de
Música de Vanguarda da Fundação Gulbenkian Lisboa (Portugal), entre outros. (Duprat,
Enciclopédia da Música Brasileira, pp.179–180)
Gilberto Mendes sempre transitou com desenvoltura entre os mais diversos sistemas
musicais, sendo ímpar sua propriedade de fundir linguagens diferentes, imprimindo nessa
fusão sua marca pessoal, podendo ser considerado um autêntico representante do pósmodernismo no Brasil. Desta forma, pela contemporaneidade, relevância e originalidade do
assunto em questão, justifica-se esta pesquisa sobre como alguns aspectos do pós-moderno
influenciaram o processo criativo deste compositor.
A Vanguarda e o Pós-Moderno
O conceito de vanguarda é de origem militar e remonta à época de Napoleão Bonaparte,
quando também surgiu o conceito de ideologia. De acordo com Bauman:
Avant-garde significa, literalmente, vanguarda, posto avançado, ponta-delança da primeira fileira de um exército em movimento: um deslocamento que
se move na frente do corpo mais importante das forças armadas – mas
permanece adiante apenas com o fim de preparar o terreno para o resto do
exército. (...) A vanguarda dá à distância que a separa do grosso da tropa uma
dimensão temporal: o que está sendo feito presentemente por uma pequena
unidade avançada será repetido mais tarde, por todas. (...) Num mundo em que
se pode falar de a v a n t - g a r d e, “para
frente” e “para trás” têm,
simultaneamente, dimensões espaciais e temporais. (Bauman, 1998, p. 121)
Ao largo do século XIX o conceito de vanguarda se estendeu a outros campos,
principalmente para a política e a arte, que lhe deram um significado metafórico. Na
política, entendia-se por vanguarda aquele setor de um grupo social, ou político, cujas
idéias ou ações eram mais radicais, como, por exemplo, os socialistas utópicos da França e,
posteriormente, a minoria que liderava a revolução social marxista.
De acordo com Vattimo, as vanguardas atuavam por meio da “supressão dos limites do
estético, em direção a um alcance metafísico ou histórico-político da obra.”(Vattimo, 2002,
p.43)
No final do século XIX ocorreu um rompimento entre a vanguarda política e a artística.
Procedendo a uma análise das expressões da modernidade no âmbito musical, verificamos
que os “ismos” modernistas do século XX assumiram para si o conceito de vanguarda. Por
conseguinte, observamos três fases distintas na construção da modernidade musical: a
O limiar da Pós-Modernidade
165
primeira, compreendida entre as duas grandes guerras; a segunda, entre 1945 e 1960, com a
formação de dois núcleos composicionais (vanguarda e experimentação); e a terceira fase
da modernidade musical, com o ápice das vanguardas na década de sessenta, exprimindo a
busca constante do “novo”, o que levou ao seu exaurimento como linguagem musical.
O modernismo musical chegou esmaecido ao nosso país. Desde o século XIX, o
questionamento sobre a criação de uma música livre dos esquemas impostos pela Europa
foi preponderante no Brasil. Diante disto, esta primeira fase modernista brasileira
apresentou uma nostalgia das tradições derivadas dos movimentos artísticos nacionalistas.
A produção musical brasileira da Semana de 22 parecia desatualizada em relação às novas
conquistas modernistas como o dodecafonismo, exceção feita às obras de Villa-Lobos, nas
quais encontravam-se superposições politonais, atonalismo, polirritmias e experiências com
novas combinações instrumentais. De uma forma geral, as três fases nas quais podemos
dividir o modernismo musical brasileiro são: a primeira, de 1922 a meados dos anos de
1945, quando se firmou a poética nacionalista; a segunda inicia-se em 1946, quando da
declaração do Manifesto Música Viva, estendendo-se até a década de 1960; a terceira surge
também com um manifesto, Música Nova (1963), quando a influência de Darmstadt se fêz
presente aqui no Brasil.
Enquanto Villa-Lobos estava na Europa compondo os Choros, Mário de Andrade assumiu
o lugar de pensador e crítico da música brasileira, tendo como fiel discípulo Camargo
Guarnieri. Este compositor, a partir das diretrizes de seu mentor, constituiu escola,
trabalhando com a linguagem neoclássica de Hindemith, tendo com âncora a busca do
caráter musical brasileiro.
Após a Segunda Guerra Mundial, ocorreu, na Europa e nos Estados Unidos, a formação de
dois núcleos composicionais, quais sejam, respectivamente: o serialismo integral, derivado
da Segunda Escola de Viena; e o uso da indeterminação, iniciado com John Cage
(1912–1992). Nas palavras de Griffiths: “Somente um compositor norte-americano poderia
ter empreendido uma revisão tão radical do sentido da música, estabelecendo a ‘não
intenção’ zen no lugar da realização de um produto da vontade individual, finalidade da arte
européia desde o Renascimento.”(Griffiths, 1987, p. 120) Desta forma, o compositor
assume um papel completamente diferente daquele da tradição musical romântica,
começando a quebra das categorias de superação e originalidade, que veremos consolidada
na pós-modernidade.
Referindo-nos novamente ao Brasil, pela primeira vez tentou-se aqui desenvolver a
aplicação sistemática do dodecafonismo, pela iniciativa de Hans Joachim Koellreutter
(1915–2005). Compositores que estudavam com ele como Cláudio Santoro (1919–1989),
Edino Krieger (1928–), Eunice Catunda (1915–1990) e Guerra-Peixe (1914–1993)
lançaram o Manifesto Música Viva no Rio de Janeiro, em primeiro de novembro de 1946.
Ao se aproximar a década de sessenta, vários compositores em toda a Europa procuraram
novas soluções composicionais: Olivier Messiaen (1908–1992) elaborou uma arquitetura
sonora estática, concebida após incursões pelo canto gregoriano e pelas rítmicas grega e
hindu; György Ligeti (1923–) construiu densas texturas sonoras em obras como
Atmospheres (1961–); o realismo socialista manifestou-se na música dos poloneses como
Krysztof Penderecki (1933–) e Witold Lutoslawiski (1913–1994). Segundo Gubernikoff,
“A música ocidental se acreditava universal e histórica e baseava sua produção nessas
166
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
premissas. As músicas do século XX, com a multiplicação das tendências e o
reconhecimento das músicas de outras culturas, mostraram como pode haver inúmeras
possibilidades de se produzir música”. (Gubernikoff, 1992, p. 14)
Em 7 de novembro de 1950 Guarnieri, influenciado pelo Manifesto Jdanov, escreveu a
Carta Aberta aos Críticos e Músicos do Brasil, gerando a última fase modernista na música
erudita brasileira, quando os integrantes do Grupo Música Nova, inspirados pela escola de
Darmstadt, buscaram romper com a escola de Guarnieri.
Conforme Teixeira Coelho em seu livro Moderno Pós Moderno, a música das décadas de
60 e 70 recebeu o rótulo de “revolução permanente”, por ter usado variadas linguagens e
processos, na ânsia do novo, característica da modernidade, inclusive com o surgimento de
novas notações musicais. Quanto a esta “revolução”, Buckinx comenta a problemática da
originalidade:
Principalmente após o Romantismo a psicose da originalidade virou uma
praga (...) A originalidade era a contribuição do indivíduo e a isto se resignou
a sociedade burguesa e principalmente o mercado burguês (...) Logo após,
com a dodecafonia, achou-se que todo mundo deveria construir seu “próprio”
sistema de tons, tudo assim muito rápido, e em 1954 (...) foi quando as
pessoas acharam que todo mundo deveria fabricar seu próprio material (...)
Cada obra deveria dar um passo adiante. Assim se era sempre original, mesmo
em relação a si próprio. Ao final cada obra tornou-se um conceito próprio.
(Buckinx, 1998, pp. 52–53)
Ainda sobre esta “psicose” aventada por Buckinx, depreendemos que foi justamente ela que
proporcionou um dos motivos para o esgotamento dos procedimentos de vanguarda. Sobre
a busca do novo e sua relação com o que designa como “pós-moderno”, o compositor
Ricardo Tacuchian declara:
(...) No pós-moderno todo artista procura o novo porque o artista é, por
natureza, um criador, não um repetidor. Mas essa aflição de, a cada segundo, a
cada milímetro eu ter um signo novo, isso deixa de existir como existia na
Vanguarda – esse é o primeiro conceito para o pós-moderno. O outro, um
corolário deste, é que eu não rompi com a tradição. Eu parti da tradição e
estou avançando com novas idéias, com novas proposições. Então, isso é o
que caracteriza o que eu chamo de pós-moderno. (Tacuchian, 1999, pp.
20–27)
Na música, a multiplicidade de vozes tornou-se presente nos compositores alcunhados pósmodernos. Nas composições de Sofia Gubaidulina (1931–), desde os anos sessenta,
coexistem diversas tradições, sendo uma precursora do pós-modernismo. Alguns
compositores fizeram o retorno ao tonalismo como, por exemplo, Alfred Schnittke
(1934–1998). Por vezes, suas composições ganham ares neo clássicos; outras tantas, usa
amplamente a poliestilística.
Na década de setenta começou a se estabelecer uma nova estética na música, confluente de
várias poéticas como a música politicamente engajada, a nova simplicidade (derivada do
neo-romântico), o minimalismo, a nova consonância, o new age e o modernismo moderado.
(...) começa, ainda que de forma não muito consciente, em 1973, atinge em
1980 um momento de ruptura e por volta de 1985 um primeiro ponto
O limiar da Pós-Modernidade
167
culminante. Ao redor de 1990 se dá um movimento de restauração modernista
e hoje aceita-se em geral o pomo, o pomo mais antigo chega ao fim e inicia-se
uma segunda fase na qual todos estão ou deveriam estar conscientes desta
estética. (Buckinx, 1998, p. 23)
Em linhas gerais esta nova tendência, denominada pós-moderna (pomo), caracteriza-se pela
tolerância, inclusivismo e pluralidade, tornando-se acessível ao público. Apresenta
continuidade da tradição, é poliestilística, convive respeitosamente com as contradições e
pode ser cosmopolita ou local. Na pós-modernidade todos os sistemas harmônicos são
possíveis (práticas que remontam a qualquer época), inclusive as mais variadas e incomuns
formas de fusão entre eles. Compositores que apresentam algumas destas características
são: Cláudio Santoro (1919–1989), Gilberto Mendes (1922–), Edino Krieger (1928–),
Henryk Mikolai Gorecki (1933–), Arvo Part (1935–), Willy Corrêa (1938–), Marlos Nobre
(1939–), Ricardo Tacuchian (1939–), Almeida Prado (1943–), John Adams (1947–),
Ronaldo Miranda (1948–) Wolfgang Rihm (1952–), Rubens Ricciardi (1964–), dentre
outros. Sobre os brasileiros, Salles observa que estes compositores não pretenderam criar
uma escola e que superaram a “polaridade entre nacional e universal que marcou a
trajetória da música brasileira até a década de 1960”. (Salles, 2005, pp.186–187)
Quer seja no Brasil, quer seja em outros países, na concepção pós-moderna os recursos
eletroacústicos e concretos podem ser utilizados como técnicas em meio a uma
problemática maior da linguagem musical. A crítica à indústria cultural permanece, porém,
há a inclusão de material do universo popular ou de entretenimento nas composições. Desta
forma, ocorre a diluição do antagonismo das categorias “original” versus “conservador” e a
questão da originalidade tem seu valor minorado. O sentido da música já não é trabalhar
com esta novidade ou revolucionar aquela outra, mas sim deslocar o eixo de abordagem da
teoria para o de vivência da audição.
A partir dos anos 80 a maioria dos compositores brasileiros abandonaram as propostas
consideradas radicais. Grande parte deles está em uma fase eclética, onde há uma suspensão
de conflitos estilísticos e a adoção de um espécie de sincretismo de vertentes
composicionais que pareciam irreconciliáveis. De acordo com João Marcos Coelho,
Hoje as palavras de ordem são: ‘síntese’ (Edino Krieger), ‘mistura de tudo’
(Marlos Nobre), ‘fusão’ (Ronaldo Miranda), ‘estética da multiplicidade’
(Almeida Prado), ‘releitura menos policiada por escolas’ (Jocy de Oliveira),
‘química de linguagens múltiplas’ (Gilberto Mendes). Eles falam de
‘neotonalidade’ e em ‘transitar entre o pop e o erudito’ sem o menor sinal de
lhes subir rubor às faces... Está decretado, portanto, o fim das patrulhas
ideológicas da vanguarda dos anos 60 (...) Esta estética da multiplicidade onde
tudo cabe e atende também pelo nome de pós-modernismo também entra na
balança das importações (...) E todos, sem exceção, atravessaram suas fases
vanguardistas, herméticas, e hoje degustam as delícias de poder usar sem
culpa um acorde perfeito (...). (Coelho, abr. 2005, p. D9)
Os problemas da pós-modernidade musical são o perigo do ecletismo gratuito e as
interfaces com o kitsch. Safatle comenta o retorno ao tonalismo da seguinte forma:
(...) O que não significa que o caminho aberto pelo novo tonalismo não seja
rico em perspectivas, da mesma forma que ele é rico em impasses. Saber
assumir riscos é uma virtude maior e, por incrível que pareça, talvez o maior
168
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
risco que um compositor pode correr hoje apareça no momento em que ele
procura retornar a estruturas tonais sem aceitar as facilidades das estratégias
de colagem pós-modernas. (Safatle, 2005)
As citações podem se configurar como as partes mais interessantes de uma obra se o
compositor não desenvolve uma linguagem pessoal, esquecendo-se da perspectiva
ontológico-existencial no seu processo formador de linguagem.
Pós-Modernidade em Gilberto Mendes no período de 1982 à 1995
De acordo com a pesquisadora Adriana Francato, “pode-se classificar a sua produção
musical em três grandes períodos: Formação (de 1945 a 1959), Experimentalismo (de 1960
a 1982) e Pós-Tudo, como ele mesmo denomina sua última fase de produção (de 1982 a
hoje).” Buckinx também observa esta transformação na produção de Gilberto Mendes a
partir da década de oitenta:
A obra de Gilberto Mendes traz já do início todo o tipo de informação: bigband, jazz, musicals, Villa-Lobos, recusas de limites hierárquicos entre alta e
baixa cultura, uma mistura de serialismo e Brigitte Bardot (Cidade, 1964, para
vozes, instrumentos, aparelhos eletro-domésticos). A partir dos anos 80 a sua
obra sofrerá transformações radicais. É quando ele opta por uma música de
compreensão mais imediata, mais melifluente (O meu Amigo Koellreutter,
1984). (Buckinx, 1998, p. 75)
A utilização de formas clássicas e a releitura de uma obra “tradicional” são características
típicas do pós-modernismo que encontramos em suas obras iniciais. Como exemplo temos a
Sonatina (Mozartiana–1951), que reflete uma preocupação com a estrutura da forma sonata,
mas, por outro lado, uma leitura criativa da Sonata e m Dó Maior K.545, de Mozart,
enriquecida com ritmos e modalismos brasileiros, transformada pela linguagem pessoal de
Gilberto Mendes. Sobre as influências brasileiras e cosmopolitas na produção deste
compositor, Antônio Eduardo dos Santos afirma:
Gilberto Mendes integra, em sua linguagem composicional, todo o material e
meio de expressão à sua disposição, ou seja, cria uma arte semântica passando
pelos timbres jazzísticos, dos musicais norte-americanos das décadas de 1930
e 1940, por músicos como Friedrich Hollaender, David Raksin ou nomes
como Count Basie, Earl Hinnes e o pianista Teddy Wilson, a quem considerou
um Mozart do jazz, não deixando de lado, porém, a música popular brasileira.
(Santos, A. E., 1997)
Inicia sua terceira fase composicional com a obra Vento Noroeste (1982). Sobre esta peça,
Gilberto Mendes realizou os seguintes comentários:
‘Vento Noroeste’ foi composta a pedido do pianista Caio Pagano a quem é
dedicada e por ele estreada no Festival de Miami, em 1982. Trabalhada sobre
um seqüência de notas distanciadas por tons inteiros e sua inversão, bem
como a sobreposição dessas duas seqüências (do que resulta um
fracionamento em meios tons) e a sua compreensão numa outra seqüência
também por meios tons. Esses meios tons se definem ao longo da peça num
eixo descendente/ascendente, em torno do qual se identificam procedimentos
musicais que tanto podem ser do romantismo alemão, como da música dos
mares do sul, ou da bossa nova; permeados de determinados acordes
O limiar da Pós-Modernidade
169
semânticos (fonte de novos materiais sonoros) em sua múltiplas combinações.
Uma melodia muitas vezes repetida emerge, personificando o espírito do
vento noroeste que sopra quente, sobre o mar, junto às praias de Santos;
trazendo lembranças fugazes da música de Chopin, Schumann, Liszt,
Debussy, de cuja escrita esta peça pretende ser uma metalinguagem. (Zago,
2002, p. 102)
Em 1986 Gilberto Mendes representou o Brasil no primeiro festival de Patras. O tema do
simpósio era “Pós-Modernismo na Música”. Quando voltou, escreveu um artigo para a
Folha Ilustrada, em 7 de setembro, com os seguintes trechos:
Posso assegurar que algo me liga aos ‘divertimentos’ arquitetônicos de Philip
Johson, quando componho peças como ‘Beba Coca-Cola’, ‘Santos Football
Music’, ou mesmo o ‘Longhorn Trio’, tocado em Patras... E certos caminhos,
nos Estados Unidos, de George Crumb, ou do ex ‘taxi driver’ Philip Glass,
este retomando descaradamente a periodicidade, em relação a Cage (...)
Dentro de uma tradição de pluralismo, sincretismo e ecletismo,
principalmente no Brasil. ‘Beleza também é função’ (Niemeyer, 1942). A
prolixidade em Villa-Lobos, que Messiaen tanto admira. O antropofagismo...
comparei Charles Ives a Villa-Lobos, como verdadeiros pós-modernos ‘avant
la lettre’ (...) a minha própria tentativa de articular agora numa real linguagem
tudo aquilo que fôra, na minha própria música, colagem, citação, paródia,
‘kitsch’, metalinguagem (...). (Mendes, set. 1986)
A seguir elencamos algumas obras representativas deste período até 1995.
Gregoriana (in memorian), 1983, para trompa em F: segundo Carole Gubernikoff, nesta
obra a “técnica de pequenas figurações melódico rítmicas justapostas num fluxo contínuo e
linear se consolida.(...) Neste sentido, torna-se um verdadeiro desafio à percepção na
medida em que a segmentação do fluxo sonoro torna-se, no mínimo, ambígua, quando não
impossível.” (Gubernikoff, 10 jun., 2005)
Partitura: Um Quadro de Gastão Z. Frazão
Mendes fala desta obra em seu livro:
, 1985, para orquestra sinfônica. Gilberto
Olhei para o quadro de meu amigo Gastão...e, seguindo suas linhas e núcleos
abstratos, que pretendem sugerir um novo grafismo, uma nova escrita musical,
fui desenhando, em correspondência com o que via, notas em seqüências
melódicas e concentrações harmônicas. O resultado serviu de material
musical, uma série...Mas não se trata de música serial ortodoxa, como a
dodecafônica. Esse material é uma base constante de referência, fator de
unidade, mas em vários momentos é abandonado, quando a música segue
livremente, porém sempre inspirada nos motivos e clima melódico/harmônico
desse material. (Mendes, 1994, p. 200)
Último Tango em Vila Parisi, 1987, para orquestra sinfônica: obra em que ocorre mistura
de linguagens, com momentos minimalistas e de happening. Gilberto escreveu sobre esta
em seu livro:
A peça tem um pouco de ‘abertura trágica’ orquestral, à la Brahms, mas
apenas na expectativa do que vai acontecer. Na verdade, é um divertimento
mozartiano... Obra repetitivo-minimalista, composta sobre somente um acorde
orquestral, estático, soando dois minutos, seguido de uma frase musical do
170
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
tipo introdução a um tango, também muitas vezes repetido. Sobre o que se
desenvolve o teatro musical. (Mendes, 1994, p. 219)
Ulysses em Copacabana Surfing with James Joyce and Dorothy Lamour, 1988, para flauta,
clarineta, trompete, sax alto, 2 violinos, viola, violão, contrabaixo e piano
(...) integram-se neste meu trabalho materiais que vão desde velhos hinos
gregos até o orientalismo kitsch do tipo Hollywood anos 30, tudo muito
transformado e desenvolvido, numa Sommerreise schubertiana que passa por
muitos climas tropicais e chega a um surf de 3 músicas simultâneas, o fox-trot
final que pode estar sendo ouvido num cocoanut grove de Los Angeles, como
num café em Trieste, ou num bar de Copacabana. Tentativa de uma forma
musical joyciana e de um som schoenberguiano a partir do estilo de
orquestração de velhas canções cantadas por Dorothy Lamour (...). (Mendes,
1994, p. 219)
Um Estudo? Eisler e Webern caminham nos mares do Sul, 1989, para piano solo. Bezerra
comenta a manifestação da expressão individual e o uso de citações, peculiar do pósmodernismo, presentes nesta peça:
O componente autobiográfico é outra característica das obras deste período de
maturidade. Nelas, o compositor presta homenagem aos ídolos da sua
juventude: as estrelas de Hollywood e os artistas das vanguardas européias
(Ulisses em Copacabana Surfando com James Joyce e Dorothy Lamour,
1988; Um Estudo? Eisler e Webern Caminham nos Mares do Sul, 1989). O
uso refinado de citações musicais está presente em grande parte das
composições mais recentes. (Bezerra, set. 2002, p. 22)
Tempo Tempo, 1991, para coro a capela. De acordo com Valente, é uma obra composta
apenas para vozes onde encontramos a repetição, característica marcante desta fase de
Gilberto Mendes e a mistura de linguagens, marca do pós-modernismo, representada pela
alternância de momentos em que utiliza apenas intervalos consonantes, com blocos
microtonais. (Valente, 1999, p. 214)
Abertura da Ópera Issa, 1995, para orquestra sinfônica: esta abertura não se baseia em
processos sistemáticos de repetição em sua totalidade, muitas vezes limitados a partes ou
trechos. Assim, o termo “pós-minimalista” seria o mais adequado para caracterizar esta
abertura, que lembra o pós-minimalismo europeu, como algumas obras de Arvo Pärt, por
exemplo. O compositor utilizou-se da técnica do minimalismo americano de processo
aditivo (subtrativo) textural, junto com linhas melódicas expressivas, realizando a mistura
de linguagens peculiar do pós-moderno. A primeira parte desta abertura apresenta estrutura
formal contínua e textura rítmica homogênea, com construção pós-minimalista a partir de
quatro motivos. Na segunda parte da obra se insere mudança de andamento e caráter,
ocasião em que é executado pelo oboé o segundo elemento estrutural, uma melodia
utilizando escala assemelhada ao modo mixolídio. Para construir esta frase o compositor
usou as mesmas relações intervalares do primeiro motivo, identificado em nossa análise,
através de duas variações transpostas, sendo a última destas retrógrada. Tanto na segunda
quanto na terceira parte a obra abandona o caráter minimalista, apresentando-se o tema
como melodia acompanhada. Na terceira parte, as trompas executam o terceiro elemento
estrutural da abertura, a melodia derivada da escala Ritsu do Gagaku, já que o protagonista
da ópera é o poeta japonês Issa. Esta escala é pentatônica, mas o compositor constrói a frase
O limiar da Pós-Modernidade
171
com a sétima maior, criando uma reminiscência tonal, que logo é esmaecida pelos
contornos vagos da melodia, apresentando assim o sincretismo próprio do pós-moderno. De
acordo com Kaminsky, “o que ocorre hoje, porém, é uma intensificação das identidades
sincréticas, geradas pelas migrações internacionais, e que refletem/são refletidas nas
produções artísticas.” (Kaminsky, 2002, p. 190–191)
Como pudemos notar, o universo pessoal de Gilberto Mendes permeia toda sua produção.
Ele navega entre estilos, tendências e influências musicais sob o signo da liberdade
criadora, com o ecletismo inerente ao pós-moderno.
Conclusão
Atualmente o compositor, carregado de informações tanto no campo das artes como na
ciência, traz consigo um passado cultural bem mais amplo que em períodos anteriores, com
a possibilidade de realizar metalinguagens usando todo material cultural à disposição.
Gilberto Mendes abarca um grande variedade de gêneros musicais e suas preocupações
poéticas não se encerram nas obras, mas sim nutrem outros procedimentos de criações
posteriores.
O estudo sobre as possíveis interfaces da pós-modernidade no idiomático de Gilberto
Mendes, no período de 1982 à 1995, nos leva a concluir ser este um período onde impera a
química de linguagens múltiplas e a mistura de protocolos, numa fusão de horizontes
musicais peculiar do pós-moderno.
O compositor encara o sistema atonal como uma expansão do sistema tonal e suas obras
revelam seu singular imaginário musical, que vai desde as lembranças fugazes de Vento
Noroeste até a corte imperial japonesa, presente na Abertura da Ópera Issa, através da
escala Ritsu do Gagaku. Neste sentido, demonstra outra faceta pós-moderna, a expressão da
individualidade do compositor, com cunho quase autobiográfico.
Nesta fase Gilberto Mendes prezou o ecletismo de sua paisagem sonora, exercendo seu
mister com simplicidade através da parcimônia na utilização de materiais, com técnicas de
citações que produzem, paradoxalmente, uma obra complexa e sofisticada. Suas obras deste
período parecem imbuídas da propriedade de serem captadas de modo direto pelo ouvinte,
remetendo à característica pós-moderna da feitura de uma arte que possa ser assimilada
tranqüilamente pelo público, sem a necessidade de “bulas” ou teorizações estéreis.
O objetivo de assinalar aspectos pós-modernistas na obra de Gilberto Mendes é trazer este
repertório respectivo para perto dos intérpretes e estudiosos, pois ele ainda é pouco
divulgado aqui no Brasil, valendo notar que esta sua produção recente é assaz executada na
Europa. Desta forma, esta pesquisa pretende incrementar as execuções deste repertório pósmoderno de Gilberto Mendes em seu país natal.
Devido a tão exíguo espaço, o assunto não se esgota neste leve debruçar-se sobre ele,
restando vasto campo para ser abordado. O que aqui resta comprovado é a inegável relação
de Gilberto Mendes com os modos pós-modernos, e a extraordinária força expressiva que
consegue desta condição extrair, enriquecendo de maneira ímpar a música erudita.
172
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
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Rita de Cássia Domingues dos Santos é Mestre em Musicologia pela ECA - USP. Em
2004 terminou a pós-graduação lato sensu: “Capacitação Docente em Música
Brasileira” na Universidade Anhembi-Morumbi. Graduada em Composição e
Regência pela UNESP e em Educação Artística pela FASM. Participou do III Fórum
de Pesquisa Científica em Arte – EMBAP com o trabalho “Carta de Mário de
Andrade a Camargo Guarnieri: um estudo sobre Inferência”. Em 1989 obteve o 3º
Lugar com a composição “Retrato Íntimo” no V Concurso Nacional Ritmo e Som da
UNESP. Em 1997 teve seu arranjo coral “Divertimento” executado na Fundação
Memorial da América Latina, pelo Coral “Amigos do Mundo” e Camerata Ikeda.
Regeu coros da graduação da UNESP (campus Araraquara) e do departamento de
Música da USP (campus Ribeirão Preto), dentre outros. Atualmente é professora de
educação musical no Colégio Benjamin Constant e pesquisa as interfaces do pósmoderno com a música .
Educação musical e pedagogia
Sérgio Luiz Ferreira de Figueiredo (UDESC)
Resumo: Este trabalho discute a formação musical de professores generalistas. Estes
professores são formados em cursos de pedagogia para atuarem na Educação Infantil
e nas Séries Iniciais do Ensino Fundamental, e deveriam atuar com todas as áreas do
conhecimento escolar, incluindo música. No entanto, a formação musical oferecida
tem sido precária. Este texto analisa os resultados de um curso de música para
professores generalistas baseado em uma estrutura curricular que será apresentada e
discutida. Palavras-chave: Educação musical; professores generalistas; estrutura
curricular; curso de música.
Introdução
Os anos iniciais da escola brasileira estão normalmente a cargo de professores generalistas.
Tais professores são aqueles que atuam na escola com todas as áreas do conhecimento,
tanto na Educação Infantil quanto nas Séries Iniciais do Ensino Fundamental (1ª a 4ª série).
Em alguns sistemas educacionais, normalmente os privados, há professores especialistas
para certas áreas do conhecimento, como por exemplo, educação física, línguas estrangeiras
e artes.
A presença de professores especialistas nos anos iniciais da escola de certa forma altera o
princípio norteador da educação neste período escolar, pois o que se espera é que um
professor seja responsável pela introdução de conhecimentos diversos através de uma
perspectiva integrada. Esta integração se justifica do ponto de vista psicológico, e um único
professor durante os anos iniciais é mais adequado para a criança desta faixa etária. Além
da questão psicológica, um único professor atuando com todas as áreas do conhecimento de
forma introdutória, é uma alternativa que pode evitar a fragmentação do currículo.
Os professores especialistas em diferentes áreas certamente podem contribuir para um
ensino de qualidade nos anos iniciais. Mas o professor generalista deveria compreender o
papel de todas as áreas do conhecimento que estão presentes na Educação Infantil e nas
Séries Iniciais do Ensino Fundamental, e, de alguma forma, contribuir para o
desenvolvimento destas áreas ao longo de seu trabalho didático-pedagógico.
A área de artes tem sido tratada de maneira insatisfatória nos anos iniciais da escola
brasileira por diversas razões. Uma delas está diretamente relacionada à quantidade e
qualidade da formação artística oferecida nos cursos que preparam professores para os anos
iniciais da escola. Tal formação tem contribuído para que se perpetue a idéia de que as artes
só podem ser realizadas por alguns indivíduos dotados de talentos especiais. Esta forma de
pensar sobre as artes está muito arraigada no contexto escolar inibindo a realização de
trabalhos que envolvam artes de maneira consistente.
Especificamente sobre música, a formação oferecida em cursos de pedagogia que preparam
professores para os anos iniciais da escola, tem sido precária (Figueiredo, 2003). O
resultado desta formação (ou falta de formação) está refletido na ausência significativa de
propostas de educação musical para os anos iniciais da escola, gerando uma lacuna na
Educação Musical e Pedagogia
175
experiência escolar que é oferecida para as crianças nesta faixa etária. Quando há
professores especialistas nos anos iniciais atuando na área de música, reforça-se a idéia de
que música não é para todos, e o professor generalista parece não ser capaz de lidar com
atividades musicais em sua prática escolar.
Será possível oferecer uma formação musical durante os cursos de pedagogia de modo que
o professor que atuará nos anos iniciais da escola seja capaz de lidar com aspectos
educativo-musicais em sua prática docente? Este texto apresenta uma discussão acerca
deste assunto, procurando demonstrar que é possível aprimorar a formação musical de
professores generalistas de modo que tais professores possam contribuir para o
desenvolvimento musical das crianças nos anos iniciais da escola.
Formação musical de professores generalistas
Em pesquisa realizada em 19 instituições brasileiras que oferecem cursos de pedagogia com
habilitações em Educação Infantil e/ou Séries Iniciais, observou-se a precariedade da
formação musical oferecida na maioria das instituições participantes (Figueiredo, 2003,
2004a). De um modo geral, a música faz parte de uma disciplina que trata das artes de
maneira plural e polivalente.
A polivalência para as artes, instituída em 1971, demonstrou resultados insatisfatórios ao
longo de 25 anos, período de vigência da lei 5692/71 que regulamentou esta matéria até
1996. A proposta da disciplina Educação Artística envolvendo Artes Cênicas, Artes
Plásticas, Desenho Geométrico e Música, pretendia que um único professor desenvolvesse
todas as áreas artísticas. Além da inviabilidade de uma prática consistente em todas as áreas
em função da formação superficial que era oferecida em cursos de licenciatura em
Educação Artística, a prática desta disciplina na escola sempre esteve num plano bastante
secundário em termos curriculares.
Muitas universidades e faculdades que ofereciam cursos de licenciatura em Educação
Artística optaram pela formação específica em uma única linguagem artística desde o início
do curso, modificando completamente a proposta da polivalência. Por exemplo, os
currículos dos cursos de licenciatura em Educação Artística da UDESC – Universidade do
Estado de Santa Catarina – formou professores para cada área específica desde 1984,
considerando a inviabilidade da formação polivalente.
Apesar das críticas à polivalência (Barbosa, 2001, 2005, Figueiredo, 1999, 2000;
Hentshcke, 1993; Hentschke e Oliveira, 1999; Oliveira, 2000a, 2000b; Tacuchian, 1992;
Tourinho, 1993), diversos cursos de pedagogia ainda sustentam tal prática em seus
currículos que preparam professores para as séries iniciais. Parece haver uma certa
confusão entre a formação e a prática do professor generalista. Tal professor atuará de
forma integrada com as diversas áreas do conhecimento escolar, mas isto não quer dizer
que a formação deste professor seja feita em uma única disciplina. No currículo dos cursos
de pedagogia existem especificidades como Matemática, Língua Portuguesa, História,
dentre outras, que são tratadas de maneira específica durante o curso. O entendimento de
que Arte pode ser considerada uma atividade única e, portanto, pode ser ministrada em uma
única disciplina por um único professor, é reflexo da prática da Educação Artística que
difundiu a polivalência como estratégia de ensino de todas as linguagens artísticas por um
profissional que deveria dominar todas as áreas de artes.
176
Anais do Simpósio de Pesquisa em Múisca | 2005
Os cursos de pedagogia que preparam professores generalistas para atuarem na Educação
Infantil e nas Séries Iniciais incluem as artes de maneira polivalente, em sua maioria, como
demonstrou pesquisa realizada nas regiões sul e sudeste do Brasil (Figueiredo, 2003,
2004a). Na maioria dos cursos participantes da pesquisa realizada, existe um único
professor de artes, com formação específica em uma linguagem artística, mas que inclui,
em sua prática, atividades artísticas diversas. A música é uma das áreas menos oferecidas,
pois é considerada específica demais.
O resultado desta formação musical superficial é a ausência de experiências significativas
em música nos primeiros anos da escola. A insegurança dos professores generalistas com
relação à música é freqüentemente mencionada por estes profissionais (Figueiredo e
Godoy, 2005) e tal insegurança inibe o desenvolvimento de propostas de educação musical
consistentes para os anos iniciais. A insegurança para lidar com música constatada em
diversos contextos brasileiros (Bellochio, 2000; Souza, 2002; Torres e Souza, 1999) é
também objeto de pesquisa em diversos contextos internacionais (Barret, 1994;
Temmerman, 1991; Russel-Bowie, 1997; Mota, 2000; Diaz, 2000).
A partir desta situação, verifica-se que a formação musical durante a graduação é
fundamental para que se prepare adequadamente os professores que atuarão nos anos
iniciais da escola. Esta formação musical precisa ser tratada cuidadosamente nos cursos de
pedagogia, e deve ser oferecida por profissionais da educação musical. Além disso, o tempo
destinado a esta área de conhecimento deveria ser compatível com aquilo que se espera de
uma formação adequada.
Educação musical para pedagogos
O currículo dos cursos de pedagogia em geral trata superficialmente a formação musical.
Diversas razões podem estar ligadas a este tratamento, de acordo com depoimentos de
professores e coordenadores de cursos de pedagogia (Figueiredo, 2003):
1) A música é entendida como uma das artes que se desenvolve naturalmente quando se
estuda qualquer arte. Esta visão de arte simplifica e reduz as diversas linguagens artísticas
a uma ação indefinida, ignorando as especificidades de cada linguagem. Parece que o
desenvolvimento de cada linguagem artística depende apenas de estímulos que
automaticamente se refletem em outras áreas; é como se ao estudar uma pintura
automaticamente haveria um desenvolvimento musical, e assim por diante.
2) Não há tempo na grade curricular para se incluir cada linguagem artística
separadamente. Esta justificativa indica que as artes não são compreendidas de forma
relevante na formação do pedagogo, pois todas as outras áreas que compreendem o
currículo parecem ter espaço e tempo garantidos; não sobra tempo para as artes porque
outras áreas, consideradas mais relevantes, ocupam o tempo possível. Some-se a esta
questão de tempo a problemática econômica que a contratação de mais professores
acarretaria em diversos cursos superiores.
3) Há outras prioridades educacionais para a formação de pedagogos. Por outras
prioridades se entendem aspectos racionais e utilitários do currículo. A escola tem
valorizado aquilo que será útil para a vida dos indivíduos e esta utilidade muitas vezes está
direcionada para o vestibular, por exemplo, ou para a atividade profissional. Nesta
Educação Musical e Pedagogia
177
perspectiva utilitária, as artes carregam uma certa dose de ‘inutilidade’, o que justifica sua
posição secundária nos projetos curriculares em geral.
4) As artes servem para deixar tudo mais bonito e agradável na escola. Nesta concepção as
artes ocupam um papel coadjuvante, sugerindo que sua presença na escola deve sempre
estar ligada a algo mais significativo. As artes são utilizadas para entreter, auxiliar na
aprendizagem de outros conteúdos e para relaxar as crianças, oferecendo períodos de
descanso entre as atividades ‘sérias’ do currículo.
5) Este modelo de ensino de artes é o que vem sendo utilizado por muitos cursos de
pedagogia ao longo da história. A repetição de modelos anteriores sem reflexão tem sido
uma opção de vários cursos de pedagogia que formam professores generalistas. Ao mesmo
tempo faltam propostas concretas para o estabelecimento de novas perspectivas para as
artes nos cursos de pedagogia.
As cinco razões apresentadas para a falta de uma formação musical mais significativa em
música e em artes em geral nos cursos de pedagogia ilustram situações decorrentes de
práticas sem a devida reflexão. O discurso da formação integral da criança é diferente da
prática curricular que privilegia algumas áreas em detrimento de outras. A falta de
discussão sobre a formação musical e artística nos cursos de pedagogia também reflete uma
hierarquia curricular que vem sendo praticada, colocando as artes em uma situação
irrelevante na formação dos indivíduos.
Um aspecto importante para ser discutido é a falta de propostas diferenciadas para esta
formação musical. Há cursos que mantêm certas práticas em termos de formação musical
porque desconhecem outras propostas possíveis. Neste sentido, o que parece ser importante
é a revisão de conceitos sobre música, ensino de música, e música na formação escolar.
Para o senso comum, fazer música é tocar instrumentos musicais, e para tanto, é preciso ter
talentos especiais, é preciso ser muito musical. Ignora-se o fato de que todas as pessoas se
relacionam com a música de sua cultura e, nesta perspectiva, não existem indivíduos não
musicais. Como afirma Hodges (1999), “todas as pessoas possuem algum grau de
musicalidade, porque todos os indivíduos respondem de alguma forma à música de sua
cultura” (p. 30). Além disso, há diversas maneiras de lidar com música além de tocar um
instrumento musical, assim como, é possível realizar atividades musicais bastante simples,
acessíveis a todas as pessoas.
