ISSN
2317-6830
V.22 N.1
2021
REVISTA DE ANTROPOLOGIA
PPGAA/ UFPR
Linha Editorial
CAMPOS - Revista de
Antropologia, publicação do
Programa de Pós-Graduação em
Antropologia e Arqueologia da
Universidade Federal do Paraná,
tem o propósito de constituir
um espaço permanente de
interlocução com antropólogos
e pesquisadores de áreas afins,
no país e no exterior. O nome
CAMPOS traduz o reconhecimento
do valor singular da etnografia
para a Antropologia, remetendo
também à pluralidade de
perspectivas teóricas e
temáticas que caracteriza a
disciplina e que se revela
na produção do próprio PPGAAUFPR. A Revista CAMPOS publica
artigos inéditos, ensaios
bibliográficos, entrevistas,
resenhas, ensaios etnográficos e
outras contribuições − pequenos
textos de natureza acadêmica,
informativa etc. − que podem ser
enviados em português, inglês,
francês ou espanhol (para
publicação na língua original).
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Lumière - Lyon 2, França
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USP, Brasil
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Universidad de Buenos
Aires, Argentina e Centro de
Investigaciones Históricas y
Antropológicas, Bolivia
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Eva Lenita Scheliga
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Paulo Renato Guérios
Ricardo Cid Fernandes
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Miriam P. Grossi, UFSC, Brasil
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Paris Ouest-Nanterre, França
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Roberto DaMatta, UFF/University of
Notre Dame, Brasil/EUA
Roque de Barros Laraia, UnB, Brasil
Ruben G. Oliven, UFRGS, Brasil
ISSN
2317-6830
CAMPOS. Revista de Antropologia.
PPGAA/ UFPR.
V.22 N.1 2021
*Publicada em junho 2021
Curitiba, PR, Brasil
ISSN 2317-6830
P. 001-334
Qualquer parte desta publicação
pode ser reproduzida, desde que
citada a fonte.
Preparação dos originais
Eva Lenita Scheliga
Juliane Bazzo
Disponível também em:
revistas.ufpr.br/campos
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Caroline Leonardi de Quadros
Eva Lenita Scheliga
João Victor Coutinho de Carvalho
Redação
CAMPOS - Revista de Antropologia
Rua General Carneiro, 460 - 6º
andar. CEP 80.060-150 Curitiba Paraná - Brasil
Telefone: (41) 3360-5272
revistacampos.ufpr@gmail.com
Imagem da capa
Ilustração e colagem de Caroline
Leonardi de Quadros a partir de
fotografia de Alef de Oliveira Lima
(zine produzido por estudantes
do Trans Enem)
CAMPOS: Revista de Antropologia / Universidade Federal do
Paraná. Programa de Pós-Graduação em Antropologia ; editores:
Ciméa Barbato Bevilaqua [...et al.], n.1 (2001) - Curitiba :
UFPR/PPGAS, 2001.
v. 22 n.1 2021 Semestral
ISSN: 2317-6830
1.Antropologia Social – Periódicos. I. Universidade
Federal do Paraná. Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social. II. Bevilaqua, Ciméa Barbato.
CDD 20.ed.
CDU 1976
306
304
SU M Á R IO
CAMPOS V.22 N.1 jan.jun.2021
Dossiê Etnografias em contextos pedagógicos
11
Etnografias em contextos pedagógicos:
alteridades em jogo
Eva Scheliga e Juliane Bazzo
33
Tristeza, disforia e bem-estar: perspectivas
etnográficas sobre a escolarização de Pessoas
Trans
Alef de Oliveira Lima
49
Ações e reações da escola diante de
masculinidades hegemônicas e não hegemônicas:
um olhar antropológico
Raimundo Nonato Ferreira do Nascimento e
Marcos Paulo Magalhães de Figueiredo
69
“Se aqui é o inferno, eu sou a principal
demônia!”: etnografando agências juvenis LGBT
em contextos escolares de Fortaleza (CE)
José Ricardo Marques Braga
92
É inclusão, com exclusão? Sobre os
entrecruzamentos de gênero, raça e
sexualidade no espaço escolar
Ana Profírio
111
Disputas por modos de reconhecimento em
políticas afirmativas no Ensino Superior
brasileiro
Judit Gomes da Silva
135
“Pedagogia do evento”: o dia da consciência
negra no contexto escolar
Rosenilton Silva de Oliveira e Letícia Abílio
do Nascimento
159
Tradição oral, construção de diálogo e
conhecimento na comunidade Quilombola da Rasa
Ana Carolina de Sousa Vaz e Lilian Sagio
Cezar
184
Religião e performances corporais: etnografia
com alunos evangélicos da zona rural de uma
escola pública de Minas Gerais
Sandra Pereira Tosta, Weslei Lopes da Silva e
Lucimara Aparecida L. Costa
Artigos
214
A doença comunista e a sopa de morcegos.
Sobre tráfico de animais, orientalismo e
pandemia
Felipe Vander Velden
242
O papel das atribuições na constituição
da hierarquia kadiwéu: uma análise das
distinções eyiguayegui
Gabriela de Carvalho Freire
264
Lideranças, fala e ação política entre os
Guarani Mbya
Lucas Keese dos Santos
Traduções
283
Vinciane Despret – vozes de outros mundos
Juliana Fausto e Miguel Carid Naveira
289
Pesquisar junto aos mortos
Vinciane Despret
Resenhas
308
Leirner, P. (2020). O Brasil no Espectro
de uma Guerra Híbrida: militares,
operações psicológicas e política em
uma perspectiva etnográfica. São Paulo:
Alameda Editorial. 329 p
Ciméa Bevilaqua
313
Gamlin, J. et al. (eds). (2020). Critical
Medical Anthropology: Perspectives in and
from Latin America. London: UCL Press.
Uliana Esteves
318
Porto, N., & Lima Filho, M. (orgs).
(2019). Coleções étnicas e museologia
compartilhada. Goiânia: Editora da Imprensa
Universitária. 261 p.
Manuelina Maria Duarte Cândido
323
Biruk, C. (2018). Cooking data: Culture
and politics in an African research world.
Durham: Duke University Press. 277 p.
Felipe Antônio Honorato
327
Giumbelli, E.; Rickli, J., & Toniol, R.
(orgs.). (2019). Como as coisas importam:
uma abordagem material de religião textos de Birgit Meyer. Porto Alegre:
Ed. da UFRGS. 334p.
Gabrielle B. Cabral
Instruções editoriais para os autores
Diretrizes para Autores
***
INDEX
CAMPOS V.22 N.1 jan.jun.2021
Dossier Ethnography in pedagogical contexts
11
Ethnography in pedagogical contexts: the
otherness at stake
Eva Scheliga and Juliane Bazzo
33
Sadness, dysphoria, and well-being:
ethnographic perspectives on the schooling of
transgender people
Alef de Oliveira Lima
49
School actions and reactions to hegemonic
and non-hegemonic masculinities: an
anthropological view
Raimundo Nonato Ferreira do Nascimento and
Marcos Paulo Magalhães de Figueiredo
69
“If here is the hell, I am the main devil!”:
an ethnography of the LGBT youth agencies in
school environments from Fortaleza (CE)
José Ricardo Marques Braga
92
Is it inclusion with exclusion? on the
intersections of gender, race and sexuality
in the school environment
Ana Profírio
111
Disputes for methods of recognition in
affirmative policies in Brazilian higher
education
Judit Gomes da Silva
135
“Event pedagogy”: Black Consciousness Day in
the school context
Rosenilton Silva de Oliveira and Letícia
Abílio do Nascimento
159
Oral tradition, dialogue building, and
knowledge in the Rasa quilombola community
Ana Carolina de Sousa Vaz and Lilian Sagio
Cezar
184
Religion and body performance: ethnography
with evangelical students from the rural area
of a public school in Minas Gerais
Sandra Pereira Tosta, Weslei Lopes da Silva
and Lucimara Aparecida L. Costa
Articles
214
The communist disease and the bat soup. On
animal trafficking, orientalism, and pandemics
Felipe Vander Velden
242
The role of attribution in the constitution
of the kadiwéu hierarchy: an análisis of
eyiguayegui distinctions
Gabriela de Carvalho Freire
264
Leadership, speech and political action among
the Guarani Mbya
Lucas Keese dos Santos
Translations
283
Vinciane Despret – voices from other worlds
Juliana Fausto and Miguel Carid Naveira
289
Inquiries raised by the dead
Vinciane Despret
Reviews
308
Leirner, P. (2020). O Brasil no Espectro
de uma Guerra Híbrida: militares,
operações psicológicas e política em
uma perspectiva etnográfica. São Paulo:
Alameda Editorial. 329 p
Ciméa Bevilaqua
313
Gamlin, J. et al. (eds). (2020). Critical
Medical Anthropology: Perspectives in and
from Latin America. London: UCL Press.
Uliana Esteves
318
Porto, N., & Lima Filho, M. (orgs).
(2019). Coleções étnicas e museologia
compartilhada. Goiânia: Editora
da Imprensa Universitária. 261 p.
Manuelina Maria Duarte Cândido
323
Biruk, C. (2018). Cooking data: Culture
and politics in an African research world.
Durham: Duke University Press. 277 p.
Felipe Antônio Honorato
327
Giumbelli, E.; Rickli, J., & Toniol, R.
(org.). (2019). Como as coisas importam:
uma abordagem material de religião - textos
de Birgit Meyer. Porto Alegre: Ed. da
UFRGS. 334p.
Gabrielle B. Cabral
Instructions to Authors
***
CAMPOS V.22 N.1 P. 11-32 JAN.JUN.2021
D O SSIÊ
Etnografias em contextos
pedagógicos: alteridades em jogo
Eva Scheliga
Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba/PR, Brasil
http://orcid.org/0000-0002-2270-0636
Juliane Bazzo
Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), Dourados/MS, Brasil
https://orcid.org/0000-0001-6196-3482
É com contentamento que fazemos chegar ao público leitor da Campos o segundo conjunto de
artigos do dossiê Etnografias em contextos pedagógicos. O foco de atenção desse novo apanhado de textos dirige-se aos marcadores sociais da diferença, em suas variadas manifestações nos ambientes formais
de ensino. Junto de Almeida et al. (2018:19), entendemos tais diacríticos “como efeito da operação de
complexos sistemas de conhecimento e de relações sociais”.
Logo, delimitados coletivamente, os marcadores não são naturais, mas podem surgir naturalizados e, muitas vezes, interseccionados (Crenshaw, 2002) para encampar exclusões e violações em
contextos atravessados por múltiplas e profundas iniquidades, como a realidade educacional do Brasil.
Ao mesmo tempo, essas alteridades e suas articulações mobilizam, na contramão, agências dos sujeitos
que as corporificam, impulsionando abundantes processos de subjetivação, negociação e ação política
conjugada, pela dissolução de cenários de desigualdade e pela afirmação da justiça social.
Conforme balanço realizado por Simões (2018), os marcadores sociais da diferença figuram
enquanto segunda área que mais cresceu em linhas de pesquisa na Antropologia brasileira na primeira
década dos 2000, situando-se atrás apenas do tradicional campo de investigações sobre identidade, territórios e relações interétnicas. Esse robustecimento encontra origens na consolidação, verificada nos
anos 1990, dos chamados Estudos de Gênero, cujo cabedal teórico vai colaborar, sobremaneira, com
reflexões mescladas sobre diacríticos de alteridade, conectando, dessa forma, gênero, sexualidade, raça
e classe nas análises, mas também outros, como geração (Debert, 2010) e deficiência (Mello, 2019).
Não surpreende que a expansão dos marcadores sociais da diferença como temática investigativa tenha repercutido sobre uma Antropologia da Educação contemporânea que toma os espaços
formais de ensino enquanto universos empíricos privilegiados de estudo (Bazzo & Scheliga, 2020).
Segundo Pereira (2017: 169), se o modus operandi das instituições de ensino modernas se dá em favor da naturalização de um panorama de subalternidades, opressões e violências, “há também muitas amostras de como elas [as entidades educacionais] são espaços em que as diferenças são colocadas
em questão a todo momento”.
Justamente pela característica de reservatório de alteridade, Frigotto (2001) argumenta que a
“gestão da escola” é “historicamente problemática” para o projeto de poder hegemônico: o capitalismo
moderno-ocidental necessita dela como instituição para ampliar a mão de obra e controlar o saber,
entretanto o acesso sucessivamente democratizado ao conhecimento, ainda que precarizado, termina
por abastecer articulações sociais a desafiar o próprio sistema. Os ambientes educacionais formais são
assim, a um só tempo, lugares de luta e de esperança por transformação (Sallas, 2017).
A seguir, antes de apresentar os artigos deste número, justamente instigadas pela riqueza de discussões que suscitam, problematizamos duas temáticas que nos são caras enquanto frentes particulares
de pesquisa no cenário brasileiro – a Primavera Secundarista, para a segunda autora e a religiosidade
em instituições de ensino, para a primeira. Acreditamos que ambos os assuntos nos possibilitam evidenciar, empiricamente, a ambivalência acima referida, entre subalternização e insurgência na operação
institucional da escola, oscilação em que as diferenças e suas ebulições exercem papel crucial.
Ocupações estudantis: um marco e seu legado
A chamada Primavera Secundarista, desenrolada no Brasil entre os anos de 2016 e 2017, situa-se
enquanto um “drama social” (Turner, 2008 [1974]) contemporâneo exemplar desse paradoxo (Rede
Escola Pública e Universidade, 2019). Como sabido, esse movimento de estudantes manifestou-se contra o sucateamento da educação pública brasileira a partir das chamadas ocupações em escolas de várias
partes do território nacional, sob especial inspiração de uma experiência discente dessa ordem sediada
no Chile, em 2006, denominada de Revolta dos Pinguins.
Por aqui, a Primavera veio na esteira de uma série de políticas e programas progressistas, em
favor da inclusão econômica e do reconhecimento da diversidade sociocultural, sob a liderança dos
governos petistas à frente do poder executivo. Como abordamos em outro lugar (Bazzo & Scheliga,
2020), esse conjunto de intervenções estatais encontrou no campo da educação um espaço central para
efeitos democratizadores. Estes, contudo, se viram às voltas com seus limites diante da onda conservadora que contra eles se insurgiu e que propulsionou os protestos estudantis.
Em nosso país, as ocupações principiaram em São Paulo quando, no final de 2015, o governo do
Estado anunciou uma “reorganização escolar” que, na prática, fecharia instituições de ensino e remanejaria à revelia discente contingentes do alunado. O levante paulista impulsionou coletivos de estudantes em outras unidades federativas, cujas mobilizações se intensificaram diante da impopularidade da
reforma do Ensino Médio suportada pelo Governo Michel Temer, logo após o impeachment controver-
12
CAMPOS V.22 N.1 p. 11-32 j a n . j u n . 2 0 2 1
ETNOGRAFIAS EM CONTEXTOS PEDAGóGICOS
so da presidenta Dilma Rousseff. A contestação questionou o caráter autoritário, apressado, retrógrado
e elitista da proposta reformista, colocada em curso por medida provisória (Carvalho et al., 2019)1.
Em depoimentos acerca da memória das ocupações, alunas do Colégio Pedro II, instituição de
ensino público federal situada no Rio de Janeiro (RJ), sintetizam que esses acontecimentos se fizeram
em torno de “três pilares” – “pretos” – sustentadores do cotidiano escolar: a limpeza, a alimentação e a
segurança. Na experiência de ocupar, tais atividades foram, nas palavras delas, “curricularizadas”, dado
que sua gestão ficou a cargo de coletivos de estudantes. Esse processo permitiu ao alunado dar-se conta
de que a escola pública não se realiza apenas por discentes e docentes, mas pelos esforços conjugados
de uma série de outras(os) trabalhadoras(es), em parte considerável terceirizadas(os), mulheres e negras(os) (The Intercept, 2019).
Afora essas atividades de base, o dia a dia das ocupações ficou marcado por uma gama de assembleias, rodas de conversa, oficinas e aulas abertas, nas quais se somaram convidadas(os) externas(os)
às comunidades escolares, entre militantes, intelectuais e artistas. Esse cotidiano não foi “fácil” ou “linear”, pois se as(os) estudantes receberam apoio de colegas, docentes, gestores escolares e familiares,
também encontraram oposições advindas dessas mesmas categorias de atores, às quais se adicionaram
tentativas de repressão policial e de outros órgãos estatais (Rede Escola Pública e Universidade, 2019).
A despeito disso, momentos potentes de diálogo resistiram e, afora as discussões logísticas do
movimento, as(os) discentes colocaram em debate um rol de questões contemporâneas de seu interesse, sobre gênero, sexualidade, feminismo, homofobia, racismo e violência (Sallas, 2017; Carvalho et al.,
2019). Nesse panorama, contestaram-se as investidas do movimento conservador Escola sem partido,
com seus riscos e efeitos, hoje publicamente reconhecidos, de criminalização da atuação docente, na
contramão da liberdade de cátedra; de tolhimento do pensamento crítico entre estudantes; bem como
de obstáculos a discussões amplificadas na escola sobre diversidade e direitos de minorias políticas
(United Nations Human Rights, 2017)2.
Grandemente midiatizada, graças ao poderio das redes sociais virtuais, a Primavera Secundarista teve entre seus méritos a capacidade de suspender na esfera pública um discurso de precariedade e
imobilismo não raro empregado para caracterizar a educação pública brasileira (Guedes, 2014; Sallas,
2017). O movimento apresentou à sociedade, por conseguinte, vozes em direção oposta, plenas de
força política, luta por cidadania e desejo por projetos de futuro, materializadas na escola, com ela e a
partir dela. Como assinalam Carvalho et al. (2019: 256), em linha com o pensamento turneriano, as
ocupações constituíram “communitas”, uma “experiência de unidade”: “todos e cada um eram a escola
e a escola era a comunidade da ocupação”.
1 Embora o governo anunciasse que a reforma propiciaria mais liberdade e oportunidades para o alunado, seus críticos desaprovavam nela
a promoção da mercantilização educacional, o favorecimento de um percurso de formação determinado por origens sociais e, por fim, o
aprofundamento de desigualdades, em direção a uma intensificação do neoliberalismo no país. A Associação Nacional de Pós-Graduação
e Pesquisa em Educação (Anped) manifestou-se publicamente sobre isso em mais de uma ocasião. Para tanto, cf. www.anped.org.br.
2 Capitaneado por uma organização da sociedade civil, o Escola sem partido diz militar contra a “usurpação do direito dos pais dos
alunos sobre a educação moral dos seus filhos”, além de combater o que chama de “contaminação político-ideológica” – de esquerda – nas salas de aula do país, lançando mão para isso de vias não só midiáticas, mas também legais, na forma de projetos de lei (cf.
www.escolasempartido.org).
CAMPOS V.22 N.1 p. 11-32 jan.jun.2021
13
Nessa vivência liminar, as alteridades mostraram-se recrutadas a todo momento, seja para evidenciar como são transformadas em desigualdades e violências materiais e existenciais (Therborn, 2010),
seja enquanto catalisadoras de subjetivação, agência e insurgência (Almeida et al., 2018). Aniely Silva
(2019: 187, 191) – jovem que se define como uma mulher negra, lésbica, periférica, feminista e ativista
da educação, além de acadêmica de ciências sociais – bem sintetiza como assim veio a se reconhecer,
especialmente no que tange à afirmação de sua sexualidade, a partir do engajamento em uma ocupação
de São Paulo (SP):
A escola é o lugar onde as pessoas podem finalmente ser quem elas são e conquistar o seu espaço.
É o lugar onde os maiores conflitos das descobertas pessoais aparecem. E como é assustador. [...]
Acabei entendendo que os problemas que eu tinha não eram necessariamente de “comportamento” ou de assimilação de conteúdo. Eram parte da descoberta de quem eu sou. Não tive ajuda em
casa e nem na escola [antes da ocupação], até ver pessoas que, assim como eu, não sabiam o que
fazer, mas estavam dispostas a se ajudar no que fosse preciso. Construímos juntos a nossa concepção de escola e de nós mesmas, e foi transformador.
A natureza catártica das ocupações, entretanto, chocou-se com uma espiral conservadora, que
já estava no pano de fundo dos levantes estudantis e terminou por desmobilizá-los. Como decorrência, reivindicações importantes do movimento não se fizeram atendidas como, por exemplo, o recuo
da reforma do Ensino Médio, que acabou concretizada na Lei nº. 13.415/2017. A despeito do desconcerto e da frustração que se abateram entre as(os) estudantes partícipes, principalmente diante
da chegada ao poder de um governo de extrema-direita nas eleições de 2018 (Capai, 2019), há que se
concordar com Carvalho et al. (2019: 258) quando afirmam que “[a]o suceder a antiestrutura, a estrutura já não é a mesma”.
Nas repercussões de longa duração da Primavera, nas aprendizagens que propiciou mobilizando
e projetando alteridades diversificadas, bem como nas marcas subjetivas, identitárias e políticas indeléveis que deixou, recordamos o esperançar de Butler (2017):
O mundo que os conservadores querem destruir, o mundo gay e lésbico, o mundo trans, o mundo feminista, já é muito poderoso. Eles não têm nenhuma chance de destruí-lo. E eles realmente
sabem que não apenas é muito poderoso, como está se tornando mais poderoso, está se tornando
mais aceito, e quanto mais aceito é, com mais raiva eles ficam. Mas o que vemos agora, nesse conservadorismo sexual contemporâneo, ou o que podemos entender como política sexual reacionária, é um esforço para nos levar de volta a um mundo que nunca mais voltará.
Religião: um marcador de diferença por toda parte na escola
No complexo jogo das alteridades vislumbrado nos contextos pedagógicos, a religião tem ocupado um lugar central – ainda que nem sempre seja um marcador de diferença analisado em conjunto
com a tríade gênero, classe e raça mais comumente abordada no bojo de uma perspectiva interseccional. Considerando os dados dos artigos reunidos neste dossiê, é notável o quanto a declaração de filia-
14
CAMPOS V.22 N.1 p. 11-32 j a n . j u n . 2 0 2 1
ETNOGRAFIAS EM CONTEXTOS PEDAGóGICOS
ção religiosa de docentes e discentes, bem como a maior ou menor adesão desses agentes aos princípios
da laicidade, da liberdade de crença e de expressão de diferenças, atravessam as experiências escolares,
constituindo-as e também por elas sendo informadas.
Em muitos casos, as filiações religiosas têm levado ao acirramento de conflitos e a práticas segregadoras no âmbito das instituições de ensino (Miranda, 2015), projetando-se nas escolas dinâmicas
que só podem ser melhor compreendidas à luz das mudanças recentes do cenário (religioso e político) nacional. Em concomitância aos conflitos, também se vislumbra a criação, através das religiões,
de laços potentes: além da organização de redes e circuitos de sociabilidade nas escolas e para além
delas, a vivência religiosa conforma sensibilidades específicas e abre possibilidades de ação que, de outro modo, não poderiam ser efetivadas por estudantes – e também por seus familiares, por docentes
e funcionárias(os) das escolas. As relações entre escola, educação e religião são marcadas, pois, por
ambiguidades, bem como por inúmeras clivagens, considerando-se a profunda heterogeneidade no
interior dos grupos religiosos que orbitam as instituições de ensino. Assim, é preciso redobrarmos
a cautela para efetivamente avançarmos a compreensão sobre o processo de produção e realocação
das diferenças via religião.
O entendimento sobre as mudanças no “campo religioso” brasileiro e sua reverberação nas dinâmicas escolares – e vice-versa, já que as instituições de ensino também se constituem como espaços
criativos, nos quais novas formas de experimentação religiosa se processam, tensionando o modo “tradicional” como as religiões se configuram no espaço público –, incitam, por certo, a novas pesquisas. Há, contudo, um importante caminho que já vem sendo trilhado em tal direção, sendo oportuno
registrar, neste texto, alguns marcos importantes deste debate. No Brasil a presença do religioso no
espaço escolar tem sido problematizada especialmente a partir da análise da oferta de aulas de Ensino
Religioso (ER) no Fundamental II. Foi sobretudo na década de 2000, sob os auspícios do Instituto Superior de Estudos da Religião (ISER), que pesquisas sobre esta disciplina de oferta obrigatória, porém
de matrícula facultativa, ganharam particular destaque no âmbito das Ciências Sociais.
O escrutínio da noção de laicidade e seu agenciamento em espaços públicos (neste caso específico, as escolas) norteou uma investigação antropológica pioneira organizada por Emerson Giumbelli
em parceria com Sandra de Sá Carneiro. Em um conjunto de publicações, editadas a partir de 2004,
a dupla divulgou os resultados da pesquisa que envolveu o mapeamento do ensino religioso no país,
trazendo considerações sobre os marcos legais e conteúdos curriculares (Carneiro, 2014; Giumbelli,
2009a, 2009b, 2011; Giumbelli & Carneiro, 2004 e 2006).
Pesquisas com foco nas aulas de ER e nas inúmeras controvérsias que envolvem sua implantação
nas escolas públicas têm sido fundamentais para a sistematização de um corpo de reflexões a respeito
dos processos de negociação do princípio da laicidade na história de nossa República. Igualmente lançam luz sobre os meandros da formação docente e a respeito da autonomia da instituição escolar frente
a autoridades não seculares. Vale destacar que aos esforços de Giumbelli e de Carneiro somam-se os de
Dickie & Lui (2007), Lui (2007, 2014), Braga (2008), Ranquetat Jr. (2008), Diniz, Lionço & Carrião
CAMPOS V.22 N.1 p. 11-32 jan.jun.2021
15
(2010), Maia (2014), Miranda & Maia (2014), Miranda (2015), Rodrigues (2015) e Santos (2016),
para citar apenas alguns trabalhos3.
O enfoque conferido à entrada da religião nos currículos escolares (inicialmente via disciplina
de ER) continua sendo relevante, sobretudo em meio à implantação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) – documento que estabelece as competências específicas, as unidades temáticas, os
objetos de conhecimento e as habilidades a serem desenvolvidas no âmbito das disciplinas – e, com ela,
do surgimento de um novo componente curricular transversal, os assim chamados “projetos de vida”,
no Ensino Médio. Os modos específicos de circulação de categorias religiosas na composição de propostas orientadas à reflexão e à tomada de decisões por parte de jovens estudantes, em articulação com
as discussões previstas sobre “autoconhecimento” e “ascensão social e profissional”, sem dúvida passam
a requerer a atenção das(os) pesquisadoras(os) que tomam os contextos pedagógicos como centro de
suas etnografias.
Outro elemento que deve ser levado em consideração é a repercussão da decisão de 2017 do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a improcedência da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI)
nº 4.439. Nela a Procuradoria-Geral da República questionava o modelo de ensino religioso contrário
à exposição neutra das religiões, entendendo que o ensino confessional feriria o princípio da laicidade
do Estado; por decisão apertada (foram seis votos a cinco), estabeleceu-se, contudo, que o ensino religioso ministrado nos estabelecimentos públicos de ensino pode ter caráter confessional4. Os efeitos
desta decisão continuam sendo vislumbrados, não apenas no que diz respeito ao ensino religioso confessional, mas também no debate mais geral sobre os modos pelos quais as diferenças podem ou não
ser suprimidas no regime de uma educação pública. No limite, pois, é a própria redefinição do caráter
de uma educação pública que vem sendo objeto de disputa. Não por acaso, vemos ressurgir com força
o debate sobre homeschooling, modalidade de ensino que outorga aos pais o direito de promover a educação, sem um necessário vínculo com a escola5.
Não se pode perder de vista, contudo, que a religião não vai à escola apenas como conteúdo
curricular: ela adentra os muros da escola de inúmeros outros modos, pois integra um esquema de
percepção e apreciação do mundo acionado pelos(as) agentes em meio às mais diversas experiências
e relações que perpassam as instituições escolares. Já se acumulam, neste sentido, investimentos de
pesquisa que exploram variados nexos entre religião e educação. Dentre eles, remetemos à leitura dos
3 Uma lista ampliada da bibliografia sobre ensino religioso encontra-se disponível na página do Núcleo de Estudos da Religião (NER)
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (http://www.ufrgs.br/ner/index.php/estante/arquivo-a-campo/48-bibliografia-ensino-religioso). Uma relação – desatualizada, porém útil – de teses sobre o tema pode, por sua vez, ser encontrada na página do Observatório
da Laicidade do Estado (OLÉ): http://www.nepp-dh.ufrj.br/ole/teses-ens_rel.html
4 Seguiram o parecer do relator do processo, Luis Roberto Barroso, que se manifestou favorável à ADI, os ministros Celso de Mello,
Marco Aurélio, Luiz Fux e Rosa Weber. Foram contrários ao parecer os ministros Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli,
Edson Fachin, Alexandre de Moraes e Carmen Lúcia, que deu o voto de minerva. Embora não seja possível desenvolver no espaço deste
texto a teia de argumentos favoráveis e contrários aos modelos de ensino religioso, não nos furtamos a destacar que na decisão colegiada
acabou por prevalecer a compreensão de que o ensino religioso aconfessional desrespeitaria alunos e suas famílias, obrigando-os a entrar
em contato com ideias contrárias às suas; ou seja, vigorou um entendimento sobre religião enquanto direito subjetivo individual, não
cabendo ao Estado, segundo maioria dos Ministros do STF, interferir nesta escolha.
5 Desde 2001 há registros de projetos de lei que visam regulamentar o homeschooling, sem sucesso na tramitação. Bandeira de campanha
do atual Presidente da República, a educação domiciliar foi incluída no rol das 35 prioridades do governo. No momento em que redigimos este texto, o PL 3262/19, apresentado em 3 de junho de 2019, entrou na pauta da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania
na Câmara Federal.
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ETNOGRAFIAS EM CONTEXTOS PEDAGóGICOS
trabalhos conduzidos por Roberta Bivar Campos e equipe (Campos et al., 2010; Campos & Silva,
2011; Silva & Campos, 2011) no âmbito de um projeto sobre (in)tolerância religiosa em escolas públicas e privadas de Recife, desenvolvido entre 2007 e 2009, e às recentes pesquisas de Alana Braga de
Souza (2016), Luciana Silva (2019) e de Marina Minarelli (2020) que, em comum, tiveram por foco
de análise a presença evangélica em escolas públicas, respectivamente em Abreu e Lima, Juiz de Fora
e em São Paulo. Mencionamos também as pesquisas produzidas no campo da Educação, em diálogo
com perspectivas sociológicas, elaboradas por Denise Mak (2014), Gabriela Valente (2015) e Adriane
Knoblauch (2015) sobre formação docente e vínculos religiosos6.
Esta literatura dá visibilidade a diversas situações que indicam como as religiões, de modo explícito ou oculto, compõem a paisagem escolar. Uma delas é a forma como muitas equipes pedagógicas e
docentes organizam suas rotinas diárias: não é incomum ler menções feitas a gestoras(es), membros da
equipe pedagógica e/ou docentes dando início ou encerrando suas rotinas diárias com a convocação
de estudantes para recitarem orações (Braga, 2008). O chamado às orações abrangeria desde preces
cristãs padronizadas, como é o caso do pai-nosso ou da oração do Santo Anjo, até rezas de caráter mais
espontâneo e subjetivo, refletindo diferentes modalidades de relações estabelecidas com entes divinos
ou sobrenaturais.
Também são frequentes os relatos acerca da presença de símbolos religiosos nos recintos escolares públicos, tanto nos espaços administrativos, ocupados estritamente por funcionárias(os) do estabelecimento de ensino, quanto nos de uso coletivo destinados prioritariamente a estudantes, como
salas de leitura e refeitórios. Outro exemplo relaciona-se ao calendário escolar, marcado por feriados
e celebrações de caráter religioso. À primeira vista, podemos inferir que ocorre a naturalização de algumas datas, como notadamente é o caso dos ciclos festivos da Páscoa e do Natal (Mak, 2014; Silva,
2011; Silva & Campos, 2011) – e que, assim como a oração do pai-nosso e alguns símbolos cristãos,
como a cruz e a bíblia (Ranquetat Jr., 2012), são assumidas como universais e, portanto, de interesse
compartilhado por todos os membros da comunidade escolar.
Minarelli (2020), no entanto, nos mostra outro ângulo deste quadro: a adesão às festividades
muitas vezes exige a “flexibilização das crenças” de estudantes e, especialmente, de seus responsáveis,
em uma complexa avaliação que observa os potenciais ganhos e riscos em participar, ou não, dos eventos com conotações religiosas. Em cada etapa da vida estudantil é possível (re)considerar as oportunidades de aprendizagem e de sociabilidade que as festas acarretam, de modo que o “peso” da religião é
ponderado, caso a caso. A mesma criança que, em um ano escolar, foi autorizada a participar de uma
celebração que contraria seu código religioso pode, em outro, ser formalmente proibida de envolver-se
com a festa – interdição que pode ou não ser seguida, lembrando aqui das avaliações feitas pelos(as)
estudantes e das possibilidades de agência que lhes são próprias.
Além disso, a literatura pontua que nem todas as celebrações são bem-vindas nos contextos pedagógicos cada vez mais diversos em termos religiosos. Algumas práticas de devoção, como a que envolve
6 Além das referidas pesquisas, vale fazer menção a surveys realizados em instituições de Ensino Superior, públicas e privadas, visando traçar o perfil religioso de estudantes de graduação e/ou as conexões entre pertencimento religioso, engajamento acadêmico e envolvimento
com atividades filantrópicas e políticas. Um levantamento destes estudos pode ser encontrado em Scheliga, Knoblauch e Bellotti (2020).
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a distribuição de doces no dia de São Cosme e Damião, nas últimas décadas passaram a ser sistematicamente recusadas, e com veemência, por estudantes e docentes em alguns contextos (L. Silva, 2019).
Assim, reitera-se na escola (e/ou se constrói, a partir dela) uma oposição entre, de um lado, católicos e
praticantes de religiões afro-brasileiras e, de outro, as pessoas que se declaram evangélicas – divisão que
logo em seguida pode sofrer rearranjos se mudarmos o objeto de controvérsia.
É possível observar, pois, a série de disputas e a consequente elaboração de novos sentidos a
alguns festejos, como é o caso emblemático das celebrações juninas. Ao longo dos últimos anos diversos
estabelecimentos de ensino aboliram os festejos dedicados ao trio dos assim chamados santos juninos
(Santo Antônio, São João e São Pedro) e, em substituição, passaram a celebrar as “festas da colheita”
ou a “festa junina da roça”. Tais reformulações atenderiam a uma demanda pela inclusão nos festejos
de outras confissões religiosas, evitando gerar constrangimentos nos alunos e alunas não professantes
da fé católica. Tais transformações também estariam vinculadas a demandas específicas de docentes e
membros de equipes gestoras e pedagógicas de confissão não católica, interessados em evitar o contato
(ou contágio) com o universo dos santos católicos.
Se, por um lado, a requalificação das festas juninas tem potencial para apaziguar certos conflitos religiosos, por outro, tal procedimento também pode gerar outras tantas rusgas. Manifestações de
descontentamentos em relação à transformação do que se convenciona chamar de “tradições escolares”
ou, ainda, do que se assume como símbolo da “cultura nacional” – no caso, o catolicismo popular – ou
do folclore brasileiro, com a mobilização da noção de multiculturalidade para promover a diversidade
religiosa no âmbito do ensino (Silva & Campos, 2011) também surgem aqui e ali nos diálogos travados
entre pesquisadores(as) e docentes, por exemplo.
As festas juninas – e outras datas cívicas, tais como o Dia da Consciência Negra (como nos mostra L. Silva, 2019 e Oliveira & Nascimento, neste número) – são, neste sentido, eventos particularmente férteis para observarmos as tensões e negociações em torno de duas políticas. Uma, segundo a qual
as diferenças devem ser minimizadas ou mesmo suprimidas a favor de uma expressão supostamente
neutra que seja capaz de funcionar como denominador comum, como um código compartilhado (seja
por conta de uma determinação legal ou por motivações religiosas comuns a diversos integrantes da
comunidade escolar). Outra, que reivindica o destaque e a valorização da identidade social de grupos
específicos, envolvendo seus códigos particulares7.
Todos os exemplos citados até aqui nos permitem inferir, pois, uma hierarquia oculta de crenças, sendo notória a prevalência de uma determinada matriz de pensamento religioso – de orientação cristã – e pouca abertura às demais manifestações religiosas. A este respeito podemos citar um
exemplo oriundo do trabalho de Gabriela Valente (2015). Em uma atividade rotineira com sua turma
do Ensino Fundamental, Raquel, uma das interlocutoras de Valente, deliberadamente interrompeu a
programação de leitura do capítulo final de uma história cuja heroína era a orixá Iemanjá. Inicialmente a pesquisadora supôs que a interrupção da atividade derivava do entendimento de Raquel de que
“a escola é laica”, ou seja, de que não seria oportuno dar destaque à temática religiosa naquele espaço
7 As festas juninas também se mostram centrais nas políticas de diferença de gênero empreendidas nos contextos pedagógicos. A este
respeito, ver o artigo de Nascimento & Figueiredo (2021), publicado nesta edição do dossiê.
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ETNOGRAFIAS EM CONTEXTOS PEDAGóGICOS
público. Contudo, não era este o caso: ao ser questionada sobre a mudança na condução da atividade,
a professora confirmou à pesquisadora que receava tratar de questões relativas às religiões africanas e
afro-brasileiras no contexto escolar, pois nas palavras de Raquel, “havia [na história] coisas estranhas,
de macumba” (Valente, 2015: 55/56 – grifos da autora). Assim, posiciona-se em claro desacordo com
o que estabelece a Lei 10.639/2003 que tornou obrigatório o ensino de História da África e cultura
afro-brasileira.
Além das orações regulares marcando os tempos escolares, das disputas em torno do significado
das festas e dos símbolos religiosos e da nada incomum presença de agentes religiosos compondo a
gestão escolar, mencionamos outras situações que evidenciam como a religião se faz presente no cotidiano escolar. Tomamos aqui o que nos indica Bérengère Massignon (2000) tendo como referência
o contexto educacional francês. Um primeiro exemplo diz respeito a dar ou não atenção a regimes de
obrigações alimentares específicas em virtude de pertencimentos religiosos, resultando na modificação
dos cardápios das merendas e refeições servidas a estudantes e profissionais de educação – o que também nos remete ao trabalho de L. Silva (2019) que abordou situações envolvendo evitações, por parte
de distintos agentes da escola, à comensalidade com conotação religiosa. Outros exemplos referem-se
à adoção de uma política de maior ou menor tolerância ao absenteísmo justificado por pertencimentos
religiosos, bem como à organização de capelanias religiosas e de modos de prestação de assistência religiosa aos usuários de equipamentos socioeducativos, envolvendo maior ou menor diversificação dos
tipos de serviço religioso oferecidos nestes espaços.
Em comum, todas as situações indicam como as instituições de ensino são, o tempo todo, instadas a colocar em marcha uma série de medidas que ora constrangem, ora ampliam os limites do religioso. A decisão do STF acerca do ensino religioso confessional bem exemplifica a querela em torno
da religião, mas não é, de modo algum, a única situação que permite antever a ambivalência do Estado
frente ao fenômeno religioso: norteado pelo princípio da laicidade, compete ao Estado garantir meios
para o exercício de identificação e compreensão das diferenças enquanto tais e, neste sentido, deve
tornar a religião um objeto de reflexão e de tolerância, concedendo tratamento equânime a todas as
crenças; também cabe ao Estado laico garantir a liberdade de culto e de crença, garantindo o exercício
dos direitos individuais. A escola pública, integrando a malha do Estado, configura-se, assim, como
um espaço social singular no qual estes preceitos são postos em ação e estes antagonismos são vividos;
torna-se, assim, um campo privilegiado para se observar como as religiões (e também a própria noção
de laicidade) são produzidas e modeladas, ou seja, sobre o que é socialmente definido como possível de
ser classificado e aceito como religioso – e o que escapa a estes limites, e como.
Colocar sob a lupa das Ciências Sociais e, sobretudo, da Antropologia, toda esta gama de práticas que estruturam o cotidiano escolar produz um deslocamento interessante, a nosso ver. Somos
convidados(as) a observar e analisar mais detidamente os processos históricos e as condições sociais
que constituem o religioso e o laico em nossa sociedade e, por consequência, a revisitar criticamente
alguns pressupostos acerca do retraimento do religioso na modernidade.
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Os artigos do número
Em seu conjunto, acreditamos que os artigos a compor esta segunda parte do dossiê Etnografias
em contextos pedagógicos colaboram na reflexão antropológica sobre nuances a permear determinantemente o universo de debate dos marcadores sociais da alteridade. O mapeamento dessas sutilezas, por
intermédio do esforço etnográfico, nos defronta com a existência – não estanque e sim dinâmica – de
diferenças no interior das diferenças, conforme o desenho de certas conjunturas sócio-históricas, no
Brasil e no mundo.
Esse encontro se revela propício ao adensamento tanto teórico-empírico, quanto político-militante, de questões nevrálgicas, como aquelas a respeito da “interseccionalidade” (Crenshaw, 2002;
Akotirene, 2018); de “batalhas morais” na esfera pública em torno das identidades (Miskolci, 2020);
como também daquilo que se denomina por “allyship” [“aliança”] no panorama dos ativismos estadunidenses. Esta última ideia refere-se às possibilidades de engajamento efetivo, não superficial ou romantizado, de atores externos a coletivos historicamente subalternizados em lutas desses grupos por
garantia de direitos (McKenzie, 2014; Bazzo, 2020).
O pensamento “contracolonizador” de Antônio Bispo dos Santos (2015) acerca das alteridades
e seus entrelaçamentos nos adverte que “nem tudo que se ajunta se mistura”, assim como “nem tudo que
se mistura se ajunta”. Consideradas essas fronteiras, Santos visualiza como possíveis a “confluência”, isto
é, a convivência entre diferenças, como também a “transfluência”, que implica sua conjugação, mantida
em ambos os movimentos a plenitude particular a cada alteridade em jogo, ou seja, seu valor como
diversidade, que não se confunde com recrutamento como desigualdade.
Os textos apresentados a seguir nos dizem desses fluxos, dos seus caminhos mais ou menos fluidos, sinuosos e/ou tempestuosos. Nessa perspectiva, os trabalhos reiteram o valor da etnografia para
o aprofundamento dos matizes que atravessam os marcadores sociais da diferença, em seus dilemas e
conquistas, no âmbito de discussões, análises, proposições e intervenções, na academia e fora dela.
No artigo de abertura deste número do dossiê, Alef de Oliveira Lima (2021) nos apresenta uma
etnografia dos dilemas e das demandas de estudantes transgêneros perante a escolarização moderno-ocidental que, historicamente, confere primazia ao binarismo masculino-feminino, central ao sistema capitalista de produção. Esse binômio de controle social se manifesta opressivamente naturalizado
enquanto operador classificatório e, portanto, avaliativo de condutas, relações e trajetórias dentro das
instituições de ensino.
Lima conduziu oficinas de pesquisa com discentes do TransEnem, coletivo de educação popular
em Porto Alegre (RS), preparatório para provas de admissão em cursos de nível superior, no qual ele
atuou como professor de Sociologia. Dessa forma, pôde reunir uma série de dados sensíveis que tensionam a noção de “disforia” como terminologia médica, que diz dos distúrbios psicossociais capazes
de acometer indivíduos em desacordo com o gênero que lhes foi atribuído ao nascer. Ao dialogar,
conviver e refletir com estudantes trans, o autor nos propicia verificar que a “disforia” – isto é, o mal-estar profundo dessas(es) discentes com as instituições de ensino e com a sociedade em que estas(es)
se encontram inseridas(os) – se origina, em definitivo, do ambiente social em que está a escola e não no
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ETNOGRAFIAS EM CONTEXTOS PEDAGóGICOS
interior do sujeito trans. Ou seja, a disforia se constrói de fora para dentro e não o contrário, invertendo, portanto, a premissa médica.
O artigo traz ainda uma importante contribuição acerca da posicionalidade de um investigador
cisgênero pesquisando com pessoas trans. Sem desconsiderar a bandeira “nada sobre nós sem nós”, empunhada pelos movimentos de defesa identitária na contemporaneidade, Lima delineia seu espaço de
fala como homem-cis-professor, que convoca outros indivíduos assim identificados a pensarem sobre
si mesmos, a partir de um gradiente de privilégios e vulnerabilidades sociais interseccionadas. Essa reflexão coloca-se fundamental à luta por uma escola plenamente diversa, onde devem coabitar docentes
e discentes tanto trans quanto cisgêneros.
Raimundo Nonato Ferreira do Nascimento e Marcos Paulo Magalhães de Figueiredo (2021)
dão continuidade em seu artigo ao debate no dossiê sobre gênero, sexualidade e as tensas relações desses marcadores de diferença com a escola. Por intermédio de etnografia sediada em uma instituição
pública de ensino de Teresina (PI), a dupla evidencia os elementos que compõem um perfil de masculinidade considerado apropriado no ambiente educacional. Perfil este completamente idealizado,
para fins normativos, visto que destoa por completo da realidade discente marcada pela diversidade
sexual e de gênero.
A chave analítica acionada por Nascimento e Figueiredo para analisar seus dados etnográficos
consiste em desvelar a rejeição mais aguda da escola a dois tipos que estariam em extremos opostos
numa gama de masculinidades empiricamente possíveis: o estudante que se identifica como heterossexual e se mostra viril em demasia e o estudante que se afirma homossexual e é visto como feminino em
excesso. Essa trilha demonstra procedimentos disciplinares semelhantes da gestão escolar em relação
a sujeitos que se expressam por orientações sexuais e identidades de gênero díspares e que, a princípio,
poderiam ser pensadas como analiticamente incomunicáveis.
Os autores têm claro que estudantes heterossexuais ocupam uma posição de privilégio em relação aos homossexuais. Contudo, sem desconsiderar essa desigualdade verticalizada, querem chamar a
atenção para uma “aproximação contingente” (Velho, 1997): o fato de que tanto alunos “muito viris”,
quanto alunos “deveras femininos” não cumprem todos os requisitos considerados fundamentais à
masculinidade tida por ideal, tais como a heterossexualidade, a não violência, a discrição e o comprometimento com o trabalho assalariado. Tal quadro torna a expulsão ou a evasão da escola uma perspectiva no horizonte daqueles discentes que não se encaixam nesses limites, algo passível de ocorrer de
formas abrupta e aberta ou compassada e velada.
O artigo de José Ricardo Marques Braga (2021) prossegue explorando no dossiê as vivências
escolares cotidianas das juventudes LGBT, sigla para coletivos, hoje sabemos, muito diferenciados,
mas que, em comum, militam contra opressões de uma cultura cisheteronormativa, a qual, como já
foi dito, tem na escola um espaço de manifestação por excelência. O título do trabalho – “Se aqui é o
inferno, eu sou a principal demônia!” – figura, certamente, como um chamariz para nossa leitura. A
exclamação é de uma das interlocutoras do autor, cuja etnografia se deu no universo de escolas públicas
de Fortaleza (CE).
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Nesses ambientes, situar-se enquanto uma “demônia” diz respeito a processos de subjetivação
recheados de ambivalências perante a escola como instituição. Ser “demônia” é se revelar desviante aos
olhos da norma. Significa, além disso, desafiar e insurgir-se contra as injustiças, exclusões e violências da
norma. Contudo, também se refere à afirmação do direito de usufruir da escola sendo quem se é, tendo
acesso a tudo que pode oferecer: não somente a educação formal, mas adicionalmente – e não menos
importante – a socialidade intensa que essa entidade comporta para as juventudes.
Nessa esteira, Braga nos evidencia uma relação multifacetada das(os) estudantes LGBT com as
instituições de ensino. A escola é, ao mesmo tempo, espaço de sofrimento, mas também e, a despeito
disso, lugar de se (re)fazer sujeito de projetos de vida, de redes de relações e de aspirações de futuro
(como alguns artigos da edição anterior de nosso dossiê também apontam). Portanto, não somente a
escola age normativamente sobre essas(es) jovens; elas(es), igualmente, agem sobre a escola, lembrando-a dia a dia da faceta democrática que marca a história paradoxal dessa instituição, à qual já aludimos
aqui. Algo, entretanto, é certo: as juventudes LGBT não querem prescindir da escola, em absoluto, mas
a desejam transformada, sem sombra de dúvida.
A partir de uma abordagem interseccional, Ana Profírio (2021) explora as dinâmicas que envolvem uma escola em Maceió (AL) que aderiu a uma política inclusiva de gênero e de sexualidade. Ao
longo de um ano, a autora acompanhou o cotidiano das(os) estudantes, centrando sua observação não
nas interações em sala de aula, mas no que acontecia nos demais espaços compartilhados, ou seja: no
pátio, no ginásio, nos corredores, nos banheiros coletivos e na cantina. Foi seguindo as dinâmicas de
sociabilidade nestes diferentes espaços escolares que teve acesso ao coito, como assim era intitulado o
grupo por uma das interlocutoras da pesquisa. A partir dele, a pesquisadora pode vislumbrar a grade
classificatória que ordena quem integra o núcleo das travas, dos machos, das gays e das rachas.
Também foi graças à estratégia adotada para a realização da pesquisa que Profírio percebeu as
ambiguidades em torno da política de inclusão aplicada na escola, bem como sobre a centralidade das
resenhas como um modo singular de colocar em operação os processos de racialização nesse âmbito.
A própria pesquisadora, aliás, se viu enredada nestas tramas, o que rendeu para este artigo também
uma oportuna reflexão sobre a construção da posição da investigadora em campo e, claro, sobre racismo. Também resultou na reflexão sobre as insígnias que permitem dar expressão – ou, pelo contrário,
tornar opacas e difusas – as marcas da negritude; naquela escola, notadamente, eram os cabelos que
cumpriam essa função.
Embora no título do artigo seja dado destaque ao entrecruzamento entre gênero, sexualidade e
raça, o trabalho de Profírio também traz elementos para pensarmos sobre a religião como um importante marcador de diferenças nos contextos pedagógicos. Muitas das tensões, mas também dos arranjos
inclusivos que aconteciam na escola, ocorriam no âmbito do Juventude para Cristo ( JPC), grupo que
se reunia periodicamente para promover atividades religiosas nos intervalos entre as aulas. O grupo de
orientação cristã (que agrega, portanto, tanto estudantes católicos quanto evangélicos) parece, pois,
condensar a complexidade das relações observadas naquele contexto.
Por um lado, o JPC abriga alunas(os) gays, permitindo a estas(es) jovens a vivência de sua religiosidade – algo que parece não ser tão comum, dado que em outros espaços religiosos convencionais há
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menos abertura à inclusão de pessoas LGBT – associada à relativa tolerância ao exercício de identidade
de gênero não normativa. O JPC mostra-se, assim, muitas vezes compatível com as premissas inclusivas
que norteiam, de modo geral, a pedagogia da escola. Por outro lado, Profírio mostra que o exercício
da liderança no interior do grupo – e a partir dele, no colégio como um todo – podia ganhar impulso,
ou, pelo contrário, encontrar entraves, à medida que as vivências que interseccionam gênero, sexualidade, classe e raça se aproximavam ou se afastavam de certos parâmetros compartilhados pelas(os)
alunas(os). Assim, as “saídas do armário” ou as “transições de gênero” não se faziam sem gerar tensões e
exclusões, desestabilizando as práticas de inclusão preconizadas na escola.
O artigo de Judit Gomes da Silva (2021), por sua vez, nos apresenta uma etnografia dos mecanismos de reconhecimento de pessoas autodeclaradas negras e indígenas para ingresso estudantil, via
ações afirmativas, em cursos de graduação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Entre
o trabalho de campo in loco e aquele realizado com suporte de documentos, a autora cobre um período
temporal seis anos, de 2012 a 2018, intervalo no qual o Conselho Universitário da UFSC – o “outro”
de pesquisa da etnógrafa – deliberou a respeito de suas políticas de cotas para promoção de direitos de
minorias políticas, especialmente quanto à pertinência das comissões de validação de autodeclaração.
Silva descreve uma série de reuniões capitaneadas por essa instância, analisando como emergiram nesse espaço tensões, dissensos e acordos. Nesse contexto, a autora esmiúça o laborioso processo de negociação em meio a uma diversidade de atores que compõem o Conselho, entre gestores
universitários, docentes, funcionários, discentes e representantes da sociedade civil. Em tal senda, a
etnografia revela que estudantes autodeclaradas(os) negras(os) e indígenas, embora compartilhassem a causa das ações afirmativas, nem sempre concordavam a respeito dos procedimentos pelo qual
elas seriam operacionalizadas.
A percepção dessa divergência, logo, nos disponibiliza uma interessante reflexão na interface raça-etnia, enquanto marcadores sociais da diferença. Afora isso, importa notar que se o texto contribui
a uma Antropologia da Educação, do mesmo modo instiga debates em uma Antropologia do Estado,
demonstrando que, embora a divisão em subcampos disciplinares tenha eficiência heurística, é da hibridez de fato existente entre eles que o conhecimento de valor se faz. Por fim, o investimento da autora
em uma sólida etnografia de documentos, não apenas impressos, mas também audiovisuais, constitui
certamente uma inspiração para o momento de pandemia da Covid-19, que nos exige distanciamentos
interpessoais e convoca a repensar o tradicional trabalho de campo presencial.
Dando sequência à discussão mais específica sobre raça como marcador de diferença, Rosenilton
Silva de Oliveira e Leticia Abílio Nascimento (2021) retomam a já clássica discussão sobre os desafios
da implementação da Lei 10.639/2003 no âmbito da Educação Básica. De modo a compreender como
os pressupostos de uma educação antirracista são colocados em ação, os autores se debruçam sobre as
ações pedagógicas que circundam a celebração do Dia da Consciência Negra, tendo como referência
o trabalho de pesquisa efetuado em duas escolas públicas localizadas no município de São Paulo (SP).
Em uma delas, a que integra a rede municipal de ensino, os projetos relativos à temática das relações étnico-raciais mostram-se pouco integrados ao currículo escolar. Sob a evocação de uma noção de
“autonomia discente”, tais iniciativas se desenvolvem, na avaliação dos pesquisadores, sem uma neces-
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sária articulação pedagógica; configuram-se, desta forma, como ações tópicas, cujos resultados, apesar
dos propósitos democráticos que tais intervenções pedagógicas mobilizam, ficam aquém das expectativas das políticas públicas que visam à equidade racial e à valorização da diversidade. Já na Escola de
Aplicação da Universidade de São Paulo a dupla de pesquisadores encontra uma situação um tanto
diversa: uma intensa programação de atividades acompanha docentes e discentes ao longo de todo
o calendário letivo, sugerindo maior incorporação dos conteúdos étnico-raciais à experiência escolar
cotidiana, bem como maior capacidade de mobilização de princípios de uma educação antirracista.
Em suma, as experiências observadas em ambas as escolas já não podem ser meramente enquadradas sob a rubrica da “pedagogia do evento” (Bakke, 2011). Oliveira e Nascimento indicam, portanto,
avanços em relação à situação descrita por Bakke tendo por o cenário os anos finais da década de 2000
e reiteram a necessidade de se considerar as múltiplas gradações no modo como a Lei 10.639/2003 é
aplicada. Mas talvez o grande achado desta pesquisa seja o de nos mostrar como o fluxo Universidade-Escola é vital para conformar novas relações de ensino e de aprendizagem e dar mais efetividade à
aplicação das políticas educacionais inclusivas. Em tempos em que se multiplicam as suspeitas sobre
a relevância do ensino público articulado à pesquisa e à extensão universitárias, o artigo faz alusão à
potência das ações desenvolvidas pela academia em associação com as escolas da rede estatal.
O tema do ensino de conteúdos étnico-raciais foi também explorado por Ana Carolina Vaz e
Lilian Sagio Cezar (2021). Neste caso, toma-se como objeto de reflexão as ações de educação formal
dedicadas à História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena, tendo como referência uma escola pública
da rede municipal de ensino na cidade de Armação dos Búzios (RJ). A particularidade desta escola é
que ela está localizada na comunidade remanescente de quilombo da Rasa.
Neste estudo de caso, as autoras exploram as ações da docente Bianca e de sua turma do quinto
ano de Ensino Fundamental na rotina de ensino e de aprendizagem de conteúdos previstos nas Leis nº
10.639/2003 e 11.645/2008. A promoção de um evento literário por parte da Secretaria Municipal
de Educação, Ciência e Tecnologia do município de Armação dos Búzios funcionou como estopim
para a professora de História propor à turma uma “pesquisa de campo”, levando as(os) estudantes até as
pessoas mais velhas da comunidade quilombola para que elas pudessem ser entrevistadas. Os registros
desta experiência pedagógica foram depois materializados em maquetes, expostas ao público da cidade
por ocasião da Festa Literária.
O projeto de Bianca mostrou-se, pois, bastante complexo, pois envolvia: a) tensionar aquilo
que é compreendido como a “história oficial”; b) desnaturalizar as relações de desigualdade social que
marcam a comunidade; c) valorizar o saber tradicional; d) combater o preconceito em relação à comunidade quilombola e a seus moradores; e) levar a comunidade à escola (tanto por meio da exploração
das narrativas locais, ora transformadas em conteúdo escolar, como por meio da visita dos moradores
da cidade à exposição de maquetes). A combinação de tantos objetivos, educativos e políticos, se liga à
própria condição de Bianca: casada com um membro da comunidade da Rasa e ali vivendo, a docente
desenvolveu uma atenção especial para a história local, assumindo ser premente a difusão dos conhecimentos “dos mais velhos” junto aos mais jovens. Também se antevê, em rápida passagem do artigo, sua
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percepção sobre os perigos iminentes de se perder esta memória, inclusive por efeito de novas dinâmicas religiosas que requalificam, negativamente, as práticas associadas à ancestralidade africana.
O artigo tangencia, assim, a discussão sobre a escola como um lugar estratégico para a produção
de uma memória coletiva, sendo também, por consequência, terreno de intensa disputa, quer pelas
tradições, quer pelas representações étnico-raciais. Em sua abordagem ao tema as autoras privilegiam,
contudo, a produção de um relato sobre a experiência didática, indicando as potencialidades da ação
de Bianca, o que alinharia sua prática pedagógica à perspectiva decolonial.