Uma proposta de música para a formação de pedagogos deve rever, em primeiro lugar, a
visão de que música deve sempre servir para algo que está fora dela, como, por exemplo,
ajudar na fixação de datas, números, ou outros conteúdos. Música serve também para
auxiliar na realização de outras tarefas, mas a formação musical deveria ir além desta
ênfase nos valores extrínsecos à música (Temmerman, 1991). A própria discussão sobre os
significados e as funções da música na sociedade poderia ser um dos componentes a serem
incluídos na formação musical de professores generalistas. Merriam (1964) é uma
referência importante para a discussão deste tópico.
A partir da pesquisa realizada (Figueiredo, 2003) constatou-se uma certa fragilidade nas
concepções sobre música no currículo dos cursos de pedagogia. Tal fragilidade incluía um
grau elevado de superficialidade nas propostas curriculares, oferecendo para os alunos
algumas atividades prontas, espécies de ‘receitas’, para serem utilizadas em momentos
específicos na escola (por exemplo, ensinar música para datas comemorativas). O que se
178
Anais do Simpósio de Pesquisa em Múisca | 2005
notou, em diversas propostas curriculares dos cursos de pedagogia, foi o tratamento
superficial dado à música no currículo sem o reconhecimento desta área como uma das
áreas do conhecimento escolar. A alegação de falta de tempo deve ser considerada como
um empecilho para o desenvolvimento de um programa mais consistente em termos de
educação musical, mas, ao mesmo tempo, falta argumentação em favor da presença desta
área no currículo.
A tradição de se fazer música como acessório para outras atividades curriculares é um dos
grandes obstáculos a serem vencidos quando se pretende modificar a educação musical nos
cursos de pedagogia, e, conseqüentemente, nos anos iniciais da escola. A revisão de
conceitos é fundamental para proporcionar alguma mudança significativa.
Diante da necessidade de revisão de propostas, um questionamento foi realizado com o
objetivo de buscar novas alternativas que pudessem aprofundar a questão da música na
formação de professores generalistas, levando-se em consideração que grandes alterações
não serão possíveis em curto prazo de tempo. Além disso, diversas aproximações entre
música e outras áreas de estudo no contexto do curso de pedagogia poderiam ser um
caminho para que se construíssem novas concepções curriculares menos hierárquicas, mais
holísticas e condizentes com o que se espera da formação escolar nos anos iniciais.
Diversos autores que discutiram a formação de professores especialistas e generalistas
podem contribuir para a construção de propostas para a música na formação de pedagogos.
Alguns destes autores estão apresentados, a seguir, e suas idéias foram utilizadas para a
construção da estrutura conceitual para a formação de professores generalistas proposta
neste texto.
Reimer (1989) em sua filosofia de educação musical considera importante que na formação
de professores questões de psicologia façam parte do currículo, enfatizando elementos de
percepção, do funcionamento da mente e do desenvolvimento infantil. Elementos de
história da educação também são recomendados por Reimer (2003) como uma forma de
“entender a música em relação à história e à cultura” (p. 269).
Boardman (2001) enfatiza que a música ocorre sempre em um contexto sócio-cultural.
Música é discutida como um sistema de símbolos que representa um modo único de
representação de mundo, e como tal, não pode ser substituído.
Gardner (1991) apresenta elementos fundamentais para o desenvolvimento da educação em
artes nas escolas. Dentre estes elementos estão: a) noções filosóficas da educação em artes;
b) aspectos psicológicos da aprendizagem em artes; c) práticas artísticas.
Mills (1991) reforça a possibilidade de se preparar musicalmente professores generalistas.
Em seus argumentos a autora enfatiza a importância da música por causa de sua maneira
única de ser, que é diferente de qualquer outra área do conhecimento. Questões filosóficas e
psicológicas deveriam ser consideradas no desenvolvimento de programas de música para a
formação de pedagogos.
Durrant e Welch (1995) consideram que “existem muitos tipos de música e atividades
musicais e, conseqüentemente, muitas possibilidades do professor generalista lidar com a
música” (p. 3). Todas as atividades musicais práticas sugeridas por estes autores deveriam
estar relacionadas com questões filosóficas, psicológicas e antropológicas.
Educação Musical e Pedagogia
179
A partir destes autores mencionados é possível considerar que a atividade musical deveria
estar conectada com outras compreensões para fazer sentido no contexto educacional. Todo
programa de música deveria levar em consideração questões essenciais que pudessem
nortear as escolhas e as reflexões do professor. A Fig. 1 apresenta um esquema que inclui
algumas questões essenciais que poderiam ser utilizadas para o desenvolvimento de
programas de educação musical para professores generalistas.
O quê?
Quando?
Por quê?
MÚSICA
Como?
Onde?
Fig. 1 - Questões essenciais (Figueiredo, 2004b, 2004c)
A Fig. 1 sugere que ao se pensar em música seria importante localizá-la em diferentes
perspectivas. Ao tentar responder o quê de música, o professor deverá investigar diversas
manifestações musicais, selecionar as que deseja discutir com seus alunos, definindo
estilos, épocas, elementos presentes em cada manifestação escolhida. Música é importante?
Por quê? Ao refletir sobre a importância da música o professor terá que ir além da
utilização dela para entretenimento e lazer, ou para auxiliar o processo de aprendizagem de
outras disciplinas. A música está presente em todas as civilizações e em todos os tempos, e
refletir sobre isto amplia as possibilidades de aplicação de propostas musicais na escola.
Como a música pode ser incluída na prática escolar também é uma questão fundamental,
que indica a necessidade de conhecimento sobre metodologias específicas de educação
musical; é preciso ampliar a experiência musical dos alunos para além daquela que já é
realizada naturalmente na cultura, e para isto é necessário que se conheçam caminhos
educacionais específicos que possibilitem outras experiências sonoras e musicais. Onde a
música pode ocorrer sugere a reflexão sobre os diversos espaços da manifestação musical,
180
Anais do Simpósio de Pesquisa em Múisca | 2005
dentro e fora da escola; o professor pode ser um estimulador desta constatação da música
em diversos contextos, o que também poderia ser um estímulo para buscar diversos tipos de
música, além de ampliar o contato com músicos e experiências musicais diversas. Quando a
educação musical deve ser incluída e de que forma ela poderia respeitar os diversos
aspectos do desenvolvimento da criança também deve ser um elemento de reflexão e estudo
do professor.
As questões essenciais apresentadas na Fig. 1 conduzem naturalmente a uma síntese de
componentes que poderiam ser considerados fundamentais na construção de uma estrutura
conceitual através da inclusão de áreas distintas do conhecimento que se somam para
atribuir sentido mais amplo à experiência musical na escola. Os componentes desta
estrutura conceitual derivam das questões essenciais. A Fig. 2 apresenta estes componentes.
Durante a formação oferecida nos cursos de pedagogia são oferecidas diversas disciplinas
que se referem aos assuntos aqui propostos. No curso de pedagogia se estuda filosofia da
educação, psicologia, sociologia, didática, e outras disciplinas cuja função é preparar o
futuro professor como um indivíduo que compreende sua atividade profissional num
universo muito amplo. Os componentes propostos na estrutura conceitual apresentada na
Fig. 2 poderiam ser discutidos em diversas disciplinas do curso de pedagogia. Compreender
a importância da música não é uma questão apenas da aula de música; entender e refletir
sobre a presença da música na sociedade é também um assunto que não pertence
exclusivamente à área de música; aprimorar o conhecimento sobre a criança e seu
desenvolvimento escolar obviamente também inclui questões de música, e assim por diante.
È possível estabelecer diversas conexões entre as áreas que estão sendo estudadas pelo
futuro pedagogo, e a música deve ser parte desta reflexão.
Aplicando a estrutura conceitual para estudantes de pedagogia
Um curso de música com 16 horas de duração foi oferecido para estudantes de um curso de
pedagogia com o intuito de desenvolver uma experiência musical baseada nas propostas
contidas na estrutura conceitual apresentada anteriormente. Os participantes do curso
(n=51) faziam parte de 3 classes diferentes de um curso de pedagogia.
O desenho metodológico escolhido foi a pesquisa-ação. O curso foi ministrado pelo
pesquisador que, ao mesmo tempo, desenvolvia as propostas do conteúdo definido para o
trabalho e coletava dados para serem analisados posteriormente. Além destes dados
coletados ao longo do curso, outros dados foram extraídos das respostas dos alunos a dois
questionários: um no início e outro no final do curso. O questionário inicial solicitava
informações gerais sobre: a) a formação musical de cada participante; b) a importância que
eles atribuíam à música nos anos iniciais da escola; c) o nível de segurança que eles tinham
para trabalhar com elementos musicais na escola; e d) as expectativas que os participantes
tinham com relação ao curso de música oferecido. O questionário final solicitava aos
participantes que relatassem suas impressões sobre as experiências musicais realizadas ao
longo do curso e seu grau de segurança para utilizar música em suas práticas escolares.
Educação Musical e Pedagogia
181
Componentes
musicais
Componentes
filosóficos
Componentes
pedagógicos
Componentes
psicológicos
Componentes
sociológicos
Fig. 2 - Estrutura Conceitual para a formação musical de professores generalistas
(Figueiredo, 2004b, 2004c)
As atividades desenvolvidas ao longo dos encontros incluíram diversas questões. Todas as
atividades foram permeadas por discussões e reflexões acerca dos elementos evidenciados
em cada experiência. Textos de apoio aos vários aspectos trabalhados durante o curso
foram indicados para leitura e aprofundamento de questões de interesse dos alunos.
O conteúdo do curso
A estrutura conceitual apresentada norteou a elaboração de tópicos e atividades a serem
desenvolvidas durante o curso, considerando que todos os componentes eram
hierarquicamente similares (Figueiredo, 2004b, 2004c). Cada grupo de componentes foi
assim contemplado:
1) Componentes musicais: questões de apreciação, criação e execução musical; elementos
sonoros, melodia, textura, forma e estilo, dentre outros, foram aspectos explorados através
de exercícios individuais ou em grupo;
2) Componentes filosóficos: questões de estética, música e filosofia de educação musical;
foram apresentados e discutidos diversos argumentos em favor da educação musical na
escola;
3) Componentes psicológicos: teorias do desenvolvimento musical; todas as atividades
práticas foram permeadas de discussões acerca da viabilidade de realização de experiências
musicais com faixas etárias distintas;
4) Componentes pedagógicos: metodologias de educação musical; diversos autores foram
discutidos com o intuito de demonstrar diversas estratégias educativas em música;
182
Anais do Simpósio de Pesquisa em Múisca | 2005
5) Componentes sociológicos: as funções da música em diferentes contextos; discussão
sobre os vários papéis que a música desempenha nas sociedades humanas.
Discussão
A formação musical dos participantes era inexistente ou bastante precária. Vários deles
relataram e registraram experiências musicais ruins ou pouco significativas ao longo da
formação escolar. Esta situação, infelizmente, não é privilégio destes participantes desta
pesquisa, já que em diversas partes do Brasil o ensino de artes é pouco sistemático e
descontínuo (Penna, 2004).
Apesar da pouca formação, os participantes foram unânimes e muito positivos ao se referir
à importância da música na escola, apresentando diversas razões. Música acalma, alegra,
faz bem para o espírito, desenvolve emoção e sensibilidade, facilita a aprendizagem em
outras disciplinas e faz parte do desenvolvimento integral da criança, foram os principais
argumentos para justificar a importância da música na visão dos participantes. Estes
argumentos apresentados são naturalmente mais dirigidos para valores extrínsecos à
atividade musical, confirmando a falta de formação musical específica dos participantes.
Para eles, música parece ter que sempre servir para alguma coisa, como se a música em si
não tivesse valor para poder ser incluída e justificada na escola.
O repertório variado apresentado durante o curso propiciou aos participantes uma vivência
com outras experiências musicais, o que contribuiu para a reflexão sobre os tipos de música
que poderiam fazer parte de programas escolares. Inicialmente muitos participantes
mencionaram os tipos de música que seriam adequados às crianças, demonstrando diversos
preconceitos com relação a várias manifestações musicais. Ao longo do curso ficou
evidenciado que a música desempenha diversas funções e, por esta razão, não deveria ser
simplificada ou utilizada de forma limitada na escola. A mídia também foi objeto de
reflexão dos participantes, que compreenderam a necessidade de um pensamento musical
autônomo, independente e crítico com relação à imposição dos meios de comunicação de
determinados tipos de música que estabelecem o gosto e as preferências musicais por
repetição e insistência. Este processo de ampliação do repertório foi estimulante para os
participantes.
A visão inicial dos participantes com relação a metodologias de ensino de música
apresentava forte tendência de se considerar ensino de música equivalente a ensino de um
instrumento musical, sempre evidenciando a necessidade de conhecimentos de teoria e de
grafia musical para se desenvolver qualquer atividade. Como a maioria das pessoas não
possuía esta experiência de tocar instrumentos musicais elas se consideravam inaptas para
qualquer atividade musical escolar. As atividades de audição e criação contribuíram para a
revisão destes pré-conceitos com relação ao fazer musical e as experiências ao longo do
curso redimensionaram diversos pontos de vista.
O nível de confiança para desenvolver atividades musicais básicas aumentou
significativamente de acordo com as respostas dos participantes. Apesar de se sentirem
mais confiantes e aptos a desenvolverem algum tipo de atividade musical na escola, a
maioria deles reconheceu a necessidade de mais aprimoramento, e lastimaram não terem
tido outras oportunidades ao longo do curso para se desenvolverem musicalmente.
Educação Musical e Pedagogia
183
A formação continuada em música foi uma opção apresentada por diversos participantes,
que entendem que a universidade não pode dar conta da formação completa. O professor
em suas atividades de formação continuada deveria participar também de cursos de música
que pudessem ampliar cada vez mais seus conhecimentos nesta área.
O curso de música oferecido, apesar de ser breve, foi avaliado muito positivamente pela
maioria dos participantes, enfatizando que os diferentes componentes do trabalho realizado
propiciaram reflexões importantes sobre diversos aspectos relacionados à educação
musical. Nas palavras de uma das participantes, “até a parte teórica do curso foi
importante”. Alguns participantes reconheceram que começaram o curso esperando
algumas ‘receitas’ práticas sobre como trabalhar com música na escola, mas
compreenderam que é necessário mais do que um conjunto de canções para serem repetidas
nas datas comemorativas da escola para que seja estimulado um real desenvolvimento
musical das crianças.
Considerações finais
Os resultados do curso foram considerados positivos pelos participantes, o que pode ser
visto como um estímulo para a continuidade de trabalhos desta natureza. O curso, apesar de
ser curto, propiciou reflexões importantes de acordo com os depoimentos de diversos
participantes.
A conexão entre a música e diversas outras áreas do conhecimento propiciou conexões que
fizeram sentido para muitos dos participantes. A compreensão sobre música foi ampliada
em várias direções, demonstrando a eficácia da estrutura conceitual utilizada para a
construção do curso de música oferecido. Evidentemente, a mesma estrutura deve ser
aplicada em outros contextos e situações, para que possa confirmar aspectos resultantes
desta primeira experiência, assim como verificar outros elementos que podem ser aplicados
a esta estrutura.
Os cursos de pedagogia que formam professores para os anos iniciais da escola poderiam
rever a qualidade da formação musical oferecida, contribuindo efetivamente para a
formação musical dos futuros professores. O professor egresso do curso de pedagogia é um
multiplicador, pois várias crianças estarão sob a responsabilidade deste profissional durante
alguns anos da escola.
É importante que se compreenda a importância da educação musical como elemento
fundamental na formação dos educadores dos anos iniciais. São estes educadores que
estabelecerão as bases para o desenvolvimento da criança na escola, e a compreensão da
música e suas funções na sociedade é imprescindível para que esta área do conhecimento
seja tratada de maneira mais significativa no contexto escolar.
O professor dos anos iniciais não será um substituto do professor especialista em música.
Ao contrário, quando mais professores e profissionais da educação em geral tiverem
consciência da importância da música na escola, maiores serão as chances de se conquistar
um espaço mais digno e mais nobre para a educação musical escolar.
184
Anais do Simpósio de Pesquisa em Múisca | 2005
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Sérgio Luiz Ferreira de Figueiredo é Bacharel em Composição e Regência pela
FAAM, SP, Mestre em Educação Musical pela UFRGS, RS, e Doutor (Ph D) pelo
Royal Melbourne Institute of Technology (RMIT University), Melbourne, Austrália.
Atuou como professor de diversas áreas na Faculdade de Artes Alcântara Machado,
SP, e atualmente é professor da Universidade do Estado de Santa Catarina, UDESC,
em Florianópolis. Suas áreas de pesquisa incluem educação musical, especialmente
formação inicial e continuada de professores, e regência e prática coral. Possui
diversos artigos publicados em periódicos nacionais e internacionais. Foi Diretor
Regional da ABEM Sul – Associação Brasileira de Educação Musical, e atualmente é
representante adjunto da América Latina na ISME RESEARCH COMMISSION
(International Society for Music Education), e no Comparative Music Education
Group CME.
Análise semiótica de acalantos e cantigas de roda segundo o modelo de Luiz Tatit
Carlos G. González (UFPR)
Resumo: Cantigas de Roda e Acalantos são entoados no Brasil desde sempre. Saber
como se estruturam, partindo de um olhar semiótico é o objetivo principal desta
pesquisa, tendo como base as concepções semióticas levantadas por Luiz Tatit (1951).
Nessas concepções, se apresentam três parâmetros de análise: tematização,
passionalização e figurativização enunciativa. Estes elementos, que Tatit usa para
analisar a música popular brasileira, são as ferramentas escolhidas para realizar uma
leitura diferente das canções infantis. Este outro olhar, exemplificado na análise
prática de alguns destes acalantos e cantigas de roda, permite uma compreensão mais
profunda do processo de assimilação que a criança apresenta, no seu papel de
receptor. Palavras Chave: Música Infantil; Cantiga e Acalantos; Semiótica.
A eficácia da canção
Considerações preliminares.
Quando a mãe brinca com seu filho cantando “pirulito que bate, bate...”, ou quando a
mesma criança adormece ouvindo “Nana neném...”, ela não só está criando uma relação
afetiva com o bebê, como também não está só iniciando-o na sua futura relação com a
música. Ela transfere uma significativa quantidade de informação musicológica, acumulada
em séculos de intercâmbio histórico e cultural, e que mais adiante virá a ser utilizada na
construção de referenciais de identidade, grupo social, nação, povo, etc.1
Acalantos e cantigas de roda têm sua origem na miscigenação dos povos latino-americanos.
Isso se levando ainda a forte influência da colonização ibérica.2 Lydio R. Silva (1961)3
distingue três pontos principais de influência na formação da música no Brasil: a inegável
presença européia representada pela música portuguesa e espanhola, os ritmos e sons
negros trazidos pelos escravos, e o aporte ameríndio.4 Esta mistura permeia as diferentes
camadas da estratificada sociedade colonial do novo mundo, especialmente em seus
desdobramentos musicais, na música folclórica. Além disso, algumas melodias, comuns no
Brasil, podem ser encontradas também em outros lugares do mundo, e um recorte
embasado nas concepções de Silva,5 deve ser utilizado com o suficiente cuidado para
evitarem-se complicações conceituais.
1
Fontoura, Mara. Silva, Lydio Roberto. Cancioneiro Folclórico Infantil: Um pouco mais do que já
foi dito. Curitiba. Cancioneiro. 2001. pp. 5–27.
2
Ibidem, p. 11.
3
Músico e compositor, arte-educador, musico terapeuta e curitibano, Lydio Roberto Silva é mestre
em Psicologia Organizacional pela UFSC e especialista em fundamentos estéticos da arte-educação e
especialista em educação especial. Atualmente é professor da Faculdades de Artes do Paraná (FAP)
4
Fontoura, Mara. Silva, Lydio Roberto. Cancioneiro Folclórico Infantil: Um pouco mais do que já
foi dito. Curitiba. Cancioneiro. 2001. p. 10.
5
Fontoura, Mara. Silva, Lydio Roberto. Cancioneiro Folclórico Infantil: Um pouco mais do que já
foi dito. Curitiba. Cancioneiro. 2001. p. 11.
Análise semiótica de acalantos e cantigas de roda
187
A música para crianças no Brasil, então, faz parte desse universo folclórico ao qual
Fontoura e Silva fazem referência. Elas apresentam como característica principal a
“perpetuação pela tradição oral de um povo, transmitidas de geração em geração” (Silva,
2001, p. 11). Cabe destacar também a relação de predomínio da melodia sobre o texto, que
por sua vez, mostra-se, às vezes, incoerente. Silva explica este fenômeno afirmando que
originalmente a canção teve um sentido, mas com o tempo este se foi perdendo: “Na
medida em que tivermos a origem completa e exata do fato, o mesmo deixará de ser
folclórico” (Silva, 2001, p. 13). Tentar compreender o significado dela modificaria sua
condição de música folclórica.
Cantigas e acalantos
O brinquedo, a brincadeira, são parte fundamental do desenvolvimento das habilidades
necessárias para a subsistência. A brincadeira exerce um papel educador de diferentes
fatores requeridos para a convivência social, e desta maneira, o indivíduo toma consciência
de suas funções dentro da sociedade, desenvolve sua sociabilidade, sua motricidade, etc.6
As cantigas de roda não escapam a esse processo.
Silva, no segundo capítulo do seu livro Cancioneiro Folclórico Infantil, cita a tese do
escritor Lourenço Chacon Jurado Filho, que destaca a função social da cantiga de roda, que
nem sempre foi a mesma. Silva repara na evolução da brincadeira ao longo do tempo e
como e por quem ela foi praticada. Inicialmente e até o início do século XX, uma atividade
realizada por adultos, jovens e, por imitação, pelas crianças, a brincadeira de roda passa
então a ser cada vez menos valorizada, devido aos progressivos avanços tecnológicos e as
mudanças de visão de uma nova sociedade,7 ficando reduzida finalmente só ao âmbito
infantil.
A brincadeira de roda sempre foi um dos principais meios de socialização. Nela encontra-se
o divertimento, a representação dos papeis sociais, coreografias que despertam a
motricidade e o apresentam a importância do trabalho em conjunto, o pretexto para se
iniciar no jogo amoroso, etc. Atualmente a brincadeira de roda é utilizada nas escolas com a
finalidade de criar hábitos nas crianças e tendo seus textos modificados, fato que vem a
reafirmar a mobilidade temática que a música folclórica apresenta.8
Brincadeiras de roda são danças. O lúdico se sobrepõe ao estritamente musical, que é o foco
principal dessa comunicação. Já os acalantos têm outra função. Eles procuram deixar a
criança relaxada para poder dormir, mas igualmente revelam uma predominância melódica
sobre a textual.
O modelo de Luiz Tatit
Para realizar-se a análise de cantigas de roda e acalantos escolheu-se o modelo semiótico de
Luiz Tatit (1951).9 O autor elabora uma gramática lingüística aplicada à música popular
6
Ibidem, p. 17.
Ibidem, p. 18.
8
Ibidem, p. 18.
9
Luiz Tatit é Professor do Departamento de Lingüística da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade e São Paulo. Tem desenvolvido seu trabalho na “Semiótica da Canção”.
7
188
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
brasileira. Dita gramática visa a estabelecer a relação existente entre melodia, harmonia e
texto dentro da canção. Esse modelo foi escolhido segundo sua aplicabilidade decorrente da
semelhança entre a música folclórica e a música popular urbana, na sua realidade
estrutural10.
Um fator importante para compreender o modelo de Tatit, é o vínculo constante que ele
estabelece entre fala coloquial e canto, que segundo o autor, é o aspecto principal de toda a
canção popular, quando depreende sua origem da fala cotidiana11.
O modelo de Tatit baseia-se nos postulados do semioticista francês Algirdas Julien Greimas
(1917–1992). Para uma melhor compreensão desse modelo, é conveniente buscar entender,
ao menos em linhas gerais, o que se conhece como Quadrado de Greimas, que explica as
relações entre dois termos. “Consiste na representação visual da articulação lógica de uma
categoria semântica”.12 Pode-se situar o quadrado semiótico de Greimas na semântica
fundamental,13 que é o começo também do processo gerativo, entendido como o percurso
de “produção do objeto semiótico”, neste caso a cantiga e a canção de ninar, desde um
ponto complexo até um ponto simples:14
s1
s2
ñs2
ñs1
Fig. 1 Quadrado de Greimas
Existe uma relação entre s1 e s2 que se estabelece na negação de um pelo outro
reciprocamente. Desta forma, s1 vai se negar, provocando uma contradição (ñs1), o que vai
gerar uma incompatibilidade entre ambos os termos (s1 e ñs1), pois eles não podem coexistir
Publicou até a data, sempre sobre semiótica, suas duas teses e cinco livros. Em 1986 “A Canção:
Eficácia e Encanto” (Ed. Atual), em 1994 “Semiótica da Canção: Melodia e Letra” (Ed. Escuta), em
1996 “O Cancionista: Composição de Canções no Brasil” (Edusp), em 1997 “Musicando a Semiótica:
Ensaios” (Ed. Anna Blume) e em 2001 “Análise Semiótica Através das Letras” (Ateliê Editorial),
além de numerosos artigos no Brasil e no exterior.
10
É importante sinalar que é só na sua parte estrutural pois as características de gênero fazem delas
dois “formas” diferentes.
11
Tatit, Luiz. O Cancionista, composição de canções no Brasil. São Paulo. Udesp. 1996. p. 12.
12
Fidalgo, António. O Quadrado Semiótico de Greimas. Disponível em: http://ubista.ubi.pt/.
Acessado em 06 de abril de 2005.
13
“A semântica fundamental estuda as estruturas elementares da significação e cobre conjuntamente
com a sintaxe fundamental o estudo das estruturas designadas pelos conceitos de língua (Saussure) e
de competência (Chomsky)”; Fidalgo, António. Disponível em: http://ubista.ubi.pt/. Acessado em 06
de abril de 2005.
14
Fidalgo, António. O Quadrado Semiótico de Greimas. Disponível em: http://ubista.ubi.pt/.
Acessado em 06 de abril de 2005.
Análise semiótica de acalantos e cantigas de roda
189
juntos. A afirmação de ñs1 vem logo, obtendo-se s2. O processo é repetido agora com s2
com relação à s1, como representa o gráfico (Fig. 1).15
As relações que vão se estabelecer como conseqüência deste processo podem ser
denominadas de relação de contradição (linhas bidirecionais contínuas); relação de
contrariedade (linhas bidirecionais segmentadas) e; relação de complementaridade (linhas
unidirecionais), tal como mostra o gráfico (Fig. 2.).16
s1
s2
ñs2
ñs1
Fig. 2
A partir deste quadrado semiótico, é possível:
Indexar todas as relações diferenciais que determinam o nível profundo do
processo gerativo. A combinação das relações de identidade e alteridade,
figuradas pelo quadro semiótico, constitui o modelo ou esquema a partir do
qual se geram as significações mais complexas da textualização.17
Tatit adverte que desta relação do processo gerativo do objeto lingüístico, vai surgir um
termo complexo (S), que vem a determinar que s1 só fará parte da complexidade S
encontrando um equilíbrio em s2, sem que o grau de importância, ou melhor, de
dominância, afete este processo, como explica o gráfico18 (Fig. 3.)
S
s1
≠
s2
Fig. 3
15
O modelo foi extraído de: Tatit, Luiz. Análise semiótica através das letras. São Paulo. Ateliê
Editorial, 2001, p. 23.
16
O modelo foi extraído de: Fidalgo, António. O Quadrado Semiótico de Greimas. Disponível em:
http://ubista.ubi.pt/. Acessado em 06 de abril de 2005.
17
Fidalgo, António. O Quadrado Semiótico de Greimas. Disponível em: http://ubista.ubi.pt/.
Acessado em 06 de abril de 2005.
18
Tatit, Luiz. Análise semiótica através das letras. São Paulo. Ateliê Editorial, 2001, p. 24.
190
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Tatit explica de uma maneira bastante didática como se articula o processo gerativo do
nosso objeto semiótico canção por parte do “cancionista”,19 além de introduzir ao leitor na
compreensão global dos mecanismos que nele participam.
Partindo da primeira escuta, sem prestar atenção nos detalhes e sim no conjunto, aquela
escuta leiga na teoria musical e na semiótica, o ouvinte consegue reconhecer alguns
elementos. Ele começa “cantarolar” uma melodia e com isso pode identificar uma canção.
Tatit faz o leitor reparar neste detalhe. Esse é o ponto inicial do estudo das correlações
numa canção. Para ele, “todas as designações de gênero denotam a compreensão global de
uma gramática” (Tatit, 1997, p. 101), ou seja, que o ouvinte consegue juntar elementos
sonoros com outros e reconhecer o contexto onde eles funcionam de uma determinada
forma. O ouvinte, então, tem consigo um background de dados incorporados na forma
como ele escuta a música. Mesmo fazendo generalizações – misturando, às vezes, estilos
que são próximos, como pagode e samba – consegue identificar um paradigma. Este
processo é denominado pelo autor como apreciação empírica.
Os mecanismos de reiteração, ou seja, aqueles que se fazem freqüentes num discurso
musical, operam também como outro mecanismo de apreciação empírica. As reiterações
são, nas palavras do autor de A Canção: eficácia e encanto, um mecanismo de gramática
melódica que atinge principalmente a memória, ou seja, facilita a retenção de elementos,
frases, células, motivos, palavras, etc., e para as possibilidades de prever o que a música, na
sua temporalidade, pede. A memorização de refrões e estribilhos das canções entra neste
parâmetro de entendimento, sendo também uma forma de apreciação empírica. “A
reiteração torna significativo o fluxo inexorável do tempo. Basta um ligeiro apuro musical
do ouvido para se depreender reiterações” (Tatit, 1997, p.101).
Um outro aspecto é o reconhecimento das relações tonais do discurso musical. A percepção
de que uma seção de música é mais ou menos tensa no contexto tonal, não tem direta
relação com a teoria que estamos tratando. Esta percepção tem a ver com uma determinada
forma de escuta e, até, com fatores físicos.
O elemento melódico e o narrativo, vão tendo igual importância na estrutura analítica
levantada, mesmo que a narrativa seja menos explícita. A fala vem cobrando importância
no processo discursivo, assim como as rítmicas impostas pelas consoantes e pela
acentuação vocálica imprimem um sentido narrativo à canção e às vogais, mais ou menos
esticadas, o que nos leva pelo caminho da paixão e do sentimental. A mistura destes
elementos, mais a interpretação (timbre) do discurso definem o estilo e gênero da canção.
Podemos definir estes elementos como entoação.
Na primeira parte do seu livro O Cancionista,20 o autor diz que a junção do fator melódico
e do fator textual fica evidente em três elementos que, tanto se separam, aparecendo
praticamente isolados numa canção, como se misturam, situação mais comum, para dar
maior força entoativa. Entramos aqui no âmbito das categorias persuasivas. Essa
reiteração, que foi mencionada em parágrafos anteriores manifestando-se como uma grande
unidade textual, agora pode ser vista em fragmentos menores.
19
O cancionista é quem cria e/ou canta uma canção. Na obra homônima ao conceito, Tatit sobrepõe a
figura do compositor à do cantor, mesmo outorgando mérito a este último.
20
Tatit, Luiz. O Cancionista, composição de canções no Brasil. São Paulo. Udesp. 1996.
Análise semiótica de acalantos e cantigas de roda
191
Se a reiteração e as tensões de altura servem para estruturar a progressão
melódica, esses mesmos recursos podem ser transferidos ao conteúdo, de
modo a construir uma significação compatível (Tatit, 1997, p. 102).
O primeiro de ditos elementos diz relação à extensão ou prolongamento das tensões21
mediante a prolongação vocálica e a utilização dos sons mais agudos, e que o autor chama,
numa primeira estância de paixão (posteriormente denominado de passionalização). Esta
vem lixar as asperezas que a música apresenta, deixando os contornos da música suaves. É
o que Tatit chama de /ser/. Este elemento outorga ao discurso uma cara mais de paixão,
ligada diretamente aos sentimentos, tornando “a canção mais lenta e adequada à
introspecção” (Tatit, 1997, p.102).
O segundo fator diz referência ao movimento contrario ao apresentado pela paixão, qual é o
“encurtamento” ou segmentação do discurso canção. Aparece então a ação (mas tarde
denominada de tematização). Este elemento representado pela predominância consonantal
sobre a vocálica, da à música um caráter mais ágil, mais racional, ligando-a mais ao
discurso. É o que Tatit chama de /fazer/.
Ao reinterpretar o “Quadrado de Greimas”, é possível fazer a comparação e a substituição
dos valores por conceitos reais, onde paixão pode ser s1 e ação pode ser s2. Ambos os
fatores são teoricamente opostos e funcionam de forma contraria. Não podemos esquecer
que será o cancionista que vai imprimir e manobrar entre estes dois conceitos para gerar
diferentes estados no receptor.
A negação da paixão pela ação, e/ou vice-versa, gera o terceiro elemento representado por
S. Este equilíbrio será determinado pela dicção (também denominada de figurativização
enunciativa). Ela é a responsável pela naturalidade do discurso. Ela é a que imprime o
coloquial à canção popular, deixando ela mais perto do ouvinte. A relação de
personificação deste segmento tem direta relação com o texto da canção. O diálogo exposto
na letra lembra diretamente um diálogo coloquial, fazendo evidente a relação entre um eu
locutor e um tu ouvinte. Cobram importância unidades gramaticais como verbos no modo
imperativo, vocativos, demonstrativos, etc. Eles são os responsáveis de imprimir tal caráter
ao discurso. Neste ponto, o intérprete adquire uma importância fundamental, pois é ele que
dará a entoação ao discurso, imprimindo, a cada execução, um caráter diferente.22
Tatit, em outro artigo publicado no mesmo texto (Musicando a Semiótica), expõe estes
elementos denominando-os como duração, altura, e timbre, fazendo direta referência aos
elementos do som e da música.23
Análise
Foram escolhidas duas músicas representativas do cancioneiro folclórico infantil. Um
acalanto (Iaiá) e uma brincadeira de roda (O trem de ferro). Para grafar as curvas melódicas
das canções analisadas, foram usados os gráficos semelhantes aos propostos por Tatit. Cada
21
Tatit entende a tensão como os pontos mais importantes do discurso canção. Eles são os que
determinarão o caráter da mesma.
22
Ibidem. p. 103.
23
Ibidem. pp. 117–127.
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
192
uma das linhas representa um semitom, e as linhas mais grossas são os limites da
tessitura superior e inferior, como mostra o exemplo.
C
aaai
aaai
iiiii
diiii
nha
aaia
iiiii
iiiiii
dos
Si
Sib
Va
A
ci
ran
mos
Ab
Semitons diatônicos.
G
to
Gb
F
AA
E
da,
Limites superior e inferior (extensão).
Fundamental.
Eb
D
Db
C
AA
Fig. 4
Primeiro Exemplo – Iaiá
Iaiá, que lindas são as flores
Da primavera!
Iaiá, comigo vem dançar,
Para festejar
A primavera que chegou
Este acalanto apresenta uma linha melódica rica, uma letra simples e curta, que exalta as
belezas da primavera. Fontoura e Silva explicam que a palavra Iaiá vem da antiga forma
usada para se referir as filhas dos seus patrões. Esta palavra está presente reiteradas vezes
no cancioneiro popular brasileiro.24 Chama à atenção a métrica dos versos nesta cantiga de
ninar. Ela não é regular como a grande maioria das canções do gênero, mesmo que a
divisão dos compassos seja simétrica. Isto acontece porque a acentuação prosódica está
deslocada, o que gera a impressão de assimetria. A movimentação melódica é grande.
Começa com um salto de uma oitava que é sustentado, seguido por um movimento
24
Fontoura, Mara. Silva, Lydio Roberto. Cancioneiro Folclórico Infantil: Um pouco mais do que já
foi dito. Curitiba. Cancioneiro. 2001. p. 116.
Análise semiótica de acalantos e cantigas de roda
193
oscilatório suave por intervalos de segundas e terças, as vezes lento, as vezes um pouco
mais rápido, e descansando em estiramentos das vogais na metade e no final da música
(Fig. 5 e 6). O texto, de caráter alegre, porém sereno, complementa esta movimentação da
melodia criando um clima de introspecção e com uma alta carrega emotiva.
Parte 1
são
as
Iá,
que
das
flo
lin
Da
pri
8a
res
ma
ve
ra!
Ia
Fig. 5
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
194
Parte 2
que
che
co
mi
go
ra
ve
vem
Ia
Iá,
Pa
ra
dan
fes
çar
ma
te
jar
pri
A
Fig. 6
Nas duas partes nas que é possível dividir a música, é evidente passionalização no discurso
representado nas prolongações das vogais, no nome da personagem Iaiá e no final do
acalanto. O fato que seja o nome onde se produze esta tensão reafirma a idéia de diálogo.
Esta representação simulada fica de manifesto em frases como “... comigo vem...” ou na
mesma invocação do nome.
b) O trem de ferro
O trem de ferro,
Quando sai de Pernambuco,
Vai fazendo fuco-fuco,
Até chegar no Ceará.
Rebola, bola,
Você diz que dá, que dá,
Você diz que da na bola,
Na bola você não dá.
Rebola o pai,
Rebola a mãe, rebola a filha,
gou
Análise semiótica de acalantos e cantigas de roda
195
Eu também sou da família,
Também quero rebolar.
O trem de ferro tem muitas versões, como comentam Silva e Fontoura. A letra muda no
nome do trem, na onomatopéia do barulho da locomotiva e os vagões passando pelos
trilhos, etc.,25 mas não em partes importantes do discurso. Será analisada, assim, a versão
apresentada pelos autores. É possível até discutir se esta é realmente uma cantiga de roda,
simplesmente porque ela tem estrutura rítmica fortíssima, o que a assemelha com as
parlendas. É neste ponto onde radica a maior particularidade desta música, na sua forte
predominância consonantal. Isso imprime na cantiga um caráter de fala. Mas numa análise
mais profunda pode-se constatar que o simulacro criado pela figuratização enunciativa está
presente de uma forma pouco clara. O diálogo entre personagens não existe, e o discurso é
apresentado sem destinatário claro. É um relato para muitos e não a “encenação” de um
colóquio.
Primeiros versos
fer
ro,
Quan
do
sai
de
de
bu
trem
co,
Per
O
nam
Segundos versos
Rá.