No texto que encerra este número do dossiê, Sandra Pereira Tosta, Wesley Lopes da Silva e Lucimara A. L. Costa (2021) retomam a religião como marcador da diferença, lançando olhares sobre
as performances corporais de estudantes declaradamente evangélicos. O foco da pesquisa recai sobre
discentes vinculados à Igreja Assembleia de Deus, uma das denominações pentecostais mais antigas do
Brasil e com orientações mais específicas sobre a conduta corporal de seus membros. A observação das
aulas de Educação Física realizadas em uma escola estadual localizada na zona rural de Minas Novas
(MG) e o conjunto de anotações feitas por treze estudantes assembleianos, matriculados no Ensino
Fundamental e no Ensino Médio do referido colégio, constituem a matéria do artigo do trio de autores.
O manuscrito se soma, assim, à literatura que vêm explorando as relações entre religião e educação, destacada na seção anterior. No contexto analisado por Tosta, Silva e Costa, o comportamento
em sala e na quadra esportiva guarda, de modo geral, parentesco com a disciplina aprendida pelos(as)
estudantes nos bancos da igreja. O artigo investe em mostrar como as marcas de distinção como fiéis
assembleianas(os) são mantidas no âmbito da escola, especialmente entre as moças, às quais são reservadas prescrições aparentemente mais severas sobre o comportamento público que aquelas que incidem sobre os rapazes.
Porém, ainda que vestimentas, maquiagem e penteados prescritos sejam, de modo geral, adotados pelas alunas e, portanto, a lógica religiosa oriente as condutas corporais, isso não significa que não
haja, por parte das e dos estudantes, algum manejo das regras de conduta incorporadas na comunidade
de fé. Os preceitos doutrinários são, assim, passíveis de serem relativizados, favorecendo adaptações –
especialmente por parte das(os) que se engajam nas práticas esportivas e lúdicas promovidas na escola.
O artigo também faz alusão a como estes corpos evangélicos não são inertes: eles ganham movimento
em circuitos próprios de lazer promovidos pela igreja, tornando-a centro ativo da promoção de uma
sociabilidade juvenil.
Finalizamos esta apresentação agradecendo, uma vez mais, a Caroline Leonardi de Quadros pela
produção da ilustração da capa desta edição, a partir de fotografia gentilmente cedida por Alef de Oliveira Lima de um zine produzido por interlocutores(as) de sua pesquisa. Que a potência desta imagem
traduza a complexidade dos jogos de alteridade acompanhados por autoras e autores em suas incursões,
sob inspiração etnográfica e em meio a diferentes contextos pedagógicos, de Norte a Sul no país, gerando contribuições que temos a honra de editar aqui na Campos.
Desejamos a todas(os) uma boa leitura!
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Eva Scheliga é Doutora em Ciência Social (Antropologia Social) pela Universidade de São Paulo (USP) e Professora Adjunta da Universidade Federal do
Paraná (UFPR).
Juliane Bazzo é Doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS) e pesquisadora associada ao grupo ¿DiVerso?:
pesquis(ações) sob(re) resistências sociais, da Universidade Federal da Grande
Dourados (UFGD).
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ETNOGRAFIAS EM CONTEXTOS PEDAGÓGICOS: ALTERIDADES EM JOGO
Resumo: Este texto almeja um debate sobre e, ao mesmo tempo, com o segundo conjunto de artigos
do dossiê Etnografias em contextos pedagógicos, cujo foco dirige-se à problematização de diacríticos de
alteridade nos ambientes formais de ensino. Situamos esse apanhado de manuscritos em um contexto
de incremento no Brasil, a contar da primeira década de 2000, de estudos antropológicos hospedados
em linhas de pesquisa a versar acerca dos marcadores sociais da diferença. Argumentamos que, não
coincidentemente, esse crescimento incide sobre uma Antropologia da Educação contemporânea que
toma as instituições de ensino, tensos e expressivos reservatórios de alteridade, enquanto universos de
investigação. Instigadas pelas discussões que os artigos nos suscitam, exploramos duas temáticas que
nos são caras enquanto frentes particulares de pesquisa – a Primavera Secundarista e a religiosidade nos
espaços escolares –, por acreditar que ambas nos possibilitam evidenciar, empiricamente, a ambivalência entre subalternização e insurgência intrínseca à educação formal moderno-ocidental, oscilação em
que as diferenças, historicamente, têm exercido papel crucial.
Palavras-chave: Etnografia escolar; Gênero; Sexualidade; Raça; Religião.
ETHNOGRAPHY IN PEDAGOGICAL CONTEXTS: THE OTHERNESS AT STAKE
Abstract: This text aims a debate about and, at the same time, with the second set of articles of the
dossier Ethnographies in Pedagogical Contexts, which focus on the problematization of the otherness in
educational institutions. We situate this collection of manuscripts in a context of an increase in Brazil,
since the first decade of 2000, of anthropological studies hosted in research lines dealing with social
markers of difference. We argue that not coincidentally this growth affects a contemporary Anthropology of Education that takes educational institutions, tense and expressive reservoirs of otherness,
as research universes. Instigated by the discussions that the articles raise, we explore two themes that
are significant to us as particular research fronts – the Primavera Secundarista (High School Spring)
and the religiosity in school spaces – for believing that both allow us to empirically evidence the ambivalence between subalternation and insurgence intrinsic to modern-western formal education, an
oscillation in which differences have historically played a crucial role.
Keywords: Schooling Ethnography; Gender; Sexuality; Race; Religion.
RECEBIDO: 31/05/2021
ACEITO: 16/06/2021
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CAMPOS V.22 N.1 P. 33-48 JAN.JUN.2021
D O SSIÊ
Tristeza, disforia e bem-estar:
perspectivas etnográficas sobre a
escolarização de Pessoas Trans
ALEF DE OLIVEIRA LIMA
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL (UFRGS), PORTO ALEGRE (RS), BRASIL.
http://orcid.org/0000-0002-7390-3679
Introdução
Talvez não seja um grande desafio descrever com o mínimo de acuidade o modo como as Pessoas
Trans são tratadas e acolhidas nos espaços escolares. De certo, basta que se examine rapidamente a pro1
dução reflexiva sobre gênero, identidades Trans e diversidade no campo da educação escolar (Santos &
Silva, 2017). O que tenho a oferecer à questão do processo de escolarização de estudantes transgêneros
se deveu à minha própria experiência como um docente cisgênero2 de Sociologia, em um Coletivo de
Educação Popular na cidade de Porto Alegre (RS), chamado TransEnem. Trata-se de uma etnografia
que venho desenvolvendo ao longo da pesquisa de doutorado, portanto parte do texto é um fragmento
dos argumentos que possivelmente serão utilizados na tese.
Elencar as dificuldades e a solidão causadas por um espaço escolar que despreza a diversidade ou
não reconhece a singularidade dos sujeitos não é uma novidade. Mas de que maneira, factualmente,
isso ocorre? De que modo subsiste também uma dimensão corporalizada nessa escolarização? Bem, é
verdade que se pode recorrer aos clichês, às narrativas-padrão sobre as formas de definir o preconceito
1 O termo Pessoa Trans escrito com iniciais maiúsculas se justifica por pelo menos duas razões: 1. Política: refere-se a uma escolha de
designação que enfatiza o caráter de sujeito/pessoa aos interlocutores(as) da pesquisa; 2. Simbólica: acompanha a opção esboçada pela
comunidade Trans em diferentes momentos de seu ativismo, ao enfatizar ou evidenciar sua existência enquanto um fato politicamente
inegável. A palavra transgeneridade sintetiza a experiência e a existência de pessoas cujo gênero designado compulsoriamente ao nascer
encontra-se em desacordo com sua vivência subjetiva e corporal. O conceito de transgeneridade é usado aqui como termo guarda-chuva
para essas diversas existências não hegemônicas de identidade de gênero ( Jesus, 2012).
2 Cisgeneridade descreve o indivíduo que, supostamente, se encontra de acordo com o gênero compulsório designado desde o nascimento pelo discurso social vigente. A terminologia ‘cis’ tem um princípio inicialmente contrastivo para diferenciar com as Pessoas Trans. A
palavra foi criada por Donna Lynn Matthews (cf. http://donnas-hideout.org/tg_def.html. Acesso em 13/11/2019). ‘Cis’ seria aquele ou
aquela que, por não ter sua identidade de gênero atacada por diversos saberes e práticas, naturaliza sua posição de gênero.
a partir do bullying, da violência difusa, física e psicológica às quais as Pessoas Trans são submetidas cotidianamente. Para mim, não foi fácil escutar a minha turma. Quando propus realizar oficinas de pesquisa, a fim de sondar que demandas se traduzem no abandono da vida estudantil, não imaginei a variedade de feições, corporeidades e sentimentos que se inscrevem subjetivamente nessa “vivência evadida”.
Com esse termo, “vivência evadida”, sintetizo uma série de posicionamentos dentro de uma matriz normativa que se define por gestos, práticas e discursos. Um modo de fazer evadir ou impelir a Pessoa Trans para fora da escola. Sendo então possível compreender a evasão como um último estágio de
uma vida estudantil precarizada por certos tipos de microações destinadas, antes, a fazer um movimento de saída da escola na forma de uma sutileza, aparentemente desprovida de intencionalidade ou de
sentido social, assim gerando um processo de estigmatização sobre aquele(a) que optou pela evasão dos
quadros escolares. Pode-se acrescentar a isso uma verdadeira forma de expulsão compulsória, conforme
uma cultura escolar da re/produção da diferença em que o espaço pedagógico se mostra um lugar de
fobia/repressão para os/as estudantes Trans (Oliveira Júnior & Maio, 2016).
Logo, no decorrer desse processo de escuta e problematização junto com a turma, foram tomando forma alguns dos principais aspectos pelos quais a experiência Trans é evocada dentro da escolarização. Entre esses pontos, gostaria de destacar: a tristeza como sentimento-motriz; a disforia na
forma de um marcador social transversal (e problemático) das identidades Trans e Travestis; por fim,
a sensação de bem-estar quando acompanhada pelo reconhecimento social do gênero escolhido. Porquanto a perspectiva utilizada nesse trabalho esteja orientada por um viés antropológico, a proposta é
descrever de que maneira esses pontos são mobilizados e agenciados nas narrativas dos(as) estudantes.
Em todo o caso, não viso totalizar a experiência dos interlocutores em ações isoladas, mas sim situá-las
nas formulações de uma coletividade que se remetia ao contexto das aulas e oficinas.
Antes, é preciso definir e localizar minimamente o que é o TransEnem e o seu escopo de implementação. O Coletivo nasceu da iniciativa civil de mulheres e homens LGBT e Trans de Porto Alegre
que decidiram criar um projeto popular de educação centrado nos temas de gênero e diversidade sexual,
que seria também um cursinho pré-vestibular, nos idos de 2015. A ação foi inspirada em outras iniciativas que se (in)surgiam na mesma época, como o PreparaNem, no Rio de Janeiro (RJ), e o TransEnem
de Belo Horizonte (MG). De imediato a proposta do Coletivo teve uma adesão organizativa de voluntários, licenciandos e professores formados, interessados na construção de uma mínima estrutura para
atuação e recebimento do corpo discente. As aulas ocorriam muitas vezes nos apartamentos e casas
dos voluntários. Em 2016, por meio de uma parceria com o Instituto Federal do Rio Grande do Sul
(IFRS), o Coletivo TransEnem ganhou uma face institucional enquanto projeto de extensão.
Com a nova interface de atuação, o Coletivo criou um slogan de divulgação por meio das redes
sociais, reforçou a equipe de professores voluntários, passou a realizar entrevistas individuais de seleção
e a ofertar formações específicas no campo da educação popular e transexualidade. A equipe de organização também optou por formar um grupo psicopedagógico com psicólogos(as), assistentes sociais
e pedagogos(as), para a construção de formas de acolhimentos mais profissionais e comprometidas eticamente. Particularmente, conheci o TransEnem em 2018, quando ingressei como docente junto com
mais dois professores da disciplina de Sociologia. Lembro-me que, na arguição individual que tivemos,
34
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TRISTEzA, DISFORIA E BEM-ESTAR
foi enfatizado que o tipo de proposta do Coletivo se alinha a uma perspectiva política e pedagógica
da diversidade e da diferença como lema educacional e que essa questão era traduzida nas aulas, mais
propriamente, dentro do trabalho professoral requerido, em que se nutria um olhar mais amplo sobre
as relações de ensino-aprendizagem.
Pelo fato de ser uma atividade voluntária, o Coletivo tem uma considerável rotatividade de pessoas que entram e saem a cada ano. Atualmente, o núcleo duro de iniciadores e fundadores já se encontra
complemente modificado. Essa é uma das razões pelas quais aqueles que assim desejam participar das
atividades devem passar por uma capacitação específica sobre os valores e a visão social do TransEnem.
As atividades e eventos do Coletivo são custeadas por meio de rifas, parcerias com empresários locais
do meio LGBT3, brechós colaborativos e outros. O modo de funcionamento do TransEnem é por
meio de assembleias gerais (reuniões mensais em que se privilegia a horizontalidade da discussão), em
que são decididas pautas, resoluções dos problemas encontrados e novas ações.
No caso dos(as) professores(as), a autonomia é um princípio fundamental para construção da
proposta curricular dos conteúdos de cada semestre e das metodologias de ensino. Cada área do conhecimento possui liberdade sobre as formas de esquematizar os critérios de aprendizagem. Obviamente,
os conhecimentos e habilidades solicitados nas provas do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM),
no Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (ENCCEJA) e nos vestibulares da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) fornecem a principal diretriz. Destarte, com a possibilidade de propiciar um campo de prática e formação docente para os licenciandos,
o TransEnem preserva uma potencialidade política que é enfatizada em seus posicionamentos e mobilizações, fazendo do Coletivo um cursinho incomum por sua própria identidade social.
Cabe mencionar que, se tratando de um contexto etnográfico no campo de uma educação “fora
da escola”, é justamente essa identidade marcada pelas questões de gênero e diversidade sexual que
produz uma importante pergunta sobre o sentido político dos modos de escolarização convencionais e
populares. Durante a construção dessa etapa de coleta de dados e percepções, foi possível compreender
que o processo de “passagem pela escola”, no caso de Pessoas Trans, resguardava dimensões corporais,
emocionais, políticas e éticas que não estavam restritas a um entendimento estanque sobre o que é escola. O que, em um primeiro olhar, poderia ser definido como algo conflitivo e plural acerca do lugar
da experiência escolar em suas vidas.
Nos tópicos que se seguem, procuro oportunizar ao leitor o frame metodológico e ético formado durante a experiência de pesquisa junto com os/as estudantes participantes das oficinas. Além de
dedicar as duas últimas seções, em específico, para elaborar de modo mais denso os tensionamentos
subjetivos que a transexualidade4 atravessa no campo da escolarização. Outrossim, as ideias e análises
contidas em cada um dos tópicos do texto visam a mediar uma certa construção argumentativa – dedicada a repensar a experiência escolar como algo potencialmente político, por se tratar da vida e da
3 Lésbicas, Gays, Bissexuais e a população Trans em sua diversidade. Outras escritas também inserem Pessoas Intersexuais, Queers, Assexuais.
4 A palavra Transexualidade é aqui utilizada em consonância com o contexto etnográfico investigado, por esse motivo seu sentido designa-se a partir das falas e depoimentos dos(as) interlocutores(as). Em especial, seu uso é compatível com o conceito de transgeneridade e
serve como marcador identitário compartilhado pelos(as) interlocutores(as) da pesquisa. É um termo êmico.
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cidadania de pessoas –, ao mesmo tempo em que se assegura um entendimento mais sensível nos temas
retratados pela abordagem etnográfica.
Escolhas éticas e metodológicas: a elaboração e a prática das
oficinas de pesquisa
Para realizar a sondagem sobre a experiência escolar dos(as) estudantes sem cair em uma abordagem invasiva, decidi construir com eles e elas uma atividade que fosse tanto destinada aos objetivos da
pesquisa quanto a um espaço dialógico. Na pequena sala, onde pouco mais de nove alunos e alunas se
reuniam antes de cada aula, avisava que a participação era livre e que, depois dos conteúdos e exercícios
didáticos, teríamos as atividades das oficinas (gravadas e, posteriormente, transcritas). A minha sorte
foi que todos(as) os(as) estudantes optaram por participar. Mesmo os(as) discentes mais tímidos(as)
ou retraídos(as) queriam expor suas demandas e me faziam refletir em cada oficina sobre formas de
tornar a atividade mais crítica e reflexiva.
Realizei a primeira oficina em 9 de maio de 2019. Ela teve um roteiro mínimo: utilizei imagens
variadas de salas de aulas pelo mundo e pedia que os/as discentes discutissem o que enxergavam sobre
desigualdade, escola e diversidade social. O objetivo era realmente alçar vivências próprias, mas sem
fazer que isso se tornasse algo doloroso. A ideia era produzir uma projeção com a variabilidade de
fotografias e o que elas representavam. O resultado foi positivo em relação à possibilidade de como
entender os significados sociais das desigualdades, ao reparar nas condições físicas de cada sala ou nas
vestimentas das pessoas retratadas. Assim, utilizando o projetor, nós íamos observando imagem por
imagem. Posteriormente, fazíamos um círculo com as carteiras e eu passava um pote com questionamentos; cada participante retirava um papel e expunha suas considerações.
Na segunda oficina, no dia 16 do mesmo mês, fiz um movimento diferente: ao invés de fazer
questões fechadas e restritas, optei por incorporar temas trazidos pelos(as) estudantes na primeira atividade. O objetivo foi transformar suas colocações em palavras-chave que introduzissem e retroalimentassem as problemáticas que havíamos discutido no dia 9. Assim, criava-se um fio condutor e também
um termômetro de assuntos mais importantes. Problemáticas como terapia hormonal, passabilidade5,
preconceito, evasão, cisgeneridade, disforia e gênero ganharam uma atenção especial, não apenas por
serem aspectos muito citados e evocados na construção da experiência escolar dos(as) participantes,
mas por permitirem uma aproximação da turma com uma pauta comum. Em resumo: os e as estudantes Trans emergiam de cada oficina buscando um “lugar de fala” (Ribeiro, 2019) sobre sua vivência6.
5 Passabilidade descreve a possibilidade de “passar” por situações, espaços e olhares sem ter sua identidade de gênero inconvenientemente
questionada ou deslegitimada. Em nota, a experiência de ser passável não se configura como um privilégio ou pode ser tomada como um
objetivo de toda e qualquer Pessoa Trans. É uma salvaguarda provisória de constrangimentos.
6 Nesse aspecto, ao me utilizar do conceito de “lugar de fala”, gostaria de introduzir um tensionamento sobre a representatividade de um
pesquisador cis em tratar de questões relacionadas às Pessoas Trans. Em um primeiro momento, a questão talvez não seja de representatividade e sim referente a um processo de aproximação proporcionado tanto pela vivência da docência com alunos(as) Trans, como pela
produção de uma etnografia já mencionada com o ativismo. Logo, o “lugar de fala” a ser atribuído é situado nessas coordenadas. Segundo,
é necessário reafirmar o caráter situacional das formas de conhecimento e tal aspecto justifica as origens e circunstâncias sociais de produção dos discursos e epistemologias, sendo, justamente, esses pontos enfatizados por Ribeiro no conceito supracitado.
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TRISTEzA, DISFORIA E BEM-ESTAR
Esse “lugar de fala” que se define como algo propriamente situacional e político, fruto de uma
posicionalidade social que permite aos indivíduos se perceberem em um contexto estrutural de violências, acabou se tornando a matéria-prima da abordagem etnográfica que eu realizava junto com a turma. Fato que me levou a perceber o quanto existia uma visceralidade, um aspecto corporal da presença
da identidade e do corpo Trans. Sob esse ponto de vista, me deparei com a discussão da “corporeidade”
em Csordas (2013:292) e sua definição:
A expressão “fenomenologia cultural da corporeidade” denota uma tentativa de firmar a compreensão da cultura e do self do ponto de partida dos nossos corpos como estando-no-mundo,
e requer o reconhecimento de que os nossos corpos são, ao mesmo tempo, a fonte da existência e o
local da experiência. Com efeito, a corporeidade é a nossa condição existencial fundamental,
a nossa corporalidade (corporeality ou bodiliness) em relação ao mundo e às outras pessoas. (grifos
do autor)
A instrução teórico-metodológica de Csordas passou a configurar uma ponte entre os argumentos antropológicos para se entender a experiência escolar de Pessoas Trans, atravessada por sua “corporeidade” e seus sentidos políticos e emocionais. Dito isso, passei a realizar perguntas mais incisivas que
possibilitassem o debate. Grande parte das colocações sobre as questões e as respostas delas por parte
dos(as) discentes revelavam significados corporificados como sensação de isolamento, tristeza, falta de
concentração e o sentimento de que se está sendo vigiado.
É preciso afirmar que a “corporeidade” argumentada pelo antropólogo estadunidense direcionou algumas compreensões mais enfáticas sobre os enfretamentos culturais, somáticos e subjetivos
vivenciados pelo público T na escola. Pois Csordas apresenta a corporeidade como algo aquém da dimensão cultural – apesar de lhe ser constitutiva – e além das dimensões subjetivas – mesmo estas sendo
atravessadas pelo social. Dessa forma, o corpo se coloca em tensão nos processos sociais. No caso deste
artigo, isso se verifica na própria escolarização, na medida em que as repressões normativas se inscrevem
no espaço corporal assimetricamente entre os sujeitos cis e Trans.
Na última atividade, a lógica de retroalimentação pelas palavras-chave foi mantida, objetivando
que os(as) estudantes se dessem conta de que sua experiência na escola era situada a partir de diferentes
posições, mesmo nos aspectos corporais e emocionais, como enfatizados na ideia de “corporeidade”.
Em círculo, com a mesma dinâmica, os depoimentos iam sendo compostos e as falas começaram a
ser intercaladas com as intervenções dos(as) colegas e com os meus questionamentos, trazendo uma
espécie de repositório de informações e vivências, que tornava a atividade muito mais ampla e reflexiva.
Assuntos como inserção no mercado de trabalho, relacionamentos, tabus, religiosidade e conservadorismo tomavam forma no decorrer do tempo de fala. Todas as oficinas foram gravadas, por meio de um
aplicativo de registro de som em um celular, com anuência dos(as) participantes-discentes e, posteriormente, todas foram transcritas.
Gostaria de reforçar algo relevante: minhas implicações e considerações traçadas neste texto não
partem de uma vivência pessoal ou nenhuma experiência semelhante, pois, como mencionado, não sou
uma Pessoa Trans. Os relatos e sua densidade empírica ficaram a cargo do corpo discente e isso justifi-
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cou a imersão etnográfica que realizei. Então, é preciso deixar claro que o presente artigo não visa a falar
por algo ou alguém; trata-se, isto sim, de retratar uma realidade com o intuito de entender meandros
sutis, talvez ignorados propositadamente.
Tristeza, disforia e bem-estar: corpos que sentem e algumas
cenas etnográficas
Durante as observações da oficina de número 3, em especial, tomei nota de algumas falas espontâneas, que iam facilmente se transformando em depoimentos complexos com fortes raízes de descontentamento e tristeza acerca da escola. Em uma delas, um dos alunos, Téo7, um jovem de 20 anos, que
se reconhece como não binário (isto é, não se coloca como sendo definido pelas imagens de gênero de
homem e mulher convencionais) e prefere ser tratado no masculino, confidencia à turma seu sentimento em relação à sua última passagem pela escola:
Para continuar esse papo, vou falar da experiência da minha escola. A maior parte das escolas ou,
pelo menos, a escola que eu frequentei antes de vir para o TransEnem, nenhum dos professores de
lá, tinha conhecimento sobre identidade de gênero, ninguém sabia o que era isso. E o único trabalho escolar que eu vi sobre esse tema, pegou o tema e falou sobre sexualidade. Tipo, são coisas diferentes. Enfim, os professores, a escola, eles não sabem e nem estão preparados. Então quando tem
uma pessoa Trans na escola ela fica jogada no canto. As pessoas não têm discussão sobre gênero em
alguns lugares. E também não tem nenhuma mobilização dos professores e alunos para falar sobre
isso. Na escola onde a gente estudava [ele e Fábio, seu colega mais próximo] só teve por causa da
gente. Porque nós não erámos pessoas cis e queríamos reconhecimento. Tivemos que falar sobre,
porque não dava mais, sabe? E eu saí, eu não terminei o Ensino Médio, eu não consegui voltar para
a escola, para esse lugar exatamente por isso. Então eu acho que a falta de preparo só piora ainda
mais a situação para as Pessoas Trans. Por que eu sei que não é todo mundo que vai conseguir levantar, ter a coragem de ir e levantar e falar: olha eu sou Trans e vou explicar para vocês o que é ser
Trans, na frente de uma sala, então para as pessoas olharem para ela e falarem: “Como eu fico com
isso?”. Para eles não importa, quando se trata da nossa vida. Eu sei que é uma coisa muito complicada e depender da Pessoa Trans para trazer isso para o ambiente escolar é algo muito pesado. (Téo,
20 anos, não binário. Oficina 3, 23/05/2019)
Talvez as requisições que Téo parece reivindicar não estejam apenas relacionadas ao se falar sobre
identidade de gênero nas escolas, mas à ausência de um acolhimento da temática de modo sério e comprometido, por parte da comunidade como um todo. Quando expunha sua perspectiva, Téo parecia
cabisbaixo e imerso em seus próprios pensamentos, refletindo sobre a melhor maneira de falar sem ser
tomado como alguém agressivo. Uma marca que, segundo ele, o levou a desistir de passar mais tempo
na escola convencional e optar pelo TransEnem. Fabio, 19 anos, homem Trans, complementa as respostas, afirmando que tudo pode ser resumido em “uma sensação de isolamento e solidão”.
7 Para resguardar o direito à não identificação dos(as) discentes, todos os nomes utilizados aqui são fictícios.
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TRISTEzA, DISFORIA E BEM-ESTAR
Tais ideias me fizeram refletir que as emoções ou, particularmente, o discurso emocional não
fornece informações vazias sobre os estados sentimentais. A exemplo do que as antropólogas Lutz
e Abu-Lughod (1990) admitem, a partir de contribuições foucaultianas, as emoções estão sempre
imbuídas de “micropolíticas” 8. Portanto, ensejadas entre formas de poder, dominação e resistência. O
aspecto afetivo a que Fabio e Téo remetiam não podia ser subsumido de uma intricada relação sobre a
qual a normalização escolar manifestava o disciplinamento dos corpos e das sexualidades. Esse ponto
ganhou outra repercussão dentro da atividade: não apenas a experiência escolar e seus filtros afetivos,
mas, também, o sentido da norma que a escola os fazia viver. O que ocorre é uma relação dual entre a
exclusão e a permanência: ser invisibilizado e sacrificar uma possível relação de positividade para com
sua escolarização ou nutrir um sentimento de estresse e estabelecer um ponto de conflitualidade com a
escola. Logo, os sentimentos, essas “micropolíticas”, que arrogam e atravessam as relações sociais com a
instituição de ensino, operam também na forma de ressentimento e negação.
Fabio se sente implicado pelas palavras dos colegas que, no decorrer da oficina, estavam se mostrando interessados em partilhar suas vivências. Acabou percebendo, quiçá pelas palavras de Téo, que o
ambiente escolar para as Pessoas Trans é hostil e pontuou da seguinte maneira:
Porque tu não tens aceitação, nem segurança, nem paciência. Não só por parte dos professores
ou dos colegas, mas por parte de toda a escola. Então se torna um ambiente que te trata completamente mal e você para de pensar no teu futuro e pensa só naquele momento porque está sendo
muito ruim. Você passa por uma coisa que não consegue lidar. É como se você estivesse passando
por um túnel e que por mais que ande, ande nunca encontra a luz no finalzinho do túnel. Como
se estivesse andando em um caminho completamente escuro e Pessoas Trans costumam ter menos
que um amigo na escola e isso diz muito desse ‘como’. Se você está em um ambiente em que tu és
completamente rejeitada ou rejeitado, você fica abatido e não consegue continuar. (Fabio, 20 anos,
homem Trans. Oficina 3, 23/05/2019).
As falas contêm um certo posicionamento sobre seus próprios processos de ruptura com a escola. Mantendo, inclusive, uma chave de análise importante que não se encontra situada apenas na
hostilidade do espaço escolar e, sim, alinhada com o impacto do futuro de ter sua escolarização interrompida. Parte desse argumento merece ser vista em conjunto com os fatores de renda, bem como
as possibilidades de trabalho e emprego a que as Pessoas Trans têm acesso ao longo da vida (Souza &
Bernardo, 2014). Entretanto, o marcador desse conflito escola versus sujeito perpassa a construção da
própria identidade Trans. Fato que fica mais potente conforme se discute dentro das oficinas a questão
da disforia e as identidades de gênero.
Segundo o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), publicado pela
American Psychiatric Association (2014:451), a disforia de gênero designa-se “como termo descritivo geral, refere-se ao descontentamento afetivo/cognitivo de um indivíduo com o gênero designado,
8 Na obra citada, as autoras não fazem uma divisão estrita entre sentimento e emoção. Porém, para ambas, as emoções podem ser compelidas enquanto estados corporais-mentais mais efusivos e os sentimentos se traduzem por uma relação de preeminência temporalmente
mais longa. Logo, a distinção entre emoção e sentimento estaria colocada na ênfase de uma temporalidade na vivência individual e social.
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embora seja definida mais especificamente quando utilizada como categoria diagnóstica”9. Para os fins
deste artigo, essa acepção é insuficiente, na medida em que não engloba de maneira ampla a experiência Trans enquanto um campo de constituição subjetiva, tampouco consegue sintetizar as dimensões
ontológicas e éticas que a identidade Trans é capaz de produzir. Mas a escolha do termo se justifica
pelo seu sentido êmico, pois serve como tropos de referência aos(às) discentes e demonstra uma certa
“psicologização” de suas vivências e discursos10.
Parte do público que participa do TransEnem advém de lugares em vulnerabilidade econômica e
também de regiões mais periféricas de Porto Alegre, até de cidades próximas, como Alvorada e Canoas.
Em sua maioria, eles e elas têm acesso ao Coletivo por meio de suas redes sociais. Algumas poucas tiveram condições de iniciar sua terapia hormonal e seu processo de transição de gênero com ajuda de um
profissional de Psicologia. Porém, aqueles que conseguiam, seja pelo Sistema Único de Saúde (SUS),
seja pela rede particular, clínicas populares ou serviços de atendimento fornecidos pelas universidades
federais, tinham o discurso psicológico em grande conta. Assim, suas falas sobre a disforia, como foi o
caso de Cintia e Laura, evocadas desde um depoimento sobre o que os(as) estudantes consideravam um
marcador de uma identidade Trans, vinham acompanhadas com um tom psicológico de indagações,
muitas vezes focadas no indivíduo.
Laura, uma das alunas Trans que mais se mostrou envolvida na discussão, apontou uma questão
interessante sobre como ela percebia a disforia:
Acho que é muito difícil tirar da cabeça esse padrão de corpo de homem e corpo de mulher. A
gente querendo ou não é diferente. Biologicamente somos diferentes. E a gente tem na nossa cabeça que o homem tem o pinto e a mulher vagina. Então eu acho que a disforia nos pega muito por
causa disso. Porque mesmo se desconstruindo tanto é uma coisa assim que nasceu com a gente, é
toda uma construção diferente. Por exemplo, roupa, saia qualquer um pode usar, mas o corpo de
homem vai ser sempre o corpo do homem e corpo de mulher, sempre corpo de mulher. É uma
coisa desde o início do tempo. O sexo do ser humano é uma coisa resistente. Então a disforia acaba
nos pegando por causa disso. (Laura, mulher Trans, 20 anos. Oficina 3, 23/05/2019, grifo meu)
A estratégia de entendimento que é mencionada em seu comentário merece uma averiguação
criteriosa. Afinal, ela parece “naturalizar” a concepção de gênero sem perceber, ao afirmar que a marcação biológica (seja ela fisiológica ou cromossômica) condiciona a percepção dos ideais de masculino e feminino. Não é de todo equivocado o raciocínio; talvez, a preocupação esteja relacionada à
necessidade de perscrutar uma percepção social predominante sobre os papéis sociais. Assim, quando
Laura menciona “o sexo do ser humano é uma coisa resistente”, ela está apontando tensões de gênero e
9 Atualmente, a menção a disforia de gênero se encontra retirada do DSM-5 em sua versão mais recente e substituída por “Transtorno de
Identidade de gênero”. Em 2018, a Organização Mundial de Saúde retirou a “transexualidade” da Classificação Internacional de Doenças.
10 A menção apresentada aqui a uma ideia de psicologização se deve ao modo e ao conteúdo das reflexões trazidas pelos(as) interlocutores(as). Parece-me que o discurso psicológico, por suas características de saber-poder ou mesmo sua propagação nas diferentes frentes
sociais e recortes populacionais designou-se na forma de importante espaço informativo e formativo para distintos segmentos da população Trans no Brasil. Sobre um conceito de “biossocialidade”, útil a tal reflexão e que percorre parte de um debate contemporâneo
dentro da Antropologia do Corpo e da Saúde, conferir o dossiê: Bioidentidades, Biossocialidades e Espaços Sociais. Vivência: Revista de
Antropologia, (1) 41, publicado em 2013.
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sexualidade que não podem ser reduzidas às discussões trazidas por padrões de gênero do Ocidente ou
das sociedades ocidentalizadas.
A antropóloga britânica Strathern (2014) argumenta que o gênero – na forma de constructo social – se refere explicitamente aos diferentes mecanismos de corporalização das relações sociais. Logo,
em seu trabalho etnográfico com os povos melanésios, o gênero é acompanhado de relações sociais,
materialmente ambivalentes entre corpos, artefatos, sexos e memórias. Nesse ponto, para aprofundar
essa visão trazida por Strathern, que complexifica as relações generificadas, vale a pena recorrer às falas
de Cintia, uma mulher Trans de 35 anos, que veio do interior do Rio Grande do Sul, e as colocações
de Alinne, uma mulher lésbica de 30 anos, que prefere ser tratada no masculino, sobre seus respectivos
processos de reconhecimento da disforia e da sexualidade:
Eu vejo muito a questão da disforia como algo que confirma o gênero, é como se, pelo fato de ter a
disforia, logo eu sou Trans. O que às vezes não é algo completamente real. Falar que não sente isso
não é Trans. Como ela é um cara Trans e não odeia seus seios isso não faz sentido. Hum.... Meu
corpo é errado, eu não estou em um corpo certo. Sendo que não é um corpo errado, ele é só um corpo, do
seu jeitinho, do seu caminho, é o seu corpo, ele não é errado. É algo que é cobrado muito forte dentro
da comunidade Trans e querendo ou não quando a gente se insere e tenta se encontrar nessa comunidade. Nós nos deparamos com esse tipo de coisa. Então eu acho que mesmo de forma indireta
isso está sempre ali. (Cintia, mulher Trans, 35 anos. Oficina 3, 23/05/2019).
Então concordo com o que ela falou, ela tem um pouco mais de vivência. Desde que eu me conheço por gente sempre me identifiquei mais com o gênero masculino, com as atividades “masculinas”.
Minha família, minha mãe sempre foi de boa. Eu me vesti de roupa de menino minha adolescência
toda. Naquela época eu me identificaria como Trans, mas eu não sei, eu tenho me questionado em
relação a isso, porque cada um tem sua individualidade. Mas eu vejo que hoje em dia está muito
forte [sic] as identificações como Pessoas Trans, com toda a questão do desconforto com o próprio
corpo, já querem mudar, iniciar a hormonização, fazer mutilações. Talvez, se eu fosse adolescente
e tivesse seguido esse caminho, hoje estaria arrependido, com o tempo fui vendo que eu não queria
fazer isso (terapia hormonal, mastectomia masculinizadora). (Alinne, mulher Lésbica, 31 anos,
Oficina 3, 23/05/2019).
Ambos os depoimentos deixavam em congruência o modo com que a disforia é identificada enquanto forma de demarcar a inclusão/exclusão de um sujeito no rol da categoria da identidade Trans. Esses apontamentos parecem argumentar sobre a construção de relações de identificação
entre Pessoas Trans e sua experiência social no mundo, podendo ser remetidos às controversas formalizações que as lutas identitárias se mostram capazes de conter. Sobretudo, como afirma o filósofo
anglo-ganês Appiah (2019:43):
o fato conhecido de que nossas identidades são múltiplas e podem interagir umas com as outras
de maneiras complexas não é incompatível com a capacidade de fornecer uma breve explicação sobre o que consiste, conceitualmente, qualquer identidade: em termos gerais, mostram como uma
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rotulação e ideias são aplicadas, o que implica uma série de regras sobre como as pessoas designadas
para esses rótulos devem se comportar e de como devem ser tratadas (tradução minha, grifos meus).
A problemática da disforia enquanto marcador de uma rede de identificação entre sujeitos Trans
contém uma poderosa forma de “performatividade” (Butler, 2003) das relações de gênero. Principalmente quando se percebe, pelas colocações vistas até aqui, que a disforia fornece um campo afirmativo de reconhecimento social. Essa identidade Trans produzida e tensionada por esse aspecto se
traduz também em uma cobrança íntima por um bem-estar corporal e político. A questão, a rigor,
de modo ainda um pouco superficial, seria: de que modo estabelecer uma identidade Trans e fazer,
assim, parte de um grupo social? A luta social não aparece como um obstáculo ao vislumbre de pertencimento, mas uma perspectiva a ser integrada a outra matriz de identidade, agora não pautada pelo
lastro da anatomia heteronormativa.
Em suma, existe um complexo conjunto de fatores que carecem de atenção. Um deles, sobre a
requisição desse “bem-estar de si” que os/as discentes querem almejar, coloca a disforia em uma outra
coordenada. Em uma das aulas, Fábio afirmou, em tom de alívio, que conseguiu usar um vestido e se
sentiu bem. Perguntei para ele por que aquilo foi importante. Ele me respondeu sorrindo: “Eu posso
me sentir bem com meu gênero em qualquer coisa que eu esteja vestido”. Dessa maneira, construir uma
identidade Trans é acompanhado pela possibilidade de atravessar a disforia e se reconstruir como sujeito de um outro gênero, independente de marcadores estéticos, sociais ou biológicos.
O “bem-estar de si”, que foi mencionado, pode remeter-se às “tecnologias do eu” de Foucault
(2001), em que pese a produção de formas éticas de entendimento sobre seus graus subjetivos, interesses e desejos ou nas formulações de vivências marcadas por uma postura de “indisciplina” e resistência
aos poderes coercitivos. Quer dizer, sentir-se bem perpassa o reconhecimento do gênero, seu retrato
social e sua implicação ontológica na vida de um sujeito, tanto uma matriz de identidade quanto uma
performance possível de reencontro com novas maneiras de se perceber como uma pessoa dotada de
liberdade, condicionada, mas livre em alguma medida. Algo que se refere àquilo que o filósofo Hacking
(2002) denominou de “ontologia histórica”, nesse caso em relação aos papéis de gênero compulsórios,
envolvendo conjuntamente a construção de reconhecimentos políticos e éticos sobre suas próprias
demandas de identidade, perante a necessidade de autodesconstrução11.
A questão que perpassa a relação entre a disforia como um marcador e a experiência escolar em
sua complexidade não está pautada por uma causalidade. Trata-se de entender a escola enquanto uma
instituição imersa em discursos e práticas pautados em valores hegemônicos. Por vezes dificultando
a interação e o acolhimento com demandas de identificação que não são claramente correspondidas,
pois é justamente no chão escolar que a corporeidade, identidades, interrelações, medos, alegrias e ansiedades são inscritas em vivências e sentimentos. No palco da escola, em sua dimensão de superfície
pública, assumir uma identidade de gênero não padrão reflete-se por uma contestação das representa11 Hacking (2002) define a “ontologia histórica”, de clara influência da abordagem de Michel Foucault, como um princípio discursivo
em que se cria, ou se refaz, modos de ser e fazer, em razão de uma matriz que perfaz e inventa o que definimos enquanto realidade. Com
essa definição em mãos, argumento que o gênero se caracteriza também enquanto uma ontologia historicamente situada. Dessa maneira,
quando trato desses papéis compulsórios abordados pelos interlocutores em suas vivências, dou proeminência a esses aspectos discursivos
e sociais a que Hacking alude em sua conceituação.
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TRISTEzA, DISFORIA E BEM-ESTAR
ções de gênero presentes no espaço pedagógico (Lopes, 2001). É sobre essa contestação, nem sempre
proposital, que a diferença se torna uma desigualdade.
Escolarização e subjetividade: políticas emocionais de
resistência
Se até o presente momento a experiência Trans no campo escolar é atravessada por uma violência
difusa e gera, segundo os argumentos expostos pela turma, um afastamento da conclusão do ciclo da
Educação Básica, é possível imaginar novas maneiras de “passar pela escola”12? Com certa apreensão
no que diz respeito à possibilidade de reinventar a normatividade pedagógica, pode-se propor escolarizações como a exemplificada e oferecida pelo TransEnem (RS), em que as identidades Trans são
vislumbradas como marcadores educacionais. Dessa forma, verifica-se uma perspectiva política de acessibilidade de direitos e cidadania, mesmo na Educação Popular.
Incorre-se que os limites da experiência escolar talvez não sejam dimensões estáveis ou suficientemente “modeladas”. O compartilhamento de conversas e discussões com os/as estudantes me leva
a pensar as potencialidades e vulnerabilidades subjetivadas no decorrer de seus processos formativos.
Uma dessas potencialidades é a necessária reinvindicação de uma forte participação sobre as políticas
pessoais (íntimas) e de como esse aspecto é transformado na aprendizagem política de uma identidade
engajada. Fazendo com que as identidades Trans estejam implicadas no campo de uma luta social que
atravessa a mera identidade per se. Ao perspectivar a relação escola e sujeito, marcada por uma singularidade – que, em tese, não deveria impossibilitar o acesso a um direito positivado e juridicamente assegurado –, ocorre uma compreensão mais ampla sobre as políticas educacionais em seu escopo de ação.
O termo “subjetividade”, ao qual me refiro no texto, remete mais precisamente a “uma certa
forma cultural, mas também uma maneira de habitar tal forma, a qual é reflexiva e ansiosa, em relação
às possibilidades das próprias falhas de cada um” (Ortner, 2007:387)13. Posto isso, os aspectos que impactam a escolarização de Pessoas Transgêneros erguem uma problemática ética ao campo da educação,
no sentido de remarcar as diferenças nos discursos pedagógicos. Do outro lado, o modo de subjetivar
essas consequências torna a experiência escolar um fato doloroso e, por vezes, ameaçador, quando o
acesso é esquecido como princípio fundamental para possibilitar um reconhecimento qualificado das
realidades sociais e existenciais do corpo discente, o que pode ser feito a partir de diferentes recortes:
étnico/racial; gênero; deficiência; etc.
12 É importante destacar que o recorte etnográfico do artigo não pretende totalizar as possíveis e variáveis causações do afastamento das
Pessoas Trans do espaço institucional da escola, mas seguir com as impressões destacadas pelos interlocutores(as). A respeito de outras
interfaces que explicitam os afastamentos e desistências do público T da escola, vale a pena conferir a obra de Cantelli et al. (2019).
13 Não há um consenso estrutural a respeito do conceito de subjetividade em Antropologia, razão pela qual as diferentes noções enfatizam aspectos como tempo, individualidade, agência, resistência, sujeição, poder, cultura, história, memória, trajetos sociais, etc. A definição de Ortner se aproximou mais teoricamente daquilo a que o material empírico do Coletivo aludia, em um olhar mais incisivo. No
entanto, deixo em evidência que o conceito de subjetividade trabalhado pelos antropólogos Biehl, Good e Kleinman (2007) é digno de
nota por analisar a dimensão subjetiva enquanto espaço de reflexividade, moralidade, cognição, bem como construção de singularidades
e idiossincrasias dos sujeitos, sem cair em um culturalismo ingênuo. Logo, a subjetividade também designa os modos com que os sujeitos
se engajam na produção de suas particularidades no mundo.
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A escolha lógica e a determinação de continuar a ter uma vida estudantil requer que se considere
a construção de políticas corporais e emocionais de resistência que garantam algum tipo de apoio social e moral. Acerca dessas políticas, pessoais e morais, Alinne (já mencionada antes), afirma:
Eu lutei e completei todos os meus estudos. Na época que me formei, que já faz bastante tempo
que me formei, sofria bastante preconceito, principalmente pelas minhas vestimentas de menino.
Ouvia piadinhas, essas coisas todas. Eu não dava muita bola, porque eu tinha o amparo da minha mãe. Ela sempre foi minha amiga de conversar. Eu me relacionava bem com as pessoas, antes
era mais comunicativa, hoje sou mais tranquila e calma. Mas, é sempre um incômodo, você está
andando na rua e alguém que você nem conhece vem te zoar. (Alinne, mulher Lésbica, 31 anos.
Oficina 2, 16/05/2019).
O argumento de uma mudança subjetiva – a opção por elaborar um filtro de relacionamentos
mais estrito e hermético – pode parecer como uma simples reação a alguns tipos de violências vivenciadas na escola. Mas, também, pode conter uma inclinação mais relevante enquanto algo que abala a
produção de relações sociais e afeta, nesse caso, a percepção geral dos sujeitos sobre sua personalidade. O que acaba gerando carapaças simbólicas e formas de autossabotagem, atreladas, isto sim, a uma
estrutura social que produz sofrimento. Portanto, essas políticas de resistência, nos termos daquilo
que resiste à norma (mesmo se pensando à margem e/ou dentro dela), funcionam no interior de reações e entendimentos imersos em vórtices emocionais, que são perpassados por uma morfologia da
violência de gênero.
A dificuldade de entrelaçar a escolarização e a subjetividade na forma de uma experiência que
contém e é entrecruzada por dimensões corporais, éticas e políticas tem relação com a visão burocratizada sobre o que, de fato, a escola pode representar na vida individual e coletiva. Dentro da turma e
conforme pude acompanhar seus desvelos, amarguras sobre professores, colegas, ternura com amigos
e familiares que deram amparo emocional e incentivo educacional, foi possível compreender o jogo de
interpelação (metafórica) que a transexualidade coloca para a educação escolar, como se inquirisse: no
que essa minha singularidade te afeta? Existem algumas questões que se mostram insustentáveis para a
norma, na medida em que revelam a gramática de sua arbitrariedade.
Considerações finais
Procurei demonstrar nesse artigo que as tensões colocadas entre os sujeitos Trans e sua escolarização se deve, em parte, à construção de um olhar normativo da escola em relação a suas demandas
e singularidades. O que não deixa de extravasar nas maneiras pelas quais a normatização é reificada
tacitamente nas formas de resistência resenhadas ao longo do texto. Por outro lado, tal internalização
acaba gerando outras potencialidades, no que diz respeito à produção de identidades socialmente engajadas no campo de lutas políticas e simbólicas, em que o gênero aparece como marcador educacional,
precisamente, na acessibilidade ao direito à educação. De todo modo, também evidenciei que as particularidades de Pessoas Trans atreladas à escola e à conclusão do Ensino Básico se mantêm conectadas
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TRISTEzA, DISFORIA E BEM-ESTAR
com dimensões emocionais e corporais, gerando, dentre outros aspectos, formas de subjetivação e resistência diversos.
O texto visou a proporcionar ao leitor um recorte da minha experiência como um docente cis
em meio a estudantes Trans. Com efeito, a sensação de desnaturalização vem acompanhada por um
devir de afetação. Ao me aproximar de questões antes ignoradas, que talvez não fossem significativas para mim ou dentro do meu próprio trabalho pedagógico, pude perspectivar etnograficamente as
vulnerabilidades das transexualidades na escola. Essa possibilidade de significação se deveu à minha
participação no TransEnem, pois o Coletivo, no seu escopo político, acaba potencializando aquilo que
a antropóloga francesa Favret-Saada (2005:160) define sobre “ser afetado”:
Como se vê, quando um etnógrafo aceita ser afetado, isso não implica identificar-se com o ponto
de vista nativo, nem se aproveitar da experiência de campo para exercitar seu narcisismo. Aceitar
ser afetado supõe, todavia, que se assuma o risco de ver seu projeto de conhecimento se desfazer. Pois se
o projeto de conhecimento for onipresente, não acontece nada. Mas se acontece alguma coisa e se
o projeto de conhecimento não se perde em meio a uma aventura, então uma etnografia é possível
(grifos meus).
É preciso ultrapassar a concepção de escolarização como algo meramente instrutivo, propondo
justamente uma problematização sobre os aspectos mais escamoteados, no interior de uma análise mais
simplista sobre o impacto/significado da escola para outra gama de sujeitos. Assim, isso pressupõe
incluir as dimensões de corporeidade, subjetividade e eticidade que mobilizam conflitos, problemáticas e eventuais soluções. Essas considerações, retiradas do convívio e da escuta com estudantes Trans,
balizam a necessidade de compreender a passagem pela escola enquanto uma experiência significativamente social, que se traduz em um debate sobre a reivindicação por existência e visibilidade – portanto,
uma experiência que é acionada pela chave do enfrentamento ao apagamento social de suas questões e
a exigência do reconhecimento de sua cidadania.
No estrito senso, a experiência etnográfica de relatar e se engajar nas vidas do alunado – ao ater-se, atenciosamente, em seus pedidos e lutas – produz um incerto sentimento de necessidade social.
Explico: ao pensar as dificuldades impostas a alguém por sua identidade de gênero e os efeitos na vida
estudantil (e emocional) que isso acarreta, não consigo deixar de me colocar em uma posição angustiada, pois a experiência escolar aparece conectada a um processo de estigmatização. É nesse sentido que
este artigo descreve as tensões que perpassam a vivência escolar de Pessoas Trans. Diga-se ainda que essa
tensão se desdobra em formas sutis de sofrimento social e psíquico.
Para finalizar, lanço mão de uma última e importante inspiração, formulada pela cientista política britânica Phillips (2001), no que concerne à junção entre uma “política de ideias” e uma “política de
presença”14. Segundo a autora, essas duas formas de debate sobre representatividade social contemporânea não se anulam. Possivelmente, vale pensar que a escolarização como política educacional serviria
14 As “políticas de ideias e de presença” fazem uma alusão aos embates contemporâneos a respeito da representatividade dos espaços de
poder. Para Phillips, isso coloca uma questão sobre o quanto a presença de mulheres e outros sujeitos de minorias políticas realmente produz um efeito de ação nos espaços de execução de políticas governamentais, nos diversos âmbitos. Logo, a autora repensa a possibilidade
dos ideais e valores estarem para além da presença, na tentativa de fazer valer uma efetividade social mais ampla.
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enquanto um potencial laboratório para a mescla desses dois tipos de ideários, pela razão de produzir
a diferença além da ideia e a presença, corporal e politicamente falando, na forma de um fato inexorável. A escola, igualmente, atravessa essa oportunidade de representação e diálogo, pois, a rigor, existiu,
mesmo que sutilmente, nos depoimentos analisados, uma fala compassiva por inclusão e acolhimento.
Alef de Oliveira Lima é mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e doutorando na mesma instituição. Bolsista de pós-graduação pelo CNPq.
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TRISTEzA, DISFORIA E BEM-ESTAR
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TRISTEZA, DISFORIA E BEM-ESTAR: PERSPECTIVAS ETNOGRÁFICAS SOBRE A
ESCOLARIZAÇÃO DE PESSOAS TRANS
Resumo: A proposta deste artigo é atentar etnograficamente para as questões e demandas trazidas por
estudantes Trans sobre seu processo de escolarização. A partir da minha experiência como docente
voluntário no Coletivo pela Educação Popular, TransEnem, sediado em Porto Alegre (RS), tensiono a
vivência escolar dos discentes Trans de modo a percebê-la como algo mais que apenas a passagem pela
escola. Por meio de notas retiradas do meu diário de campo e depoimentos feitos durante a construção
de oficinas de pesquisa com os/as discentes, constrói-se uma narrativa sobre os sentimentos, a corporeidade, os significados e as percepções que atravessam as potencialidades e vulnerabilidades do ser Trans
nos espaços e tempos pedagógicos. O texto ainda problematiza aspectos referentes à subjetivação das
identidades Trans e marca os processos políticos da aprendizagem dessas identidades frente aos diferentes espaços de socialização.
Palavras-chave: Etnografia; Escolarização; Pessoas Trans; Disforia.
SADNESS, DYSPHORIA, AND WELL-BEING: ETHNOGRAPHIC PERSPECTIVES ON
THE SCHOOLING OF TRANSGENDER PEOPLE
Abstract: The purpose of this article is to pay ethnographic attention to the issues and demands
brought by Transgender students about their schooling process. Based on my experience as a volunteer
teacher at the Coletivo through Popular Education, TransEnem, based in Porto Alegre, Rio Grande do
Sul State, Brazil, I tension the school experience of Trans students in order to perceive it as something
more than just passage through school. Through notes taken from my field diary and statements made
during the construction of research workshops with the students, a narrative is built about the feelings,
the corporeality, the meanings, and the perceptions that cross the potentialities and vulnerabilities of
being Trans in pedagogical spaces and times. The text also problematizes aspects related to the subjectivation of Trans identities and marks the political processes of learning these identities in front of
different spaces of socialization.
Keywords: Ethnography; Schooling; Transgender People; Dysphoria.
RECEBIDO: 16/11/2019
APROVADO: 11/01/2021
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CAMPOS V.22 N.1 P. 49-68 JAN.JUN.2021
D O SSIÊ
Ações e reações da escola diante
de masculinidades hegemônicas
e não hegemônicas: um olhar
antropológico
RAIMUNDO NONATO FERREIRA DO NASCIMENTO
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ (UFPI), TERESINA/PI, BRASIL
HTTPS://ORCID.ORG/0000-0003-2667-7928
MARCOS PAULO MAGALHÃES DE FIGUEIREDO
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ (UFPI), TERESINA/PI, BRASIL
HTTPS://ORCID.ORG/0000-0001-6872-5399
Introdução
“O tema da sexualidade está na ‘ordem do dia’ da escola”, nos diz Helena Altmann, em texto publicado em 2001. Naquele período, segundo a autora, o assunto se fazia presente nos diversos espaços
das instituições de ensino, nos debates, nas brincadeiras e permeava todo esse universo. A visibilidade
resultava do fato de a sexualidade ter se constituído, segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCNs), como um tema transversal a ser trabalhado na e pela escola a partir de 1998.
Ora, se a temática ‘corpo e sexualidade’ tornou-se recorrente nas escolas brasileiras no início do
século XXI, faz-se necessário ir além desse marco legal e questionar o porquê dessa inserção discursiva sobre sexo nessas instituições, bem como é prudente compreender o significado dessa abordagem
no campo da educação formal e quais epistemologias guiariam esse debate. De acordo com Altmann
(2001), a introdução do tema ‘orientação sexual’ como transversal demonstrava de forma cristalina o
interesse do Estado pela sexualidade da população, porém o que não estava evidente eram as razões de o
assunto ter se constituído em um importante foco de investimento político e excepcional instrumento
de tecnologias de governo (Foucault, 2013).
Seguindo nessa mesma linha de raciocínio, Cesar (2009) afirma que mesmo uma parcela da
sociedade brasileira reconhecendo o lugar da sexualidade nos espaços escolares, o que trouxe essa discussão para a ordem do dia das escolas foram duas preocupações: o surgimento da epidemia de HIV no
final dos anos 1980 e o reconhecimento da gravidez de jovens em idade escolar. Dessa forma, a autora
sugere que a preocupação com sexualidade no âmbito educacional parece estar pautada em um viés
higienista, em torno de uma ideia de prevenção, mas, que visava, sobretudo, ao controle e à domesticação dos corpos de jovens e crianças. Ainda segundo Cesar, a preocupação da instituição escolar com
a sexualidade das crianças e jovens é bem antiga, remetendo-se ao século XIX, quando tais entidades
estabeleceram um conjunto de regras sobre o corpo de seus estudantes. Recorrendo a Foucault (2014),
a autora afirma que a escola, através de sua organização e normas, colocava o alunado em um contínuo
sistema de vigilância.
A estrutura escolar, segundo Foucault (2014), foi pensada com o molde de outras instituições
– como as fábricas ou o exército –, instaurando um conjunto de normas disciplinares, visando a maior
produtividade, eficácia e homogeneização do corpo e do comportamento dos estudantes. Para isso,
realizava-se uma fiscalização partilhada, por meio de uma “microfísica do poder” oriundo de um ponto central e que se capilariza através de diferentes atores e mecanismos regulatórios com a função de
docilizar e padronizar os indivíduos no espaço escolar. A expectativa era de que sujeitos submetidos a
rigorosas regras, sendo morosamente disciplinados a partir das normas institucionais, abandonassem
suas construções anteriores, deixando-as fora daquelas paredes. Dessa forma, podemos afirmar que, na
atualidade, a escola é vista como uma das instituições nas quais “se instalam mecanismos do dispositivo
da sexualidade; através de tecnologias do sexo, os corpos dos estudantes podem ser controlados e administrados” (Altmann, 2001:4).
É, portanto, perceptível como a escola enquanto instituição procura efetuar um controle e uma
docilização dos corpos dos estudantes de forma geral e, através de mecanismos de poder, fabrica corpos
generificados, seja enquanto masculinos ou femininos. Entretanto, tal fabricação não acontece de maneira simplista. Encontram-se em jogo relações mais complexas, em que os estudantes não são sujeitos
meramente inertes perante o exercício do poder sobre seus corpos. Trata-se, sim, de uma relação de
força que acaba por propiciar a produção de corpos e concepções normatizadoras de gênero e sexualidade, em uma mecânica operacionalizada por relações de poder, mas também de resistência (Foucault,
2014; Louro, 2014).
Neste artigo, o corpo é o fragmento pelo qual visamos compreender o tensionamento entre instituição escolar e estudantes cujas masculinidades são consideradas abjetas no contexto pesquisado.
Trata-se de um estudo em que os usos sociais e as performances da corporeidade serão o caminho de
análise (Le Breton, 2006). O corpo aparece como um local privilegiado para análise das tensões entre
a comunidade escolar e masculinidades não hegemônicas visto que: uma das formas pelas quais as
performances de gênero são materializadas é através dele; as normas regulatórias calcadas em um ideal
de masculinidade tido como salutar e aceitável têm o corpo como um dos seus principais alvos; de maneira ambivalente, é através dessa substância que os estudantes resistem às tentativas de regulação da
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AçõES E REAçõES DA E SCOLA DIANTE DE MASCULINIDADES HEGEMôNICAS E NãO HEGEMôNICAS
sua corporeidade, posto que esse movimento de “correção” da masculinidade acontece principalmente
sobre a performance corporal (Le Breton, 2006; Butler, 2000).
Especificamente entre garotos, as violências no âmbito escolar são constituintes importantes da
cristalização de um certo tipo de masculinidade. Os meninos são ensinados através da violência e/ou
bullying que masculinidade performar (Pascoe, 2018). Nesse sentido, concordamos com Reyes (2004)
quando aponta a masculinidade como uma construção cultural e histórica, que se encontra rodeada
de grande quantidade de elementos simbólicos e imaginários, sendo muitas vezes tomada com tanta
naturalização que justifica certos comportamentos e atitudes, sem nos permitir uma imagem completa
do que chamamos ‘masculino’. No entanto,
é importante frisar que o fato de nos referirmos ao gênero, e em particular à masculinidade, como
construída histórica e culturalmente e, portanto, assumindo características diferenciadas nas sociedades humanas, não afasta o suporte teórico do patriarcado, mas permite perceber que sua valorização diferenciada nas sociedades humanas torna seu entendimento mais complexo e, portanto,
não pode ser explicado apenas como uma bipartição social em que um dos gêneros (o masculino
neste caso) domina o outro (Reyes, 2004:103, tradução nossa).
Longe de uma concepção única de masculinidade, os estudos de gênero vêm se flexionando ao
expor um leque de formas do ser masculino, afastando-se – ou não – da masculinidade fundamentada em uma dita virilidade. Assim, o conceito aqui trabalhado tem como base as concepções de masculinidade hegemônica e masculinidades subalternas, conforme Connell (1995; 2016), Connell &
Messerschimdt (2013) e Kimmel (1998). Portanto, nos ajudará a compreender como a escola, em seus
discursos normatizadores, contribui com os processos de elaboração e afirmação das masculinidades
hegemônicas nesse ambiente e como influencia os processos de construção dos corpos dos indivíduos,
ou melhor, de suas identidades. Tencionamos também perceber como as concepções cristalizadas de
uma masculinidade hegemônica produzida na e pela comunidade escolar, em seus diferentes níveis,
destoam da realidade discente, marcada pela diversidade sexual e de gênero.
Para tanto, utilizaremos dados coletados durante a realização de um Estágio Supervisionado
em Ciências Sociais1, com alunos de Ensino Médio em uma escola pública da rede estadual de Teresina (PI). Enquanto estratégia metodológica, optamos por uma abordagem qualitativa, tendo em vista
nossa inserção no cotidiano da escola. Durante esse período – doravante denominado “trabalho de
campo” – mantivemos contato frequente com os alunos e professores e, de forma mais direta, com a
docente de Sociologia e Filosofia, também tutora do referido estágio supervisionado.
1 Os dados apresentados são oriundos da realização de duas atividades: a) Projeto de pesquisa cadastrado no Programa de Bolsas de
Incentivo às Atividades Multiculturais e Acadêmicas, da Universidade Federal do Piauí (UFPI), coordenado pelo professor Raimundo
Nonato, no qual Marcos (à época, aluno da graduação) atuava como pesquisador voluntário e b) da inserção dos dois autores na escola
como estagiários, em atividades que ocorreram simultaneamente. Esclarecemos que, no período da investigação, o primeiro autor, além
de coordenar o projeto a no qual o segundo era pesquisador voluntário, estava concluindo um curso de Licenciatura em Ciências Sociais
pela Universidade Luterana do Brasil, modalidade à distância e, em virtude disso, naquele momento realizava o estágio supervisionado.
Tal situação proporcionou a junção das duas atividades, pesquisa e estágio supervisionado, por parte dos dois autores. Assim, os dados
aqui apresentados foram coletados por meio de visitas efetuadas, em média, de duas a três vezes por ambos.
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Era comum que conversássemos com alguns discentes na hora do recreio ou em momentos de
lazer durante as horas de vacância das aulas. Umas das primeiras atividades de um estágio supervisionado é a observação e caracterização do espaço educacional. Nesse sentido, utilizamos o aporte teórico
da Antropologia para realizar a observação participante, na qual buscamos apreender as concepções
de masculinidade, bem como as relações de poder, através da percepção dos estudantes, professores e
outros membros da comunidade escolar.
A observação no cotidiano escolar permitiu uma coleta espontânea das narrativas e dos acontecimentos ali experienciados, permitindo-nos captar as pequenas nuances das ações e falas dos sujeitos
constituintes dessa comunidade. Contudo, temos a consciência de que nossa presença poderia inibir
ou desinibir professores e alunos de se comportarem usualmente, pois fazer pesquisa no dia a dia implica levar em consideração que a atuação do pesquisador é parte integrante dela, pois ao mesmo tempo em que estamos analisando os acontecimentos daquele contexto, também estamos nele inseridos
(Ferraço, 2007; Stecanela, 2009).
O artigo está organizado em quatro partes. A primeira e a segunda intencionam contextualizar
a escola onde a pesquisa foi realizada, bem como realizar um debate sobre sexualidade e o lugar das
diferenças nesse espaço. Na terceira e na quarta parte, será trabalhado o conceito de masculinidades
e das formas de ser masculino, a partir de Connell (1995; 2016), Connell & Messerschmidt (2013)
e Kimmel (1998), assim como será feita a problematização a respeito dos acontecimentos em campo.
Isso inclui a postura da comunidade escolar diante das práticas de masculinidades dissidentes e como
se opera o discurso normalizador sobre esses corpos.
Conhecendo o lócus da pesquisa: um olhar antropológico
sobre a escola
O lócus desta investigação é uma escola pública estadual, localizada em um bairro considerado
o reduto da classe média da cidade de Teresina (PI). A instituição está em funcionamento desde o ano
de 1972, quando iniciou suas atividades com a oferta do Ensino Fundamental, antigo Primeiro Grau.
Com o passar dos anos e as mudanças advindas do próprio sistema educativo, passou a oferecer, também, o Ensino Médio. Nos dias atuais, conta também com Educação de Jovens a Adultos (EJA).
Apesar da localização privilegiada – um bairro que abriga vasto comércio, incluindo restaurantes, bares de renome e até grandes casas noturnas, estabelecimentos todos voltados para a classe média
teresinense –, o público-alvo da escola é majoritariamente formado por jovens e adolescentes negros
das classes mais baixas, vindos das periferias da cidade, dentre os quais grande parte está inserida no
mercado de trabalho formal e/ou informal. Essa constatação se deu durante o trabalho de campo, a
partir de nossa interação com os alunos e confirmou-se pela gestora da escola em uma entrevista.
Em termos de estrutura física, a instituição possui 12 salas de aula, para contemplar 27 turmas
nos turnos matutino (11), vespertino (09) e noturno (07)2. A escola ainda conta com sala da direção,
2 Os dados são referentes ao ano de 2017, obtidos durante a pesquisa de campo na escola.
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AçõES E REAçõES DA E SCOLA DIANTE DE MASCULINIDADES HEGEMôNICAS E NãO HEGEMôNICAS
secretaria, cantina, dois conjuntos de banheiros para os alunos, sendo um masculino e outro feminino,
dois banheiros para os funcionários da escola, espaço para o laboratório de Ciências, biblioteca, laboratório de informática, depósito, pátio e uma área aberta. Ainda em termos de estrutura, constatamos
que todas as salas de aulas são climatizadas, embora nem sempre os aparelhos de ar-condicionado deem
conta de manter uma temperatura agradável, principalmente no turno vespertino durante os quatro
últimos meses do ano, pois, além do calor da época, as salas são abarrotadas com alunos e alunas. Aqui
é válido mencionar que, no período da pesquisa, a escola havia passado por uma pequena reforma,
visando uma melhoria no espaço para o atendimento dos estudantes.
O corpo discente atendido, bastante diversificado tanto do ponto de vista social quanto religioso
e cultural, é de aproximadamente 1.200 alunos, divididos nos três turnos: matutino, vespertino e noturno. No matutino e vespertino funciona o Ensino Médio Regular, enquanto pela noite se realizam as
atividades da Educação de Jovens e Adultos (EJA). Para atender a essa demanda, a escola conta com o
apoio de um corpo de funcionários composto por 24 profissionais que atuam na parte burocrática e 46
professores das diversas áreas do conhecimento. As salas de aula sempre estavam lotadas: cada turma
abrigava, em média, de 48 a 55 alunos. Tal situação, muitas vezes, dificultava o trabalho dos docentes,
visto que nem sempre esses espaços comportavam as carteiras enfileiradas e/ou em círculo, tampouco
permitiam uma boa circulação dos presentes.
A questão da superlotação é conexa a outro grande problema existente: a dispersão por parte dos
discentes. Era consenso, entre os estagiários de várias licenciaturas e professores, as dificuldades de se
ensinar naquela escola3. Durante nossa observação nas aulas de Sociologia, constatamos as reclamações
que docentes discutiam em outros espaços da escola: salas extremamente cheias, falta de concentração,
conversas paralelas, desinteresse discente, dentre outros.
Ainda nesse período, percebemos um grande esforço da professora dessa disciplina para que os
estudantes participassem das aulas: ela tentou aulas expositivas, levou atividades prontas para serem
respondidas em duplas, recortes de jornais com notícias relacionadas às temáticas que estavam sendo
trabalhadas e até filmes, no entanto pouco conseguia chamar a atenção. Tal situação não era uma exclusividade das aulas de Sociologia, mas também perpassava as aulas de História, Geografia e de outras
áreas do conhecimento. É necessário frisar que, ao apontar tais questões, não queremos desqualificar as
práticas pedagógicas dos professores, mas assinalar os obstáculos enfrentados no exercício da docência.
Foi nesse contexto que observamos as sociabilidades cotidianas e estas nos permitiram compreender o lugar da diferença na escola. Em sala de aula, durante os intervalos, foi possível constatar a
existência de um padrão de masculinidade hegemônica entre os estudantes, porém este modelo nem
sempre surgia compartilhado por todos. Tal situação nos alertou a refletir acerca das questões relacionadas aos diferentes marcadores sociais que constituem o corpo discentes: como são abordados na e
pela escola, visto se tratar de um ambiente composto por grande diversidade.
3 A instituição em que ocorreu a pesquisa situava-se próxima da UFPI. Assim, era corriqueiro que vários discentes dos cursos de licenciatura a procurassem para cumprir o estágio e, desse modo, as dificuldades referentes a essas experiências eram partilhadas.
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O lugar da diferença e da diversidade sexual na escola
A escola tem sido considerada um espaço privilegiado e uma das molas propulsoras para a compreensão da sociedade. Assim como Semprini (1999), entendemo-la como um espaço destinado à formação do indivíduo, sendo por meio dela que os sujeitos podem transcender seus laços familiares e
criar outros sentimentos de pertencimento. A educação, nesse sentido, tem a missão de conduzi-los ao
plano do amadurecimento, permitindo-lhes forjar um espírito crítico.
No entanto, para que isso se concretize, é necessário por parte dos professores, além do domínio
do arcabouço teórico sobre diversidade, abarcar a compreensão das diferenças em sua materialidade,
pois “a diferença não é simplesmente, ou unicamente, um conceito filosófico, uma forma semântica”;
ela é “antes de tudo uma realidade concreta, um processo humano e social, que os homens empregam
em suas práticas cotidianas e estão inseridas no processo histórico” (Semprini, 1999:11) e que, por isso
mesmo, precisam ser reconhecidas e respeitadas.
Apesar da urgência de um debate sobre o reconhecimento, respeito e valorização da diversidade
no espaço educativo, aqui no Brasil ainda existem muitas barreiras, fato que nos exige certa parcimônia.
Quadros e Nascimento (2015), ao refletirem sobre uma experiência de formação continuada de professores da Educação Básica da rede estadual de Pernambuco, demonstraram que as questões relacionadas à diversidade, sobretudo, diversidade de gênero e sexo, ainda permanecem marginalizadas. Mesmo
com a expansão das políticas públicas que visam a esse reconhecimento, os autores se depararam com
relatos que demonstram a impotência da instituição no combate às práticas preconceituosas e de exclusão do diferente vivenciadas na e pela escola. Uma postura semelhante foi percebida em nosso trabalho
de campo, durante o qual a equipe docente adotava um comportamento licencioso durante as tensões
entrelaçadas de gênero, classe e raça.
Dessa forma, percebemos que uma educação voltada a refletir sobre gênero e sexualidade em
uma perspectiva mais ampla é ainda escassamente abordada em contextos escolares e a instituição pesquisada não é exceção. Altmann (2001), ao problematizar a orientação sexual como tema transversal a
ser trabalhado em todos os ciclos da Educação Básica, demonstra como tal inserção foi pensada a partir
de uma perspectiva biológica do sexo, desde o âmbito da reprodução humana, sendo projetada a partir
de uma matriz heterossexual, monogâmica e matrimonial, distante da realidade discente.
A preocupação da escola com a regulação dos corpos e da sexualidade discentes não é uma novidade na educação moderno-ocidental, conforme assinalamos já de início. No contexto brasileiro, Altmann (2001) e Cesar (2009), ao realizarem um resgate histórico de como a educação sexual figurava
nos currículos nacionais, demonstram que, durante as décadas de 1920 a 1930, os “desvios sexuais” não
eram mais tipificados como crime, contudo, ainda permaneciam vistos como patologias. Os currículos
formulados nesse período tinham como principal interesse constituir um “sexo bem educado”, respeitando as moralidades heterossexuais e fazendo proliferarem discursos vinculados à higiene e eugênicos
de pureza racial.
Sob essa luz, uma das diretrizes da escola seria, portanto, a de transmitir aos jovens os saberes para
uma sexualidade sadia. Posteriormente, nas décadas de 1960 a 1970, houve um esforço de movimentos
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feministas para a implementação da educação sexual nas escolas, no entanto terminou suprimido no
período ditatorial militar, que guardava em seu bojo uma moralização dos costumes. Na contemporaneidade, a educação sexual possui outra roupagem e um novo discurso produtor de saberes na educação
brasileira, colonizada pelas ciências biológicas. Seu principal norteador é a prevenção e conscientização
sobre o risco de doenças sexualmente transmissíveis e de gravidez precoce (Altmann, 2001).
Na escola em que realizamos nosso trabalho de campo, contudo, as questões sobre gênero e
sexualidade não estavam presentes nas aulas nem a partir do discurso de matriz biológica. O próprio
Projeto Político Pedagógico (PPP) da instituição não fazia qualquer menção a conteúdos que trabalhassem tais temas de forma transversal às disciplinas, conforme a preconização legal. A palavra “sexualidade” sequer aparecia no texto do documento. Nesse cenário, a única referência a essa problemática
aparecia na descrição de oficinas artísticas, alertando para a não reprodução de qualquer tipo de discriminação. No documento não existiam informações sobre as oficinas ou como seriam coordenadas ou
operacionalizadas na instituição.
Percebemos ainda que o restante do documento se encontrava em sintonia com o cotidiano da
escola, apresentando uma série de dados sobre o número de alunos, taxas de aprovação e o crescimento
da matrícula. Porém, nenhuma inferência existia quanto ao reconhecimento e o respeito às diversidades, legitimando através da ausência de diretrizes pedagógicas substanciais no PPP as práticas discriminatórias e excludentes. Logo, quando algum estudante demonstrava comportamento dissidente
dos padrões de gênero hegemônicos, a instituição parecia ter uma atitude rápida, sendo ela velada ou
explícita, de correção das corporalidades dos meninos da escola.
Corporalidades e masculinidades plurais na escola
O gênero pensado como constructo cultural tem como pressuposto a ideia de que homens e mulheres constroem seu próprio gênero a partir de referências externas, como a família ou os grandes meios
de comunicação, também o moldando a partir de uma autonomia própria. Segundo Connell e Pearse
(2015:156), “fazemos nosso próprio gênero, mas não somos livres para fazermos como quisermos.
Nossa prática de gênero é poderosamente formatada pela ordem de gênero em que nos encontramos”.
O conceito de gênero contesta, por conseguinte, a naturalização de um esquema binário de hierarquização do masculino sobre o feminino. Tradicionalmente à figura masculina são atribuídas características que exaltam a racionalidade, a postura ativa e a inserção na esfera pública, enquanto que
a figura feminina é tida como emotiva, passiva e pertencente à esfera privada ou doméstica (Giffin,
2005). Ao problematizar tais percepções, os estudos nesse contexto, a princípio, mantiveram em sua
maioria um esquema binário nas análises sobre os pressupostos de gênero, afastando, assim, a discussão
sobre masculinidades do círculo de estudos feministas. Para Giffin (2005:49):
Nós, feministas, afastamos os homens e criamos espaços públicos exclusivamente femininos, nos
quais enfocamos nossa falta de poder nas relações com os homens. [...] Entendo que a obsessão
feminista foi produtiva e necessária no sentido de trazer à visibilidade estruturas e relações sistê-
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micas de poder que foram legitimadas pela ciência e naturalizadas nas ideologias de gênero binárias dominantes. Afinal, os estudos de gênero mostraram que tais ideias binárias, expressas em
símbolos e normas sociais, estruturaram instituições, foram oficializadas em leis, e encarnaram em
identidades pessoais, ou seja, participaram da construção de uma realidade social, são aspectos da
nossa realidade social. [...] No entanto, ao representar todos os homens como poderosos e todas as
mulheres como oprimidas, estávamos reproduzindo o binarismo.
Considerado esse panorama, percebe-se que a emergência dos estudos acerca da produção de
masculinidades surge como um “reflexo da ‘crise’ imposta à identidade masculina dos anos 60, oriundo da segunda vaga feminista e da emergência do movimento homossexual” (Heilborn & Carrara,
1998:2). É preciso frisar que o campo dos estudos de masculinidades não é sinônimo da produção
positivista do conhecimento que toma o homem como sujeito universal ou, como apontava a crítica
feminista nos anos 70, as “ciências do homem”. As pesquisas sobre masculinidades ganhariam mais
fôlego a partir da década de 1990, tanto no contexto estadunidense quanto brasileiro4. Inclusive, aqui
no Brasil, pesquisas sobre relações de gênero, família e sexualidade em interface com masculinidades
foram fomentadas nesse período (id.).
Para Connell (1995, 2016), a masculinidade é uma produção social e histórica a partir do encontro dos jovens com um sistema complexo de relações de gênero. As ordens de gênero diferem entre si, e,
como resultado, a produção de masculinidades pode ser alterada de acordo com os interesses econômicos e políticos vigentes. Essa autora oferece uma definição sucinta do que entende por masculinidade:
A masculinidade é uma configuração de práticas em torno da posição dos homens na estrutura
das relações de gênero. Existe, normalmente, mais de uma configuração desse tipo em qualquer
ordem de gênero de uma sociedade. Em reconhecimento desse fato, tornou-se comum falar de
masculinidades (Connell, 1995:188).
Kimmel partilha do pensamento de Connell e Messerschmidt (2013), ao postular a masculinidade não somente como um dado cultural entrelaçado com identidade e período histórico, mas,
também, como relações de poder. Segundo o autor, no interior dessas relações, encontram-se “desigualdades entre homens e mulheres (de gênero, etnia, idade, sexualidade, etc.)” (Kimmel, 1998:105). Nesse
sentido, os homens podem ser oprimidos pelo mesmo sistema que lhes garante uma série de benefícios
dentro do patriarcado.
As relações entre os gêneros não são, dessa forma, embates entre blocos homogêneos. O conceito
de masculinidade hegemônica expressa a existência de uma masculinidade subordinada a outra, ou melhor, como grupos específicos de homens são oprimidos dentro das relações patriarcais. Kimmel demonstra como a masculinidade hegemônica dispõe de um discurso que inferioriza outros modelos, ao relatar
como o homem branco, anglo-saxão e norte-americano marginalizava homens de origens diferentes:
4 Heilborn e Carrara (1998), Connell (1995) e Giffin (2005) apontam o surgimento de alguns escassos movimentos de homens a refletirem e a desconstruírem os aspectos danosos da masculinidade.
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Na virada do século [XIX – XX], novos imigrantes europeus também foram somados à lista de
outros subalternos. Os irlandeses afirmaram a sua reivindicação de masculinidade tornando-se
“brancos” – estes que há muito eram vistos como não sendo uma raça pura na Bretanha [...]. Os
Italianos também eram vistos como passionais demais e voláteis para possuírem autocontrole masculino. Os judeus eram demasiadamente almofadinhas, intelectualizados e miúdos para serem homens. Hoje em dia, os asiáticos é que também são vistos como pequenos demais, demasiadamente
gentis, moles, sem pelos e afeminados (Kimmel, 1998:115).
Com a colocação de Kimmel, pode-se inferir que a masculinidade não é cristalizada em um binarismo de gênero, mas, sim, intercambiável em um contexto no qual os traços tidos como femininos
aparecem em detrimento daqueles masculinos. Para Connell (1995, 2016) e Connell e Pearse (2015),
o incentivo ao constructo de uma masculinidade viril e agressiva acarreta sérias consequências, sobretudo, na população jovem. Para a autora, a constante afirmação da própria masculinidade ligada a um
comportamento agressivo faz com que os garotos cultivem hábitos danosos à saúde (como o fumo e
o uso desenfreado de álcool) e, ainda, se exponham a maiores situações de violência. Diante disso, tomando como referência uma multiplicidade das formas existentes de expressão da masculinidade, bem
como a existência de desigualdades nas relações de gênero entre homens face a uma masculinidade
hegemônica, tornou-se possível perceber, através do trabalho de campo, os padrões de masculinidade
cristalizados e reproduzidos na escola em foco.
O estudante que se mostrava altivo e conciliava a jornada dos estudos com o trabalho, sem demonstrar comportamentos agressivos e/ou violentos no espaço da escola, dificilmente experimentava
alguma discriminação ou represália referentes à performance de seu gênero. Em contrapartida, os garotos cujos arranjos de gênero indicavam uma expressão mais sensível e edulcorada de suas masculinidades estavam mais sujeitos à violência, operacionalizada por meio de piadas, chegando à suspensão
da escola. Essas ações eram efetuadas principalmente pelo corpo docente e burocrático da instituição.
Caso o aluno fosse assumidamente homossexual, o controle sobre sua corporeidade era mais intenso e
menos velado, em suma, as opressões se tornavam mais cristalinas.
O constructo da masculinidade era, desse modo, expresso através dos corpos dos alunos, corpos
apresentados como produto da cultura, que produz e reproduz discursos. A forma de caminhar, por
exemplo, e outras ações cotidianas são construções culturais e variam entre diferentes sociedades. O
corpo na sociedade ocidental foi morosamente deixando de ser visto como universal, ou seja, como
se cuidados e investimentos nele acontecessem em sua totalidade. Paulatinamente, o corpo foi sendo
fragmentado e anatomizado em diferentes especialidades. Sobretudo na contemporaneidade, o corpo
é bricolado e composto por uma gama de signos que, em um primeiro olhar, podem parecer contraditórios e/ou até excludentes (Mauss, 2017; Goellner, 2003; Le Breton, 2016).
A corporalidade aceitável como viril pela escola em análise era expressa por meio do relógio
de pulso, das correntes de metal penduradas no pescoço e de um caminhar truncado, arrastado. Bem
distante do padrão de masculinidade hegemônica, todavia, também era comum encontrar garotos assumidamente gays, usando batom, acessórios femininos, blusas mais curtas para que a barriga ficasse à
mostra ou, ainda, até mesmo performando um “caminhar mais solto” dentro da escola, isto é, meninos
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que construíam e modelavam seus corpos para além de uma matriz e performance heterossexual. Aqueles que assim o desejassem, ostentavam signos que fugiam da masculinidade hegemônica e que não se
remetiam a uma dita virilidade (Butler, 2000; Connell & Pearse, 2015; Connell, 2016).
Durante a sociabilidade com garotos inseridos na masculinidade hegemônica da escola, ficou
claro como o gênero estava calcado em valores específicos, tais como liderança e sustento à família.
Além do trabalho formal ou informal, a conquista de garotas e, sobretudo, um relacionamento sério
eram motivos de orgulho entre os rapazes, pois constituíam marcadores da masculinidade tida como
correta, saudável e moralmente superior a outros modelos. Pereira (2014), ao analisar a produção das
masculinidades em diferentes contextos envolvendo os marcadores de classe e raça, demonstra como
essa construção está articulada com a posição que o jovem ocupa na sociedade de classes. Segundo ela,
enquanto os filhos de famílias abastadas eram direcionados, a partir da infância, a terem ocupações
de maior prestígio na produção capitalista e/ou herdar os meios de produção de seus ancestrais, os
jovens das camadas pobres eram forçados a apostar todas as suas fichas no trabalho formal ou informal, para tentar alcançar prestígio social. Tal situação, a nosso ver, parece se confirmar na realidade
da instituição investigada.
Entre os garotos ouvidos, aqueles inseridos no mercado formal geralmente trabalhavam como
caixas de supermercado, atendentes de telemarketing ou com algum trabalho braçal. Aqui, é perceptível
como gênero, classe e raça se imbricam na construção de um dos vários tipos de masculinidades existentes na sociedade (Scott, 1995; Louro, 2014). No caso da escola estudada, o estudante heterossexual
conciliador do trabalho e do estudo, enfrentando uma dupla jornada, era bem-quisto pelos alunos
e pelo corpo docente. Os professores não somente (re)produziam esses marcadores constantemente,
como também exclamavam isso como motivo de orgulho para os alunos e os generificavam como tais
(Connell, 1995; Connell & Pearse, 2015; Dayrell, 2007).
A despeito da apreciação acima em que foi possível perceber a valoração de uma determinada
maneira de se expressar a masculinidade, vamos analisar, a partir de nossa inserção na escola, quatro casos pelos quais foi possível constatar a inexistência de uma masculinidade hegemônica unificada. Nesse
sentido, notou-se que mesmo aqueles alunos pertencentes aos padrões esperados carregavam traços
subjetivos que os diferenciavam de algum modo, enquanto outros, cujos corpos foram produzidos a
partir da norma heterossexual vigente, não tinham problemas em trocar abraços, carícias e brincadeiras
com colegas assumidamente gays.
O trabalho de campo revelou, portanto, como as práticas de afeto e tolerância com os estudantes
que não atendiam aos arranjos de gênero, de como ‘ser masculino’, tinham limites que permitiam sua
aceitação ou exclusão em certos grupos ou espaços.
Corpos que resistem e a exclusão social
O corpo se adapta e é moldado a partir do contexto sociocultural. O sujeito cujo corpo se encontra exposto a constrangimentos variados, aprende mecanismos de defesa no cotidiano, tornando, de
uma forma geral, a corporalidade passível de tentativas de controle dentro da escola. Na análise a seguir,
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o enfoque será sobre os corpos que exprimem masculinidades tidas como extremas e como práticas de
violência ou exclusão são perpetuadas pelos discentes, docentes e atores burocráticos da escola nesse
quadro de relações e tensões (Foucault, 2014; Butler, 2000; Le Breton, 2016).
O trabalho de campo tornou possível revelar como a escola lida com as nuances existentes nos
padrões de masculinidade dos alunos, com ênfase sobre dois tipos de corporalidades a serem subordinadas, posto que sempre eram tidas como abjetas pela comunidade escolar. A primeira concerne àquela
na qual a virilidade é potencializada, ou seja, o corpo atesta sua masculinidade através da violência física
ou de atividades ilícitas, dentro e fora da escola. A segunda se refere àquelas masculinidades que subvertem completamente a norma heterossexual, nas quais meninos se permitem usar batom e adereços
femininos sem, inicialmente, ter receio de represálias. A partir dos relatos de Bruno, Luigi, Juliano e
Umberto5, será perceptível verificar como ambos os extremos de corporalidade transparecem as práticas e o discurso normatizador da escola diante de masculinidades a serem subordinadas.
Em campo notou-se que os meninos envolvidos em atividades ilícitas e arriscadas eram enxergados como tendo uma potente virilidade. Aqueles engajados em delitos ou que demonstravam valentia
com outros estudantes e professores(as) eram vistos como figuras dotadas de agressividade, incumbindo-se a isso uma narrativa de um poder genuíno dentro do ambiente escolar. Partindo do discurso de
uma professora e dos próprios alunos, nos foi revelado como a ostentação de uma alta quantia de dinheiro emergia enquanto um marcador identitário de uma masculinidade ligada à agressividade entre
os estudantes. Para os docentes e discentes, um aluno com grande quantidade de dinheiro dentro do
espaço escolar (público) estaria automaticamente ligado a atividades criminais (extraclasse).
Uma das professoras relata o caso de Bruno, que havia sido recentemente transferido para outra
escola. Durante a conversa, ela destacou como Bruno gostava de abrir a carteira diante de outras pessoas para mostrar “o bolo das notas de cem reais”. Além da suspeita do envolvimento com atividades
ilícitas, Bruno colecionou denúncias de ameaças contra alunos e alunas que reclamavam sobre ele atrapalhar as atividades em sala. Uma colega de aula relatou que, quando cobrou de Bruno e seus amigos
que fizessem silêncio durante uma das aulas, foi respondida com uma ameaça de agressão física. Esse
tipo de problema não era restrito somente a Bruno, tanto que a professora contou como a diretora arranjou uma forma de transferir a ele e outros em mesma situação para uma nova escola. Nesse momento, percebe-se que a instituição de ensino prefere se eximir a lidar com o caso, bem como verificam-se
as questões sociais que perpassavam a vida desses discentes.
Logo, um dos extremos existentes da masculinidade hegemônica na escola é o garoto tido como
perigoso, ou, melhor dizendo, aquele que exerce uma coerção através da agressividade sobre o corpo
docente e discente. Os homens também não escapam do peso do machismo, sobretudo, aqueles inseridos em um contexto de periferia da cidade, principalmente os negros e/ou de classes mais baixas. Na
escola estudada, não chega a ser diferente: por mais que os jovens generificados como masculinos tirem
proveito de uma hierarquia de gênero que os privilegia, existe um custo a ser pago. Esses alunos têm
seus corpos apagados da sociabilidade, sobretudo, porque tendem a valorizar a atividade laboral (ilícita) em detrimento dos estudos, dificultando uma das possíveis saídas dos jovens da periferia da capital
5 Considerando os princípios éticos da pesquisa com seres humanos, informamos que os nomes dos discentes são fictícios.
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piauiense, permeados pela condição socioeconômica frágil. No caso específico de Bruno, ao invés da
gestão da escola conversar e procurar saber sua realidade, bem como incorporá-la na educação, por não
conseguir moldá-lo à sua lógica, acaba por expulsá-lo (Dayrell, 2007).
O corpo, quando se choca intensamente contra a matriz heterossexual, também sofre sanção
pela instituição. Desse modo, os meninos cujos corpos são investidos de signos ditos femininos acabam
por sofrer punições – em alguns casos, havendo a expulsão de sala de aula ou até mesmo a retaliação
física. Luigi, assumidamente homossexual, não tinha vergonha em ostentar uma corporalidade que
subvertia completamente o discurso hegemônico sobre as práticas e padrões de masculinidade na escola. Esse aluno mantinha uma postura combativa em sala de aula, além de corporificar sua performance
de gênero através de signos usualmente considerados femininos, expressos de diferentes formas: o uso
da blusa de uniforme mais curta, fazendo com que a barriga ficasse à mostra, assim como de materiais
escolares cor de rosa ou que fugissem do estereótipo de gênero masculino.
Sob o controle parcial discente e docente, o garoto reinventava mecanismos, tendo como vetor o corpo para a afirmação de uma representação de gênero relacionada a práticas de feminilidade,
portanto chocando-se com o discurso matriz e hegemônico sobre o que é ser masculino, reforçado
constantemente dentro do âmbito escolar (Butler, 2000; Le Breton, 2016). Luigi assumia que, aos sábados, sempre ia a um pagode com “trajes femininos”6, produzindo, assim, seu corpo de modo aceitável
naquele espaço, conforme verificamos em seu relato: “Ah, professor... Eu, todo final de semana, vou ao
pagode. Eu pego meu cabelo, coloco umas presilhas, passo o batom, boto um shortinho curto e fico
‘nos paredões’ de som dançando e rebolando”.
Ensaiar passos de dança característicos das coreografias de ritmos como pagode e funk, juntamente com meninas que figuravam coleguismo dentro da classe, eram formas de resistência para Luigi.
O grupo de meninos que, no momento da pesquisa, se identificava enquanto heterossexual não tinha
nenhum problema em abraçar ou deixar Luigi sentar em seus colos em momentos de sociabilidade na
escola. Claro que isso não eximia Luigi das piadas sobre sua sexualidade, as quais, na maioria das vezes,
eram endossadas e reforçadas por ele próprio. Em um dado momento, Luigi decidiu usar batom. Isso
logo após o intervalo, e, então, durante a aula, ele relata: “a diretora disse que eu não posso usar batom
porque Deus fez o homem pra mulher e vice-versa!”.
O simples uso de um batom fez com que a diretora, cuja orientação era abertamente neopentecostal, usasse de uma justificativa de cunho religioso para repreender o aluno, tornando-o passível de
total constrangimento em frente ao corpo discente, sobretudo, de seus colegas. Como resposta, Luigi
decidiu passar um brilho labial, buscando evidenciar ainda mais sua boca como forma de protesto.
Em outro momento, Luigi estava ensaiando para uma apresentação de dança junina que seria
realizada na escola e, durante essas ocasiões, sempre que possível reproduzia os passos ensinados às
garotas, chegando, inclusive, a pedir ao professor para dançar ele próprio os passos femininos. Teve, em
seguida, seu pedido negado, pois todos os pares já estavam formados de acordo com o modelo binário
de gênero. Os estudos de Melo (2018), Noleto (2018) e Menezes Neto (2019) demonstram que os
6 A escolha da expressão se deve ao fato de que era assim que Luigi denominava seu vestuário, sempre ressaltando a feminilidade
de suas roupas.
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festejos juninos, enquanto cultura popular, são terrenos profícuos para colocar em xeque concepções
cristalizadas sobre gênero e sexualidade e a participação de corporalidades dissidentes. Todavia, tal
participação enfrentou e ainda enfrenta resistência por parte dos organizadores, avaliadores e até da
própria comunidade em geral. Essa resistência é justificada como proteção à tradicionalidade dos festejos juninos7.
A corporalidade de Luigi, que anteriormente enfrentou a ação punitiva e normalizadora da direção, acabou por ficar em silêncio perante o professor e colegas de classe, pois todos eles lidaram com
humor diante da situação constrangedora que terminou por intimidá-lo – foi esta a primeira vez que
vimos Luigi, cujo corpo expressava uma performance irradiante e combativa, ser forçado a se calar. Durante essa situação, o professor que estava organizando a quadrilha sugeriu, de forma irônica, que tinha
o conhecimento de que Luigi “queria ser uma menina”, mas que, naquele momento, não seria possível e
ele devia voltar para o seu lugar na quadrilha. A coerção docente foi endossada e reproduzida por uma
aluna que ressaltou que Luigi “queria ser mulher de vez”.
Diferente dos momentos de sociabilidade nas aulas e no intervalo, a tolerância com a corporalidade e masculinidade não hegemônicas de Luigi foi inexistente. Por ser um evento aberto para toda
a comunidade escolar, surge a emergência de um controle mais incisivo do corpo e gênero de Luigi,
diferente de quando ele estava em grupos específicos que o aceitavam. Acrescida da jocosidade, vêm a
latente discriminação e a exclusão da performance que Luigi gostaria de realizar na festa junina.
Luigi, ao expressar uma masculinidade subversiva ao modelo heterossexual, acaba por ter seu
corpo excluído culturalmente, pois se constitui de signos culturalmente ligados ao gênero feminino,
portanto, chocando-se com o seu “sexo” preestabelecido e regulado forçosamente pela matriz biológica, sobretudo, a partir da representação social de sua genitália (Louro, 2014). O exemplo da violência
sofrida por Luigi demonstra como os arranjos de gênero que a escola, de forma sublime, tenta reproduzir no corpo dos discentes é incompleta. Para além disso, mostra que nem mesmo uma performance
tida como exagerada pelos colegas de classe será tolerável em todos os contextos (Butler, 2000). A fala
do professor, por fim, demonstra um desconhecimento dos debates tão crescentes sobre a diversidade
de gênero na escola e, ademais, acaba reforçando a exclusão e o preconceito vivenciado por Luigi.
Outro exemplo de intolerância e desrespeito com os corpos foi vivenciado por Juliano. Esse aluno do terceiro ano sofreu uma punição pelo simples fato de ousar elaborar uma fabricação de seu corpo.
O garoto iria desfilar “montado” em um evento da escola, para tanto, fez-se necessária uma produção
corporal completa: maquiagem pesada, vestido rosa choque, peruca e sandália de salto alto. O evento
7 Noleto (2018), em um estudo sobre festejos juninos em Belém (PA), mostra que, apesar das competições permitirem a participação
de homens gays e transsexuais, ainda há uma tendência a persistir o que o autor denomina de uma “heterossexualidade e cisgeneridade
coreográfica” na reprodução dos papéis de cavalheiros e damas nas competições. Menezes Neto (2019), ao analisar o documentário O
São João também é trans, de Thiago Castro, mostra a importância das festas juninas em Sobral (CE) para mulheres transsexuais enquanto
espaço de acolhimento e de expressão de suas diversidades. Melo (2018), ao estudar as competições juninas em Recife (PE), articula
acontecimentos presenciados em campo que demonstram o leque de formas com que os festejos juninos podem desestabilizar uma concepção binária de gênero. Elencaremos duas situações extremamente ricas exploradas pela autora. A primeira se refere à representação da
corporalidade transsexual no circuito competitivo, que acontece tanto de forma cômica caricatural, quanto corporificando o papel da
dama, sendo assim uma representação ambivalente, pois ao mesmo tempo que desestabiliza as categorias, existe uma sublime reprodução
da cisgeneridade coreográfica. A segunda foi em uma competição em 2013, em que Severino Boca Virgem, o protagonista da apresentação, ao final contrai matrimônio com outro rapaz, ao invés de com uma mulher. A apresentação em questão subverteu completamente a
matriz heterossexual.
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em questão era referente a uma atividade cultural que acontecia quinzenalmente na escola, na qual
os alunos ficavam depois das aulas escutando música e dançando. Por vezes, diferentes apresentações
aconteciam. Nessa quinzena em específico, ficou combinado que Juliano poderia desfilar momentos
antes de a música começar a tocar. Como o desfile seria realizado no último horário do turno, o garoto
se “montou” na escola durante o intervalo. Contudo, foi impedido de assistir à aula de matemática no
horário anterior ao evento, pois o professor não tolerou sua presença enquanto estivesse travestido.
O caso, ao chegar à direção, não foi resolvido. A direção adotou uma postura esquiva, alegando
que não poderia fazer nada por Juliano e que ele voltaria a assistir às suas aulas normalmente após o
desfile. Para evitar lidar com o conflito, diretora e professores se eximiram do papel de educadores,
acabando por não problematizar a situação, bem como corroborando o preconceito do docente – que
ministrava a aula de matemática –, impedindo a efetivação de uma educação compromissada com o
reconhecimento e respeito às diferenças.
As experiências discriminatórias de Luigi e Juliano guardam uma semelhança: a homossexualidade de ambos era tolerada e parcialmente respeitada quando seus corpos e gêneros estavam, em
alguma medida, sincronizados com a matriz heterossexual vigente na escola. Porém, a partir do momento em que essa norma era completamente subvertida pelo desejo de ocupar papéis relacionados ao
feminino, rapidamente surgiam à superfície discursos intolerantes.
Já a experiência de Umberto com a postura discriminatória da direção foi descoberta através de
um desabafo do próprio aluno8. Durante uma das aulas de Sociologia, surgiu um debate sobre preconceito. Nesse momento, foi perguntado aos estudantes quem ali já tinha sofrido preconceito por alguma
razão. A posteriori, com o debate construído e embasado por vários exemplos das diferentes formas de
discriminação (sobretudo raça e classe), os discentes perguntaram se eu já havia experienciado alguma
forma de preconceito. E isso encorajou um contexto oportuno de me colocar na posição de já ter sofrido preconceito na minha vida estudantil, portanto incentivando a outros alunos que falassem sobre
suas experiências.
Durante essa aula, Umberto, que estava sentado no fundo, me chamou para comunicar algo.
O aluno cochichou em meu ouvido que já havia sofrido preconceito por parte da própria diretora
da escola acerca de sua sexualidade. Diante do fato relatado, sugeri que poderíamos conversar sobre o
ocorrido em um momento posterior à aula. Então, ele contou:
Professor, teve uma vez, na hora do intervalo, que eu estava de mãos dadas e abraçado com meu
ex-namorado, naqueles banquinhos do pátio da escola. Quando a diretora passou pela gente e viu,
mandou a gente soltar a mão na hora e disse pra gente não fazer mais aquilo na escola. Na hora,
eu fiquei sem reação e acabei soltando a mão. Eu sei que nenhum casal pode ficar se pegando na
escola, mas o que a gente estava fazendo era o que os héteros faziam. Andar de mãos dadas e sentar
próximo um do outro. E a diretora nunca fala nada deles ou fala mal de nenhum deles. Eu pensei
em contar pra minha mãe, porque ela sabe que eu sou gay e que eu namorava esse menino na época,
mas como ela [a mãe] é muito barraqueira, fiquei com medo de dar confusão na escola.
8 O relato aconteceu apenas na presença do segundo autor do artigo, em uma das aulas ministradas durante o estágio. Por isso, nessa
passagem está empregada a 1ª pessoa do singular.
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O temor de relatar para sua mãe a violência sofrida era plausível, visto que os outros casos de
discriminação citados acima não foram solucionados, nem problematizados. Como apontado por Miranda e Maia (2017), situações envolvendo qualquer tipo de violência ou discriminação de gênero na
escola são, costumeiramente, confundidas com “problemas de disciplina”. Contudo, o caráter preconceituoso da ação da diretora não passou despercebido por Umberto: ele tem consciência de que foi vítima de homofobia. Apesar disso, escolheu não relatar a violência para sua mãe, que tinha conhecimento
de sua sexualidade e o aceitava.
O que podemos inferir dessa situação e tomando como base a fala do próprio discente é que,
ao denunciar o caso para sua mãe, esta iria tomar satisfação com a escola, o que poderia trazer maiores
transtornos para o estudante. Nesse caso, a situação não se resolveria e ele possivelmente poderia sofrer
algum tipo de exposição e/ou sanção por parte da gestão institucional. Provavelmente, se a tensão entre
Umberto e a direção tivesse inflado, ele acabaria expulso da escola, visto que tal ação parecia ser comum
e legitimada no que tange à resolução dos conflitos. É necessário frisar que a aceitação da sexualidade de
Umberto por parte da mãe não implica que o namorado desfrute da mesma aceitação, logo é possível
que Umberto tenha evitado maiores confrontos para também não expor o rapaz.
Os quatro casos apresentados demonstram a postura punitiva da escola, bem como a reprodução
discriminatória no que tange às relações de gênero binárias neste ambiente. A própria diretora, guiada
por um ideal neopentecostal, pune as diferentes formas de afeto entre os rapazes ali matriculados, independente da sexualidade e ainda contribui, mesmo que paulatinamente, na construção de uma masculinidade calcada na supressão de sentimentos e na rigidez. Uma ironia, visto que a direção transfere
os alunos que são taxados como agressivos e violentos.
Para Butler (2000), quando pessoas se afirmam, de maneira naturalizada, enquanto homens ou
mulheres, há uma abjeção de outras formas de vivenciar o gênero. As pessoas consideradas fora de
padrão, na maioria das vezes, acabam marginalizadas e mais suscetíveis à violência. Os garotos, por
possuírem construções de si fortemente destoantes da masculinidade hegemônica presente na escola,
tendem a enfrentar sanções que buscam normatizar seus corpos e identidades de gênero. Os estudantes,
em contrapartida, não aceitam de forma passiva as imposições da instituição. O corpo se destaca não
apenas por ser um dos principais alvos de regulamentação forçada, mas também como principal ponto
de resistência. Contudo, quando os discentes geram atritos em decorrência das tentativas de docilizar
seus corpos (seja de forma explícita ou velada) e a regulação não se mostra possível, a equipe docente
acaba impedindo o aluno de frequentar a escola.
Considerações finais
Aqueles corpos que excedem para o extremo em relação ao modelo de masculinidade hegemônica tendem a ser apagados e têm sua educação tolhida e/ou ceifada. Quando as práticas de masculinidade estão em um extremo que privilegia a agressão e a virilidade, os garotos são remanejados e/
ou expulsos da escola. O discurso dos professores e da direção indica que tal medida é necessária para
manter a segurança no espaço educacional.
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Em um polo oposto, os alunos que possuem masculinidades permeadas por práticas e/ou traços
de feminilidades também sofrem represálias, estas sendo inibidas de suas respectivas performances de
gênero entre os meninos. Especialmente se as práticas e/ou traços, por sua vez, estão mais associados à
feminilidade que à masculinidade. A incursão na escola evidencia como as punições foram mais severas
para Juliano, que, ao se travestir para um evento cultural, foi impedido de assistir à aula.
O mesmo acontece com Luigi, que, ao tentar assumir o papel feminino na dança da festa junina,
é imediatamente recolocado em “seu lugar” generificado. Enquanto Umberto fora impedido de desfrutar de uma prática que era exercida por estudantes heterossexuais. Ao contrário da reação indiferente
da escola perante a postura carinhosa de Luigi com outros colegas de classe não lidos enquanto gays
assumidos, quando se tratou de um casal homoafetivo, caso de Umberto, a direção surgiu com uma
série de mecanismos para enquadrar os dois alunos na matriz heterossexual vigente.
Luigi, ao possuir práticas de feminilidade refletidas em seu corpo através do batom ou da blusa, tendeu por sofrer com um discurso que busca masculinizar seu corpo, mas não houve um impedimento de vivenciar a escola (se comparado aos casos de expulsão). Todavia, quando Luigi decide
intensificar a sua feminilidade na festa junina, tratam imediatamente de compeli-lo e impedi-lo de
dançar como gostaria. No caso de Bruno e Juliano, suas performances de masculinidade abjeta fizeram
com que a equipe da escola logo legitimasse o discurso que os excluiria da convivência: quanto a Bruno,
a expulsão por seu suposto envolvimento em atividades ilícitas; e, no que tange a Juliano, o banimento
da sala de aula por estar travestido em razão de um evento.
O discurso da comunidade escolar como um todo, que exalta a qualidade do jovem capaz de
conciliar trabalho e estudo, está ligado ao papel atribuído aos homens como provedores na divisão do
trabalho, visto ser o mecanismo considerado lícito para garantir o acesso a melhores condições de vida
e bens de consumo (Scott, 1995; Pereira, 2014).
A experiência da observação participante, realizada no estágio, revelou como os corpos de garotos permeados por práticas ditas femininas despertam uma atenção e um interesse naqueles que possuem a intenção de “corrigi-los” e “enquadrá-los” novamente à norma de masculinidade vigente, gerando assim um processo de exclusão dos alunos. Esse processo é reforçado se os discentes se exacerbam em
não se encaixarem na norma heterossexual estabelecida. Assim, as tensões de gênero se tornaram cada
vez mais evidentes na escola pesquisada, que tendeu a acionar uma série de discursos e mecanismos,
visando à homogeneização da masculinidade naquele local.
Naquele contexto, as violências citadas acima, devido aos garotos performarem uma masculinidade abjeta, assumem um papel peculiar. Quando os alunos demonstram alguma tendência mais
enfática tida como homossexual ou que exprime de forma assumida a própria homossexualidade, a violência surge como um mecanismo que relembra as normas hegemônicas de gênero. Mas essa tentativa
de regular os corpos dissidentes não é exclusiva daqueles que demonstram sinais efeminados.
É praticamente impossível não perceber a forma punitiva com que a escola lidou com Bruno,
como um reflexo do que acontece atualmente fora dos muros das instituições de ensino, quando jovens que cometem algum tipo de infração são apenas presos e expelidos de todo e qualquer convívio
social (Pascoe, 2018). As experiências vivenciadas durante o período do estágio curricular demonstra-
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AçõES E REAçõES DA E SCOLA DIANTE DE MASCULINIDADES HEGEMôNICAS E NãO HEGEMôNICAS
ram como a equipe docente da escola apresenta desconhecimento acerca da abordagem das questões
relacionadas à diversidade de gênero, classe e raça, discussões estas que são latentes naquele âmbito.
Enquanto machismo, fundamentalismo religioso e postura indiferente acabam tornando a educação
um meio de exclusão, quando, a priori, sua função deveria ser justamente a oposta.
Basta pensar em Bruno, Juliano, Luigi, Umberto e também em outros jovens que se evadem da
escola devido aos discursos de expurgo escutados nesse espaço que deveria ser acolhedor. Quanto mais
dissidentes se revelam as práticas de masculinidade dos estudantes em relação ao discurso sobre o ideal
hegemônico, piores se mostram as punições escolares (Sales, 2018). Essas nuances, evidenciadas por
nosso trabalho de campo, nos parecem de fundamental inserção no crescente debate sobre inclusão
de minorias, que vem efervescendo e tensionando as políticas e as práticas educacionais no contexto
brasileiro dos últimos anos.
Raimundo Nonato Ferreira do Nascimento é Doutor em Antropologia pela
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professor vinculado ao Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Piauí (UFPI) e do
Programa de Pós Graduação em Antropologia da mesma instituição.
Marcos Paulo Magalhães de Figueiredo é mestrando em Antropologia pela
Universidade Federal do Piauí (UFPI).
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Ações e reações da escola diante de masculinidades hegemônicas e
não hegemônicas: um olhar antropológico
Resumo: Durante a década de 1990, com o avanço das políticas públicas de inclusão, a escola pública
brasileira foi incitada a contemplar em seus conteúdos o debate sobre sexualidade. Contudo, as diferenças de gênero e sexualidade permanecem sendo suprimidas pela escola, seja de forma sublime ou
bem explícita. A partir dessa realidade e com base em uma observação participante, o artigo pretende
analisar como a escola, em seus discursos normatizadores, contribui com os processos de construção e
afirmação das masculinidades hegemônicas, na corporalidade dos estudantes e, consequentemente, em
suas identidades. Pretendemos demonstrar como as concepções cristalizadas de uma masculinidade
hegemônica produzida na e pela escola destoam da realidade discente, marcada por uma diversidade
sexual e de gênero. No trabalho de campo, constatamos dois tipos de masculinidades vistos enquanto
ameaça: o estudante extremamente viril e violento e o estudante visto como demasiadamente feminino. Podemos concluir que a pauta do gênero na educação mobiliza as relações de desigualdade e aciona
dispositivos de regulação, visando a enquadrar os estudantes em um padrão hegemônico de masculinidade, considerado salutar pela escola.
Palavras-chave: Masculinidades; Corporalidades; Educação e Diversidade; Sexualidade.
School actions and reactions to hegemonic and non-hegemonic
masculinities: an anthropological view
Abstract: During the 1990s, with the advancement of public inclusion policies, Brazilian public education was urged to include in its contents the debate on sexuality. However, gender and sexuality
differences remain hidden by the school, either in a sublime or explicit way. Based on this reality and
on participant observation, the article intends to analyze how the school, in its normalizing discourses,
contributes to the processes of construction and affirmation of hegemonic masculinities, in the corporality of the students and consequently in their identities. We intend to demonstrate how the crystallized conceptions of hegemonic masculinity produced by the school are different from the reality of the
students, marked by sexual and gender diversity. In the fieldwork, we found two types of masculinities
seen as a threat: the extremely virile and violent student and the student seen as too feminine. We can
conclude that the gender issue in education mobilizes the relations of inequality and activates regulatory devices, in order to place students in a hegemonic pattern of masculinity, considered healthy by
the school.
Keywords: Masculinities; Corporalities; Education and Diversity; Sexuality.
RECEBIDO: 31/05/2020
APROVADO: 19/02/2021
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D O SSIÊ
“Se aqui é o inferno, eu sou a
principal demônia!”: Etnografando
agências juvenis LGBT em contextos
escolares de Fortaleza (CE)
JOSÉ RICARDO MARQUES BRAGA
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE (UFRN), NATAL/RN, BRASIL
https://orcid.org/0000-0003-1304-5243
Introdução
A reflexão que se materializa nas próximas páginas é fruto de trabalho de campo realizado em
três escolas públicas da cidade de Fortaleza (CE), localizadas na região oeste, área considerada periférica, apresentando, de maneira geral, características socioeconômicas similares. Todas as escolas investigadas estão situadas em zonas consideradas estigmatizadas pelos altos índices de violência urbana e
baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)1. Os estudantes são considerados pelos agentes escolares “filhos de pobres”, de “famílias desestruturadas” e “filhos dos becos”. Eu fui interpelado diversas
vezes, tanto por amigos como pelas próprias pessoas que trabalhavam nessas instituições, sobre se não
teria “medo” de fazer pesquisa ali naquela região.
O trabalho de campo integra uma etnografia que orbita em torno da compreensão das experiências de jovens estudantes que compartilham – assumidamente – sexualidades tidas por periféricas e/ou identidades de gênero fora das performances hegemônicas, que rompem com a ideologia da
complementaridade dos sexos, tão naturalizada pelas instituições escolares (Bento, 2011). A intenção
do artigo é explorar a miscelânea de experiências de estudantes LGBT2 que tomam lugar no seio das
1 O IDH é mensurado a partir de três variáveis: educação, renda e saúde.
2 Uso este acrônimo, apesar da divergência de apresentação, fomentada pelos movimentos sociais, entre outros, por ser essa a definição
defendida e aprovada na I Conferência Nacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Travestis, em Brasília, no ano de 2008. As conferências
posteriores (2011 e 2016) mantiveram essa sigla.
instituições de ensino investigadas, compreendendo a relação que estabelecem com o universo educacional e analisando como tais jovens, considerando sua sexualidade, experimentam o tempo da escola.
Os resultados sinalizam uma forte heterogeneidade das relações travadas nesse espaço por parte dos estudantes LGBT, pois, apesar de a escola ser tida como instituição que visa a subordinar as sexualidades
e identidades não hegemônicas, essas juventudes encontram múltiplos meios para permanecer nesse
universo e tentar uma transformação das regras que operam nesse local.
Partindo do princípio de que a “pedagogia da sexualidade” (Louro, 2000) implantada nas escolas marginaliza e violenta identidades em dissonância das normas dominantes, produzindo seres considerados abjetos que vão sendo gradualmente expulsos de tais espaços (Bento, 2011; Costa Novo, 2015;
Oliveira, 2017), interessa observar os meandros dos cotidianos educacionais para perceber como se
constroem as relações desses jovens com os ambientes de ensino e os atores sociais que os compõem,
como gestores, professores, funcionários e toda a comunidade escolar. Pretendo mostrar que, mesmo
não negando as mais diversas formas de violência, negação e invisibilidade aos quais estão sujeitos, esses
jovens produzem estratégias de sobrevivência, construindo linhas de fuga que permitem, em alguns
casos, a ressignificação da escola e uma apropriação possível da instituição por esses estudantes.
Além de jovens gays, lésbicas e bissexuais – estes últimos silenciados nas abordagens socioantropológicas sobre sexualidades, como sugerem Simões e Carrara (2014) – o quadro etnográfico que
compõe a pesquisa conta também com uma estudante que se declara como travesti e/ou “bicha afeminada” (tal classificação se mostra fluida, sendo acionada de distintas maneiras em situações diferentes).
Por isso essa aluna entende viver uma situação ainda mais delicada que os demais, uma vez que “mesmo
entre os gays, é notório que a violência mais cruenta é cometida contra aqueles que performatizam uma
estilística corporal mais próxima do feminino” (Bento, 2014:1).
Andrade (2012) afirma que as travestis na escola são vistas como “poluidoras” do ambiente, precisando, a todo custo, ser corrigidas, para não influenciarem os meninos. A autora, embora considere
um cenário menos tenebroso que anos atrás, entende que a instituição escolar é falha no tratamento da
diversidade, tolerando, na melhor das hipóteses, a presença das travestis, mas as expulsando simbolicamente desse espaço, numa espécie de “evasão involuntária”.
Aqueles que não inscrevem em seus corpos os sinais da masculinidade/feminilidade impostos e
que, portanto, não exibem uma concordância entre gênero, sexualidade e corpo (Bento, 2006), estão
sujeitos a um percurso escolar marcado pela violência, seja física ou moral. Não quero aqui afirmar
com isso que todas as experiências de corpos LGBT nos espaços educacionais devam ser tomados pelo
prisma da violência, da negação e do sofrimento, pois entendo que a escola é plural e não monolítica,
assim, diversas são as experiências que podem ser vividas por esses estudantes. Apenas sinalizo que as
formas de experimentar a escola são condicionadas por diversos marcadores, incluindo o gênero e a
sexualidade, fazendo com que aqueles fora da norma tenham um percurso mais dificultado.
Dessa forma, afrontar as formas idealizadas do gênero e/ou da sexualidade impõe aos sujeitos
itinerários de exclusão implícita – através do silenciamento e invisibilização – ou explícita, por meio
de tratamento discriminatório, que se materializa em piadas, insultos e ritos de suplício na convivência
educativa. São os percursos construídos entre os muros escolares por esses jovens estudantes – que,
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“SE AQUI é O INFERNO, EU SOU A PRINCIPAL DEMôNIA!”
longe de se constituírem numa uniformidade, são multidimensionais, plurais e complexos – a preocupação central da reflexão aqui proposta.
A discussão empreendida mostra-se de fundamental importância nos tempos em que vivemos,
nos quais há uma série de contendas políticas sobre as questões de gênero e sexualidade nas escolas,
notadamente com o advento daquilo que os conservadores denominam de “ideologia de gênero”. Para
esses setores, conforme Junqueira (2018), o campo de estudos de gênero, que se consagrou desde os
anos 1980, constitui-se em um ataque à família (na verdade, a um padrão familiar), por propor a desconstrução de princípios biológicos e teológicos que eram naturalizados até então. Assim, o sintagma
“ideologia de gênero” é, na verdade, uma disputa narrativa que deseja manter a escola e seus agentes
como reprodutores das normas hegemônicas, na tentativa de calar os setores progressistas e barrar as
relativas conquistas dos direitos adquiridos por mulheres e LGBTs, por exemplo. Configura-se, portanto, como mais um entrave construído para dificultar o avanço dos corpos e das subjetividades tidos
por desviados na escola – e no mundo.