Vai
fa
Zen
do
fu
co,_A
té
che
gar
a
fu
ce
co
25
Ibidem. p. 82.
no
196
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Pela marcada presença do ritmo que não pára e que sempre leva ao ouvinte dentro de um
“trem” imaginário, é complicado fazer uma divisão das partes desta música. A separação
dos dois primeiros versos dos segundos responde só a uma questão de organização.
Desta maneira, A oscilação apresenta-se só como um recurso cadencial harmônico sem que
o movimento nunca seja maior a uma terça maior. A insistência na fundamental e o
deslocamento à sétima maior, cria, com o mínimo esforço a tensão. A passionalização está
ausente neste exemplo.
Entender a estrutura lingüística do gênero da música infantil, vem a ser um importante
avanço na compreensão de como é recebida a mensagem canção por parte da criança, no
seu papel de receptor. A interação que esta criança terá com a cantiga tem direta relação
com o valor simbólico que esta tem, o que significa ou pode chegar a significar para ela,
sob a premissa de entender a canção como fala.
O natural desdobramento de uma pesquisa em semiótica aplicada implica aprofundar os
estudos anteriores na elaboração de estruturas que suportem a complexa relação existente
entre texto e música (entendidas como elemento comunicador), seu emissor e finalmente o
seu receptor. Porém, é possível dizer que existem alguns padrões recorrentes, e estes
padrões dizem respeito a determinados estilos. Nos textos das cantigas e acalantos
encontra-se a tendência ao privilégio da representação (figurativização enunciativa). A
presença do diálogo e da história contada por um terceiro reforça este aspecto,
provavelmente pela sua empatia com a criança e pela fácil assimilação das idéias principais
por parte da mesma.
Referências bibliográficas
FIDALGO, António. O Quadrado Semiótico
http://ubista.ubi.pt/.Acessado em 06 de abril de 2005.
de
G r e i m a s . Disponível em:
TATIT, Luiz. Análise semiótica através das letras. São Paulo. Ateliê Editorial, 2001.
TATIT, Luiz. Musicando a Semiótica. São Paulo. Annablume, 1997.
TATIT, Luiz. A Canção: Eficácia e Encanto. 1° ed. São Paulo. Atual, 1986.
TATIT, Luiz. O Cancionista, composição de canções no Brasil. São Paulo. Udesp. 1996.
FONTOURA, Mara; SILVA, Lydio Roberto. Cancioneiro Folclórico Infantil: Um pouco mais do que
já foi dito. Curitiba. Cancioneiro, 2001.
Carlos Gustavo González González, chileno residente no Brasil, é formando do curso
de Educação Musical – Licenciatura, da Universidade Federal do Paraná, UFPR.
Estudou Teoria Musical e Violão Popular no Conservatório de Música Popular
Brasileira de Curitiba, com os professores Christiane Rodrigues e Cláudio Menandro
respectivamente. Até a data, não tem trabalhos publicados.
A musicoterapia como auxílio físico-psicológico a portadores do HIV
Cristiano Steenbock (FAP)
Resumo: Esse trabalho é resultado de um estudo feito a partir de uma nova visão
sobre a AIDS. Foram reunidos relatos, textos e citações de pesquisadores renomados
no que diz respeito a uma nova teoria sobre esta doença. É também apresentado os
aspectos psicológicos, sob a ótica da psicologia, aos quais estão sujeitos os portadores
dessa doença. Estudado esses dados, foi feito uma abordagem dos processos
musicoterápicos, analisando a maioria dos aspectos físico-psicológicos relacionados à
doença. Esses processos consistiriam em emanações de freqüências específicas para a
estimulação de energia do corpo, juntamente com um trabalho musicoterapeutico e
podendo se estender também à expressão corporal de cada individuo ou em processos
grupais. Palavras-chave: AIDS, chakras, depressão, HIV, musicoterapia.
Histórico da AIDS
Em 1984, foi encontrado um retrovírus, considerado como o agente etiológico de uma
doença que já havia infectado pessoas pelo mundo e que posteriormente seria designada
como Aids. Dois grupos de cientistas reclamaram ter sido o primeiro a descobri-lo, um do
Instituto Pasteur de Paris, chefiado pelo Dr. Luc Montangnier e o outro dos Estados Unidos,
chefiado pelo Dr. Robert Gallo. O fato é que uma das pesquisadoras do Instituto Pasteur de
Paris, Françoise Barre-Sinoussi, conseguiu cultivar um retrovírus em laboratório e enviou o
material para o laboratório de Robert Gallo, para que este confirmasse o seu achado, por se
tratar de um eminente cientista. Com base neste material, Gallo divulgou a descoberta como
se fosse sua, vindo a retratar-se somente no início da década de 90. Gallo é um importante
virologista, e já havia identificado outros dois retrovírus, o HTLV – 1 e o HTLV 2 (Human
T Leukemia-limphoma vírus type 1 and 2) e, por isso, o agente etiológico da AIDS foi
inicialmente conhecido, nos Estados Unidos, como HTLV – 3. Na França, ele foi
reconhecido como LAV, associado a linfadenopatia. Depois das disputas da comunidade
científica serem devidamente esclarecidas, chegou-se ao consenso de denomina-lo HIV, ou,
em português, vírus da imunodeficiência humana.
Em 1986, foi aprovada pelo órgão norte-americano de controle sobre produtos farmacêuticos FDA (Food and Drug Administration), a primeira droga antiviral, a
azidotimidina ou AZT. Este revelou um impacto discreto sobre a mortalidade geral de
pacientes infectados pelo HIV. Em 1994, um novo grupo de drogas para o tratamento da
infecção passou a ser estudado, os inibidores da protease. Estas drogas demonstraram
potente efeito antiviral isoladamente ou em associação com drogas do grupo do AZT (daí a
denominação "coquetel"). Houve diminuição da mortalidade imediata, melhora dos
indicadores da imunidade e recuperação de infecções oportunistas. Ocorreu um estado de
euforia, chegando-se a falar na cura da AIDS. Entretanto, logo se percebeu que o
tratamento combinado (coquetel) não eliminava o vírus do organismo dos pacientes. Somese a isso também os custos elevados do tratamento, o grande número de comprimidos
tomados por dia e os efeitos colaterais dessas drogas. A despeito desses inconvenientes, o
coquetel reduziu de forma significativa a mortalidade de pacientes com AIDS.
198
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Atualmente, na área, há duas linhas principais de pesquisa: uma busca uma vacina eficaz,
visando imunizar os indivíduos pertencentes a populações sob risco; e outra visando buscar
drogas antivirais mais potentes e com menos efeitos colaterais, visando erradicar o vírus do
organismo de pacientes infectados. Os resultados com os antivirais têm sido melhores,
entretanto dificilmente a AIDS será curada farmacologicamente. As esperanças depositamse no desenvolvimento de uma vacina eficaz. Infelizmente, até o momento não há relatos
promissores sobre vacinas.
Uma nova visão sobre a doença
Porém há alguns anos, alguns pesquisadores e médicos começaram a questionar a idéia de
que o HIV seria o responsável pela transmissão da AIDS e possível causador da morte de
pessoas infectadas por ele.
A definição original para a AIDS, consistia em um conjunto de 12 doenças: pneumonia por
Pneumocystis carinni , sarcoma de Kaposi, toxoplasmose, estrongiloidiase, citalomegavírus, herpes simples, leucoencefalopatia multifocal progressiva, aspergilose,
criptococose, candidíase, criptosporidiose e linfoma cerebral. Em 1985, houve uma revisão
da definição da AIDS, sendo adicionada mais 7 doenças, as 12 iniciais: complexo de
Mycobacterium avium, histoplasmose, isosporíase, linfoma de Burkitt, linfoma
imunoblástico, candidíase dos brônquios, traquéia e pulmões, além de um teste positivo
para anticorpos do HIV.Em 1987, mais uma vez ocorre o aumento das doenças, para o
diagnóstico da AIDS, são mais 6 doenças: encefalopatia, tuberculose por micobactéria,
síndrome de definhamento, coccidioidomicose, retinite por CMV e septicemia por
salmonela. Em 1993, novamente há um acréscimo de mais 3 doenças: pneumonia
bacteriana por repetição, câncer cervical invasivo e tuberculose pulmonar.Foi acrescentado
também uma contagem de células T<200 ou <14% do total de linfócitos. Portanto, a uma
primeira estância, podemos analisar que as definições para uma correta avaliação sobre
quem era portador do vírus HIV, foram sendo alteradas e acrescentadas novas doenças, para
abranger um maior número de pessoas. Um exemplo muito interessante que ocorre é
quando há ou não a presença do HIV. Analisando que uma pessoa tem tuberculose. Se ela
tem só a tuberculose, ela é considerada tuberculosa, porém se nela estiver presente o vírus
HIV, seu estado passa a ser como uma pessoa aidética.
O HIV entra na definição de vírus como retrovírus citotóxico, ou seja, não tem mecanismos
para atacar células. Durante a década de 60 e 70, ele foi meticulosamente estudado, pois os
cientistas achavam que ele poderia ser a causa do câncer. Um dos principais cientistas que
estava envolvido nessas pesquisas era Robert Gallo, o mesmo que em 23 de abril de 1994,
convocou a imprensa internacional, anunciando a descoberta da possível causa da AIDS.
Ao anunciar a sua hipótese para o mundo, ele violou uma regra fundamental do processo
científico. Os pesquisadores precisam, antes de mais nada, publicar dados comprovando a
hipótese em revista médica ou científica, documentando a pesquisa ou ensaios usados para
formulá-la. Posteriormente, a hipótese é analisada e discutida por outros peritos no assunto,
que tentam repetir os ensaios originais, para confirmar as idéias. Robert Gallo ignorou todas
essas regras, e ainda foi acusado por Luc Montagnier de ter furtado sua amostra de HIV.
Gallo e Montagnier entraram em um acordo, no qual eles dividiriam os créditos pela
descoberta, como também os direitos sobre a patente do teste. Atualmente, Montagnier
afirma não acreditar que o HIV sozinho seja capaz de provocar a AIDS. O próprio Gallo
A musicoterapia como auxílio físico-psicológico
199
citou uma frase bem interessante, ele disse “Às vezes nós, virólogos temos um vírus em
busca de uma doença”.
Os testes que são usados para a contagem de carga viral também são duvidosos. O
PCR(Polymerase Chain Reaction), também conhecido como teste de quantificação viral,
aparece com algumas controvérsias.O PCR detecta e multiplica genes isolados, não o vírus,
e mais freqüentemente, fragmentos de genes.Quando detecta dois ou três fragmentos de
vírus genéticos de talvez uma dúzia de genes completos, isto não é uma prova de que todos
os genes, ou o genoma completo, estão presentes ou que uma partícula viral completa do
HIV esteja presente. Além disso, uma pessoa pode trazer um genoma retroviral inteiro em
suas células por toda a vida, sem nunca produzir um único vírus. Os testes que detectam o
HIV no corpo humano tem em seus kits escrito assim, “Atualmente não existe um padrão
reconhecido para estabelecer a presença ou ausência de anticorpos do HIV-1 e do HIV-2 no
sangue humano”, e sobre os testes de carga viral, “Não se destina a ser usada para triagem
ou como diagnóstico para confirmar a presença de infecção por HIV”. Além disso, os testes
para detecção do HIV, apresentam 68 tipos diferentes de alteração, como: artrite
reumatóide, gripe, hepatite, malária, cálculos renais, vacina contra tétano, hemofilia, entre
outras. Ou seja, pessoas que tem algum desses 68 tipos de alteração, podem estar infectadas
e receberem o resultado negativo para a infecção, podendo também, acontecer o contrário.
O pesquisador que criou o PCR, e que ganhou o prêmio Nobel de química de 1993, Kary
Mullis, disse “Não é sequer provável, muito menos cientificamente provado, que o HIV
provoca a AIDS. Se existe alguma prova de que o HIV causa AIDS, deveriam existir
documentos científicos que comprovem esse fato. Não existem tais documentos.”
Os cientistas até hoje, não conseguiram de maneira satisfatória, comprovar o ataque
fulminante do vírus HIV em células defesa. O HIV só consegue atacar as células, quando
utilizados elementos químicos nas culturas onde ele está inserido. E mesmo assim, ataca um
número mínimo de células, que não poderiam afetar o sistema imunológico a ponto de
causar danos a saúde. Na medicina, existe um parâmetro que se usa para identificar as
causas e de como essa doença se manifesta. Ele é conhecido como os Postulados de Koch,
que foi formulado para estabelecer uma relação de uma bactéria ou vírus com uma provável
doença. São 4 postulados que se resumem em: o patógeno deve ser identificado em todos os
casos da doença; o patógeno deve ser isolado do hospedeiro e deve crescer em cultura pura;
o patógeno deve reproduzir a doença original quando inoculado em um hospedeiro
suscetível. (capacidade para transformações); o patógeno deve ser identificado no
hospedeiro experimental infectado. Em nenhum desses 4 casos o HIV se encaixa.
Esse próximo parágrafo talvez abra a verdadeira resposta sobre o que causa a AIDS.
Juntamente com esses outros aspectos já mencionados, o uso de medicamentos pode ser a
principal causa da doença.
O tratamento convencional para a AIDS é chamado de tratamento anti-retroviral, ou mais
popularmente conhecido coquetel para a AIDS. Há uma variedade grande desses remédios,
que podem ser tomados combinados entre si, fazendo com que o paciente possa se adaptar
ao melhor “coquetel”. Ou seja, para que ele possa ter menos reações adversas no
tratamento, podendo assim ter uma melhor qualidade de vida. Porém, há muitas
controvérsias sobre a utilização desses medicamentos. Vamos analisar aqui apenas 3 tipos
desses medicamentos, como forma de exemplificar o que é, discutido severamente sobre os
pesquisadores que adotam a opinião de que a causa da doença está nesses medicamentos.
200
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
O primeiro medicamento seria a Didanosina. A Didanosina (DDI), um nucleosídeo análogo
a Deoxiadenosina, é inibidor in vitro da replicação do HIV em culturas de células humanas.
A Didanosina é rapidamente degradada em pH ácido. É por esse motivo que as formulações
orais, contém agentes tamponantes, de modo a aumentar o pH do meio gástrico. As reações
adversas citadas na sua bula são: pneumonia, anorexia, perda de peso, infecções, ascite,
edema facial, aumento do abdomem, indisposição, dispepsia, distúrbios gastrintestinais,
anormalidades hepáticas, flatulência, hemorragia gastrintestinal, disfagia, monilíase oral,
colite, esofagite, siadenite, convulsões, pensamentos estranhos, demência, agitação, ataxia,
amnésia, distúrbios cerebro-vasculares e da fala, confusão, ansiedade, nervosismo,
apoplexia, miopatia, tosse, dispepsia, faringite, apnéia, sinusites, bronquites, derrame
pleural, rinite, pneumotórax, hipertensão, síncope, insuficiência cardíaca congestiva,
derrame pericárdico, vasodilatação, cardiomiopatia, palpitação, ambliopia, distúrbios
visuais, surdez, insuficiência renal, poliúria, sudorese, herpes e acne. Nas crianças as
reações adversas ocorreram em cerca de 5% das crianças, nos estudos de fase I, e foram
semelhantes às reações observadas nos adultos, acrescendo-se: febre, desidratação,
alterações de apetite, melena, estomatite, equimoses, petéquias, atrofia muscular, mialgia,
artrite, arritmia, letargia, descoordenação, asma, hipoventilação, congestão nasal, rinorréia,
impetigo, eczema, escoriações, eritema, otite, fotofobia, estrabismo e aumento da
freqüência urinária. Além de derrames neurológicos, pneumonia e diabetes mellitus ou
insipidus.
O segundo medicamento é a Estavudina. A Estavudina não representa uma cura para a
infecção pelo Vírus da Imunodeficiência Adquirida (HIV). Assim, poderão ocorrer as
doenças oportunistas associadas a AIDS, ou infecções pelo HIV. Os pacientes devem
permanecer sob orientação médica durante o tratamento com Estavudina. O tratamento com
Estavudina não demonstrou reduzir o risco da transmissão do HIV, tanto por via sexual,
quanto por via sangüínea. Por se tratar de um fármaco recentemente aprovado, ainda não
existem avaliações de seus efeitos a longo prazo. A Estavudina (2',3'-didehidro-3'deoxitimidina), chamada de D4T em sua fase de desenvolvimento, é um nucleosídeo
sintético, análogo da timidina. As reações adversas que ele apresenta são: insuficiência
renal, não existem pesquisas em insuficiência hepática, dormência nas extremidades,
formigamento, sensação de queimação e dores nos pés e nas mãos, neuropatia periférica,
pancreatite, doença hepática, anemia, carcinogênese, mutagênese, diminuição da fertilidade
e aumenta a ocorrência de aberrações cromossomais em linfócitos humanos.
O terceiro medicamento é a Zidovudina, conhecida também como AZT, é um medicamento
antivirótico, com ação sobre alguns retrovírus como o Vírus da Imunodeficiência Humana
(HIV). A ação se inicia em cerca de uma hora após a administração. A Zidovudina não
reduz o risco de transmissão do HIV através de contato sexual ou contaminação do sangue,
além de poder ocorrer infecções oportunistas durante o tratamento. A Zidovudina (3'-azido3'desoxitimidina; comumente denominada AZT) é um análogo da timidina com atividade
antiviral contra o HIV-1, o HIV-2, o vírus linfotrópico T humano (ou da leucemia) HTLV-1
e outros retrovírus. A Zidovudina é atualmente, o agente inicial preferido para o tratamento
da infecção por HIV em pacientes com contagem de CD4 inferiores a 500/mm3. A
Zidovudina é contra-indicada em pacientes que, potencialmente, apresentem
hipersensibilidade ao fármaco, com risco de vida. Outras reações adversas são: anemia,
neutropenia, leucopenia, infecções microbianas, retardo na cicatrização, hemorragias
gengivais, carcinogênese, mutagênese, aumento do VCM(volume corpuscular médio),
A musicoterapia como auxílio físico-psicológico
201
depressão da medula óssea, deficiência de ácido fólico ou de vitamina B12,
comprometimento da função hepática, desconforto abdominal, náusea, perda de apetite, mal
estar, atrofia muscular, prostração, fraqueza, confusão mental, manias, cefaléia, insônia,
mialgia, hiperpigmentação das unhas, persistência de febre, calafrios, dor de garganta,
palidez, cansaço incomum ou fraqueza, alterações na percepção do sabor, inchaço dos
lábios e língua e feridas na boca.
Em um antigo rótulo do AZT estava escrito que ele é um produto tóxico, não poderia entrar
em contato com a pele ou ser ingerido. Quem tivesse contato com ele, deveria usar roupas
protetoras apropriadas. Era de uso exclusivo de laboratórios e que não devia ser usado para
medicamentos, uso doméstico ou outros fins. Esse rótulo era para frascos de 25 mg. A
dosagem diária de um portador de HIV é de 500mg a 1500 mg. A Associação Farmacêutica
do Canadá, diz que “As conseqüências a longo prazo da exposição do recém-nascido a
zidovudina no útero e após o parto são desconhecidas. Os efeitos a longo prazo do uso
prematuro ou breve de zidovudina em gestantes também são desconhecidos”. O jornal
americano The New York Times, de 14 de fevereiro de 1995, relatou “Um estudo federal
prolongado do AZT, que começou em agosto de 1991 com 839 crianças em 62 hospitais,
foi suspenso. Elas tinhas uma progressão mais rápida de doenças, infecções relacionadas a
AIDS, desenvolvimento neurológico prejudicado e morte”. A Glaxo-Wellcome, fabricante
do AZT, informou que faturou 2,35 bilhões de dólares com a venda do AZT e outros
medicamentos antivirais em 1997. Ela cita ainda no anúncio do Combivir(comprimidos de
lamivudine/zidovudine), “Não existem estudos adequados e bem controlados sobre o
Combivir em gestantes”. A agência Reuters de notícias, em 8 de junho de 1998, trouxe a
seguinte notícia “Pesquisadores de Nova Iorque comunicam um caso de anemia profunda
em recém-nascido, provavelmente causada pelo tratamento da mãe soropositiva com uma
combinação anti-retroviral de zidovudine, lamivudine e zalcitabine”.
A pesquisa Concorde, foi um ensaio acidentalizado duplo-cego, controlado, de uso
imediato e retardado de Zidovudine para infecção por HIV assintomática realizado pelo
Medical Research Council. O resultado foi assustador. Um total de 172 participantes
morreram(169 que tomavam AZT e 3 que tomavam placebo). Representantes da Fundação
Wellcome, que também eram membros da Comissão de Coordenação se recusaram a
assinar o relatório da pesquisa.
Então, muitas perguntas ficam no ar. Como um pesquisador registra um teste/exame sem
nem saber como o faria? Como e por que os remédios para esta doença foram aprovados,
em média, 4 meses a 1 ano, sabendo que precisam ser feitos muitos testes anteriores que no
mínimo durariam 5 anos? Por que os médicos receitam um remédio que já é tóxico na
dosagem mais básica, e que ministrados para esta doença passam do limite de toxicidade
em 20 a 60 vezes? Como um exame pode dar falso-negativo com 68 tipos diferentes de
alterações? Como existem pessoas que não tem o vírus dessa doença, mas mesmo assim são
diagnosticadas como tendo AIDS? Por que os cientistas não conseguem até hoje, constituir
de maneira satisfatória, o que eles dizem acontecer com o corpo humano, em culturas
isoladas? As respostas dessas perguntas e muitas outras que com certeza virão, podem estar
nas multinacionais que ganham 2.400 dólares por paciente diagnosticado com tendo AIDS;
pela procura da fama de pessoas que a perseguem a vida inteira, sem medir esforços; pela
venda extraordinária de remédios que vem incorporada nas doenças sexualmente
transmissíveis e tantas outras que estão inseridas na definição de AIDS; etc.
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
202
Por essa teoria apresentada, seus defensores afirmam que a AIDS é decorrente de uma série
de fatores inter-relacionados e não pela simples infecção pelo HIV. A AIDS pode ser uma
co-relação de diversos fatores, entre eles: uso de drogas(inclusive remédios, como o próprio
AZT); sexo sem proteção, não pela AIDS, mas pelas DSTs , por sua destruição em parte do
sistema imunológico; má alimentação; pouco descanso; estresse; depressão; angústia; falta
de exercícios; etc.
Essa teoria que foi estudada e analisada tem como principais encorajadores: Peter
Duesberg(professor titular da cadeira de biologia molecular e celular da Universidade da
Califórnia e foi eleito membro da Academia Nacional de Ciências em 1986, devido ao
mapeamento da estrutura genética dos retrovírus); Charles Thomas(Phd, antigo diretor do
departamento de biologia celular do Scripps Research Institute); Rob Hodson(Ex-professor
de anestesiologia da Universidade do Alabama); Kary Mullis(Prêmio Nobel de Química em
1993, pela invenção do exame PCR); entre muitos outros, em todo o mundo.
Leon Tolstoi, escritor russo nascido em 1828, nos indaga com o seguinte pensamento:
“Sei que a maioria dos homens, incluindo aqueles que se sentem à vontade
com problemas muito complexos, têm dificuldade em aceitar a verdade
simples e óbvia se isso vai obrigá-los admitir que suas conclusões, explicadas
com tanto prazer aos colegas e ensinada com orgulho a outros, são falsas”.
Aspectos psicológicos
Os pacientes portadores do HIV têm um aspecto psicológico deteriorizado, por conta de
toda a informação que a mídia e os profissionais de saúde colocam em sua vida. Depressão.
Síndrome do pânico e transtornos afetivos são algumas das variantes desse contexto
psicológico que estão presentes no comportamento do indivíduo portador. Aqui vamos
somente tratar da depressão específica em pacientes com AIDS.
O termo Depressão pode significar um sintoma que faz parte de inúmeros distúrbios
emocionais sem ser exclusivo de nenhum deles, pode significar uma síndrome traduzida por
muitos e variáveis sintomas somáticos ou ainda, pode significar uma doença, caracterizada
por marcantes alterações afetivas. A sintomatologia depressiva é muito variada e muito
diferente entre as diferentes pessoas. A psicopatologia recomenda como válida a existência
de três sintomas depressivos básicos, os quais darão origem a variadíssimas manifestações
desta alteração afetiva. Essa tríade sintomática da Depressão seria: sofrimento moral,
inibição global e estreitamento vivencial. É comprovado que relacionamentos pessoais
insatisfatórios e a falta de apoio social podem afetar intimamente o sistema imunológico.
Na Quarta Conferência Anual Brasil em HIV/AIDS, o Dr. Thomas Koenig faz uma
interessante explicação sobre a depressão em pacientes com HIV.
Há muitas razões porque é importante tratar a depressão em pacientes com HIV. Primeiro,
eu acho o mais importante, é porque é possível melhorar a qualidade de vida de nossos
pacientes. A depressão impõe ao paciente fardos enormes. Na área psicológica, a depressão
influi em como a pessoa vê o mundo. É como se estivesse olhando para o mundo por óculos
escuros - tudo parece mais difícil; os desafios crescem e podem parecer inconquistáveis. A
depressão rouba da pessoa a motivação e, até mais importante, a esperança, a capacidade de
acreditar que as coisas podem melhorar. Neste estado psicológico o paciente pode perder o
A musicoterapia como auxílio físico-psicológico
203
desejo de lutar contra a infecção. Finalmente, além do benefício ao paciente, há evidência
na literatura, que o tratamento de depressão em pacientes com HIV traz benefícios ao
sistema de saúde.
A síndrome do medo da AIDS pode ser muito similar, em seus sintomas psicológicos, à
própria doença nos estágios iniciais, já que a depressão e a ansiedade podem ser salientes
em qualquer dos casos. No caso da AIDS, o indivíduo portador sente-se letárgico, perde
apetite e peso e transpira excessivamente. A pessoa que recebe esse diagnóstico, já está em
um estado psicológico debilitado, pois ela está indo fazer o exame de detecção, já com
alguma idéia ou situação que possivelmente ela possa ter entrado em contato com o vírus.
Quando ela entra em contato com um diagnóstico positivo, aquele estado emocional que já
estava em declínio passa a ser persistente e contínuo. Pois ela sabe que contraiu uma
doença na qual, não há cura e as estimativas de vida são muito variáveis e não menos
animadoras. Portanto, há de se fazer um trabalho de acompanhamento psicológico desse
indivíduo, pois do contrário, isso refletira em seu físico como forma de redução de células
de defesa, infecções diversas, etc.
Emanações específicas de freqüência
É um trabalho que estou desenvolvendo em paralelo a aplicação da musicoterapia
tradicional. Ela consiste em aplicar uma freqüência determinada em pontos energéticos
específicos do corpo humano conhecidos como chakras. Chakras são pontos de energia
espalhados pelo corpo, onde 7 deles são os mais conhecidos. A seguir eu faço uma pequena
explicação desses chakras, com conceitos de localização, notas musicais correspondentes e
o que eles afetam na parte física e na parte psicológica.
chakra(1):
básico, esplênico.
nome: muladhara (raíz).
localização: no final da coluna vertebral, entre os genitais e o ânus.
cor: vermelho (cor quente).
indicações: anemias, asma, bronquites, resfriados, congestões, debilidade física, doenças
do sangue, doenças do frio, paralisia, pneumonia, prisão de ventre, tuberculose, melancolia,
depressão, indiferença, descongestiona as mucosas, descontrai os músculos.
contra-indicações: hipertensão, febres, inflamações, insanidade, neurites(inflamação dos
nervos), temperamento agitado.
mantra: lam.
som: ã.
glândulas: glândulas supra-renais que produzem a adrenalina.
órgão do conhecimento: nariz/odor.
órgão de ação: pés/andar.
órgãos físicos: supra-renais, coluna vertebral, rins, bexiga, parte final do intestino, pernas,
pés, ossos.
sistema fisiológico: reprodutivo.
nota musical: dó.
equilíbrio emocional: impulso para agir, proteção contra doenças virais e contagiosas,
força, dinamismo, agressividade controlada, coragem para produzir e conquistar,
204
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
criatividade, generosidade, devoção, rapidez de percepção, resolução de conflitos internos,
satisfação, disposição.
virtudes: serenidade, força, confiança, pureza, exatidão, equilíbrio, amor ao próximo.
desequilíbrio físico: anemias, resfriados, paralisias, sexualidade reprimida ou excessiva,
problemas de coluna, hemorróidas, depressão, ira, desajustes, agresssividade, pressão alta
ou baixa, fraqueza, melancolia, insuficiência renal, cansaço, dores lombares.
chakra(2):
sacro, coccigiano, fundamental, sagrado.
nome: swadhistana (o fundamento de si – morada do sol).
localização: na raíz dos órgãos genitais, 4 dedos abaixo do umbigo.
cor: laranja (cor quente).
indicações: asma, bronquite, vesícula, rins, bexiga, cálculo biliar, gota, hipotiroidismo,
resfriados, reumatismo crônico, fraturas, tumores, alergias, câimbras, fígado, pâncreas,
ovários, trabalha a alegria de viver e a extroversão, afasta o medo, aviva as emoções, traz
cordialidade, fortalece o pulmão e os ossos.
contra-indicações: inflamações dos nervos.
mantra: vam.
som: u.
glândulas: glândulas sexuais(gônadas).
órgão do conhecimento: língua.
órgão de ação: mãos.
órgãos físicos: rins, bexiga, sistema reprodutor, sistema circulatório.
sistema fisiológico: genital e urinário.
nota musical: ré
equilíbrio emocional: capacidade de união sexual, procriação, coragem de viver, alegria
instintiva, prazer físico, capacidade de planejamento e construção, poder de evoluir.
virtudes: tolerância, compaixão, alegria de viver, senso comum, precisão,
compartilhamento, idealismo.
desequilíbrio físico: doenças dos rins, distúrbios gástricos e intestinais, medo, alergias, má
adaptação, incapacidade de construir, problemas hormonais, infertilidade, doenças do
fígado, pâncreas, vesícula, bexiga, insegurança, problemas de menstruação, doenças
sexuais.
chakra(3):
plexo solar.
nome: manipura (a cidade da jóia).
localização: um pouco acima do umbigo.
cor: amarelo (cor quente).
indicações: digestão lenta, problemas no baço, no fígado e no pâncreas, diabetes,
problemas de pele, esgotamento, depressões, hemorróidas, indigestão, prisão de ventre,
remove imperfeições da pele, paralisias, verminoses, gordura no fígado, estimulante dos
nervos motores, vermífuga.
contra-indicações: inflamações dos nervos.
mantra: ram.
som: ó.
A musicoterapia como auxílio físico-psicológico
205
glândulas: pâncreas(que secreta o suco pancreático, cujas enzimas ajudam a digestão de
proteínas, carboidratos e gorduras).
órgão do conhecimento: olhos.
órgão de ação: ânus.
órgãos físicos: sistema digestivo, fígado, vesícula biliar, baço, estômago, intestino delgado,
sistema nervoso.
sistema fisiológico: digestivo.
nota musical: mi.
equilíbrio emocional: impulso para vivenciar emoções, tomar conhecimento do outro,
vontade forte para comando e liderança, poder de se relacionar e digerir o meio assimilando
e aprendendo, amor a vida, intuição, ternura, boa vontade, reverência, lealdade.
virtudes: tolerância, serenidade, equilíbrio, flexibilidade, força, bons relacionamentos,
pureza, abnegação.
desequilíbrio físico: má digestão, ansiedade, diabetes, toxinas, problemas de pele, de
fígado, de pâncreas, úlceras, hérnia de hiato, gastrites, problemas de assimilação, cálculos
de vesícula.
chakra(4):
cardíaco.
nome: anahata (o som não produzido).
localização: na região do tórax e está conectado com a glândula timo.
cor: verde (cor neutra).
indicações: asma, dores de cabeça, problemas de fígado, problemas de coluna, hipertensão,
insônia, doenças nervosas, doenças de pele, doenças intestinais, diarréias, febres,
nevralgias, sinusites, úlceras, problemas do coração, irritabilidade, hemorróidas, doenças
venéreas, estados de cólera, reduz problemas mentais e emocionais, cntra infecções,
inflamações, intoxicações, bactericida, reconstrutora de células e tecidos, alivia tensões e
emoções.
contra-indicações: o uso do verde pode acarretar fadiga e cansaço.
mantra: yam.
som: a.
glândulas: timo (responsável pelo sistema imunológico).
órgão do conhecimento: pele.
órgão de ação: órgãos genitais.
órgãos físicos: coração, sistema circulatório , sistema imunológico.
sistema fisiológico: circulatório.
nota musical: fá.
equilíbrio emocional: amor próprio e pela humanidade, compaixão, benevolência,
aceitação, perdão, ajuda ao próximo, bondade, sabedoria, pacificação, fé na vida e nas
pessoas, temperamento ameno, inteligência transparente.
virtudes: amor, aceitação, compaixão, amor pelo próximo.
desequilíbrio físico: doenças cardíacas, problemas em veias e vasos, distúrbios
circulatórios e de pressão, problemas pulmonares, asma, bronquite, depressão, angústia,
dores de cabeça, constipação intestinal(prisão de ventre).
chakra(5):
laríngeo
206
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
nome: vishuddha (o grande purificador)
localização: sobre a garganta.
cor: azul (cor fria).
indicações: miopia, cólica, febre, coceira, dor de garganta, dor de ouvido, dor nos olhos,
dor de dente, cólera, diarréias, úlceras, doenças gastrointestinais, histeria, doenças renais,
gastrites, cataratas, glaucoma, gonorréia, insônia, laringite, cólicas menstruais, palpitações,
problemas de coluna, problemas na pele, queimaduras, reumatismo, sarampo, caxumba,
papo, sífilis, vômitos, estados alterados de emoção, epilepsia, antiinflamatória,
regeneradora, protege o sistema nervoso.
contra-indicações: taquicardia, hipertensão, paralisia, reumatismo crônico, contração
muscular.
mantra: ham.
som: ai.
glândulas: tireóide(responsável pelo crescimento e processos oxidativos e em estágios
negativos, dores por todo o corpo).
órgão do conhecimento: pele.
órgão de ação: boca.
órgãos físicos: pulmões, brônquios, voz, tratamento digestivo.
sistema fisiológico: tireóide.
nota musical: sol.
equilíbrio emocional: sensibilidade e criatividade artística, dom da palavra, do
conhecimento, clarialdiência, independência, justiça imparcial, idealização, entendimento,
construção sábia a partir da fala.
virtudes: expressa a energia criadora única, unindo corpo mental e o corpo astral,
entendimento, devoção, compaixão, amor, abertura para o espiritual e para o novo,
transformação, calma.
desequilíbrio físico: doenças de garganta, laringite, faringite, problemas de tireóide e
paratireóide, doenças mentais, depressão, problemas de coluna cervical, de dentes,
distúrbios da fala, calo nas cordas vocais, falta de criatividade, covardia, timidez, doenças
nervosas, fobias.
chakra(6):
frontal.
nome: anja (o chakra do comando).
localização: entre as sobrancelhas, em cima da raíz do nariz.
cor: azul índigo (cor fria).
indicações: dor de garganta, dor no ouvido, dor nos olhos, apatia, apendicite, asma,
bronquite, pneumonia, catarata, convulsões, tosses, coqueluche, sinusite, dor ciática, dor na
coluna, nevralgias, cólicas abdominais, reumatismo agudo, traumatismos, edemas,
sangramentos, hemorragia, nefrite, caxumba, hipertireoidismo, paralisia facial, surdez,
obsessões, estimula a intuição, acalma a excitação mental, eleva a consciência, aumenta a
defesa imunológica, purifica a corrente sanguínea, tônica muscular e depressora
respiratória.
contra-indicações: não há.
mantra: om.
som: ei.
glândulas: pituitária (responsável pela produção de endorfina).
A musicoterapia como auxílio físico-psicológico
207
órgão do conhecimento: nenhum.
órgão de ação: nenhum.
órgãos físicos: ouvido, nariz, maxilar superior, seios da face, parte do cérebro.
sistema fisiológico: sistema nervoso autônomo.
nota musical: lá.
equilíbrio emocional: entendimento do próprio caminho, compreensão da motivação do
outro, percepção, intuição, visão desenvolvida, fé, concentração, clarividência, erradicação
dos erros, devoção, força, perseverança, autoconfiança, carisma, magnetismo.
virtudes: mentalidade aberta, expansiva, crescimento espiritual, entendimento dos erros,
tolerância, humildade, suavidade, amor, liderança com grande poder magnético.
desequilíbrio físico: renite, sinusite, alergias, enxaqueca, problemas de ouvido, surdez,
problemas nos olhos, cegueira, catarata, insanidade, depressão, rigidez, insônia, pesadelos.
chakra(7):
coronário.
nome: sahasrara (o lótus das mil pétalas).
localização: no alto da cabeça, como uma coroa.
cor: violeta (cor fria).
indicações: dores na coluna, dor ciática, meningite, perturbações mentais, perturbações
nervosas, reumatismo, rins, tumores, crescimento dos ossos, problemas na bexiga,
epilepsia, pele, choques, alcoolismo, vícios, indigestão crônica, cistites, raquitismo, tosse
seca, queda de cabelos, cicatrizante, estimula o baço, a leucocitose, depressor cardíaco,
alimenta o sangue, alimenta a região superior do cérebro, ameniza os estados de irritação.
contra-indicações: não há.
som: i.
glândulas: pineal (responsável pela produção de melanina).
órgão do conhecimento: nenhum.
órgão de ação: nenhum.
órgãos físicos: sistema imunológico, parte superior do cérebro, olhos, ouvido, sistema
endócrino, epífese, pituitária.
sistema fisiológico: sistema nervoso central.
nota musical: si.
equilíbrio emocional: capacidade de transformações, espiritualização, acesso ao eu
superior, fé profunda, força, coragem, firmeza, poder de comandar, liderar, servir com amor
universal e dedicação.
virtudes: libertação do ego, desapego, liberdade da materialidade, sabedoria iluminada,
perda do medo da morte, coragem, entendimento da imortalidade da alma.
desequilíbrio físico: depressão, insônia, problemas endócrinos, tumores, inflamações dos
nervos, problemas nos ouvidos e nos olhos, problemas imunológicos, envelhecimento
precoce.
Portanto, os chakras tem uma importância essencial em nosso organismo. Eles regulam o
fluxo de energia no corpo, e regularizam todas as funções corpóreas. A partir desses
estudos analisados, seria utilizada uma freqüência sob forma de emanação, diretamente a
cada chakra, que seria a nota musical correspondente àquele chakra.
208
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
O papel da musicoterapia
Depois de ter abordado o tema AIDS sob uma nova visão, os aspectos psicológicos do
indivíduo portador da doença e um possível tratamento através das emanações de
freqüência, veremos agora como a musicoterapia pode ajudar nesse conjunto variável de
aspectos.
A música sempre foi uma constante na vida do homem desde os primórdios das
civilizações. Era com ela que os povos conseguiam intervir perante os deuses, curar
doenças, tanto físicas, quanto psicológicas, além de todo o aspecto religioso que tinha uma
interação íntima com a música.