Escola, a construção do discurso sobre a sexualidade e a produção de corpos e
subjetividades
Foucault (1988), em contraposição ao que denomina de “hipótese repressiva” – ideia que afirma
a interdição, censura e negação do sexo no século XIX – entende que a história do sexo não se reduz
à repressão, engendrando, assim, instâncias de produção discursiva. O sexo, desde então, foi sendo colocado num mecanismo de crescente incitação discursiva: “´[...] constituiu-se uma aparelhagem para
produzir discursos sobre o sexo, cada vez mais discursos, suscetíveis de funcionar e de serem efeitos de
sua própria economia” (Foucault, 1988:26).
Segundo esse autor, as instituições escolares foram largamente utilizadas na inserção do sexo
num sistema de utilidade. Esses estabelecimentos, já a partir do século XVIII, produzem e transmitem
às crianças um conteúdo limitado e canônico ou, nas palavras de Foucault, uma verdadeira “ortopedia
discursiva”, regulando-a pela produção de tratados e não pela sua proibição, instalando uma polícia do
sexo e exigindo procedimentos de gestão, que tenderiam a fabricar corpos e subjetividades “saudáveis”.
Em consonância com Foucault (1988), penso a escola como locus de governamentalidade do
Estado moderno, com vistas à produção de corpos e subjetividades. É nesse espaço que se produz – ou
se tenta produzir – a cisgeneridade e a heterossexualidade desejáveis, ensinando em tudo, nos detalhes
mais triviais do cotidiano, o modelo dominante, bem como introjetar nos jovens estudantes os padrões
de feminilidade e masculinidade hegemônicos, como pude observar diversas vezes em campo, apontando e reiterando o “jeito certo” de ser homem e mulher.
Em uma dessas incursões, numa escola a que tive acesso por conhecer um dos professores, que
facilitou minha inserção, observei – por não poucas ocasiões – como a instituição e seus agentes funcionam como canais pelos quais o poder atinge as mais individuais das condutas, penetrando nos corpos juvenis de forma quase imperceptível. Eu acabara de chegar à escola e estava soando a música que
toca às sete horas da manhã, sinalizando o início das aulas. Nesse momento, os alunos se dirigiam para
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71
suas salas, alguns conversando nos corredores, outros arrumando seus cabelos e maquiagens com um
pequeno espelho, enquanto alguns ainda estavam sentados nos bancos do pátio. Ao passar por perto
destes últimos, cumprimentando-os, vejo um professor se dirigir a um dos garotos sentados, exortando-o a sentar-se “direito, como homem”, ao mesmo tempo em que com suas mãos descruzava as pernas
do jovem, encaminhando-o para sua sala.
Antes de prosseguir, gostaria de fazer mais um relato significativo da produção do gênero e da
sexualidade pela escola, enquanto aliada da família num “projeto normalizador” do menino e da menina, como sugere Seffner (2011). Numa das idas a campo, estava de olho no diálogo travado entre um
funcionário da secretaria e uma mãe que indagava sua “estranheza” em ver algumas meninas praticando
“queda de braço”, sugerindo que seria “coisa de homem” 3. Logo em seguida, argumentando que aquela
era uma “prática perigosa”, o funcionário logo interrompe a diversão das meninas.
Cenas dessa natureza se repetiram ao longo do período de campo e muitas outras, não observadas, mas narradas – por vezes com tom de sofrimento, outras de deboche – pelos estudantes chegaram
a meu conhecimento. Em outra escola, conheci uma jovem lésbica, cursando o último ano do Ensino
Médio, que afirmou que desde os quinze anos de idade tinha optado por usar o cabelo curto – “igual de
homem”, conforme suas próprias palavras – e isso lhe conferiu graves constrangimentos durante as aulas.
Em um destes, a garota me conta, por exemplo, que era constantemente indagada pelos professores e demais funcionários sobre a opção de corte de cabelo que fizera. Certa vez, durante a aula, em um
tom que oscilava entre zombaria e desrespeito, um docente confundiu-a com um rapaz, chamando-a
por nome masculino, o que foi suficiente para todos os colegas rirem da garota que, sem reação, calou-se e “deixou por isso mesmo”, de acordo com seu relato.
Outra forma da regulação – e produção específica – da sexualidade por meio da ação discursiva
aparece na conversa com Leonardo4, jovem de 17 anos que cursava o último ano do Ensino Médio. O
rapaz, assumidamente gay, afirma que uma professora de Biologia, certa vez, ao falar sobre reprodução, utilizou uma retórica eminentemente religiosa para se referir à existência de homens e mulheres
conforme a “vontade divina”. Assim, para a docente, aqueles que trazem um pênis como genitália são
homens e devem, portanto, de forma natural, se sentirem atraídos afetivo-sexualmente por mulheres,
que, por sua vez, são aquelas que portam uma vagina desde o nascimento e, consequentemente, sentem-se atraídas por homens.
Segundo Leonardo, para a tal educadora, não haveria outra possibilidade de existir no mundo
fora desses padrões instituídos e aqueles que tentam desviar-se dessa norma estariam destinados a ficar
fora do “Reino de Deus”, discurso que certamente reverbera na conduta e subjetividades dos jovens,
uma vez que escutam esse posicionamento de uma professora, a qual teria, em tese, autoridade para discutir o assunto. Assim, observamos como a escola impõe uma verdadeira “ortopedia discursiva” do sexo
(Foucault, 1988), isto é, estabelece e fixa um “certo discurso razoável, limitado, canônico e verdadeiro
sobre o sexo” (ibid.:31), que impacta os sujeitos que partilham desse espaço.
3 Atividade esportiva/recreativa em que dois contendores, com um dos cotovelos apoiados sobre superfície horizontal, enlaçam as mãos
ou os punhos e, cada um, aplicando força muscular, tenta fazer o adversário derrubar o braço.
4 Os nomes aqui utilizados são fictícios.
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Por conseguinte, o trabalho de campo e as conversas com os jovens, professores e gestores me
mostraram aquilo que denominei inicialmente como “aparente paradoxo”. Se, por um lado, é formalmente assumido que a instituição escolar é um “lugar neutro” em relação à sexualidade, que não fala
ou incita questões relacionadas ao tema e, sobretudo, que não há nenhum tipo de discriminação e preconceito em relação àqueles que não seguem a norma heterossexual – discurso sustentado, sobretudo,
pelos membros dos núcleos gestores das escolas –, o campo e as vivências decorrentes deste apontavam
o tempo inteiro para a instituição como locus do regulamento e da produção de uma dada sexualidade
– inclusive, infligindo sobre os corpos desviados uma punição, ora mais velada, ora mais explícita5.
Contudo, desejo afirmar que essa não é uma contradição em si. Advogo que o discurso de respeito à diversidade e a neutralidade com que os agentes escolares afirmam tratar todos é a própria
condição para as violências engendradas contra os corpos LGBT na escola – sem ele, não seria possível
mascarar a diferença e usá-la para criar as desigualdades existentes nesses espaços. É pela e com a suposta igualdade que se fabrica a desigualdade.
Dessa forma, se os relatos verbais das autoridades escolares apontavam para uma ausência de diferenciação entre os jovens, de acordo com sua sexualidade e/ou identidade de gênero, não era isso que
encontrava nas minhas observações, tampouco era a forma com que os próprios estudantes viam esses
espaços. O que observava era o uso das mais corriqueiras práticas para modelar aqueles estudantes que
desviavam dos padrões hegemônicos da cisgeneridade e da heterossexualidade. E isso era percebido e
trazido à baila pelos próprios jovens.
Os relatos dão conta de uma perceptível diferença, por exemplo, de como se sentem antes e depois do “assumir-se” fora da norma e, quando isso acontece, percebe-se uma tentativa de trazê-los de
volta para o espectro da “normalidade”. Em consonância com Foucault (1988:27), “olhando para os
regulamentos de disciplina e toda a organização interior lá se trata continuamente de sexo”. Trata-se de
uma produção contínua de uma sexualidade e/ou gênero em conformidade com as convenções culturais da sociedade moderno-ocidental.
A construção e a classificação do sexo são realizadas continuamente, da entrada à saída, no intervalo e no horário de aulas e até mesmo nos atos e nas formas de comunicação mais triviais. Nesse
sentido, é significativo o fato de, certa vez, na secretaria de uma das escolas, ter escutado de uma funcionária que não poderia fornecer para um aluno folhas de papel de cor rosa – solicitadas pela professora
de Artes –, pois isso “induziria” o jovem a desviar-se do caminho da heterossexualidade, o que, para esta
mesma funcionária, já estava ocorrendo, porque o rapaz utilizava brincos nas orelhas.
Também nessa escola, pude presenciar outro momento emblemático e revelador. Durante o intervalo, alguns alunos e alunas praticavam esportes nas duas quadras disponíveis e em outros pequenos
espaços improvisados. As bolas ficam guardadas na direção, que as distribui quando solicitadas pelos
estudantes. Entretanto, às meninas não são disponibilizadas as bolas de futebol, apenas as de vôlei ou
de handebol, estas interditadas para os garotos, numa clara demonstração de generificação das ativi5 Entendo que o discurso progressista sobre a paridade de tratamento dos sujeitos escolares está imerso no contexto de proliferação de
um debate sobre democracia, gênero e sexualidade, que emerge, sobremaneira, a partir de 1995, com a IV Conferência Mundial sobre a
Mulher, na China, onde se projeta uma agenda política de luta pela igualdade de gênero, confrontando os interesses de setores conservadores (Miskolci e Campana, 2017).
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dades que têm lugar nessas instituições. Na prática, algumas meninas – poucas – jogam futebol com
os meninos e os meninos jogam vôlei e/ou handebol com as meninas, mas a ordem é só distribuir as
bolas de acordo com o sexo daquele ou daquela que irá buscar na direção, colaborando para pensarmos
quanto o espaço social escolar, as práticas e dinâmicas engendradas nele são generificadas. Podemos
observar, dessa forma, em consonância com Vianna e Lowenkron (2017), que os processos de Estado,
operados através de seus agentes de autoridade – funcionários das escolas – articulam relações e violências de gênero.
O universo educacional, assim, constitui-se como “panóptico dos gêneros” (Bento, 2006),
construindo corpos e subjetividades pautados em ajustamentos contínuos e afirmações, fazendo
com que crianças e jovens interiorizem os enunciados performativos e uma estilística que os deveria
levar a uma cisgeneridade e heterossexualidade, que nada têm de natural, segundo Bento (2006) e
Louro (2000, 2014).
De acordo com Bento (2006:88), “a heterossexualidade não surge espontaneamente em cada
corpo recém-nascido, inscreve-se reiteradamente por meio de operações constantes de repetição e de
recitação dos códigos socialmente investidos como naturais”, processo no qual a escola demonstra importância salutar, em momentos como os mencionados, oriundos da pesquisa de campo. Rich (2010),
ao analisar o que denomina de “heterossexualidade compulsória”, também compreende que o desejo
nesses moldes, longe de ser natural, é criado pela ordem social na qual estamos inseridos, sendo reproduzido como imanente a todos os sujeitos, o que acaba por gerar naqueles que não o possuem um
sentimento de desajuste.
As crianças e jovens “desajeitados”, aqueles em não conformidade com aquilo que Rubin (1986)
chama de “sistema sexo-gênero” – suposta equivalência natural entre sexo e gênero – sofrem os terríveis
efeitos das mais diversas violências no espaço escolar. O tratamento discriminatório, seja dos próprios
colegas ou professores, é elemento basilar nos discursos desses estudantes. Não era incomum, durante
o trabalho de campo nas escolas, ao passar nos corredores, que ouvisse palavras como “viado” e “mulherzinha” dirigidas àqueles meninos que não performavam uma masculinidade esperada ou “sapatão”
e “macho-fêmea” para aquelas meninas que fugiam dos padrões de feminilidade instituídos. O próprio
pesquisador, que durante esse período compunha o cenário escolar, não escapava de ser alvo do mesmo
escárnio, o qual atinge também professores que não sustentam uma estilística esperada.
Devo salientar que, quanto mais esses jovens borram as fronteiras do gênero, mais se exerce sobre
eles uma pedagogia da desmoralização, acentuando-se situações degradantes, através de insinuações,
piadas, apelidos e, algumas vezes, agressões físicas. Pesquisa realizada pelo Instituto de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP) corrobora as dificuldades enfrentadas pelos discentes LGBT, ao apontar
que 87% daqueles que integram a comunidade escolar no país possuem preconceito relacionado à
orientação sexual (Brasil, 2009). Segundo Oliveira (2017), os espaços escolares estão, a todo momento,
reafirmando a superioridade cisgênero e heterossexual, lançando para as margens aqueles desviantes
das normas hegemônicas, impondo obstáculos quase intransponíveis a estes, enquanto os normatizados desfrutam dos privilégios que o modelo dominante lhes traz.
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Inspirada em Foucault, Louro (2000) coloca que a formação do alunado, nos seus mais diversos
aspectos – currículo, normas, linguagens, materiais didáticos e processos avaliativos – informam que
tipo de corpo e sexualidade pretende se construir nos espaços de ensino, portanto. Assim, como demonstramos, através de múltiplos e discretos mecanismos – ora mais velados, ora mais explícitos – a
escola produz, distingue e classifica corpos e mentes. As formas idealizadas dos gêneros – aprendidas
nela e em outras instituições – produzem efeitos na vida de crianças e jovens, pois constroem exclusões,
bem como a ausência de legitimidade de maneiras outras de viver e estar no mundo.
Nesse sentido, tenta-se aprisionar o corpo por interdições e obrigações, com vistas a performar
uma masculinidade/feminilidade aprendida desde a mais tenra infância e exigida nos mais diversos
espaços experimentados. E as crianças e jovens estudantes que estão fora desses padrões? Como vivem
e experimentam o espaço escolar fora das idealizações do gênero? Como seus corpos se expressam em
dissonância de uma performatividade esperada? Como lidam com um corpo que “denuncia” reiteradamente sua homossexualidade e/ou ausência de masculinidade?
Meninos afeminados, (a ausência da) produção da masculinidade e experiências
de uma travesti na escola
Guilherme é um jovem de 16 anos, estudante de uma das escolas investigadas. Conheci o garoto
durante um ensaio de um espetáculo de que ele participava, junto com cerca de cinco meninas. Guilherme ensaiava no pátio da escola uma peça teatral para avaliação de uma disciplina e, no momento
em que o vi, estava dançando uma música conhecida entre os grupos LGBT dos anos 1990/2000. Chamou minha atenção pelo talento com que encenava a coreografia e decidi me aproximar assim que possível. No dia seguinte pude conversar com o estudante no intervalo, inicialmente sobre a música que o
vi dançando no dia anterior. Dessa forma, Guilherme falou de seu gosto pela dança e demonstrou ser
um exímio conhecedor de músicas de estilo pop, revelando também possuir um grupo de dança no seu
bairro e sempre se envolver com tais atividades na escola. Contudo, nem sempre havia sido dessa forma.
A dança sempre foi seu encanto, conforme relata. Mas as dificuldades, inicialmente, se mostraram enormes, por inúmeros motivos. Na escola, por exemplo, tinha vergonha de assumir que apreciava dançar, já que esta é uma prática socialmente considerada feminina e por saber, assim, que seus
amigos zombariam ao saber do seu gosto. Como as atividades escolares são atravessadas pelo gênero,
reproduzindo o mundo social que toma o corpo como “realidade sexuada” e signatário de uma “divisão sexualizante” (Bourdieu, 2002), cabia ao garoto se interessar pelo futebol que, naquele contexto,
ocupa o lugar de prototípica instituição masculina, tal qual o boxe na realidade do gueto estudada por
Wacquant (2000).
Guilherme chegou a relatar que o gosto por atividades artísticas vinha desde cedo, mas a família – assim como a escola – o impeliu a adentrar num universo tido como masculino. A própria mãe,
ao ver certa vez o filho dançando e “rebolando como uma menina”, conforme Guilherme afirma, deu
uma surra no garoto, com cerca de dez anos de idade na época, buscando corrigir a postura indesejada.
Episódio similar relatado pelo jovem foi outra surra que sua mãe lhe deu, ao lhe surpreender brincando
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com as bonecas de sua irmã, quando tinha aproximadamente cinco anos, mostrando que a violência
ainda se apresenta como solução para possível “correção” da criança quando esta deseja usar brinquedos – ou roupas, por exemplo – que não se adequam ao seu gênero (Bento, 2014). Ainda hoje, o jovem
afirma ter uma relação fundamentada no conflito com a mãe que, sempre que pode, xinga-o e o bate.
A figura materna para Guilherme é compreendida pelo viés do medo e do rancor, o que nos faz
repensar, com Badinter (2011), a concepção naturalizada e romantizada da mãe nas sociedades ocidentais modernas, em que esta seria símbolo do cuidado e do afeto. A família, representada sobretudo pela
mãe, delineia-se como estrutura de poder que buscava, sempre que possível, moldar o jovem dentro
de parâmetros estabelecidos da masculinidade, pois um filho gay – principalmente com comportamentos tidos como femininos – era o medo nesse espaço, de onde chegou a partir uma tentativa de
expulsá-lo de casa quando surgiram rumores de que mantinha relações sexuais com um dos vizinhos.
Hoje, Guilherme afirma que não tem uma família que o apoie e o ame, mas que apenas o cobra e o
agride, o que aponta para o fato de a homossexualidade equivaler, muitas vezes, à exclusão do modelo familiar (Grossi, 2003).
Na escola, também desde cedo, Guilherme aprendeu que não poderia adotar determinadas condutas, mas deveria aprender um repertório estilístico que era tradicionalmente masculino. Afirma que
sempre se sentiu deslocado entre os meninos, por não compartilhar de um habitus similar, e isto lhe
causou uma série de momentos de sofrimento. Xingamentos como “viadinho”, “bichinha”, “mulherzinha” fazem parte de suas memórias escolares desde os primeiros anos, o que o fez, durante certo tempo,
tentar modificar a si mesmo e a seus gestos corporais, pois, como coloca Connell (1995), masculinidades são corporificadas.
Dessa maneira, as masculinidades são vivenciadas e performadas “em parte, como [...] posturas,
habilidades físicas, formas de nos movimentar” (Connell, 1995:189). Cansado de sempre ser alvo de
deboche ao passar nos corredores da escola, Guilherme relata que chegou ao ponto de pagar a alguns
meninos da rua onde morava para lhe “ensinarem a andar como homem” e a jogar futebol, empreendimentos sem êxito, conforme o jovem. Observa-se, assim, como a tentativa de adequação à norma é um
tempo de sofrimento, marcado por dificuldades e crises pessoais. Dessa forma, a virilidade, “construída
diante de outros homens, para outros homens e contra a feminilidade” (Bourdieu, 2002:67), é imposta a todos os meninos desde muito cedo, segregando aqueles que não se enquadrarem nestes moldes
daqueles que se adaptaram a eles. Os homens, assim, precisam ininterruptamente reafirmar sua força,
honra, virilidade e capacidade, reproduzindo esquemas mentais constituídos historicamente.
Isso faz com que, conforme Bourdieu (2002), sejam também vítimas da “dominação masculina”,
ideia que rendeu a esse autor fortes críticas feministas, ao entender não unicamente como dominação
aquela de um sexo sobre outro, já que tanto homens como mulheres aparecem inseridos na mesma
ordem simbólica6. Dessa forma, os próprios homens têm seus percursos marcados pela tensão de sustentar o padrão de masculinidade exigido pela ordem social. Connell (1995) também acredita que os
6 Machado (2014), por exemplo, critica Bourdieu ao afirmar que, embora compartilhem os mesmos códigos culturais, homens e mulheres percebem tal dominação de maneiras distintas, uma vez que suas posições relacionais na ordem social diferem.
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homens pagam o preço da manutenção de uma ordem de gênero não igualitária, que atinge mulheres,
mas também homens com performance “afeminada”.
Para Berenice Bento (2014), ao refletir sobre o transfeminicídio no Brasil – país que mais mata
travestis e transexuais no mundo – a desvalorização do feminino é potencializada quando sua estilística
é encarnada por corpos que nasceram com pênis. No imaginário social, há o entendimento cartesiano
de que os cromossomos e hormônios, naturalmente, irão fabricar comportamentos e performances de
acordo com cada sexo. Dos homens, portanto, espera-se determinada atuação social em consonância
com o pregado pela consciência coletiva e que, assim, aja enquanto “homem, macho e viril”, expulsando
de suas expressões toda e qualquer marca do feminino.
Com o decorrer do tempo, Guilherme deixou de buscar modificar a si próprio e a “não ligar para
o que os outros dizem”, como me informou. Na atualidade, disse comportar-se como queria: dançando
em casa – não sem represálias – e na escola; utilizando, vez por outra, uma leve maquiagem (o que lhe
rendia puxões de orelha repetidamente); mostrando orgulhoso um caderno de cor predominantemente rosa, o que sempre quis, mas com cujos custos – simbólicos – de portar tal objeto só há pouco tempo tinha se disposto a arcar. Nos primeiros dias em que resolveu afirmar na escola o comportamento
desejado e não o que lhe era imposto, Guilherme ainda passou por muitos momentos de sofrimento e
humilhação entre os colegas, que lhe proferiam vários insultos. Porém, segundo o estudante, “o pessoal
se acostumou e hoje é menos essas coisas”.
Segundo Eribon (2008), a eficácia das injúrias dirigidas aos gays está no seu poder de sujeição.
Através da linguagem, os indivíduos adentram numa relação hierárquica que atribui ao sujeitado –
aquele que recebe o insulto – um lugar subalterno. A partir do momento em que Guilherme, ao receber xingamentos e insultos por sua homossexualidade, não se sujeita ao lugar desvalorizado que querem
lhe atribuir ao lhe chamar de “viadinho”, a tentativa de ofensa não se efetua e o jovem consegue sustentar sua existência, mesmo em um meio pouco afeito a recebê-lo.
O itinerário de Guilherme aponta para uma relação atual menos conflituosa com a escola, principalmente com os colegas. É a possibilidade, nos seus termos, do encontro com as “bichas” amigas,
uma fonte de diversão e também de “fechação”. Neste último caso, quando de algum problema por
conta da sua forma afeminada de se comportar, as amigas “entram em ação”, pois são “todas por todas”.
Acrescentou que uma coisa boa da escola é poder adotar esse comportamento mais afeminado, interditado para alguns sujeitos fora dos muros escolares. Todavia, conta que algumas mais “quietinhas”
preferem não entrar em contendas na escola e “deixam para serem bichas só lá fora”. Dessa maneira,
aponta como “ser bicha” na escola, de qualquer modo, se caracteriza como problema e é algo malvisto,
pois essas mais “quietinhas”, que se enquadram numa postura mais masculina, construiriam melhores
relações naquele espaço. São, assim, estratégias diferentes na apropriação do cotidiano educacional.
Os meninos que não se adequam aos padrões estabelecidos da masculinidade, logo, experimentam a escola como lugar de horror – embora, como vimos no caso de Guilherme, possa haver resistência diante dos atos de inferiorização. As piadas, os insultos e as agressões físicas fazem parte do cotidiano daqueles que se desvirtuam do paradigma convencional: o homem como ser viril, forte, inserido no
mundo público e distante da dimensão afetiva.
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Ao defender uma recomposição dos elementos de gênero, Connell (1995) busca uma nova política que liberte os homens – e também as mulheres – do pensamento dominante estruturado historicamente, que estabelece uma rígida distinção entre os sexos. Com efeito, defende que é necessário
“tornar toda a gama do simbolismo e da prática do gênero disponível para todas as pessoas [...] e encorajar garotos e garotas a expandirem suas opções de ação e se movimentar nas diferentes posições
de gênero” (Connell, 1995:200). Dessa forma, uma efetiva política do gênero, tal qual defendida pelo
autor, faria com que esses garotos não adotantes de uma masculinidade esperada produzissem novos
estilos de pensamento e comportamento, que oferecessem experiências plurais e, desse modo, também
respeitadas e valorizadas.
Outra história marcada por rupturas e sofrimentos é a de Rebeca, jovem de 18 anos, aluna do
primeiro ano do Ensino Médio de uma das escolas investigadas, que se identifica como travesti. Conheci Rebeca também nos corredores, no horário de intervalo. Sempre simpática, dispôs-se a dialogar
comigo durante alguns dias, quando possível. Em certas ocasiões, durante o intervalo, explicava-me
que não poderia conversar, pois iria jogar vôlei com amigas na quadra da escola. Afirmou que desejava
“explorar” tudo que a instituição escolar tinha para oferecer: as amizades, os jogos, as paqueras, os
aprendizados, dentre outros, já que nem sempre foi assim e um dia foi levada a abandonar a sala de aula.
No seu discurso, era forte o tom acusatório usado para definir a escola, pois essa instituição havia lhe
“roubado” momentos e vivências importantes.
A existência de Rebeca no universo educacional é um daqueles casos que chacoalham a coerência compulsória construída no pensamento ocidental, que atribui suposta congruência entre macho/
pênis/homem/masculino e fêmea/vagina/mulher/feminino. Rebeca construía performativamente sua
identidade de gênero, repetindo atos, gestos e signos que, na inscrição cultural nossa, estão no campo
do feminino. Seus cabelos longos, rosto sempre maquiado, suas roupas justas e curtas configuravam
atos intencionais que produziam significados, como pontua Butler (2003).
Recordando de suas primeiras memórias escolares, Rebeca relatou momentos em que era agredida – física e verbalmente – e, naquele período, sequer conseguia elaborar uma razão para aquilo que
acontecia. Com o passar dos anos, percebeu que o fato de ser uma criança com uma existência considerada ininteligível constituía a causa de tudo que sofria na escola – e em outros espaços. As brincadeiras
com as meninas, o gosto por bonecas, o desprezo pelo futebol e pelas brincadeiras consideradas masculinas lhe renderam a vivência de um “inferno na escola”, conforme suas próprias palavras.
Ao debruçar seu olhar analítico sobre a vida política contemporânea, Butler (2015:17) afirma
que o status de sujeito não é dado a priori a todos os indivíduos, já que “há ‘sujeitos’ que não são reconhecíveis como sujeitos e há ‘vidas’ que dificilmente – ou melhor dizendo, nunca – são reconhecidas
como vidas”. A autora entende que, no mundo social, há normas que operam a distinção dos indivíduos, reconhecendo como sujeitos aqueles que se enquadram nas prescrições e excluindo radicalmente
os que estão fora das fronteiras normativas. Dessa maneira, a existência que não sustenta uma continuidade e coerência – construídas socialmente – entre corpo, gênero e desejo constitui-se como “algo que
está vivo, mas que é diferente de uma vida” (ibid.:33).
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Assim, Rebeca, não só na escola, mas também em outros espaços sociais, não é tomada como “sujeito”, uma vez que sua forma de existir a faz ficar fora dos muros do reconhecimento enquanto “vida”.
A vida da travesti não é uma vida que importa, passível de luto, antes, ao contrário, é a existência que
pode – e deve – ser extirpada, como observamos cotidianamente por todo o Brasil, onde dia a dia multiplicam-se casos de assassinatos contra essas sujeitas, como observa Bento (2014). Butler (2015:20)
finaliza levantando questionamentos de como podemos, em vez de enquadrarmos os indivíduos nas
normas existentes, mudar os parâmetros que produzem o reconhecimento de sujeitos e vidas que importam ou “em outras palavras, o que poderia ser feito para mudar os próprios termos da condição de
ser reconhecido a fim de produzir resultados mais radicalmente democráticos?”.
Contou que certa vez, quando tinha cerca de 12 anos de idade, foi espancada, dentro da escola,
no intervalo, por garotos mais velhos, ao ser vista portando um estojo de maquiagem. Sobre o acontecido, disse não ter informado à gestão, pois saberia que se o fizesse, além da surra que havia tomado,
iria levar uma bronca, pois maquiagem não deveria ser utilizada por alguém do seu sexo. Introjetou o
sentimento de culpa. Acrescentou que, não poucas vezes, recorreu aos professores e funcionários da
instituição de ensino pelas violências sofridas e nunca obteve assistência necessária, mas sim uma nova
forma de violência, ao ver balizados e justificados os atos cometidos contra ela, sendo culpabilizada
pelo que lhe acontecia. O que nos mostra que a homofobia e suas variantes na escola, além de consentida, é estimulada – inclusive pelos próprios educadores – como recurso pedagógico na correção das
condutas e na fabricação de uma sexualidade “saudável” ( Junqueira, 2009).
Entendendo a escola como uma instituição, portanto, locus de atuação do poder público, através
dos agentes que neste espaço personificam seu poder, compartilho com Butler (2015) a ideia de que
os casos contemporâneos de violência, em grande parte, estão intrinsecamente relacionados com o
Estado. Assim, a escola, enquanto campo estatal que deveria oferecer proteção aos indivíduos– uma
representação muito forte no imaginário social – acaba por se tornar algo de que estes devem se proteger, uma vez que se apresenta como lugar da violência, negação e invisibilidade para jovens como
os LGBT. Uma das experiências mais dolorosas relatadas por Rebeca disse respeito à postura de uma
professora que, ao lhe ver maquiada e de cabelos pintados, afirmou que a estudante se assemelhava a um
monstro, a um ser indefinido, que não sabia em que campo do gênero poderia classificá-la, denotando
como a homossexualidade e outras existências subalternas são colocadas no âmbito da monstruosidade (Foucault, 2002).
Diante de todos os horrores experimentados no espaço escolar, Rebeca apresentava um baixo
rendimento. O fato de ter saído da casa dos pais e ido morar na residência de uma senhora para quem
trabalhava, longe do colégio, agravou sua situação. Afirma que, nessa época, tinha verdadeiro pavor de
ir para a escola, entendida como sinônimo de sofrimento, faltando às aulas sempre que possível. Com
isso, reprovou o oitavo ano, o que representou o estopim para abandonar os estudos por três anos. Em
sua fala, sustentou, portanto, a evidente relação entre a discriminação no ambiente educacional e o
baixo rendimento obtido. Afinal, como conseguir aprender em um lugar que violenta sua existência?
Em emocionante relato, indagou-se como alguém pode ter boas notas e gosto pela escola se esta não lhe
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recebe, não lhe acolhe e não se mostra interessada no seu bem-estar, sinalizando para a dificuldade das
instituições de ensino em dialogar com a diversidade de sujeitos que tomam assento nos seus bancos.
Ainda sobre o processo de aprendizagem, é importante pensarmos na intrínseca relação que
este possui com a cultura. Lave (2015) chama atenção para pensarmos a aprendizagem atrelada ao
contexto tecido pela cultura, no interior do qual as duas se fazem reciprocamente. A autora acredita ser
necessário acionarmos arranjos, movimentos e relações, experimentadas nos diversos ambientes onde
os sujeitos se constroem culturalmente, e entender como esses fluxos vividos incidem nos processos de
aprendizagem, seja na escola ou em outros espaços. O que quero dizer com isso é que a compreensão
de como a aprendizagem ocorre está ligada aos processos culturais mais amplos de uma sociedade, o
que nos leva a concluir que os estudantes LGBT podem ter seus itinerários educativos dificultados pela
estrutura social de exclusão dos seus corpos e existências, tanto na escola como em outros ambientes.
Após ser reprovada e depois de experimentar tantas experiências humilhantes na escola, Rebeca
abandonou durante três anos a sala de aula. Ao ser perguntada acerca do motivo que lhe fez voltar, foi
enfática ao responder que o grupo de “bichas” conhecidas da rua onde morava na época configurava-se
como grande incentivador para seu retorno. Sua performance tida como feminina não lhe constrangia,
nem lhe amedrontava mais como antigamente. É o que observei ao vê-la percorrendo, com muita segurança e intimidade, os espaços da escola. “Uma verdadeira mulher e se vier pra cima, vai ser choque de
monstro, querida!” foi o que me respondeu ao ser questionada como se sentia usufruindo da instituição
escolar naquele momento.
Não posso afirmar que Rebeca não sofria mais insultos e outras formas de preconceito, mas
claro estava para a estudante que tais tipos de agressão não podiam/deviam lhe resultar em sujeição.
“Eu existo e sou assim, não vou mudar por nada e por ninguém”, afirmou Rebeca, ao refletir sobre as
inúmeras vezes em que tentou enquadrar-se nas normas de gênero. “Se aqui é o inferno, eu sou a principal demônia” configura uma fala dela que explicita seu poder de resistência e seu empoderamento
frente a possíveis ameaças e tratamentos discriminatórios. Assim, como nos mostra Rodovalho (2017),
a violência que atinge os indivíduos que afrontam e provocam fissuras no ordenamento constituído do
gênero não desencadeará uma volta para o armário. Continuarão, portanto, existindo e resistindo, a
despeito de todas as múltiplas tentativas de aniquilamento dessas populações.
As “bichas” que Rebeca conhecia na rua onde morava, como já pontuei, foram as grandes incentivadoras da volta da estudante à sala de aula. A rede de sociabilidade que construíram dentro da escola
oferece as principais forças que Rebeca afirma ter para permanecer na instituição, corroborando com
o posicionamento de Cornejo (2015) ao afirmar que a “amizade queer” 7 é um importante sustentáculo
para se agarrar à vida e não sucumbir definitivamente. Por isso, afirmo, mais uma vez, que a escola não
pode ser tomada exclusivamente como locus de sofrimento para as juventudes LGBT, posto que as
experimentações desse espaço por esses sujeitos são múltiplas. O caso de Rebeca é revelador disso. Ao
dizer que quer aproveitar tudo o que a instituição de ensino pode lhe dar, a jovem exemplifica:
7 O termo queer possui origem anglófona e, se traduzido literalmente para o português, significa “estranho”, “excêntrico”. O vocábulo é
usado para designar indivíduos que se encontram fora dos padrões cis-heteronormativos.
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Eu acho que a escola me roubou muita coisa [...], mas hoje eu quero aproveitar ela, doa a quem
doer e dói em muita gente [risos]. Minhas amigas é [sic] tudo pra mim, sabe, ter essas amizades,
essas relações que eu não tinha quando era mais novinha, sabe, de ir pra casa uma da outra fazer
os trabalhos, estudar, falar dos boys [garotos], né [risos]. Isso é uma coisa que me segura na escola.
Tem coisa ruim? Tem, mas tem muita coisa boa que eu não vou abrir mão. Tem muito agora esse
negócio de resistir, né? Então, eu aprendi a resistir a essas coisas ruins e aproveito tudo que a escola
pode me dar [...], já foi um lugar muito ruim, de muita coisa, memória ruim, mas hoje eu tô aqui e
vou ficar e aproveitar. Não dizem que todo mundo tem direito à educação?
Segundo a jovem, as “bichas” com quem possui vínculos de amizade representam força e proteção. Com elas se sente acolhida e parte de um coletivo, com quem pode falar dos seus desejos, anseios
e com quem compartilha experiências similares. Interessante perceber que a janela temporal durante a
qual Rebeca se manteve longe da escola possibilitou algumas modificações significativas nesse espaço,
conforme relata. Relembra, por exemplo, que era a única “bicha” antes; atualmente, já “brotou um monte”. A maior presença desses corpos desviados possibilita mais segurança de sustentar sua identidade.
Seus relatos dão conta da importância da existência de pessoas como ela habitando a escola.
Olhar para os lados e enxergar existências semelhantes à sua, com quem pode contar, com quem pode
fazer grupos para realizar as atividades, com quem pode partilhar os materiais, os estudos em casa e até
mesmo as “colas”8 nas avaliações, conforme confessou. Além disso, essa rede de sociabilidade das “bichas” e a maior presença delas nesse ambiente, com um pouco mais de abertura e tolerância, são atribuídas por Rebeca a posturas mais inclusivas de alguns professores. A estudante explica que existem alguns
educadores que “compram a briga” por elas e que, gradativamente, através de aulas, palestras e outras
iniciativas, vêm promovendo mudanças, tanto nos estudantes, como nos demais funcionários da escola.
Andrade (2012), rememorando seu passado, também coloca como central a experiência da amizade com outros(as) desviados(as). Apesar de todas as formas de violências elaboradas contra os indivíduos estigmatizados, por borrarem as normas hegemônicas da sexualidade, seus corpos e experiências
nos contextos escolares, por si só, já se configuram como fissuras de uma ordem fundamentada na
cisgeneridade e na heterossexualidade, desenhando, através das microrresistências cotidianas, novas
formas de existir e experimentar esses espaços.
Se, por um lado, podemos afirmar que a escola produz abjeção e desigualdades através das diferenças, devemos também compreender que, em meio à segregação e exclusão, várias experiências e
existências tentam subverter a ordem oficial, de múltiplas formas. Isso inclui desde o enfrentamento
direto a uma “resistência muda”, como estratégia (Certeau, 1994) de permanência na instituição de ensino, pois esta é a garantia de aberturas e transformações a curto e longo prazo. Assim, emaranhados em
teias de relações de poder assimétricas, os jovens LGBT buscam manter sua “agência” (Ortner, 2007b),
criando resistências e fissuras nos arranjos culturais onde estão inseridos.
8 Nesse contexto, a palavra é usada para definir o ato de compartilhar as respostas de uma avaliação individual, geralmente escritas em
pequenos pedaços de papel, com um colega de classe.
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Reinvenções e resistências: aproveitando o espaço da escola
Para Ortner (2007b), não podemos pensar o poder de forma monolítica, pois este apresenta
uma dupla face: de dominação – exercido de cima para baixo – e de resistência – exercido de baixo para
cima. Se a dinâmica e a condução da escola buscam invisibilizar, negar e até mesmo expulsar a existência
LGBT do seu meio, também observamos o movimento contrário, a resistência que se exerce quando
esses estudantes se mantêm nesses espaços e, sobretudo, enfrentam e subvertem a ordem estabelecida.
Dessa forma, por um lado, é verdade que podemos tomar a escola como lugar, por excelência,
de sofrimento para as juventudes LGBT, de outro, sua presença nesse ambiente também promove brechas. É no consumo cotidiano da instituição que ressignificam vivências, transformam sua realidade e
penso que, ainda mais, daqueles e daquelas que virão depois. Criam fissuras por dentro que, embora
pouco percebidas, estão lá operando para revolver as normas hegemônicas do gênero. A própria Rebeca
informou que “quanto mais o tempo passa, eu sinto que vão encarando melhor”, referindo-se à sua percepção na atualidade acerca de uma experiência escolar menos dura, se comparada a anos anteriores.
Os jovens estudantes LGBT se equilibram num jogo entre aceitar e resistir. Possuem uma postura marcada, muitas vezes, pela racionalidade e “pesam” na balança em que situações valerá ou não
a pena transgredir as normas, como observamos em alguns depoimentos. Sabem que precisam estar
na escola e que, portanto, não podem fazer tudo o que desejam, entretanto, isso não significa cega
obediência disciplinar. Rebeca, por exemplo, gostaria de usar o banheiro feminino, o que é proibido
severamente pela direção. Afirmou ser obrigada a respeitar a decisão, pois sabe que, se burlar essa regra,
seria expulsa da escola – embora o documento final da Conferência Nacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Travestis (Brasil, 2008) assevere que a estrutura dos espaços escolares deve ser usufruída em
conformidade com a identidade de gênero dos(as) estudantes.
Contudo, outras normas não são obedecidas, como, por exemplo, o uso do tênis. Segundo Rebeca, só às mulheres é permitido a utilização de outro calçado que não o tênis e a direção já lhe havia
comunicado que não usasse sandálias femininas – o que deixa claro que a instituição não reconhece
sua identidade de gênero. Para entrar na escola, sob o olhar vigilante dos funcionários, ela usa o tênis,
mas, ao chegar à sala de aula, pega na bolsa uma sandália “bem bonita e cheia de frufru”, às vezes,
com salto alto.
A proibição ao namoro costuma ser outra norma via de regra burlada por todos os jovens da
escola, incluindo os LGBT. O discurso oficial das três instituições pesquisadas é que práticas e demonstrações afetivas são rigorosamente proibidas no interior desses espaços. Num dos ambientes de
investigação, era comum que os estudantes LGBT afirmassem que, na verdade, se tinha uma norma
exclusiva para a proibição dos afetos não heterossexuais, já que viam constantemente meninos e meninas trocando carícias no intervalo, geralmente ao redor de uma das quadras esportivas e a direção
fazia “vista grossa” para essa prática, revelando o quanto o discurso oficial da homogeneidade de tratamento (“são todos tratados de igual forma”) não se concretiza no dia a dia (Dayrell, 2007). Enquanto
os normatizados possuíam seus momentos de flerte e namoro tolerados pelos funcionários, os jovens
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assumidamente LGBT, conforme relatam, tinham seus passos constantemente vigiados em horários
livres, como o intervalo e a educação física, quando faziam uso dos banheiros.
Patrícia, estudante de 17 anos, lésbica, afirmou que a direção colocava os professores para acompanhar seus rastros durante o intervalo, pois todos sabiam de seu namoro com outra colega da mesma
escola. “E assim era com muita gente também”, completou a jovem. Patrícia diz que já foi chamada
pela gestão várias vezes para ser informada e advertida que a instituição não permitiria, de maneira
alguma, práticas afetivas no seu espaço. Diante de funcionários e docentes, promete que evitará a conduta referida e afirma saber da importância do cumprimento de todas as medidas da escola. Todavia,
a estudante, embora com receio, busca driblar a regra e contou se encontrar, sempre que possível, com
sua namorada, até mesmo porque, como sua família não permitia o relacionamento, o horário escolar
constituía um dos poucos momentos em que podiam estar juntas. Ela afirma que “dá pra fazer isso e
continuar sendo vista como boa aluna” – a “boa aluna” faz referência à conformidade com as normas
hegemônicas do gênero e da sexualidade:
Tem a escola que proíbe e tem todo mundo fazendo de tudo pra não acontecer, mas dá pra escapar
das regras, sempre dá. Então, quando a gente quer, a gente consegue, dribla todo mundo [risos].
Eu tenho medo porque não quero ser expulsa, Deus me livre e quero continuar sendo bem tratada
pelos professores e tal, porque tipo ser “sapatão” é ser a má aluna, a revoltada, né e tal. Então a gente
tenta sempre se ver discretamente pra ninguém brigar, porque se virem já brigam, fazem o circo, né.
Igor e Fernando, estudantes gays de outra escola, ambos com 17 anos, vivem situação similar à
de Patrícia. O namoro assumido na escola proporciona uma maior vigilância na rotina dos jovens. A
disciplina não opera sem resistência também nesse caso. Fernando, por exemplo, afirmou que a estratégia que utilizam para garantir rápidos encontros é ir ao banheiro durante o horário das aulas. Segundo
relata, trata-se de uma alternativa só para poderem conversar “mais de boa”. Como nesse período o
banheiro fica pouco movimentado e dificilmente terá um funcionário, os jovens combinavam o horário para o encontro por mensagem pelo aplicativo WhatsApp. Solicitavam, assim, ao professor(a) permissão para deixar a sala de aula no mesmo momento, já que estudavam em turmas diferentes e, dessa
forma, podiam desfrutar melhor da companhia um do outro. De acordo com Fernando, nunca houve
problemas, sequer algum tipo de desconfiança, por parte dos professores. Como Patrícia, Fernando
afirma que ser um “aluno gay” é sempre lido pela escola como “mau aluno”, um “aluno trabalhoso”.
Os estudantes LGBT da escola fazem, logo, uma bricolagem com a norma sempre que podem,
tentando medir custos e benefícios – burlar a regra, mas evitar medidas mais duras da escola, como
suspensão e expulsão, por exemplo. Dessa forma, observamos, em consonância com o pensamento de
Ortner (2007a; 2007b), como as relações entre indivíduos e estruturas sociais são dinâmicas. Conforme a perspectiva da autora, é necessário compreender como as pessoas, mesmo em relações de poder
assimétricas, encontram formas de resistência à ordem estabelecida. Assim, busco entender as experiências escolares desses jovens sob a ótica da “teoria da prática”, abraçada por Ortner, focalizando desejos
e intencionalidades de sujeitos subalternizados na vida social e que, mesmo nessa condição, usam as
cartas que têm dentro do jogo social.
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Portanto, contra a disciplina que opera tentando negar suas existências, seus corpos e subjetividades, há a contraofensiva desses estudantes dentro do exercício da autoridade. A agência, para
Ortner (2007b), se concretiza em um contexto de poder. A resistência à ordem empodera os sujeitos
subversivos. Enquanto a escola busca expulsá-los do seu interior, alguns alunos tecem relações de não
assujeitamento, mostrando não serem despossuídos de agência, entendida aqui como relacionada “com
o fato de agir no contexto de relações de desigualdade, de assimetria e de forças sociais” (ibid.:58).
Como dito, a agência, para Ortner, deve ser entendida fortemente vinculada à distribuição dos
recursos de poder, sobretudo quando analisamos situações relacionadas às relações de gênero, no âmbito das quais, historicamente, mulheres, gays, lésbicas, bissexuais e travestis têm sofrido uma tentativa
de alijamento total de sua capacidade de agir. Observamos, contudo, que as situações aqui exibidas
mostram que os estudantes LGBT agem nas minúcias do cotidiano, de diferentes formas, para fabricar
uma ordem mais democrática e favorável a si mesmos.
Agindo no mundo social – pois Ortner (2007b) entende que todos os indivíduos possuem algum recurso, ainda que restrito, para a agência de poder –, nas suas experiências concretas e nas práticas sociais engendradas, os indivíduos transformam e reproduzem, simultaneamente, a cultura onde
operam. Assim, os estudantes LGBT não estão simplesmente presos às estruturas de poder, mas agem
com criatividade – embora com limites e poucas possibilidades. Mostramos, etnograficamente, como
esses sujeitos constroem fissuras no sistema e rompem com o ordenamento oficial. Se não é permitido
o uso de salto alto pelas travestis, os namoros entre jovens gays e lésbicas, o jogo de futebol para as meninas, o que a realidade fabricada cotidianamente aponta é a inventividade desses alunos ao consumir
os espaços escolares, onde, mesmo com limitadas possibilidades, ressignificam seus contextos.
É com a ressignificação que esses indivíduos tornam a escola um “lugar habitável”, conseguindo
frequentá-la todos os dias. É mostrando como transformam a rotina estudantil em momentos mais
palatáveis que os discursos dos jovens LGBT apontam para aspectos positivos de vivenciar esse universo. As práticas afetivas entre Patrícia e sua namorada, por exemplo, são sentidas pela jovem como algo
de bom por estar na escola. Ter a possibilidade de jogar vôlei no horário do intervalo, para Roberto,
jovem gay de 16 anos, aluno do primeiro ano do Ensino Médio, configura o que lhe motiva a frequentar a instituição de ensino, pois na sua casa seu pai lhe obriga ao futebol com os meninos da rua, uma
tortura psicológica diária, segundo relata. A escola, como vemos, pode ser também refúgio para muitos
estudantes LGBT.
Mesmo entre aqueles que não conseguem ressignificá-la e a tomam como ambiente tóxico, que
não tolera sua existência enquanto LGBT, há uma perspectiva positiva do processo de educação formal. Muitos discursos sinalizam a valorização da instituição escolar enquanto alicerce e arcabouço de
delineação do futuro. Roberto acenou para essa posição, ao afirmar que “aguenta” os sofrimentos das
vivências estudantis por um objetivo maior. Vindo de uma família pobre, é consciente de que o futuro
será resultado dos itinerários formativos que a educação pode lhe oferecer.
Dessa forma, é pela projeção do porvir que Roberto suporta, todos os dias, os garotos da escola
o chamarem de “viadinho” e outros apelidos que soam jocosamente, para o riso daqueles ao redor. Da
mesma maneira, Andrade (2012, 2015), a primeira travesti brasileira doutora e professora universitária
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com cargo efetivo, recorda as dificuldades que enfrentou no seu percurso discente. Olhando para trás,
a autora relembra que “mesmo em um ambiente escolar de negação da minha forma de brincar e de
ser, eu tinha um projeto que superava a dor física e psicológica que vivenciava diariamente: era estudar
e aprender, objetivando conseguir um bom emprego para ajudar minha família” (Andrade, 2015:57).
Resignar-se aos obstáculos do cotidiano escolar impostos aos estudantes LGBT é também estratégia adotada por parte destes, inclusive, abrange forçar comportamentos que não denunciem sua
homossexualidade, para obter os privilégios dos normatizados. Essa postura é observada com Caio, por
exemplo, estudante de 17 anos, do segundo ano do Ensino Médio de uma das instituições pesquisadas,
que afirmou não querer “dar pinta”. Entendo que se submeter às normas configura, por vezes, também
uma espécie de resistência, de não definhar em meio a um espaço hostil à sua existência. Esconder-se
para existir. Embora queira ensaiar uma performance cotidiana que denomina de “afeminada” (que
seria sua verdadeira identidade, conforme relata), Caio contou que isso lhe traria prejuízos, uma vez
que os professores e a direção iriam “implicar”, além de gerar uma difícil convivência com os colegas.
Assim, a melhor opção é ser um “gay comportado”, de acordo com suas próprias palavras, já que
assim o tempo escolar é vivido sem grandes perturbações, podendo tirar maiores vantagens – numa
perspectiva utilitarista – dessa experiência. Tal posicionamento encontra ratificação também no campo etnográfico de Bento (2006:209), que constata, entre suas interlocutoras, transexuais em processo
de transição, maior nível de escolaridade justamente entre aquelas que dissimularam seus desejos, num
“esforço considerável para não dar pistas”.
Caio e Roberto, bem como muitos outros estudantes LGBT, afirmam saber que precisam da
escola para poder vislumbrar um futuro melhor para si e para a família – e até mesmo poder viver sua
homossexualidade da forma desejada, pois um bom emprego e dinheiro são condições necessárias para
isso, conforme explicitam. Por conseguinte, observamos a outra face da noção de agência proposta por
Ortner (2007:58): “agência tem a ver com intencionalidade e com o fato de perseguir projetos (culturalmente definidos)”. Ademais, é comum nas falas dos alunos a menção aos projetos de vida, que são
plurais, mas todos eles passam pela necessidade de garantir um bom percurso formativo na Educação
Básica, pois conforme garantiu Caio, por exemplo, é a escola e o que dela se tirar proveito que definirão
seu futuro, o que sinaliza a centralidade que essa instituição possui para as juventudes.
As experiências de estudantes LGBT, como pudemos verificar, são marcadas pela heterogeneidade. Resignando-se à norma, reinventando o cotidiano através de fissuras e resistências, no
jogo entre assujeitamento e dissidência, constroem seus caminhos em meio a uma multiplicidade de relações e estruturas, que se metamorfoseiam com as ações cotidianas, diante da ação de atores subjetivamente complexos.
Considerações finais
O artigo ora apresentado não possui a intenção de exaurir a totalidade da multifacetada realidade desenhada nos espaços escolares por discentes LGBT, mas buscou contribuir, através dos fragmentos discursivos apresentados, somados à discussão teórica acoplada, com o debate acerca desses
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ambientes, seus usos e significados conferidos por estudantes que fogem à norma dominante do gênero
e da sexualidade.
É notório como a escola e o tempo escolar são vividos sob o viés do sofrimento pelos sujeitos
investigados, sobretudo para aqueles que mais se distanciam dos modelos hegemônicos de gênero –
ainda que, conforme quis destacar, não possamos tomar as instituições de ensino unicamente por esse
viés, pois os próprios jovens LGBT se reinventam e se apropriam desses espaços de múltiplas formas.
Suas experiências e itinerários são heterogêneos, adotando diferentes táticas de permanência. De um
enfrentamento mais direto a um posicionamento mais velado ou mesmo à resignação em aceitar não
viver como se quer e expressar o que se é, os estudantes LGBT estão na escola, criando através da sua
capacidade de “agência” (Ortner, 2007) formas de resistir às opressões observadas no dia a dia e denunciadas nas suas falas.
Quero chamar atenção, nesse sentido, para a necessidade de não homogeneizar as vivências
escolares desses indivíduos. Não podemos subsumi-las à mera dominação e ao sofrimento, sob pena
de perdermos os movimentos que orquestram a realidade, uma vez que os sujeitos sociais, agindo
nos seus cotidianos, resistem inventivamente à ordem estabelecida. Ao mesmo tempo, não podemos relativizar a homofobia e suas variáveis sofridas nesses espaços, sintonizadas com os ditames da
cis-heteronormatividade.
Precisamos entender a educação como campo político essencial para a luta pela ampliação dos
direitos dos sujeitos, que contemplem a vivência da diversidade e o reconhecimento da igualdade. É
na arena da educação que podemos disputar as narrativas capazes de possibilitar a construção de um
espaço social mais aberto e democrático. E, para isso, mostra-se possível nos utilizarmos da produção
do conhecimento antropológico no campo do gênero e da sexualidade, de modo a pensar políticas
públicas que consigam efetivar esse alargamento da cidadania para sujeitos LGBT. Sobretudo numa
época de recrudescimento conservador contra os direitos desses sujeitos, que passa por diversos âmbitos, incluindo a seara educacional, palco de uma explosão de disputas políticas e institucionais sobre as
questões de gênero e sexualidade nas escolas ( Junqueira, 2018; Carrara, França e Simões, 2018).
No Brasil, hoje, é preciso lutar contra a atual conjuntura de um Estado de imposição moral,
marcado por movimentos neoconservadores – especialmente no âmbito legislativo – com estreita relação com princípios religiosos. Machado (2017) afirma que o crescimento do poder político
no Congresso Nacional de uma bancada religiosa, alicerçada na heterossexualidade como princípio
obrigatório, tem produzido narrativas e fortes oposições aos direitos LGBT e atingido também as
principais pautas feministas.
Os obstáculos impostos ao processo de descriminalização do aborto e a tentativa de retirada das
discussões sobre gênero e sexualidade na escola vêm se revelando fortes estratégias do parlamento brasileiro para impor os fundamentos religiosos acima dos constitucionais. Devemos, portanto, defrontar
esses empreendedores morais que, ao trabalhar pelo fechamento do debate nas instituições de ensino,
desejam aprofundar ainda mais as dificuldades de estudantes LGBT e afastá-los da condição de huma-
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nidade e cidadania (vide o projeto “Escola sem Partido”9) e, ao mesmo tempo, fazer o Estado operar
como entidade heterossexual, que elimina os sujeitos de sexualidade e gênero dissidentes da sua agenda
(Miskolci e Campana, 2017).
Faz-se necessário ampliar nossos horizontes analíticos, teóricos e empíricos no que concerne
ao tratamento da escola em relação à diversidade – não só no que diz respeito a gênero e sexualidade,
como também a aspectos étnico-raciais, religiosos, de classe, etc. Precisamos refletir sobre tais questões, sob pena de, não o fazendo, naturalizarmos os sofrimentos que a homolesbotransfobia escolar
produz e sermos cúmplices, pelo silêncio, de um maior distanciamento entre as diversas juventudes
e a educação formal.
José Ricardo Marques Braga é mestre e doutorando em Antropologia Social pela
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGAS/UFRN). Professor da
Secretaria da Educação Básica do Ceará.
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política, sobretudo os temas relacionados com direitos humanos, gênero e sexualidade. O Programa Escola sem Partido foi declarado
inconstitucional pelo Superior Tribunal Federal (STF) em 2020, mas antes disso, sobretudo em 2014, teve forte repercussão nas pautas
educacionais, notadamente no Plano Nacional de Educação daquele ano.
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entre boxeadores profissionais. Mana, 6(2), 127-146. https://doi.org/10.1590/S010493132000000200005
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“SE AQUI é O INFERNO, EU SOU A PRINCIPAL DEMôNIA!”
“Se aqui é o inferno, eu sou a principal demônia!”: etnografando
agências juvenis LGBT em contextos escolares de Fortaleza/CE
Resumo: O artigo busca trazer à luz experiências cotidianas das juventudes LGBT em escolas públicas
da capital cearense, buscando compreender como esses sujeitos se constroem nesses contextos, como se
relacionam com esses espaços e com todos os outros atores sociais que compõem o cenário educacional.
Alicerçado pela etnografia nessa investigação, elejo as técnicas de observação participante e conversas
informais, com diversos sujeitos envolvidos nos processos educativos, como forma de entender as lógicas de sentido tecidas nos seus cotidianos. Os dados obtidos apontam uma realidade complexa e multifacetada, em que se observa a produção de maneiras múltiplas de experimentar a escola, que variam
de uma dominação pela norma até formas de enfrentamento mais explícitas e que, de uma forma ou de
outra, impactam na (re)produção e transformação do regramento em torno do gênero e da sexualidade,
construindo fissuras na cis-hetero-norma, por onde sujeitos tidos por desviantes caminham, prosseguem e se (re)fazem, mostrando seu poder de agência.
Palavras-chave: Juventudes LGBT; Experiências escolares; Gênero e sexualidade; Corpos e subjetividades; Agência.
“If here is the hell, I am the main devil!”: an ethnography of the
LGBT youth agencies in school environments from Fortaleza (CE)
Abstract: This article contemplates experiences of LGBT youth in public schools in Fortaleza city,
capital of Ceará State, Brazil, seeking to understand how these individuals construct themselves in
these contexts, how they relate to these spaces, and with all the other social actors that make up the
educational scenario. Based on ethnography in this research, I choose the techniques of participant
observation and informal conversations, with different subjects involved in the educational processes,
as a way to understand the logic of meaning woven into their daily lives. The data obtained points to
a complex and multifaceted reality, in which the production of multiple ways of experiencing school
is observed, ranging from domination by the norm to more explicit forms of confrontation and that,
one way or another, impact on (re)production and transformation of the rules around gender and
sexuality, building cracks in the hetero-cis-norm through which subjects considered as deviant walk,
continue and (re)make themselves, showing their power of agency.
Keywords: LGBT youth; Schooling experiences; Gender and sexuality; Bodies and subjectivities;
Agency.
RECEBIDO: 18/05/2020
APROVADO: 11/01/2021
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D O SSIÊ
É inclusão com exclusão? Sobre os
entrecruzamentos de gênero, raça e
sexualidade no espaço escolar
Ana Profírio
Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Maceió/AL, Brasil
http://orcid.org/0000-0002-3840-2860
Introdução
Este artigo busca refletir sobre os processos de inclusão e exclusão colocados em curso pela instituição escolar a partir dos entrecruzamentos de gênero, sexualidade, raça, classe e religião. Também
procura refletir sobre o fazer etnográfico a partir da relação da pesquisadora com os interlocutores da
pesquisa, pensando os (des)encontros dos respectivos marcadores de diferença dos sujeitos. Os dados
aqui apresentados derivam de pesquisa1 em que discuto os modos de operacionalização das diferenças pela instituição escolar e a centralidade dela para o exercício de uma condição juvenil em certos
segmentos sociais (Profírio, 2019). O conceito de interseccionalidade é imprescindível para a análise
aqui pretendida, pois permite vislumbrar o entrecruzamento das opressões sociais considerando as
restrições ou potencialidades nas trajetórias dos sujeitos a partir do encontro de distintos eixos de subordinação (Crenshaw, 2002).
1 Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) pela concessão da bolsa durante todo o período
de realização do mestrado.
é INCLUSãO COM EXCLUSãO?
Ao decorrer de um ano, entre abril de 2017 e abril de 2018, acompanhei semanalmente2 a rotina
de jovens lésbicas, gays, travestis e transexuais em uma escola “inclusiva”3 em termos de gênero e sexualidade. A instituição Manoel de Barros4 é uma escola pública da rede estadual de Alagoas e faz parte de
um grande complexo educacional, localizado na parte baixa da cidade de Maceió, próximo ao centro,
abrangendo estudantes de distintos bairros da periferia e municípios do interior do estado de Alagoas.
Minha inserção etnográfica começou bem antes da realização da pesquisa propriamente dita. Durante a graduação atuei nesta escola enquanto bolsista do Programa de Iniciação à Docência (PIBID)
na disciplina de Sociologia. Já nesse período chamava minha atenção a grande visibilidade de sujeitos
e expressões de gênero e sexualidade não heteronormativos naquele espaço pedagógico, em contraste
com o que observava em outra escola que pesquisava, caracterizada por violência homofóbica e pelo silenciamento das expressões homoeróticas e de transgeneridade. Ficava curiosa sobre como instituições
públicas que ofertavam a escolarização para um grupo semelhante, jovens não brancos e periféricos,
lidavam de forma distinta com a questão da homofobia.
Neste artigo discuto os processos de inclusão e exclusão realizadas no contexto escolar a partir
dos diferentes sujeitos que compõem a instituição, considerando a articulação dos marcadores sociais
da diferença de gênero, sexualidade, classe, religião e raça. Mostro que, apesar da proposta de “inclusão” em termos de gênero e sexualidade promovida pela escola, esta apresentava um conjunto de contradições significativas, pois ignorava as múltiplas posicionalidades dos sujeitos, promovendo, assim,
uma inclusão parcial e, portanto, excludente. A seguir, descrevo os processos de inclusão e exclusão em
diferentes instâncias na escola: num grupo religioso cristão coordenado pelos jovens estudantes, nas
propostas de combate à homofobia por parte da gestão escolar e nas interações entre as/os jovens não
heteronormativos a partir de “resenhas” que envolviam elementos raciais.
O juventude para Cristo
O fato da instituição Manoel de Barros ser “inclusiva” em termos de gênero e sexualidade não
significava a ausência da homofobia, mas expressões sutis de preconceito. Um conjunto de situações
ajudava a vislumbrar a complexidade da inclusão proposta e um dos espaços de maior tensão, neste
sentido, era no âmbito do Juventude Para Cristo, daqui em diante denominado JPC. Trata-se de um
grupo cristão formado por jovens estudantes católicos carismáticos, evangélicos pentecostais e neopentecostais, atuante na escola há mais de dez anos.
2 As situações aqui retratadas são resultado de observação participante e conversas informais no pátio, ginásio, refeitório e corredores
da escola. A sala de aula não foi um espaço de observação, tratando-se de uma escolha metodológica no sentido de buscar uma maior
aproximação com as/os jovens interlocutoras/es. Acerca desta escolha, é importante lembrar que uma das principais contribuições da
Antropologia ao campo da Educação é a reflexão sobre como os processos pedagógicos estão para além das experiências de escolarização
e seus modos formais de ensino e aprendizagem (Gusmão, 1997). No âmbito da Antropologia da Educação, pensar o universo escolar
em articulação com outras instâncias pedagógicas, ou a existência de saberes na escola não restritos aos da sala de aula faz parte da complexidade de se fazer etnografias neste espaço. Assim, destaco o trabalho de Pereira (2016) no qual a reflexão sobre as experiências juvenis
periféricas envolveu o cotidiano escolar dentro e fora da sala de aula, junto a outras esferas de socialização, as redes sociais, por exemplo.
3 As aspas demarcam o discurso de interlocutoras/es.
4 Todos os nomes próprios dos interlocutores, bem como o do local da pesquisa, são fictícios.
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O grupo promovia cultos, peças teatrais nas quais veiculam mensagens antidrogas, entrega de
panfletos com escritos bíblicos, dentre outras ações de evangelização realizadas no espaço escolar durante o intervalo e nas aulas vagas. Contava com uma participação significativa em suas atividades das/
dos estudantes de modo geral e, especialmente, daquelas/es que escapavam da heteronormatividade.
Gisele, uma jovem travesti, cantava nos cultos promovidos pelo grupo; outras/os jovens gays e lésbicas
também ajudavam na organização das atividades, sobretudo por meio da divulgação dos dias e horários
em que as ações seriam promovidas.
As/os jovens integrantes do JPC apresentavam posicionamentos distintos sobre a homossexualidade, da condenação à homofobia e ao machismo a falas que remetiam às considerações de Natividade
e Oliveira (2013) sobre a homofobia religiosa ou pastoral, expressa através de uma ética de cuidado e de
condenação da homossexualidade na qual se valoriza o sujeito que se submete a uma suposta “restauração sexual” e testemunha acerca disto. Um exemplo significativo ocorreu quando Gustavo, um jovem
que por muito tempo se descreveu enquanto gay para toda a escola, passou a namorar uma colega de
sala. Enquanto alguns especulavam que o rapaz pudesse ser “bi”, o próprio jovem dizia estar surpreso
com o afeto que sentia, levando-o a repensar de forma significativa a própria sexualidade. Alguns integrantes do JPC utilizavam a situação para falar sobre as “restaurações que Deus é capaz de realizar na
vida dos sujeitos”. O rapaz, entretanto, negava que a religiosidade tivesse alguma influência sobre suas
“escolhas” afetivas.
Outro fato que gerou grande repercussão dentro e fora do JPC, provocando discussões inflamadas em toda a escola, foi o processo de “saída do armário” e, posteriormente, de “transição de gênero” de
uma das lideranças do grupo. Amanda, que passou a chamar-se Fábio, deixou o JPC devido à pressão
de alguns colegas que consideravam “inadmissível” que continuasse ocupando o cargo enquanto “lésbica” e posteriormente “homem trans” – muito embora outras/os jovens da escola não vissem qualquer
problema nisto. As disputas e discussões em torno de sua saída ou permanência levaram à interrupção
das atividades do JPC por quase um semestre.
É difícil evidenciar a complexidade dos posicionamentos das/dos jovens do grupo religioso
diante do fato sem cair em certos dualismos por si só reducionistas, como dizer que o grupo se dividia
entre progressistas e conservadores, o que a descrição até agora realizada poderia fazer pensar. Por essa
razão, considero importante mencionar que o controle sobre o gênero e a sexualidade ocorria também
para com as/os jovens heterossexuais, a partir da condenação de certas expressões afetivas e sexuais. No
caso de Amanda/Fábio, por exemplo, ainda existiam aquelas/es que defendiam sua permanência no
grupo pela capacidade e competência do jovem na organização das atividades, mas não deixavam de
assumir um discurso de condenação acerca de suas “escolhas sexuais”.
Sobre a presença de jovens lésbicas, gays, travestis e transexuais no JPC, em distintos momentos
perguntei aos sujeitos como poderiam participar e até mesmo promover as atividades do grupo, considerando os discursos depreciativos acerca da homossexualidade e transexualidade que se tornaram
mais explícitos com a situação de Amanda/Fábio. As/os jovens reconheciam o preconceito por parte
de alguns colegas, mas diziam que isso não expressava a totalidade do JPC. Para muitos, o grupo reli-
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é INCLUSãO COM EXCLUSãO?
gioso estudantil era o único espaço que permitia a vivência da religiosidade, algo do qual sentiam falta
desde o rompimento com as suas respectivas igrejas.
A “saída do armário” ou a “transição de gênero” e, às vezes, as duas situações de forma concomitante, eram descritas enquanto o começo de um processo de expulsão nada sutil do universo religioso. O
preconceito sofrido no JPC era descrito enquanto “brando” se comparado a outras vivências, nas quais
situações de violência física eram o marcador mais significativo da homofobia, algo que não ocorria no
JPC e parecia conferir ao grupo religioso estudantil uma perspectiva positiva por parte dos sujeitos.
As/os jovens classificavam o JPC enquanto um espaço mais “cultural” que propriamente “religioso”, algo reiterado por parte da direção escolar. As diretoras5 Carla e Fernanda afirmavam que não
havia envolvimento de lideranças religiosas ou de igrejas, sendo uma regra da instituição escolar que o
grupo fosse comandado apenas por jovens estudantes. Na perspectiva de alguns membros da escola, a
auto-organização do grupo fazia com que o JPC não ferisse o princípio de laicidade que deveria regular os estabelecimentos públicos de ensino. Quem ia na contramão destes argumentos era a diretora
Cristina: em sua visão o grupo feria, sim, o princípio da laicidade e, por isso, não deveria sequer existir,
sendo descrito enquanto uma “herança” da antiga gestão escolar, “cristã e conservadora”.
De qualquer forma, a religiosidade transcendia a atuação do JPC se expressando na própria lógica de inclusão da instituição escolar para com as/os jovens gays, lésbicas, travestis e transexuais. A
linguagem utilizada para o combate à homofobia revelava certa ética cristã mesclada aos direitos humanos, sendo os limites de cada uma difícil de delimitar, como buscarei explorar a seguir.
“A escola inclusiva” e algumas considerações sobre
“acolhimento”
Como mencionado, o colégio Manoel de Barros localizava-se próximo ao centro da cidade e
parte considerável das/dos estudantes moravam em bairros distantes do espaço escolar, o que era apontado como uma das razões para a construção de uma escola “diversa” e “inclusiva”. Em distintos momentos as/os jovens relatavam as dificuldades de expressarem a sua orientação sexual ou identidade
de gênero em escolas de “bairro”. O fato de colegas de classe também serem os seus vizinhos tornava a
possibilidade de “saída do armário” impossível, visto que rapidamente tal informação poderia chegar
ao conhecimento de toda a vizinhança e especialmente de pais, mães ou responsáveis. O deslocamento
físico provocava, pois, deslocamentos subjetivos entre as/os jovens e a escola Manoel de Barros ficou
rapidamente conhecida como a “escola gay” do complexo educacional.
A noção de escola “inclusiva” utilizada de forma recorrente pelos interlocutores da pesquisa para
descrever a instituição chamava atenção para o deslizamento da categoria e para a necessidade de um
espaço escolar que considerasse outras diferenças para além da deficiência. O processo de construção
da “escola inclusiva” era descrito enquanto um ato de “fora” para “dentro”, surgido a partir da visibilida-
5 As diretoras trabalhavam em regime de escala, revezando-se nos turnos matutino, vespertino e noturno.
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de de expressões de gênero e sexualidade não heteronormativas, e das reinvindicações de alguns jovens
estudantes descritos enquanto “militantes”.
Dentre estas/es se destacava Gisele, uma jovem travesti extremamente popular entre os colegas
devido a sua atuação artística no JPC e em outras atividades da escola. Ela era apontada enquanto referência por docentes e discentes da “causa LGBT” – sigla para Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis
e Transexuais, termo amplamente utilizado por estudantes com perfil “militante”, com discursos mais
afinados às pautas do movimento. Gisele foi a primeira estudante da instituição a realizar o processo de
“transição de gênero” e a reivindicar entre colegas e profissionais da instituição o combate à homofobia.
Gisele era figura constante na Direção e Coordenação escolar denunciando situações discriminatórias e exigindo alguma intervenção diante delas. Em seu primeiro ano no Ensino Médio, as reinvindicações de Gisele não resultaram em qualquer resposta por parte dos gestores da instituição; em
seu segundo ano, porém, com a mudança da direção escolar, suas demandas passaram a ser atendidas
pelo trio diretor – formado por Cristina, Carla e Fernanda – no escopo de gestão pautada pelo discurso
de “acolhimento” que englobava os “homoafetivos”.
Uma das diretoras, Cristina, descrevia-se enquanto “homoafetiva”, afirmando estar casada
com uma mulher há quase dez anos. Apesar de seu envolvimento direto com a questão, ela ponderava, no entanto, que a “inclusão” a este grupo era mais resultado de sua preocupação com a educação
de modo geral. A escola, para ela, deveria ser um espaço para todas/os, mencionando também outras formas de preconceito existentes, dentre elas o racismo, que levaria à evasão de jovens negros/as
da instituição escolar.
As outras diretoras, por sua vez, mencionavam suas respectivas experiências em sala de aula com
estudantes “homoafetivos” para o seu “despertar” na questão do combate à homofobia. Relatavam
casos de exclusão familiar e outras formas de violência para com estes estudantes que as marcaram
significativamente em sua carreira docente e viam no exercício da gestão escolar uma oportunidade
para a mudança desse quadro. Carla também contava em seu currículo com a formação em gênero e
diversidade, e dizia ter sido o período de produção da dissertação de mestrado (sobre as dificuldades de
abordar gênero e sexualidade no espaço escolar) outro momento significativo para perceber as faces da
discriminação. O professor orientador do trabalho era “abertamente gay” e alvo constante de “piadas e
comentários depreciativos” por discentes e docentes.
A noção de “acolhimento” que orientava o discurso desta equipe diretora sobre as ações empreendidas para permanência de jovens “homoafetivos” no espaço escolar ganha outros matizes
quando observamos a semântica religiosa que pode acompanhar este termo. Carla e Fernanda, por
exemplo, destacavam sua formação cristã enquanto um aspecto importante para o aprendizado sobre
a necessidade de promover o “acolhimento” aos excluídos. No discurso das diretoras, o termo aparecia
mesclado a noções importantes no âmbito dos direitos humanos, a partir de sua junção com palavras tais como respeito à diversidade, diferença e inclusão. A religiosidade transcendia, pois, os limites
do grupo estudantil JPC.
Nenhuma das duas diretoras citava as estudantes lésbicas, ou jovens bissexuais, ao falar sobre as
vítimas de homofobia no espaço escolar; era Cristina quem fazia menção a estes sujeitos. Mas, no geral,
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a gestão estava de acordo quanto a que a proposta de combate à homofobia na escola não buscava “fazer
a cabeça de ninguém”, ressaltando que cada um tem o direito a “pensar o que quiser sobre a homossexualidade”, porém no espaço público “não se pode expressar certas opiniões, afinal todos devem ser
respeitados”. Estas ponderações me remetem ao trabalho de Seffner (2013: 157) que, a partir da observação de cenas do cotidiano escolar, buscou discutir projetos e propostas de inclusão voltadas ao gênero
e à sexualidade em escolas públicas de Porto Alegre. Ele observou que apesar da boa intencionalidade
de certas ações de enfrentamento à homofobia com base na noção de tolerância, estas podem gerar
efeitos contraditórios e, às vezes, poucos eficazes no combate às desigualdades. O não questionamento
da norma e o seu privilégio de invisibilidade só a reforçam.
Pude compartilhar este mesmo entendimento junto aos interlocutores de minha pesquisa em
diferentes momentos durante o trabalho de campo. Um deles relaciona-se à existência de um terceiro
banheiro para estudantes travestis e transexuais. Com frequência eu perguntava aos estudantes em
que medida isso proporcionava a fuga da “pedagogia do insulto” ou poderia ser um reforço da “heteronorma” (Sampaio, 2015). As/os jovens discordavam que pudesse ser uma forma de “segregação” e
relatavam que o banheiro proporcionou “segurança”, pois eram discriminadas/os no banheiro comum.
Além disso, comentavam que o constrangimento de fazer uso do espaço não era apenas dos outros, mas
delas/es próprios, sentindo-se “alienígenas” no espaço convencional. Um jovem gay dizia não achar
certo uma “travesti” fazer uso do “banheiro feminino”, pois não era dotada de “vagina” e poderia assim
constranger as garotas.
O uso do banheiro não era o único momento de criação de um espaço à parte: também existia a
“fila das gays”, que consistia na formação de um alinhamento específico para jovens “afeminados”, travestis e transexuais receberem o lanche. Antes dela os sujeitos aguardavam junto aos demais numa fila
única para entrar no refeitório. Mas “gays afeminadas” e travestis eram apalpadas por outros estudantes
enquanto aguardavam. Gisele então fez uma reclamação à direção escolar e a criação de uma fila à parte
foi o modo encontrado pela gestão para intervir nas situações de assédio. Quando questionava se o
melhor não seria conversar e responsabilizar, de alguma forma, os rapazes que realizavam esses atos,
ao invés de se criar um espaço à parte, ouvia que isso poderia piorar a situação e que aquela solução era
a melhor para o caso. Mais uma vez, as/os jovens citavam experiências escolares anteriores nas quais
foram vítimas de violência e a direção/coordenação não propôs qualquer solução.
As/os jovens, apesar de seus elogios à instituição, não deixavam de relatar situações de preconceito e discriminação por parte de colegas e docentes no Manoel de Barros. Amanda, ao relatar uma
experiência nesse sentido (situação ocorrida antes da “transição de gênero”, por essa razão uso do artigo
feminino), dizia que um professor impediu-a e a outra colega de assinarem a lista de frequência. Para
ela, não havia nenhuma razão para o impedimento além de uma atitude de preconceito do professor,
pelo fato dela e da colega serem lésbicas. Ao confrontar o professor no término da aula e perguntar por
que teria sido impedida de assinar a lista, ele ficou em silêncio. Amanda chamou o docente de “homofóbico” e ele teria respondido de maneira irônica “nunca neguei que fosse”. As situações no geral eram
descritas enquanto “pontuais”, algo fora da “rotina”, mas nem por isso deixavam de ser mencionadas de
forma recorrente pelas/os jovens. Destacavam-se os relatos sobre reclamações de docentes em sala de
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aula acerca da escola, afirmando que a instituição havia deixado de ser “tradicional” ou um “lugar de
respeito”, discurso este acompanhado de olhares percebidos como ameaçadores aos jovens não heteronormativos.
“O coito: as travas, os machos, as gays e as rachas” no espaço
escolar
Devido aos conflitos relacionados à discussão sobre a permanência ou não de Amanda/Fábio no
grupo religioso estudantil, as atividades do grupo foram interrompidas por quase um semestre. Dessa
forma, minha atenção se voltou a Gisele, jovem travesti, dotada de um posicionamento mais crítico
acerca da homofobia entre as/os colegas do grupo religioso. Ela desempenhava papel central no debate
das questões LGBT na escola e tornou-se uma interlocutora privilegiada no processo de pesquisa. A
jovem e seu grupo de amigas/os, chamado por ela de “coito”, foram as/os jovens com as quais estabeleci
maior proximidade durante o hiato das atividades do JPC.
Gisele realizava uma divisão de seu grupo de amigas/os a partir de uma nomenclatura própria.
Existiam as “travas”, composto por ela mesma e Carlinha, designação para quem fazia uso de hormônios femininos e apresentava seios avantajados, quadris largos e o cabelo na altura da cintura. Existiam
também as “gays”, rapazes afeminados que Gisele identificava como homossexuais, como Breno, Gustavo e Bruno/a, o integrante mais recente do “coito”. Bruno/a se descrevia na maior parte das vezes
utilizando artigos femininos, mas afirmava não fazer diferença ser chamado no masculino ou feminino.
Faziam parte ainda do “coito” os “machos”, termo utilizado para descrever os rapazes heterossexuais
de forma geral e que não apresentavam uma performance atípica de gênero, em referência a Fernando,
Valter e Ricardo, os garotos mais próximos a Gisele.
Rute era a única amiga cisgênero6 de Gisele, que geralmente se referia a todas as outras jovens
da escola como “rachas”, um termo pejorativo para descrever mulheres cisgênero. Para diferenciar
a amiga das demais, dizia que Rute era uma “racha de respeito”. Eu também ganhei uma atribuição
por parte de Gisele passando a ser chamada de “amapô”, termo também empregado para descrever
mulheres cisgênero.
O “coito” revelava aspectos até então não pensados acerca dos processos de “inclusão” e “exclusão” no espaço escolar. Uma destas exclusões e tensionamentos se relacionava ao JPC. A situação de
Gustavo namorando uma garota, como mencionado anteriormente, foi apropriada pelos estudantes
que frequentavam o grupo religioso a partir de uma narrativa de restauração sexual, negada pelo rapaz.
O anúncio do relacionamento coincidiu com a participação de Gustavo no culto de retorno do JPC, o
que contribuiu para a consolidação de uma narrativa sobre a “cura gay”. No âmbito do “coito”, contudo,
alguns colegas expressavam um posicionamento crítico sobre Gustavo, afirmando que Gisele nunca se
rendeu à homofobia do JPC como ele, supostamente, estava fazendo.
6 A cisgeneridade pode ser resumida como a identidade que abarca os sujeitos que se identificam com o gênero que lhes foi determinado no nascimento
(Vergueiro, 2015:45).
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é INCLUSãO COM EXCLUSãO?
Gisele, a única do “coito” a participar de modo ativo do JPC, negava que o amigo estivesse passando por uma “cura gay” e criticava quem fizesse afirmações nesta direção. Ela via no relacionamento
de Gustavo um modo de o jovem agradar aos familiares. Não deixava de expressar frustração com o
relacionamento do amigo de diferentes modos: às vezes não falava com o rapaz, noutras se dirigia a ele
de forma irônica, questionando as razões pelas quais o jovem ainda andava com ela e outras/os jovens
LGBT, afinal se ele não era mais uma das “gays”, não deveria fazer parte do “coito”.
Com exceção da situação envolvendo Gustavo, os conflitos do “coito” se distanciavam das divisões e controvérsias no âmbito do JPC, evidenciando modos de inclusão e exclusão que articulavam,
para além de gênero, sexualidade e religiosidade, também os marcadores de raça e classe. Gisele e Carlinha vivenciaram diferentes atritos pelo fato de a segunda negar o termo “travesti”, descrevendo-se
enquanto uma “gay afeminada”. Além disso, a jovem não compartilhava da veia “militante” de Gisele,
mostrando-se irritada com os discursos politizados da amiga sobre a importância de as “gays” darem
seu “testemunho”.
Carlinha inclusive se recusava a participar da pesquisa, dizendo acreditar que este tipo de trabalho “não serve pra nada e não muda nada”. Nunca insisti sobre a sua participação no projeto, pois não
conseguia formular uma resposta digna às suas indagações. Seu incômodo, porém, não era só com a
pesquisa que estava realizando. Carlinha demonstrava desconforto com um conjunto de dinâmicas de
caráter racial no âmbito do “coito” que passaram também a me afetar profundamente e me paralisavam
enquanto pesquisadora.
No “coito” certa ambiguidade racial parecia ser almejada pelas/os jovens, algo que não vislumbrava no JPC, cujo racismo era de caráter religioso e não estético a partir especialmente da discriminação às religiões de matriz africana. No âmbito do JPC, aproximar-se de uma aparência branca ou nem
tão negra era recorrente nos discursos, nas pequenas intervenções estéticas realizadas pelos sujeitos e,
especialmente, nas modificações corporais voltadas à transição de gênero. Em termos de cor, os únicos
integrantes do “coito” que se viam enquanto brancos eram Rute e Gustavo. As/os jovens do “coito” se
descreviam apenas em termos de cor, enquanto “morenos” ou “bronzeados”, colocando a possibilidade
de não “ser” de dada cor, mas de “estar” em um dado gradiente7.
Meu corpo era apropriado pelo grupo, deixando-me absurdamente desconfortável. Minha aparência era excessivamente elogiada, sendo descrita enquanto “bonita” por apresentar uma pele “morena
clara”, cabelo liso “natural”8 e um rosto dotado de traços “finos”. Em resumo, eu era “bonita” para o grupo por ser “quase branca” ao olhar deles, ou “nem tão negra assim”. Enquanto parda, minha negritude
sempre é relacional e contextual, podendo ser lida enquanto mais ou menos negra a partir de quem me
vê e do espaço no qual estou inserida. Sempre tive certeza de que não sou branca, mas quão negra sou é
alvo de controvérsia. De qualquer forma, me afirmo negra, entendendo esta categoria para além da cor,
enquanto uma identidade política.
7 As considerações das/dos jovens exemplificam a discussão sobre colorismo. Norwood (2015) afirma que o colorismo não chega a ser
racismo propriamente dito, mas se relaciona com ele. Para simplificar a distinção: quando uma loja se recusa a contratar funcionários
negros, estamos diante de um caso envolvendo racismo; quando sujeitos negros são contratados, desde que tenham um tom de pele mais
claro e outros traços associados aos brancos, trata-se de uma situação envolvendo colorismo.
8 O termo “natural” era usado para descrever os cabelos de textura lisa sem uso de produtos alisantes ou relaxantes.
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Sobre as/os demais integrantes do grupo, eu os enxergava “negras/os”, ou seja, “pardos e pretos”, indo das variações de marrom ao total escurecimento. É importante mencionar que a categoria
“pardo/a” é parte de uma abordagem censitária do país. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) historicamente interpretou a população brasileira como sendo tão miscigenada que seria
impossível uma abordagem pautada em ancestralidade, por essa razão privilegia categorias de cor e
fenótipo (Bailey, 2016). O termo “pardo/a” é alvo de críticas e controvérsias no âmbito movimento
negro, visto enquanto uma tentativa de “embranquecimento” da população. Guimarães (2008) explora os (des)encontros entre categorias nativas, censitárias e de militância social, considerando que
a identificação racial no cotidiano pode envolver elementos de cor, em predomínio aos de identidade. Alguém pode se descrever “moreno” ou “pardo” enquanto cor, e assumir ou não o termo “negro”
em seu uso político.
Outro alvo de discussão é se “pardos” seriam ou não alvo de racismo. Em resumo, pardo era
uma categoria da pesquisadora, mas que não fazia sentido para os sujeitos da pesquisa. Quando dizia
aos interlocutores que “pretos e pardos” formam a população negra do país e por essa razão sou negra, lidava com um imenso estranhamento por parte daquelas/es jovens. Numa destas ocasiões fui,
inclusive, corrigida de forma violenta por Gustavo, que me chamou de “morena” como se a palavra
negra fosse algo ofensivo.
Se em relação ao gênero e à sexualidade conseguia tensionar o que estava sendo dito e realizado pelos sujeitos, sobre a questão racial silenciava, silêncio este uma espécie de grito inarticulado na garganta.
“As resenhas”, ou todo mundo não é “negro”, exceto quem é
Um aspecto central do intervalo das aulas consistia na realização das “resenhas”, termo utilizado
pelos jovens para descrever práticas de zoação e brincadeiras, realizadas especialmente entre aquelas/es
com quem compartilhavam de algum grau de intimidade ou proximidade. Pereira (2016), ao abordar
este tipo de interação, discute como tais práticas não cabem numa perspectiva totalmente patologizante, pensando o bullying, por exemplo. As zoações encerram uma imensa ambivalência e, apesar de seu
caráter conflitivo, buscam de certa forma agregar os sujeitos. A zoação entre jovens estudantes com os
quais o autor realizou a pesquisa baseava-se especialmente em alguma dimensão corporal. O mesmo
ocorria no caso aqui descrito.
As principais “resenhas” envolviam processos de racialização, atribuindo à negritude uma dimensão pouco desejável. A depreciação do cabelo crespo e de outros traços, como nariz largo, pele
escura, ocorriam de forma frequente e podem ser interpretadas a partir das considerações de Nogueira
(2007 [1954]) sobre o “preconceito de marca”. Ao traçar um paralelo entre as relações étnico-raciais
brasileiras e o contexto estadunidense, o autor observa que o preconceito no Brasil se expressa não pela
exclusão dos sujeitos, mas por seu preterimento a partir da aparência e dos traços físicos.
Neste sentido, era bastante comum às/aos jovens realizarem piadas sobre o cabelo crespo desaprovando estudantes que não o alisavam. Certa vez, Gustavo arrancou gargalhadas dos “machos” ao
chamar de “presepada” e comparar com uma vassoura o cabelo black power de uma colega de sala. O
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jovem ainda fez questão de exaltar seu cabelo liso “natural” afirmando ser muito “desleixo” uma mulher “não cuidar” do cabelo. Em seguida, os “machos” dedicaram boa parte do intervalo a dizer coisas
semelhantes. Fernando, por exemplo – que se descrevia “moreno” e às vezes “muito bronzeado” (eu
lia-o preto) –, afirmava considerar “feio” ostentar o cabelo crespo. O rapaz vivia com a cabeça raspada,
acreditava que seu cabelo também fosse crespo.
Ao refletir sobre a importância do cabelo para a identidade negra, Rocha (2016) observa que a
manipulação dos fios crespos, tornando-os lisos, reflete a valorização de um padrão estético de “branqueamento” na realidade brasileira. O cabelo crespo e a pele escura são geralmente percebidos como
distantes da “boa aparência” e os sujeitos acabam por lidar com um conjunto de situações depreciativas
acerca de sua corporeidade, acarretando inclusive a evasão escolar ou profissional. O ato de alisar o
cabelo, neste sentido, poderia ser uma tentativa de escape a estas situações.
O alisamento capilar era recorrente entre as/os jovens, mas não os livrava totalmente de ser alvo
das “resenhas” de caráter racializado. Quando não depreciavam o cabelo crespo, os discentes elencavam outros aspectos da corporeidade negra a exemplo do que ocorreu com Breno, uma das “gays”
que, logo após ter alisado o cabelo, lidou com um conjunto de “brincadeiras” por parte dos “machos”.
Em tom de provocação, os rapazes lhe diziam: “Olha só ele, alisou o cabelo ruim, foi? Agora está com
o cabelo bom? Mas não tem jeito não. E essa venta aí, enorme de nego! Pra que essa venta?”. Breno
pediu que os colegas o deixassem em paz e saiu de perto do grupo, uma resposta que era exceção a
este tipo de dinâmica.
Tais situações arrancavam gargalhadas entre as/os jovens que faziam parte do “coito”. Para
mim, a possibilidade do riso era totalmente desconcertante e tensa. Grande parte do estranhamento
que direcionava meu olhar para essa dimensão racial advém, justamente, do fato de que poucos pareciam afetados por esse tipo de “resenha”. Carlinha, uma das poucas jovens que parecia se reconhecer
enquanto negra, tinha um entendimento distinto sobre essas situações. Para ela “toda resenha tem
um fundo de verdade”.
A partir de minhas experiências com Gustavo, compreendi melhor o que Carlinha estava expressando. Ele realizava os comentários com os quais era mais difícil lidar, sempre como resposta às afirmações de Gisele sobre homens negros. A relação de Gisele com os seus amigos “machos” era carregada
de ambiguidade, repleta de insinuações sexuais de ambas as partes, que não permitiam chegar a uma
conclusão sobre a concretização de algum tipo de parceria afetivo-sexual entre eles. Gisele dizia que os
rapazes negros têm “janela alta” (expressão usada para se referir a pênis avantajado) e, por esse motivo,
ela “adorava um negão”; em resposta, os “machos” pediam que Gisele lhes desse uma chance. Suas falas
faziam referência às representações no imaginário brasileiro sobre a sensualidade de homens negros,
segundo metáforas de volume, virilidade e desempenho sexual (Simões, França & Macedo, 2010).
Diante dos comentários de Gisele, Gustavo expressava absoluta reprovação, associando à pele
negra a “sujeira”. Por mais que tentasse disfarçar meu desconcerto e assumir uma postura blasé, nem
sempre era bem-sucedida nessa tarefa. Certa vez, Gustavo percebeu que estava desconfortável e me provocou, em tom de “brincadeira”, dizendo: “Eita, bichinha. É muito inocente, está chocada”. De forma
irônica respondi que estava mesmo e que ele deveria “limpar a boca porque o veneno estava escorren-
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do”. Gustavo ficou por muito tempo rindo, ao passo que assumi o mesmo tom de zoação utilizado para
as “resenhas” e me lembrei o que Carlinha costumava dizer. Brincando se diziam coisas sérias.
Esta foi uma das poucas situações em que consegui responder. Geralmente ficava paralisada. Em
um primeiro momento, pensei que meu silêncio dizia respeito à noção idealizada do que significa ser
pesquisadora, no qual a realização da pesquisa está acima de qualquer coisa. Este aspecto é desenvolvido por Daniel (2019), ao abordar a experiência de sofrer racismo no trabalho de campo durante a
realização de uma pesquisa sobre imigração peruana. A autora chama atenção ao absoluto silêncio de
nossa formação antropológica sobre o fato de pesquisadoras/es serem dotados de cor/raça. Tal como
ela, eu estava familiarizada a pensar sobre o gênero no trabalho de campo e suas implicações, conseguia facilmente ter um posicionamento crítico sobre as minhas limitações e possibilidades enquanto mulher cis que não compartilhava das mesmas experiências afetivas e sexuais que as/os principais
interlocutoras/es da pesquisa, mas nunca havia sido provocada a pensar sobre os efeitos de minha cor/
raça no fazer antropológico e me vi despreparada em relação a isso.
Me sentia triste e constrangida com as “resenhas” de modo geral e especialmente com o fato
de minha aparência ser apropriada como parâmetro de beleza. Os dias de ida à escola eram emocionalmente exaustivos, me questionava por que não conseguia elaborar uma resposta às situações ou
minimamente tensionar as “resenhas”, como acontecia em relação às contradições da “escola inclusiva”.
Sentia culpa em não exercer uma crítica, fornecendo respostas às situações de desigualdade racial, algo
que em outros contextos já fui capaz de fazer.
Só ao ler Kilomba (2019) é que me concedi o direito de desculpa sobre meu silêncio, e entendi
suas motivações para além da premissa de realizar a pesquisa acima de tudo. Ao analisar o racismo cotidiano, sendo as interações acima descritas um exemplo, a autora discute como o sujeito negro se silencia
em vários momentos diante da desigualdade racial não por apatia ou submissão, mas pelo entendimento de que, devido às estruturas racistas, sua fala será desqualificada. Além disso, a experiência do racismo cotidiano só pode ser traduzida em termos de trauma. Um tipo de dor indizível do qual raramente
se consegue palavras e símbolos correspondentes. O racismo cotidiano não é um momento isolado nas
biografias, mas a atualização de um passado colonial repleto de desigualdade e sofrimento. Uma experiência que antecede o sujeito negro e ao mesmo tempo o ultrapassa em termos históricos e territoriais.
Kilomba (2019) promove um deslocamento bastante significativo acerca deste tipo de experiência. É comum nos indagarmos ou sermos indagadas/os sobre o que fizemos depois de um episódio
racista, assumindo uma posição de que deveríamos ter reagido de alguma forma. Para a autora, essa
pergunta deve ser de ordem secundária, sendo prioritário responder à seguinte indagação: o que o
racismo fez ou faz comigo? Ao responder a esta pergunta o sujeito negro passa a ser sua primeira e
única prioridade. A necessidade de sempre respondermos à discriminação criaria uma espécie de dependência na qual nos colocamos à disposição do sujeito branco, dando a ele a capacidade de possuir e
controlar nossos corpos e mentes.
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As “transições de gênero” e outros modos de se afastar da
“negritude”
A “transição” era um termo nativo utilizado para descrever distintas formas de experienciar o
gênero, o que envolvia especialmente transformações corporais significativas a partir de processos de
hormonização. Ao todo cinco jovens estavam em processo de “transição de gênero” no espaço escolar,
mas nesta seção pretendo focar nas transições realizadas pelos integrantes do “coito”, especificamente. Estas situações ajudam a vislumbrar a questão racial na escola e se conectam a outras transformações corporais mais sutis, com discursos que buscavam o afastamento da negritude, ou melhor, de
uma visão estereotipada dela.
Era notável, por exemplo, o quanto Gisele estava “embranquecida” se comparada ao período
anterior à “transição”. O cabelo, antes escuro e cacheado, tornou-se liso e a cada semana mudava de
tom parecendo mais claro devido às “luzes” (técnica de pintura capilar para tingir os fios de loiro).
Antes de realizar os procedimentos capilares, Gisele se descrevia “morena”; após as intervenções, passou a ser descrita por colegas enquanto “galega” e se afirmava nesses termos. As intervenções na cor
do cabelo modificaram a impressão acerca de seu tom de pele pardo. A jovem também fazia uso constante de maquiagem, a base no rosto sempre estava um tom acima de sua cor e contribuía para seu
aspecto embranquecido.
Gisele costumava afirmar que a “trans padrão”, ou seja, ela mesma, era branca com o cabelo liso
e loiro. Traçava o que seria a trans fora do padrão citando uma amiga: “Ela é negra e tem um black. Tá
fora da curva. A trans padrão é branca, cabelo liso de chapinha com luzes, mas ela (a amiga) faz sucesso,
por ter assim uma beleza diferente, exótica”. Gisele comentava sobre a página no Facebook “Travestis e
Transexuais Brasileiras” (Dias, 2012), elencando enquanto referências às travestis e transexuais vencedoras de concursos de beleza, cuja aparência atendia ao que chamava “trans padrão”.
Este tipo de discurso era evocado como forma de aconselhamento a Bruno/a, que planejava no
futuro iniciar seu processo de hormonização – não o percebendo, necessariamente, enquanto uma
“transição de gênero”, pois independente do uso de hormônios, já era uma “LGBT” e “mulher trans”.
Bruno/a via em Gisele sua inspiração. Ele/a apresentava o cabelo crespo curtinho e dizia não ver a hora
de alisá-lo, porque o considerava muito “ruim” e “feio”. Certa vez comentei com Bruno/a que cabelo
tem textura e cor, não caráter, pra ser “bom ou ruim”, e que seu cabelo era bonito. Bruno/a discordou
e respondeu que eu só dizia essas coisas por ter um “cabelo desejável”. Fiquei em silêncio, sem saber
responder. Foi a primeira vez que entendi em profundidade o meu cabelo enquanto um privilégio.
Havia outros momentos dramáticos envolvendo o meu cabelo que, por ser liso, era objeto de
certa apreciação. Respondia a um conjunto de interpelações sobre minhas madeixas: se utilizava apliques, se já havia feito uso de alisantes ou chapinha, se já havia pintado, etc. Ao negar todas as perguntas,
recebia um olhar de admiração e até mesmo preces para evitar o “mau olhado”. Toda a valorização do
cabelo liso “natural”, ou sem “química”, fazia-me questionar o que era entendido pelo grupo em relação
a essas duas dimensões. Nunca considerei meu cabelo “natural” ou sem “química”, pois o uso de xampu,
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condicionador, creme de pentear e diversos outros produtos alteram a “natureza” dos fios, às vezes de
maneira tão drástica quanto o uso de alisantes.
Diversos pesquisadores (Rocha, 2016; Santos, 2017; Pontes, 2017) têm destacado o cabelo como um elemento importante para a reflexão sobre modos de performance ou não da negritude.
Mizrahi (2019), ao refletir sobre as políticas de cabelo entre mulheres negras pensando a construção
da persona feminina no funk carioca, demonstra como as diferentes formas de manipulação do cabelo
podem ser resposta ao racismo cotidiano, e um modo de agência das mulheres que lhes permite acessar
e circular entre diferentes espaços. A antropóloga debate, por exemplo, como os cabelos ambíguos de
suas interlocutoras, que não eram propriamente lisos ou crespos, ficando em um “não lugar”, propiciavam um modo de escape às representações mais tradicionais da negritude, de “cabelos afro” e também
de um cabelo propriamente branco, liso.
No campo aqui descrito, a ambiguidade racial era alcançada a partir da junção de um conjunto
de elementos corporais, em que o cabelo ganhava centralidade, mas não era o único aspecto. Se, no caso
de Gisele e Bruno/a, as modificações capilares asseguravam a demarcação da feminilidade e a afirmação
de um padrão estético eurocêntrico, nem todas/os poderiam ser bem-sucedidas/os no último aspecto.
O tom de pele mais escuro tornava o “embranquecimento” e certa ambiguidade racial impossível para
alguns. Isso ficava visível no caso de Breno, citado anteriormente, e de outras/os jovens negros que eram
motivo de “piada” ao tentar aproximar-se de uma estética branca.
Ao contrário de Gisele, o processo de feminilização de Carlinha não envolvia o embranquecimento. Ao deixar seu cabelo crescer, Carlinha optou não pelo alisamento e sim pelo uso de penteados
que valorizavam o cabelo crespo. As trancinhas rastafári eram, assim, a sua marca registrada. É interessante notar que enquanto a maior parte das/os jovens falava constantemente sobre alisar o cabelo
crespo e demonstravam uma atitude de desprezo em relação à negritude, Carlinha expressava orgulho
de sua cor/raça ao corrigir colegas que a chamavam de “morena”, afirmando-se “negra”.
Ela costumava compartilhar com as outras estudantes negras da escola técnicas de cuidado do
cabelo crespo, especialmente entre as que estavam interessadas em interromper o uso de alisantes. Carlinha comentava de forma entusiasmada sobre salões dedicados ao “cabelo afro” e descrevia a realização de um procedimento chamado “permanente afro”. Trata-se do uso de produtos específicos para o
cabelo crespo ou cacheado que busca dar “forma ao fio”, acentuando os cachos. Esse tratamento pode
estar associado à “transição capilar”, que consiste na interrupção de procedimentos químicos alisantes,
estando às vezes atrelada a uma afirmação da identidade negra, visto que o uso do cabelo crespo pode
ser um ato político (Pontes, 2017).
A “periferia” é eufemismo de “negritude”?
Durante o trabalho de campo o diálogo com os profissionais da escola foi pontual e esporádico.
Conversei com as/os docentes quando explicava o meu retorno à escola e apresentava de forma resumida a pesquisa que estava realizando. Diante de meu objeto de análise ouvia, em resposta, que a homofobia “é coisa do passado” e uma questão “resolvida na instituição”. As/os docentes apontavam, então,
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quais seriam os verdadeiros dilemas que a escola estava enfrentando: a “intolerância religiosa” sobre as
religiões de matriz africana, sendo jovens estudantes “evangélicos” apontadas/os enquanto principais
responsáveis por essa situação; a “indisciplina” dos rapazes que não levavam os estudos a sério e só
estavam atrapalhando as aulas; e, por último, a presença da violência na escola, tendo como expressão
máxima o “tráfico de drogas”.
A negritude enquanto indesejável também era mobilizada nos discursos dos profissionais a partir da discussão sobre os jovens periféricos. O termo informava sobre percepções estereotipadas e discriminatórias acerca dos jovens rapazes negros. A experiência de ser morador da periferia fazia com que
esses estudantes fossem descritos enquanto “vulneráveis” e “pauperizados” social/economicamente, ou
associados a potenciais ameaças à ordem institucional devido a seu comportamento “indisciplinado”,
incluindo a possibilidade de associação a atividades ilícitas.
Na coordenação escolar vislumbrei, em vários momentos, as/os jovens “indisciplinadas/os”. As
ações que levavam os e as estudantes a esse espaço eram diversas: conversas durante a aula, uso do celular, desrespeito aos colegas, desentendimentos com os docentes. Era curioso perceber que a incidência
dos rapazes era bem maior que a das moças, e, mais uma vez, eu via os sujeitos enquanto “negros”. Mas
nunca cheguei a perguntar se eles se percebiam nesses termos.
Ao refletir sobre o “enigma masculino no desempenho educacional”, Pinho (2013) observa que
há um descompasso entre a construção hegemônica da masculinidade e as expectativas de ser um “bom
aluno”. O autor menciona a importância de uma abordagem interseccional na qual gênero, raça e classe
devam ser considerados condicionantes que interagem com a instituição escolar. Ao analisar a evasão
de rapazes negros, o autor constata que, sendo o gênero a modalidade na qual a raça é vivida, a masculinidade negra porta um conjunto de contradições. Dessa forma, é importante pensar como essa masculinidade racializada lida com a escola e suas exigências, dentro da perspectiva de reprodução a partir
de um arbitrário cultural (Bourdieu e Passeron, 2010).
A desconfiança sobre os “periféricos” não se resumia aos receios de docentes, mas também dos
próprios discentes sobre certos colegas revelando aspectos da discriminação de gênero e racial ocorrida
dentro e fora da escola. Um exemplo disso envolvia um/a9 jovem estudante que pouco socializava com
os colegas, evitava falar sobre qualquer dimensão da sua vida e especialmente sobre o seu processo de
transformação corporal. Especulava-se que “ele/a” estaria realizando a mudança gradual do masculino
para o feminino não por ser uma “travesti” ou “trans”, mas para “passar por mulher” e enganar a Polícia:
- Olha o que eu sei dessa pessoa é o seguinte, era toda machinho antes. Mas aí um parente foi preso,
por que era traficante. Foi um baita perrengue pra família. Ele deixou muitas dívidas e o pessoal
ficou cobrando. Pra pagar o pessoal que o parente estava devendo, começou a fazer aviãozinho10,
só que pra isso precisava de cobertura, né? E assim, tu já viu a cor? É preta... com [cabelo] moicano
no tempo [antes da transição], cheia das pratas [em referência a cordões de prata], era muito visível
pra polícia. Aí percebeu que a polícia não abordava muito as mulheres. Começou a se vestir, a se
maquiar, e agora tá usando hormônios. (Diário de campo, 08 set. 2017).
9 O uso dos artigos femininos e masculinos diz respeito à mesma situação de Bruno/a.
10 Jovens que fazem transporte de drogas, em pequenas quantidades, dos traficantes para os usuários.
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O caso gerava debates sobre como se “ele/a” estaria se identificando com o feminino e gostando
da experiência ou apenas “suportando” a situação. Alguns acreditavam que a transformação corporal
nada tinha a ver com o envolvimento em atividades ilícitas, outros afirmavam que não era uma “travesti
verdadeira” por estar modificando o corpo de forma “estratégica”. As especulações sobre essa/e jovem
ficavam restritas aos estudantes, não chegando ao corpo pedagógico. Aliás, nunca ouvi qualquer história por parte dos profissionais da escola sobre uma garota ou um rapaz branco envolvido em atividades
ilícitas. E no nível de transformação corporal no qual a/o jovem se encontrava era descrito enquanto
uma “jovem trans negra”.
Acho interessante tanto o fato de que as/os jovens estudantes e as/os profissionais da escola não
estarem distantes dos sujeitos “periféricos”, em termos de localidade, quanto o modo como a espacialidade informa sobre cor/raça. O processo de negação e não reconhecimento da própria negritude
exemplifica a alienação a qual o sujeito negro é constantemente submetido. A negritude lida boa parte
do tempo não com aquilo que ela é, mas com fantasias brancas sobre ela, que projetam os aspectos
negativos e negados da própria branquitude no sujeito negro. Negras/os vivenciam constantemente o
processo de alienação, pois as imagens de negritude com as quais se é confrontada/o são pouco realistas
e nada elogiosas, tudo o que é desejável é associado ao branco (Kilomba, 2019).
Sobre o “acolhimento” e inclusões parciais, não a título de
conclusão
A escola aqui descrita revela um conjunto de potencialidades e contradições no que se refere
à “inclusão”. Em parte tal proposta realizava um deslizamento significativo acerca de quem deve ser
incluído, mobilizando outros marcadores sociais para além da deficiência. Contudo, uma abordagem
verdadeiramente “inclusiva” deveria levar em conta os múltiplos pertencimentos dos sujeitos, caso contrário pode (re)produzir exclusões.
Acerca das/os jovens lésbicas, gays, travestis e transexuais, era inegável que os sujeitos estavam
usufruindo de um espaço escolar mais democrático, considerando a proposta de “acolhimento” aos homoafetivos por parte da direção. O que não anula questionamentos sobre os modos como a ação estava
a ser promovida e seus impactos de médio e longo prazo: se pensarmos a escola enquanto um lugar de
produção de subjetividades, sobre a homossexualidade estava a ser construído um espaço de tolerância,
talvez não replicado na próxima gestão escolar.
No âmbito do JPC, o grupo modulava os marcadores de gênero e sexualidade, a partir de pressupostos heteronormativos, e de raça em torno da discriminação às religiões de matriz africana. Já no
que se refere ao “coito”, as contradições que perpassavam as “resenhas” com alguns dos estereótipos,
acerca de criminalidade compartilhados por docentes e discentes, ajudam a vislumbrar uma regulação
de gênero que convergia para a valorização da feminilidade e branqueamento no espaço escolar. Butler
(2014) discute como as proibições, mais do que coibir certas atividades, exercem outra função: a produção de parâmetros acerca dos sujeitos.
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A construção da escola democrática em termos de gênero e sexualidade, repleta de contradições
nesse aspecto, ocorria em paralelo às discriminações raciais. As “gays” eram os únicos jovens rapazes negros não associados aos estereótipos de masculinidade ameaçadora, devido a sua feminilização. Gisele,
com os processos de transformação capilar (luzes e alisamento), tornou-se “branca” na interpretação de
alguns colegas, reforçando o modelo de feminilidade por ela almejada distante do que classificava “exotismo”. A feminilização de Carlinha conferia valor positivo à sua cor/raça e ao seu cabelo. Por último,
não deixava de pensar se a aproximação dos “machos” com as “gays” e “travas” seria uma estratégia dos
rapazes para também se distanciarem dos estereótipos associados à masculinidade negra.
A interseccionalidade, enquanto proposta analítica, busca compreender a natureza da dominação, as relações de poder e as desigualdades dos grupos em conflito. Contribui, nesse sentido, com
o entendimento das relações sociais de forma transversal, escapando de binarismos como “vítimas” e
“opressores”, pois cada sujeito ocupa lugares de privilégios e opressão (Collins, 2019:318). Os estereótipos em torno da negritude no espaço escolar informam sobre a inseparabilidade de gênero, raça, sexualidade e religião, não podendo qualquer proposta de “inclusão” ignorar um destes marcadores com
a possibilidade de produzir outras formas de “exclusão”.
A questão racial na escola também foi uma redescoberta do ser pesquisadora. Medeiros (2018),
ao descrever sua experiência enquanto antropóloga negra realizando pesquisa com policiais civis, explora como a produção do conhecimento antropológico é atravessada pelas posicionalidades de pesquisadores e pesquisados. A reflexão sobre tais posicionalidades, ou melhor, “locais de fala”, possibilitou
à autora uma compreensão aguçada dos privilégios, adversidades e riscos em suas interlocuções com os
sujeitos. Até a realização da pesquisa de campo eu jamais havia refletido sobre que antropólogas/os são
dotadas/os de cor/raça e que essa posicionalidade influencia não apenas a realização do trabalho de
campo e a interlocução com os sujeitos, mas o modo como as situações serão interpretadas e apresentadas em termos de escrita. Se eu fosse branca, talvez tivesse visto as situações de modo distinto. Questionei em diferentes momentos se, no fundo, estava “problematizando” em excesso. O incômodo que
não era compartilhado com as e os interlocutores da pesquisa deveria ser visto enquanto um problema?
Não posso dizer que os sujeitos se sentiam excluídos em termos de raça no espaço escolar, afinal
eles não se percebiam negras/os e poucas vezes demonstravam-se incomodadas/os com as situações –
com exceção de Carlinha, cuja compreensão racial era distinta da de seus colegas. Foi graças a ela, que
participou da pesquisa “não participando”, que pude aprender as lições mais significativas do trabalho
de campo. Assim, parei de pensar no meu desconforto enquanto mera projeção e aprendi a não mais
ignorar minha subjetividade no processo de pesquisa, considerando essa característica uma importante
ferramenta analítica.
Ana Profírio é Mestra em Antropologia Social pela Universidade Federal de
Alagoas (UFAL) e Professora de Sociologia pela Secretaria de Estado da Educação de Alagoas (SEDUC-AL).
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109
É inclusão com exclusão? Sobre os entrecruzamentos de gênero,
raça e sexualidade no espaço escolar
Resumo: Este trabalho busca apresentar as potencialidades, limites e contradições envolvidas na construção de uma instituição escolar inclusiva em termos de gênero e sexualidade na cidade de Maceió-AL.
Este artigo deriva de uma pesquisa etnográfica sobre os processos de inclusão e exclusão no espaço escolar, a partir dos entrecruzamentos dos marcadores sociais de gênero, sexualidade, raça, classe e religião.
A instituição que será aqui descrita era denominada “inclusiva” e “diversa” por estudantes lésbicas, gays,
travestis e transexuais devido à proposta da direção escolar de combate à homofobia. O investimento
da gestão escolar não era na desconstrução dos preconceitos existentes entre estudantes e o corpo docente, mas o silenciamento de tais discursos no espaço público. Apesar de seu caráter contraditório, era
inegável que estas/es jovens estavam usufruindo de um espaço escolar mais democrático. O mesmo não
pode ser dito sobre os jovens rapazes negros, vistos sob o signo da “ameaça” por alguns profissionais da
instituição e entre as/os estudantes.
Palavras-chave: Gênero; Sexualidade; Racialização; Religião; Escola.
Is it inclusion with exclusion? On the intersections between gender, race, and sexuality in the school environment
Abstract: This work seeks to present the potentials, limits, and contradictions involved in the construction of an inclusive school institution in terms of gender and sexuality in Maceió, Brazil. This
article derives from ethnographic research on the processes of inclusion and exclusion in the school
space, from the intersection of social markers of gender, sexuality, race, class, and religion. The institution that will be described here was called “inclusive” and “diverse” by lesbian, gay, transvestite, and
transsexual students due to the school board’s proposal to combat homophobia. The investment of the
school management was not in deconstructing the prejudices existing between students and teachers,
but in silencing such discourses in the public space. Despite their contradictory character, it was undeniable that these young women were enjoying a more democratic school space. The same cannot be
said about young black boys, seen under the sign of “threat” by some professionals of the institution
and among students.
Keywords: Gender; Sexuality; Racialization; Religion; School.
RECEBIDO: 27/04/2020
APROVADO: 27/02/2021
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D O SSIÊ
Disputas por modos de
reconhecimento em políticas
afirmativas no Ensino Superior
brasileiro
Judit Gomes da Silva
Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba/PR, Brasil
https://orcid.org/0000-0002-1923-0047
Introdução
Busco problematizar neste artigo1 a produção de modos de reconhecimento de pessoa e as condições concretas de efetivação do direito ao ingresso estudantil, por meio de políticas afirmativas, em
uma universidade pública – a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Neste texto, a categoria
“política afirmativa” engloba as múltiplas ações criadas com o objetivo de estabelecer maior equidade
e diversidade de estudantes nas universidades, por meio de uma ou mais modalidades de acesso diferenciado, tais como: cotas raciais, socioeconômicas, para pessoas com deficiência, vagas suplementares
para indígenas e quilombolas.
O material etnográfico faz parte de minha pesquisa de doutorado realizada no acervo digital da
UFSC e no campus Reitor João David Ferreira Lima,2 especialmente em 2017 e 2018 (Silva, 2020).
1 Apresentei, em 2017, versões preliminares da discussão aqui proposta na IX Semana de Antropologia e Arqueologia, evento promovido
pelo Programa de Pós-graduação em Antropologia e Arqueologia da Universidade Federal do Paraná, e nas Jornadas Antropológicas – Fazeres Conjuntxs: Transbordando Saberes, organizado pelo Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade Federal
de Santa Catarina. Em 2018, apresentei uma versão mais próxima deste artigo no Núcleo de Antropologia da Política, do Estado e das
Relações de Mercado (NAPER/PPGAA/UFPR). Agradeço à professora Ciméa Bevilaqua e às e aos demais colegas do NAPER pelas
considerações. Agradeço também às/aos pareceristas desta revista pelas relevantes observações.
2 Trata-se da principal sede da UFSC, localizada em Florianópolis (SC), região Sul do Brasil. Sua fundação data de 18 de dezembro de
1960. A Universidade é composta por mais quatro campi localizados nos municípios de Araranguá (2009), Blumenau (2014), Curitibanos (2009) e Joinville (2009). A estimativa é de que 50 mil pessoas participem da comunidade universitária como docentes, técnicas/
os-administrativas/os e estudantes. Destas, cerca de 30 mil estudantes estão matriculados em 103 cursos de graduação presenciais e 14
cursos de educação a distância.
Nesta etnografia busco destacar os debates ocorridos nas sessões – gravadas – do Conselho Universitário,3 disponíveis no acervo digital, as quais trataram da normatização dos procedimentos para o
ingresso de estudantes por meio de políticas afirmativas na UFSC nos anos de 2012, 2013 e 2017.
Descrevo, principalmente, como coletivos de estudantes negras e negros4 e de indígenas se mobilizaram politicamente e disputaram, em espaços de resistência, de negociação e de decisão, os mecanismos
de reconhecimento percebidos como adequados para o ingresso por meio de ações afirmativas de corte
étnico e racial. Meu argumento é que, desse modo, estas e estes agentes também disputaram o controle
da própria política. Sigo a distinção entre pessoas e agentes sugerida por Strathern (2014), a partir de
sua pesquisa em Papua Nova Guiné. Segundo ela, "a pessoa é revelada nas relações; o agente, nas ações
(Strathern, 2014: 361). Nessa concepção, agentes e pessoas podem ser humanas e não humanas.