A musicoterapia é processo no qual o indivíduo entra em contato com o seu ISO
(Identidade Sonora), e é aonde ele começa a ser trabalhado junto com os aspectos psicosocio-culturais da pessoa. No princípio do ISO, o indivíduo se identifica com os primeiros
sons, ruídos, barulhos, melodias no qual ele ouvia quando era criança. A utilização da
musicoterapia é de extrema importância para esse primeiro contato com o indivíduo que se
encontra com algum déficit psicoemocional.
O Dr. Aschoff, criador do método dos ritmos biológicos, considera os principais ritmos
como: cardíacos, celulares, digestivos, hormonais, metabólicos, entre outros. Esses ritmos
têm relação com os ritmos externos, onde se criou uma especialidade chamada
cronoterapia.
Já o Dr. Gardner, usa os efeitos do som para aliviar as dores em pacientes de consultórios
odontológicos. Conhecida como audioanalgia, o método se explica porque qualquer
impulso sensitivo passa obrigatoriamente pelo tálamo, ou seja, se este estímulo for
aumentado, um grande número de neurônios que ali estão, se retiram por não ter uma
passagem suficiente de impulsos algésicos(via tálamo), para o córtex cerebral.
André Brandalise, musicoterapeuta brasileiro, trabalha com um método chamado de
musicoterapia músico-centrada. Nesse método, ele coloca a importância da música, como
ela, em muitas vezes, sendo a própria terapia.
A musicoterapia atualmente, se encontra inserida nos mais diversos campos da medicina e
da psicologia, podendo se estender à psiquiatria. Doenças como sendo consideradas novas,
estão tendo uma boa aceitação e ótimos resultados quando tratadas pela musicoterapia.
Síndrome do pânico, transtornos afetivos, câncer, AIDS, e outras, têm um efeito benéfico e
duradouro na qualidade de vida dos pacientes expostos a essas doenças.
No caso específico da AIDS, no qual estamos trabalhando nesse artigo, o paciente que é
acometido pelo contágio desse vírus, e posteriormente pela doença, deve receber um
tratamento especial. Sua condição psicológica está debilitada a ponto de uma fácil
instalação da depressão em seu organismo. Essa depressão está tanto em âmbito
psicológico, quanto no físico. A palavra depressão parece estar relacionada somente ao
estado psicológico, porém ela é definida também como um abaixamento de nível, que
também pode se estabeler a nível corpóreo. Portanto, deve se fazer o processo
musicoterápico, levando em consideração tudo que deve estar se passando no
psicoemocional do indivíduo.
A musicoterapia como auxílio físico-psicológico
209
A musicoterapia, no caso específico desta doença, deve ir de encontro não só como
ferramenta para auxiliar o processo de ajuda ao indivíduo, concretizando a sua identidade,
mas também como fonte indagadora e assistencial de como se formou esse indivíduo, a
nível consciente e inconsciente, e de como isso refletiu e reflete em sua vida.
Concluo esse artigo analisando que a musicoterapia pode e deve ser usada nos casos
referentes a AIDS, com uma nova forma, talvez ainda coadjuvante, mas de extrema
importância na melhoria da qualidade de vida à pacientes portadores do vírus HIV.
Referências bibliográficas
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http://www.lafepe.pe.gov.br/medicamentos/medicamentos/Anti-retrovirais
Cristiano Steenbrock: Estudante do segundo ano do curso de Musicoterapia da FAP,
Faculdade de Artes do Paraná. Participação no Primeiro Simpósio Internacional de
Cognição e Artes Musicais, com a apresentação na seção pôster, com o tema “A
musicoterapia e a utilização das tonalidades”. Participação no Primeiro Seminário de
Pesquisa em artes da FAP, com a apresentação oral dos temas “Redução de dores
através da emanação de freqüências específicas” e “Como a música auxilia o aspecto
visual na recepção de informações”. Participação no simpósio “Paradigmas da
Saúde”, como ouvinte. Participação no simpósio “Ciência e Espiritualidade”, como
ouvinte. Participação do ciclo de palestras “O Efeito da Música sobre o Homem”,
como ouvinte. Compositor, arranjador e músico autodidata.
A influência do folclore regional nos Acervos de Música Paranaense
Lílian Nakao Nakahodo (UFPR)
Resumo: Esta comunicação aborda o aproveitamento de elementos folclóricos
regionais em obras de autores paranaenses ou radicados no Paraná, da primeira
metade do século XIX, destacando neste grupo obras de Benedito Nicolau dos
Santos Filho, Bento Mossurunga, Antonio Melillo e Brasílio Itiberê da Cunha
Luz. O trabalho tem sido realizado no âmbito do projeto “Acervos de Música
Paranaense”, desenvolvido no Departamento de Artes da Universidade Federal
do Paraná em parceria com a Casa da Memória e Museu da Imagem e do Som.
O primeiro século de existência política da Província—posteriormente Estado—do
Paraná corresponde cronologicamente ao florescimento dos ideais nacionalistas na arte
brasileira. Estudos musicológicos reconhecem tentativas, a partir das últimas décadas
do século XIX, de delinear uma fisionomia nacional1 nas “obras executadas em salões
da sociedade” – a música erudita – através do emprego de elementos com sabor
patriótico e exótico, oriundos da cultura popular.
O estudo das manifestações folclóricas e sua utilização como matéria prima
composicional, apesar de não ser uma novidade na época - pois ocorrências no início
do século já podem ser conferidas no país, tornam-se recorrentes e mais aceitas,
gerando uma corrente estética na música que perdura até meados do século XX.. Uma
das precursoras desta tendência é a peça de Brasílio Itiberê, de 1869, “A Sertaneja”,
construída sobre estrutura básica da habanera (ritmo de música popular em voga na
época) em cuja seção intermediária, mais movimentada, está inserida a melodia popular
do sul do país, conhecida como “balaio, meu bem, balaio”. Segundo Helza Cameu2, à
esse pioneirismo se deve a valorização da obra por musicólogos e historiadores, já que,
mesmo no início do século XX ainda era perceptível a resistência, por parte do público
musical, à valorização do “popular” nas artes, que se desenvolveu sob forte influência
da tradição européia.
Fragmento de “A Sertaneja” de Brasílio Itiberê (extraído de Brasílio Itiberê, de José
Maria Neves)
1
José Maria Neves se refere, dessa forma, ao que posteriormente denominou-se “música
erudita”- termo que, no período citado, vale mais pelo contexto em que a obra é executada do
que um gênero.
2
A musicóloga Helza Cameu realizou análise profunda desta obra no estudo “A importância
histórica de Brasílio Itiberê da Cunha e da sua fantasia característica A Sertaneja”. (NEVES,
1996, p. 59)
A influência do folclore regional nos Acervos de Música Paranaense
Fragmento de “Balaio, meu bem, balaio” (extraído de Brasílio Itiberê, de José Maria
Neves)
Compositores paranaenses ou radicados no Paraná, da primeira metade do século XIX,
acompanham esta tendência e nos mostram indícios de aproveitamento de elementos
folclóricos, principalmente regionais. No âmbito do acervo da Biblioteca Renné
Devrainne Frank, incluído no Museu da Imagem e do Som de Curitiba, destacamos a
produção de Benedito Nicolau dos Santos Filho, Bento Mossurunga, Antonio Melillo e
Brasílio Itiberê II. Todos eles realizaram, em algum período da vida, estudo galgado
nas tradições populares.
Folclore Regional
Por folclore regional refere-se às manifestações tradicionais que assumiram, no Paraná,
características únicas. Cláudio Alfredo d´Almeida cita, no boletim da comissão
paranaense, a existência, atualmente, de 264 danças e folguedos folclóricos no estado,
sendo as mais recorrentes a folia de reis, a dança de São Gonçalo, o cateretê ou catira, o
fandango, a congada, as cavalhadas e o folguedo do boi. Das danças citadas, restringiuse este estudo ao fandango - expressão popular que hoje sobrevive no litoral
paranaense, e que reúne uma série de danças coreográficas - por maior
representatividade no universo pesquisado.
Sobre os costumes populares do Paraná antes do final do século XIX, Magnus Pereira
analisa a mudança de olhares na questão das tradições. A exaltação do progresso e da
modernidade – sinônimo de adoção de posturas morais e hábitos burgueses - é
substituída pelo lamento à “perda da singeleza e pureza de antigamente”, inclusive das
danças populares, que eram vistas, no início do século, como lascivas. Numa província
em processo de firmação e modernização, os “batuques e fandangos” foram reprimidos
e adquirindo aspectos de dança adotados pelos bailes da burguesia, e cujos
remanescentes são as expressões atuais dos fandangos.
Além das danças, foram encontradas, no acervo, as temáticas expressas em lendas e
mitologia nativas, bem como aspectos da cultura indígena e sertaneja. Inúmeros títulos,
como “caboclo”, “canção ao pinheiro”, “campeiras”, “cantares do sertão paranaense”,
“chimarrão”, “guairacá”, “saudade do caboclo”, “toada sertaneja”, chamaram a atenção
para este estudo, demonstrando a valorização da temática regional como material de
criação. Outras obras, apresentadas no catálogo do acervo com subtítulos (gênero)
como “folclore”, “toada tingui”, “toada a moda caipira”, “canção regional”, “toada
paranaense” também indicam a intenção de aproximação com a cultura popular. Dentro
do universo pesquisado, foram escolhidas as obras que atenderam, da forma mais
explícita, aos propósitos deste trabalho.3
3
Infelizmente uma partitura que poderia acrescentar conhecimentos aqui propostos não pôde ser,
até então, encontrada, intitulada “No sertão: cateretê quasi uma canção”, de Bento Mossurunga.
211
212
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Fandango Paranaense
Tida como a mais autêntica manifestação cultural popular do Paraná, o fandango é
objeto de crescente interesse no campo de pesquisas musicológicas e artísticas locais,
fazendo parte, também, da cultura litorânea paulista e da cultura gaúcha, com as quais
compartilha algumas similaridades. No Paraná, adquiriu sentido genérico de festa ou
reunião com danças e é atualmente vivenciado no litoral, apesar de encontrarmos
evidências de que o baile, em tempos remotos, ocorria também no interior paranaense e
nos centros urbanos. Fernando Azevedo aponta, em estudo realizado na década de 70, a
existência de cerca de 30 “marcas” - como são tipicamente chamadas cada dança
coreográfica - divididas em batidas e bailadas, acompanhadas instrumentalmente por
viola, rabeca e adufe, além dos cantos. Entre as mais recorrentes, citamos: anu,
queromana, cana-verde, vilão de lenço, marinheiro, domdom, xará, andorinha,
chamarrita e serrana. (Fandango do Paraná, 1978). Praticamente todas as músicas são
apresentadas em compasso binário.
Suas origens, de acordo com Roselys Roderjan, remontam às danças dos salões
aristocráticos europeus do século XVIII, principalmente do norte de Portugal, de onde
partiram muitos migrantes ao Paraná. A historiadora observa a afinidade das danças
populares portuguesas às dos demais países europeus, conferindo-lhes uma origem
comum na Idade Média, ocorrência que explicaria as constâncias melódicas comuns ao
canto gregoriano presente no fandango e em outras músicas folclóricas.
Apesar dos primeiros relatos de prática do fandango datarem do séc. XVIII, não há
conhecimento de registros sonoros até a década de 30. Oneyda Alvarenga confirma a
escassez de documentação musical sobre o fandango, especialmente do Paraná (Música
Popular Brasileira, 1950). Se tal panorama ocorria já nos anos 50, poucos exemplos do
fandango tradicional foram preservados ou resgatados. Restam algumas iniciativas,
iniciadas na década de 60, como a criação do “Grupo de Folclore e Arte Gralha Azul de
Curitiba” (fundada em 1969) por pesquisadores e artistas interessados, pesquisas atuais
baseadas, principalmente, no conhecimento empírico dos “caboclos”, e o estudo das
obras que utilizaram o fandango e que estão, hoje, alocadas nos acervos de música
paranaense.
Uma dessas obras, utilizada por Renato Almeida, é a transcrição de duas canções
recolhidas por Antonio Melillo e Odilon Negrão. As canções pertencem a uma
querumana e um anu, ambas sem data. Do anu, diz-se ser a primeira dança do baile,
onde “só os homens sapateiam, como, aliás, acontece com todas as marcas. Os
tamancos batem fortes no chão, uníssonos, numa cadência perfeita e substituem o
batido.” (Azevedo, 1978). A queromana é também batida e valsada, considerada das
mais difíceis e por isso pouco dançada.
Há, também, a peça “para canto, piano e sax em Mi bemol” intitulada “Fandango”,
cuja letra, de Odilon Negrão, infelizmente não pode ser encontrada. A data também não
é descrita. Apesar de apresentar harmonia diatônica simples, recorrente na música
popular, não foi encontrado parentesco próximo à música de alguma marca particular
de fandango. Mas esboça claramente, através do ritmo, um tempero regional, como
pode ser atestado pelo fragmento seguinte:
A influência do folclore regional nos Acervos de Música Paranaense
Fragmento de “Fandango”, de Antonio Melillo (Acervo Renné Devrainne Frank)
Outra obra a utilizar, de forma mais explícita, elemento folclórico é o n∞ 8 do 3o ato da
opereta “Marumby” denominada “Fandango caboclo”, uma comédia musicada
encomendada para descrever “as riquezas naturais do Paraná”, escrita e dirigida por
Benedito Nicolau dos Santos e estreada com 28 músicos no Teatro Guairá em 1928.
Em artigo da Gazeta do Povo (15/12/28) sobre a estréia, seu autor exalta a ausência de
preocupação com modelos estrangeiros e o fato da música e do assunto ser “nosso”. O
fragmento a seguir foi transcrito da parte para piano e vozes.
Fragmento de “Fandango caboclo”, de Benedito Nicolau dos Santos (Acervo Renné
Devrainne Frank)
Pela análise dos versos, parece tratar-se da música de uma “tirana”, um tipo de marca
de fandango no Paraná sobre o qual se sabe pouco. Assim é afirmado: “tanto no seu
aspecto de dança cantada quanto no de canção, a tirana parece estar em desuso. Seu
desaparecimento, ou sua quase extinção, foi há muito tempo assinalado por vários
autores. A documentação musical existente sobre ela é muito escassa.” (Alvarenga,
1950).
No mesmo livro, Oneyda reproduz o que diz ser o “único exemplo registrado em livro
(...) colhido no Rio Grande do Sul”, “eu amei uma tirana”:
213
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Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Fragmento de “Eu amei uma tirana” (extraído do livro “Música Popular Brasileira, de
Oneyda Alvarenga).
De fato, além deste exemplo, são conhecidos também os registros das músicas de sete
tiranas realizada por Antonio Vieira no códice “Cifras para Saltério”, do fim do século
XVIII (Budasz, p. 25). Nos estudos recentes sobre o fandango, são escassas as alusões
à tirana e nulos os registros coreográficos ou musicais. Já alusões à “tiraninha”
aparecem com maior freqüência, porém ainda são raras as informações mais detalhadas
a respeito de sua música.
Tal constatação torna ainda mais interessante o “fandango caboclo”, que possui
algumas semelhanças à “eu amei uma tirana” - como é possível constatar comparando
os dois fragmentos – o compasso ternário, o tratamento melódico-rítmico e o tema
poético. Porém, difere completamente da tiraninha, que se trata de uma dança em
compasso binário, exposto a seguir:
Fragmento de uma tiraninha (extraído do livro Fandango paranaense de Fernando
Azevedo)
Examinando o programa do 3o ato, sabemos que a peça está inserida no contexto de
uma festa, onde é convidado aos “sertanejos a baterem a fandango caboclo”. É
possível, portanto, que o compositor,4 estudioso das tradições locais, para musicar a
cena com maior fidelidade, tenha utilizado - e não criado – uma melodia de fandango,
o que faz ampliar o interesse histórico por essa obra.
Lendas e mitos
Compositor com grande número de obras editadas no Paraná, Bento Mossurunga se
aproveita amplamente da temática regional, fato que pode ser, em partes, deduzido pelo
“contato com violeiros populares, com a música produzida numa colônia de negros
4
Benedito Nicolau dos Santos escreveu, dentre outros, o livro “Lendas e Tradições do Paraná”
lançado pela Imprensa oficial da UFPR em 1973.
A influência do folclore regional nos Acervos de Música Paranaense
libertos (...)”.5 Exemplo disso é o álbum que traz 14 peças sob a seguinte inscrição
“Bento Mossurunga, interpretando temas de lendas, crenças e costumes regionais
descritos por poetas paranaenses, apresenta, neste álbum, canções de sua autoria.”
Nas obras desse álbum, há recorrências constantes ao universo caboclo, como se
verifica nos versos de “Festa Ensombrada”: “É noite de são João / Em torno de uma
fogueira, / A caipirada faceira / Dança o fandango e o baião. / Sapecada, estala o
pinhão / Ao lado, numa braseira / Ferve a água na chaleira / Para o mate chimarrão”
com letra de Correia Junior, e nos versos e textura melódica de “Trova Rústica”:
Fragmento de “Trova Rústica”, música de Bento Mossurunga e letra de Silveira Neto
(Acervo Renné Devrainne Frank)
A partitura para piano e voz de “Naipí e Tarobá”, nesta versão editada, traz em sua
última página a transcrição de um trecho do livro “Paiquerê”, escrito pelo paranista
Romário Martins em 1940, do qual foram inspirados os versos da obra. Trata-se do
aproveitamento de uma lenda indígena em torno das Cataratas do Iguaçu. As figuras
melódico-rítmicas remetem a um caráter folclórico bem como a alteração em Ré bemol
sobre acorde de Mi bemol (intervalo de sétima menor), no 4o compasso.
Fragmento de “Naipí e Tarobá”, música de Bento Mossurunga e versos de Milton
Condessa (Acervo Renné Devrainne Frank).
Obras de Brasílio Itiberê da Cunha Luz não poderiam ser excluídas deste estudo.
Integrante da segunda geração nacionalista, dedicou-se ao estudo do folclore tornandose catedrático desta disciplina na Universidade do Distrito Federal em 1938. Apesar da
intimidade com o assunto, proporcionada pela direção profissional, as obras do acervo
examinadas não demonstram uma relação clara de aproveitamento de material
folclórico local. Podem ser ressaltadas, nas obras, constâncias do populário musical
folclórico, como células melódico-rítmicas sincopadas, títulos que remetem à cultura
regional ou gênero descrito como “folclore”. A peça que mais se aproxima do
propósito deste trabalho é “Pescador da Barquinha (folclore)”, datada de 1948.
5
Moçurunga Bento. In: Enciclopédia da Música Brasileira: Erudita, Folclórica e Popular. São
Paulo: art, 1977. v.1, p. 492.
215
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
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Fragmento de “Pescador da barquinha”, ambientado por Brasílio Itiberê (Acervo Renné
Devrainne Frank)
A temática do pescador é recorrente nas manifestações tradicionais litorâneas, locais
onde ocorrem os fandangos. O subtítulo folclore nos remete à intenção do compositor
em demonstrar que há um caráter popular nesta peça para canto e piano e pode referirse tanto ao texto poético que faz alusão à cultura litorânea, como ao ritmo
característico, constante na melodia e no acompanhamento.
Considerações finais
A frente de pesquisa “Patrimônio Musical: arquivística e organologia” desenvolvido no
Departamento de Artes da Universidade Federal do Paraná contempla estudos ligados à
preservação do patrimônio musical paranaense, como o projeto “Acervos de Música
Paranaense”, âmbito no qual este trabalho tem sido realizado. Restringida aos acervos
da 6Casa da Memória de Curitiba e da Biblioteca Renné Devrainne Frank, no Museu da
Imagem e do Som, esta pesquisa deverá se estender aos outros acervos compreendidos
pelo projeto, a fim de possibilitar maior contextualização do nacionalismo na música
paranaense e compreensão dos usos e costumes, bem como as mudanças transcorridas
nas manifestações folclóricas desde o século XIX:
6
∑
Escola de Música e Belas Artes do Paraná: música impressa da primeira
metade do século XX.
∑
Instituto Histórico e Geográfico de Paranaguá: inclui obras corais e pianísticas
de compositores parnanguaras de fins do século XIX e primeira metade do
século XX.
∑
Banda da Polícia Militar do Estado do Paraná: contém música de banda do
final do século XIX e início do século XX, na grande maioria em cópias
recentes.
∑
Faculdade de Artes do Paraná: contém um pequeno conjunto de obras de
Antonio Melillo, além de música de banda de compositores diversos das
décadas de 1930 e 40.
Este estudo foi realizado no âmbito dos acervos da Casa da Memória de Curitiba e Museu da
Imagem e do som, compreendidos no projeto de catalogação “Acervos de Música Paranaense”.
Porém, para adequar-se ao objetivo proposto, foram utilizados apenas exemplos do acervo do
Museu da imagem e do som, com exceção de “A sertaneja”, de Brasílio Itiberê, que pertence ao
acervo da Casa da Memória, e cujo fragmento, entretanto, foi extraído do livro de José Maria
Neves.
A influência do folclore regional nos Acervos de Música Paranaense
∑
Acervo particular de Marisa Sampaio: inclui composições de membros da
família Frank, das primeiras décadas do século XX.
∑
Acervo particular de Anita Canale Raby: composições doadas por herdeiros de
Maneco Viana, contendo música religiosa e pianística.
∑
Biblioteca Nacional: acervos doados por Brasílio Itiberê II e Andrade Muricy.
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Lílian N. Nakahodo é graduada Turismo pela Universidade Federal do Paraná e
atualmente estuda Produção Sonora na mesma universidade. Foi bolsista, em
2001, do programa kenshu em Okinawa (Japão), monitora da disciplina de
História da Música Popular Brasileira em 2004 e desde então, participa do
217
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Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
projeto “Acervos de música paranaense” do grupo de pesquisa “Música
Brasileira: Estrutura e Estilo; Cultura e Sociedade”, do Departamento de Artes da
UFPR. Além dos estudos, se dedica à interpretação em grupos de câmara de
música popular e erudita instrumental.
Aspectos da musicologia, etnomusicologia e música popular brasileira
Acácio Tadeu de Camargo Piedade (UDESC), Maiara Felippe Moraes (UDESC)
Resumo: Nesta comunicação procuramos refletir sobre alguns aspectos que
relacionam etnomusicologia, musicologia brasileira e música popular brasileira.
De início, discutiremos questões das nascentes musicologias, como a exclusão
das músicas populares como objetos de estudo, exceto quando consideradas
“folclóricas”. Em seguida, discutiremos aspectos da musicologia brasileira,
destacando o pensamento de Mario de Andrade, Luiz Heitor Correa de Azevedo,
Vasco Mariz, José Ramos Tinhorão e Hermano Vianna, procurando comentar suas
diferentes abordagens do mundo da música popular. Concluímos que atualmente
há uma grande abertura na musicologia brasileira para os estudos da música
popular, mas o estudo das estruturas musicais deste repertório nem sempre é
realizado com o mesmo vigor, tal fato sendo interpretado como uma persistência
de um pensamento modernista. Palavras-chave: musicologia; etnomusicologia;
música popular.
Alguns comentários sobre o panorama histórico da musicologia
O termo “musicologia”, originalmente entendido como a designação de uma disciplina que
cobria o conhecimento de todos os aspectos possíveis da música (acústica, harmonia,
estética, história, etc.), abrangendo tanto a música ocidental quanto a chamada música
“primitiva”, foi sofrendo ao longo do século XX uma restrição quanto ao seu âmbito,
passando a referir apenas ao campo da música ocidental.1 Este percurso tem relação
profunda com o próprio desenvolvimento do pensamento ocidental, com a criação da
alteridade,2 com a negação das músicas “exóticas” e da música popular como objeto de
estudo, com as ideologias que sustentam as dicotomias “arte superior/inferior” e
“erudito/popular” que apontam, de um lado, para as idéias de cultivo e erudição, e, de
outro, para rudeza e crueza (ver Bastos, 1996).
Na visão de muitos musicólogos e também no senso comum, a musicologia é mais restrita
não só quanto ao seu objeto de estudo, mas também no que se refere a seus métodos.
Assim, a musicologia empregaria muito mais recursos de análise e teoria musical, enquanto
que outras disciplinas dariam conta dos aspectos histórico-sociológicos e culturais. Talvez
esta divisão tenha a ver com o espírito positivista que imperou na musicologia do século
XX, pois, como diz Kerman, “a musicologia é percebida como tratando do factual, do
documental, do verificável e do positivista” (Kerman, 1987, p. 2). Retomaremos esta
questão adiante. Por ora, vamos comentar alguns marcos históricos da formação das
musicologias (o plural adiante se explicará).
Inicialmente, a Musikalische Wissenschaft (“Ciência Musical”), pensada em meados do
século XIX, voltou-se para a música ocidental do passado, constituindo estudos sobre o
espírito de época e a correta forma de execução destas peças, estudos estes que tinham um
viés etnográfico (cf. Bastos, 1995). Em 1885, Guido Adler sistematizou a nascente
musicologia em três tipos: histórica, comparada e sistemática. Nascida já no plural,
portanto, esta disciplina parece opor história e teoria tanto quanto música ocidental e
música não-ocidental (“folclórica” e “exóticas”; inclua-se: populares). Estas rupturas
marcarão a trajetória e a constituição acadêmica da disciplina. Vamos agora rever alguns
pontos sobre a chamada musicologia comparada.
Apesar de já se ter algum conhecimento de culturas diversas, é apenas em meados do século
XIX que grupos de cientista alemães se unem para sistematizar questionários com assuntos
que deveriam ser abordados em viagens de descobertas, ou expedições científicas. Antes
1
Para maiores detalhes nesta trajetória da Musicologia, ver Kerman (1987).
Bastos (1995) mostra como a música desempenhou um papel importante na distinção
“nós”/”outros” na história do Ocidente.
2
220
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música |
disso, quase todas as anotações de que se dispunha eram, de forma geral, informações
assistemáticas (Lühning, 1991). Essas expedições científicas davam atenção especialmente
às diferenças raciais entre os diversos povos, e eram feitos estudos das características
morfológicas do ser humano: altura, estatura, etc. Além disso, ainda que de forma
superficial, também foram estudadas questões ligadas à esfera social, incluindo assuntos
como religião, rituais e artes e mesmo que a comissão de cientistas fosse formada quase que
apenas por especialistas na área das ciências exatas, foram recolhidos alguns exemplos de
cultura material, que foram então guardados em museus de antropologia. Lembre-se que o
pensamento social, nesta época, é marcado pelo paradigma do evolucionismo.
Com o surgimento do fonógrafo, em 1887, inventado por Thomas Edison, surgiu a
possibilidade pela primeira vez da fixação de um som e sua reprodução.3 A partir de então,
todas as expedições cientificas passaram a levar fonógrafos consigo, para gravar músicas e
línguas desconhecidas. Estas gravações, consideradas inicialmente simples complementos
das pesquisas, num primeiro momento não mereceram grande atenção por parte dos
pesquisadores, ficando assim guardadas sem qualquer comentário ou descrição. Somente no
início do século XX, pesquisadores começaram a se interessar por estes documentos
sonoros que continham músicas tão diferentes de tudo que se conhecia na época: Erich Von
Hornbostel, Carl Stumpf, Curt Sachs, entre outros.4 Curiosamente, nenhum deles era da
área da música.5 A partir deste interesse em compreender os sons gravados, estes cientistas
desenvolveram métodos de trabalho que são importantes até hoje, como a transcrição
musical. Inicialmente, nas transcrições era utilizada a escrita ocidental com alguns símbolos
adicionais, mas com a diferença de que a partitura resultante não tinha como função a
execução, mas sim a anotação descritiva do som para criar uma visualização da música
gravada. Talvez por serem ligados às ciências exatas, estes cientistas tentaram analisar a
música com um espírito analítico, como se a música fosse apenas uma acumulação de
elementos mensuráveis. Além disso, estavam influenciados pela teoria de Darwin e
voltados para uma busca das origens e para a evolução da música, sempre convencidos de
ser a música ocidental o auge de toda a arte musical, isto de forma coerente com o
pensamento evolucionista.
Essas idéias foram as diretrizes dessa primeira fase em que se estuda a música “extraeuropéia” (ressaltamos: inclua-se aqui o universo popular) através desta chamada
musicologia comparada. O nome se dá justamente porque um de seus métodos principais é
a comparação dos diversos parâmetros constitutivos da música, como escalas, tonalidades,
ritmos, sempre em relação ao modelo ocidental. Este primeiro momento duro até as décadas
de 30 e de 40, e pode ser resumido como uma tentativa de compreensão das culturas
musicais do mundo através das gravações contidas em arquivos de fonogramas É
importante ressaltar que as análises destas gravações não foram feitas por quem as coletou:
ou seja, os cientistas não conheciam pessoalmente os músicos e nem a cultura do povo que
estavam estudando. Porém, havia a consciência de que, além das questões diretamente
ligadas ao nível sonoro, existiam muitas outras que pertenciam mais à área da antropologia
e que somente pelas gravações não se era possível abordar (cf. Lühning, 1991).
O termo “musicologia comparada” foi abandonado em prol de “etno-musicologia”, termo
cunhado por Jaap Kunst em 1950 (Kunst, 1950), isto acompanhando uma transferência do
centro de excelência de Berlim para os Estados Unidos, onde a disciplina se consolidou.
Este hífen posteriormente foi cancelado, e surgiu o termo “etnomusicologia”, isto nos
3
Para Bastos, “congelar” os sons é uma idéia arquetípica do Ocidente, apontando para a tentativa
de suprimir a distância (Bastos, 1995, pp. 18–20).
4
Estes pesquisadores trabalharam em torno do arquivo de fonogramas de Berlim (ver
Christensen, 1991; Bastos, 1995; Lühning, 1991 e Pinto, 2001).
5
É importante ressaltar que o fato destes pesquisadores não serem originalmente da área de
música é significativo, sendo este um fato importante até hoje, como comentaremos adiante.
Aspectos da musicologia, etnomusicologia e música popular brasileira
221
Estados Unidos em 1955, durante o 1º encontro anual da Society for Ethnomusicology
(SEM), associação que até hoje é uma das mais importantes do mundo na área.
Dentre os estudos mais importantes deste período destacam-se Merriam (1946) e Nettl
(1956), sendo que ficou definido que os objetos de estudo da Etnomusicologia seriam as
músicas orientais, folclóricas e “primitivas”. Em 1977, John Blacking retoma uma proposta
de Harrison (1963) de que a função de toda musicologia é ser etnomusicologia, afirmando
que “toda musicologia é uma musicologia étnica”, isto no sentido de que admite o viés
étnico nos seus objetivos e métodos analíticos, e que “a música ocidental deve igualmente
ser tratada como estranha ou exótica” (Blacking, 1981). A partir daí, a etnomusicologia se
abre para a música ocidental e, importante ressaltar, as músicas populares. No entanto,
mantêm-se até hoje uma fronteira entre etnomusicologia e musicologia, pois esta última
desenvolveu-se firmemente voltada quase que exclusivamente para as tradições eruditas
euro-americanas e, diga-se, quase como sinônimo de musicologia histórica, ou seja, sempre
estudando o passado e não as tradições vivas do presente (Neves, 1995). Cristalizou-se
também o discurso de que a etnomusicologia, por aprofundar o olhar no contexto sóciocultural, necessariamente “despreza” a análise das estruturas musicais, esta sendo um
método muito mais próprio da musicologia.
Este discurso, apesar de incoerente se levarmos em conta vários estudos
etnomusicológicos,6 faz algum sentido quando olhamos para as recentes publicações sobre
música popular, que pouco ou nada tratam dos elementos musicais, sendo que é pertinente
notar que muitos não foram escritos por musicólogos.7 Em contrapartida, na musicologia
tradicional (voltada especialmente para o universo erudito e constituída por pesquisadores
com formação musical), parece haver uma supervalorização do conhecimento técnicomusical em detrimento de uma abordagem mais antropológica e/ou sociológica. Ou seja, o
discurso acima referido parece fazer sentido quando o objeto é a música popular. Talvez o
desinteresse pela música popular tenha relação com o fato de ela ser considerada “pobre” se
tratada apenas em seus aspectos estritamente musicais, o que pode ter incentivado o maior
interesse quanto às suas questões sócio-culturais. Tudo isto tem relação com o que foi dito
acima sobre a negação das músicas “exóticas” e da música popular como objeto de estudo e
sobre as dicotomias “arte superior/inferior” e “erudito/popular”. É claro que a musicologia
não é o único discurso legítimo para se falar sobre música: diversas outras perspectivas
interessadas pela música enriquecem o conhecimento a respeito, cada uma a seu modo,
como é o caso de disciplinas tais como antropologia, história, jornalismo, e muitas outras.
Atualmente, os chamados popular music studies começam a utilizar ferramentas de análise
musical, ao mesmo tempo em que o território da musicologia se abre para a música popular
(ver Middleton, 1993).
Após este breve panorama, passaremos para o cenário brasileiro, apresentando aspectos
da musicologia no país e a questão da presença ou ausência da música popular nesta área.
6
Por exemplo, estudos antropológicos da música indígena, repletos de transcrições e análises
musicais, como Bastos (1990), Mello (2004), Montardo (2002) e Piedade (2004).
7
Veja-se, por exemplo, as diversas publicações da editora 34 sobre música popular (por exemplo
Calado, 1997; Dreyfus, 1999; Giron, 2001).
222
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música |
A Musicologia no Brasil e os estudos sobre música popular
Para falar da musicologia no Brasil, é necessário falar algumas palavras sobre obras e idéias
de autores importantes como Mario de Andrade, Bruno Kiefer, Luiz Heitor Correa de
Azevedo e Vasco Mariz.
Mario de Andrade foi um dos precursores da musicologia brasileira, principalmente quando
esta se debruça sobre a música popular. Apesar de ainda se ter pouco conhecimento da
história da musicologia no Brasil,8 a obra de Mario de Andrade é bastante conhecida e
estudada, sendo reconhecidamente de enorme importância para o que foi o desenvolvimento
da musicologia brasileira até os dias atuais. Andrade foi o principal articulador do
movimento musical modernista que, apesar de manter a tradicional hierarquização entre o
erudito e o popular, propõe um movimento de valorização do chamado “populário” (Naves,
1998). Quando Mário despontou como pensador e crítico musical no Brasil, o movimento
modernista estava já em sua fase nacionalista, que se firmou como estética hegemônica até
meados dos anos 1940. Para Travassos (2000), tal estética pode ser resumida em cinco
proposições: “1) A música expressa a alma dos povos que a criam; 2) a imitação dos
modelos europeus tolhe os compositores brasileiros formados nas escolas, forçados a uma
expressão inautêntica; 3) sua emancipação será uma desalienação mediante a retomada do
contato com a música verdadeiramente brasileira; 4) esta música nacional está em formação,
no ambiente popular, e aí deve ser buscada; 5) elevada artisticamente pelo trabalho dos
compositores cultos, está pronta a figurar ao lado de outras no panorama internacional,
levando sua contribuição singular ao patrimônio espiritual da humanidade” (Travassos,
2000, pp. 33–34). Mário de Andrade expõe estas idéias no célebre Ensaio Sobre a Música
Brasileira (Andrade, 1962). Deve-se lembrar que o pensamento do início do período
republicano no Brasil foi marcado pela busca do progresso e da modernização, com o
modelo dado pela Europa ocidental.
Neste ambiente pouco propício a populismos, Mário inova com sua ideologia modernista
nacionalista expressando sua admiração pela música popular brasileira, dela, entretanto,
ainda exigindo uma série de desenvolvimentos, já que a vê destituída de maiores
elaborações formais (ver Naves, 1998). Como é expresso no Ensaio, a música popular se
encontra em um estado bruto, necessitando ser cultivada pela arte erudita para então “elevarse” ao nível de “música artística”. No cerne do nacionalismo musical modernista, portanto,
estabelece-se, de forma congênita, a ideologia que sustenta, ao lado da riqueza e da
“autenticidade” do mundo popular, sua inferioridade artística. Este pensamento paradoxal é
resistente, e ainda hoje reflete na sociedade brasileira. Se, por um lado, não há dúvida que
Mario foi um defensor convicto da música popular, por outro há que se olhar com cuidado
para seu pensamento, já que a busca do popular a que Mario se refere é uma busca do Brasil
profundo (Piedade, 2005) que parece excluir a chamada “música popular urbana” que,
eventualmente, pode encaixar no que Mário chama de música “popularesca”, uma
denominação claramente pejorativa para esta música, que era ligada ao mercado cultural e
vista com desconfiança pelos modernistas. Um motivo para este repúdio à música
“popularesca” ou “semiculta” era devido às suas influências internacionais, o que, conforme
o ideário modernista, poderia atrapalhar no processo de nacionalização. Pode-se dizer que
todo este pensamento é persistente não apenas no Brasil, mas que se encontra encapsulado
em narrativas que ainda circulam o mundo (ver Hamm, 1995). Apesar da ambigüidade do
termo “popularesco”, a linha que separa este termo de “popular” é muito tênue, o que gerou
grandes dificuldades na classificação e na busca da autenticidade da música brasileira.
As reflexões de Mário de Andrade tiveram grande repercussão tanto na musicologia
brasileira, especialmente na produção de compositores que seguiram os princípios
8
De fato, uma História da Musicologia Brasileira ainda é um projeto em elaboração (Castagna,
2004).
Aspectos da musicologia, etnomusicologia e música popular brasileira
223
modernistas. Vasco Mariz é um importante musicólogo brasileiro que, como muitos
outros, teve forte influência de Mario de Andrade.9 Comentaremos aqui um aspecto desta
influência. Para observar isto mais de perto, comentaremos um aspecto desta influência. Em
um artigo chamado A Música Brasileira em Crise (Mariz, 1997), publicado pela primeira
vez no Jornal do Brasil, em 1991, Mariz coloca como dois dos mais graves problemas da
crise da música brasileira os seguintes fatos: a diminuição acelerada do status do músico
erudito e a crescente internacionalização da música popular brasileira. Os temores do autor
eram de que até o final da década (de 90) não houvesse mais compositores eruditos no
Brasil, e também que o “nosso samba” fosse substituído pelo rock ou por algum outro
gênero estrangeiro. Segundo Mariz, a principal causa da desvalorização do músico erudito
(tanto compositores quanto intérpretes) foi a supervalorização do músico popular, sendo o
músico erudito completamente marginalizado pelos meios de comunicação de massa.10
Mariz afirma que “tudo é sacrificado ao gosto do povão – é o nivelamento por baixo”,
alegando que, sob este aspecto, o Brasil estaria se distanciando do primeiro mundo e
“afundando cada vez mais no terceiro mundo”. O autor utiliza um conceito de “popular”
que, na verdade, tem dois sentidos: o primeiro está ligado às origens da música brasileira,
ao que existe de autêntico e que deve ser preservado, enfim, ao Brasil profundo; o segundo
diz respeito ao que é do "povão", ou seja, o que é consumido pela grande maioria dos
brasileiros e que é imposto pelos meios de comunicação de massa. Ecoa aqui o pensamento
modernista de Mário quando este trata dois sentidos de “música popular” e “música
popularesca”.