Os embates pelos mecanismos de reconhecimento por coletivos de estudantes negras/os e indígenas foram engendrados pelo encontro entre a Lei Federal nº 12.711/12 (Brasil, 2012b), a chamada
“lei de cotas”, e o Programa de Ações Afirmativas (PAA) da instituição de ensino. O PAA foi aprovado
em 2007 (UFSC, 2007) pelo Conselho Universitário da UFSC, “órgão máximo deliberativo e normativo [...] da instituição” (UFSC, 2019: 6). Esse programa foi assentado em três eixos: socioeconômico,
para pessoas com percurso escolar em rede pública de educação; racial, para pessoas autodeclaradas
negras (pretas e pardas), independentemente de percurso escolar; e étnico, para pessoas autodeclaradas
indígenas, independentemente de percurso escolar. De acordo com essa política, o reconhecimento de
pessoas negras e indígenas seria feito por comissões de validação da autodeclaração do fenótipo negro
e de vínculo a um povo indígena, como descrevo mais adiante.
Em 29 de junho de 2012, o PAA foi avaliado e reeditado até 2017. Entretanto, em 29 de agosto
de 2012, houve a promulgação da lei de cotas, com premissas e critérios distintos. A norma federal
reservou 50% das vagas das instituições federais de ensino médio e superior5 para pessoas egressas do
ensino público e, entre estas, pretas, pardas e indígenas (PPI)6. A lei previu a exclusividade da autodeclaração para o ingresso do grupo PPI. Previu, ainda, a sua implementação gradual no período de 2013
a 2016. Desse modo, desde 2012 passaram a coexistir na UFSC duas políticas afirmativas: o PAA e a
lei de cotas. No Conselho Universitário, o encontro da lei de cotas com o PAA gerou debates, disputas,
3 O Conselho Universitário da UFSC é composto pelo/a reitor/a e vice-reitor/a, como presidente/a e vice-presidente/a, respectivamente; pelas/os pró-reitoras/es das atividades de ensino, de pesquisa e de extensão; pelas/os diretoras/es dos Centros Universitários; por
representantes das Câmaras de Graduação, de Pós-Graduação, de Pesquisa e de Extensão; por um/a professor/a de cada Centro Universitário; por um/a representante dos docentes de Educação Básica; por representantes das/os servidoras/es técnico-administrativas/os; por
discentes da graduação e da pós-graduação; por representantes da comunidade externa, indicados pela Fundação de Amparo à Pesquisa e
Inovação do Estado de Santa Catarina, pela Secretaria de Estado da Educação, pelos sindicatos ou federações patronais e pelos sindicatos
ou federações de trabalhadores do estado catarinense. Cada representação possui uma suplência (UFSC, 2019:6).
4 Conforme critério estabelecido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que sigo, a categoria negra engloba aquelas
denominadas por preta e parda. Tal englobamento é fonte de controvérsias e discussões, como esboço no final deste artigo.
5 Em relação ao ensino superior público, a Lei n.º 12.711/12 consolidou um movimento majoritário no país. Pois, em 2012, 40 das 58
universidades federais já possuíam alguma modalidade de ação afirmativa (Feres Júnior & Daflon, 2012). Entretanto, instaurou uma
novidade nas instituições federais de ensino médio e técnico.
6 Conforme o art. 3º da Lei n.º 12.711/12, “as vagas de que trata o art. 1º desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas, em proporção no mínimo igual à de pretos, pardos e indígenas na população da unidade da Federação
onde está instalada a instituição, segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)”. Conforme dados
do IBGE (2010), Santa Catarina é o estado com a maior população branca (83,97%) e a menor população negra (15,4%) do país; e a
população indígena soma 0,3%.
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DISPUTAS POR MODOS DE RECONHECIMENTO EM POLíTICAS AFIRMATIVAS
controvérsias e tensões sobre direitos (Silva, 2020). E, especialmente, nos anos de 2012, 2013 e 2017,
também sobre modos de reconhecimento e sobre a padronização de critérios para o ingresso por meio
de ambos os dispositivos, como busco demonstrar.
Em 2012, o Conselho decidiu manter as comissões de validação de autodeclaração previstas para
o ingresso pelo PAA e a exclusividade da autodeclaração para o ingresso via lei de cotas. Em 2013, o
coletivo de estudantes negras/os defendeu, nesse Conselho, o fim da comissão de validação fenotípica
e a adoção da exclusividade da autodeclaração como mecanismo de controle para os eixos raciais de
ambas as políticas. Em contraste, o coletivo indígena defendeu a continuidade da comissão de validação de vínculo étnico. Trato de descrever como esse debate tensionou a decisão pela destituição
da comissão de validação da autodeclaração fenotípica e a continuidade daquela validação de vínculo
étnico, no PAA.
De outro modo, em 2017, o Conselho foi provocado a deliberar sobre tal tema devido às denúncias de que olhos azuis7 estariam ingressando na UFSC por meio da modalidade PPI (lei de cotas) e do
eixo racial do PAA. Com isso, o Conselho decidiu instituir a igualdade dos critérios para o ingresso,
mediada pelas comissões de validação do fenótipo negro e de vínculo às comunidades indígenas, em
ambas as políticas. Contudo, essa decisão aconteceu em uma sessão realizada sem a participação de
estudantes negras/os ou indígenas. Esse fato gerou conflitos e mobilizações contrárias por parte de
estudantes negras e negros. Tais agenciamentos pressionaram a administração da UFSC, que convocou
uma audiência pública, cujo efeito foi o de ambos os coletivos demarcarem, novamente, suas posições
divergentes em relação aos modos de reconhecimento. Na audiência, as ações mobilizadas por estudantes negras e negros produziram tensões, interlocuções e a possibilidade de participarem deste processo.
O interesse aqui é evidenciar os agenciamentos de estudantes na constituição de espaços de interlocução e de resistência, de acordos e de alianças, na formulação e execução dos procedimentos para
o ingresso via políticas afirmativas na UFSC. Como contraponto para a descrição etnográfica, busco,
na seção a seguir, colocar em perspectiva a discussão promovida pela revista Horizontes Antropológicos
em 2005, sobre cotas raciais e modos de reconhecimento nas universidades, com a decisão do Supremo
Tribunal Federal (STF) a esse respeito em 2012 e que tiveram como referência o procedimento instituído na Universidade de Brasília (UnB) para a validação da autodeclaração fenotípica.
Cabe ressaltar que a etnografia não tem como proposta fazer o estado da arte no que tange às
comissões de validação fenotípica ou de vínculo étnico. Contudo, considerando que a polêmica foi
posicionada em relação aos modos de reconhecimento de pessoas negras, destaco duas publicações recentes que tratam das especificidades das comissões: o livro Heteroidentificação e cotas raciais: dúvidas,
metodologias e procedimentos (Dias e Tavares Jr., 2018) e o dossiê temático A importância das Comissões
de Heteroidentificação para a garantia das ações afirmativas destinadas aos negros e negras nas universidades públicas brasileiras (Marques, 2019).
7 Categorias em itálico se referem às classificações locais que nomeiam, hierarquizam e explicitam múltiplas experiências e significados
do universo das relações enfocadas. Como indico mais adiante, nas sessões que trataram das políticas afirmativas em 2013 e 2017, a
categoria olhos azuis foi acionada por conselheiros como marcador de alteridade em relação a pessoas não reconhecidas com direito ao
ingresso pelas vagas reservadas às pessoas negras e indígenas.
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113
Modos de reconhecimento: o debate nacional, acadêmico e
jurídico
Com a implementação de políticas afirmativas para o ingresso de pessoas negras e indígenas nos
cursos de graduação em universidades estaduais e federais a partir do início dos anos 2000, uma questão se sobressaiu e gerou controvérsias: como reconhecer a pessoa titular do novo direito? Um amplo
debate em torno dessa questão foi centrado no procedimento adotado pela Universidade de Brasília
(UnB), primeira instituição de ensino federal a adotar políticas afirmativas. Em 2003, o Conselho de
Ensino, Pesquisa e Extensão da UnB aprovou o Plano de Metas de Integração Social, Étnica e Racial
(Resolução n° 38/2003), elaborado pela antropóloga Rita Segato e pelo antropólogo José Jorge de
Carvalho. A UnB adotou como critério para o ingresso via cotas raciais a análise fotográfica de candidatas e candidatos e, em caso de recurso, existiriam entrevistas (Carvalho, 2005, 2007; Segato, 2005),
procedimento não previsto no Plano em si. Esse protocolo seria amplamente discutido e questionado,
como passo a descrever.
A principal questão instaurada foi relacionada às cotas raciais. Questionou-se: como definir quem
é negro em um país percebido em grande medida como miscigenado? As argumentações contrárias à
instituição de mecanismos de reconhecimento do fenótipo sustentaram-se no direito da autoidentificação pela pessoa, materializada por meio da assinatura em documento denominado “Autodeclaração”.
Em contraste, as argumentações favoráveis ao reconhecimento por meio de uma comissão, muitas vezes denominada de banca, foram assentadas no direito ao exercício de controle da política pela
instituição. Nesse caso, ter-se-iam como critérios principais reconhecer traços fenotípicos como a cor
preta ou parda, a textura do cabelo, os formatos dos lábios e do nariz, relacionados a uma ascendência
africana. Tais elementos evocam a conexão com a diáspora africana, com os três séculos de vigência
do regime escravagista, bem como com as persistentes desigualdades econômicas, políticas e sociais
estruturadas pelo racismo (Almeida, 2018; Munanga, 1999, 2004) – Munanga (2004, 2006, 2007) é
um dos expoentes do debate sobre a política afirmativa para a população negra.
A instituição de comissões para o reconhecimento de pessoas negras gerou divergências, contradições e controvérsias (Anjos, 2005; Bevilaqua, 2005a e 2005b; Carvalho, 2005; Corrêa, 2005; Fry,
2005; Ribeiro, 2005; Sansone, 2005; Schwarcz, 2005; Silveira, 2017). Em uma série de artigos publicados pela revista Horizontes Antropológicos8, em 2005, essa questão foi debatida intensamente, tendo
como referência as críticas ao procedimento adotado pela UnB, quanto à implementação de cotas raciais,
bem como à participação de antropólogos9 e antropólogas no que foi denominado tribunal das raças.
Discutiu-se, principalmente, temas como a essencialização da categoria raça e a introdução dela
na política estatal, concebida, pela maioria, como potencialmente perigosa e capaz de produzir o acirramento de conflitos inter-raciais. Tal como expressou em seu argumento Maggie (2005:291): “[...]
8 Os editores do periódico abriram espaço para a discussão da questão mobilizada pela ação da UnB, debate do qual participaram 18
cientistas de diferentes áreas – principalmente da Antropologia, História, Sociologia e Genética (Teixeira e Steil, 2005).
9 Silveira (2017) faz uma reflexão sobre a participação de antropólogas/os em bancas de verificação fenotípica a partir de sua própria
experiência nesses eventos na UFPR, no período de 2009 a 2012. Silveira toma como ponto de partida as críticas feitas por Maio e Santos
(2005) ao trabalho do antropólogo nessas bancas.
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DISPUTAS POR MODOS DE RECONHECIMENTO EM POLíTICAS AFIRMATIVAS
‘tribunal’ do tipo inaugurado na UnB só faz colocar a nu o que está por trás das cotas raciais, ou seja,
o ideário racial que instaurou no mundo a separação e a marca que cria sociedades divididas”. Nesta
perspectiva, ponderou-se que a autodefinição (autodeclaração) nos termos da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) seria o método mais adequado10. Muitos dos argumentos
contrários à política de corte racial e à comissão de validação fenotípica foram ancorados na Ciência
Genética. Apesar de o contexto sócio-histórico político ser outro, tais argumentos evocaram o exercício da Antropologia (Física) que, em boa medida, fundamentou e legitimou a hierarquização racial no
Brasil do final do século XIX até os anos 1930 do século XX (Schwarcz, 1993, 2005)11.
Em 2009, a constitucionalidade da adoção de cotas raciais e de instrumentos para o reconhecimento de pessoas negras pela UnB foi questionada pelo Partido Democratas (DEM), por meio de uma
Ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, a ADPF 186. A ADPF 186 pedia a
declaração da inconstitucionalidade das políticas afirmativas em geral, entretanto, a argumentação se
deu em relação às cotas raciais e ao seu mecanismo de controle na UnB12. Em conexão com muitas das
posições manifestadas no dossiê publicado pela Horizontes Antropológicos, o DEM argumentou que:
(a) o Brasil não é racista; (b) a desigualdade é de classe; (c) a banca de validação da autodeclaração fenotípica seria um tribunal racial; (d) a categoria raça não deve ser inclusa na lei; (e) a genética comprovou
a inexistência de raças; (f ) a ação afirmativa poderia alavancar e/ou acirrar conflitos entre brancos e
negros; e (g) os atos da UnB feriam o princípio de igualdade e, simultaneamente, criavam uma discriminação reversa (Democratas, 2009) 13.
O julgamento dessa ação ocorreu em 26 de abril de 2012. O relator, ministro Ricardo Lewandowski (2012:3), explicitou que o questionamento fundamental era “saber se os programas de ações afirmativas que estabelecem um sistema de reserva de vagas, com base em critério étnico-racial, para acesso
ao ensino superior, estão ou não em consonância com a Constituição Federal (CF)” 14. Ele argumentou
que raça é uma “categoria histórico-social” e, desse modo, “é possível empregar essa mesma lógica para
autorizar a utilização, pelo Estado, da discriminação positiva com vistas a estimular a inclusão social de
grupos tradicionalmente excluídos” (STF, 2014: 65).
10 O Brasil é signatário da Convenção 169 da OIT desde 2002.
11 Schwarcz (1993:66) argumenta que, em concomitância com a emergência das teorias e dos debates sobre a hierarquização e diferenciação das raças, perspectiva defendida pela escola de Nina Rodrigues, ocorreu a delimitação de disciplinas afins. E “os estudos antropológicos nascem diretamente vinculados às ciências físicas e biológicas [...] e as análises etnológicas mantêm-se ligadas a uma orientação
humanista”. Schwarcz (2005) criticou as comissões de validação fenotípica que, em seu ponto de vista, assemelhavam-se ao determinismo
biológico apregoado por Nina Rodrigues, médico da Faculdade de Medicina da Bahia. No final do século XIX e início do XX, Rodrigues
defendeu a medicina legal na identificação e determinação de “criminosos” a partir da craniologia.
12 Andressa Lewandowski (2014) etnografou a circulação dos autos dessa ação, com mais de duas mil páginas, em diferentes instâncias
do STF. A ADPF se inscreve em uma categoria que requer a declaração de inconstitucionalidade em relação a termos constitucionais que
são considerados “preceitos fundamentais”.
13 A ADPF 186 teve dois pareceres ane xados ao processo: o primeiro, assinado pelo geneticista Sérgio D. J. Pena e, o segundo, com as
assinaturas da antropóloga Yvonne Maggie, do sociólogo Demétrio Magnoli, do cientista político Bolívar Lamounier e do historiador
José R. P. de Góes. Consta também no processo o artigo de Maio e Santos (2005) publicado na Horizontes Antropológicos.
14 Ricardo Lewandowski realizou audiências públicas nos dias 3, 4 e 5 de março de 2010. Nestas, representantes de universidades que
instituíram políticas de ações afirmativas apresentaram dados que embasavam a efetividade dessas iniciativas. Conforme informações do
trabalho de campo, em uma das audiências, o presidente da Comissão de Ações Afirmativas da UFSC expôs os dados do PAA/UFSC.
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115
Lewandowski julgou constitucionais as cotas raciais e os mecanismos de reconhecimento como
a autoidentificação e a heteroidentificação. Isso incluía a elaboração de procedimentos para a verificação fenotípica, como questionários, requerimento de declarações assinadas, entrevistas, exigência
de fotos e a formação de comitês posteriores à autoidentificação pela/o candidata/o. Na composição
desses comitês deveria ser considerada “a diversidade de raça, de classe econômica, de orientação sexual e de gênero” (STF, 2014: 84). A maioria dos ministros argumentou no mesmo sentido. Como
exemplo, Luiz Fux refutou o entendimento de que a comissão da UnB se configurasse em um tribunal
racial. Argumentou que tal procedimento seria “uma medida indispensável para a efetividade da ação”,
pois “a discriminação e o preconceito existentes na sociedade não têm origem em supostas diferenças no genótipo humano. Baseiam-se, ao revés, em elementos fenotípicos de indivíduos e grupos sociais” (STF, 2014: 119).
Em contraste, o ministro Gilmar Mendes advogou que, com tal procedimento, “se conferiu a
um grupo de iluminados esse poder que ninguém quer ter, de dizer quem é branco, quem é negro,
numa sociedade altamente miscigenada” (STF, 2014: 169). Ainda que seus argumentos denotassem
desacordo com o procedimento institucional para o reconhecimento fenotípico e com o corte racial da
política da UnB, Mendes votou pela improcedência da ADPF 186. Em decisão unânime, o STF julgou
constitucionais as ações afirmativas e seus mecanismos de controle. Como desdobramento do debate
nacional sobre a legalidade e a legitimidade da adoção de políticas afirmativas, bem como da discussão
no Congresso Nacional de projetos de lei que previam essa política nas instituições federais de ensino,
foi promulgada em 2012 a lei de cotas15. Descrevo a seguir como o encontro da lei de cotas com o Programa de Ações Afirmativas da UFSC instaurou no Conselho Universitário um debate controverso e
tensionado sobre modos de reconhecimento.
Modos de reconhecimento do fenótipo e do vínculo com povo
indígena
Como mencionei acima, o Conselho Universitário da UFSC aprovou em 2007 o Programa de
Ações Afirmativas (PAA), materializado na Resolução Normativa (RN) n.º 008/2007 (UFSC, 2007),
com vigência até 2012. O PAA foi elaborado por uma comissão composta por representações de diferentes instâncias da instituição, por entidades indígenas e do movimento negro de Santa Catarina.
Foram reservadas 30% das vagas da graduação, em todos os cursos e turnos, assim distribuídas: 20%
para pessoas egressas do Ensino Fundamental e Médio da rede pública e 10% para autodeclaradas
negras, independentemente do percurso escolar. Também foram estabelecidas dez vagas suplementares – em toda a universidade – para pessoas autodeclaradas indígenas, independentemente de percurso escolar. A resolução criou a Comissão Institucional de Acompanhamento e Avaliação das Ações
15 Em 1999, a então deputada federal Nice Lobão (Partido da Frente Liberal – Maranhão, atual Democratas) propôs o Projeto de Lei
nº 73/1999, que previa uma política de acesso ao ensino superior público especificamente para estudantes de escolas públicas. Em 2004,
a Presidência da República encaminhou ao Congresso Nacional a propositura nº 3.627/04, que indicava reserva de 50% das vagas das
instituições federais de educação superior para estudantes egressos de escolas públicas, negras/os e indígenas. Da tramitação do PL nº
73/199 – e apensados – produziu-se a Lei 12.711/12.
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DISPUTAS POR MODOS DE RECONHECIMENTO EM POLíTICAS AFIRMATIVAS
Afirmativas (doravante Comissão de Ações Afirmativas), constituída por servidores docentes e técnico-administrativos da universidade e por discentes indicados pelo Diretório Central dos Estudantes
(DCE). Essa comissão teve uma participação importante nos desdobramentos da política própria da
UFSC. A RN n.º 008/2007 também previu a validação da autodeclaração de fenótipo negro e da
de vínculo a um povo indígena.
Em 29 de junho de 2012, o Conselho apreciou o relatório de avaliação dos cinco anos de vigência do PAA, feito pela Comissão de Ações Afirmativas (Tassinari et al. 2012; Tragtenberg et al. 2012)
e aprovou sua reedição por meio da RN n.º 22/2012. A resolução alterou a composição da Comissão
de Ações Afirmativas, incluindo também representações negras, indígenas e do governo estadual. Dois
meses após, em 29 de agosto, a lei de cotas foi promulgada.
A lei de cotas e o PAA conflitaram em duas questões fundamentais. Primeiro, a lei de cotas foi
assentada na perspectiva socioeconômica, ou seja, podem concorrer às vagas regidas por essa política
exclusivamente pessoas egressas de instituições de ensino públicas. Segundo, a lei previu a exclusividade da autodeclaração como mecanismo de reconhecimento de pessoas negras e indígenas. O PAA, por
sua vez, previu o ingresso de negras/os e indígenas sem restrição de percurso escolar. Previu, também,
o reconhecimento do fenótipo, por meio de entrevista com comissão institucional (RN nº 22/2012),
e do vínculo étnico – conforme art. 11, da RN n.º 22/2012, verifica-se: “I – qual povo indígena pertence; II – vínculos com o povo indígena a que pertence; III – situação em relação às línguas do povo
indígena a que pertence” (UFSC, 2012b:4).
Em 16 de outubro de 2012, o Conselho se reuniu para fazer a adequação da reserva de vagas da
instituição, considerando as exigências da lei de cotas para esse ano, que previa uma reserva mínima
de 12,5% das vagas16. Nessa sessão, debateu-se amplamente sobre os procedimentos para o reconhecimento de pessoas negras. Não estavam presentes coletivos de estudantes da UFSC ou de entidades do movimento negro de Santa Catarina. Porém, dado o fato de que as sessões do Conselho são transmitidas ao vivo desde 2 de setembro de 2012 (Ródio, 2008), é possível sugerir que
delas participassem remotamente.
A disponibilização da gravação no acervo digital da instituição transformou, em certo sentido,
o caráter “privativo” das sessões do Conselho para o de “público”. Tal fator possibilitou a observação
e a descrição etnográficas das ações de agentes que, em diferentes posições, agenciaram a palavra. Indico as posições das pessoas que falaram no Conselho e nomino somente a reitora (2012-2016) e
o reitor (2016-2017).
Retomo a sessão de 16 de outubro. A primeira mulher reitora da UFSC, professora do Centro
de Filosofia e Ciências Humanas, Roselane Neckel (2012-2016), presidiu a sessão, com a presença de
11 conselheiras e 29 conselheiros – a proporção de cerca de um terço de conselheiras mulheres foi
uma constante nas sessões que observei. No início, a reitora informou que o Ministério da Educação
recomendara o acompanhamento da implementação da lei de cotas pela Procuradoria Federal na ins16 Entre 2012 e 2015, a UFSC adequou, progressivamente, 50% das vagas da instituição para serem regidas pela lei de cotas. A lei de
cotas previu a implementação mínima de 12,5% ao ano, entre 2013 e 2016. Em 2012, para o Vestibular 2013, o Conselho decidiu pela
regência da lei de cotas em 20% das vagas que eram reservadas para o eixo socioeconômico do PAA.
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tituição. Por isso, convidou o procurador a participar da sessão e solicitou ao Conselho a autorização
de sua presença. Requisitou também a anuência para os membros da Comissão de Ações Afirmativas e
de outras pessoas interessadas – com cargos em instâncias da instituição dedicadas ao tema em pauta.
Após os ritos iniciais, a reitora passou a palavra ao Procurador-chefe Federal na UFSC. O procurador argumentou que a lei federal previu a exclusividade da autodeclaração e, o Programa, por sua
vez, previa uma comissão para validá-la. Ele evocou a precedência da lei federal e disse que, caso se
mantivessem as comissões de validação, “o espírito da lei vai estar sendo ferido” (UFSC, 2012a). Como
autoridade jurídica, ele alegou que a autodeclaração era um direito e que havia jurisprudência afirmando-a como tal, sendo, portanto, a tendência no âmbito jurídico dela ser efetiva para confirmar vínculos
de classe, étnico ou outro.
Em consonância com o procurador, a pró-reitora de Graduação17 argumentou que a autodeclaração é baseada na presunção da verdade e que “a resolução trata de conciliar duas ordens jurídicas; e
como a lei federal é superior, qualquer candidato poderia se opor a ser validado” (UFSC, 2012a). Em
contraste, o presidente da Comissão de Ações Afirmativas buscou demonstrar que ambas as políticas
teriam eficácia somente com controle institucional e com participação social. Ele recordou que o STF
havia julgado constitucionais os procedimentos para a validação de autodeclaração.
O encontro das duas políticas com seus modos de reconhecimento distintos produziu, portanto, divergências e disputas assentadas no argumento da igualdade das condições de ingresso. De um
lado, foi defendida a permanência da comissão e, de outro, a adoção exclusiva da autodeclaração. Após
mais de três horas de apreciação18 e sem gerar um “consenso” sobre a questão, o Conselho decidiu pela
exclusividade da autodeclaração para pessoas pretas, pardas e indígenas (PPI), optantes pela lei de cotas – como prevê a lei; e pela continuidade da validação da autodeclaração para negras/os e indígenas
optantes do PAA – como este previa (UFSC, 2012c).
A seguir, descrevo as implicações engendradas por essa decisão e como o Conselho decidiu pela
padronização do ingresso, por meio da autodeclaração, para pessoas negras, via PAA, bem como para
pretas, pardas e indígenas (PPI), via lei de cotas, a partir de 2014.
A destituição da comissão de validação fenotípica
Aprovado no vestibular 2013, um candidato autodeclarado negro, optante do PAA, não foi assim reconhecido pela comissão institucional, em 18 de fevereiro de 2013. Ele recorreu junto a essa
comissão, que reafirmou sua decisão em 25 de fevereiro. O candidato apelou à próxima instância re17 A Pró-Reitoria de Graduação (PROGRAD) é o órgão executivo das políticas para a graduação. A pró-reitora da PROGRAD preside
a Câmara de Graduação (CGRAD), órgão deliberativo e consultivo que trata, entre outros assuntos, da regulamentação do processo
seletivo para os cursos de graduação. Compõem a CGRAD coordenadoras e coordenadores dos cursos de graduação e representantes
discentes. No processo de adequação das vagas da UFSC à lei de cotas, recorrentemente, foi anunciada a constituição das normativas do
processo seletivo em diálogo com a Comissão de Ações Afirmativas e com entidades negras. Essa informação traduzia os termos de um
acordo (Almeida, 2003) entre distintas posições na instituição e para além dela.
18 Apreciar é uma categoria que consta do Estatuto da UFSC. Embora ausente do Regimento Interno do Conselho Universitário, é
amplamente utilizada e expressa o conjunto das técnicas acionadas no processo decisório: analisar, avaliar, discutir, debater, deliberar. A
reitora, ao passar a palavra à plenária, coloca em apreciação a matéria.
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cursiva, a Câmara de Graduação (CGRAD)19. Conforme informações a que tive acesso no trabalho de
campo, o candidato anexou ao recurso documentos com fotos e medidas do corpo, entre outros elementos. A CGRAD analisou o recurso e, por unanimidade, o deferiu em 24 de abril (UFSC, 2013a).
Na validação da autodeclaração fenotípica, se o reconhecimento é mútuo assegura-se a vaga, e
uma percepção de justiça se efetiva. No entanto, a divergência e possíveis conflitos causados pela não
reciprocidade trazem à tona a fluidez negociada da categoria negra, assim como traduz a percepção de
outrem sobre quem pode ser a pessoa de direito. Em relação a essa questão, e tendo como referência
sua participação em bancas de validação fenotípica na UFPR, Silveira (2017:88-89) argumenta que “os
tipos inclassificáveis – e incômodos – expunham um problema sério e muito maior, a saber: não há, no
Brasil, um critério classificatório disponível para este tipo de exercício ‘classificatório’”.
A situação do candidato foi evocada algumas vezes pelas representações da CGRAD e pela pró-reitora de Graduação nas sessões dos dias 13 e 17 de setembro de 2013, que trataram das normas para
o vestibular 2014. Destaco, na sequência, a sessão do dia 13; a do dia 17 descrevo no próximo item.
Em 2013, a primeira sessão que tratou das políticas afirmativas ocorreu em 10 de setembro.
Entretanto, o conselheiro discente do Centro de Ciências Econômicas solicitou vista do processo por
não concordar com a proposta de resolução, que previa a transição da reserva de vagas do eixo racial do
PAA para a lei de cotas (como discorro em Silva, 2020). Conforme prevê o regimento do Conselho, a
discussão da matéria foi suspensa e retomada em 13 de setembro.
Nessa data, de início, havia uma explícita polarização entre agências representativas no debate
sobre as especificidades das políticas para negras e negros. De um lado, o conselheiro docente relator da
proposta de resolução, as representações da CGRAD, da Pró-reitoria de Graduação e a do coletivo de
estudantes negras/os se manifestaram pela exclusividade da autodeclaração em ambas as políticas. Por
outro lado, o conselheiro discente relator de vista e as representações docentes da Comissão de Ações
Afirmativas defenderam a permanência da comissão de validação de autodeclaração fenotípica. Instaurada a polêmica, a discussão foi centralizada, como no ano anterior, entre seguir a normativa do programa local ou a da lei de cotas, ambas respaldadas pelo STF. A questão era: igualdade no ingresso por
meio da exclusividade da autodeclaração para negras e negros ou pela validação desta por uma comissão.
Foi no bojo dessas disputas que uma estudante do curso de direito, ao ter a palavra, possibilitou
uma estabilização do debate naquele momento. A discente iniciou sua longa explanação, com um pedido de desculpas pelo tom emocionado de sua voz. Com um texto em mãos escrito coletivamente, ora
o lia, ora se expressava livremente. Ela argumentou:
Eu sou aluna negra, sou aluna mãe, sou aluna bolsista permanência, eu sou aluna cotista. [...]. Eu
sou a única aluna universitária da minha família. Somos em mais de 400 negros em Tubarão, eu
sou a única. [...] Nós, alunos negros e negras da UFSC, nos fazemos presentes hoje para solicitar
que essa resolução, em seus artigos, contemple as nossas demandas reais. Que a resolução respeite
o critério da autodeclaração. Entendemos que uma banca examinadora é um meio de controle
da política. Contudo, sabemos que não existe ninguém capaz de identificar a negritude de um
19 A regulamentação do processo seletivo vestibular na UFSC é atribuição da Câmara de Graduação, presidida pelo/a titular da Pró-reitoria de Graduação, como destaquei em nota anterior.
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indivíduo senão ele mesmo. Aqui no Brasil, a gente criou um mito de que somos negros, pretos,
pardos, mulatos, escurinhos e qualquer outra coisa. Acontece que o racismo sabe muito bem quem
ele quer. Se você não é branco, você não é branco e ponto. Se você não é branco, você vai para o
leste [de Santa Catarina] e não vai poder jogar futebol. Se você não é branco, o segurança sabe
muito bem quem você é quando você está entrando dentro do shopping. Então, eu peço que vocês
estudem e parem com essa história de pretos e pardos. Somos negros. Quem não é branco é negro.
[...]. O racismo, a discriminação e as desigualdades, elas nos ferem e nos excluem diariamente. E na
hora que nós vamos tomar posse dos nossos direitos, é inadmissível que uma banca analise a nossa
tomada de direito. Eu passei pela banca examinadora. Eu sei o constrangimento do que é aquilo,
com a minha cor aqui [reconheço-a preta], sabendo de todas as dificuldades que eu tinha, eu tremia quando passei por aquela banca. Os meus primos, os meus amigos, as pessoas, os negros que
estão ali fora, se recusam muitas vezes a entrar no vestibular porque eles não querem se submeter
àquilo, porque é vexatório! Entendeu? Quem vai dizer para nós se somos negros se não nós próprios? Senão a nossa origem familiar? [...] A negritude para nós não está presente na cor da pele e
sim na identificação. A banca examinadora é indigna e vexatória, ela fere a dignidade do negro. [...]
Banca de brancos a gente já passa no corredor do shopping! A gente já passa no elevador! Banca de
brancos a gente já sabe muito bem onde a gente vai encontrar (UFSC, 2013b).
A estudante falou por todo o tempo com muita emoção e, ao fim, foi aplaudida. Ela se expressou desde o lugar da pessoa de direito e representava um nós. Naquele momento, parece, foi percebida
como representante de todas as entidades do movimento negro que fizeram a luta pela política afirmativa, e sua voz ecoou com efetividade. De algum modo, a potência da argumentação evidenciando o seu
“lugar de fala” (Ribeiro, 2017) teve eficácia.
A estudante de direito ressaltou que a restituição da dignidade de negras e negros não passava
por uma banca de validação – banca de brancos – e sugeriu que houvesse um acompanhamento efetivo
no ingresso, durante o percurso universitário e também de egressos20. E argumentou que o reconhecimento institucional ocorria apenas na banca. Ainda, deslocou a questão do fenótipo para a de autoidentificação. Sua ação dissolveu, em muito, as dúvidas de conselheiras e conselheiros em relação ao
modo de reconhecimento legítimo e mais adequado.
A manifestação da estudante de direito, a situação do candidato que não foi reconhecido negro
pela banca, os posicionamentos das representações da CGRAD e da pró-reitora de graduação, bem
como as disposições da lei de cotas provocaram e tensionaram a decisão. Por maioria, o Conselho decidiu pela adoção da exclusividade da autodeclaração também para o ingresso via eixo racial do Programa
e destitui a comissão de validação fenotípica.
Essa decisão provocou divergências, discussões e resistência da parte de entidades do movimento negro – com trajetória de lutas pelas políticas afirmativas –, da Comissão de Ações Afirmativas da
universidade e de estudantes indígenas, como descrevo a seguir.
20 O Programa de Ações Afirmativas prevê o acompanhamento da inserção socioprofissional das alunas e alunos egressos dessa política.
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DISPUTAS POR MODOS DE RECONHECIMENTO EM POLíTICAS AFIRMATIVAS
O reconhecimento de vínculo étnico
Na sessão do dia 13 de setembro, não houve participação de discentes indígenas e de entidades
do movimento negro externas à UFSC. No dia 17 a pauta tinha como referência as especificidades
das políticas para indígenas. Compareceram as representações de estudantes negras e da Comissão de
Ações Afirmativas, presentes na sessão anterior e as representações de estudantes indígenas e de entidades do movimento negro. Nessa sessão uma docente, representante da Comissão de Ações Afirmativas,
relatou a preocupação dessa instância com as implicações de se destituir a validação da autodeclaração
fenotípica e argumentou que isso acarretaria a diminuição do ingresso de pessoas negras na UFSC.
A docente ponderou ainda que, se a mesma decisão se mantivesse para a autodeclaração de vínculo étnico, inviabilizaria a inserção de indígenas pelas vagas suplementares do Programa, pois propiciaria uma abertura para que “outras pessoas” ingressassem por essa modalidade de vagas. Se assim
fosse, não haveria sentido “manter as vagas suplementares para indígenas baseada na autodeclaração”
(UFSC, 2013c). A docente explanou que, para fazer o reconhecimento desse vínculo, conta-se com a
participação de antropólogos e antropólogas e se busca identificar as redes de relações da pessoa com o
povo indígena ao qual declarou pertencer.
A continuidade dessa comissão também foi defendida por um vereador (do Partido dos Trabalhadores), docente da UFSC e aliado de entidades do movimento negro. Ele relatou sua participação,
desde o início da discussão sobre políticas afirmativas, junto ao Sindicato Nacional dos Docentes das
Instituições de Ensino Superior. Criticou a destituição da comissão de validação fenotípica, argumentando que a decisão ocorreu “de forma enviesada”.
Em consonância, a então coordenadora nacional do Movimento Negro Unificado (MNU), militante em Santa Catarina, afirmou que foi um estranhamento para as entidades negras a destituição
da comissão, pois não houve um amplo debate, e a discussão chegou “no pé onde está hoje”. Ainda,
a coordenadora argumentou que “nós, negros, somos discriminados pelo fenótipo que carregamos.
Para instituir as cotas, nós usamos os mesmos elementos [com] que nós somos discriminados, que é o
elemento sociológico”. Contrastando com o argumento da estudante de direito, que evocou a autoidentificação, a coordenadora questionou: “de que forma nós vamos fazer essa comissão? Isso nós vamos
dialogar” (UFSC, 2013c).
Desse modo, o debate centrou-se, em um primeiro momento, na decisão da sessão anterior. A
presença de estudantes indígenas, com uma mínima ação por meio de palavras, significou a defesa da
comissão de validação do vínculo étnico. Assim como os argumentos de representações negras, ausentes no dia 13 de setembro, e da representante da Comissão de Ações Afirmativas orientaram a decisão
do Conselho pela continuidade da validação de vínculo para optantes das vagas suplementares para
indígenas. E, para as pessoas que concorressem às vagas para indígenas da lei de cotas, a exigência seria
a autodeclaração. Essa decisão foi materializada na RN nº 33/13 (UFSC, 2013d).
Retomando a discussão do item anterior, com o sentido de fundamentar a percepção de conselheiras e conselheiros em relação à destituição da comissão de validação fenotípica, assentada na con-
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fiança do autorreconhecimento, descrevo a seguir como a categoria olhos azuis mobilizou o entendimento, no Conselho, sobre quem é negro e quem não é.
Olhos azuis
Nas sessões do Conselho, em muitas das argumentações pró e contra o reconhecimento do fenótipo por meio de uma comissão, a categoria olhos azuis foi acionada como a alteridade máxima em
relação à categoria negra. Isso significando que um corpo de cor branca e de olhos claros não seria alvo
de racismo, não seria reconhecido como um corpo que poderia ser discriminado e inferiorizado racialmente. Nesse sentido, olhos azuis constituiria a exemplificação de uma pessoa que não se autodeclararia
de cor preta ou parda, não se reconheceria e não seria reconhecida negra. Portanto, nesta perspectiva,
os eventuais “riscos” a que a UFSC se submetia, ao adotar a exclusividade da autodeclaração, eram
minimizados frente às críticas em relação à banca feitas pelo coletivo de estudantes negras/os e pelas
representações da CGRAD e da Pró-Reitoria de Graduação.
Em contraste, quando da deliberação sobre o reconhecimento de vínculo étnico, um docente
conselheiro argumentou: “Duvido que alguém se autodeclararia negro ou indígena tendo olhos azuis,
que forjaria documentos e correria o risco de ser exposto publicamente”. Divergindo do englobamento
de indígenas no sentido dado à categoria, um estudante indígena argumentou que seu primo tem olhos
azuis, pois a mãe dele é indígena, casou-se com um alemão e “ele [o primo] mora na terra indígena e
é indígena porque vive na comunidade” (UFSC, 2013c). Portanto, se a categoria olhos azuis pôde ser
apreendida em oposição à negra, o mesmo não ocorreu em relação à indígena.
Os argumentos da estudante de direito contra o procedimento de validação adotado na UFSC
indicaram que tal modelo evocou lembranças de discriminações que possa ter sofrido em elevadores,
shoppings e outros espaços que acentuam o sinal diacrítico das relações racializadas dadas pelo fenótipo. Diante do protocolo experienciado como indigno e vexatório, a exclusividade da autodeclaração tornou-se preferível para o coletivo de estudantes negras/os. Ressalto que a proposta da estudante exigia um acompanhamento efetivo no ingresso, durante o percurso universitário, bem como aos
egressos da política.
Podemos aproximar a essa chave interpretativa a indignação demonstrada pelo docente da
UFSC – também vereador – e pela coordenadora nacional do MNU pelo fato de a destituição de tal
comissão não prever nenhum outro modo de reconhecimento considerado mais efetivo. Essa coordenadora asseverou que a comissão de validação foi destituída sem um amplo debate com as entidades
que, “desde o início”, fomentaram e colaboraram com a formulação do Programa de Ações Afirmativas.
Ainda, salientou que o reconhecimento mútuo era parte intrínseca da política e propôs um diálogo no
sentido de se criar um procedimento consensual.
Pode-se apreender a partir das concepções do MNU, do docente vereador e do coletivo de estudantes negras um deslocamento de perspectivas que traduz, talvez, os anseios de gerações distintas e
que não é o foco deste trabalho. Contudo, sugiro, as e os jovens negras e negros que adentraram a universidade por meio da política afirmativa manifestaram o desejo de constituir novas formas de relação
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com a instituição e com o modo de fazer (a) política. Nesse sentido, é possível dizer que o convite ao
diálogo feito pela coordenadora do MNU também foi feito pelo coletivo de estudantes.
Em 2015, como desdobramento do encontro conflituoso entre a lei de cotas e o PAA, esse programa foi reformulado e passou a conter vagas suplementares para pessoas negras, indígenas e quilombolas (Silva, 2020). Para o reconhecimento, seguiu-se as decisões anteriores: a autodeclaração para
pessoas negras, optantes do PAA, como também para pretas, pardas e indígenas optantes da lei de
cotas. Manteve-se a comissão de reconhecimento de vínculo para indígenas, e se instituiu comissão
para o reconhecimento de vínculo de quilombolas com uma comunidade – optantes pelas vagas suplementares do PAA (UFSC, 2015). Em 2017, o Conselho foi mobilizado a decidir, novamente, sobre os
modos de reconhecimento, tanto para a política local, como para a lei de cotas, como descrevo a seguir.
Igualdade no ingresso pelo reconhecimento mútuo
Após quatro anos da destituição da comissão de validação da autodeclaração de negras e negros,
ocorrida em 2013, o Conselho a restabeleceu em 2017, estendendo a sua atuação também para optantes da lei de cotas. Com isso, a igualdade no ingresso pelos eixos étnico e racial de ambas as políticas
afirmativas foi efetivada, por meio do reconhecimento mútuo. Entre meados de fevereiro e início de
março de 2018, fiz trabalho de campo no campus da UFSC, em Florianópolis, e pude observar, por um
dia, a dinâmica instaurada para a realização das bancas de verificação fenotípica, que aconteceram no
período de 19 a 22 de fevereiro daquele ano.
No dia 19, cheguei ao Centro de Ciências da Saúde da UFSC um pouco antes do início das
bancas. Pelos corredores do prédio circulavam estudantes negras e negros uniformizados com camisetas na cor laranja onde se lia, em letras grandes, “Informações Vestibular UFSC”. Conversei com a
presidenta da comissão, professora negra do Centro de Educação, sobre minha participação no local
como pesquisadora. Ela disse que eu poderia ficar na sala de espera, onde as candidatas e candidatos
aguardavam para passar por uma das duas bancas, que ocorreram simultaneamente – não observei as
bancas para indígenas. Esse espaço comportava em torno de 25 pessoas sentadas e ficou praticamente
cheio na maior parte do dia, com chegadas e saídas regulares e orientadas pela dinâmica do procedimento. Sentada no fundo, no canto direito, observei as idas e vindas das convocadas e dos convocados
– reconheci a maioria negra.
Numa mesa próxima à porta, duas estudantes negras, com as camisetas laranjas, eram responsáveis pela organização na sala. Elas solicitavam às pessoas que entravam a assinatura no documento de
registro da presença, entregavam uma senha para a ordem do atendimento e o termo de consentimento
de captação de imagem para ser preenchido, assinado e devolvido. O clima era o mais ameno possível. As
discentes eram responsáveis também pela trilha musical que, durante o período de realização das bancas,
tocou músicas que exaltavam o empoderamento e a estética negra. E divulgaram eventos dos centros
acadêmicos e a “calourada preta” – atividade organizada pelo coletivo de estudantes negros e negras.
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A presidenta da banca se apresentou na sala duas vezes pela manhã e duas vezes à tarde. Em
todas essas ocasiões, leu um texto que, de início, falava do racismo no Brasil. Depois, informava sobre a
constituição heterogênea da banca, conforme os critérios estabelecidos pelo STF e concluía:
O papel dessas comissões é verificar se os candidatos são efetivamente pertencentes ao grupo racial
negro. Como no Brasil a discriminação racial se dá pela aparência, ou fenótipo, essas comissões devem ter como critério de pertencimento racial o fenótipo. Essa norma está estabelecida desde 2012
pelo Supremo Tribunal Federal. A UFSC está comprometida com as políticas de igualdade racial
e diversidade, como parte do seu desenvolvimento como instituição pública, de qualidade e com
compromisso social. Contamos com a colaboração de vocês, beneficiári@s das ações afirmativas
de recorte racial, para promover esse tipo de ação na UFSC, para que se tenha sucesso no processo
de luta pela igualdade racial (Passos, 2019: 151).
No artigo “A atuação da Comissão de Validação de Autodeclarados Negros da UFSC: uma experiência político-pedagógica”, Passos (2019) descreveu que as bancas foram compostas por, no mínimo,
cinco pessoas. Sendo servidores e servidoras docentes e técnicas, estudantes e representantes do movimento negro. Conforme a autora, “foram convidadas aquelas pessoas favoráveis às cotas raciais e que
possuíam alguma compreensão sobre as questões raciais no Brasil” (ibid., 2019:149). Passos ressaltou
que “a representação estudantil foi uma reivindicação das e dos estudantes e, portanto, indicada por
seus pares” (id.).
Entretanto, como descrevo, os agenciamentos políticos de estudantes negras/os, que culminaram em suas participações nas bancas e nas atividades organizativas, foram efeito dos conflitos instaurados pela decisão do Conselho ao restituir a comissão de validação fenotípica. Tal confronto estabeleceu-se na relação com a Secretaria de Ações Afirmativas e Diversidades (SAAD), criada em 2016 para
tratar das questões relacionadas às políticas afirmativas, de inclusão e de gênero.
A decisão que restituiu a comissão de validação fenotípica ocorreu na sessão do Conselho realizada em 27 de junho de 2017, sem a participação de representações das entidades do movimento
negro, de estudantes negras/os ou de indígenas. Nessa ocasião, foi evocada uma reunião, em 2016,
entre o reitor da UFSC, Luiz Cancellier de Olivo (2016-2017) e representantes da Educafro (Rede de
Pré-vestibulares para Negros e Carentes) – organização de proeminência e atuação nacional referente
às ações afirmativas. A Educafro denunciou possíveis fraudes de pessoas autodeclaradas negras, pretas,
pardas e indígenas ingressantes pela lei de cotas e pelo eixo racial do PAA. Também mobilizou o Ministério Público de Santa Catarina, que intimou a UFSC a verificar tais denúncias. O reitor instituiu
uma comissão que “averiguou” as e os ingressantes por exclusividade de autodeclaração, no período de
2014 a 2016. Tal averiguação fez a titular da SAAD solicitar ao Conselho a instituição da comissão de
validação para optantes de ambas políticas afirmativas (UFSC, 2017).
O reitor colocou o tema em apreciação, o que suscitou, de imediato, vários questionamentos
e argumentos contrários. O primeiro conselheiro docente a intervir afirmou: “A lei deixa bem claro
que é autodeclaração”. O segundo, lembrou que “essa comissão já existiu e os estudantes pediram para
excluir”. O terceiro interpelou: “Qual a função da comissão se há autodeclaração? Quais critérios ob-
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jetivos, científicos, a comissão vai julgar?”. E o quarto conselheiro docente, em sequência, acrescentou:
“É algo que nos leva ao que foi a questão nazista dos judeus e arianos” (UFSC, 2017).
Após essas manifestações, a titular da SAAD argumentou que “a verificação é para garantir a
vaga de direito para quem tem direito legal” e que tal procedimento se sustenta na decisão do STF e em
normativas que orientam a constituição de bancas de validação para cotas raciais no serviço público –
previstas na Lei nº 12.990/2014. Ela apresentou as situações relativas às denúncias e, em virtude de os
processos de denúncias estarem sob sigilo, tal exposição não foi gravada.
Depois da exposição da titular da SAAD, a gravação da sessão foi reiniciada. Apercebe-se que
tal apresentação gerou um deslocamento no tom e no sentido dos argumentos dos conselheiros. Com
a palavra, um deles disse que foi um dos seis a votar contra o fim da comissão e mencionou ter falado,
à época, que “ia ter olhos azuis fazendo medicina e direito, já aconteceu e vai continuar acontecendo”.
E sugeriu: “podia ser feito uma banca só com negros, onde os únicos constrangidos seriam os fraudadores”. Por seu turno, outro conselheiro – que se identificou negro – explicitou que, sem a validação,
há distorções, e era necessário adequar-se à nova realidade, para “assegurar o direito de todas as pessoas
de entrar na universidade em suas vias de acesso. É uma questão de direito. E que os negros possam
usufruir desse direito” (UFSC, 2017).
A compreensão de que olhos azuis ingressaram na universidade via cotas raciais, mediados pela
autodeclaração, silenciou o Conselho. Não houve debate, apenas três manifestações favoráveis e uma
de justificativa de posicionamento contrário. Em suas manifestações, os conselheiros favoráveis à validação fenotípica deram ênfase ao direito conquistado por negras e negros e, também, a não permitir
que olhos azuis nele se reconheçam ou pretendam se reconhecer. O Conselho, por fim, decidiu pela
validação da autodeclaração fenotípica e de vínculo étnico em ambas as políticas afirmativas, como
registra a RN n.º 101/2017.
O fato de a decisão ter acontecido à revelia da presença de estudantes negras/os da UFSC provocou desdobramentos conflituosos. O Movimento Negro em Defesa das Cotas (MNDC), formado por
discentes da universidade, publicou uma “Nota de repúdio às ações da SAAD”, em 19 de setembro de
2017, em sua página na rede social Facebook. Na nota, questionou a falta de diálogo e de “transparência”:
Uma comissão de verificação para estudantes autodeclarados foi criada, numa manobra incoerente
e humilhante, onde a auto identidade do estudante será colocada a prova. Nós não vamos permitir
a manutenção da higienização social que ocorre dentro do meio acadêmico. Em momento algum
nenhuma entidade representante do movimento negro foi consultada, deixando claro o mau caratismo impregnado nesta instituição comandada pela elite branca (MNDC, 2017).
Em contraste, estudantes indígenas manifestaram apoio à decisão do Conselho, por meio da
“Ata da Assembleia da Comunidade Acadêmica Indígena da Universidade Federal de Santa Catarina”, de 25 de setembro de 2017, publicada na página do Facebook intitulada “Estudantes Indígenas
da UFSC” (EI-UFSC). Nesta, solicitaram que a “verificação do [de] PPI siga os moldes da banca de
verificação das vagas suplementares para indígenas”. E argumentaram: “acreditamos que este método
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será justo e confiável garantindo a inserção dos indígenas na vida acadêmica, com o conhecimento e
apoio da comunidade acadêmica indígena, bem como dos povos a que pertencem” (EI-UFSC, 2017).
O MNDC fez várias assembleias estudantis no sentido de serem reconhecidos como agentes
com direito à interlocução entre os demais estudantes e a gestão da instituição. Tal mobilização política provocou a SAAD a convocar a “Audiência Pública: verificação de Autodeclaração de Negros e
Indígenas e combate às fraudes”, realizada em 23 de novembro de 2017. Aproximadamente 60 pessoas
participaram, no auditório do Centro de Ciências da Saúde. Entre estas, estudantes indígenas, negras
e negros, docentes, representações de entidades do movimento negro e eu, como pesquisadora. A mesa
de abertura foi composta por representações do Conselho Estadual das Populações Afrodescendentes
(CEPA); da Ordem dos Advogados do Brasil em Santa Catarina (OAB/SC); do Ministério Público
Estadual; do presidente da Comissão de validação de autodeclaração de pretos e pardos da UFPR e,
como mediador, o diretor administrativo da SAAD.
O representante da UFPR, convidado primeiro a falar, apresentou o procedimento adotado por
essa instituição, que consiste em uma comissão composta, de forma heterogênea, por no mínimo três
pessoas – necessariamente uma delas negra. A entrevista dessa instância com as candidatas e candidatos
é gravada. Na sequência, o representante do CEPA, estudante da UFSC, argumentou que somente
pessoas pretas deveriam compor a comissão nessa universidade. Ele salientou que, para além da preocupação com a validação, a instituição deveria garantir a permanência de estudantes, priorizando o acesso
às bolsas permanência, de moradia, assim como o tratamento psicológico. Sua entonação e o modo de
exposição explicitaram a existência de tensões entre estudantes negras/os e a direção da SAAD. Ao ter
a palavra, a representante da OAB/SC acentuou que falaria enquanto “mulher preta” e não enquanto
“OAB”. Ela ressaltou que as “fraudes precisam diminuir” e a comissão de validação a ser instituída
deveria considerar a composição: “preto para preto; pardo para pardo e indígena para indígena”. Consoante, a representante do MP considerou interessante a constituição da comissão “por cor para evitar
constrangimentos de quem está sendo avaliado”.
Após as falas, foi aberto o diálogo com o público. As manifestações de estudantes negras/os
endossaram e tensionaram a compreensão de que a comissão teria de ser formada por pares que “se
reconhecem”. Sugeriram também formas de recepção, de acolhimento, de políticas de permanência, de
“transparência” na destinação dos recursos, de formação sobre relações étnico-raciais e de espaços de
discussão para aprofundar a reflexão sobre metodologias de reconhecimento. A comissão de validação
da UFPR – bem como as instituídas em outras universidades federais – foi classificada por um estudante
negro como uma “experiência lombrosiana dentro da universidade”21. Tal classificação evidencia a permanência controversa de um dos acentos do debate realizado por meio da revista Horizontes Antropológicos, em 2005. Por outro lado, uma estudante indígena defendeu a importância da comissão para seus
21 Em meados dos anos de 1870, com o ascenso das teorias raciais, a hipótese de leis biológicas e naturais orientou a interpretação do
teórico da escola positivista italiana Cesare Lombroso. Seu argumento foi assentado na criminalidade como um fenômeno físico e hereditário. Essa perspectiva, que considerava a “miscigenação”, o “cruzamento racial”, como um fator de “degeneração”, teve grande alcance
no Brasil até os anos de 1930, especialmente na Antropologia Física desenvolvida pela Escola de Medicina da Bahia, cujo expoente foi
Nina Rodrigues (Schwarcz, 1993, 1994).
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DISPUTAS POR MODOS DE RECONHECIMENTO EM POLíTICAS AFIRMATIVAS
pares optantes pelas cotas da lei federal, alegando querer conhecê-los, “até mesmo pra poder ajudar”.
Pois, justificou, conhecia apenas as e os indígenas que ingressaram na UFSC via vagas suplementares.
Em concomitância com esse embate, as enunciações de estudantes negras e negros explicitaram
a disputa pela centralidade da categoria preta. Tal agenciamento teve o sentido de buscar deslocar a
categoria negra como englobadora das categorias preta e parda. Simultaneamente, a categoria preta foi
sendo posicionada como o lugar desse englobamento e, talvez, de diluição da parda. Nessa perspectiva,
o autorreconhecimento como preto e preta teria o potencial de minimizar as margens de “dúvidas” sobre o corpo que carrega traços fenotípicos marcados por uma ascendência africana e cuja referência não
é dada exclusivamente pela cor. Tais agenciamentos evidenciaram que as e os estudantes são os maiores
interessados na política afirmativa e desejam ser reconhecidos como interlocutoras/es nas questões acerca das múltiplas dimensões da vida acadêmica. A deliberação no Conselho a esse respeito, sem a presença delas e deles, foi apreendida como uma afronta, uma desconsideração (Cardoso de Oliveira, 2011).
Não obstante, estudantes indígenas expressaram que a comissão mediaria o encontro com parentes de diferentes povos, denotando o desejo de alargar as redes políticas e de sociabilidades. Portanto,
sugiro, os coletivos de estudantes negras/os e indígenas disputaram, com perspectivas distintas, o controle das políticas afirmativas na UFSC.
Considerações finais
A presente etnografia realça a complexidade de um debate em que alternativas opostas foram reconhecidas, em diferentes momentos, como legítimas ou legitimáveis. Essa complexidade se expressou
na oscilação do Conselho em relação à existência ou não de uma comissão para o reconhecimento de
candidatas e candidatos às políticas afirmativas de corte étnico e racial da/na universidade.
Concomitante à preocupação de estudantes com a defesa de um direito coletivo, os debates no
Conselho explicitaram experiências com a banca de validação fenotípica traduzidas como vexatórias.
Essas experiências concretas de sofrimento, tanto quanto as disposições da lei de cotas acerca da autodeclaração, levaram o Conselho, em 2013, a dissolver a referida comissão, instituindo a igualdade no
ingresso, por meio da exclusividade da autodeclaração, para pessoas negras via PAA, e para pretas, pardas e indígenas via lei de cotas. Ao mesmo tempo, o Conselho decidiu pela continuidade da comissão
para o reconhecimento de vínculo étnico na política local.
Já em 2017, após a averiguação de fraudes, esse Conselho instituiu a igualdade no ingresso via
políticas afirmativas pelo reconhecimento mútuo do fenótipo e de vínculo étnico. Essa oscilação permite entrever o desafio enfrentado pela UFSC para compatibilizar a perspectiva coletiva de defesa de
um direito, que é a dos movimentos sociais e os efeitos indesejáveis que, no plano individual, as condições de acesso a esse direito poderiam produzir.
A etnografia dos diferentes momentos desse debate demonstra os deslocamentos gerados pelas
disputas por modos de reconhecimento. É possível dizer que as políticas com corte racial e étnico são
apreendidas pelos dois grupos de estudantes como direitos coletivos. Efeito das históricas mobilizações
dos movimentos negro e indígena contra as distintas e recorrentes formas de opressão e de desigual-
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dades. Desse modo, a mutação ou não das regras tem o sentido das ações de negras/os e indígenas na
produção de seus direitos. A redistribuição das vagas da universidade não atende a todas as pessoas
interessadas, portanto, é foco de disputas em diferentes planos. A exigência, de um lado, de um efetivo
controle institucional visa justamente a assegurar um direito ainda em consolidação. E, por outro, a
disputa pela definição do “como fazer” busca assegurar uma relação política de interlocução entre estudantes e a gestão da UFSC.
Em 2018, durante a realização das bancas, múltiplos signos foram acionados e evocados por pessoas negras, como as músicas, as roupas, os adereços, os penteados. Todo o cenário buscava amplificar
a potência política do acontecimento com novas agências incorporadas ao espaço institucional. Dessa
maneira, buscou-se gerar um ambiente de acolhida para as e os novos estudantes e, ao mesmo tempo,
sugiro, indicar-lhes uma referência na UFSC: o coletivo de discentes negras e negros, potencializando
a participação e o acréscimo no/do grupo.
A forma do evento evidenciou que as negociações entre essas/es estudantes e a gestão universitária propiciou o estabelecimento de um acordo com a feitura da banca em novos termos e com novas
agências. Aproximo a noção de acordo com a de “acordo pragmático” proposta por Almeida (2003),
com o sentido de descrever a possibilidade de estabelecimento de pontos de comensurabilidade entre
ontologias incomensuráveis, com base nos efeitos pragmáticos de determinados eventos ou ações. Esse
acordo evoca a fala da coordenadora nacional do MNU, feita no Conselho, em 2013: “De que forma
nós vamos fazer essa comissão? Isso nós vamos dialogar”.
Entretanto, especialmente na audiência pública, em 2017, estudantes também reivindicaram o
estabelecimento de políticas de permanência específicas, como bolsas, vagas para a moradia estudantil
e atendimento de saúde especializado – principalmente, o serviço psicológico é muito solicitado. Essas
demandas explicitam que as disputas pelas políticas afirmativas, como sabemos, não se restringem aos
modos de reconhecimento para o ingresso na universidade.