Quando abordada a questão da crise na música popular com mais aprofundamento, o autor
parece diferenciar com mais clareza este conceito antes colocado nos mencionados dois
sentidos. A idéia de música popular defendida por Mariz aparece nos termos de “música
regional” e “música nacional”, músicas que, segundo ele, são baseadas no folclore do país,
que estaria por desaparecer. A causa do desaparecimento desta música popular, abarcada por
estes conceitos, é a força de uma outra música popular, novamente exemplificada pelo rock,
imposta por empresas multinacionais da música a fim de produzir mercadorias vendáveis
em todo o mundo. Mariz coloca essa tendência da internacionalização da música popular
como “impatriótica”, devendo ser revertida, o autor achando que o governo assiste de braços
cruzados a este domínio cada vez maior da comercialização. Esta questão do nacionalismo
como estratégia de defesa patriótica do “nacional” também é bastante convergente com a
obra de Mário de Andrade: esta tendência “impatriótica” da internacionalização da música
remete às premissas modernistas sobre o nacionalismo na música. Porém, a “verdadeira
música popular brasileira” tem o seu valor não enquanto arte, mas sim enquanto “produto
autêntico”, “original”, da cultura brasileira que, se lapidado pela arte culta, pode vir a se
transformar em uma obra artística. Eis a narrativa da riqueza bruta do popular. Estas
questões aparecem também quando o autor discorre sobre a educação musical. Para Mariz
9
Dentre suas principais obras, podemos destacar (Mariz, 1983; 1985; 1997).
Esta é uma narrativa ainda muito freqüente que reflete uma espécie de ciúme pela vivacidade
da música popular brasileira. Trata-se de um nexo importante que navega na dicotomia
popular/erudito no Brasil: o que está em jogo é o “reconhecimento” ou a falta de reconhecimento
público. O outro lado da moeda, aquele que vai reconhecer ou deixa de fazê-lo, é, na verdade, o
cenário internacional, palco onde o Brasil se espelha e onde anseia refletir sua profundidade
interior. Esta questão está imersa naquilo que Bastos (1995) chama de “concerto das nações”.
Veja uma recente aparição deste tipo de queixa, no caso do ano do Brasil na França (2005),
quando diversos artistas da música erudita brasileira lamentaram a ausência da “música
brasileira de concerto” no evento, em contrapartida com a abundância de apresentações das
músicas populares do Brasil.
10
224
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música |
(op.cit.), uma formação musical apropriada iria ajudar na formação de “platéias de
concerto”. Citando alguns países onde existiria uma educação musical efetiva, o autor
afirma que, nestes, as crianças são condicionadas a ouvir a “boa música”: ou seja, a música
erudita. Em nenhum momento, quando trata do tema educação, Mariz toca no assunto
“música popular”, como que afirmando a necessidade apenas da música erudita na “boa”
formação musical de um indivíduo.
Já o musicólogo e compositor Bruno Kiefer mostra sua preocupação com a falta de obras
didáticas atualizadas sobre música brasileira, afirmando ser esta o principal objetivo de seu
pequeno livro sobre a história desta música, com o qual pretende contribuir para a formação
de uma “consciência musical brasileira” (Kiefer, 1982). É digno de notar que Kiefer
desconsidera completamente a música indígena, afirmando que esta música não “deixou
vestígios” na música brasileira e até hoje é um fenômeno “exótico”. Lembrando de Luciano
Gallet, Kiefer afirma que a cultura indígena é “mais fraca” e sucumbiu aos esforços
civilizatórios e missionários.11 Não apenas a música popular, portanto, mas também a
indígena foi sistematicamente excluída da formação musical dos brasileiros, que se volta
unicamente para o universo erudito europeu como modelo, apesar do discurso nacionalista.
Dos autores importantes da musicologia brasileira, estamos destacando alguns nomes que,
de alguma forma, se dedicaram ao mundo popular. Cabe mencionar aqui, ainda que sem
espaço suficiente para o merecido detalhamento, outros autores que foram importantes nos
estudos sobre música popular brasileira, tais como Sílvio Romero, que em 1883 publicou a
obra Cantos Populares do Brasil (Romero, 1954), Ary Vasconcelos (Vasconcelos, 1964),
Oneyda Alvarenga (Alvarenga, 1950), Zuza Homem de Mello (Mello, 1976), Valter
Krausche (Krausche, 1983), entre muitos outros.
Um dos recortes possíveis nesta bibliografia é sugerido por Eugênio (2000), que busca
analisar como a questão das origens é pensada na música popular brasileira, para tal
focalizando duas grandes correntes historiográficas: a primeira diz respeito à busca do que é
“autêntico” na música popular brasileira, e a segunda procura questionar a própria origem
desta autenticidade. Já de início, o autor se coloca nessa segunda perspectiva, crítica,
entendendo a categoria da autenticidade não como inerente ao evento ou objeto, e sim como
“uma convenção que deforma parcialmente o passado, mas que nem por isso deve ser
pensada sob o signo da falsidade” (op.cit: p. 1). O antropólogo Hermano Vianna, em seu
estudo sobre o samba, é outro autor que se enquadra nesta mesma linha. Vianna estuda a
questão da eleição do samba como símbolo de identidade musical brasileira (Vianna, 2002),
isto não como algo que ocorreu por acaso, mas sim sendo relacionado ao momento no qual
estava em construção a idéia de brasilidade, que até hoje integra nossa concepção do que é
entendido como “legitimamente” brasileiro. Em outra obra (Vianna, 1990), este autor
comenta as teorias que pensam a indústria cultural como causadora da homogeneização da
cultura. Sua hipótese é de que a indústria cultural tende a se adaptar à heterogeneidade dos
diversos públicos, fragmentando-se ao máximo para satisfazer estes vários grupos. Vianna
questiona a busca pelo “autêntico”, afirmando que “tudo pode ser ‘nosso’ e do ‘outro’ ao
mesmo tempo”. Ou seja, nenhum fenômeno social é puro, e nesse caso a preocupação com
o que é “autêntico” deixa de fazer sentido, assim como a separação que é feita entre
produtos da indústria cultural, da cultura popular e da cultura erudita.
11
Percebe-se aqui outra questão da musicologia brasileira que foi a completa desconsideração da
música indígena na história da música brasileira, merecendo poucas menções por parte destes
autores que escrevem sobre o assunto (digna exceção: Cameu, 1977). No caso de Kiefer (op.cit),
isto se torna bastante problemático pelo caráter didático do livro, que reproduz um preconceito
que somente nas últimas décadas está sendo reconhecido. Não é nosso objetivo aqui oferecer
contrapontos a esta visão, que já foi tão criticada e, pode-se dizer, atualmente foi quase
abandonada (ver Bastos, 2000).
Aspectos da musicologia, etnomusicologia e música popular brasileira
225
Para concluir estes comentários, lembramos de José Ramos Tinhorão, autor que parece
diferir desta linha mais crítica mencionada por Eugênio (2000). Tem sido um importante
colaborador na construção da história da música brasileira, com muitos livros publicados
sobre o assunto (Tinhorão, 1997; 1998), além de ser organizador de um grande e importante
acervo de dados sobre a música brasileira. Tinhorão se aproxima mais da linha
historiográfica, que está em busca da origem, da preservação do “autêntico”, e, desta forma,
se afina mais a Mario de Andrade. Também quando trata da indústria cultural, Tinhorão
discorda radicalmente das teorias de Vianna, vendo esta indústria como uma instituição que
promove a homogeneização em escala planetária, pondo em risco a preservação das músicas
verdadeiramente brasileiras. Aí se manifestam, portanto, pressupostos já presentes no início
da musicologia no modernismo.
Mapeamentos
Destacamos agora os esforços de construção de mapas da música no território brasileiro.
Estes mapeamentos da música brasileira constituem buscas etnográficas da musicalidade do
Brasil profundo: ou seja, um território, imaginado como qualquer outro, entendido como
interior, que abriga as mais profundas raízes da musicalidade (Piedade, 2005).
Em 1928 e 29, Mário de Andrade faz sua primeira viagem ao nordeste e, em 1938, o
Departamento de Cultura do Estado de São Paulo, chefiado por este pesquisador, enviou ao
nordeste uma Missão de Pesquisas Folclóricas. Esta missão representou um fato histórico
importante nos estudos sobre música brasileira. Na década de 1940, Luiz Heitor Correa de
Azevedo, compositor e estudioso do folclore brasileiro, realizou quatro expedições a quatro
regiões do Brasil, alcançando um estado em cada uma delas. Nas regiões centro-oeste,
nordeste, sudeste e sul, foram visitados os estados de Goiás (1942), Ceará (1943), Minas
Gerais (1944) e Rio Grande do Sul (1945). Estas expedições revelam a aspiração deste autor
de construir um mapa da musicalidade brasileira em suas várias manifestações regionais:
retratos da musicalidade do Brasil (Azevedo, 1943; 1950; 1954).
Na década de 90, enquanto o espírito da world music imperava no cenário internacional,
músicos e musicólogos retomaram a busca do Brasil profundo. No Brasil, ocorre o
ressurgimento de práticas musicais tradicionais que estavam relegadas ao mundo tradicional
e que ganharam a mídia e o universo jovem: gêneros nordestinos, chorinho, entre muitos
outros. Neste período surgiram grupos musicais que praticaram suas próprias pesquisas,
como, por exemplo, o grupo paulista “A Barca”, que viajou pelo país coletando
informações sobre ritmos e danças como jongo, carimbó, coco e samba de roda, servindo de
base para o repertório de seus próprios discos.12 A partir desta década começa a se falar em
“resgate”, conceito importante e revelador,13 justamente como aquele de “tradições
ameaçadas”, idéias que hoje fundamentam ações de Estado e políticas culturais
internacionais14. Um esforço de mapeamento é o caso da série de programas para televisão
“Música do Brasil”, produto de expedições a várias regiões do Brasil sob o patrocínio da
12
A este respeito, ver Travassos (2003).
“Resgate” implica em salvamento: salvar da mudança. A ideologia do resgate se opõe à
aceitação das mudanças culturais, procurando congelá-las em sua autenticidade (imaginada).
14
Por exemplo, o registro e tombamento do patrimônio imaterial e programas da UNESCO (ver
Londres et al., 2004).
13
226
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música |
Abril Cultural15. Surgem também mapeamentos regionais, como o projeto “Bahia Singular
e Plural”.16
Os mapeamentos, portanto, continuam sendo entendidos como algo que deve ser feito, que
tem utilidade representacional na construção da brasilidade. Nesta primeira década do século
XXI, o Brasil volta-se para dentro mais uma vez, acreditando na autenticidade das raízes e
na profundidade de sua musicalidade. Estes esforços “musicográficos” merecem uma
abordagem musicológica mais fina e uma reflexão antropológica, no sentido de alcançar os
nexos sócio-culturais e os diversos significados envolvidos.17
Comentários finais
Pode-se observar que grande parte da nova e crescente bibliografia sobre música popular
publicada no Brasil é escrita por profissionais de áreas como jornalismo, estudos literários,
comunicações, ciências sociais. O interesse pelo estudo da música popular urbana no Brasil
se deu primeiramente entre radialistas, produtores, jornalistas, já que os musicólogos que se
interessavam pelo assunto se voltavam geralmente para o folclore, herança do início da
musicologia brasileira no modernismo (Ikeda, 2000). O envolvimento de musicólogos (de
formação) com os estudos sobre música popular ainda é incipiente, já que estes continuam
tendo um maior interesse na área da música erudita. Mesmo quando se torna objeto de
estudo acadêmico, a música popular brasileira continua sendo objeto de estudo
preferencialmente de áreas como estudos culturais, antropologia, sociologia, história, e a
música erudita continua a ser estendida como província de estudos da musicologia. Alguma
mudança neste cenário vem ocorrendo nos últimos anos, com a consolidação da superação
do positivismo e de uma postura mais reflexiva e relativizadora na pesquisa em música
(Lucas, 1995).
Longe de ser um fenômeno da musicologia brasileira, podemos perceber esta questão já em
Kerman (1987). Este autor afirmou que a música popular tem que ser entendida, em
primeiro lugar, em termos de uso e valores sociais, afirmação esta que até hoje é
compartilhada por muitos musicólogos. Mas podemos nos perguntar: por que o estudo da
música popular em especial deve ter essa abordagem sociológica? No início do capítulo de
introdução, quando o autor fala sobre o impulso de musicólogos em seus estudos, a paixão
pela música aparece como principal motivo para o mergulho nas estruturas musicais. Mas
será que essa justificativa não é suficiente também quando se trata de música popular? Esta
abordagem especialmente sócio-antropológica que têm os estudos em música popular talvez
se deva ao fato de que uma partitura de música erudita em geral pareça muito mais “rica” do
que uma de música popular. Porém, isto se deve não a uma falta de complexidade, mas a
escolhas de elementos para transcrição: se fossem transcritos com precisão todos os eventos
sonoros de uma peça de música popular, incluindo acentuações especiais, variações
microtonais, escrita para percussão, etc., a partitura se tornaria igualmente “rica”. Portanto,
não é preciso que se aplique conhecimentos da sociologia ou da antropologia como que para
preencher uma “lacuna de música” na música popular: não há esta “falta”. As perspectivas
sócio-culturais são fundamentais na compreensão de um repertório musical,
independentemente de se utilizar ou não partituras, seja música erudita ou popular. Como
15
Destacamos também a série de vídeos “Som da Rua”, da Zero Produções, e a “Cartografia
Musical Brasileira” (2000/2001), projeto coordenado pelo músico Benjamim Taubkin e
produzido pelo Itaú Cultural.
16
Coordenado por Fred Dantas, este é um projeto do Instituto de Radiodifusão Educativa da
Bahia (IRDEB), tendo produzido até o momento oito CDs.
17
Para Ikeda, “musicografia” é um procedimento pré-científico, mera descrição do objeto
estudado ou coleções de música e documentos de interesse geral (1998). Este autor argumenta
que o material musical per se não revela as redes de significado que envolvem sua produção
enquanto objeto histórico e o cultural (Lucas, 1998).
Aspectos da musicologia, etnomusicologia e música popular brasileira
227
afirmou Harrison (1963), “a função de toda musicologia é ser, de fato, etnomusicologia, ou
seja, ampliar sua gama de pesquisa de forma a incluir material que é qualificado como
sociológico”. A chamada “nova musicologia” dos anos 90 já vem praticando esta inclusão,
utilizando conhecimentos da semiótica, teoria da recepção, narratologia, relações de gênero e
antropologia (Agawu, 1996; Rosand, 1995), aproximando-se notadamente da abordagem
etnomusicológica, cujo cerne parece se manter como sendo a etnografia da música (Seeger,
1992).
Diante deste quadro, percebe-se que dentre os estudos dirigidos para música popular no
Brasil, poucos são os estudos que abordam com profundidade a música popular em seus
aspectos musicais, trabalhando, no nível técnico, detalhes estruturais-sonoros. Não há
dúvida que estudos com perspectivas diversas fornecem reflexões importantes sobre as
questões histórico-culturais. Entretanto, com raras exceções, o aspecto musical fica relegado
a um plano secundário. Pode-se dizer, com isto, que no Brasil a música popular não tem
sido estudada em sua plenitude cultural-musical. Espera-se que, a exemplo do que vem
acontecendo em outros países e com outros repertórios,18 as musicologias brasileiras
encontrem em breve formas de investigar o plano sonoro da música popular.
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Santa Catarina, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, 2000.
18
Por exemplo, no caso do jazz, ver o amplo estudo de Berliner (1994).
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230
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música |
Maiara Felippe Moraes: Graduanda do curso de Licenciatura em Educação
Artística – Habilitação em Música (UDESC); bolsista de iniciação científica
(PROBIC/UDESC); membro do grupo de pesquisa MUSICS (Música, Cultura e
Sociedade). Acácio Tadeu de Camargo Piedade: Doutor e Mestre e Antropologia
(UFSC), Bacharel em Música (UNICAMP); professor e pesquisador nas áreas de
musicologia/etnomusicologia e composição/arranjo no Departamento de Música
da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC); membro dos grupos de
pesquisa MUSICS (Música, Cultura e Sociedade)-UDESC/CNPq e MUSA (Arte,
Cultura e Sociedade na América Latina e Caribe)-UFSC/CNPq; membro d o
International Council for Traditional Music (ICTM), da Associação Brasileira de
Antropologia (ABA), da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em
Música (ANPPOM) e da Associação Brasileira de Etnomusicologia (ABET).
Congadas da Lapa: as músicas de um folguedo na educação musical1
Márcio Horning (UFPR), Guilherme Romanelli (UFPR)
Resumo: Este artigo apresenta elementos do trabalho de graduação homônimo, do
curso de Educação Musical da Universidade Federal do Paraná em 2005. Trata-se de
um estudo da Congada da Lapa, realizado entre março e outubro deste ano, que
objetivou levantar a história do folguedo, suas características mais marcantes, a
transmissão entre gerações, desvelando processos ‘nativos’ de ensino-aprendizagem
(etnopedagogias) e especialmente a sistematização de algumas de suas músicas,
compondo um material relevante para uma possível aplicação nas aulas de artes da
Lapa. Palavras-chave: congada lapeana, educação musical, etnopedagogia.
Introdução
A cidade da Lapa, por conta de sua importância histórica e sua participação heróica na
história do Brasil, apresenta neste início de século um potencial turístico crescente. Com
uma história de 236 anos, também é cenário de destaque no campo da cultura popular e
religiosa, especificamente na manifestação folclórica devocional da Congada “... folguedo2
de formação afro-brasileira, em que se destacam as tradições históricas, nos usos e
costumes tribais da Angola e do Congo, lembra coroação do rei Congo e da rainha Ginga
(Cascudo, 2000, p. 149)”. Por meio do projeto de revitalização3 ocorrido em 2004, este
folguedo tem acontecido com mais freqüência, ganhando espaço e destaque no cenário
atual.
A Congada da Lapa faz parte da história deste município, sendo apresentada de costume, no
dia 26 de dezembro de cada ano,4 na tradicional festa em louvor a São Benedito5, além de
outras datas.6 Entretanto, apesar de sua importância, apenas uma pequena parcela da
população lapeana conhece em detalhes a Congada além dos próprios participantes (Terno
de Congos).
Assim, o objetivo desta pesquisa foi levantar à história do folguedo, suas características
mais marcantes, a transmissão entre gerações, desvelando processos “nativos” de
aprendizagem “etnopedagogias” entre os Congos, e a sistematização de algumas de suas
músicas, compondo um material conciso que venha a servir de consulta para possível
aplicação nas aulas de artes da Lapa. Justificando esta pesquisa, por se tratar de uma
manifestação regional e importante (Congada), entende-se que suas músicas consistem em
1
Formalmente este artigo traz um recorte de um trabalho mais amplo, homônimo, elaborado como
pré-requisito para conclusão do curdo de Educação Musical da Universidade Federal do Paraná,
realizado neste corrente ano.
2
“Manifestação folclórica que reúne juntos os seguintes elementos: letra, música, coreografia e
temática ex: Congada (Cascudo, 2000, p. 241)”.
3
Projeto realizado em 2004 que teve como objetivo principal o resgate e a continuação das Congadas
no município da Lapa, dando-a condições de subsistência (DVD Congadas da Lapa, 2005).
4
Segundo dona Laura Baron, diretora da cultura da Lapa, “... ainda na época da escravidão, todo o dia
26 de dezembro - dia do santo preto São Benedito - os senhores davam as sobras da ceia de natal aos
negros para que festejassem ao seu modo (Stival.; Mota.; Markus.; 2005, p. 1)”.
5
Também chamado "Santo Preto", este santo é objeto de devoção dos Congos, os quais, segundo a
história, foram os responsáveis pela construção da primeira capela para abrigar a sua imagem.
(Fernandes, 1977, p. 4).
6
A Congada, após o projeto de revitalização, também vem sendo apresentada em datas cíveis e
comemorativas como o aniversário da cidade da Lapa, o que a tornou atração turística do município.
232
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
um material relevante para o ensino da arte, especificamente na educação musical, pois ao
mesmo tempo em que se resgata o folclore local que é rico pela sua diversidade cultural,
ensina-se música partindo de um universo próximo dos alunos.
A metodologia empregada para esta pesquisa constou de três fases distintas:
Coleta de dados: Esta primeira fase constou no levantamento de todo material disponível
encontrado para elaboração do trabalho. Dentre as técnicas utilizadas no levantamento dos
dados, foram empregadas à documentação indireta e a documentação direta, seguindo a
classificação de Lakatos e Marconi (1991): A documentação indireta implicou no
levantamento de dados de fontes primárias (pesquisa documental) e fontes secundárias
(pesquisa bibliográfica). A pesquisa documental levantou arquivos públicos (pasta de
documentos sobre Congadas), guardados em pasta separada na biblioteca municipal da
Lapa. Na pesquisa bibliográfica, foram encontradas inúmeras fontes sobre o assunto em
jornais e revistas, na Internet, em meios audiovisuais, como o dvd Congada da Lapa, 2005,
e publicações em livros, teses e pesquisas, como o material coletado na década de cinqüenta
pelo antropólogo Jose Loureiro Fernandes (1903-1977).7 Estes dois últimos decisivos para
construção do referencial teórico. A documentação direta consistiu nos dados coletados
diretamente pelo pesquisador em campo, por meio da observação direta intensiva.8 O
levantamento de campo ocorreu entre meses de abril a julho do ano de 2005, quase todos
feitos no local de ensaios do grupo.
Processamento do material coletado: A segunda fase esteve concentrada na seleção do
material utilizado para elaboração de todo referencial teórico. Foram feitas as transcrições e
editorações das músicas das Congadas relacionadas pelo pesquisador para estudo com o
auxílio do software Finale 2005, que permite conferir por meio da reprodução eletrônica, a
acuidade da transcrição.
Análise das informações recolhidas: Nesta fase, constaram as análises da forma (foram
verificados os temas, introduções e refrões), harmonia (apurou as tonalidades das musicas)
e Instrumentação (constatou os instrumentos e respectivas funções dentro da música).
Constam ainda desta fase as análises rítmica e melódica, cujos processos ainda estão em
andamento e não foram aqui dispostos.
As Congadas da Lapa
Breve histórico do folguedo
As Congadas se difundiram no Brasil em meados do século XVII (Cascudo, 2000, p. 149).
No Paraná, “... as mais antigas referências das Congadas remontam ao século XIX durante
o Império Brasileiro (Festas Religiosas e Populares. Congadas in http://www.lapa.pr.gov.br
7
“... Fernandes formou-se médico em 1927 pela Faculdade Nacional de Medicina do Rio de Janeiro.
Entre os cargos que ocupou, se destacou como professor da UFPR. Foi fundador do Museu de
Arqueologia e Artes Populares, da UFPR. Dr. Loureiro era ainda membro da Academia Paranaense
de Letras e do Instituto Histórico Geográfico e Etnográfico do Paraná (Garcia, 2000, pp. 205–207)”.
8
De acordo com as autoras Lakatos e Marconi (1991), consiste nas técnicas de observação (fotos e
anotações em diários), e entrevista (feitas neste caso de forma mais aberta, em conversas informais
nos ensaios e na casa dos participantes).
Congadas da Lapa
233
/lapa_folk1.html. Acessado em 06/06/05”.9 Este folguedo poderia ser encontrado nos
municípios de Curitiba, Castro, Lapa, e na antiga região povoada no norte do Estado,
conhecida como Vale do Ribeira (Fernandes, 1977, p. 1). Atualmente, neste estado a
Congada é mantida somente no município da Lapa.
Segundo Dr. Antônio Garcia, professor e pesquisador paranaense, “... quando Loureiro
Fernandes assumiu o cargo de Secretário da Educação e Cultura, entre 28/02/48 e 03/01/49,
ele empenhou-se na realização da primeira Congada da Lapa10 (Garcia, 2000, p. 205)”.
Ainda de acordo com o autor, em 1976, “... uma segunda edição da Congada da Lapa foi
realizada durante festejos de abertura do teatro São João. Reorganizada por Roselys
Vellozo Roderjan, com patrocínio da Campanha em Defesa do Folclore Brasileiro (ibid,
2000, pp. 205–206)”.
Por motivos de abandono, falta de recursos e desinteresse das autoridades locais, as
Congadas da Lapa ficaram esquecidas a partir de 1980 permanecendo por 17 anos sem
apresentação. Por ocasião da comemoração dos 228 anos da cidade da Lapa, as Congadas
foram reapresentadas no ano de 1997, sendo Benedito Arcanjo, também conhecido por "seu
Barraca", filho do antepenúltimo Rei do Congo, um dos responsáveis pela reunião do grupo
novamente.
A partir do ano de 2003, novos horizontes vieram quando o grupo de Congada da Lapa foi
convidado a participar do filme Cafundó, dirigido por Paulo Betti e Clóvis Bueno. Por meio
do filme, as Congadas foram projetadas nacionalmente e em 2004, um grande projeto de
revitalização foi feito, visando à continuidade do grupo de forma independente.
Algumas de suas características mais acentuadas
As Congadas da Lapa “...constituem-se de diálogos declamados, danças e cantos, sendo
representadas, só por homens, com exceção acompanhado de representações, com todos os
personagens caracterizados com roupas vistosas (Filho, 1979, p. 103)”.
O folguedo conta com cinqüenta e dois integrantes atualmente, dentre eles, quatorze são
crianças, chamados Conguinhos (DVD Congadas da Lapa, 2005). São todos negros e
mulatos de origem afro-brasileira, pertencentes em sua maioria a uma única família, a dos
Ferreira.
A Congada da Lapa é formada por três textos conhecidos dos Congos, mas pela dificuldade
de ensaio, há muitos anos apenas um é apresentado:
... Há recordações, cheias de orgulho, da Congada de 1883, na Lapa. Eram
conhecidos três "papés" de Congada; o da atual denominado Dia Solene; outro
chamado Dia Grandioso e finalmente o Ilustre Vassalo. Este ultimo texto
também é conhecido por Africanada, pela abundancia de termos africanos nas
suas falas. Pela grande dificuldade de ensaiar os dois últimos, pela extensão e
9
Após inúmeras pesquisas, esta foi à única fonte encontrada pelo pesquisador que informa a data da
chegada deste folguedo ao Paraná.
10
Garcia provavelmente referiu-se a 1ª montagem das Congadas feita para gravação e documentação,
ou ainda, a primeira montagem após o fim da escravidão, o que parece sensato, visto que uma das
formas encontradas pelos congos para manutenção do folguedo, foi recorrer aos órgãos públicos.
234
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
pelo vocabulário, há muitos anos a apresentação limitá-se ao Dia Solene
(Fernandes, 1977, p. 5).
O texto original das Congadas é conservado em um caderno antigo,11 “... tratá-se de um
manuscrito repassado de geração a geração pelos Congos desde 1935, antes disto, as
evoluções e os textos eram passados por meio da transmissão oral (Lanza, Beto, 2001, p.
1)”. Ele é tratado com grande apreço pelos Congos, e recorre-se a ele sempre que se há
qualquer dúvida de alguma passagem do texto, do bailado ou da música.
Há também outras relíquias que são guardadas com orgulho pelos Congos, como chapéus,
espadas e outras indumentárias (roupas). Após a revitalização ocorrida em 2004, estes
passaram a ser usados nos ensaios do grupo.
A devoção de fé dos congos a São Benedito
Um dos principais motivos da continuação das Congadas aos dias atuais, se dá pela grande
devoção popular de fé a São Benedito, o "Santo Preto". Esta devoção já é antiga e pode ser
verificada pela primeira capela construída para abrigar a imagem do santo,12 construída no
século passado por escravos (negros que são ancestrais dos atuais protagonistas das
Congadas). De acordo com a história, a fé está ligada à esperança de dias melhores, vinda
desde os tempos de escravidão aos dias atuais (visto que ainda hoje se trata de famílias de
classe social menos favorecida).
O culto ao santo se dá de maneira tão grande, que ocorre além das fronteiras da cidade da
Lapa, como conclui Fernandes:
... inegável a influência espiritual que a cidade da Lapa exerce através do culto
de São Benedito, não só no próprio município da Lapa, mas também nos
municípios vizinhos e alguns do estado de Santa Catarina Basta olhar a
localização de destaque do Santuário de São Benedito da Lapa, para notar que
está edificado no lugar mais alto e aprazível da cidade (Fernandes, 1977, p. 4).
Nos versos do enredo, a presença do santo negro permeia toda encenação:
... Meu São Benedito
Vós fostes cozinheiro
Hoje ele é um santo
De Deus verdadeiro
Meu São Benedito
Santinho dos Pretos
Ele fala na boca
11
Também chamado de Caderno do Embaixador, este manuscrito é guardado a sete chaves pelos
congos remanescentes, que não o emprestam mais de maneira alguma, segundo seu Ney (embaixador
da Congada da Lapa), em entrevista ao pesquisador, o motivo se dá pelo fato da conservação do
mesmo (Ney, abril de 2005).
12
“... A primitiva imagem venerada no Santuário é de madeira, imagem dos tempos coloniais, rústica
com pequeno resplendor de prata, medindo 70 centímetros de altura, em torno dessa imagem
formaram-se lendas (Fernandes, 1977. p. 4)”.
Congadas da Lapa
235
Responde nos peito
(Fernandes, 1977, p. 7).
As festas de São Benedito da Lapa, sempre muito concorridas na comunidade, contaram
para sua realização com o auxílio da Irmandade do Milagroso Santo, da qual participavam
ativamente alguns membros figurantes da própria Congada (ibid, 1977, p. 1). A este fato, se
deve provavelmente, a não-dissociação das Congadas à devoção que os Congos consagram
a São Benedito, como relatou Fernandes:
...É uma representação profana, mas profundamente impregnada de
religiosidade, e a simples leitura do texto demonstra, a sobejo, como vem
impregnada de respeito e amor e traduzindo profundo sentido religioso do
auto. Lá estão os versos de admirável louvor ao Santo e a alva bandeira
estrelada de prata, objeto de tantas reverências, a ostentar no seu centro a
esfinge do Santo Negro, trazendo nos braços o Menino Deus. (ibid, 1971, p.
5).
Como símbolo de destaque, a bandeira anuncia o santo, o sagrado, a fé e a festa. Ao seu
lado, são prestadas homenagens a este conjunto, além de agradecimentos por graças
recebidas e realização de novas promessas. Ela esta presente durante toda encenação e tem
importância fundamental no desenrolar do folguedo.
Apesar de não encenarem todos os anos, como já ocorreu em tempos anteriores, os Congos
continuam devotos e a interrupção não significa o rompimento do compromisso, se
pudessem dançariam a Congada anualmente, pois “... no Congo uma promessa é paga com
participação direta do devoto da dança. A dança é, portanto eficaz em si mesma. Seja como
condição e milagre seja como atualização do compromisso feito na promessa (Brandão,
1983, p. 78)”.
Entretanto, neste folguedo nem sempre os participantes dançam para pagar promessas ou
fazê-las. Em algumas ocasiões eles dançam apenas porque gostam e as pessoas também
gostam de vê-los dançar. Atualmente (após a revitalização), os Congos da Lapa passaram a
fazer apresentações em troca de cachês aos participantes, o que vem dando mais entusiasmo
ao grupo, especialmente tratando-se de pessoas economicamente desfavorecidas.
O bailado e sua indumentária: conflito de duas cortes com marqueação de costumes
portugueses
O bailado da Congada é organizado basicamente em duas cortes: Rei Zumbi do Congo com
a sua fidalguia13 e a Embaixada da Rainha Ginga do Reino de Metícola na Angola, também
com sua fidalguia. Estes grupos são ordenados de dois modos distintos: os vassalos do rei
Congo ficam dispostos em filas duplas paralelas, em frente de seu soberano, já os vassalos
da rainha Ginga ficam dispostos em filas quadruplas paralelas e também em circulo,
conforme a evolução das cenas e das musicas, e se posicionam mais ao fundo (obedecendo
ao fato de não participarem dos instantes iniciais da dança).
13
Fidalguia se refere à representação das pessoas que freqüentam a corte, incluindo príncipes,
vassalos e serviçais.
236
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Sintetizando o enredo da Congada, a história representa um mal entendido entre ambas (do
rei e da rainha). O conflito é travado por meio de diálogos agressivos, na forma de versos,
ditos pelos participantes e simulando uma guerra:
... Oi lá vois secretário.
Vai me vê que gente é essa.
Entrando meu Reino adentro.
Sem ordem e sem licença.
(Filho, 1979, p. 103).
As falas são intercaladas com danças14 e evoluções com espadas e lanças ao som dos
instrumentos. Após os “desentendimentos”, a embaixada da rainha Ginga é dominada e tem
seus integrantes presos.
Ao final, desfaz-se o mal entendido, os membros da embaixada da Ginga são perdoados e
todos cantam e prestam louvores a São Benedito, que se torna a razão principal da
Congada, como o santo que influenciou o perdão do rei.
Nas Congadas apresentadas na Lapa, nota-se influência dos costumes portugueses:
... O Rei e sua corte constituem sem dúvida uma marqueação da monarquia
portuguesa. Há na Congada da Lapa, uma influência muito acentuada dos
costumes da nobreza portuguesa, influencia que provavelmente se exerceu
através dos conhecimentos que tinham dos antigos hábitos da nossa corte, que
se refletiam os dos antigos fidalgos portugueses. (Fernandes, 1977, p. 5).
Esta influência também ocorre nas indumentárias usadas para encenação do folguedo, que
sofreram mudanças após a escravidão (deixando de ser vistosas e luxuosas):
... É a vós unanime [SIC], que, antigamente, fino era o vestuário, pois, quando
eram cativos, vestiam-se melhor que agora, que são forros. Sente-se nessas
narrativas, a influência da instituição social que era a escravidão, na realização
e no desenrolar da Congada. Era a emulação, entre os senhores, a melhor
apresentarem seus negros, com a colaboração das sinhás [SIC], para que, nos
festejos públicos, os Congos representantes da escravaria de casa louvassem o
auto, não só pelo fiel desempenho de seu papel, mas pelo apuro da
indumentária com a qual se apresentavam. (Fernandes, 1977, p. 5).
Atualmente (após revitalização em 2004), novas roupas puderam ser adquiridas, elaboradas
de acordo com as antigas, dando um brilho complementar ao espetáculo.
Revitalização das Congadas da Lapa: um projeto de resgate do folguedo
Ao final do ano de 2004, a agência de desenvolvimento Lux,15 através da lei de incentivo à
cultura e com o patrocínio da estatal Petrobrás, elaborou um grande projeto de revitalização
14
A dança caracteriza-se “... por uma performance multi-expressiva de cores, formas, movimentos,
sons, palavras, gestos, disputas, união, competitividade, ... (Arroyo, 2003, p. 15)”.
15
“... agência de desenvolvimento, uma entidade que desenvolve projetos na area da cultura (Correio
Metropolitano, 15 de outubro de 2004, p. 6).
Congadas da Lapa
237
para as Congadas da Lapa. O projeto foi apresentado ao Terno de Congos e discutido em
longas reuniões e conversas envolvendo toda a comunidade de Congos.
A proposta do projeto foi manter a Congada lapeana “o mais original possível”, mas com
nova estrutura, roupas, adereços e outros elementos. O projeto, patrocinado pela Petrobrás,
investiu R$ 1.000.000,00 em recursos que foram divididos de maneira igual entre Congadas
e reforma do Teatro São João.16
Por meio da revitalização, foi possível aprimorar os passos do bailado com assistência de
um coreógrafo, que estudou toda a dança e posteriormente auxiliou nos ensaios. Novas
roupas puderam ser providenciadas de acordo com as originais, com o apoio de uma
estilista e das costureiras do grupo. Novos adereços foram adquiridos (jóias e acessórios), e
o grupo agora conta com aparelhagem completa e moderna de som para apresentações em
lugares abertos, o que levou a necessidade do recrutamento de um técnico de som para
auxilio nas montagens.
O projeto inicial ainda previu o aprimoramento dos músicos, que tiveram aulas na Casa da
Música da Lapa com professores renomados, entre os quais Rogério Gullin, professor de
violão/viola caipira e o professor de acordeom, gaita ponto e de botão conhecido pelo
apelido de “Mancha”.
Com a revitalização, as Congadas da Lapa ganharam maior brilho e destaque, e estão cada
vez mais integradas ao roteiro turístico da cidade como um dos “espetáculos que só a Lapa
tem”,17 Ainda falta um local para os ensaios, mas já existe um projeto de reforma de um
barracão em andamento. O objetivo principal do projeto, segundo os organizadores, “foi dar
condições aos Congos da Lapa de manterem viva esta manifestação folclórica no decorrer
dos anos vindouros (DVD Congadas da Lapa, 2005)”.
Congos e Conguinhos: a continuidade se dá pela transmissão entre gerações
(etnopedagogias)
A Congada da Lapa provém das primeiras famílias de Congos do município, que chegaram
à região há mais de cinco gerações (Santos, 1979, p. 104). A sua tradição vem sendo
mantida ao longo dos anos pelo aprendizado da transmissão oral, ou seja, de pai para filho,
Congo para Conguinho.
A necessidade de se manter a tradição do folguedo, pode ser notada na preocupação dos
mais velhos em manter a identidade cultural do grupo (herança delegada por seus pais).
Eles levam seus filhos (Conguinhos), desde muito cedo para os ensaios, para que possam
aprendera cultura herdada dos antepassados.18
16
“... Construído em estilo elisabetano, o Teatro São João continua sendo o centro cultural da Lapa.
Com capacidade para 212 espectadores, foi construído em 1873 e possivelmente inaugurado em 1876.
Dádiva dos tropeiros. (Revista Cidades do Brasil, junho/2002)”.
17
Frase do encarte das Congadas para distribuição turística, elaborado pela secretaria da cultura da
Lapa.
18
Os pais dos conguinhos de hoje, herdaram este costume de seus pais, que por sua vês também
herdaram de seus pais e assim sucessivamente, o que evidencia a importância do parentesco na
conservação do folguedo, pois são os mais novos que vão perpetuar a tradição.
238
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Nas Congadas da Lapa, “seu” Miguel Ferreira (rei Congo) e seu irmão Ney (embaixador),
ambos nascidos e residentes neste município, são os responsáveis principais pelos
encontros, reuniões e ensaios do grupo, tarefa às vezes desafiadora, como contou Miguel:
... A jornada longa de trabalho semanal às vezes dificulta bastante os ensaios
do grupo, que encontra muita dificuldade em reunir todo pessoal (Miguel,
abril de 2005).
Os textos, as falas e definições de papeis ficam por conta do Rei da Congada,19 que possui
lugar de destaque na hierarquia. Segundo informações dos próprios Congos, por ocasião
dos ensaios, ele pode anotar em um pedaço de papel a fala de cada um dos participantes,
que devem decorá-las, assim o rei reconhece nos ensaios o papel de todos e pode ajudá-los.
Geralmente os mais velhos já sabem suas falas décor, repassando-as aos mais novos.
Da mesma forma dos textos e da dança, as músicas também são ensinadas aos mais novos
nos ensaios, como o caso do filho de seu Ney Ferreira, de apenas cinco anos de idade, que
já possui e toca um tambor (especialmente desenvolvido para ele, em tamanho menor), em
todos os ensaios e apresentações do grupo. Sempre acompanhado dos mais velhos, o
menino vai aprendendo o batido pelo ato da escuta, da imitação gestual e do fazer musical
dos músicos mais experientes.
De acordo com Arroyo, ocorrem aí processos “nativos” ou “informais” de aprendizagem,
“etnopedagogias” (Arroyo, 2003, p. 16). A educação não está subordinada a professores e
educadores na escola, ela acontece em locais diferentes, de acordo com os ensaios do
grupo. Nestes múltiplos espaços, os mais velhos por meio da imitação e do fazer musical e
gestual, procuram demonstrar aos mais novos seus conhecimentos do folguedo.
Souza (2001), falou desta real possibilidade de aprendizado em seu artigo ‘múltiplos
espaços e novas demandas’, apresentado no X encontro anual da abem, onde relatou:
... Na área especifica da educação musical, a tarefa de ensinar e aprender
música também já não é exclusividade da escola. Crianças e jovens talvez
“aprendam” musica, hoje, mais em seus ambientes extra-escolares do que na
escola propriamente dita, pois não há dúvida de que é possível aprender e
ensinar música sem os procedimentos tradicionais a que todos nós
provavelmente fomos submetidos (Souza, 2001, p. 85).
A Congada é um exemplo de aprendizado extra-escolar, onde os mais novos aprendem
música (entre outras coisas), no ato do fazer musical implícito no ritual. Arroyo (1999), em
sua tese de doutorado, estudou de maneira aprofundada estes processos de educação
ocorridos no contexto do congado, segundo a autora:
... na linha interpretativa do ritual como veiculador de mensagens, conforme
Leach (1992), estas são constituídas e constituidoras no cenário cultural. Esta
dialética traz implícito um processo de aprendizagem em permanente ação. A
teoria do ritual aponta para seu caráter pedagógico (Arroyo, 2003, p. 15).
19
"... OS REIS CONGOS sempre foram muito respeitados na comunidade e mesmo as pessoas mais
gradas tinham-lhes grande consideração. Sua presença na CONGADA era solicitada com empenho e
indispensável era a sua orientação nos ensaios (Filho, 1979, p. 101)”.
Congadas da Lapa
239
A autora exemplifica citando dois autores, Damatta e Brandão: “... o ritual é um dos
elementos mais importantes não só para transmitir e reproduzir valores (Damatta, 1990, p.
26 in Arroyo, 2003, p. 15)”. “... tudo o que acontece (no ritual) ensina (Brandão, 1984, p.
35 in Arroyo, 2003, p. 15)”.
Para Arroyo, o fazer musical ocupa lugar de destaque no ritual, tornando-se um dos
símbolos dominantes20. Segundo a autora “... por meio das ações de tocar, dançar, cantar,
fazer música, sentidos de continuidade, identidade, resistência, pertencimento são
constituídos, reafirmados e aprendidos (ibid, 2003, p. 15)”.
Música das Congadas da Lapa
Coleta do material
Feitos exaustivos levantamentos bibliográficos não foi encontrada pelo pesquisador a data
das músicas relacionadas para o estudo. O primeiro registro foi feito por Fernandes (1951),
que as transcreveu e editou.
Para levantamento das musicas, foi utilizado o DVD Congadas da Lapa (elaborado,
gravado e lançado pela agência Lux em março de 2005), e o material recolhido por
Fernandes, fundamental para elaboração das transcrições.
As quatro músicas selecionadas para estudo foram:
Calunga.
Não queremos guerra.
Dança dos bastões.
Chamada dos Conguinhos.
Transcrição e Editoração das Músicas.
Como a gravação foi feita ao vivo e ao ar livre, apesar dos novos recursos tecnológicos
adquiridos (aparelhagem), e um técnico de som (auxilio e montagem), uma das dificuldades
principais encontradas pelo pesquisador, foi que em alguns trechos não é possível
reconhecer auditivamente parte das letras cantadas, a gravação não traz legenda. Então foi
de grande valia o material coletado na década de cinqüenta por Fernandes. Com ajuda de
um violão (como referencial de afinação), ritmos e notas foram escritos na partitura.
Feitas as transcrições, a próxima etapa foi a editoração das músicas para partitura, feita com
por meio do software Finale 2003 (que permite ao redator através dos meios eletrônicos
conferir a veracidade daquilo que se está transcrevendo). Como exemplo, segue abaixo uma
das transcrições feitas:
20
A autora explica que “(...)como símbolo, ele participa do processo dialético de veiculação de
mensagens(...)”. (Ibid, p. 15.).
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
240
Fig. 1: exemplo de transcrição de uma das músicas selecionadas para estudo.
Dando seqüência aos processos de seleção, transcrição, e editoração das musicas
selecionadas, o próximo passo elaborado foi à análise.
Propondo uma possível aplicação na escola, o estudo de vários aspectos permitiu que um
material mais elaborado fosse levantado, para dar subsídio a um ensino de música que leve
em consideração as manifestações culturais do município da Lapa.
A análise compreendeu cinco aspectos, dos quais apenas três foram abordados neste artigo:
a análise da forma, da harmonia e da instrumentação utilizada. A análise melódica e as
questões rítmicas não foram abordadas pelo fato de ainda não estarem concluídas pelo
pesquisador.
Analise da forma
Levantou em cada uma das músicas as frases musicais, que foram representadas por vogais
(A, B, a’). A tabela traz ainda a determinação do número de compassos, introdução ou
refrão, como segue:
Música
Forma
Refrão
Introdução
Número de
Compassos
Calunga
A / a’
Não
Não
08*
Não queremos guerra
A / a’
Não
Não
08*
Dança dos bastões
A / a’ / a”
Não
Não
12*
Congadas da Lapa
Chamada dos Conguinhos
Intro. / Ref. / A / Ref. /
A / B.
241
Sim
Sim
26
Tabela 1: Forma; relação das musicas estudadas e suas respectivas formas.
* Para estes temas, ocorrem repetições até o final da cena, que varia de acordo com a apresentação.
Nas musicas analisadas notou-se um certo padrão de composição em sua forma. Das quatro
musicas transcritas, apenas uma possui introdução e refrão, nas outras apenas ocorre uma
variação do tema principal.
Harmonia
A análise harmônica apresentou as tonalidades de cada musica. A tabela a seguir mostra as
tonalidades praticadas nas Congadas de 1951 (transcritas por Fernandes) e as praticadas em
2005 (selecionadas e transcritas pelo pesquisador), para fins de comparação:
Tonalidades
Músicas
1951
2005
Calunga
Mi bemol maior (Eb)
Sol maior (G)
Não queremos guerra
Fá maior (F)
//
Dança dos Bastões
Lá maior (A)
//
Chamada dos Conguinhos
Fá maior (F)
//
Tabela 2: Harmonia; relação das tonalidades encontradas nas musicas em 1951 e em 2005.
Apesar das tonalidades permanecerem maiores, nota-se que foram transpostas todas para
sol maior (2005). Segundo os músicos do grupo, esta transposição para mesma tonalidade
foi um meio encontrado para facilitar a prática de conjunto entre ambos.
Instrumentação Utilizada.
As Congadas da Lapa atualmente contam com os seguintes instrumentos: uma viola, um
violão, duas sanfonas (sendo uma delas um acordeom e um a gaita ponto), uma rabeca21,
três xeques-xeque,22 três tambores, sendo dois maiores (adultos) e um menor, (infantil),
distribuídos e organizados conforme Tabela 3:
Instrumento
Função
Família
Nº de Instrumentos.
Viola
Harmonia
Cordofones
01
21
É uma espécie de violino, de timbre mais baixo, com quatro cordas de tripa, afinadas em quintas,
sol, ré, lá, mi, e friccionadas com arco de crina, untado no breu. Tem sonoridade ranfenha,
melancólica e quase inferior (Cascudo, 2000, p. 567). Vale lembrar que a rabeca utilizada na Congada
é a do Fandango do Paraná, possuindo apenas três cordas, mas as características são idênticas.
22
Caracteriza-se “... por uma cabaça grande, envolta num trançado semelhante à rede de pescaria,
tendo presos pequenos búzios nos pontos de intersecção das linhas. Também é conhecido por xaquexaque, cabaça, ágüe, piano-de-cuia (Cascudo, 2000, p. 10)”.
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
242
Violão
Harmonia
Cordofones
01
Rabeca
Melodia
Cordofones
01
Acordeom
Melodia/harmonia
Aerofones
01
Gaita Ponto
Melodia
Aerofones
01
Xeque-xeque
Rítmica
Idiofones
03
Tambor
Rítmica
Membranofones
03
Tabela 3: Instrumentos; relação dos instrumentos utilizados, suas famílias e suas
respectivas funções no conjunto.
Como se pode notar na tabela acima, o único instrumento a variar em função é o acordeom,
que em algumas musicas cumpre a função da harmonia e em outras da melodia. Os
tambores juntamente com os xeques-xeque fazem à marcação rítmica e são eles que
conduzem o andamento de todas as músicas. Geralmente tocam em ostinato (a não ser
quando há improviso de um músico mais experiente), e são considerados muito importantes
em função no do folguedo, pois em algumas das cenas do bailado, o ritmo da dança segue o
ritmo dos tambores. A viola e o violão são responsáveis pela base harmônica (acordes), e
finalmente a rabeca e a gaita ponto fazem à linha melódica, geralmente em uníssono.
Considerações finais
Ao auge de seus 239 anos, a cidade da Lapa (importante marco histórico do Paraná), vive
um período calmo de conquistas no campo social. Recentemente ganhou sua primeira
faculdade, a FAEL (Faculdade Educacional da Lapa), e está no roteiro turístico do Paraná,
com um potencial crescente.
Um de seus destaques é a Congada (que ganhou novo impulso após o projeto de
revitalização [2004]). Este folguedo apresenta resistência à cerca de dois séculos na cidade,
sendo o único do Paraná a ainda ser apresentado.
Ao longo do trabalho de campo, com o estudo detalhado do folguedo, algumas questões de
grande relevância foram surgindo:
A Congada faz parte da identidade cultural do lapeano;
Na Congada ocorre um processo informal de educação;
O folclore é uma possibilidade real de ensino de música;
Estas questões foram verificadas após contato direto do pesquisador com os Congos em
seus ensaios.
A primeira questão é sobre identidade cultural lapeana. Apesar de não se saber a data exata
da 1ª congada realizada na Lapa, por meio dos estudos de várias fontes, a probabilidade
maior é que remontam a meados do século XIX neste município, na época colonial, visto
que trata-se de um auto trazido pelos ancestrais escravos das primeiras famílias de Congo
da Lapa.
Congadas da Lapa
243
A Congada da Lapa já ultrapassou cinco gerações, ou seja, sua história é quase tão antiga
quanto a história do próprio município. Por esta razão, atualmente são consideradas como
parte da identidade cultural dos lapeanos, tratadas por alguns pesquisadores como raiz no
município. Este fato é motivo de orgulho entre os Congos remanescentes da Lapa.
Outra questão se refere ao processo implícito de educação que ocorre a cada ensaio
realizado pelo grupo (no qual as gerações de agora estão sendo ensinadas). Esta discussão
vem ganhando forca entre os educadores, que a cada dia, estão mais atentos aos “múltiplos
espaços e novas demandas do mercado” (Souza, 2001, p. 85).
Como já falado anteriormente, o aprendizado “informal”, ou seja, fora da escola, pode se
dar de maneira muitas vezes mais eficiente que o escolar( ibid, 2001, p. 85). Arroyo (2003)
também explana a este respeito, e vai além, a autora desenvolve uma parte de sua tese de
doutorado estudando os processos de ensino-aprendizagem no contexto do Congado. A
autora relata que ao se estudar estes processos que chama de “nativos” de educação
(etnopedagogias), o pesquisador está ampliando seu próprio universo como educador.
A terceira questão é referente a uma velha discussão que abrange desde folcloristas a
cientistas sociais. É sabido que o folclore é dinâmico, ele atravessa gerações e se mantém
vivo entre nós, os folguedos são prova disto (exemplo, cirandinha).
Entretanto, ao se pretender trabalhá-lo na escola, algumas questões básicas devem estar
bem claras ao educador, por exemplo: O que se quer trabalhar ao usá-las em sala de aula e
quais ferramentas devem ser utilizadas pelo educador para repassar este conhecimento.
Estas questões são fundamentais para que o processo de ensino não ocorra em vão, e possa
estar a serviço da educação. Este é um dos desafios do educador, possuir habilidade para
trabalhar tais processos e aproveitá-los no ambiente escolar.
Por fim, este trabalho não possui pretensões de nenhum método prático sobre Congadas. A
intenção deste estudo foi levantar alguns aspectos do folguedo para uma possível aplicação
em sala de aula, como material de apoio para consulta.
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do Folclore - Goiânia - Universidade Federal de Goiás, 1853.
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Filhos da Capela, com vistas a uma aplicação didática”. Dissertação de Mestrado, Setor de
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244
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
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LAZ012005 Produção Audiovisual. Março/2005.
FERREIRA, Miguel. Entrevista cedidas ao pesquisador em 17 de abril de 2005, em sua residência na
Lapa/PR.
Márcio Horning é graduando do 4º ano do curso de Educação Musical pela
Universidade Federal do Paraná. Desenvolveu atividades como monitor da disciplina
de atividades práticas complementares com os professores Valter Lima Torres
(UFPR) e Beatriz Senoi Ilari (UFPR), no 1º semestre de 2005. Atualmente é professor
auxiliar no curso de musicalização infantil do departamento de música desta
universidade.
Manifesto 1946: “O Banquete” do Grupo Música Viva
Marcus Vinícius Marvila das Neves (UFES)
Resumo: Esta comunicação é uma exposição inicial do trabalho que pretende estudar
a convergência de idéias entre o musicólogo nacionalista Mário de Andrade e o grupo
Música Viva, tendo como base O Banquete, (último trabalho do autor), no qual
observamos vínculos com a concepção do Manifesto de 1946 e, a posteriori, apontar
as sínteses geradas por este encontro entre duas posições distintas e marcantes na
música brasileira. Palavras-chave: Música Viva, Manifesto 1946, Mário de Andrade,
Banquete.
Esta comunicação é uma exposição inicial do trabalho de pesquisa que estamos realizando
sobre a importância do Manifesto de 1946 do grupo Música Viva na história da música
brasileira do século XX e está sendo desenvolvido no âmbito do Núcleo de Estudos
Musicológicos1 coordenado pela Profª. Dr.ª Mónica Vermes da Universidade Federal do
Espírito Santo.
O interesse pela produção de um trabalho de pesquisa com uma temática relacionada ao
grupo Música Viva foi despertado durante o curso da disciplina de História da Música I, na
qual abordava-se também a história da música brasileira. Como trabalho final da disciplina,
apresentamos um trabalho expositivo e uma monografia sobre a história do Música Viva. O
contato com o tema e a descoberta de afinidades com as idéias adotadas pelo grupo e
principalmente por Koellreutter, nos levaram a dar prosseguimento a uma pesquisa
acadêmica mais profunda sobre este tema, que, por sua vez, só recentemente tem sido
abordado de forma mais ampla pelos pesquisadores nacionais. Chegar à decisão de
trabalhar com o cruzamento das idéias de Mário de Andrade e do grupo Música Viva2 foi
fruto de um extenso trabalho de leitura, visto que a possibilidade de estudar apenas o
histórico do grupo seria algo redundante, já que o musicólogo Carlos Kater publicara um
trabalho bastante detalhado sobre o assunto.
Nesta comunicação, apresentemos dois tópicos que pertencem à redação oficial do projeto:
Introdução e Justificativa, e Objetivos. Logo em seguida, já começaremos a expor alguns
tópicos desenvolvidos no trabalho.
Introdução e Justificativa
As três primeiras décadas do século XX da história da música brasileira são marcadas
pelo embate entre o modernismo nacionalista e a cultura musical da época, centrada em
posturas provenientes do período romântico, com uma estética ainda voltada apenas para a
beleza, e para a aceitação e apreciação da obra pelo público.
O surgimento do Movimento Modernista, principalmente com a Semana de Arte
Moderna de 1922, teve fundamental importância para o início do desenvolvimento de um
processo de reflexão e atualização em todos os campos das artes e da literatura brasileira.
Mais tarde, no campo musical, o modernismo provocaria um novo embate, agora, entre as
1
Este trabalho foi concebido de forma independente e mediante à criação do Núcleo de Estudos
Musicológicos, foi incorporado ao mesmo. Lembramos que o Núcleo está em processo de registro no
CNPq e na Pró-reitoria de Pesquisa da UFES.
2
Durante a comunicação será exposto o porquê do cruzamento de duas idéias aparentemente tão
contraditórias.
246
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
suas idéias para a formação de uma música nacional e as novas correntes que surgiriam a
partir da década de 1930. Mas o florescer das novas idéias modernistas foi essencial para
acabar com o marasmo na vida artística brasileira no começo do século XX. Graça Aranha,
um dos grandes nomes do movimento, na sua conferência proferida na abertura da Semana
de Arte Moderna, no dia 13 de fevereiro de 1922, afirmou (Teles, 2000, pp. 280–286):
A remodelação da estética do Brasil iniciada na música de Villa-Lobos, na
escultura de Brecheret, na pintura de Di Cavalcanti, Anita Malfaltti, Vicente
do Rego Monteiro, Zina Aita, e na jovem e ousada poesia, será a libertação da
arte dos perigos que a ameaçam do inoportuno arcadismo, do academismo e
do provincialismo.
As idéias modernistas pautadas no processo destruição/construção, na transitoriedade, na
negação do academismo, tinham a proposta de romper com o passado, mas, não excluíam
sua devida importância até aquele presente. Os literatos propunham o fim do
parnasianismo, ou seja, o fim de um movimento já solidificado e saturado no seu campo de
atuação, a literatura. A música, estava representada unicamente, num primeiro instante, pela
figura de Villa-Lobos, que na década de 1920, tinha uma postura semelhante às idéias
modernistas (vale lembrar que a concepção musical de caráter nacional já estava presente
em sua obra pelos menos desde 1917). O maestro junta-se à “balbúrdia modernista” e
rompe com o academismo, o conformismo e com certas concepções herdadas do
romantismo.
Aproveitando temas folclóricos, empregando técnicas composicionais ligadas a
experiências musicais mais recentes e esquemas harmônicos enriquecidos por superposição de tonalidades, recusando normas cadenciais, convergindo a música popular e a
música erudita, e introduzindo instrumentos típicos brasileiros nas suas orquestrações,
Villa-Lobos amplia seu olhar sobre a forma de compor, e junto com outros compositores –
Lorenzo Fernandez, Francisco Mignone, Glauco Velasquez, Arthur Pereira, Assis
Republicano, Jaime Ovalle, Camargo Guarnieri –, amparados pelas idéias da criação da
música nacional de Mário de Andrade, passam a utilizar as proposições modernistas nos
seus processos composicionais. Dá-se início ao movimento nacionalista na música
brasileira.
Nesse momento, a música do país começa a sua solidifição como movimento, mesmo que
ainda não articulado de forma plenamente organizada, mas, que buscava um objetivo em
comum que era a construção da música nacional. Porém, mesmo com o movimento musical
modernista, a música brasileira ainda transitava por caminhos distantes das novas
concepções estéticas de composição que surgiam naquele momento na Europa e não
conseguira romper totalmente com as concepções românticas.
Coube a grupos minoritários de renovação introduzir esses novos recursos no meio musical
do Brasil. Dentre eles, o mais importante foi o Música Viva, considerado por vários
musicólogos, como: Vasco Mariz, José Maria Neves e Carlos Kater, como o grupo que deu
vida a uma nova escola de composição brasileira. O Música Viva é criado em 1939 pelo
alemão Hans-Joachim Koellreutter (1915–2005), que chegou ao Brasil no ano de 1937, e
liderado também por Cláudio Santoro (1919–1989) e César Guerra-Peixe (1914–1989).
Junto com a proposta musical dodecafônica – introduzida no Brasil por Koellreutter –, o
grupo também apresenta novos posicionamentos (ou princípios) perante a situação musical
daquele momento. Os mesmos eram divulgados através de programas de rádio, revistas e
Manifesto 1946: “O Banquete” do Grupo Música Viva
247
manifestos. Entre os documentos produzidos, destaca-se a Declaração dos Princípios, mais
conhecida como Manifesto de 1946. Este faz parte de um terceiro momento na curta
história do Música Viva (o grupo se dissolve em 1950), no qual o movimento, nesse
período, estava realmente centrado na função da música e do artista no meio social.
No grupo, então, aflora (principalmente no Manifesto de 1946) uma aglutinação das idéias
do musicólogo e literato Mário de Andrade (1893–1945), que influenciou toda uma geração
de músicos nacionalistas que, ou convivem em paralelo com o Música Viva, ou o
antecedem. Parece paradoxal, mas passam a coexistir num mesmo documento princípios
andradeanos (nacionalismo) e princípios que o grupo assumira desde o seu começo
(universalismo), ainda que os princípios andradeanos não sejam citados diretamente ou
estejam ligeiramente adaptados ao posicionamento do grupo (Kater, 2001, p. 92). O Música
Viva, com essa aglutinação das idéias de Mário de Andrade, viria a fortalecer as idéias
propostas ainda em 1922 pelo movimento modernista num contexto geral.
Porém, com relação ao nacionalismo musical proposto por Mário de Andrade para a música
brasileira, havia uma divergência de idéias entre o próprio escritor e o movimento
modernista, do qual ele era um dos líderes. Neves (1981, p. 83) traduz esse desencontro
entre a idéia modernista geral e a de Mário de Andrade:
Tal postura do líder do modernismo contrasta frontalmente com certas
afirmações do grupo modernista na época da Semana de 1922, o que mostra
que este escritor (e o grupo em geral) tinha duas medidas de julgamento:
avançadíssima no que se refere à literatura e às artes plásticas, e reacionária
que tocava à música. Pois o regionalismo literário, o cultivo romântico do tipo
brasileiro (altamente caricaturado) foi um dos alvos favoritos do modernismo,
enquanto que este mesmo modernismo incentivava o desenvolvimento
exclusivo do nacionalismo musical pelo emprego da temática folclórica e de
clara orientação regionalista.
A atuação do grupo Música Viva e a divulgação das suas principais idéias no Manifesto de
1946 se mostraram como uma extensão atualizada das propostas modernistas direcionadas
às artes plásticas e à literatura, porém, desta vez adaptadas à música. Já as propostas de
Mário de Andrade, manifestadas também n’O Banquete, acabaram por influenciar músicos
adeptos ao nacionalismo a rechaçar qualquer aproximação com as novas propostas que
surgiam, atentando-se apenas ao folclore. Mas, não era essa a verdadeira proposta do autor,
pois o próprio sempre afirmara ser a temática do folclore nacional apenas o primeiro passo
na estruturação de uma música brasileira: “A reação contra o que é estrangeiro deve ser
feita espertalhonamente pela deformação e adaptação dele. Não pela repulsa” (Andrade,
1972, p. 21).
O fato é que isso gerou um dos maiores conflitos estéticos e filosóficos da história da
música brasileira. De um lado, os músicos nacionalistas liderados por Camargo Guarnieri,
seguidores das idéias andradeanas – mesmo que de forma inconsciente eles não as
interpretassem como o proposto –; e do outro, o grupo Música Viva, tendo à sua frente H.J.
Koellreutter, defendendo a postura de absorção do universal. Ora, percebe-se que as
propostas de Andrade foram muito melhor interpretadas pelo grupo Música Viva do que
pelos seus próprios seguidores. Neves (1981, p. 96) reforça a falta de entendimento do ideal
nacional pelos compositores nacionalistas:
248
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Os jovens compositores do “Música Viva” tinham, na verdade, mais respeito
pelos documentos folclóricos que os nacionalistas tradicionais; para eles, o
folclore devia ser estudado a fundo e seu aproveitamento feito na medida de
sua assimilação e de sua articulação à linguagem pessoal do compositor.
Mesmo o grupo demostrando repulsa pelas idéias nacionalistas, da forma como elas
estavam sendo aplicadas à música brasileira, é nítido a absorção dos propósitos de Mário de
Andrade. Essa síntese de idéias divulgadas através do Manifesto de 1946 se tornaria um
pilar fortíssimo na música brasileira, pois, logo após o fim do grupo, surgem novas
correntes que viriam a reforçar a importância destes princípios, como o Grupo Música
Nova (1960), que mais tarde teria grande importância e influência no trabalho do
movimento Tropicalista, principalmente com a atuação dos maestros Rogério Duprat e
Júlio Medaglia como arranjadores. Consideramos, então, que o estudo da ligação entre
Mário de Andrade e o Música Viva, principalmente no Manifesto de 1946, constitui uma
vertente fértil para a reflexão sobre a música brasileira do século XX.
Objetivos
Existe, já publicado, o trabalho de Teca Alencar de Brito, Koellreutter educador (2001), na
área de educação musical, relacionado à forma como H. J. Koellreuter propõe a educação e
os seus métodos de trabalho, baseados nas suas premissas filosóficas, que o acompanham
desde o grupo Música Viva, e o trabalho do compositor e musicólogo Carlos Kater, Música
Viva e H. J. Koellreuter: movimentos em direção à modernidade (2001), que retrata a
história do grupo e as atividades que este desempenhava.
Tanto Brito (2001) como Kater (2001) trazem ao público trabalhos que representam uma
nova faceta para a discussão sobre a importância de H.J. Koellreuter e do grupo Música
Viva para a história da música brasileira contemporânea. Visto que antes havia uma
carência de material que abordasse esses temas, do ponto de vista educacional e do ponto
de vista musicológico histórico, salvo alguns autores como Mariz (1970, 1994) e
principalmente Neves (1981), que dedicaram pequenos capítulos a Koellreutter e ao Música
Viva em seus respectivos livros de história da música nacional.
Até onde chegamos em nossa pesquisa, ainda não encontramos trabalhos que abordem de
forma aprofundada a importância dos princípios adotados pelo movimento de Koellretteur
para outros músicos e grupos pertencentes à história da música brasileira pós-Música Viva.
Também é fato que ainda não observamos a existência de estudos sobre a importância que
outros movimentos brasileiros anteriores ao grupo exerceram sobre a concepção de sua
postura vanguardista. Kater (2001, p. 92, nota 97), alerta:
A influência de Mário de Andrade, especialmente através de seu O Banquete,
aflora muitas vezes citações diretas e ligeiramente adaptadas (várias das quais
sem menção explícita do autor original). Carece ainda um estudo detalhado e
profundo da pregnância das idéias de Mário sobre seus contemporâneos, em
especial Koellreutter, pois ela parece ser bem maior do que temos
considerado.
Baseando-se na indicação do maior especialista no grupo Música Viva do país, Carlos
Kater, e também em um comentário de etnomusicóloga Maria Elizabeth Lucas sobre o
Manifesto 1946: “O Banquete” do Grupo Música Viva
249
texto de Koellreuter “Nos Domínios da Música: a propósito de O Banquete”,3 este trabalho
pretende estudar esta convergência de idéias entre o musicólogo nacionalista Mário de
Andrade e o grupo, tendo como base O Banquete, último trabalho de Andrade, e o
Manifesto de 1946 do Música Viva, e apontar as sínteses produzidas pelo encontro entre
duas posições distintas e marcantes na musicologia histórica brasileira.
A partir deste momento passamos a expor alguns tópicos que já estão sendo trabalhados.
O Manifesto e o Diálogo
A palavra Manifesto vem do latim manifestu e significa declaração pública ou solene das
razões que justificam certos atos ou fundamentam certos direitos, declaração pública de
idéias ou de novas doutrinas literárias ou artísticas. Esse tipo de texto é a marca principal
dos movimentos de vanguarda que surgiram nas primeiras décadas do século XX. Basbaum
(1995, p. 381) diz: “o artista moderno adota, basicamente, o manifesto como principal
modalidade discursiva – que soma às obras mas não se confunde com elas.” Teles (2000, p.
10) fala sobre o que este típico texto dos movimentos de vanguarda trouxe de novo:
Os seus manifestos ... acabaram fundando um gênero novo, nem poesia, nem
ficção e nem crítica, mas um discurso misto de linguagem e metalinguagem,
pois, ..., trata-se de um texto novo e conotativo que se vale da linguagem
poética para apresentar e divulgar idéias teóricas e críticas sobre as artes e a
literatura, como nos manifestos futuristas nos dadaístas e nos de Oswald de
Andrade.
O surgimento dos movimentos de vanguarda e a publicação de seus princípios em
manifesto, tomava conta do terreno artístico no começo do século XX, vide o futurismo,
expressionismo, cubismo, dadaísmo, espiritonivismo, que acabaram por influenciar na
concepção e proposição de idéias do movimento modernista brasileiro.
No âmbito literário, o modernista Oswald de Andrade destaca-se com sua produção de
manifestos que são até hoje referências para a literatura brasileira. Através de suas idéias e
atitudes condizentes com o seu tempo, o movimento modernista foi considerado
vanguardista e erroneamente chamado de futurista, pois naquela época, o que era novo seria
considerado futurista.
Na música brasileira, a chegada de H.J. Koellreutter em 1937 e a criação do grupo Música
Viva em 19394 são momentos que marcam um novo rumo para a música contemporânea
nacional. Seus princípios estéticos e filosóficos foram fortemente combatidos pelos músicos
tradicionais, que por vezes não compreendiam e desprezavam a nova música. Estava
aplicado, então, o status de vanguarda ao movimento de Koellreutter.
O grupo, como todo movimento de vanguarda, começa a divulgar seus princípios através da
publicação de textos e emissões radiofônicas. Assim, destacam-se entre as principais
3
O comentário de LUCAS e o texto original de Koellreuter foram publicados no Caderno de Estudos:
Educação Musical. Ver bibliografia completa em referências bibliográficas.
4
Para saber maiores detalhes sobre a História do grupo Música Viva ver: Kater (2001), Neves (1981),
Mariz (1970).
250
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
publicações a Revista Música Viva n.º 1, e os manifestos de 1944, 19455 e o mais complexo
e mais importante, o Manifesto de 1946.
O Música Viva então escolheria como seu principal meio de diálogo com os adeptos de seu
pensamento a publicação de manifestos. Observando a forma como foi redigido o
Manifesto de 1946, que é o objeto de pesquisa deste trabalho, percebemos como ele se
encaixa em uma das três maneiras que Teles (2000, p. 10) aponta para o desenvolvimento
de um discurso dentro de um manifesto. Verifica-se que: “A linguagem poética e a
linguagem crítica de um texto novo, fragmentário e descontínuo, que constitui em si mesmo
um exemplo de renovação e vanguarda,...”
Já a palavra Diálogo nos remete ao conceito de fala alternada entre duas ou mais
personagens, uma conversação sobre um determinado assunto qualquer. Jorge Coli e Luiz
Carlos da Silva Dantas, que assinam o prefácio intitulado “Sobre O Banquete”, publicado
junto com os textos que formam O Banquete de Mário de Andrade, assim falam sobre o uso
da forma dialogada numa exposição temática (Andrade, 2004, pp. 13–14):
(...) a forma dialogada, na sua história, acomodar-se-á em funções menores:
facilitação pedagógica (...) ou exposições de argumentação, ocasionais e
secundárias, como os diálogos de Berkeley ou Leibniz. Nos dois casos,
entretanto, ela depende de um corpo filosófico já solidamente estabelecido, e
no fundo a forma do diálogo não é senão um meio... formal. E que justamente
reaparecerá, vívida e necessária, num pensamento que se ajeita mal com
tratados, que faz apelo continuamente a experiência para se alimentar, que não
gosta de falar abstratamente e construir sistemas áridos: será o meio de
expressão de Diderot, por excelência, por vezes mesmo se distinguindo um
pouco do teatro.
Mário de Andrade utiliza-se deste artifício para expor suas idéias n’O Banquete6 a respeito
de uma temática variada que permeia o campo musical da época, sem se preocupar em ser
essencialmente pedagógico ou expositivo. Ele não pretende criar uma filosofia, mas deixase levar por um desenvolvimento dialético do texto e usufrui desse meio para proferir seu
pensamento pragmático, concreto.
Temos, então, dois textos: um diálogo, sutil, irônico, bem-humorado e escrito de forma
simples, mas que expõe assuntos que foram cruciais para o amadurecimento da música
brasileira e que acaba desembocando num manifesto, escrito com extrema seriedade e que
propõe de forma muito mais agressiva a ação dos músicos em relação, principalmente, à
utilidade social da arte.
Guardados os devidos problemas contraditórios dos dois textos7 e os devidos conflitos entre
nacionalismo vs. universalismo, é perceptível que esta transfusão de idéias de Mário de
Andrade para o grupo Música Viva (e aqui leia-se também para o trabalho de Koellreutter)
5
Resgatado por Kater (2001) que afirma não ter obtido informação suficiente para se certificar de que
ele tenha vindo a ser veiculado ou se foi apenas um esboço pessoal de Koellreutter para a elaboração
do Manifesto de 1946.
6
Idéias estético-filosóficas que remetem o leitor à obra Banquete de Platão, porém são longínquas as
ligações entre os dois textos (Andrade, 2004, p. 13).
7
Durante o trabalho os dois textos serão analisados em tópicos separados e serão apontadas algumas
situações contraditórias de cada escrito.
Manifesto 1946: “O Banquete” do Grupo Música Viva
251
será atingida na publicação do Manifesto de 1946, e que este, por sua vez será refletido,
mesmo que involuntariamente, no trabalho de artista posteriores, principalmente no debate
sobre a função social da arte.
Será então o Manifesto de 1946 uma continuação do inacabado O Banquete?
Mapa d’O Banquete
O Banquete destaca-se na obra de Mário de Andrade como o seu último momento de
debate sobre a arte, assunto que sempre freqüentou os questionamentos do literato. Foi
lançado trinta anos depois de sua morte em forma de livro. Na realidade, O Banquete é uma
série de textos publicados na Folha da Manhã, na coluna intitulada de “Mundo Musical”,
onde Mário de Andrade expunha suas idéias regularmente às quintas-feiras entre maio de
1943 até o seu falecimento em 1945. O projeto inicial do autor era de escrever dez capítulos
para a série, mas a obra foi interrompida na primeira parte do capítulo 6 devido à sua morte,
restando somente a anotação dos tópicos que ele pretendia abordar nos capítulos
posteriores. Esta foi a mais longo série de textos do autor.
Mário de Andrade cria um banquete fictício com cinco personagens de diferentes níveis
sociais e culturais para promover um diálogo provocador de cunho estético-filosófico sobre
a problemática da música, da arte e da criação na sociedade brasileira dos anos 40. Ele
aproveita a forma dialogada para lançar mão de suas ambigüidades e às vezes insegurança
no texto, fazendo com que as falas das personagens nasçam das contradições, do processo
dialético que ele promove, ou melhor, em que as personagens se envolvem, já que o autor
inicia o texto afirmando categoricamente (Andrade, 2004, p. 47):
Oh meus amigos, si lhes dou este relato fiel de tudo quanto sucedeu e se falou
naquela tarde boa, boa e triste, não acreditem não, que qualquer semelhança
destes personagens, tão nossos conhecidos, com qualquer pessoa do mundo
dos vivos e dos mortos, não seja mais que pura coincidência ocasional. E é
também certo, certíssimo, que ao menos desta vez, eu não poderei me
responsabilizar pelas idéias expostas aqui. Não me pertencem, embora eu
sustente e proclame a responsabilidade dos autores, nesse mundo de
ambiciosas reportagens estéticas, vulgarmente chamado de Belas Artes.
Assim, esquiva-se da responsabilidade de assumir os posicionamentos adotados no
transcorrer do texto. Talvez esse tenha sido o primeiro ato contraditório do autor na série,
pois freqüentemente as idéias expostas pelas personagens condizem com a sua postura
adotada em relação à temática abordada e proclamada em seus outros textos, vide as suas
mais importantes obras do período modernista, Prefácio Interessantíssimo (1921) e A
escrava que não era Isaura (1924).
O ponto alto d’O Banquete é o capítulo V – “Vatapá” – em que a personagem Janjão lidera
uma discussão sobre o problema da composição, é neste momento que as contradições
surgem de forma mais perceptível. Mário de Andrade no começo do capítulo alerta
(Andrade, 2004, p. 133): “Mas é incrível como os meus personagens já estão agindo sem a
minha interferência”. Dada esta colocação, o autor mais uma vez tenta se esquivar da
responsabilidade das falas que ele cria posteriormente sobre a música brasileira. Desta
maneira, Janjão emite suas opiniões a respeito da situação da música de Mentira (cidade
onde se passa o banquete e não localizada no Brasil) e utiliza a música brasileira como um
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
252
pilar para a comparação com a música de sua cidade, porém em alguns momentos em que a
discussão toma um teor mais tenso, Andrade, mesmo tentando omitir-se do texto, reflete
sua opinião pessoal na voz da personagem, ou seja, confunde-se ela. Ao perceber essa
confusão, faz o texto voltar a realidade de Mentira.
Um exemplo bem claro é quando Janjão fala sobre o princípio de utilidade, e Sarah Ligth o
traz à realidade (Andrade, 2004, p. 144):
(..) Toda arte brasileira de agora que não se organizar diretamente do princípio
de utilidade, mesmo a tal dos valores eternos: será vã, será diletante, será
pedante e idealista. Que bem me importa agora si eu não fico que nem um
Racine, que nem um Scarlatti?... Que bem me importa si não vou ser
bustificado num jardim público, dentro de cem anos?... Que bem me importa
não ficar eternamente redivivo, se vivi...?
Mas meu amigo, nesse caso sempre você também esta fixando o Brasil como
elemento da relação, para os seus julgamentos, de valor.