Judit Gomes da Silva é Doutora em Antropologia e Arqueologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), pesquisadora associada ao Núcleo de Estudos
Afro-Brasileiros (NEAB) e ao Núcleo de Antropologia da Política, do Estado e
das Relações de Mercado (NAPER) nessa mesma instituição. Também é servidora pública na UFPR.
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133
DISPUTAS POR MODOS DE RECONHECIMENTO EM POLÍTICAS AFIRMATIVAS
NO ENSINO SUPERIOR BRASILEIRO
Resumo: Neste artigo, problematizo as disputas ocorridas em diferentes momentos acerca dos mecanismos de reconhecimento de pessoas autodeclaradas negras e indígenas para o ingresso estudantil na
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), por meio de políticas afirmativas. Busco evidenciar o
modo como, em 2013, coletivos de estudantes negras e indígenas tensionaram a decisão do Conselho
Universitário sobre as comissões de validação de autodeclaração. Em 2017, esses coletivos voltaram a
se mobilizar em torno de nova decisão do Conselho a esse respeito, porém, em assembleias estudantis e
audiência pública. Trata-se de uma etnografia baseada em trabalho de campo realizado na UFSC entre
2017 e 2018, bem como na observação das sessões do Conselho que trataram das políticas afirmativas,
disponíveis on-line, no período de 2012 a 2017. As disputas evidenciaram os agenciamentos desses estudantes pelo controle da política e suas perspectivas distintas em relação aos modos de reconhecimento.
Palavras-chave: Ensino Superior; Políticas Afirmativas; Comissões de Validação de Autodeclaração;
Modos de Reconhecimento; Direito à Educação; Processos de Decisão.
DISPUTES FOR METHODS OF RECOGNITION IN AFFIRMATIVE POLICIES IN
BRAZILIAN HIGHER EDUCATION
Abstract: In this article, I problematize the disputes on the method used for the recognition of black
and indigenous students to entry in the Federal University of Santa Catarina State (UFSC), in Brazil,
through affirmative policies. I want to emphasize the way how, in 2013, groups of black and indigenous students created tension over the University Council’s decision about the ethnic-racial self-declaration validation commissions. Again, in 2017, these groups got mobilized around the Council’s
new decision about that matter but, this time, it took place in assemblies and public hearings. It is an
ethnography based on fieldwork held on from 2017 to 2018 at UFSC, as well as watching the Council’s online sessions which discussed these policies over 2012 to 2017. The disputes evinced the agency
of these students to the control of those policies and their distinct perspectives regarding the method
of recognition.
Keywords: Higher Education; Affirmative Policies; Self-declaration Validation Commissions; Methods of Recognition; Rights to Education; Decision Process.
RECEBIDO: 31/05/2020
APROVADO: 11/01/2021
134
CAMPOS V.22 N.1 p. 111-13 4 j a n . j u n . 2 0 2 1
CAMPOS V.22 N.1 P. 135-158 JAN.JUN.2021
D O SSIÊ
“Pedagogia do evento”: o dia da
consciência negra no contexto
escolar
Rosenilton Silva de Oliveira
Universidade de São Paulo (USP), São Paulo/SP, Brasil
hTTPS://orcid.orG/0000-0003-2952-4329
Letícia Abílio do Nascimento
Universidade de São Paulo (USP), São Paulo/SP, Brasil
hTTPS://orcid.orG/0000-0001-6848-4679
Introdução
Os dispositivos legais podem ser considerados como uma tecnologia imprescindível na indução
de estratégias pedagógicas com vistas à superação do racismo nos contextos escolares, uma vez que eles
indicam uma mudança nas políticas públicas. Assim, para além de propor modos de ensino e aprendizagem, no contexto da educação formal, a alteração na legislação impacta diretamente nas ações dos
sujeitos, no sentido de dar forma aos ideários da nação (Oliveira, 2018: 349).
Em seu artigo 206, a Constituição Federal promulgada em 1988 institui a educação como um
direito subjetivo e, no 216, reconhece a participação dos diferentes grupos formadores da sociedade
como responsáveis pela configuração do patrimônio cultural material e imaterial brasileiro. No escopo
do artigo 242, destaca a importância da diversidade étnico-racial1 da população nacional e estabelece
que “o ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias
para a formação do povo brasileiro” (Brasil, 1988).
Estes princípios constitucionais foram recepcionados pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB, lei 9394/1996) em diversos pontos, sobretudo no artigo 26 (que trata da organização
1 Neste texto utilizaremos o termo “étnico-racial”, com hífen, para tratar das identidades demarcadas nas noções de raça e etnia enquanto
categorias sociológicas. Nas citações diretas e referências à legislação, entretanto, preservaremos a grafia tal como consta nestes documentos.
curricular). Em 2003, por meio da lei 10.639, foram acrescidos os artigos 26-A e 79-B, com vistas à inclusão da obrigatoriedade do ensino de história e cultura africana e afro-brasileira e das comemorações
do Dia da Consciência Negra na escola, respectivamente. Em 2008, o artigo 26-A foi novamente modificado por meio da lei 11.645, a fim de acrescentar a temática indígena. Estas reformulações são, em
boa medida, resultado da atuação decisiva de grupos dos movimentos negro (Gomes, 2017) e indígena
(Munduruku, 2012).
A partir dessas mudanças na legislação, coube ao Conselho Nacional de Educação (CNE) estabelecer as diretrizes para a sua consecução. Neste movimento, dois documentos são essenciais: o Parecer CNE/CP nº3, de 10 de março de 2004, e a Resolução nº 1, de 17 de junho de 2004, que instituíram
as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de
História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. No caso do ensino da história e cultura indígenas, o
CNE aprovou, em 2015, o Parecer nº 14 que estabeleceu as Diretrizes Operacionais para a implementação da história e das culturas dos povos indígenas na Educação Básica. Com a normatização dos
artigos 26-A e 79-B da LDB, observa-se no contexto educacional a reorganização do debate sobre dois
temas: a necessidade de inclusão da temática étnico-racial dentre os conteúdos da formação docente, e
o combate ao racismo na escola (Cavalleiro, 2005).
O consenso teórico estabelecido a partir deste período destaca a importância da Educação das
Relações Étnico-Raciais, tanto com relação à população indígena quanto aos negros e brancos, para o
processo de consolidação da democracia brasileira (Oliveira, 2018), pois possibilita aos vários sujeitos
uma atuação mais efetiva na produção de conhecimentos, atitudes, posturas e valores, de modo a educar os cidadãos para conviver com o outro. Deste modo, como demostram Amilcar Araujo Pereira e
Warley da Costa (2015), observa-se a ampliação e o estabelecimento de ações nos contextos escolares
com vistas à consecução dos princípios preconizados nas normativas legais.
Tendo como referência este contexto, neste artigo refletimos sobre as práticas escolares e projetos2
pedagógicos concernentes às relações étnico-raciais, desenvolvidos na Educação Básica, mais especificamente a partir da incorporação das comemorações do Dia da Consciência Negra (celebrado em 20
de novembro) no currículo escolar (Brasil,1996, art. 79-B). Buscamos entender o processo de positivação e transformação da memória do negro no Brasil.
Neste diapasão, pretendemos analisar o contexto de produção e consecução de atividades de
comemoração do Dia da Consciência Negra em duas escolas públicas localizadas em São Paulo (SP),
entre 2018 e 2019. Para tanto, acionamos a noção de “pedagogia do evento”, definida por Rachel Rua
Bakke como o processo em que “implanta-se a lei através da realização de eventos, cortes temporários
no tempo e na prática escolar, em que se discute um assunto, antes não abordado, para voltar a abandoná-lo no restante do ano letivo” (Bakke, 2011: 86).
2 Nos contextos escolares, os projetos são roteiros de atuação produzidos individual ou coletivamente por docentes ou equipe gestora
(coordenação pedagógica e direção), com vistas a atender um objetivo (ou conjunto) de aprendizagem. Podem estar circunscritos a uma
área disciplinar (Língua Portuguesa, Matemática etc.), a uma temática (cidadania, meio ambiente, projeto de vida etc.) ou responderem
a demandas institucionais (propostas de intervenção desenvolvidas pelas Secretarias de Educação, por exemplo). Os projetos não substituem os currículos e conteúdos, mas dialogam com eles a fim de potencializá-los. É possível, portanto, que vários projetos sejam realizados concomitantemente na escola, envolvendo grupos distintos de sujeitos, a partir de uma situação-problema. Neste texto, grafamos este
termo em itálico, para destacar que se trata de uma categoria nativa. Sobre este tema ver Moura e Barbosa (2006).
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“PEDAGOGIA DO EVENTO”
Este texto está organizado em três partes. Na primeira, refletimos sobre o movimento antirracista na educação brasileira, demonstrando que a controvérsia em torno do tema da pluralidade étnico-racial no ensino escolar ultrapassa o campo das disputas sobre os conteúdos a serem ensinados, para
alcançar a própria noção de Estado nacional (Gomes, 2009). Na segunda, apresentamos o contexto
empírico da pesquisa de campo e as escolhas teórico-metodológicas. Por fim, na terceira parte, discutimos os principais achados etnográficos.
O movimento antirracista na educação
Ainda que o ideal de diversidade e aceitação seja repetido como um mantra pelos profissionais da
educação, os três séculos de escravidão no Brasil deixaram profundas marcas na sociedade nacional, as
quais se perpetuam até os dias de hoje, de modo que o racismo, que estrutura as relações sociais no país
(Almeida, 2019), não ficou do lado de fora dos muros da escola. Manifestado não apenas com a discriminação dos sujeitos negros, essa violência simbólica aparece circunscrita nos dispositivos centrais da
educação, como o currículo. Não se trata, portanto, somente de garantir o acesso e a permanência da
população negra nos bancos escolares, mas de empreender um processo de descolonização dos currículos com vistas à efetivação de uma educação antirracista (Silva & Meira, 2019).
No contexto brasileiro, desde o início do século XX, e de modo mais incisivo a partir da reabertura democrática em 1988, o currículo pode ser compreendido como um campo de disputas, onde
se estabelece qual conhecimento deve ser privilegiado na escola. Considerando as desigualdades que
marcam as relações entre os grupos que compõem a sociedade, se percebe que as populações negra e
indígena encontram maiores dificuldades na efetivação de uma educação democrática e crítica para
todos (Young, 2007).
Conforme demonstrou Eliane Cavalleiro (2005), as pesquisas na área de educação das relações
étnico-raciais há muito denunciaram o empobrecimento curricular causado pela rigidez do caráter
conteudista e alertaram sobre a necessidade de diálogo entre escola e realidade, refletindo sobre a negação e silenciamento de culturas. Neste sentido, é necessário se estabelecer uma ruptura epistemológica
no campo educacional de modo que o campo de disputa do currículo atenda as demandas e ações coletivas de movimentos sociais, rompendo com as posições hegemônicas que subalternizam as demais,
como ocorre sistematicamente com a cultura e história afro-brasileira e indígena.
Empreender uma educação escolar antirracista pressupõe, por um lado, reverter o mito da democracia racial sistematizado em obras como a de Gilberto Freyre e acionado como política de Estado
a partir dos anos 1930 (DaMatta, 1997) e, por outro, explicitar as múltiplas formas em que o racismo opera na sociedade brasileira. Tal como demonstrou Caio Candido Ferraro (2019), por meio de
práticas pedagógicas são produzidas cotidianamente formas de invisibilização de elementos positivos
referentes às populações negras ou indígenas. Ou seja, a escola não nega a existência das diferenças
étnico-raciais, entretanto, não reconhece os seus aspectos estruturantes nas relações de ensino e aprendizagem que reiteram desigualdades.
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A alteração na legislação educacional que obriga a uma reformulação curricular e das ações didáticas é um dispositivo fundamental neste processo. Neste ponto, concordamos com Nilma Lino
Gomes (2012: 105) que a discriminação racial é um fator de seletividade na instituição escolar e que
a modificação na lei “abre caminhos para a construção de uma educação antirracista que acarreta uma
ruptura epistemológica e curricular, na medida em que torna público e legítimo o ‘falar’ sobre a questão
afro-brasileira e africana”.
Com a alteração da LDB por meio da Lei 10.639/03, abriram-se precedentes importantes para
que a diferença racial não fosse mais vista como um recorte temático do currículo escolar legítimo (um
“tema transversal”), mas, pelo contrário, que fosse incorporada como parte integrante do processo de
constituição dos sujeitos e da história de nosso país. Neste sentido, as Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação das Relações Étnico-Raciais estabeleceram três princípios estruturadores para a implementação do ensino de história e cultura africana e afro-brasileira na Educação Básica: a) consciência
política e histórica da diversidade; b) fortalecimento de identidades e de direitos e c) ações educativas
de combate ao racismo e a discriminações. Como se lê no documento: “Estes princípios e seus desdobramentos mostram exigências de mudança de mentalidade, de maneiras de pensar e agir dos indivíduos em particular, assim como das instituições e de suas tradições culturais” (Brasil, 2004: art. 20)
Uma vez estabelecidos estes princípios, tem-se início o desafio de colocá-los em prática. Muito
mais do que novos conteúdos a serem abordados, eles precisam ser interpretados “como uma mudança
cultural e política no campo curricular e epistemológico que poderá romper com o silêncio e desvelar esse e outros rituais pedagógicos a favor da discriminação racial” (Gomes, 2012: 105). Assim, já
em 2004, por meio da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR)3, foram
desenvolvidas importantes ações com vistas à efetivação da lei. Foram publicados textos referenciais,
realizados cursos de formação continuada para professores e promovida a revisão de editais de seleção
de livros didáticos.
No âmbito do Ministério da Educação (MEC) foi criada, em 2012, a Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI), cujo objetivo principal era promover
políticas públicas educacionais que assegurassem o acesso, a permanência e a superação das desigualdades de grupos populacionais historicamente excluídos da educação formal (Brasil, 2012: art. 1).
Durante os eventos políticos e sociais que culminaram com a interrupção do mandato da presidenta
Dilma Rousseff por meio de um processo de impeachment, em 2016, o trabalho dessas duas secretarias
foi severamente prejudicado (Souza, 2019). Em 2019, já durante o governo de Jair M. Bolsonaro, a
SECADI foi extinta por meio do Decreto 9465, de modo que atualmente o MEC não possui nenhum
órgão responsável pela promoção da educação para as relações étnico-raciais. Os efeitos práticos desta
medida ainda carecem de análise.
Embora a modificação da LDB seja um dado importante na luta antirracista, sua existência por
si só não garante a implementação de um novo currículo escolar. Neste sentido, Marcos Ferreira-Santos
3 Criada em 2003, durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, a SEPPIR tinha por objetivo central promover a igualdade e a proteção
de grupos raciais e étnicos afetados por discriminação e demais formas de intolerância, com ênfase na população negra. Por meio da Medida Provisória 696/2015, a SEPPIR foi realocada no interior no Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos,
criado com o intuito de reunir todas as ações governamentais relacionadas à inclusão social.
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“PEDAGOGIA DO EVENTO”
(2005) aponta que se faz necessário superar certa “tradição legalista” presente no Brasil, por meio da
qual perpetua-se a crença de que a simples promulgação da lei já seria suficiente para a consecução dos
direitos dos sujeitos.
Esta “tradição legalista” prometeica, previdente e excludente, é a principal responsável pela “fé legislativa”, isto é, a crença ingênua em que para se ter garantidos direitos e conquistar reivindicações,
basta sancionar uma lei ou decreto para figurar no aparato utilizado pelo Estado. [...] Neste quadro,
não quero dizer da ineficácia e inutilidade das leis, pois sabemos que são resultado de indiscutível
conquista e grande mobilização, mas há uma inegável tradição legalista achando que a felicidade se
decreta por lei. Esta ingenuidade, não podemos perpetuar entre nós. (Ferreira-Santos, 2005: 209).
Neste contexto, os grupos do movimento negro colocam-se em estado de permanente engajamento para que a lei não se transforme em letra morta em nosso sistema jurídico, garantindo que seja
executada nos sistemas de ensino. Cabe, também, aos agentes escolares encontrar meios de superação
das desigualdades, assim como abandonar a centralidade de valores ocidentais. Para isso, é imprescindível incluir no campo educacional uma cosmovisão afro-brasileira pautada em heranças africanas, como
o bem-estar comunitário e coletivo (idem: 211).
O trabalho de Rachel Rua Bakke (2011) permite verificar uma diversidade de ações pedagógicas, as quais, na maioria das vezes, são realizadas nas escolas de modo pontual e isolado. Tais recortes,
nomeadas de pedagogia do evento pela autora, envolvem a realização de atividades alusivos a datas
comemorativas como nos dias 19 de abril (Povos Indígenas), 13 de maio (Abolição da Escravidão no
Brasil) e 20 de novembro (Dia da Consciência Negra). Geralmente essas práticas não possuem um
caráter institucional, ou seja, são adotadas apenas por um pequeno grupo de professores.
Iniciativas como estas que Bakke encontrou em seu campo de pesquisa vão de encontro à proposta de descolonização dos currículos, que envolve uma mudança epistemológica do currículo, pois,
incluir as temáticaa afro e indígena no currículo escolar deve ultrapassar os conteúdos abordados nas
aulas. Conforme destacam Silva & Meira (2018:8), a modificação curricular preconizada no artigo
26-A da LDB pressupõe a superação da desigualdade racial presente na estrutura escolar. Neste sentido, embora a execução destas ações seja fundamental no enfrentamento do racismo (Ferraro, 2019), a
simples realização de atividades pedagógicas pontuais, além de não garantir o pleno cumprimento dos
dispositivos legais, pode corroborar com os processos de silenciamento. É importante destacar que a
inclusão da temática étnico-racial no currículo da educação básica não pressupõe:
mudar um foco etnocêntrico marcadamente de raiz europeia por um africano, mas de ampliar
o foco dos currículos escolares para a diversidade cultural, racial, social e econômica brasileira.
Nesta perspectiva, cabe às escolas incluir no contexto dos estudos e atividades, que proporciona
diariamente, também as contribuições histórico-culturais dos povos indígenas e dos descendentes
de asiáticos, além das de raiz africana e europeia. É preciso ter clareza que o Art. 26A acrescido
à Lei 9.394/1996 provoca bem mais do que inclusão de novos conteúdos, exige que se repensem
relações étnico-raciais, sociais, pedagógicas, procedimentos de ensino, condições oferecidas para
aprendizagem, objetivos tácitos e explícitos da educação oferecida pelas escolas (Brasil, 2004: 8).
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Os dispositivos legais apontam para um processo de descolonização do currículo escolar
(Oliveira & Candau, 2010) ao indicar a necessidade de se incluir outras perspectivas epistemológicas não europeias (notadamente de origem africana e indígena) no fazer pedagógico nas escolas.
Neste sentido, ganham relevo no debate educacional duas vertentes teóricas, a afrocentricidade e
o pensamento decolonial:
enquanto para o pensamento decolonial o descolonizar-se “[...] supõe também construção e criação. Sua meta é a reconstrução radical do ser, do poder e do saber” (Oliveira & Candau, 2010, p.
25), para a afrocentricidade se dá o inverso: é a restauração do ser africano, a partir de seus próprios
critérios, que gera como subproduto a descolonização. Por não ser reativa, a afrocentricidade se
empenha primariamente não em desfazer a colonização, mas em retomar a proposta de humanidade que a matriz civilizatória dos povos africanos encarna (Reis et al., 2020:137).
Nesse contexto, percebe-se que a atuação de docentes e dirigentes de instituições escolares são
decisivas para consecução dos referidos dispositivos legais. Trata-se de romper, por um lado, com a
visão romântica e subalterna atribuídas aos povos originários (Munduruku, 2012) e a inferioridade
ontológica cristalizada nas populações oriundas do continente africano (Cavalleiro, 2000) e, por outro, estabelecer uma educação escolar que tenha como princípio o respeito às diferenças (Silva, 2003)
superando toda forma de discriminação. Isto significa que as histórias e culturas africana, afro-brasileira e indígena não devem figurar como tema transversal, ou como atividades pontuais ao longo do ano
letivo, mas empreender ações que visem a romper com os silenciamentos sistematicamente produzidos
no contexto escolar (Ferraro, 2019).
O exercício etnográfico na educação
O uso de ferramentas antropológicas em pesquisas em outras áreas do conhecimento não é uma
novidade e o debate teórico no campo da Educação tem ocorrido de modo sistemático no Brasil, desde
a década de 1980 (Caldas et al., 2012). Neste sentido, conforme aponta Amurabi Oliveira (2013:274),
uma das posições mais amplamente difundidas é aquela de que na Educação não são realizadas propriamente etnografias, uma vez que a permanência do/a pesquisador/a em campo é de curta duração.
Uma vez que esta pesquisa se coloca na fronteira entre dois campos disciplinares – a Educação e a
Antropologia – o uso do referencial metodológico procurou resguardar as idiossincrasias de cada área,
ao mesmo tempo em que investiu num diálogo profícuo entre elas. Aqui, compreendemos que esta é
uma reflexão importante, cujos desdobramentos possibilitarão compreender “o que etnografar quer
dizer” no contexto das pesquisas em Educação. Neste sentido, considerando que a escola é um campo
de diversidades e múltiplas identidades, marcada pela pluralidade de modos de ser e fazer acontecer, “a
contribuição da antropologia também pode ser das mais valorosas, tendo em vista seu papel de tentar
compreender as muitas formas de habitar ou de produzir o mundo” (Pereira, 2017: 172).
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Por isso, por meio da etnografia é possível a descrição e análise de fenômenos, compreensão da
organização social da sala de aula, relação adulto-criança e a significação da escola como espaço de recriação das características da sociedade para que as pesquisas na área avancem na produção de conhecimento, justamente porque ela permite “descrever práticas e saberes de sujeitos e grupos sociais a partir
de técnicas como observação e conversações, desenvolvidas no contexto de uma pesquisa” (Eckert &
Rocha, 2003: 3). Contudo, é necessário vigilância quanto ao uso da etnografia na pesquisa educacional,
visto que, como um método elaborado pela Antropologia, não deve cair em reducionismos ao ser utilizada por pesquisadores de outras áreas. Para José Guilherme C. Magnani (2012), é preciso ressaltar que
a etnografia é um método, não uma mera ferramenta de pesquisa, pronta, que se pode usar de
qualquer maneira. Como método, foi forjada pela antropologia ao longo da sua formação e não
pode ser utilizada, sem mais, ignorando os diferentes contextos teóricos que lhe dão fundamento.
Se não, ela passa de método a ferramenta, sendo empregada de maneira trivial, rasa. Isso não quer
dizer que outras áreas não possam utilizar e se apropriar do nosso método de trabalho, mas com o
devido cuidado; do contrário, perde consistência (Magnani, 2012: 175).
A etnografia não pode ser entendida, portanto, como uma simples técnica de coletas de dados,
e, sim, de construção de dados na interação social entre pesquisador e pesquisado, que não se configura
como a mera inserção de um “sujeito observador” em instituições (Nunes, 2017)4. Assim, ainda que
corroboremos com a posição de que é possível desenvolver etnografias no campo da educação, tal como
defendem Pereira (2017) e Oliveira (2013), e embora tenha havido a presença sistemática em campo,
em diálogo com os sujeitos em momentos específicos do cotidiano escolar, compreendemos que o exercício metodológico realizado em nossa pesquisa não se configura como uma etnografia no seu sentido
estrito, pois foram realizadas algumas adaptações no método ao contexto educacional.
Os dados que embasam a produção deste artigo são resultados da utilização de técnicas de análise documental5 e observação em campo6, este último desenvolvido tendo como parâmetro a observação participante em duas escolas de Educação Básica, nas quais procurou-se acompanhar as ações em
torno das comemorações do Dia da Consciência Negra de novembro de 2018 a novembro de 2019.
Não se tratou, contudo, de uma imersão no cotidiano escolar, no sentido de acompanhar todas as práticas pedagógicas realizadas ao longo do ano letivo. As visitas foram organizadas de modo que se pudesse
estar duas vezes por semana em cada uma das escolas, a fim de participar tanto das reuniões de docentes
quanto das aulas que abordavam a temática racial. O processo de registro das atividades didáticas foi inspirado na noção de “descrição densa” (Geertz, 1989), isto é, ao anotarmos as práticas observadas procu-
4 “A prática da pesquisa de campo etnográfica responde, pois, a uma demanda científica de produção de dados de conhecimento antropológico a partir de uma inter-relação entre o(a) pesquisador(a) e o(s) sujeito(s) pesquisados que interagem no contexto recorrendo
primordialmente as técnicas de pesquisa da observação direta, de conversas informais e formais, as entrevistas não-diretivas, etc.” (Rocha
& Eckert, 2008: 1)
5 Esta etapa da pesquisa versou sobre documentos oficiais da instituição escolar, como o Projeto Político Pedagógico (PPP), projetos
de atividades, atas ou memórias de Aula de Trabalho Pedagógico Coletivo (ATPC) e de outras reuniões realizadas pela equipe escolar e
ainda de postagens nas redes sociais.
6 As observações em campo foram realizadas no contexto de uma pesquisa de iniciação científica de Nascimento.
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ramos estabelecer seus múltiplos significados entrecruzando com as informações obtidas por meio das
conversas e consulta aos documentos oficiais das escolas (como o Projeto Político-Pedagógico – PPP).
A escolha do campo empírico de observação deu-se a partir da análise do Guia de Escolas7, instrumento elaborado pelas educadoras do Programa de Formação de Professores da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (Feusp). Trata-se de um portfólio que reúne informações sobre
unidades escolares públicas (municipais, estaduais e federais) aptas a receber estudantes matriculados
em cursos de licenciaturas da Universidade de São Paulo, para a realização de seus estágios curriculares
obrigatórios. O Guia é elaborado a partir de indicações feitas por docentes, estudantes e funcionários e
recebe atualização semestral. Cada uma das escolas que integra a publicação foi visitada por educadores
da Feusp, oportunidade em que se explicita à gestão os objetivos e a natureza dos estágios e pode-se
estabelecer parcerias entre a unidade e a Faculdade, a partir dos dados coletados e das necessidades
apresentadas pela equipe escolar. Alguns desses territórios já são objetos de atividades específicas de
extensão e pesquisa desenvolvidas por docentes e pós-graduandos da USP.
Dentre um rol de cerca de cinquenta instituições, distribuídas em todas as regiões da cidade de
São Paulo e algumas cidades da região metropolitana da capital, optou-se inicialmente por uma escola
municipal de educação infantil e outra, estadual, que atende o público do primeiro ciclo do Ensino
Fundamental. Os critérios principais foram a localização (as duas na região Oeste da capital paulista) e
o fato de já produzirem projetos sobre a temática étnico-racial. É importante destacar que não tínhamos
a pretensão de realizar um exercício comparativo; pelo contrário, buscamos mapear as várias experiências pedagógicas que estão sendo elaboradas.
Devido a um período de greve na rede municipal de ensino, associado a uma grande demanda de pedidos de estágios recebidos pela direção da escola de educação infantil, a observação empírica foi inviabilizada no local. A proposta de pesquisa foi então remodelada, e incluídas unidades que
ofertam o Ensino Fundamental e o Ensino Médio: a Escola Estadual “Flor de Maio” e a Escola de
Aplicação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (EA-FEUSP). No caso da primeira, substituímos o nome oficial da escola e das interlocutoras para preservar o anonimato; já no caso
da segunda, conservamos os dados de identificação da EA-FEUSP por se tratar de uma instituição
pertencente à USP que possui, dentre os seus objetivos, a finalidade de subsidiar a formação inicial
docente e o desenvolvimento de pesquisas acadêmicas. Os nomes das interlocutoras, entretanto, foram
substituídos por pseudônimos.
A Escola Estadual “Flor de Maio”, fundada em 1988, se localiza na região Oeste do município de
São Paulo, próxima ao campus “Cidade Universitária” da Universidade de São Paulo. Atende aos níveis
de Ensino Fundamental II e Médio. Dada a sua proximidade geográfica com a Faculdade de Educação
da USP, a unidade costuma receber inúmeros/as estudantes de graduação em cursos de licenciatura
para a realização de seus estágios curriculares. Conta com cerca de 600 alunos/as distribuídos/as em 18
turmas, sendo três de cada ano do Ensino Fundamental II e duas para cara cada ano do Ensino Médio.
7 O Guia de Escolas da Faculdade de Educação da USP está disponível para consulta pública http://www4.fe.usp.br/estagios/guia-de-escolas. No início de 2020, a Feusp passou a divulgar também o Mapa do Estágio Curricular, ferramenta on-line que reúne informações
sobre as instituições onde os estudantes de licenciatura atendidos pela Faculdade realizam seus estágios curriculares. O acesso pode ser
feito por meio do link: http://www4.fe.usp.br/estagios/mapa.
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“PEDAGOGIA DO EVENTO”
Nesta escola estadual, acompanhamos ações e reuniões em que era discutida a temática étnico-racial, o que ocorria sempre às quartas-feiras, nos momentos de Aula de Trabalho Pedagógico Coletivo (ATPC) dos docentes. Também foi possível observar a elaboração dos projetos sobre a temática
racial, seu desenvolvimento nas aulas de quinta-feira e a sua culminância no mês de novembro. O
primeiro contato foi feito com o coordenador pedagógico que nos colocou em diálogo com a professora escolhida pela gestão escolar para administrar as ações relativas ao ensino de história e cultura
afro-brasileira e indígena.
Na Escola de Aplicação, a relação deu-se primeiramente por e-mail, endereçado diretamente ao
professor responsável pelo Projeto Negritude. Logo em seguida, entramos em contato com a coordenação pedagógica para receber as autorizações necessárias para a continuidade da pesquisa. A Escola de
Aplicação (EA-FEUSP) está vinculada à Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Fundada em 1958 como uma classe experimental, pertencia ao Centro Regional de Pesquisas Educacionais
de São Paulo “Professor Queiroz Filho” (CRPE-SP), instituição que tinha como objetivo realizar ensaios técnicos e oferecer cursos de aperfeiçoamento para professores. Localizada na Cidade Universitária da USP (no bairro Butantã, Zona Oeste da capital paulista), desde 1973, configura-se como um
espaço privilegiado para estágios de futuros professores (sobretudo aqueles que estão matriculados em
algum curso de licenciatura ofertado pela USP8) e como um importante centro de pesquisas na área
educacional. Seu quadro docente e técnico-administrativo é gerido pela USP, e seu corpo discente é
composto majoritariamente por filhos/as de funcionários/as, docentes e estudantes da Universidade.
Atende atualmente cerca de 800 alunos/as, distribuídas em todos os anos da Educação Básica (do Ensino Fundamental I ao Médio).
As entrevistas, realizada a partir de um roteiro semiestruturado, foram feitas de modo a captar
nuances e subjetividades presentes no discurso oral dos sujeitos que escaparam às narrativas oficiais e
à observação. Foram selecionadas quatro agentes: dois de cada instituição escolar, sendo um professor
e um membro da gestão escolar. Deste conjunto de dados coletados, neste artigo são descritas algumas
estratégias adotadas nas escolas para “fazer cumprir a lei”. O destaque aos dispositivos é relevante uma
vez que, em muitos momentos, a justificativa apresentada por docentes e gestores escolares para a realização de determinada ação pedagógica era o fato de existir uma lei que as “obrigava”. Na construção das
análises, tentamos compreender como as atividades escolares sobre o Dia da Consciência Negra eram
organizadas a partir dos chamados projetos e mobilizaram a comunidade escolar.
8 Com quarenta e duas unidades de ensino e pesquisa (faculdades, institutos e museus), a Universidade de São Paulo está presente em
oito cidades do Estado de São Paulo (na capital, em Bauru, Lorena, Ribeirão Preto, Piracicaba, Pirassununga, Santos e São Carlos). A
Cidade Universitária concentra o maior número de Unidades e, por conseguinte, de cursos de graduação e pós-graduação. A Faculdade
de Educação é responsável pela formação pedagógica de todas as licenciaturas ofertadas na capital, atendendo anualmente cerca de quatro mil estudantes de vinte e sete cursos. Mais informações podem ser acessadas em: http://www4.fe.usp.br/feusp/feusp-em-numeros.
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O dia da consciência negra no contexto escolar
Um dos elementos fundamentais no processo de positivação das identidades é a revisão das
narrativas sobre a sua constituição. Ter a possibilidade de enunciar sua própria trajetória ou contar a
história que não foi contada (Reginaldo, 1995) permite que os sujeitos que foram silenciados possam
romper com o ciclo de subalternização. Neste sentido, o parecer sobre a Lei 10.639/2003 destaca o
modo pelo qual as datas comemorativas referentes à população negra devem ser abordadas na escola:
Datas significativas para cada região e localidade serão devidamente assinaladas. O 13 de maio,
Dia Nacional de Denúncia contra o Racismo, será tratado como o dia de denúncia das repercussões das políticas de eliminação física e simbólica da população afro-brasileira no pós-abolição, e
de divulgação dos significados da Lei Áurea para os negros. No 20 de novembro será celebrado o
Dia Nacional da Consciência Negra, entendendo-se consciência negra nos termos explicitados
anteriormente neste parecer. Entre outras datas de significado histórico e político deverá ser assinalado o 21 de março, Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial (Brasil,
2004, art. 21).
Por força da legislação em vigor, a data deve necessariamente ser contemplada no planejamento
escolar e cabe, sobretudo ao corpo docente e à equipe pedagógica, definir como isto será feito. Deste
modo, o Dia da Consciência Negra é vivenciado de formas muito distintas nas escolas acompanhadas,
como se verá mais adiante.
Na Escola de Aplicação, as ações realizadas sobre a temática étnico-racial são coordenadas por
meio do Projeto Negritude, cujo início deu-se em 2004, um ano após a promulgação da Lei 10.639,
por iniciativa de um professor de francês (que já não faz mais parte do corpo docente da instituição).
Inicialmente o projeto era voltado para a dimensão linguística, discutindo temas como francofonia,
lusofonia e anglofonia na África. Aos poucos, as temáticas foram sendo ampliadas com a incorporação
de palestras e apresentações culturais. Atualmente, configura-se como um dispositivo institucional da
EA-FEUSP na promoção de ações sobre a diferença étnico-racial e a superação do racismo.
Segundo a professora Luiza, o processo que levou o Projeto Negritude a assumir o caráter que
possui hoje em dia foi longo. Inicialmente, as manifestações culturais eram consideradas suficientes
como forma de abordar a temática e de superar o racismo; com o passar do tempo e a chegada de novos
docentes, a ideia de restringir a história e cultura afro-brasileira e africana às apresentações de danças
foi problematizada, considerando-se que não contribuía efetivamente para a proposta do projeto, cujos
objetivos atuais são:
•
•
•
144
Aplicar a lei 11.645 de forma ampla, abrangendo todos os alunos da escola.
Entender e repudiar toda forma de discriminação baseada em diferenças de raça/etnia, classe
social, crença religiosa, sexo e outras características individuais ou sociais.
Compreender a desigualdade social como um problema de todos e como uma realidade
passível de mudanças.
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“PEDAGOGIA DO EVENTO”
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•
•
•
•
Produzir material didático-pedagógico que contemple a diversidade étnico-racial na escola.
Desenvolver um trabalho interdisciplinar, em torno dos temas relacionados à Negritude.
Reconhecer que historicamente o racismo e as desigualdades sociais contribuíram e contribuem para a exclusão de uma grande parcela da população afrodescendente.
Participar efetivamente nas lutas contra o racismo buscando a efetivação de um currículo
escolar antirracista.
Contar a história do movimento negro brasileiro. (EA-FEUSP, s/d)9.
Para cumprir esses objetivos, às segundas-feiras pela manhã são realizadas as reuniões de planejamento da equipe do Projeto Negritude, momento em que se discute quais atividades serão desenvolvidas, define-se o cronograma de atuação e as futuras ações com os professores supervisores e os
bolsistas do programa (composto por três graduandos da USP, dos cursos de Pedagogia e licenciaturas
de Química e Geografia). Às terças-feiras, o planejamento é posto em prática nos chamados Espaço-Projeto e eletivas – momentos reservados na grade horária das turmas da EA-FEUSP para a execução
de ações pedagógicas que não estão circunscritas a apenas uma disciplina do currículo. Em 2019, os
temas abordados versaram sobre a representatividade negra no cinema, música e quadrinhos, intolerância religiosa e slam. Todos desenvolvidos pelos professores que compõem a frente de trabalho10 do
projeto com o auxílio de bolsistas de graduação do Programa Unificado de Bolsas da USP. Convém
destacar que o intercâmbio entre pesquisadores/as, docentes e discentes da Faculdade de Educação e a
Escola de Aplicação é constante, tanto por meio de suporte técnico, material pedagógico, quanto pelo
compartilhamento dos espaços físicos e a realização de eventos conjuntos.
No período acompanhado, o Projeto Negritude tinha o objetivo de articular todas as discussões
em torno de questões relativas ao preconceito, como tema transversal proposto nos Parâmetros Curriculares Nacionais de 1998 e com as Leis 11.645/2008 e 10.398/2003. Ao longo do ano, foi responsável
por assegurar que a pluralidade cultural e o ensino das histórias e culturas africana, afro-brasileira e indígena estivessem presentes no planejamento das disciplinas e das demais atividades previstas no PPP
da EA-FEUSP. Por meio de parcerias com docentes da USP, promoveu encontros de formação continuada para professores/as da escola e realizou eventos para a comunidade escolar, sendo os principais a
Semana da África, no mês de maio, e a Semana da Consciência Negra, em novembro.
Na EA-FEUSP a culminância das ações deu-se durante a Semana da Consciência Negra, realizada durante os dias 29, 30 e 31 de outubro de 2019. O evento foi composto por atividades ministradas
por pessoas externas à escola e por docentes que atuam no Projeto Negritude. Houve nestes dias oficinas de culinária, em que as crianças puderam aprender mais sobre a gastronomia de alguns países africanos e experimentar alguns doces dessas localidades. Também ocorreu uma oficina ofertada por Erika
Balbino, escritora do livro Num tronco de Iroko vi a Iúna cantar (2014). Apresentação de capoeira e
oficinas de confecção de bonecas abayomi e de colares da discórdia, elemento presente no filme Kiriku
9 Projeto Negritude. Disponível em: http://www3.ea.fe.usp.br/negritude/. Acesso em 10 mar. 2019.
10 Segundo a diretora, os docentes que fazem parte da chamada frente de trabalho são aqueles que se voluntariaram durante as reuniões
de início de ano letivo. Na EA-FEUSP, a fim de garantir resultados positivos na realização do planejamento, adota-se o modelo de grupo
de professores responsáveis pela proposição de atividades específicas, as quais serão desenvolvidas pelo coletivo.
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e a feiticeira11, completaram a programação. Se, ao longo do ano letivo, as ações do Negritude objetivaram promover o ensino da história afro-brasileira e africana e o combate à discriminação, durante
o evento as atividades tinham como ponto central possibilitar a vivência de elementos das culturas de
origem africana.
Diferente da EA-FEUSP – que possui um grupo institucionalizado para propor e acompanhar
as ações sobre o ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena, formado por um conjunto de
professores e com o suporte de estudantes da graduação –, a Escola “Flor de Maio” organiza suas atividades em torno de projetos interdisciplinares, alguns deles gestados pela Secretaria Estadual da Educação, tendo à frente uma única docente responsável que acumula esta função com sua atuação em sala
de aula. Deste modo, se na EA-FEUSP o Projeto Negritude atua como espaço catalizador das ações,
na “Flor de Maio” este papel é desempenhado pelo Projeto Educação para as Relações Étnico-Raciais
(ERER), que tem como objetivos:
a) Propiciar reflexões que favoreçam a formação integral do indivíduo reflexivo, ativo e responsável tendo em vista a construção de um mundo mais humanizado.
b) Identificar e analisar de forma crítica os elementos geradores das diferenças, objetivando o
combate ao preconceito, ao racismo e a exclusão que tanto os negros e indígenas sofreram ao
longo da história do Brasil.
c) Promover a análise de textos literários afro-brasileiros para a reflexão sobre conceitos e estereótipos acerca do negro.
d) Garantir um ambiente escolar compatível com uma sociedade democrática e multicultural.
e) Possibilitar a construção de nós entre a cultura africana e indígena, de uma história e de
uma identidade, possibilitando a releitura e a valorização das mesmas. (Descritivo do projeto
ERER – Escola “Flor de Maio”, 2019: s/p)
Conforme destacou-se acima, as ações realizadas pela Escola “Flor de Maio” tinham por base a proposta elaborada pela Secretaria Estadual de Educação, que promovia formações gerais a um/a representante de cada unidade escolar, o/a qual era responsável por replicar as orientações para todo o corpo docente e atuar junto à coordenação pedagógica no planejamento e desenvolvimento das atividades internas.
Apesar das iniciais ERER significarem “Educação para as Relações Étnico-Raciais”, no processo
de consecução de seus objetivos, na escola “Flor de Maio”, um conjunto de outros temas são agregados.
Isto se dá, sobretudo, porque esta é a única ação institucionalizada da escola e que conta com uma professora responsável pela organização das atividades. Assim, anualmente, quando a Diretoria Regional
de Ensino apresenta o conjunto de temas que devem ser abordados transversalmente no currículo, eles
são incorporados ao Projeto ERER.
Em 2019, por exemplo, durante o primeiro bimestre, abordou-se a Lei Maria da Penha (Lei
11.340/06), momento em que foi discutido sobre o feminicídio e as diferentes formas de violência
11 Kirikou et la Sorcière (ou Kiriku e a feiticeira) é um filme de animação franco-belga de 1998, dirigido por Michel Ocelot e distribuído
pela Gébéka Films. A animação apresenta aspectos culturais de povos da África Ocidental (sobretudo Senegal). Uma análise desta produção e suas potencialidades pedagógicas podem ser acessadas em Ferreira-Santos (2005).
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contra a mulher. No segundo bimestre, havia sido decidido estudar questões de gênero, porém, durante a ATPC, alguns docentes destacaram que o tema poderia despertar reações contrárias por parte de
alguns familiares, então a proposta foi descartada e nenhuma ação foi realizada. No terceiro bimestre,
tratou-se da cultura e história indígena. No quarto e último bimestre, devido ao Dia da Consciência
Negra, o tema escolhido foi “personalidades negras que fizeram história”. Todas estas ações estavam
subordinadas ao Projeto ERER.
Segundo os professores, propor uma atividade que destacasse a presença pública de pessoas negras era uma forma de abordar a questão racial para além do viés da escravidão de africanos, conteúdo
que acreditavam já ter sido estudado exaustivamente pelos alunos, e que, por isso, necessitavam ampliar
seu imaginário acerca do assunto. Dessa forma, os docentes listaram uma série de nomes de personalidades negras e as dividiram entre as turmas, como mostrado a seguir. Cada turma ficou responsável por
pesquisar o que lhes foi atribuído e decidir a forma de apresentar que mais achassem apropriada, desde
que envolvesse o uso de salas temáticas.
Quadro 1 – Distribuição das personalidades negras por turma
Nível de Ensino
Ano
Tema
6º
Negros que fizeram história no mundo
7º
Cientistas Negros Brasileiros
Nelson Mandela
Ensino Fundamental
Aparecida Conceição
8º (por turma)
Machado de Assis
Racionais
Reis africanos
9º (por turma)
Mulheres negras no Brasil e no mundo
Martin Luther King
1º (por turma)
Zumbi dos Palmares
Ensino Médio
2º
Negros que fizeram história no esporte
Joaquim Barbosa
3º (por turma)
Barack Obama
Fonte: Elaborado pelas autoras.
A culminância do quarto bimestre se deu no dia 14 de novembro de 2019, por meio da organização de uma mostra dos trabalhos dos(as) estudantes. As salas de aula foram preparadas para receber as
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produções das classes de acordo com os temas distribuídos. A expectativa era que cada equipe pudesse
caracterizar o espaço a fim de tornar a exposição mais dinâmica, entretanto, só parte dos/as alunos/as
conseguiram, ainda assim, incorporar pequenas esquetes teatrais às suas apresentações. Destacou-se,
por exemplo, o grupo que tratou dos cientistas negros: ocorreu uma verdadeira imersão no mundo
biológico por meio de maquetes táteis de órgãos como o cérebro e coração, células e DNA humano
para exemplificar os trabalhos dos personagens pesquisados. Já em outras turmas, a apresentação ficou
restrita a cartazes, tal como ocorre cotidianamente com outras tarefas escolares. O tempo foi organizado de forma que todos os alunos e alunas pudessem montar e desmontar suas salas temáticas e visitar as
demais para conhecer o trabalho dos colegas. Paralelamente, os docentes circulavam por todo o espaço
avaliando desde a organização até a apresentação do trabalho em si, dando um feedback aos estudantes
naquele mesmo dia.
Assim como ocorreu nos demais bimestres, a seleção dos tópicos foi decidida pelo coletivo de
professores durante o ATPC, sendo a decisão transmitida aos alunos pelo professor coordenador de
cada turma. O corpo docente não forneceu orientações para os alunos de como deveriam realizar o
trabalho, assim como não acompanharam a sua elaboração. Para os docentes, essa seria uma forma
adequada de promover a autonomia dos alunos. Neste sentido, parece haver certo distanciamento entre o que a literatura clássica considera como sendo a autonomia discente, no processo educacional, e
o entendimento do corpo docente da “Flor de Maio”. De fato, Sónia Palha, apoiando-se em Yackel &
Coob (1996), defende que um aluno autônomo “tem consciência da própria capacidade intelectual e,
utiliza nas suas ações, julgamentos e decisões essa capacidade” (Palha, 2006: 2).
No caso da EA-FEUSP, a promoção da autonomia dos/as estudantes é promovida se assemelhando à forma como se organizam as disciplinas obrigatórias e eletivas no ensino superior. Isto é, a
grade horária é organizada para comportar as disciplinas do currículo de cada etapa do ensino (do
primeiro ano do Fundamental ao terceiro do Médio) e as atividades ofertadas pelo corpo docente (organizadas a partir de eixos temáticos), que são selecionadas livremente pelos estudantes. Conforme se
destacou acima, é por meio dos espaços-projeto e eletivas que os/as estudantes podem aprofundar o estudo de determinadas temas. Neste caso, diferente do que ocorre nas ações de culminância na “Flor de
Maio”, na EA-FEUSP, a participação nas atividades não resulta num “produto” (cartaz, trabalho etc.)
que deve ser apresentado em determinado momento. A lógica é incorporar a reflexão sobre determinado tema no cotidiano escolar, fazendo-o dialogar com os demais conteúdos do currículo.
A autonomia, neste contexto, também era ensinada. Isto é, por meio do processo de ensino e
aprendizagem cada estudante era levado a constituir-se enquanto sujeito autônomo capaz de dirigir-se
do ponto de vista educacional. Não é uma tarefa simples, uma vez que ainda é bastante arraigado nos
contextos escolares certas concepções que dificultam essas ações. Assim como se observa no caso da
reformulação do currículo, para a inclusão de novas metodologias e epistemologias, é preciso romper
com antigos paradigmas para que a mudança ocorra de fato.
O modelo adotado na EA-FEUSP parece indicar uma forma interessante de correponsabilizar
o/a estudante pela sua formação, desde os primeiros anos escolares. A partir dos dados que obtivemos na pesquisa não é possível verificar de modo sistemático qual o impacto desta perspectiva pe-
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dagógica na aprendizagem, entretanto, percebeu-se um engajamento do corpo discente nas atividades propostas a despeito do fato de “não valerem nota”, ou seja, a adesão das/os estudantes às ações
disponibilizadas pelos/as professores/as não estava subordinada a uma recompensa tangível, como
a aprovação em uma disciplina.
Formar um aluno autônomo significa fazê-lo perceber sua capacidade intelectual e fornecer valores e normas que o ajudem em sua tomada de decisão de forma independente ao professor. Contudo,
essa independência se configura como um processo delicado e longo. Assim, é necessário refletir sobre
como as propostas de trabalhos são apresentadas para os alunos, e do mesmo modo como são realizadas
as orientações ao longo de seu desenvolvimento. Como bem destaca Palha (2006: 7):
Na prática, só é possível que o aluno venha a assumir este papel se o professor, por seu lado, for
delegando responsabilidades ao aluno e ensinando-o a assumir esta responsabilidade. Nesta comunicação definimos autonomia com respeito à participação na comunidade uma vez que a aprendizagem individual é inseparável de aspectos culturais e sociais.
É interessante notar que a noção de autonomia discente evocada pelo corpo docente da Escola
“Flor de Maio” produz certas incongruências, as quais não passam desapercebidas pelos professores.
No terceiro bimestre, ao tratar do contexto indígena, diferentemente do que aconteceu com o tema
racial, ficou a cargo de cada estudante definir como abordaria a temática. Na avaliação dos professores,
houve, contudo, uma “má interpretação” por parte dos alunos, o que provocou a realização de trabalhos marcadamente estereotipados e pejorativos com relação à cultura indígena, como se os vários
grupos étnicos estivessem “congelados no tempo”, inertes desde o “descobrimento do Brasil”.
A maneira escolhida pelo corpo docente para lidar com essa situação foi promover, no bimestre
seguinte, uma visita ao Museu de Arqueologia e Etnologia da USP. Assim, os estudantes acompanharam a exposição Resistência Já! Fortalecimento e União das Culturas Indígenas – Kaingang, Guarani
Nhandewa e Terena que apresentava a história e as tradições desses grupos através de objetos, vestimentas e fotografias selecionados por eles próprios. Assim, ainda que a execução inicial do projeto não
tenha atendido àquilo que os professores esperavam, estes consideraram que a visita ao museu trouxe
aos alunos a consciência que almejavam desde o início.
Cientes dos problemas enfrentados no bimestre anterior, ao planejarem as ações sobre o Dia da
Consciência Negra de 2019, os temas que seriam abordados pelos alunos foram delimitados previamente, conforme descrito acima. Ou seja: embora tenham constatado uma deficiência na ação pedagógica, a solução encontrada não se pautou em um processo de acompanhamento dos alunos, mas na
limitação do escopo da pesquisa. Desse modo, para que seja possível compreender o papel de docentes
e gestores na realização dos projetos é preciso ter em mente como cada um deles percebe sua atuação na
construção de uma educação para a autonomia. Faz-se necessário, também, observar a implicação dos
demais agentes escolares neste processo.
Através das entrevistas, tornou-se mais explícito que, mesmo em realidades e posições distintas,
os dois gestores escolares enfrentavam problemas semelhantes: a sobrecarga de tarefas e falta de tempo
para cumprir sua função. O excesso de trabalho que acompanha a rotina tanto dos professores quanto
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da equipe gestora das escolas (coordenação pedagógica e direção) é um dos principais fatores que limitam a experimentação de novas práticas pedagógicas, o que faz com seja difícil acompanhar todos os
acontecimentos que regem o cotidiano escolar, impactando negativamente o trabalho docente.
No atual sistema educacional, com a complexidade do mundo moderno, a escola, depende muito
do gestor que deve estar altamente especializado para gerir todo o conjunto de ensinamentos e
experiências necessárias a fim de garantir a qualidade do ensino oferecido aos estudantes e, ainda,
manter a organização e funcionamento da instituição em todos os seus aspectos: físico, sócio-político, relacional, material, financeiro (Martins & Brocanelli, 2011: 82).
Há, de todo modo, um esforço da coordenação pedagógica da Escola “Flor de Maio” em acompanhar de modo mais sistemático as ações do projeto ERER, o qual possui reuniões específicas para
tratar do tema. No caso da EA-FEUSP, pela própria dinâmica do Projeto Negritude, a direção acompanha o seu desenvolvimento de forma mais distante, em reuniões semestrais, quando são discutidos
todos os projetos desenvolvidos na escola. A diretora nos relatou, por exemplo, que as únicas vezes em
que trabalhou diretamente no projeto junto com seus membros foram em casos de racismos acontecidos na instituição. Nestas situações, a equipe escolar foi reunida para o desenvolvimento de ações
conjuntas e encontrar formas de mediar o conflito instaurado no ambiente escolar.
Ambas as instituições já tiveram casos explícitos de racismo. Como dissemos acima, na Escola
de Aplicação a resolução dos conflitos foi acompanhada pela gestão escolar em conjunto com membros do Projeto Negritude, que propuseram frentes de trabalhos e atividades com os envolvidos nas
situações. Segundo a direção, esta forma de trabalho fez com que não se observasse nos últimos anos
episódios de discriminação racial. Na Escola “Flor de Maio”, por sua vez, as interlocutoras narraram
que, em 2018, uma docente sofreu ofensas racistas por parte de um estudante do sétimo ano do Ensino
Fundamental. O caso aconteceu em meados de junho, abalou muito a professora envolvida, que relatou já ser a segunda vez que isso acontecia em sua vida profissional. Na época, as únicas medidas tomadas pela direção foram a suspensão do aluno e uma reunião com a sua mãe e a coordenação pedagógica.
Ou seja, os episódios não foram suficientes para desencadear ações institucionais para coibir novos
casos. Em entrevista, entretanto, a direção afirmou que na escola não havia situações de preconceito e
discriminação racial.
Embora as duas escolas tenham docentes e discentes negros, inclusive dentre aqueles que participam do ERER, na “Flor de Maio”, e do Negritude, na Escola da Aplicação, a coordenação pedagógica e
a direção são exercidas por pessoas brancas. Isso também nos permite refletir sobre o lugar dos sujeitos
brancos na luta antirracista. Para Denise Carreira (2018), muito mais do que um mero apoio às causas
de movimentos sociais pela luta de direito de minorias é preciso fazer com que o lugar de privilégio
branco seja discutido, o que pressupõe uma constante autocrítica de seu modo de agir e falar formados
por uma escola e sociedade estruturalmente racista e excludente. Tarefa árdua, uma vez que exige
uma disposição para que as pessoas brancas se coloquem ativamente como aprendizes nessa reconstrução das relações raciais, enfrentando o desconforto, o medo, o desconhecimento; reeducando olhares e escutas; refletindo e avaliando suas ações em diálogo com pessoas negras e indíge-
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nas; desconstruindo a produção de privilégios, das discriminações e das violências no cotidiano e
nas instituições e se abrindo para descobrir tudo aquilo que perdemos ao longo de séculos e atualmente – como seres humanos – ao negar o reconhecimento da dignidade, dos conhecimentos, da
história, das culturas e dos valores civilizatórios dos povos africanos, afro-brasileiros e indígenas
(Carreira, 2018: 135).
Portanto, a elaboração e consecuções de projetos voltados para atender a demanda do artigo
79-B da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Básica se configura como parte importante do processo
de construção de uma educação antirracista, mas que devem ser desenvolvidos em diálogo com outras
ações no cotidiano escolar, sobretudo implicando todos os sujeitos, brancos e negros. Neste contexto,
embora as ações pontuais tenham se mostrado importantes, pois elas permitem que de algum modo
o tema da diferença racial (processos de violência contra a população negra, ações de resistência) seja
posto em evidência, é preciso que ultrapasse este lugar de eventualidade e possibilite uma constante
autocrítica e reflexão sobre o lugar socialmente privilegiado ocupado pelos sujeitos brancos.
Considerações finais: para além da “pedagogia do evento”
Após dezesseis anos da alteração do artigo 26 e criação dos artigos 26-A e 79-B da Lei de Diretrizes e Bases da Educação, fruto da luta antirracista de diversos movimentos sociais, dilemas escolares em torno da temática das relações étnico-raciais ainda se expressam na prática dos educadores,
fazendo com que seja necessário continuar com o exercício de discussão acadêmica. Neste artigo, ao
elegermos a comemoração do Dia da Consciência Negra na escola como locus de observação, foi possível refletir sobre como as instituições estão revendo suas práticas pedagógicas para incluir o tema
da diferença étnico-racial no currículo escolar. Não interessa a essa pesquisa aferir se as escolas estão
ou não cumprindo a lei, mas compreender como esta temática está sendo apropriada pelos diferentes
agentes nos mais variados contextos.
A partir da análise dos dados de nossa pesquisa, concluímos que as ações voltadas para o ensino
das temáticas africana, afro-brasileira e indígena passam de estágios que vão desde a “pedagogia do
evento”, reveladas pela pesquisa de Bakke (2011), até a incorporação ao currículo pedagógico, como
preconizavam os agentes do movimento negro (Cavalleiro, 2005). Pensar a ideia de estágios no processo de modificação do currículo escolar nos permite olhar para cada contexto e refletir sobre os modos
possíveis de implementação de uma educação antirracista. Este movimento é importante, porque nos
retira do lugar comum que ora aponta a escassez de recursos humanos e materiais ou o excesso de demandas laborais que recaem sobre professores e gestores, ora minimiza as ações desses agentes como
sendo insuficientes no combate ao racismo. Tal como apontou-se acima, a partir da fala das diretoras,
o excesso de trabalho é um dado importante que não pode ser ignorado, entretanto, aqui destacamos
que ele não pode ser acionado como elemento explicativo central na análise sobre as dificuldades para
a implantação de ações de promoção de justiça nas escolas.
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Conforme os dados aqui demonstrados atestam, não se trata de ignorar esta realidade ainda presente, mas compreender como, e apesar dela, estes profissionais estão reinventando o fazer pedagógico.
Dito de outro modo, olhar para cada unidade escolar e analisar quais passos foram dados ao longo dos
anos, para a constituição de uma educação antirracista, permite entrever quais ações ainda precisam
ser realizadas. Do mesmo modo, fica evidente quais são as concepções metodológicas e teóricas que
sustentam as práticas desses sujeitos. No processo de se estabelecer uma educação antirracista, embora
não haja consenso entre a adoção de um currículo afrocentrado ou decolonial, as duas perspectivas
destacam a importância da emergência de novas epistemologias que coloquem em evidência os saberes
constituídos no seio dos povos originários (Gomes, 2009).
Se partimos de um contínuo que vai desde a não realização de nenhuma atividade sobre relações
étnico-raciais, passando pela “pedagogia do evento”, até a transformação do currículo para a inclusão
de novas perspectivas epistemológicas de origem africana e indígena, poderíamos localizar a “Flor de
Maio” mais próxima a uma posição intermediária, enquanto que a Escola de Aplicação parece avançar
um pouco mais, ao conseguir estabelecer um espaço institucional mais robusto na perspectiva de se
pensar um currículo mais diversificado.