Percebemos que quando Janjão diz: “Que bem me importa agora si eu ...”, ele coloca-se
como cidadão brasileiro, e isso ocorre em vários momentos do texto, mas logo no capítulo 1
– “Abertura” – , quando o autor está apresentando a personagem Siomara Ponga e expondo
sua vontade de cantar em Mentira, ele mostra a nacionalidade de Janjão, até então omitida
no texto (Andrade, 2004, p. 55): “(..)E si eu desse ao menos um recital das primeiras
cantatas italianas, das primeiras pastorais?... Si eu desse em Mentira, afinal pátria dele, ao
menos uma parte de recital dedicada às canções de Janjão?(...)”
Desta maneira, Mário de Andrade se torna Janjão ou Janjão se torna Mário de Andrade? De
fato, o autor provoca este tipo de confusão para o leitor. Durante o texto, ele às vezes
também assume o papel da personagem Siomara Ponga, principalmente no capítulo 3 “Jardim de Inverno” – quando ela disserta sobre as sensações estéticas.
Fica claro que ele tenta omitir-se, mas a força de seus questionamentos o faz, mesmo sem
querer, entrar no texto e ao perceber, retira-se, usando como ponto de fuga as próprias
personagens para alertá-lo. Apontando alguns pontos contraditórios do texto, confirmamos
que o mesmo desenvolve-se de forma dialética. Todavia, o que importa é que a contradição
que toma conta d’O Banquete é o primeiro ponto em comum com o Manifesto de 1946,
outro texto bastante contraditório. Óbvio que o âmbito das contradições funcionam de
forma diferente nos dois textos, mas, o desenvolvimento dialético dos pensamentos tanto de
Mário de Andrade quanto do Música Viva é que chama a atenção para como seus princípios
foram elaborados e apresentados à sociedade.
Após esta pequena análise do texto, levantamos um mapa das temáticas abordadas durante
as discussões das personagens, para mais à frente, compararmos com as idéias propostas
pelo Manifesto de 1946 do Música Viva. Seguem abaixo relacionados os pontos a serem
comparados:
∑
O combate ao conformismo, academismo, virtuosismo, prazer estético da técnica e
a “arte pela arte”;
∑
A postura adotada pela crítica e pelo público em relação à arte;
Manifesto 1946: “O Banquete” do Grupo Música Viva
253
∑
A transitoriedade, o processo destruição/construção, o princípio do “fazer melhor”
e da “não existência do erro”;
∑
A postura frente à utilização do folclore na formação da música nacional;
∑
Os questionamentos a respeito do ensino musical;
∑
A funcionalidade da arte, O Princípio da Utilidade; e
∑
A função do artista.
Entre os pontos destacados, os dois últimos são de grande importância: O Princípio da
Utilidade, por estar diretamente citado no texto do Manifesto de 1946 e a função do artista,
pois gera n’O Banquete outro grande embate contraditório na fala do personagem Janjão (o
centro da contrariedade no texto), o dualismo individualismo vs. servidão social, o si vs. o
meio. Estes dualismos serão discutidos no tópico destinado à análise e convergência dos
pontos selecionados nos dois textos, que está destinado à conclusão do trabalho geral e não
desta comunicação, lembrando ser esta a apresentação do começo da pesquisa.
Mapa do Manifesto de 46
Escrito em 1º de novembro de 1946, sob o título de “Declaração dos Princípios”, ele foi
publicado na revista Música Viva, n.º 12, datada de janeiro de 1947, momento marcante em
que o grupo retoma suas atividades de publicação, que estavam estagnadas desde 1941.
Também foi publicado sob o título de “Manifesto Música Viva”/ Declaração dos
Princípios na Revista Paralelos, n.º 5, em junho de 1947.
Esse manifesto marca o início do terceiro momento no grupo – que se estenderia até a sua
dissolução –, no qual o Música Viva se firma como um grupo musical na vanguarda estética
e movimento de frente sociocultural, já que em 1939, data de sua criação, era apenas um
grupo de compositores que ansiavam por discutir sobre a estética e a evolução da
linguagem musical, e atualizar seus estudos. Assim, a valorização das questões ligadas
fundamentalmente à realidade social de seu tempo se torna a força motriz das suas
atividades e de seus engajamentos e rupturas (termo usado por KATER, 2004), que agora
são feitos de forma intensa e são refletidos na construção do texto do manifesto pelo uso de
palavras
como: escolhendo, acreditando, compreendendo, ou ainda, repelindo,
combatendo.
O furor desses posicionamentos gerou diversas reações na comunidade musical brasileira
desde a publicação do Manifesto de 1944. O que a Declaração dos Princípios proporciona
em seu texto é uma amplificação das temáticas já previamente desenvolvidas pelo grupo
desde suas primeiras publicações: combate ao academismo, valorização à busca do novo e à
criação; só que desta vez de forma mais complexa. Kater (2004, p. 68) resume a concepção
do manifesto:
Uma simples leitura do manifesto, referência oficial do momento, torna
evidente o grau de complexidade com que é tratado o fato musical. Enfoques
estéticos, sociais e econômicos se mesclam, refletindo, antes de uma coerência
propriamente, um mosaico de flashes intensos de consciência.
254
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Este grande painel de idéias , verdadeiro mural de intenções da modernidade
musical brasileira, retrata com perfeição os engajamentos assumidos. Contém
já em seu bojo as contradições que no grupo provocarão abalos consecutivos
até sua ruptura definitiva.
Quando Kater fala em mosaico de flashes intensos de consciência, ou ainda, grande painel
de idéias, nos remete à citação de Teles feita anteriormente,8 na qual fala sobre uma das
formas como os movimentos de vanguarda concebiam seus textos-manifestos. A publicação
do Manifesto de 1946 teve o aval dos seguintes participantes do grupo: Egydio de Castro e
Silva, Eunice Katunda, Gení Marcondes, Guerra Peixe, Heitor Alimonda, Koellreutter,
Santino Parpinelli e Cláudio Santoro.
Sua redação foi inicialmente feita por Koellreuter e Jenny Pereira (que teve atuação de
“secretariado” no grupo), e foi apresentada ao grupo que, após debater as idéias propostas,
definiu o texto. Cláudio Santoro, que estava ausente do grupo naquele momento, só teve
acesso ao texto quando este foi publicado na revista n.º 12, e, apesar de ter dado o seu aval
a qualquer posicionamento que o grupo tomasse, discorda de alguns tópicos apresentados
no manifesto e aponta tópicos contraditórios a Koellreutter em carta direcionada ao
alemão9.
É fato que apesar das evidentes influências do pensamento andradeano na Declaração dos
Princípios, individualmente Mário de Andrade não era unanimidade. Vejamos o que diz
Kater (2004, p. 93):
Mário entretanto é múltiplo (desde a Paulicéia Desvairada, ele já se dizia “ser
muitos”). Veremos cada qual tomar dele o que mais lhe convém: para os
nacionalistas é referência máxima e bastante; aos propósitos de Koellreutter,
serve de maneira particular pela reflexão dilacerante que oferece; por sua vez,
as opiniões dos membros do grupo Música Viva em relação às suas teses não
são unânimes. Por um lado Guerra Peixe considera que “a música brasileira
começa em Carlos Gomes e termina... em Mário de Andrade” e Eunice
Katunda tem no Ensaio sobre a música brasileira seu livro predileto de
cabeceira. Santoro, por sua vez, não reconhece nenhuma virtude nas
formulações políticas e estéticas, do poeta modernista, muito ao contrário. (...)
Inicia-se então um abalo na estrutura do grupo que culminaria mais tarde em divergências
de idéias mais sérias, principalmente, entre Cláudio Santoro e Koellreutter, mas a intenção
agora é mostrar que assim como n’O Banquete de Mário de Andrade, o Manifesto de 1946
é um grande foco de contradições, palavra que permeia os movimentos de vanguarda, salvo
que esses sempre se posicionam na contrariedade do momento e acabam por completar o
processo tese/antítese, proporcionando, através da dialética, o surgimento de novas
proposições a respeito do campo artístico no qual estão submetidos.
Após esta exposição sobre a Declaração dos Princípios, fizemos, assim como no texto d’O
Banquete, um mapeamento inicial dos assuntos que serão aproximados à obra de Mário de
Andrade e ponderados juntamente com ela. Dada a reflexão que Neves (1981, p. 94) faz
8
Ver tópico O Manifesto e o Diálogo.
Tanto o Manifesto 1946 quanto esta carta citada foram publicados no livro de Kater, ver referência
completa no fim desta comunicação.
9
Manifesto 1946: “O Banquete” do Grupo Música Viva
255
sobre o manifesto resolvemos adotar como pontos básicos para o trabalho os cincos tópicos
em que ele resume a exposição do grupo:
∑
A música como produto da vida social;
∑
A música como expressão de uma cultura e de uma época;
∑
A necessidade de se educar para a nova música;
∑
A concepção utilitária da arte;
∑
A postura revolucionária essencial (associamos à função do artista).
∑
E acrescentamos mais dois pontos que são:
∑
A postura da crítica com relação ao movimento;
∑
A postura do movimento quanto à música popular.
Próximos passos
Depois de avaliar os dois textos de forma individual, pretendemos aprofundar ainda mais a
análise desse material para validar os pontos selecionados em cada tópico e observar como
os pensamentos de Mário de Andrade e do Música Viva se desenvolviam em relação aos
temas propostos para cada texto central de pesquisa. Depois desta avaliação, partiremos
para a aproximação das idéias selecionadas nos dois textos a fim de estudar o que de fato
foi absorvido e repelido pelo grupo em relação às idéias sugeridas por Andrade em seu
último trabalho, e como elas foram traduzidas para um posicionamento considerado
antagônico ao do escritor modernista.
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Marcus Vinícius Marvila das Neves é estudante do 7º período do curso de
Licenciatura em Música da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), membro
do Núcleo de Estudos Musicológicos coordenado pela Profª. Dr.ª Mónica Vermes.
O desenvolvimento histórico da “música instrumental”, o jazz brasileiro
Marina Beraldo Bastos (UDESC); Acácio Tadeu de Camargo Piedade (UDESC)
Resumo: Esta comunicação trata da chamada “música instrumental”, que é conhecida
internacionalmente como jazz brasileiro. Inicialmente, o objetivo é discutir esta
designação ambígua, “música instrumental”. Trataremos, então, das oposições
cantor/instrumentista e letra/música neste gênero musical. Procuraremos mostrar as
relações entre a “música instrumental”, a música popular brasileira (MPB) e o jazz
norte-americano. Este artigo procura trazer um esboço do desenvolvimento histórico
da “música instrumental” a partir de suas fronteiras com outros gêneros, para então
localizar no período da bossa nova a gênese deste gênero musical. Palavras-chave:
música instrumental; jazz brasileiro; música popular; choro.
Introdução
Este artigo é sobre a chamada “música instrumental”, ou seja, a música popular
instrumental brasileira. Chamada de “instrumental brasileiro” ou “música instrumental”
pelos músicos e apreciadores, este gênero da música popular brasileira, além de ser
instrumental, tem como característica fundamental uma tensão com o jazz norte-americano
e uma tensão com a MPB, conforme os estudos de Piedade (1997, 1999, 2003, 2005). A
“música instrumental” é também conhecida como “jazz brasileiro”, principalmente no
cenário internacional, e doravante será referida pela sigla MI. Neste artigo, inicialmente
comentaremos a tensão entre MI e MPB, que envolve a dicotomia música/letra, elementos
importantes na compreensão da MI. Em seguida, este artigo traça um esboço do
desenvolvimento histórico da MI.
A voz, a canção e a música instrumental: MI vs. MPB
O termo “música instrumental” aponta para uma música tocada exclusivamente por
instrumentos, ou seja, sem texto ou letra. Esta parece ser uma identidade básica da MI,
porém há comentários a se fazer. Primeiramente, o fato desta música ser instrumental não
exclui o uso do canto, mas apenas da letra. A voz não está fora da MI justamente porque ela
é ali utilizada como um instrumento: no circuito da música instrumental há diversos
trabalhos com voz, como no disco “Mundo Verde Esperança”, de Hermeto Pascoal
(Pascoal, 2002) e “Meu Brasil”, de Teco Cardoso, (Cardoso, 1997). A voz na MI exerce um
papel diferente do que na MPB, onde existe uma distinção clara entre o cantor e os
instrumentistas. Isto envolve uma questão de hierarquia que denuncia um aspecto da tensão
entre a MI e a MPB: a posição “superior” em que se encontra o cantor em relação aos
instrumentistas que o acompanham. Esta proeminência do cantor parece incomodar os
instrumentistas, na medida em que é ele que ganha mais visibilidade e popularidade.
Haveria, na MI, uma tentativa de diluir esta hierarquia? Ou ela migra, ali, para a dicotomia
“instrumentos melódicos/instrumentos harmônicos”, ou “instrumentistas solistas/
instrumentistas de base”? Isto seria mais plausível, pois não é possível um igualitarismo
completo em música, onde é constante o jogo entre frente e fundo, significado literal e
profundo.1
O esforço de retirar o peso da hierarquia cantor/instrumentista está muito presente na
consagração do termo “música instrumental”, que aponta inicialmente para a exclusão do
canto. Porém, como vimos, na MI a voz aparece como um outro instrumento, dobrando a
1
Lembramos aqui do dodecafonismo como tentativa de instaurar um igualitarismo no âmbito das
alturas musicais, mas que resultou em uma música de difícil compreensão para os ouvintes não
iniciados. Mais uma pista para a necessidade de desigualdade e hierarquia na música.
258
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
melodia ou fazendo contracantos, o que parece deixar o canto no mesmo patamar
hierárquico que os outros instrumentos. Aparentemente, a diferença marcante entre a MPB
e a MI está na ausência de letra, ou seja, na exclusão da canção. Paradoxalmente, há
cantores e cantoras que são tidos como artistas da MI, como Joyce e Dori Caymmi. Apesar
de comporem e cantarem canções, estes artistas vivem imersos muito mais no universo da
MI do que no da MPB.2 No caso de grande parte das composições e interpretações de
Toninho Horta, por exemplo, podemos dizer que a voz está bastante presente. Este
guitarrista usa a voz com letra (como solista) ou sem letra (cantando ou dobrando a melodia
nas introduções, temas e/ou improvisações). Estes artistas transitam no mundo da canção,
mas mantêm um lastro indelével de pertencimento à MI: dentre tais marcas, podemos
ressaltar o destaque dos músicos acompanhantes e suas improvisações, a concepção
harmônico-melódica das canções, os arranjos que empregam técnicas e formas jazzísticas,
etc.3 Portanto, mesmo na instrumentalidade da MI é possível o uso da voz, ainda que quase
sempre como uma parte instrumental, mas também ocorrendo que uma canção (com letra,
evidentemente) seja entendida como uma peça musical na concepção da MI.
Apesar destas exceções, o que parece estar em jogo aqui é que a presença de letra dá à
música uma condição de significação muito mais direta do que no caso da MI: o significado
(imediato assinalado na letra) é um privilégio da MPB que a MI parece procurar afastar,
como se constituísse uma ameaça à sua pureza instrumental, cujo processo de significação
seria necessariamente autônomo em relação ao verbal.4 Ou talvez porque, havendo letra,
instaura-se uma gestalt hierárquica que coloca os instrumentistas em segundo plano, na
condição de acompanhantes, na qual se sentem inferiorizados. Por outro lado, é comum que
músicos instrumentistas nem considerem alguns cantores como músicos, isto por não
dominarem a linguagem musical formal, as partes da música, a harmonia, as convenções,
etc.
Estes são alguns aspectos da relação MI/MPB, sendo que há muitos outros que não serão
desenvolvidos aqui. Note-se que muito do que foi dito pode valer para outros repertórios
instrumentais, o que valeria ser investigado. Passaremos agora para uma outra forma de
compreender a MI, que é um esboço de sua formação histórica e sua relação especial com o
mundo do choro.
O desenvolvimento histórico da música instrumental
Vamos tratar de alguns aspectos do início da música popular brasileira (sécs. XVIII e XIX).
Em especial, vamos salientar alguns pontos sobre os repertórios instrumentais. Segundo
Kiefer (1986), é ponto pacífico entre os musicólogos que a modinha e o lundu são as raízes
principais da música popular brasileira. Seguindo este pensamento, apresentaremos
algumas considerações sobre estes dois gêneros musicais.
O termo “modinha” é o diminutivo de moda, usada para diferenciar a modinha (brasileira)
da moda (portuguesa). Segundo Mozart de Araújo (1963, apud Kiefer, 1986) a origem da
2
É importante notar que a oposição MI/MPB tem a ver com a dicotomia música/letra.
É importante lembrar que estes cantores de música instrumental são em geral compositores e
intérpretes de suas próprias composições, e não somente intérpretes propriamente falando. O perfil
destes artistas parece mais com o de compositor-cantor do que com o de cantor-intérprete.
4
Apontando para um desejo (ou ilusão) de universalidade tipicamente atribuído ao repertório erudito
ocidental, tanto no senso comum quanto na musicologia a partir de Hanslick (1996). Note-se que,
para Hamm (1995), o discurso da autonomia musical constitui uma narrativa modernista.
3
O desenvolvimento histórico da “música instrumental”
259
modinha é questionada, sendo que alguns autores afirmam que ela é portuguesa. Conforme
este autor, as modinhas brasileiras são análogas às portuguesas no que confere à melodia,
mas a modinha brasileira teria uma característica rítmica acentuada que lhe é vital,
característica compartilhada pela maior parte da música popular urbana do Brasil. Na
origem da modinha encontra-se o compositor e tocador de viola Domingos Caldas Barbosa,
figura importante da música popular brasileira (Bastos, 2000; Tinhorão, 2004). Este músico
levou a modinha brasileira à Europa, mostrando seu caráter essencialmente amoroso.
Muitas das modinhas eram tocadas em duos, com linhas melódicas em terças ou sextas
paralelas, com acompanhamento de viola. Surgida nos salões da elite, em pouco tempo a
modinha já estava nas camadas populares (cf. Kiefer, 1986). É claro que a modinha não é
música instrumental, porém seu lirismo melancólico constitui uma importante faceta da
musicalidade brasileira que se faz presente no choro e na MI, aparecendo ali claramente em
temas e improvisos.
O lundu descende diretamente do chamado “batuque” das populações afro-brasileiras.
Segundo Tinhorão (1975), a palavra “batuque” era aplicada de forma genérica a todos os
ritmos produzidos à base de percussão. No final do século XVIII, devido ao fracasso das
medidas repressivas tomadas pelas autoridades colonizadoras e pela igreja em relação às
música afro-brasileira, a metrópole acabou “cedendo” e as “danças dos pretos” passaram a
ser toleradas, ao contrário das danças “gentílicas e supersticiosas”. Neste período, o lundu
surge como uma adaptação da coreografia do fandango ao “batuque dos negros”, realizada
por brancos (Kiefer, 1986). Tanto o ritmo quanto as chamadas “umbigadas” permanecem
no lundu como marcas de sua africanidade. Apesar da confusão entre batuque e lundu, o
aparecimento do lundu não eliminou o batuque (op.cit.). Note-se que o lundu era um gênero
instrumental, somente mais tarde se tornando vocal. No início do século XVIII, o lundudança instrumental inicia sua ascensão à classe dominante, percorrendo o caminho
contrário do que seguiria, mais tarde, a modinha. Kiefer (op.cit.) levanta a hipótese de que
foi Caldas Barbosa quem transformou o lundu-dança em lundu-canção, isto pela
impossibilidade de vê-lo dançado em Portugal (em sua forma instrumental) e para que, lá
vivendo, pudesse “matar as saudades do Brasil”. Para Oneyda Alvarenga (1950), o lundu
deu à música brasileira características musicológicas importantes, como a sistematização da
síncope e o emprego da “sétima abaixada”, ou seja, acordes de sétima menor.
Na segunda metade do século XIX o lundu perde a força, fundindo-se com a polca, dança
instrumental importada da França. A “polca-lundu” tomou conta do Rio de Janeiro na
época. Por outro lado, o lundu-dança foi desembocar, juntamente com elementos de outras
danças, no maxixe, gênero que foi, por algum tempo, expoente máximo da dança urbana
brasileira. Além disso, o lundu-dança manteve-se, em manifestações esporádicas, até o
século XX (Moura, 1983). Vejamos, então, alguns pontos sobre a polca e o maxixe.
A polca foi lançada no Brasil pelas companhias teatrais. Sua semelhança com o lundu na
divisão rítmica fez com que acontecesse uma “fusão” entre os dois e que surgisse uma
forma moderna de dançar que teria seu desdobramento no maxixe. Moura (1983) sugere
que, em 1873, com um anúncio no Jornal do Comércio sobre a polca-lundu intitulada
“Quem não tem ciúmes não ama”, surge a música popular brasileira moderna.
Vindo dos bailes negros e das gafieiras da Cidade Nova (bairro que fazia a fronteira entre o
Rio de Janeiro da elite e aquele dos subalternos) o maxixe era uma dança marcada pela
corporalidade africana, interpretada como sensual ou erótica, passando a atrair o público
masculino de classe média. O maxixe, que começou ao som dos chamados “tangos
260
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
brasileiros”, foi inicialmente mais um modo de dançar do que um gênero musical. O ápice
do maxixe se deu na segunda década do século XIX, continuando depois com menos peso
até ficar praticamente desaparecido a partir da chegada do fox-trot no Brasil e, depois, com
o surgimento do samba. O conceito de maxixe chegou a se confundir com o de samba,
aparecendo em composições como “Pelo telefone” (cf. Moura, 1983), de Donga e Mauro de
Almeida. O maxixe é um elemento muito importante na formação da música instrumental
do choro, como veremos.
Com estes breves apontamentos sobre modinha, lundu, polca e maxixe, procuramos
destacar que se tratam de gêneros fundamentais da musicalidade brasileira, e que se
encontram presentes na MI. Um estudo musicológico do repertório da MI poderá revelar
como ali se encontram nexos com o lirismo melancólico da modinha e a sensualidade do
lundu. Passaremos agora para o choro, que constitui um gênero instrumental da música
brasileira que se prolonga até o presente momento.
Para o folclorista Luís da Câmara Cascudo, a palavra “choro” viria de “xolo”, baile de
escravos, que teria se modificado até chegar em “choro”. Já Vasconcelos afirma que a
origem do termo está nos chamados “choromeleiros”, músicos do período colonial
brasileiro, sendo que na época passou-se a chamar qualquer agrupamento instrumental de
“choromeleiros” e, depois, teria surgido a abreviação “choro” (Vasconcelos, 1964).
Tinhorão menciona outra origem: o termo viria da impressão de melancolia gerada pelas
“baixarias” do violão (Tinhorão, 1998). Se a idéia de melancolia, ou mais propriamente
nostalgia, é coerente com o espírito do choro, as linhas de baixo do violão de sete cordas
não parecem abrigar este ethos: parecem muito mais surgir como emulação do papel de
instrumentos de sopro como tuba ou bombardino5. Lembre-se que, desde a segunda metade
do século XIX, as bandas de sopros eram uma formação muito popular e, portanto, tuba e
bombardino eram instrumentos comuns.
A palavra “choro” apareceu, portanto, com diversos significados no decorrer da história.
“Choro” podia significar grupo de chorões, a festa aonde se tocava choro, um modo de
tocar. Somente na década de 10 é que o termo passa a designar uma forma musical fixa e a
significar um gênero musical (Cazes, 1998). Segundo Oliveira (2000), a origem do choro
está na nova classe formada no Rio de Janeiro a partir da segunda metade do século XIX,
que ele chama de “pequenos burgueses”. Nesta época eram comuns, principalmente na
capital do império, os chamados grupos de “pau e corda”, constituídos por violão,
cavaquinho (cordas) e flauta (“pau”, pois eram de ébano).6 Devido à carência de eventos
públicos para o divertimento dessa classe, os funcionários públicos faziam encontros nas
suas próprias casas. Para animar estes encontros, os próprios participantes da festa tocavam
em trios de “pau e corda”, e foi nesses encontros que o choro nasceu. No final do século
5
A origem do violão de sete cordas é intimamente relacionada ao desenvolvimento desta linha de
baixo no gênero. Aparentemente, tem relação com uma comunidade de ciganos na chamada “Pequena
África” (ver Moura, 1983). Após entrarem em contato com esta comunidade, China, irmão mais velho
de Pixinguinha e integrante dos Oito Batutas, bem como o músico Tute, teriam sido os primeiros a
usar este instrumento no choro. Mas foi somente com “Dino 7 Cordas” que este instrumento e sua
função polifônica típica se desenvolveram completamente no universo do choro, isto a partir dos anos
50. Os princípios básicos das “baixarias” foram ali cristalizados: frases que ligam mudanças de
acordes através de escalas em grau conjunto, em geral em espaços intermediários de frases do tema,
qual comentários melódicos deste, algumas vezes em terças paralelas com um violão de seis cordas.
6
É possível que esta designação esteja relacionada aos nordestinos da Pequena África e ao carnaval
de Recife.
O desenvolvimento histórico da “música instrumental”
261
XIX, o trio mais conhecido era “O Choro Carioca”, do qual Antônio da Silva Callado fazia
parte. Callado foi um dos muitos flautistas virtuoses da sua época (Diniz, 2002) e
contribuiu com o seu grupo no abrasileiramento da polca e na afirmação do choro como
gênero musical (Oliveira, 2000).
O choro nasceu da mistura de estilos e sotaques: partindo das danças européias
(principalmente da polca), do acento português (o nostálgico toque metálico da guitarra
portuguesa) e da influência negra (essencialmente no âmbito rítmico). Note-se que o
processo de desenvolvimento das músicas populares urbanas, como o choro, aconteceu de
forma similar em diversos países: por onde houve colonização portuguesa, a música
popular se desenvolveu basicamente com o mesmo instrumental, cavaquinho e violão, nem
sempre com flauta. (Cazes, 1998).
Em termos formais, o choro tem normalmente três partes e se caracteriza por ser
necessariamente modulante. Um tipo de forma rondó (seções diferentes intercaladas pela
repetição do “A”), sendo também característica a improvisação e o espírito de competição
(cf. Cazes, 1998). A competição, no choro, acontece em dois patamares: entre os grupos e
entre os músicos de um mesmo grupo. A competição entre os grupos tem uma herança dos
trios de pau e corda, que tocavam no mesmo recinto, disputando sucesso. A competição
entre os músicos do mesmo grupo funciona como uma espécie de jogo do solista, que tenta
“derrubar” os acompanhadores, e vice-versa (Oliveira, 2000). Comentaremos a seguir
aspectos da improvisação no choro.
O improviso no choro deve ser entendido como uma variação da melodia do tema principal.
No jazz, o improviso é muito mais a criação de novas melodias em cima de uma harmonia
fixa (cf. Oliveira, 2000). De fato, no choro o solista improvisador toca a melodia com
liberdade para interpretá-la, floreá-la, variá-la, mantendo seus traços temáticos sempre
claros. Pode-se dizer que o solista, assim como o acompanhamento de base, especialmente
as linhas de baixo, estão improvisando (variando) durante a música inteira. Atualmente,
temos notado choros com improvisos em seções do tipo chorus, ou seja, o foco no
improviso de um músico solista sobre a base harmônico-polifônica do tema. Este tipo de
improviso com chorus é provavelmente uma influência do jazz no choro.7 Um aspecto
comum entre o jazz e o choro é, sem dúvida, a improvisação generalizada e o caráter de
interação entre os músicos na performance (para o caso do jazz, ver Monson, 1996). Um
exemplo de grande improvisador de choro é Pixinguinha, que ainda adolescente tocava
flauta na Orquestra do Teatro Rio Branco e já era conhecido como grande improvisador,
pois “floreava” as melodias (Oliveira, 2000).
Pixinguinha foi um grande instrumentista (tocava flauta e saxofone), arranjador e
compositor. Segundo Cabral (1978), houve um momento em que Pixinguinha trocou a
flauta pelo sax: foi aí que, tocando com Benedito Lacerda e desprovido da condição de
solista, passou a compor e improvisar contracantos. Abaixo comentaremos aspectos deste
momento importante no choro. Pela sonoridade que tirava do saxofone e pelo seu estilo,
Pixinguinha acabou tendo muitos seguidores da sua música, criando uma verdadeira escola
do saxofone no Brasil. Além disso, a sua forma de arranjar influenciou e continua
influenciando grandes músicos brasileiros, sem falar nas suas composições consagradas,
7
Note-se que nos primórdios do jazz não havia improvisação tipo chorus, mas sim variações, a
exemplo do choro.
262
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
que são tocadas até hoje em qualquer roda de choro e por muitos instrumentistas (Cabral,
1978).
Falar de Pixinguinha é falar dos chamados “Oito Batutas”. Surgido em 1919, este grupo
possuía em seu repertório músicas instrumentais e cantadas: maxixes, lundus, canções
sertanejas, batuques, cateretês. A estréia dos Oito Batutas foi na sala de espera do renomado
Cine Palais, no Rio de Janeiro, e no fim de 1919, já estavam fazendo viagens pelo interior
do Brasil (ver Cabral, 1978). Em 1922, são convidados para ir a Paris, ali ficando em torno
de seis meses, em contato com o jazz do cenário francês dos anos 20. Quando voltaram
foram acusados de terem sofrido influência das jazz bands (Oliveira, 2000). De fato, o
saxofone entrou para o mundo do choro com a volta de Pixinguinha, que trouxe um sax de
Paris (Coelho, 2004), e neste mundo ele foi incorporado de modo impressionante.8 Tanto
que um dos maiores expoentes atuais do choro, Paulo Moura, é saxofonista. Em geral, estes
instrumentistas tocam clarinete, e o papel do saxofone no choro está ligado a este outro
instrumento.
Já comentamos a importância da entrada do saxofone no choro, ligada ao papel polifônico
de contracantos. Coelho (2004) notou que Pixinguinha passa gradualmente da primeira para
uma segunda voz, criando uma textura polifônica no choro, fundamental no
desenvolvimento deste gênero (ver também Oliveira, 2000). Os contrapontos de
Pixinguinha eram tão bem feitos que acabam muitas vezes roubando a cena do tema
principal, que nos Oito Batutas era tocado por Benedito Lacerda na flauta (Coelho, 2004).
Os Batutas voltaram ao Brasil com algumas novidades: uma delas, bem marcante, é que, ao
invés de percussão, os ‘Oito Batutas’ agora tinham também uma bateria. O grupo passou,
então, a se chamar “Bi-orquestra Os Batutas”, com bateria e trombone. Seria ao mesmo
tempo um grupo de choro e uma jazz band.
De fato, a idéia de jazz band, ao menos para o jazz francês do início do século XX, estava
ligada à formação instrumental de banda de sopros com piano e bateria (ver Cabral, 1978
apud Coelho, 2004). As jazz bands tocavam marchas, emboladas, maxixes, choros e
músicas latino e norte-americanas (Cabral, 1978). Por volta de 1933, foi criada uma
orquestra nos moldes norte-americanos para tocar ao vivo na recém-inaugurada Rádio
Tabajara, na cidade de João Pessoa. Esta orquestra foi montada com a “nata” musical
paraibana da época, e tocavam arranjos trazidos da Europa e dos Estados Unidos. Em 1936,
Severino Araújo foi convidado a integrar esta orquestra e, logo em seguida, substituiu o
falecido regente Olegário. Severino tinha apenas vinte e um anos quando assumiu a
regência da Orquestra Tabajara e mesmo assim fez exigências para aceitar o cargo: quis
modificar o som da orquestra de salão e fazer dela uma big band brasileira. Severino
assumia a influência norte americana: nesta época, já admirava Benny Goodman
(clarinetista e arranjador que fez muito sucesso no início dos anos 30). Quando a Orquestra
Tabajara veio para o Rio de Janeiro, em 1944, Araújo passou a escrever arranjos de peças
do repertório de música popular brasileira conforme a linguagem americana de
orquestração de jazz. O novo repertório incluía músicas de K-Ximbinho, importante
compositor e arranjador que fundia muito bem o choro e os elementos harmônicos do jazz.
Segundo Cazes, K-ximbinho compunha choros que sugeriam acompanhamentos do tipo
daquele da futura bossa nova (Cazes, 1998).
8
Para um aprofundamento na importância musical e sócio-cultural dos Oito Batutas na música
brasileira, ver Bastos (2005).
O desenvolvimento histórico da “música instrumental”
263
Além da concepção de arranjo na música destas orquestras, músicos importantes como
Radamés Gnatalli, Garoto e Laurindo Almeida também se influenciaram pelo jazz (Cazes,
1998). Gnattali escrevia choros para serem tocados em naipe de saxofones ou para piano e
sax tenor, sempre inteiramente escritos em partitura. Quando conheceu o clarinetista Paulo
Moura, Radamés compôs um samba-canção em sua homenagem chamado “Monotonia”, e
logo depois Paulo Moura gravou um LP chamado “Paulo Moura Interpreta Radamés
Gnattali”. O nome de Paulo Moura é, ainda hoje, muito importante no mundo do choro e da
MI. Nos anos seguintes a este contato com Gnatalli, Paulo Moura se afastou do choro,
levado pela onda da bossa nova, só voltando em meados dos anos 70, marcando a fase de
obscurecimento e a reaparição do choro, que comentaremos adiante.
A tradição de orquestras do tipo jazz band não foi abandonada, continuando viva no âmbito
da música instrumental brasileira. Um exemplo é a Banda Savana, liderada pelo maestro
Laércio de Freitas. Outro exemplo é a Banda Mantiqueira, formada por treze excelentes
músicos atuantes no cenário de gravações e concertos na cidade de São Paulo. É liderada
pelo compositor, arranjador e instrumentista Nailor Azevedo, apelidado “Proveta”. Nota-se
que Proveta é um ótimo arranjador e improvisador, e seu nome circula no âmbito da música
instrumental como um de seus mais importantes expoentes, apesar de pouca projeção
internacional, se comparada com a de Hermeto Pascoal ou Egberto Gismonti. Segundo
Nelson Ayres (1996), referindo-se à banda Mantiqueira, “os arranjos e a interpretação usam
todas as técnicas da história das big bands, mas tem os pés firmemente fincados nos coretos
do interior onde muitos dos músicos tocaram em público pela primeira vez. E cada solista
abandona o caminho fácil de ser apenas mais um imitador dos grandes jazzistas para
procurar sua própria verdade”. Este testemunho é bastante significativo para a compreensão
da música instrumental enquanto gênero musical pleno, independente do jazz (ver Piedade,
2003).
Neste período das grandes orquestras instrumentais, e entre as décadas de 50 e 70, ocorreu
um momento de obscurecimento do choro: foi uma época em que praticamente não havia
jovens tocando este gênero. O sucesso das bandas de dança e o surgimento e esplendor da
bossa nova marcaram o período. Muitos chorões migraram do choro para as jazz bands (que
também tocavam choro, porém com uma outra concepção musical, com arranjos e
formações bem diferentes das tradicionais) e para grupos de bossa nova. O choro,
entretanto, nunca deixou de existir: com o sucesso do grupo “Novos Baianos”, na década de
70, volta o interesse por instrumentos como cavaquinho, violão de sete cordas e violão
tenor (Cazes, 1998). Foi nesta época que começaram a surgir grupos de choro formados por
jovens, sendo o mais importante “chorão” desta geração de 70 o violonista Rafael Rabello
(cf. Cazes, 1998).
Atualmente, o choro parece ter duas escolas: uma “mais conservadora” e outra mais
“jazzística” (Oliveira, 2000). Talvez não sejam propriamente duas escolas, mas duas
tendências que dialogam entre si. Na tendência mais conservadora, os improvisos mantêmse como variações da melodia (para o solista), acontecendo durante a música inteira (para
todos os músicos). Na tendência mais “jazzística”, as harmonias ganham tensões
características do jazz e os improvisos muitas vezes nada têm a ver com o tema melódico,
mas a harmonia se mantém, como na idéia de chorus. Há muitos músicos, atualmente, que
tocam choro mas não são entendidos como “chorões”. Estes são aqueles mais tradicionais
defensores de um afastamento crítico em relação ao jazz. Parece haver, no pensamento dos
chorões, o temor da perda da “autenticidade” do choro, conquistada por décadas de
dedicação. Pode-se dizer que a linha que separa o choro e a MI é muito tênue no caso dos
264
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
grupos de tendência jazzística. Pode-se dizer, em termos da estrutura formal, que a forma
de improvisar é um demarcador importante entre choro e MIl: enquanto o primeiro é
calcado em princípios de variação, o segundo segue o modelo de criação e articulação de
frases-padrão em estrutura do tipo chorus. Assim, a MI se mantém como MI, mesmo
quando se toca choro.
É claro que estas duas tendências do choro atual não são separadas com tanta clareza.
Existem intersecções e trocas entre as duas categorias9. Podemos citar aqui o nome de
algumas pessoas que estão no campo do choro e que atuam em uma ou ambas tendências:
Isaías, Israel, Maurício Carrilho, Pedro Amorim, Paulo Moura, Proveta, Jorginho do
pandeiro, Altamiro Carrilho, Luiz Otávio Braga, Paulinho da viola e Yamandú Costa. Mas
se há uma preocupação em distinguir MI e choro, e se o choro não é a matriz básica de
onde surgiu a MI, onde ela se encontra? Para Piedade, no mundo instrumental em torno da
bossa nova (Piedade, 1997, 1999, 2003).
A bossa nova surgiu nos anos 50, na zona sul do Rio de Janeiro. Ali, cantores,
instrumentistas e compositores amantes do jazz americano, da música brasileira e da música
erudita se reuniram e criaram este gênero que viria a influenciar a música mundial (Castro,
1990). Esta triangulação está expressa por Scarabelot (2004) na divisão da bossa nova em
três pilares: João Gilberto com seus sambas peculiares, Tom Jobim com sua experiência
erudita e jazzistas de Copacabana. Nos anos 60, com Laurindo de Almeida, Charlie Byrd e
Stan Getz, a bossa nova é apresentada ao público norte americano. Foi nesta época que o
jazz começou a incorporar elementos da bossa nova, assim como nos anos 40 incorporou
elementos da música cubana. Se o samba e a música de Carmem Miranda representavam
para os americanos a criatividade “exótica”, a bossa nova penetrou intensamente na cultura
americana, mas pela inovação na mescla de refinadas harmonias, espírito cool e batida
rítmica típica (Scarabelot, 2004). Embora a influência do cool jazz na bossa nova seja
reconhecida pelos próprios bossa-novistas, as raízes da bossa nova podem estar muito mais
fortemente estabelecidas na própria música brasileira, na dimensão dos arranjos (ver
Pinheiro, 1992) e mesmo na melódica das modinhas (Bastos, 1996).
Ao mesmo tempo em que a bossa nova se tornava conhecida no mundo, toda uma geração
de instrumentistas influenciados pelo jazz se envolvia com este gênero no Brasil. Estes
instrumentistas formaram grupos que tocavam um repertório de bossa nova e jazz
instrumental, sendo que muitos eram na formação clássica jazzística de trio (piano,
contrabaixo e bateria), como o Tamba Trio, Zimbo Trio, Milton Banana Trio, Jongo Trio,
Bossa Três, Sambalanço, e outras formações, como o Quarteto Novo (de Hermeto Pascoal),
samba-jazz (de J.T. Meireles) e os Copa 5.
Para Piedade (1997, 1999, 2003), é neste universo instrumental da bossa nova que surge a
MI. O jazz brasileiro cresce apoiando-se, portanto, menos no choro e mais na bossa nova, aí
destacando o encontro entre a bossa e o jazz norte-americano. O encontro real entre Stan
Getz e João Gilberto simboliza um diálogo entre as musicalidades da bossa nova e do jazz
norte americano que é, para este autor, uma característica fundamental da música
instrumental brasileira.
Assim, chegamos ao momento no qual o esboço da história da música instrumental
brasileira está traçado, da modinha à bossa nova. A partir daí, o gênero se consagrou pouco
a pouco. De início, através de músicos brasileiros que moravam nos Estados Unidos, como
9
O choro tem sido objeto de diversos estudos recentes, tais como Freitas (2005) e Oliveira (2003).
O desenvolvimento histórico da “música instrumental”
265
Airto Moreira, Eumir Deodato, Flora Purim, Oscar Castro Neves, entre outros. Através da
atuação destes músicos e dos expoentes da bossa nova, elementos da música brasileira
foram incorporados à música norte-americana, daí se difundindo para o mundo. E,
especialmente no caso do jazz, estas leituras e apropriações acabaram voltando para
fertilizar a música instrumental brasileira, no movimento reflexivo entre duas musicalidades
globais.
Apesar da cultura brasileira ter sido bastante afetada pela ditadura militar, no Brasil (anos
70) surgem alguns selos no eixo Rio/São Paulo que veiculam a MI, como o Lira Paulistana.
O selo Lira Paulistana tinha também um teatro para apresentações musicais, o que
contribuiu para a consagração da MI.
Em outros centros urbanos do país o gênero também se desenvolveu significativamente,
como, por exemplo, em Minas Gerais, onde surge o Clube da Esquina. Clube da Esquina é
o nome de dois LPs de Milton Nascimento (Clube da Esquina e Clube da Esquina II) que
reuniam diversos instrumentistas, cantores e letristas mineiros como: Lô Borges, Tavinho
Moura, Beto Guedes, Toninho Horta, Fernando Brant, Wagner Tiso e Márcio Borges.
Segundo Caetano Veloso (BORGES, 1996), “Milton Nascimento foi -é- o elemento
catalisador, o próprio lugar de inspiração do movimento”. Para este autor, a música de
Milton Nascimento e do Clube da Esquina é “um desdobramento da bossa-nova (...), uma
continuidade em relação ao samba-jazz carioca, uma fusão que – partindo de premissas
muito outras e de uma perspectiva brasileira – confluía com a ‘fusion’ inaugurada por Miles
Davis”. Em 1964, além de cantar em bailes, Milton Nascimento tocava baixo acústico em
um trio de bossa nova e jaz com Wagner Tiso e Paulinho Braga, o Tempo Trio. Fica claro
que a relação do Clube da Esquina com a MI, independentemente da letra ou da voz, está
fincada em uma relação de continuidade com a bossa nova e no diálogo com o jazz e os
jazzistas.
A partir dos anos 80, o jazz brasileiro entra no circuito internacional de festivais de jazz
(por exemplo, o de Montreux). A partir deste momento, as obras de Hermeto Pascoal e
Egberto Gismonti têm sido muito importantes para a formação da MI como um gênero
pleno, com termos temáticos, estruturais e estilísticos relativamente estáveis. Com a
maturidade do jazz brasileiro nos anos 80, os anos 90 representaram um período de
impressionante crescimento e vigor. Atualmente, a produção da MI gira em torno de
gravadoras que são, na maioria das vezes, administradas pelos próprios músicos (p. ex.
Núcleo Contemporâneo, Maritaca, entre outras). Ou seja, a MI continua inscrita em um
circuito alternativo, havendo um mercado restrito para o gênero no Brasil. Faz parte deste
mundo da MI festivais e oficinas periódicas, realizadas em várias cidades brasileiras. Estes
encontros reúnem nomes como: Proveta, Daniel Sá, Mané Silveira, Vinícius Dorin, Arismar
do Espírito Santo, Cizão Machado, Paulo Moura, Lea Freire, Raul de Souza, entre outros
instrumentistas conceituados.
Comentário final
Neste artigo, pretendemos focalizar, inicialmente, uma característica da música
instrumental brasileira que se relaciona justamente com o fato de ser uma música
instrumental e, portanto, que exclui a letra e o cantor, sendo que procuramos destacar as
questões da hierarquia e da ambigüidade destes fatores. Em seguida, o artigo apresentou um
breve panorama histórico da MI, especialmente em contraste com a história do choro. Com
os subsídios até aqui obtidos, acreditamos que seria importante investigar mais a fundo a
266
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
MI, principalmente no que toca à profundidade antropológica de toda esta faceta da música
brasileira. Ao mesmo tempo, justamente com estes nexos sócio-culturais e históricos em
mãos, a análise musical propriamente dita de peças do repertório da MI poderá consolidar
uma musicologia deste importante gênero da música brasileira, e revelar toda a sua riqueza
e interesse.
Referências bibliográficas
ALVARENGA, Oneyda. Música Popular Brasileira. Porto Alegre: Ed. Globo, 1950.
AYRES, Nelson. Texto de encarte de CD. MANTIQUEIRA, Banda. Aldeia. Pau Brasil PB 003.
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Marina Beraldo Bastos: Estudante de graduação em Música (UDESC); bolsista de
iniciação científica (PROBIC/UDESC); Membro do grupo de pesquisa
MUSICS/UDESC/CNPq; Atua na cidade de Florianópolis (S.C.) nos grupos “Poré
Poré” e “Quarteto Sonoroso”, como flautista, no “Poliphonia Khoros”, como cantora,
e na Escola Livre de Música Compasso Aberto, como professora. Acácio Tadeu de
Camargo Piedade Doutor e Mestre e Antropologia (UFSC), Bacharel em Música
(UNICAMP); professor e pesquisador nas áreas de musicologia/etnomusicologia e
composição/arranjo no Departamento de Música da Universidade do Estado de Santa
Catarina (UDESC); membro dos grupos de pesquisa MUSICS (Música, Cultura e
Sociedade)-UDESC/CNPq e MUSA (Arte, Cultura e Sociedade na América Latina e
Caribe)-UFSC/CNPq; membro do International Council for Traditional Music
(ICTM), da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), da Associação Nacional
de Pesquisa e Pós-Graduação em Música (ANPPOM) e da Associação Brasileira de
Etnomusicologia (ABET).
|resumos de pôsteres|
Desconstruindo o “ursozinho de algodão” de Villa-Lobos
Marcos Mesquita (Universidade de Karlsruhe)
Resumo: O artigo situa sucintamente a Próle do Bébé n. 2 tanto no contexto da
criação villalobiana quanto no cenário mais amplo da vanguarda da década de 1920,
apontando ainda os problemas de datação de algumas obras do compositor. Em
seguida, é feita uma análise detalhada da peça “O ursozinho de algodão” da Próle n. 2
que visa resgatar de sua esfera microestrutural os elementos constitutivos que
garantem à mesma uma unidade e uma coerência “discursiva”.
Cognição musical como enacção e algumas possibilidades de implicações
metodológicas em educação musical.
André Luiz Gonçalves de Oliveira; Sabrina L. Schulz; Patrícia Mertzig (UEM)
Resumo: Discutir cognição musical tem sido um importante ponto de convergência
para diferentes pesquisadores e mesmo para diferentes áreas do conhecimento
humano. A própria ciência cognitiva, de natureza interdisciplinar, acaba propiciando
tais características ao estudo da cognição musical e da percepção, tão importante
nesse contexto. Este artigo apresenta uma nova perspectiva no entendimento de
cognição musical, a partir da concepção de conhecimento como a história das
condutas de um corpo em um mundo. Para apresentar alguns princípios dessa nova
perspectiva de cognição musical, em primeiro lugar, iremos investigar as
possibilidades de definição de conhecimento musical, depois vamos apresentar a
noção de conhecimento como atuação. Posteriormente esperamos descrever o
conhecimento musical como um tipo de ação perceptivamente orientada de um corpo
em um mundo específico. Por fim iremos apresentar uma reflexão sobre os limites e
alcances das possíveis conseqüências trazidas por uma nova perspectiva da noção de
conhecimento musical como conhecimento corporificado e situado.
A organização do discurso musical em Psappha, de Iannis Xenakis
Arthur Rinaldi; Edson Zampronha (UNESP)
Resumo: A organização do discurso musical na música contemporânea figura entre os
temas de maior interesse e complexidade dentro do âmbito da musicologia. Seu
estudo pressupõe a reflexão sobre diversos elementos que vão da organização dos
materiais sonoros aos princípios estéticos que fundamentam uma determinada
composição. Nesse artigo apresentamos uma visão analítica sobre a organização do
discurso musical de uma peça importante dentro do repertório de percussão do século
XX: Psappha, para percussão solo, de Iannis Xenakis. Em nossa visão enfatizamos
que Psappha transcende a construção de uma linguagem musical tipicamente
Resumos
estocástica, estabelecendo relações entre as massas sonoras e seus elementos
constituintes, no caso destacando-se especialmente as células rítmicas utilizadas pelo
compositor, com uma série de referenciais pertencentes à escuta. E por causa desse
diálogo com o repertório tradicional, combinando-o com elementos contemporâneos
da linguagem musical, o discurso musical em Psappha adquire uma riqueza e
densidade que a caracterizam como uma obra importante dentro do repertório musical
contemporâneo.
Investigações acerca da música de hoje
Caio Manoel Nocko (PUC–PR)
Resumo: Vivemos em uma era em que a economia tem importância central em toda a
vida da sociedade. É em torno do capitalismo que tudo gira, inclusive a música. Não
se pretende, com esse artigo, fazer juízo de valor quanto a essas relações econômicas,
mas investigar alguns pontos sobre a música que é feita nessa era e as críticas e
soluções que alguns autores apresentam. Caminharemos na direção da ‘solução’
apresentada por Habermas, representante da Escola de Frankfurt, sob a forma do
conceito de ‘razão comunicativa’. Tal estudo de Habermas não enfoca pontualmente a
música e nem a estética, mas todas as manifestações culturais, sociais e políticas da
sociedade. Sendo assim, a música enquanto expressão cultural, se encaixa em tais
observações habermasianas. Analisaremos, ainda, a criação musical contemporânea
do ponto de vista da crescente individualização/ globalização do gosto, seja técnico ou
subjetivo, seja puramente objetivo e voltado à comercialização.
A influência positivista na música paranaense
Charlene Neotti Gouveia Machado (UFPR)
Resumo: A influência do pensamento positivista na política e cultura brasileira
durante os primeiros anos do século XX, fenômeno amplamente discutido por vários
historiadores, repercutiu de forma notável no Estado do Paraná, principalmente nas
artes plásticas, poesia e música. Esta comunicação apresenta um panorama de tal
influência no campo da música paranaense, demonstrando a influência positivista e
seus diálogos com a poesia simbolista em obras do início do século XX. Serão
abordadas as maneiras pelas quais tal influência é manifestada, quer seja quanto à
temática, ao uso de textos de poetas simbolistas por compositores, ao contato ou
ligação efetiva de certos compositores a organizações ou movimentos filosóficos e
literários, ou ainda à utilização de tais músicas ou outras durante as reuniões ou cultos
de tais organizações ou movimentos. Neste contexto, destacam-se as obras de
Augusto Stresser, Brasílio Itiberê II e Benedito Nicolau dos Santos sobre poemas
simbolistas de Dario Vellozo, Jayme Ballão e Tasso da Silveira. Este trabalho está
sendo realizado no âmbito do projeto "Acervos de Música Paranaense", desenvolvido
no Departamento de Artes da UFPR em parceria com a Casa da Memória e MIS.
269
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
270
A influência da mensagem subliminar na música
Cristiano Steenbock (FAP–PR)
Resumo: A mensagem subliminar é um estímulo produzido abaixo dos níveis de
percepção, tanto auditiva, quanto visual. Ela está presente em nosso cotidiano de uma
maneira bem sucinta, em outdoors, música, televisão, etc. A psicologia define a
palavra subliminar como sendo qualquer estímulo produzido abaixo do limiar da
consciência, e que produz efeitos na atividade psíquica ou mental. O objetivo
principal da mensagem subliminar é o controle da mente humana, violando assim o
estado do inconsciente e revertendo-o para o consciente, em idéias e atos. O
subconsciente não critica o que nele entra como faz a nossa mente consciente. Ele
assimila as informações não pela sua racionalidade, mas pela insistência com que são
apresentadas. Não há, portanto, uma forte influência subliminar numa mensagem que
vemos ocasionalmente. Mas se formos submetidos dia após dia a uma informação
subliminar, tenderemos a acreditar nela se a realidade não se opuser claramente à
mesma. Esse trabalho visa apresentar e discutir também, as várias influências da
mensagem subliminar no aspecto da música, nas quais são utilizadas estratégias de
\"reverse-masking-process\"(processo reverso disfarçado), utilização de volume acima
da tolerância pelo sistema nervoso e uso de ritmos específicos, para causar uma
padronização das ondas cerebrais. Muitos exemplos de bandas nacionais e
internacionais, além de cantores conhecidos, são citados nesse trabalho como
apresentando fortes indícios do uso de mensagens subliminares em suas canções.
Música e comunicação
Cristine Roberta Piassetta Xavier (Secretaria de Educação da Prefeitura Municipal de
Curitiba)
Resumo: Palavras-chaves: educação musical; indisciplina; música e comunicação.
Este é um projeto de educação musical chamado Brincando com Sons, que está sendo
desenvolvido na Escola Municipal CEI Eva da Silva. Observando a indisciplina que
havia na escola e o interesse dos alunos pela música, estão sendo desenvolvidas
atividades, como uma alternativa de ensinar e aprender de maneira lúdica e
significativa. Este projeto tem como primícias melhorar a aprendizagem do aluno para
um desenvolvimento global, estimulando e valorizando suas habilidades e
competências, melhorando sua auto-estima e interesse através da música. O projeto
surgiu com o intuito de trabalhar a música como forma de comunicação e suas
propriedades em sala de aula, onde os alunos possam utilizar suas realizações
musicais com maior precisão e significação. O projeto busca a sensibilização ao som
através da Apreciação, Execução e Composição Musical utilizando canções
folclóricas, brincadeiras de roda, brinquedos cantados, trava-línguas, quadrinhas,
contos sonoros, composições coletivas, etc, manipulando instrumentos de percussão,
sendo alguns confeccionados pelos próprios alunos.
Resumos
Algumas informações de interesse para o estudo da música paulista no século
XVIII em “Documentos Interessantes para a história e costumes de São Paulo”
Dalton Martins Soares; Paulo Augusto Castagna (UNESP)
Resumo: O artigo é resultado de pesquisa arquivística, consistindo esta do exame da
coleção “Documentos interessantes para a história e costumes de São Paulo”,
publicada pelo Arquivo Municipal de São Paulo. Foram examinados trinta volumes da
coleção, referentes ao século XVIII. Os mesmos apresentam algumas informações
sobre a atividade musical da capitania no período em questão.
Relações dialógicas entre o sacro e o secular
Elisabeth Seraphim Prosser (EMBAP–UFPR)
Resumo: José Penalva, compositor, professor e regente, destacou-se, também como
musicólogo. Seus principais escritos versavam sobre a música folclórica e colonial
brasileira, Carlos Gomes, a música do século XX, a música sacra e o canto coral da
Vanguarda. Ao examinar em detalhe as relações entre suas composições e os seus
livros, artigos, estudos e apostilas, bem como com sua atuação como sacerdote e
professor, percebe-se que o sacro e o secular formam uma unidade em constante
diálogo, e que a pesquisa esteve solidamente presente na construção da sua trajetória e
nas interfaces da sua obra e das suas atividades.
Introdução à música microtonal
Felipe de Almeida Ribeiro (UFPR)
Resumo: No século XX um novo conceito de afinação revolucionou a história da
música. Alguns compositores, habituados com o sistema de doze sons tradicional,
experimentaram afinações não convencionais. A oitava foi explorada além da divisão
de 12 semitons. Exemplo disto foi o compositor Harry Partch (1901-1976) que
compôs peças usando uma escala com 43 notas. Isso trouxe inúmeras questões a
serem resolvidas: como compor, como realizar uma notação e como executar. Para
resolver esses problemas, compositores criaram instrumentos próprios (Harry Partch)
ou limitaram a escrita a quartos-de-tom (Charles Ives). Além disso, contribuiu
também, o desenvolvimento de softwares de notação adaptados (como o Finale e o
Sibelius) e de tecnologias como síntese (Csound) e MIDI. A presente comunicação
visa uma explanação sistematizada desta escola, o Microtonalismo, presente a mais de
um século, mas ainda vista com receio.
Tecnologias de gravação e fazer musical: algumas reflexões
Frederico Alberto Barbosa Macedo (UDESC)
Resumo: O presente artigo pretende discutir algumas das transformações ocorridas no
processo de produção da música após o surgimento das tecnologias de gravação e
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272
Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
reprodução sonora. Antes do surgimento destas tecnologias, a forma pela qual a
experiência musical poderia ser vivenciada se resumia às situações nas quais a música
era feita ao vivo. Neste tempo, era possível ainda se considerar o processo de
produção da música através da divisão tradicional pela qual existiriam três agentes
principais, o compositor, o intérprete e o ouvinte. As tecnologias de gravação
possibilitaram que a experiência musical pudesse ser vivida sem que os agentes
produtores da música - cantores e/ou instrumentistas - estivessem fisicamente
presentes. O surgimento destas tecnologias de gravação e reprodução sonora
possibilitou o desenvolvimento da indústria fonográfica. Paralelamente se
desenvolveram também as tecnologias de comunicação de massa – cinema, rádio,
televisão -, bem como as telecomu nicações, que modificaram totalmente a sociedade
e deram ao século XX a sua identidade característica. A partir do desenvolvimento da
indústria fonográfica, foram surgindo várias atividades e funções associadas ao
processo de produção da música que fizeram com que este processo ficasse muito
mais fragmentado que antes, não permitindo mais que fosse descrito considerando-se
apenas o compositor, o intérprete e o ouvinte. A primeira seção deste artigo apresenta
uma breve discussão sobre os conceitos de indústria fonográfica e gravadora, bem
como dos conceitos de grande gravadora – major – e gravadora independente.
Menciono também a questão de se considerar a música gravada como uma
mercadoria, e algumas das implicações deste status de mercadoria atribuído à música.
Na segunda seção do artigo, apresento uma descrição da estrutura organizacional das
gravadoras, mencionando e definindo as funções dos principais cargos e
departamentos deste tipo de empresa, a saber: presidência, conselho, departamento
artístico (A&R, ou artistas e repertório), direção de marketing, direção de divulgação,
direção de promoção, direção de vendas, direção internacional, departamento jurídico,
departamento gráfico, departamento de vídeo, divulgadores, músicos, produtores e
artistas. Na terceira seção do artigo, menciono e descrevo algumas outras funções e
atividades externas às empresas gravadoras que têm uma influência direta sobre o
desenvolvimento da indústria fonográfica e da vida musical. São os intermediadores
culturais, que influenciam diretamente, ou mesmo determinam se a música chegará ao
ouvinte, o modo como chegará e que tipos de músicas chegarão. Inicio esta seção
discutindo a função de mediação dos meios de comunicação de massa na veiculação
da música ao ouvinte, descrevendo, em seguida, as atividades de alguns destes
intermediadores culturais ligados à música, a saber, o produtor de shows, os
empresários dos artistas e os selecionadores – profissionais diversos ligados a setores
específicos da imprensa, televisão, rádio, que atuam filtrando e escolhendo que
informações, produtos e produções culturais serão veiculadas pelos meios onde estão
atuando. Na conclusão final do artigo procuro mostrar como todas estas
transformações ocorridas na vida musical foram significativas, e como afetaram de
forma profunda a maneira como o ser humano produz e recebe a música no mundo
contemporâneo.
Música, linguagem e a evolução da comunicação humana: uma tentativa de
testar empiricamente modelos de evolução da comunicação humana com base
nas vocalizações de bebês de até 12 meses de idade
João Pedro Troncoso Caserta (UFPR)
Resumo: Acredita-se hoje que a música e a linguagem oral possam ter tido uma
origem comum, uma forma de comunicação classificada muitas vezes como protomúsica por musicólogos ou como proto-linguagem por lingüistas. O objetivo da
presente pesquisa de caráter experimental é analisar esta possibilidade de um ponto de
vista evolutivo, utilizando como objeto de estudo as vocalizações de bebês com idade
Resumos
menor ou igual a 12 meses. Alguns modelos de evolução da comunicação humana,
bem como estudos sobre as relações entre a música e a linguagem oral serão revisados
e utilizados para fundamentar a discussão. De acordo com a idéia de replicação,
altamente conhecida na biologia, caso algum desses modelos seja válido para o
desenvolvimento infantil, então talvez possamos generalizá-lo para a evolução da
espécie humana. Apesar de ser um tema de interesse comum entre musicólogos,
lingüistas e diversos outros especialistas, a falta de estudos interdisciplinares e de uma
taxonomia comum muitas vezes prejudica os resultados e dificulta um avanço
significativo. A presente pesquisa apresenta-se como interdisciplinar na medida em
que busca em diversas áreas do conhecimento respostas para as questões relacionadas
à origem da música e da linguagem oral e pretende com isso possibilitar a criação de
termos que possam tornar possíveis pesquisas multidisciplinares futuras.
Uma nova visão sobre o aquecimento e desaquecimento vocal
Karissa Laiz Nuñez (FAP)
Resumo: muito se fala, e pouco se pratica o aquecimento e o desaquecimento vocal.
discutimos nessa pesquisa a relevancia dessa prática para os cantores populares, como
também a própria prática, ou seja, que exercícios são efetivos? quando e como realizálos? e, em nossa visão, a pergunta mais importante: por que incorporar a prática do
aquecimento e desaquecimento vocal.
O Hip-Hop: suas oficínas e apresentações
Kleber Tiago Gregorio (UFPR)
Resumo: Uma das mais poderosas ferramentas de acesso na educação, fundamentada
na formação através da metodologia “crítico-superadora” , do cidadão transformador
da sua realidade. Vem mostrar que existem várias perspectivas na sociedade,
pautando-se na superação da organização social e tanto na democratização do acesso
aos bens culturais como na redistribuição da renda. Do processo de relações sociais,
que vem resultando em desigualdade, homogeneização cultural e individualismo,
tendo como conseqüência a alienação da sociedade. Para expor a indignação a essa
situação, surgem movimentos como o Hip-Hop , forjados na coletividade e com
função de informar o cidadão a respeito de sua situação na sociedade, mostrando que
ele tem deveres e direitos. Assim é o movimento Hip-Hop, que com suas
apresentações e oficinas vem instigando os participantes, a se tornam pensantes,
pessoas que interpretam, julgam, e que direcionam a sociedade, substituindo a disputa
pela solidariedade, o individualismo pela cooperação e enfatizando a liberdade de
expressão.
Música e nação-cosmos: o legado de uma utopia brasileira
Luciana Rodrigues Gifoni; Alberto T. Ikeda (UNESP)
Resumo: Embora seja quase um senso comum a afirmação de que a classificação
erudito-popular na música é uma dicotomia ultrapassada, é possível identificar ainda
hoje a presença do pensamento modernista dos intelectuais brasileiros, especialmente
o pensamento de Mário de Andrade, em relação à produção de uma música erudita
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Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
genuinamente brasileira. Tal proposta inclui a busca de uma sonoridade popular
“autêntica” aliada a técnicas “universais” de composição, e ao mesmo tempo rejeita a
interferência do incipiente mercado fonográfico, das rádios e dos gêneros musicais
urbanos, considerados popularescos e de mau gosto. Não seria arriscado afirmar que
este pensamento não é residual, mas predominante dentro da pesquisa musicológica,
cujo perfil temático aponta, em geral, para a música erudita na Musicologia Histórica,
para a musica de tradição oral ou “folclórica”, na Etnomusicologia, e para a música de
vanguarda no campo da Composição. Por outro lado, observa-se no trabalho dos
músicos práticos, sejam de formação erudita ou popular, a inserção nas dinâmicas da
indústria cultural e a fusão de gêneros considerados, à primeira vista, díspares do
ponto de vista estilístico-musical. Parece, contudo, haver uma rejeição dos
musicólogos em se investigar a música dentro da chamada cultura de massa, mesmo
que admitam haver um mercado de bens simbólicos, inclusive na faixa temática que
costumam abordar. Neste artigo, pretende-se fazer um diálogo com alguns autores,
como Miguel Wisnik, Daniel Pécaut, Ênio Squeff, Eric Hobsbawm, Ariano Suassuna,
Roberto Schwartz, Renato Ortiz, dentre outros, no sentido de expor uma reflexão
panorâmica sobre o modo como algumas perspectivas nacionalistas na música erudita
brasileira recriam, constróem e resignificam o universo sonoro simbólico capaz de
legitimar determinadas tradições culturais do povo brasileiro, e em que medida a
perspectiva modernista permanece nas pesquisas musicológicas atuais.
Uma concepção de relação entre arte e vida sob a ótica da filosofia de Friedrich
Nietzsche
Marcel Sluminsky; Fernando Nicknich (UFPR)
Resumo: Partindo de um dos pilares do pensamento do filósofo alemão Friedrich
Nietzsche, a saber, a assim considerada visão ontológica dos gregos e a relação destes
com a sua arte e a sua religião, pretende-se mostrar até que ponto se torna possível
prescrever uma separação entre a vivência artística e a própria vida, levando-se em
conta as implicações desta separação no que se refere às possibilidades de relação do
ser humano considerado em seus aspectos racionais, éticos, estéticos e filosóficos.
Representações numéricas de tempo como geradores de timbre: o Calendário
Maia como algoritmo musical
Marcelo C. Velho Birck; Anselmo G. de Almeida (UFG)
Resumo: O artigo descreve um algoritmo concebido a partir de uma representação
numérica de tempo, a saber, o Calendário Maia. É discutida a abordagem do modelo
como uma forma expandida de escuta, bem como comparações entre a síntese
granular (técnica predominante na criação dos timbres utilizados) e o sentido do tato.
Além disso, se especula sobre um paralelo entre o parâmetro timbre e o conceito de
configuração. O Calendário Maia é demonstrado de forma a salientar a similaridade
de funcionamento com um algoritmo musical, visando sua implementação através de
meios computadorizados.
Resumos
A encruzilhada musical: vivendo entre o sagrado e o profano
Miguel Locondo de Laet (MozarteumSP)
Resumo: O presente artigo visa discutir – baseando-se nos trabalhos de filósofos,
musicólogos, cientistas políticos e historiadores - alguns aspectos referentes à função
da música na sociedade, a forma como vem sendo explorada pelos meios de
comunicação e indústria fonográfica e entretenimento; o consumo desmedido dos
produtos ofertados pela indústria cultural; e a figura do compositor diante de dois
mundos distintos. De um lado, o desejo de transcender a própria música. Do outro, a
missão de se comunicar com o grande público e a necessidade financeira. Neste
sentido, se faz necessário repensar quais são os fatores que criaram este abismo na
relação música erudita/ ouvinte, desde a coercividade do Poder Político em regimes
totalitários até a liberdade conquistada pela mente criadora da música.
Formação de professores e educação musical; traçando um perfil
Mônica Zewe Uriarte; Paulo Chiesa (UFPR)
Resumo: O artigo apresenta uma reflexão sobre os aspectos relacionados com o papel
da Educação Musical e a formação dos professores, agentes na mudança das práticas
educativas, na procura de procedimentos que favoreçam o desenvolvimento de
habilidades e competências na constituição de sua profissionalidade docente. O
enfoque teórico, a partir de materiais sobre cultura, educação, arte e música, inspira-se
em idéias de Forquin, Gramsci, Nóvoa, Sardelich, Penna, entre outros, para ponderar
sobre as condições de construção do docente e seu conhecimento pedagógico-musical,
exigidos pelas demandas do atual mercado profissional e para o exercício de uma
cidadania efetiva. Compara grupos de professores analisados por três pesquisas
realizadas em diferentes estados brasileiros e traça um perfil desse profissional: sua
formação, condições de trabalho, perspectivas e construções.
A audição em quatro propostas de educação musical
Patrícia Mertzig; André Luiz G. de Oliveira (UEM)
Resumo: O presente artigo tem como objetivo principal refletir sobre o papel da
percepção auditiva em quatro propostas de educação musical. Iniciaremos realizando
uma revisão das propostas de Violeta Gainza, Shinichi Suzuki, Murray Schafer e
Hans J. Koellreutter. Na seqüência apontamos para a necessidade da descrição clara e
adequada da noção de conhecimento musical segundo a tradição do estudo da ciência
cognitiva e da filosofia da mente. Posteriormente nos ocupamos da descrição de
diferentes atividades que envolvem audição em cada uma das propostas dos autores
citados acima. Nossa intenção é investigar as possibilidades funcionais atribuídas à
audição no processo de desenvolvimento musical dentro de cada abordagem
metodológica. Também esperamos, com isso, destacar a importância da audição como
fundamento para o desenvolvimento da cognição musical em todos os seus aspectos
envolvidos em diferentes perspectivas de educação musical.
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Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
Significação Musical: sons que vibram enquanto materialidade sonora e na
construção de significados e sentidos
Patrícia Wazlawick; Glauber Benetti Carvalho (FAP)
Resumo: Este trabalho discute a significação em música. É fruto de pesquisas dos
autores e suas interlocuções, a saber: o trabalho de conclusão de curso sobre a
“Percepção Estrutural da Música”, em base à Semiótica de Peirce (Carvalho, 2003), e
a pesquisa de Mestrado em Psicologia sobre a produção de significados e sentidos
expressos nas narrativas que os jovens constroem sobre suas histórias de relação com
a música, em base à interface entre Musicoterapia (Ruud; Stige), Psicologia HistóricoCultural (Vygotsky) e a filosofia de Ludwig Wittgenstein (Wazlawick, 2004). Estar
diante de um fato e poder dar-lhe uma significação é tarefa que o sujeito busca
realizar constantemente, nos âmbitos científico, técnico, artístico e no cotidiano.
Significação que permite tecer também compreensões ao que se vive, sente e se escuta
na experiência musical. Pois, como dizem Deleuze e Guattari “nada é mais doloroso,
mais angustiante que um pensamento que escapa a si mesmo, idéias que fogem e
desaparecem apenas esboçadas”(1). E tal como Vygotsky: “...uma palavra carente de
significado não é uma palavra, é um som vazio...”(2). Isto é, a partir da discussão
teórica e da inquietação que surge no embate com a realidade empírica, no que é
vivenciado nas experiências musicais nas dimensões da Música e da Musicoterapia, é
que pretendemos articular estes conhecimentos para discutir e tentarmos nos
aproximar das possibilidades de significação em música. A música existe enquanto
matéria musical em si, resultado da relação dos seus elementos. Possui em sua
estrutura uma “narrativa de vida” própria, ou seja, própria do discurso e da forma
musical tecida por alguém. Em sua trama possui uma significação musical interna,
atrelada ao signo musical consigo mesmo, sendo fruto da “semiose musical” que
configura o “pensar musical” de um sujeito – aquele que a faz – orientado por uma
forma de pensar, agir e sentir, no que diz respeito as maneiras de organizá-la
estruturalmente enquanto sistemas, formas e estilos. Um sujeito que ao produzir
musicalmente objetiva, neste fazer, sua subjetividade, e registra na matéria musical a
sua presença, o seu “pensar musical”. A música é criada pela utilização cultural e
pessoal dos sons. Age sobre a cultura que lhe dá forma e de onde ela deriva, ao
mesmo tempo em que se insere na estrutura dinâmica onde ela própria se formou(3).
Está inserida nas várias atividades sociais, donde decorrem múltiplos significados. A
cultura dá os referenciais, bem como os instrumentos materiais e simbólicos que cada
sujeito se apropria para criar, tecer e orientar suas construções, neste caso, as
atividades musicais. Por isso, ao se vivenciar a música, depara-se também com toda
uma rede de significados construídos no mundo social, nos contextos coletivos e
singulares. Assim, para nos aproximarmos de uma compreensão mais dinâmica e
contextualizada da significação em música, o estudo aponta para a necessidade de
buscar a compreensão da materialidade musical articulada aos significados e sentidos
construídos a partir de vivências concretas e da “utilização viva” da música, por
sujeitos em relação, articulando a dimensão reflexivo-afetiva.
Resumos
Um estudo técnico-pianístico do Mikrokosmos de Béla Bartók segundo a
abordagem de Cláudio Richerme (1996)
Sabrina Laurelee Schulz; André Luiz G. de Oliveira (UEM)
Resumo: Cláudio Richerme em seu livro A técnica pianística – uma abordagem
científica (1996) propõe um estudo fisiológico dos movimentos necessários á técnica
clara e precisa, podendo ser aplicada tanto pelo pianista profissional quanto pelo
estudante de piano. Sua abordagem científica e anatômica dos braços, das mãos e dos
dedos, auxilia na compreensão e escolha dos movimentos e coordenações musculares
mais adequados no ato da execução de cada trecho musical. Desse modo, a escolha
dos movimentos mais corretos para cada pianista, faz com que o estudo da obra seja
mais rápido e eficiente. No entanto seu livro não traz nenhum exemplo prático de
aplicação ao repertório do instrumento. Assim, nosso trabalho realiza uma possível
análise da técnica de Richerme aplicada ao livro de peças progressivas para piano
Mikrokosmos de Béla Bartók, tendo em vista que, Bartók não apresenta uma
metodologia para a aplicação de uma técnica pianística em seu método, fato este que
se apresenta como sintomático na grande maioria dos métodos de aperfeiçoamento
técnico. Atualmente, o método Mikrokosmos é muito utilizado nas escolas de música,
como exercícios complementares ao aperfeiçoamento da técnica desejada, como
método de leitura à primeira vista e também como uma iniciação ao estudo do
repertório pianístico do século XX. Escolhemos tal método para o presente trabalho,
não só porque apresenta inicialmente uma leitura musical simples, auxiliando na
automatização dos movimentos e coordenações musculares descritas por Richerme,
mais também por valorizar a sonoridade e estética contemporânea, o que pode
contribuir para uma formação mais completa do pianista. No presente trabalho,
elencamos alguns exercícios do Mikrokosmos para a aplicação da técnica de
Richerme, de acordo com os movimentos que são os mais utilizados na execução
musical ao piano. Cada pianista possui sua técnica individual, entretanto uma estudo
sistemático de seus próprios movimentos ajudará em rápidas soluções técnicas para
trechos musicais de maior dificuldade, dando subsídio para a interpretação pessoal e
desenvolvimento para o estudo pianístico.
Educação musical nas séries iniciais na perspectiva de professores generalistas
Sérgio F. de Figueiredo; Vanilda Macedo Godoy (UDESC)
Resumo: Música nas Séries Iniciais do Ensino Fundamental é uma pesquisa que vem
sendo desenvolvida em uma escola da rede pública municipal. Nas séries iniciais
atuam professores generalistas, os quais devem mediar conteúdos de todas as áreas do
conhecimento, sendo a música uma destas áreas. Entende-se que é fundamental que
estes profissionais possuam uma vivência com os aspectos musicais, além de um
conhecimento básico e fundamentado dos conteúdos de música a introduzir em suas
aulas. O principal objetivo desta pesquisa é verificar a presença da música nas séries
iniciais do ensino fundamental, especificamente relacionada à prática dos professores
generalistas e com vistas ao estabelecimento de competências necessárias para que
tais profissionais possam contribuir para o desenvolvimento musical nos primeiros
anos escolares. A metodologia qualitativa foi empregada neste trabalho, pois o que se
pretende é estudar a presença da música na escola pesquisada sob a visão dos
profissionais atuantes nas séries iniciais, e não gerar dados estatísticos ou
generalizações. Os dados foram obtidos através de questionários, entrevistas e
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Anais do Simpósio de Pesquisa em Música | 2005
observações, e analisados à luz da literatura de educação musical. Estes dados foram
estudados e classificados em cinco categorias para análise: a) Formação de
professores das séries iniciais: inicial e continuada; b) A questão do talento; c) A
importância da música nas séries iniciais; d) Professor especialista X professor
generalista; e) Aprimoramento dos estudos musicais. Os resultados demonstram que
as professoras receberam pouca ou quase nenhuma orientação musical em seus cursos
de formação. Este quadro gera uma carência de aprofundamento para uma prática
mais consistente no ensino de música das séries iniciais. Sem uma base concreta os
professores generalistas sentem-se inseguros para lidar com conteúdos musicais em
suas aulas, mesmo demonstrando interesse e potencialidade para realizarem esta
tarefa. Sem a devida formação de professores generalistas em relação aos conteúdos
musicais, alimenta-se um círculo vicioso quanto à desvalorização e à falta de
conhecimento sobre a educação musical escolar, na medida em que a oportunidade de
aprender música fica distanciada da maioria das pessoas. Evidencia-se, a partir destes
dados, a necessidade de ampliação da formação musical das professoras, o que
poderia ser feito através de programas de educação continuada. Tais programas não
seriam substitutos da necessidade de estudos musicais na formação inicial de
pedagogos que atuam nos anos iniciais da escola, mas contribuiriam para a
continuidade e aprimoramento dos estudos musicais por parte dos professores
generalistas. Os resultados da pesquisa também apontam para a relevância da
presença de professores especialistas em música atuando na escola e realizando
parcerias com professores generalistas, o que poderia favorecer uma mediação mais
concreta de aspectos musicais nas séries iniciais.
Aspectos do idioma pianístico de Heitor Villa-Lobos na peça Choros n. 5 - Alma
Brasileira
Tarcísio Gomes Filho; Mauricy Matos Martin ( UNICAMP)
Resumo: O objetivo deste trabalho é apresentar um estudo sobre as características do
idioma pianístico de Heitor Villa-Lobos (1887-1959), por meio da análise dos
aspectos pianísticos da peça Choros n.5 - Alma Brasileira (1925). Na busca pela
compreensão deste idioma, em um primeiro momento, foram apontados aspectos
biográficos que estão intimamente ligados à produção do compositor, mais
precisamente, a obra para piano, para então seguir à abordagem da peça sob o ponto
de vista da escrita e da técnica pianística, analisando questões como planos sonoros,
uso de ostinatos e posicionamento das mãos. A conclusão deste artigo evidencia que
esta peça representa uma síntese da obra pianística de Villa-Lobos e reflete uma
escrita permeada de recursos técnicos extremamente bem elaborados, conferindo ao
piano uma ampliação sonora singular.