Uma vez que a comemoração do Dia da Consciência Negra na escola estadual está inscrita num
projeto temático mais amplo, implementado pela rede de ensino, não seria adequado afirmar que as
suas práticas se aproximam aos contextos etnografados por Rachel Bakke, em que a ação pedagógica
sofre recortes temáticos e temporais ao longo do ano, em que temas específicos são abordados de formas estanques. Entretanto, é importante destacar que tais comemorações empreendidas pela escola
ainda não são realizadas de modo que engajem toda a comunidade. Isto fica mais evidente quando se
observa o modo como os casos de racismo são enfrentados e o modo como se dá a organização do trabalho pedagógico em torno desta temática.
Do mesmo modo, percebe-se que o tratamento dado pela Escola “Flor de Maio” ao tema racial
não é diferente daquele dispensado aos demais projetos, isto é, todos eles são tratados de modo secundário, não como norteadores do ensino. Isto revela, parece-nos, uma concepção de escola muito
próxima ao modelo tradicional, mas que é constantemente tensionada pela “vida real” que impõe agendas que não podem ser ignoradas. Ao recorrerem ao Museu de Etnologia e Arqueologia da USP, por
exemplo, percebe-se que a equipe escolar carece de suporte teórico e metodológico para lidar com suas
limitações. Perguntamos, entretanto: quais são os critérios ou dispositivos que mobilizam os agentes
para recorrerem à Universidade na tentativa de adensar o conhecimento sobre algumas temáticas e não
sobre outras? Uma mirada mais detida para a composição do corpo docente, sua relação com a pesquisa
e uma análise sobre o contexto social onde está inserida esta escola poderia ajudar a compreender essas
escolhas. De antemão, nossa hipótese é de que a noção de autonomia do aluno acionada pelos professores ajuda a eclipsar uma atuação mais incisiva do corpo docente na execução de ações mais diretivas
na superação das desigualdades.
No caso da Escola de Aplicação, observa-se um investimento constante na reinvenção do currículo. A sua relação intrínseca com a Faculdade de Educação e outras unidades de ensino e pesquisa da
USP possibilita um intercâmbio profícuo e contínuo entre os saberes produzidos na escola e na acade-
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“PEDAGOGIA DO EVENTO”
mia. Como no caso da temática racial, há outros projetos consolidados, que permitem a realização de
inúmeras atividades pedagógicas com vistas à superação de todas as formas de discriminação e violência. Entretanto, como nossa pesquisa revelou, ainda não se pode afirmar que a EA-FEUSP possui um
currículo antirracista, mesmo que o tema étnico-racial esteja sendo trabalhado de modo contínuo ao
longo do ano, em todas as turmas. Há outras disputas políticas e teóricas que precisam ser superadas,
como a própria concepção de currículo, por exemplo. Enquanto um espaço profícuo à reflexão acadêmica, a Escola de Aplicação percebe a difícil tarefa de conciliar, na sua ação cotidiana, as contradições
epistemológicas e pedagógicas com as quais se vê confrontada diariamente.
Se a crítica pós-colonial produziu um descentramento do locus de produção de conhecimento
e questionou o lugar da universidade como única instituição capaz de produção de conhecimento legítimo, no caso da Educação Básica interroga-se sobre o seu papel enquanto divulgadora deste saber.
Em outras palavras, retomando o contínuo enunciado anteriormente, no limite, o que está em jogo
é a própria concepção de escola enquanto espaço privilegiado de transmissão de saber. Não se trata,
portanto, apenas de incluir novos temas de estudos e práticas de ensino e aprendizagem, mas de rever
o modo pelo qual se pensa, produz e reproduz o saber escolarizado e qual seu papel na constituição de
uma sociedade marcada pela diferença.
Respeitar a diferença não significa corroborar com a desigualdade, pelo contrário, é justamente
compreender que na sociedade contemporânea os grupos precisam ser reconhecidos e valorizados nas
suas singularidades. Assim, estabelecer uma educação antirracista, neste contexto, significa combater
todas as formas de discriminação e violências que produzem subalternização e colocam estes sujeitos
à margem da sociedade, da educação e, consequentemente, dos espaços de poder. No que concerne ao
tema desta pesquisa, faz-se necessário, por um lado, formar as crianças negras a partir de expressões
positivas da sua identidade e, por outro, implicar as crianças brancas na luta contra o racismo, destituindo todas as formas de privilégios raciais e sociais que foram se configurando por meio do processo
de colonização.
Rosenilton Silva de Oliveira é Doutor em Ciência Social (Antropologia Social)
pela Universidade de São Paulo (USP) e pela École de Hautes Etudes en Sciences Sociales (EHESS). É Professor da Faculdade de Educação da Universidade
de São Paulo (USP).
Leticia Abilio Nascimento é Licenciada em Pedagogia na Universidade de São
Paulo (USP).
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“Pedagogia do evento”: o Dia da Consciência Negra no contexto
escolar
Resumo: O objetivo deste texto é refletir sobre as ações pedagógicas realizadas no contexto da educação básica em torno do Dia da Consciência Negra, cuja comemoração foi inserida no calendário escolar por meio da lei 10.639/2003. A partir do trabalho de campo realizado em duas escolas paulistas,
empenhou-se em compreender como se dá a consecução dos projetos concernentes à temática das relações étnico-raciais. Conclui-se, por um lado, que ainda ocorre nas unidades escolares, dezesseis anos
após a promulgação da referida lei, o que Rachel R. B. Bakke denominou como “pedagogia do evento”,
isto é, uma ação pedagógica pontual sobre uma temática específica, sem integração com o currículo
escolar. Por outro, a aproximação entre universidade e escola possibilita o desenvolvimento de ações
pedagógicas mais eficazes na constituição de uma educação antirracista.
Palavras-Chave: Relações étnico-raciais; Educação antirracista; Dia da consciência negra.
“Event pedagogy”: Black Consciousness Day in the school context
Abstract: The aim of this text is to reflect on the pedagogical actions carried out in the context of basic
education around the Black Consciousness Day, whose commemoration was inserted in the school calendar through Brazilian Federal Law 10639/2003. Based on the fieldwork carried out in two schools
in São Paulo, we tried to understand how the projects concerning the theme of ethnic-racial relations
are achieved. It is concluded, on the one hand, that, sixteen years after the promulgation of this law,
what Rachel R. B. Bakke called “event pedagogy” still occurs in school units, that is, a punctual pedagogical action on a specific theme, without integration with the school curriculum. On the other
hand, the approximation between university and school enables the development of more effective
pedagogical actions in the constitution of an anti-racism education.
Keywords: Ethnic-racial relations; Anti-racism education; Black Consciousness Day.
RECEBIDO: 31/05/2020
APROVADO: 08/01/2021
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CAMPOS V.22 N.1 P. 159-183 - JAN.JUN.2021
D O SSIÊ
Tradição oral, construção de
diálogo e conhecimento na
comunidade quilombola da Rasa
Ana Carolina de Sousa Vaz
Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF), Campos dos Goytacazes/RJ, Brasil
https://orcid.org/0000-0003-4399-5629
Lilian Sagio Cezar
Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF), Campos dos Goytacazes/RJ, Brasil
http://orcid.org/0000-0001-8737-9946
Introdução
Tendo como ponto de partida os campos da Pedagogia e da Antropologia, o presente artigo
resulta de um estudo de caso que tematiza as ações de educação formal dedicadas à História e Cultura
Afro-Brasileira e Indígena em uma escola pública municipal localizada na comunidade remanescente
de quilombo da Rasa, na cidade de Armação dos Búzios, Rio de Janeiro. A pesquisa foi realizada durante o ano letivo de 2019, no período de fevereiro a dezembro, envolvendo entrevistas semiestruturadas
e abertas, realizadas com professoras(es), gestoras(es) escolares e familiares de alunas(os) que são quilombolas e um estudo de caso de cunho etnográfico, com observação sistemática da prática pedagógica
de uma docente que culminou com a montagem de uma feira literária.
Neste artigo, elegemos descrever e analisar as ações desenvolvidas e protagonizadas por uma
professora com as(os) alunas(os) e a comunidade para compreender as potencialidades e os desafios da
abordagem dos conteúdos previstos nas Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, as quais alteraram o Artigo
26A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBN), tornando obrigatório o ensino da
História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena nas escolas de ensino fundamental e médio, tanto da rede
pública quanto da rede privada. O Art. 26-A preconiza que:
Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório
o ensino sobre História e Cultura AfroBrasileira.
§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da
África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação
da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e
política pertinentes à História do Brasil.
§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito
de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História
Brasileiras (Brasil, 2003a).
Nosso artigo inicialmente aborda as políticas de reconhecimento das comunidades remanescentes de quilombo e a história do quilombo da Rasa, contrastada às políticas educacionais implantadas
nas escolas municipais de Armação dos Búzios. Em seguida, descreve um projeto pedagógico desenvolvido por meio da construção de diálogos e conhecimentos entre professora, alunos(as) e lideranças, pautadas nas expressões culturais e na tradição oral do próprio grupo. O enfoque nos conteúdos
da história e cultura africana, afro-brasileira e indígena permitiu à docente contextualizar a história
da comunidade quilombola da Rasa, seu patrimônio cultural imaterial e as memórias de suas anciãs,
constituindo também uma forma de restituição e, principalmente, valorização (ainda que seletiva) de
conhecimentos, estéticas e valores civilizacionais africanos e afro-brasileiros. Por fim, o trabalho analisa
alguns dos desafios e potencialidades da aplicação do Artigo 26A da LDB a partir da perspectiva nativa.
Como questão de fundo, o artigo considera as situações de desigualdade e segregação étnico-racial vivenciadas por crianças e jovens quilombolas da Rasa. Segundo Vaz (2015), ao circularem pelos
bairros de classe média ou alta e nas zonas turísticas da cidade de Armação dos Búzios, essa população
se sente inferiorizada por sua condição social e/ou cor de pele, o que se conecta a um histórico preconceito velado e dissimulado pela sociedade brasileira. Nesse sentido, as propostas de educação tomadas
como foco do artigo mantêm indelével compromisso político com a mudança desse quadro.
O termo “étnico” constitui conceito que permite analisar processos de construção da distinção
entre dois sujeitos sociais. O primeiro tido como nacional, portador de plenos direitos de participação,
reivindicação e manutenção da cidadania e da ordem moderno-ocidental. O segundo constituído por
indivíduos tidos como étnicos, historicamente conhecidos como o(s) outro(s), que são todos aqueles
que têm diuturnamente questionada a sua própria condição de existência na ordem moderno-ocidental. Conforme Maldonado-Torres (2016:77), os “étnicos são os outros, e estes outros não estão representados de forma equitativa nem na administração das instituições de poder, nem na cultura ou na
produção do conhecimento, entre muitas outras áreas”.
Historicamente, o racismo constitui ideologia que justifica, naturaliza e apazigua as históricas
desigualdades hierárquicas, econômicas, sociais e educacionais decorrentes dos quatro séculos de escravidão no Brasil, sendo “um comportamento, uma ação resultante da aversão, por vezes, do ódio, em
relação a pessoas que possuem um pertencimento social observável por meio de sinais, tais como a cor
de pele, tipo de cabelo, formato dos olhos etc.” (Munanga & Gomes, 2006:179). O preconceito racial
“é uma ideia preconcebida suspeita de intolerância e aversão de uma raça em relação a outra, sem razão
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TRADIçãO ORAL, CONSTRUçãO DE DIÁLOGO E CONHECIMENTO
objetiva ou refletida. Normalmente, o preconceito vem acompanhado de uma atitude discriminatória”
(Munanga, 2005:188).
Crianças e jovens do Quilombo da Rasa sentem que os espaços do centro da cidade de Armação
dos Búzios, seus arredores turísticos e seus respectivos equipamentos culturais, bens materiais e oportunidades de acesso lhes são negados. Mesmo a despeito de dispositivos legais que intencionam incluir
discussões sobre as ações de educação formal dedicadas à História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena,
há um descompasso na efetivação dessas políticas de inclusão, que é observado diante do silêncio dos
currículos escolares em relação às questões políticas, históricas, culturais e sociais que o preconceito
étnico-racial e o racismo impõem e que estes alunos vivenciam em seus cotidianos. Diante disso, interessou-nos investigar projetos e trabalhos desenvolvidos por professoras(es) das escolas inseridas nessa
comunidade que estivessem pautados em formas dialógicas de construção da identidade quilombola e,
não menos importante, de combate ao racismo.
O balneário e o quilombo
Armação dos Búzios está localizada na Região dos Lagos, nas Baixadas Litorâneas do interior do
Estado do Rio de Janeiro, possuindo, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), uma população estimada em 33.870 pessoas para o ano de 2019. Historicamente, o município
conhecido internacionalmente como Búzios pertencia à cidade de Cabo Frio, tornando-se autônomo
apenas em 1995. Até a primeira metade do século XX, Búzios era uma pequena e pacata vila de pescadores. De acordo com Accioli (2018:24), “os relatos sobre a chegada dos primeiros africanos na região
de Búzios remontam ao período da pesca das baleias, no século XVIII”. Ainda segundo a autora:
Nas memórias locais, o Arpoador da Rasa, que foi o primeiro ponto de desembarque de africanos,
era também aonde os velhos sentavam para rememorarem histórias do cativeiro. Nas proximidades, fica o Porto das Canoas, local de pesca usado pelos escravos e que, ainda hoje, abriga uma
comunidade pesqueira tradicional. Igualmente importante na memória comunitária é a Ponta do
Pai Vitório. Os relatos locais contam sobre um velho africano, Pai Vitório, que teria sobrevivido a
um naufrágio e passado a viver naquele local (ibidem).
Estudos como o de Acciolli (2012) apontam que os desembarques clandestinos estavam ligados
à Fazenda Campos Novos, construída pelos Jesuítas da Companhia de Jesus em 1617. De acordo com
Almeida (2015:74), ela tinha “o objetivo de promover um maior controle dos povos indígenas na região, devido à preocupação com o constante desembarque de estrangeiros que negociavam pau-brasil
com os índios que ali habitavam”.
Após 1759, ano da expulsão dos Jesuítas do Brasil, foram criados o Diretório dos Índios e o regime dos Aldeamentos Régios que colocaram em prática, segundo Holanda (1960), uma política que
proibiu nos aldeamentos o uso de qualquer outra língua diferente do Português, a prática de se viver em
habitações coletivas e da nudez. Institui-se a obrigatoriedade da criação de escolas nos aldeamentos e
os índios que ali viviam foram obrigados a adotar o uso de sobrenome português, além de serem incen-
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tivados à mestiçagem e ao trabalho a partir da lógica de proteção do território contra os estrangeiros e
produção extrativista e mercantilista. Essas políticas representaram para os índios parte do processo de
espoliação de seus próprios territórios ancestrais, o desrespeito, negação e invisibilização das específicas
etnicidades e a constante ameaça física de todos aqueles que se negaram a aceitar a imposição dessa
política, culminando na expulsão territorial, guerras e massacres dessa população ao longo de cinco
séculos. Com a expulsão dos padres, a fazenda foi encampada pelo Governo Real, colocada em leilão e
arrematada por Manuel Pereira Gonçalves. Pessoas escravizadas serviram de mão de obra nas plantações de lavouras da fazenda, voltadas para o abastecimento da cidade do Rio de Janeiro.
Posteriormente a publicação da Lei de 7 de novembro de 1831, que declarou “livres” todos os
escravos vindos de fora do Império e estabeleceu penas aos importadores, a região da Fazenda Campos
Novos e as novas propriedades surgidas em seu território foram usadas para apoio ao tráfico clandestino. As características das praias localizadas na Rasa, com baías isoladas, permitiram que, no século
XIX, fosse montada importante rota ilícita, utilizada como um dos últimos pontos clandestinos de
pessoas escravizadas na região do antigo Cabo Frio (Accioli, 2018:26).
No caso específico da Rasa, após 1888, com a abolição da escravatura, boa parte das famílias
que tinham sido escravizadas continuaram trabalhando para os grandes fazendeiros locais e também
passaram a fazer uso das terras contíguas à praia, para desenvolver roças de mandioca e milho, a criação de pequenos animais e também a prática da pesca artesanal realizada a partir de linha mão, com o
emprego de canoas feitas de tronco de árvores da Mata Atlântica (Xavier, 2006). São essas famílias que
paulatinamente vão sendo expulsas dos latifúndios locais, vendo-se obrigadas a trabalhar nas salinas da
região, na construção civil ou em serviços domésticos (Accioli, 2018). Muitas delas construíram casas
de pau a pique junto às respectivas roças.
Apesar de estar a aproximadamente 12 km do centro da cidade, os moradores da Rasa historicamente sofreram e testemunharam formas violentas de expulsão territorial. Conforme narram seus
moradores, isso gerou o paulatino desmembramento daquilo que se conhecia como Praia Rasa – e que
abarcava também as comunidades quilombolas de Baía Formosa e Maria Joaquina –, a partir de intensa pressão imobiliária imposta pela ação de mandatários locais, do Estado e de construtoras, do forte
investimento em hotelaria e da supervalorização dos terrenos em Búzios.
Em consequência direta das ações de empreendimentos imobiliários, na década de 1950, foi
inaugurada a Avenida José Bento Ribeiro Dantas, que gerou grande número de novos loteamentos para
a construção de residências, em especial, as de veraneio. Essa avenida de longa extensão foi construída,
em grande medida, sobre terras onde historicamente vivia a comunidade negra da praia da Rasa, cujos
moradores sofreram diretamente as consequências negativas e os impactos da abertura dessa via e das
ruas subjacentes que impuseram ao seu território características urbanas, além do aumento do trânsito
de pessoas e automóveis. A inauguração da Ponte Rio-Niterói, em 1974, ampliou o fluxo turístico
vindo da capital em direção a toda região dos Lagos e com ele, a pressão e os conflitos por terrenos
próximos à orla marítima, o que não seria diferente na praia Rasa, onde foi instalada uma marina com
ancoradouro para lanchas, iates e barcos de veraneio.
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TRADIçãO ORAL, CONSTRUçãO DE DIÁLOGO E CONHECIMENTO
A partir da emancipação, em 1995, Búzios experimentou um novo boom de crescimento, em
geral, desordenado (Spillman, 2010). Intervenções de caráter especulativo, realizadas sem a devida
atenção ao patrimônio natural e material acarretaram diversas consequências sociais, econômicas,
políticas e ambientais. Esse incremento “desenvolvimentista” trouxe consigo, também sem medidas
de controle, a aquisição de casas de pescadores, bem como o estabelecimento de numerosas pousadas, restaurantes e bares.
Reconhecimento identitário da comunidade quilombola e as
políticas educacionais
As políticas de reconhecimento quilombola são fruto de históricas e intensas mobilização e
reivindicação de movimentos sociais negros. Constituem aparatos legais que visam a criar e instrumentalizar políticas de reparação étnico-racial, além de reconhecimento e valorização de grupos que passaram legalmente a se entender e a serem assim considerados como remanescentes das comunidades dos
quilombos. Com direito à titulação das terras por eles habitadas, tiveram acesso a outras políticas que
objetivam garantir direitos essenciais como educação, saúde, moradia, saneamento básico, segurança
alimentar, cultura, etc.
Segundo Leite (2000), O’Dwyer (2007) e Arruti (2017) o termo “quilombo” vem sendo ressemantizado e ampliado, não só para abarcar aspectos históricos de organização coletiva e resistência do
campesinato negro, contrapostos tanto ao histórico processo de escravização, quanto à expropriação e
expulsão de famílias negras das terras onde vivem. Essa recriação acontece, principalmente, para privilegiar a concepção de “coletividade” enquanto marcador “que efetivamente conduz ao reconhecimento
de um direito que foi desconsiderado, de um esforço sem reconhecimento ou resultado, de um lugar
tomado pela força e pela violência” (Leite, 2000:352).
O conceito de “remanescentes das comunidades dos quilombos” emerge do Art. 68 do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição Federal de 1988. Somente com o
Decreto 4.887 de 2003 é que se regulamenta quem são os sujeitos desse direito, os critérios de reconhecimento das comunidades e das terras quilombolas:
Art. 2o Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto,
os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com
a resistência à opressão histórica sofrida.
§1o Para os fins deste Decreto, a caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos
será atestada mediante autodefinição da própria comunidade.
§ 2o São terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos as utilizadas para a
garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural.
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§ 3o Para a medição e demarcação das terras, serão levados em consideração critérios de territorialidade indicados pelos remanescentes das comunidades dos quilombos, sendo facultado à comunidade interessada apresentar as peças técnicas para a instrução procedimental.
Na Rasa, as desapropriações e expulsões decorrentes da forte pressão imobiliária desencadearam
intenso processo político de organização e reivindicação de direitos que, em 2005, levaram 422 famílias a pleitear e obter o reconhecimento, perante a Fundação Palmares, da titulação de Comunidade
Remanescente de Quilombo da Rasa. O Relatório Técnico de Identificação e Delimitação foi aprovado pelo Comitê de Decisão Regional do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra/
RJ) em 16 de maio de 2017 e contempla estudos socioeconômicos, culturais, antropológicos, fundiários, cartográficos e ambientais relacionados ao território da comunidade. Os estudos apontaram para a
comunidade quilombola da Rasa uma área delimitada de 109,7 hectares. A regularização fundiária foi
tornada pública em portaria publicada no Diário Oficial da União no dia 27 de junho de 2017.
O bairro da Rasa possui nove escolas municipais que atendem, aproximadamente, a 3.300 alunas(os) da Educação Infantil. Nenhuma dessas escolas foi integrada à Política de Educação Escolar
Quilombola, prevista no Programa Brasil Quilombola1, nem quando essa era de responsabilidade da
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI) – secretaria
específica do Ministério da Educação (MEC) –, nem depois de sua substituição pela Diretoria de Políticas para Modalidades Especializadas de Educação e Tradições Culturais Brasileiras (criada pelo Decreto nº 9.465, de 2 de janeiro de 2019, que alterou profundamente a estrutura do MEC). Em termos
gerais, essa falta de acesso à garantia e aplicação das políticas sociais que são de direito nas comunidades
quilombolas permanece sendo um desafio a ser vencido.
De acordo com o coordenador da pasta de Etnia e Gênero da Secretaria Municipal de Educação,
Ciência e Tecnologia (doravante, SMECT) de Armação dos Búzios, a efetivação da Educação Escolar
Quilombola está “dentro da grade”, podendo ser implementada nos próximos anos. Entretanto, atualmente, ainda não há o delineamento de ações que busquem assegurar o atendimento educacional diferenciado às comunidades quilombolas do município e o desenvolvimento de uma legislação específica.
Segundo a legislação vigente,
A Educação Escolar Quilombola é desenvolvida em unidades educacionais inscritas em suas terras
e cultura, requerendo pedagogia própria em respeito à especificidade étnico-cultural de cada comunidade e formação específica de seu quadro docente, observados os princípios constitucionais,
a base nacional comum e os princípios que orientam a Educação Básica brasileira. Na estruturação
e no funcionamento das escolas quilombolas, deve ser reconhecida e valorizada sua diversidade
cultural (Brasil, 2010a:42).
O Art. 9º da Resolução nº 8/2012 aponta, por sua vez, que a Educação Escolar Quilombola
compreende tanto as escolas quilombolas, quanto as que atendem estudantes oriundos de territórios
quilombolas. Por não haver a implementação da legislação específica para a educação quilombola nas
1 Plano lançado em 2004 que constitui um dos pilares da Agenda Social Quilombola (Decreto 6.261/2007), articulando quatro eixos de
ação: acesso à terra; infraestrutura e qualidade de vida; inclusão produtiva e desenvolvimento local; direitos e cidadania.
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escolas localizadas na comunidade da Rasa, podemos afirmar que não é assegurado acesso à alimentação e infraestrutura escolar que respeite a cultura do grupo, assim como observe o cuidado com o meio
ambiente e a geografia local. Também não há a promoção de uma formação específica e diferenciada
(inicial e continuada) aos profissionais das escolas localizadas nesse território, nem é garantido que a
atividade docente seja exercida preferencialmente por professoras(es) oriundos de comunidades quilombolas. Tampouco é assegurado o desenvolvimento de um currículo escolar que tenha referência na
cultura, na tradição, na oralidade e na memória do grupo.
As consequências da não efetivação da Educação Escolar Quilombola nas escolas da comunidade se estendem para outros âmbitos. Essa política social deveria se articular em rede a outras ações
públicas focalizadas na expansão e no fortalecimento da participação dos próprios agricultores(as)
familiares quilombolas nos mercados institucionais do município, bem como no estímulo às ações
pautadas na agrobiodiversidade e no desenvolvimento sustentável local, enquanto alternativa viável
para a manutenção econômica e circulação de dinheiro na comunidade.
Prática pedagógica e construção de conhecimento na
comunidade Quilombola da Rasa
Armação dos Búzios possui 23 escolas municipais que abrangem da Educação Infantil ao Ensino
Médio. Bianca2 leciona na escola que possui o maior número de alunos matriculados na Comunidade
Remanescente de Quilombo da Rasa, atendendo, aproximadamente, 700 alunos da Educação Infantil
e dos anos iniciais do Ensino Fundamental (1º ao 5º). O quadro de funcionários é composto por 113
profissionais, sendo 63 professoras(es). Destes, a maioria não reside no município de Búzios.
As(os) professoras(es) distribuem-se em: Regente 1; Regente 2; Arte e Cultura; Educação Física. Docentes que atuam como Regente 1 lecionam as disciplinas de Língua Portuguesa, História e
Geografia; já Regentes 2 ministram aulas de Matemática e Ciências. O ensino de História e Cultura
Afro-brasileira e Indígena, de acordo com o Regimento Escolar da cidade de Armação dos Búzios, deve
ser desenvolvido nas disciplinas de História, Língua Portuguesa e Arte e Cultura, em consonância com
o Artigo 26A da LDBN.
Em 2019, Bianca – que tem a Formação de Professores na Modalidade Normal em Nível Médio
– atuou como Regente 1 em uma turma de 5º ano. Ela exercia a função de professora há 6 anos e, nesse
período, sempre atuou no bairro da Rasa. A escolha por trabalhar ali se relaciona a seu matrimônio,
pois, segundo ela, seu esposo “tem muito conhecimento aqui, com as pessoas daqui, então eu escolhi
trabalhar aqui”. Seu cônjuge pertence a uma das principais famílias quilombolas da Rasa e, por este
motivo, há nove anos Bianca passou a morar na cidade de Búzios, justamente no bairro da Rasa.
2 Os nomes utilizados são fictícios, com exceção a D. Uia e D. Eva, anciãs e mestras do quilombo da Rasa. D. Uia veio a falecer no dia
10/06/2020, aos 79 anos de idade, vítima da Covid-19. Sua mãe, D. Eva, com 111, foi vacinada no dia 19/01/21. Nossas condolências a
toda a comunidade, em especial à família de D. Eva e D. Uia, por essa inestimável perda. Que a força dessas duas mulheres negras em suas
lutas cotidianas nos animem e nos inspirem a permanecer firmes contra toda a opressão e o desrespeito, construindo assim dias melhores
e mais dignos, com vacina gratuita e de qualidade para todas as brasileiras e todos os brasileiros.
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A docente contou-nos que adquiriu o conhecimento sobre a formação do quilombo por meio
das “histórias contadas pela avó e bisavó do meu esposo que faz parte do quilombo remanescente aqui.
Pesquisas na internet, mas tem bem pouco ainda. E alguns vídeos também do YouTube” e que esse
acesso às informações facilita o desenvolvimento do seu trabalho docente. Ou seja, por ter se casado
com um membro da comunidade e se tornado moradora dela, a professora passou a ter acesso diferenciado à transmissão de saberes tradicionais pelos anciãos e, a partir disso, vem buscando se aproximar
da dinâmica social e política ali vivenciada.
De acordo com Bianca, seu interesse e preocupação em promover a construção do diálogo a esse
respeito na comunidade escolar surgiu por meio da observação das(os) alunas(os) e da detecção de que
“não tinham esse conhecimento”. Aproveitando a oportunidade de um evento literário fomentado pela
SMECT, elaborou um projeto contemplando atividades de pesquisa de campo e aula passeio a serem
realizadas por sua turma – o que, de acordo com Freinet (1966), visa a aproximar a prática educativa e
o contexto social do alunado.
Entrevistas com os moradores mais velhos, feitas durante as aulas passeio, permitiram que as
anciãs da comunidade, reconhecidas como mestras, fossem localizadas, ouvidas e tivessem suas falas
registradas pelas(os) alunas(os). Essa estratégia possibilitou que docente e discentes trabalhassem detidamente sobre essas narrativas, destacando a importância da recordação e do compartilhamento dos
saberes dos mais velhos para a própria valorização da história e cultura da comunidade. Os resultados
desse projeto pedagógico e o trabalho de interlocução com a comunidade quilombola foram expostos
durante o evento literário.
Eu acho que é uma cultura muito rica, uma história muito importante, que é desvalorizada pela
própria comunidade. As crianças que moram aqui, que chegam no quinto ano, não conhecem a
história da Rasa, não conhecem a história do bairro. O marco histórico que nós temos mais antigo,
que é do negro ali no cruzeiro, as crianças não conhecem, não se apropriam desse conhecimento,
dessa riqueza, que poderia abrir um leque cultural imenso para eles. Então, não se apropriam, é
desvalorizada pela própria comunidade (Entrevista com a professora Bianca, 11/10/2019).
Tendo esses relatos ancestrais como fio condutor inicial foi possível à professora construir a
abordagem da história de Búzios a partir de uma dupla perspectiva, a saber: (1) a narrativa oficial,
fria e distante da vida cotidiana dos educandos e (2) a narrativa pautada nas recordações coletivas do
quilombo. A primeira seria pautada em documentos históricos escritos e estatísticas, seguindo encadeamento lógico das relações econômicas, que têm como objetivo único o desenvolvimento regional
e nacional. Geralmente, omite o fato de que, por estar subsidiada por textos escritos, conta uma única versão dos acontecimentos, em consonância com os interesses das pessoas letradas, notadamente
homens brancos, pertencentes a classes abastadas. A segunda narrativa, por sua vez, vai privilegiar o
passado marcado pela dominação e escravidão de indígenas e africanos, que justifica e naturaliza a
imposição da apropriação do fruto de seus trabalhos; a lembrança dos desembarques de pessoas negras
escravizadas na praia Rasa; o conhecimento sobre as condições lastimáveis em que essas pessoas chega-
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vam; as formas de resistências encontradas para a manutenção da vida na comunidade desde o período
da escravidão até os dias de hoje.
Ao articular dialeticamente essas duas perspectivas, a professora buscou lidar com questões decorrentes das profundas desigualdades étnico-raciais, econômicas e sociais enfrentadas por estudantes
e familiares em seu cotidiano na cidade, um dos principais destinos turísticos3 do Brasil.
[...] a cidade é referência mundialmente, em relação às praias. Essas crianças quase
não vão às praias famosas, o que eles conhecem é o bairro local, o mangue de pedra,
às vezes visitam para tomar um banho – mas não sabem a importância desse espaço.
Visitam a praia Rasa de vez em quando, mas muito de vez em quando, porque é uma
praia suja. Então, assim, Búzios para eles é dividido. Dividem em: Rasa é uma coisa
e Búzios é outra, como se fosse algo muito além do que podem alcançar. As famílias
são grandes, não tem como pagar passagem para todos irem à praia e aí eles acham
que Búzios é a cidade dos ricos e eles moram no “sub-bairro” Rasa, que é a cidade
dos pobres. Eles são pobres e é o que é de direito deles (Entrevista com a professora
Bianca, 29/11/ 2019).
A partir da fala de Bianca podemos compreender que o racismo na cidade de Búzios, como em
todo o Brasil, constrói barreiras simbólicas que, nesse caso, acabam demarcando geograficamente muros invisíveis e acesso segregado entre brancos e negros na cidade. Segundo a professora, isso se reflete
no ir e vir das próprias crianças, jovens e seus familiares, que quase não percorrem outras localidades
além da Rasa. Assim, tais estudantes vivem em uma cidade litorânea, internacionalmente reconhecida
por seus atrativos naturais tidos como paradisíacos, mas quase não vão às praias, nem aos estabelecimentos comerciais e equipamentos culturais localizados na área central, por serem pobres e negros.
Esse cenário se complexifica ainda mais em decorrência da onda migratória de latino-americanos, em especial de argentinos que, a partir dos anos 1970, escolheram o pequeno vilarejo de pescadores para morar, em busca de oportunidades de investimento em empreendimentos turísticos, tentando
conciliar trabalho e qualidade de vida ante à crise econômica no seu país de origem. O reflexo desse
afluxo, que se estende até os dias de hoje, traduz-se na internacionalização do turismo de Búzios, cuja
indústria confere preferência a pessoas brancas que dominem a fala de diferentes idiomas, especialmente o espanhol e o inglês. Elas ocupam vagas de trabalho em bares, restaurantes, quiosques de praias,
lojas de grife, setores que oferecem as melhores oportunidades de renda na cidade.
A compreensão de que uma maior visibilização e valorização da comunidade quilombola, em
sua especificidade, é importante para romper as barreiras de segregação étnico-raciais está na base da
iniciativa de Bianca. A partir da possibilidade aberta pela Festa Literária, a professora promoveu ações
de educação antirracista dentro e fora da escola. Algumas questões estruturais se impõem ao processo.
Exatamente pelo fato de a escola estar localizada em uma comunidade quilombola, Bianca compreendeu a necessidade de ampliar o trabalho pedagógico com temáticas referentes à história e cultura local.
A docente as considera fundamentais na construção da identidade e do sentimento de pertencimento
de alunas(os), bem como para a valorização da memória coletiva e do próprio território. Porém, esse
3 Em 1964 o balneário recebeu a visita da atriz francesa Brigitte Bardot, expoente do cinema internacional e símbolo de beleza e apelo
sexual. Com seu reconhecimento internacional, acabou sendo pivô da publicização turística da localidade, atraindo visitantes estrangeiros. Na década de 1970, a construção da Ponte Rio-Niterói facilitou o acesso às praias da Região dos Lagos, ampliando tanto o apelo e
atração de turistas para o local como a decorrente pressão imobiliária para atendimento desta demanda.
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esforço não é acompanhado e nem se projeta a partir de intervenções públicas estruturantes específicas,
como poderia acontecer se as instituições de ensino locais estivessem integradas à Política de Educação
Escolar Quilombola. Isso não diminui a importância das ações de Bianca, mas explica suas angústias
frente às dificuldades encontradas para abordar temáticas relativas à diversidade cultural, em especial
os conhecimentos afro-brasileiros específicos desse grupo.
Expressões culturais e tradição oral na Festa Literária de
Búzios
A Festa Literária – “Búzios Palavra que encanta”, lançada pela SMECT, teve a participação de todas as escolas municipais. De acordo com documento oficial, o evento almejava a “valorização da nossa
gente, buscando desta forma resgatar e consolidar a identidade do alunado como buziano” (Projeto da
Festa Literária Búzios Palavra que Encanta, 2019b). A oportunidade de participar da Festa Literária
permitiu que Bianca elaborasse estratégias para, a partir da memória da comunidade quilombola, visibilizar esses conhecimentos enquanto saberes específicos, pautados nas tradições orais afro-brasileiras
e, concomitantemente, como legítima forma de resistência, resiliência e base para a criatividade dessas(os) alunas(os). Assim, ela pôde estabelecer relação entre os conteúdos propostos pelos currículos de
Língua Portuguesa, História e Geografia do 5º ano do Ensino Fundamental (Referencial Curricular de
Armação dos Búzios, 2019a) que, em linhas gerais, devem abordar as seguintes competências:
Compreender a língua como fenômeno cultural, histórico, social, variável, heterogêneo e sensível
aos contextos de uso, reconhecendo-a como meio de construção de identidades de seus usuários e
da comunidade a que pertencem.
Compreender acontecimentos históricos, relações de poder e processos e mecanismos de transformação e manutenção das estruturas sociais, políticas, econômicas e culturais ao longo do tempo e
em diferentes espaços para analisar, posicionar-se e intervir no mundo contemporâneo.
Estabelecer conexões entre diferentes temas do conhecimento geográfico, reconhecendo a importância dos objetos técnicos para a compreensão das formas como os seres humanos fazem uso dos
recursos da natureza ao longo da história (Referencial Curricular de Armação dos Búzios, 2019a).
Esse planejamento permitiu que a professora e sua turma participassem da Festa Literária expondo o resultado dessa atividade feita a partir das experiências socioculturais vividas pelas(os) alunas(os)
e suas famílias e registradas sistematicamente durante a realização do projeto.
[...] o município trabalhou: “Búzios, palavra que encanta”. E aí quando fala de Búzios muita gente
só vê a Rua das Pedras, Brigitte Bardot. Eu quis trazer a identidade do bairro, da história local,
porque... para as crianças perceberem que o bairro da Rasa sofreu uma mudança muito rápida. A
minha sogra tem 46 anos. Quando ela era criança não tinha prato para ela se alimentar. Ela falou
que pegava uma lata de metal, socava com um pilão que eles faziam, tipo um socador de alho. So-
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cavam aquela lata, deixavam no sol para secar, porque geralmente era uma lata de agrotóxico que
os fazendeiros usavam nas plantações. Então, depois essa comunidade que não tinha meios para
adquirir um prato e um copo, pegava esse alumínio e transformava em prato, em copo. As casas
eram de barro. Ela falava que mesmo o chão de terra batida, limpavam com umas vassouras de piaçava – que era uma plantinha que tinha aqui. Então, assim, ela tem 46 anos, ela viveu essa infância
e hoje ela usufrui de uma coisa totalmente diferente. Tem uma casa totalmente diferente, com um
conforto que ela nunca imaginou quando era criança. Eu falei com os meus alunos, as crianças não
iam para a escola, às vezes iam, mas a escola era em Campos Novos. Então eles tinham que acordar de madrugada, andar horas até chegar na escola. Quando os pais iam pescar, as mães ficavam
para plantar. Era uma plantação de subsistência. Se não planta, não come. E as crianças ajudavam
as mães nessa colheita. Era assim, o trabalho vinha em primeiro lugar. A escola? Ninguém sabia
ler e escrever. A prioridade era a alimentação. Então tinha a casa de farinha onde transformavam
a mandioca na farinha e aí os moradores mais antigos contam que era uma fonte de muita alegria
essa transformação, porque com a farinha eles podiam cozinhar coisas muito diferentes. Era uma
festa. A noite depois que produziam a farinha, todos se reuniam, faziam uma festa, uma fogueira,
assavam legumes. Então, as pequenas coisas que conseguiam era motivo de grande alegria na comunidade (Entrevista com a professora Bianca, 29/11/ 2019).
A docente reconhece a importância da valorização da tradição oral, enquanto processo que articula identidades e aprendizagens. Para Bianca, mais do que simplesmente ouvir uma história, o contato
com as narrativas dos mais velhos significa a transmissão de experiências ancestrais que contribuem na
manutenção da identidade, da memória e da cultura desta comunidade4.
A tradição oral constitui matriz cultural presente em grupos que não se pautam na escrita para
o acúmulo, a manutenção e a transmissão de conhecimentos entre gerações, como são os casos de sociedades africanas, afro-brasileiras e ameríndias. Essa prática também pode estar intimamente ligada à noção de memória social e performance, que se desenvolvem por meio da corporalidade e musicalidade,
uma vez que esses saberes são incorporados em processo mnemônicos, os quais dependem do embalo,
enquanto movimento ritmicamente ordenado do corpo, para que a rememoração e presentificação da
palavra versada aconteça.
Halbwachs (1990) conceituou a memória coletiva como processo de escolha de certos elementos do passado para construir uma narrativa a partir do presente. Ela está sempre encarnada num grupo,
que pode ser efêmero ou estruturado, sendo o vínculo entre seus integrantes fundamental para a sua
existência e manutenção. Por grupo, o autor compreende não um conjunto de indivíduos definidos,
mas aquilo que o constitui em sua estabilidade e permanência, ou seja, essencialmente, uma ordem de
ideias, preocupações e interesses que se particulariza e se reflete nas personalidades de seus membros,
bem como que subsiste de modo que qualquer um deles possa acessá-la no futuro, bastando para isso
recolocar-se nessa corrente da qual fez parte um dia ou não. Sob essa luz, os processos de reconstrução
de religiões e cultura afro-brasileiras foram explicados a partir da conservação de fragmentos de lem4 Segundo Prandi (2000:50), “é natural do ser humano a busca pela identificação de um grupo social, o indivíduo recorre a lembranças
de lugares e objetos, presentes nas memórias e assim organiza seus referenciais identitários, pois a identidade é percebida, captada e construída e está em permanente transformação”.
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branças mantidas e recriadas por meio da memória coletiva de diferentes grupos de pessoas escravizadas e de seus descendentes (Bastide, 1960).
As culturas5, enquanto processo e acontecimento, se desenrolam a partir do mundo da vida,
no tempo presente e, por isso, possuem caráter de constante (re)elaboração que permite a cada uma
selecionar, a partir de suas respectivas epistemologias e modos de vida, formas distintas de lidar com
o espaço, o tempo, a acumulação e transmissão de saberes, fazeres, memórias e bens, processos esses
que engendram a própria reprodução social do grupo e sua inerente transformação histórica. Segundo
Gusmão (1999:46):
a cultura e seu movimento incorpora ainda uma outra dimensão que é seu caráter de mediação, ou
seja, aquilo que faz com que as condições objetivas de vida sejam expressas pelos sujeitos sociais,
não pelo que de fato são e representam, mas pela forma pela qual o real é significado, percebido
e interpretado. Cabe aos indivíduos e grupos, perceber, significar e interpretar a si mesmos em
relação ao que vivem e experimentam e que, impregnam a textura social do cotidiano, enquanto
imagem, rotina e ruptura, enquanto universo significante que é parte da vida vivida, pensada, sentida e concebida.
Por meio da fala, da gestualidade e das expressões musicais, os saberes afro-brasileiros têm sido
transmitidos de geração em geração, permitindo o contato do passado com a vivência do presente num
movimento dialético entre resistência e transformação, na busca incessante pela permanência dos seus
valores ancestrais e pela garantia dos seus direitos. Segundo Ingold (2000) e Carneiro da Cunha &
Almeida (2001), os conhecimentos tradicionais são repertórios cognitivos construídos e transmitidos
que têm como substratos sentimentos, sensibilidades, habilidades e orientações geradas a partir de longa experiência no ambiente particularmente habitado. Os saberes e fazeres tradicionais são expressões
culturais que, apesar de terem sido (re)elaborados a partir das práticas eficientes de como lidar com desafios, contingências e oportunidades do cotidiano, não possuem caráter extraordinário ou espetacular.
Compreender a validade e a importância das expressões e tradições orais para a valorização da
história e da cultura da população negra pode romper com processos de exclusão, discriminação e
preconceitos que frequentemente são detectados nos ambientes escolares e fora deles. Esse reconhecimento não significa a desvalorização dos conhecimentos advindos e produzidos pela escrita, nem
tampouco significa dizer que essa população não apresenta habilidades para a escrita. Hampaté Bâ
(2010:167-168) destaca que, nas nações modernas, onde o livro é considerado o principal veículo de
herança cultural, durante muito tempo julgou-se que os povos sem escrita eram sem cultura. Com o
trabalho realizado por etnólogos do mundo inteiro, esse conceito infundado desmoronou.
Podemos argumentar que Bianca desempenha ação de ser professora-pesquisadora e, a partir
da leitura crítica do mundo envolvente, passa a perceber a necessidade de realizar ações pedagógicas
5 O conceito de cultura não diz somente respeito aos traços, costumes, festas e crenças de um povo mas, de forma ampliada, “denota um
padrão de significados transmitidos historicamente, incorporado em símbolos, um sistema de concepções herdadas, expressas em formas
simbólicas por meio dos quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida”
(Geertz, 1989:103). Essa ampliação conceitual permite compreender que não existe cultura no singular e as discussões sobre etnicidade
são importantes pois passam a produzir e reproduzir fronteiras de diferenciação entre culturas (Barth, 1998).
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que focalizem as expressões culturais, buscando meios para transformar e ressignificar um contexto
de racismo e exclusão étnico-racial. Ela entende que as memórias e os conhecimentos tradicionais da
comunidade quilombola da Rasa, geralmente transmitidos por meio da oralidade, constituem meio
de construção e afirmação dessa identidade. Esses saberes se remetem a uma África ancestral enquanto
fonte e inspiração matricial6.
Durante as aulas, Bianca observou que as(os) alunas(os) estavam expostos, desde a mais tenra
idade, a situações de conflitos e de racismo, sendo esses sentimentos introjetados enquanto parte constituinte de sua identidade. As ações pedagógicas desenvolvidas pela docente recorreram, assim, à escuta
estudantil. A partir do acolhimento em sala de aula para temáticas tão sensíveis, a turma foi convidada
a escutar as histórias de vida de moradores da comunidade – o que, de acordo com Reis (2017:24), é
indispensável para a formação da identidade negra.
No caso da comunidade da Rasa, os princípios, valores e concepções da tradição oral influenciam
nos processos de ensinar e de aprender também dentro do espaço escolar, como destacado por Bianca:
[as(os) alunas(os)] trouxeram pesquisas de lendas locais. Falaram de saci-pererê, mula-sem-cabeça,
que os avós, os tios afirmam até hoje que viam esses seres quando eram crianças, que tinha isso sim.
E alguns mais velhos contam que quando começou, trouxeram a igreja Assembleia de Deus para
o bairro da Rasa, essas aparições foram desaparecendo aos poucos. É interessante porque traz uma
memória cultural e uma verdade própria da comunidade. Hoje as crianças sabem que não é verdade, mas naquele tempo era passado de geração para geração (Entrevista com a professora Bianca,
29/11/2019).
A partir desse relato compreendemos que a presença e atuação de igrejas neopentecostais vêm
promovendo a ressignificação, o combate e a interdição da agência de conhecimentos, mitos e narrativas de matriz africana na comunidade. A diversificação do campo religioso local altera também a
disposição das famílias em transmitir tais conhecimentos, afirmando que seriam coisas do passado ou
agências a serem vencidas. Dito de outra forma, o neopentecostalismo, ao propor o ataque sistemático
às religiões e expressões culturais afro-brasileiras (Silva, 2007), produz uma espécie de silenciamento e
interdição da transmissão de conhecimentos tradicionais afrodiaspóricos, que geralmente acontecem
por meio tanto das práticas cotidianas, quanto das redes de produção e celebração de rituais e festividades dos próprios grupos.
Promoção de diálogo entre saberes na escola
Ao longo de cinco meses, Bianca propôs atividades dentro e fora da escola, envolvendo também os responsáveis pelo alunado, seus familiares e membros da própria comunidade quilombola.
6 Isso se conecta ao que Rocha (2011:32-33) comenta: “É preciso esclarecer que as sociedades africanas consideradas tradicionais são
aquelas que souberam conservar princípios e valores que eram cultivados anteriormente à invasão do continente africano pelos europeus. Já as comunidades tradicionais afro-brasileiras são aquelas que, pelo suporte da oralidade, preservaram em sua memória coletiva
os valores tradicionais africanos, recriados e reatualizados em terras brasileiras. Por isso, as marcas da cultura africana, indiscutivelmente
impregnadas no cotidiano da sociedade brasileira, precisam ser mais estudadas e entendidas, especialmente as manifestações da tradição
oral, que, de forma incisiva, foram ressemantizadas e reconstruídas nas comunidades tradicionais afro-brasileiras”.
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Esse projeto foi apoiado e acompanhado por Luana, supervisora escolar que auxiliou tanto Bianca,
como a equipe docente, com subsídios bibliográficos e metodológicos. Com isso, Luana esperava aumentar o engajamento de docentes e estudantes, tendo como efeito a promoção de reflexões sobre as
especificidades e lutas da comunidade quilombola frente às mudanças ocorridas no bairro em trinta
anos, período que compreende o processo de emancipação e expansão do município. A esse respeito,
a supervisora comentou:
Durante todo o nosso semestre agora, a partir... depois das férias, nós começamos a fazer várias
atividades de campo para que eles pudessem entrevistar pessoas da Rasa, moradores da Rasa, para
que eles pudessem conhecer o comércio da Rasa agora, o comércio da Rasa anterior e a Rasa antes de ser Rasa. Então nós fizemos visitas na casa da [liderança na comunidade], que é a casa da
[liderança na comunidade] também, da comunidade... Eles tiveram uma contação de histórias lá,
depois nós fomos caminhando pelo local, eles foram fazendo releituras, desenhos, informações.
Depois nós elaboramos um questionário de entrevistas, eles levaram essa entrevista para casa, perguntaram para os pais, o que eles conheciam da Rasa, né? Fizeram toda uma história, uma contextualização. A partir dessa história, eles partiram para a prática, que foi a montagem de um teatro,
onde eles representavam a Rasa há 30 anos atrás, que é bem diferente dos dias de hoje e agora eles
estão expondo todos os trabalhos que eles construíram. Além de ter trabalhos de exposição deles,
eles conseguiram materiais também que representam, né... a história da Rasa. Então, ao longo
desse período todo, além de ir para a rua, para conhecer a história, eles iam também catar material
reciclado, montar a sala, aí ficou bem bacana, valeu a pena (Entrevista com a supervisora escolar
Luana, 31/10/2019).
O olhar de Bianca possibilitou uma nova concepção de desenvolvimento de ações pedagógicas, extramuros, viabilizando a construção de significados a partir do encontro com o Outro, sua própria história e cultura. Embora tenha buscado desenvolver esse novo olhar sobre a sua prática, Bianca considerava, no entanto, que a escola na qual atuava cumpria “o mínimo” referente ao Art. 26A
da LDB. Diz ela:
Olha, acho que tem, o mínimo sim. O potencial dela é muito grande, então, tem potencial para
estudar isso aí e muito mais. Até para quebrar certos preconceitos. Porque quando falam de índio, as crianças já remetem aquele que fica batendo tambor, com a boca, anda pelado no meio da
floresta. Então, já que a gente tem um quilombo que sofreu influência indígena e é único por isso.
Dentro de várias questões é um quilombo diferenciado porque sofreu essa influência, acho que a
escola poderia trabalhar muito mais, mostrar que o índio não é só aquele que vive pelado no meio
da floresta e trazer um pouco dessa cultura indígena de verdade para abrir um pouco a mente dessas crianças para enxergar um mundo de uma forma diferente. Não ficar aprisionado na caixinha
achando que negro e africano tem que ser macumbeiro – nem sabe o que é, mas escuta falar – e o
índio, aquele que anda pelado, mas não sei o que e só a religião que presta é a cristã. Eu sou cristã,
mas eu quero que os alunos pensem, reflitam (Entrevista com a professora Bianca, 29/11/2019).
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Durante a aula passeio, as(os) alunas(os) saíram da escola juntamente com a docente e percorreram um caminho de aproximadamente 2 km com o transporte escolar até a casa onde vivem duas das
principais lideranças da comunidade – uma delas, nascida em 3 de junho de 1941, bisneta de mulher
escravizada e engajada enquanto principal liderança local na busca da regulamentação das terras de
comunidades e pela garantia de políticas públicas para a população quilombola. O grupo também se
encontrou com a eminente anciã da Rasa, de 110 anos, que nos recebeu em sua casa e nos contou ser
neta de escravizados, criada na Fazenda Santo Inácio, em Campos Novos. Ao longo desse projeto as(os)
alunas(os) tiveram a oportunidade de experienciar a condição de serem aprendizes dessas duas mestras,
questionando, escutando e registrando os conhecimentos transmitidos por meio das memórias e narrativas das anciãs, enquanto expressão da tradição oral local.
As duas, mãe e filha narraram, a partir de experiências vivenciadas na Rasa, em seus respectivos
tempos, como foram criadas e como criaram seus filhos pelo trabalho na roça de milho e mandioca,
assim como por meio da pesca artesanal, que envolvia também limpar e salgar o peixe, pois naquela
época não havia geladeira. Também contaram que, naquele tempo, só se cozinhava em fogão de lenha,
que enfumaçava toda a cozinha e as crianças podiam brincar pelos matos, quintais e roças, que se estendiam por toda a extensão da Praia da Rasa, desde que trouxessem lenha pra acender e alimentar o
fogo. A maioria das casas eram feitas de pau-a-pique. A turma ouviu com atenção e fez perguntas sobre
a formação da comunidade da Rasa.
No caminho de retorno à unidade escolar, a professora foi chamando a atenção sobre a importância de conhecer e, ao mesmo tempo, de se questionar sobre o passado. Bianca destacou como as
pessoas viviam, trabalhavam, se deslocavam e como essas ações configuraram o quilombo. Questionou
ainda a turma sobre como cada um(a), seus familiares e vizinhos vivem hoje e quais são as ações que
poderiam ser realizadas para a melhoria das condições de vida, tanto do quilombo, quanto do bairro,
com o mesmo nome. Para isso, as(os) estudantes também foram estimulados a, posteriormente, realizar fotografias e anotações a partir das informações obtidas na visita e das questões que dali surgiram.
Após discutir e refletir sobre a visitação e acerca dos registros textuais e imagéticos produzidos pela
turma, a professora lhes entregou um questionário para que fizessem uma entrevista com seus próprios
pais e responsáveis, em suas respectivas casas. A atividade visava à promoção do diálogo da família em
torno da vivência na Rasa, tendo como marcação temporal os últimos 30 anos.
Com a transformação desse conjunto de informações em dados, as(os) alunas(os) tiveram a oportunidade de compreender a condução de uma pesquisa, que passou a ser o foco gerador de discussões e
debates em classe. As narrativas das anciãs e as entrevistas realizadas com os familiares permitiram que
fosse destacada a recorrência de memórias e vivências ocorridas em alguns espaços de sociabilidade e
manutenção do grupo, com especial destaque para a pesca, a roça, a cozinha e a casa de farinha. Assim,
esse processo permitiu a seleção de aspectos sobre o sustento e a forma de vida na Rasa, que foram
usados como referência para a construção, por parte das(os) estudantes, de cenários que representaram
espaços tidos como importantes tanto pelas mestras, quanto pelos familiares entrevistados.
Para essa montagem, foram selecionados e utilizados materiais reciclados, recolhidos pelas(os)
alunas(os) em suas próprias casas. Ao final do ano letivo, em culminância com a Festa Literária, houve
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a montagem de uma exposição com cenários distintos, a saber: barco de pesca (Fig. 1); casa de farinha
(Fig. 2); roçado da lavoura (Fig. 3); cozinha com fogão de lenha (Fig. 4); brinquedos e brincadeiras
infantis (Fig. 5).
Figura 1: Cenário que representa barco e apetrecho de
pesca.
Figura 2: Cenário que representa a Casa de Farinha onde
se realiza a produção artesanal de farinha de mandioca.
Fotografia: Ana Vaz, 29/11/2019.
Fotografia: Ana Vaz, 29/11/2019.
Figura 4: Cenário que
Figura 3: Cenário que
Figura 5: Brinquedos prorepresenta cozinha com
representa o roçado da laduzidos a partir de oficinas
voura de milho e mandioca. fogão de lenha e pilão esca- de reciclagem.
vado no tronco de árvore.
Fotografia: Ana Vaz, 29/11/2019.
Fotografia: Ana Vaz, 29/11/2019.
Fotografia: Ana Vaz, 29/11/2019.
Para a construção desses artefatos, os saberes transmitidos oralmente pelas lideranças entrevistadas foram agenciados pelos(as) alunos(as), a partir da proposição da professora Bianca. Posteriormente, os estudantes construíram uma representação que desse conta de visibilizar e valorizar aspectos
da cultura local tidos como importantes pelas mestras entrevistadas. A criatividade foi ludicamente
exercida para a construção dos brinquedos e dos cenários, e constitui capacidade prática necessária à
transformação dos materiais disponíveis em artefatos que atendam às necessidades e contingências encontradas no cotidiano do grupo. Também foi dado destaque aos instrumentos que permitem a obtenção de alimentos e garantem a segurança alimentar da comunidade, como o barco de pesca, o roçado e
a casa de farinha. A representação desses instrumentos remete, também, à fartura da colheita, da pesca e
da produção da farinha enquanto mote das antigas festas, realizadas à beira da fogueira, onde comida e
bebida eram consumidos aos sons dos tambores e de vozes que cantavam os desafios em pontos cifrados
e enigmáticos de jongos e cirandas.
A cozinha, a casa de farinha e o fogão de lenha merecem especial atenção devido à importância
no cômputo dessa montagem. Nas tradições africanas e afro-brasileiras, o ato de cozinhar é o exemplo
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máximo da potencialidade da transformação por meio da qual se dá vida ao que antes estava morto,
usando para tanto os próprios elementos da natureza (fogo, água, ar e terra transmutada pela metalurgia ou cerâmica). Assim, o ato de cozinhar, em sociedades de matriz africana, tende a ser de responsabilidade das mulheres enquanto gesto simbólico do próprio princípio feminino da transformação
criadora. Por intermédio dessa culinária, a própria manutenção alimentar do grupo é cotidianamente
realizada, por uma cadeia de produção, assim como pelo preparo de alimentos e infusões de ervas para
a cura dos males.
Os(as) alunos(as) tiveram, pois, a oportunidade de produzir obras estéticas, realizada a partir do
movimento do corpo e da ação das mãos. Os objetos narrados pelas mestras foram transcodificados,
representados e reproduzidos a partir de espécie de arte efêmera, tornando-as coisas tangíveis, suportes
das memórias que, quando agrupados, passaram a constituir os cenários. Tais suportes promovem a
objetivação da própria “cultura” quilombola.
Para que a comunicação com o público pudesse acontecer de forma plena, a turma lançou mão
da escrita narrativa e imagética, por meio da qual articularam fotografias e textos impressos para, assim,
oferecer aos espectadores diversas informações: sobre as entrevistas realizadas, os moradores da comunidade do Quilombo da Rasa e o processo de pesquisa desenvolvido sob a orientação da professora
Bianca. A cada visita que recebiam, as(os) discentes performavam uma pequena encenação de como,
segundo as narrativas das mestras, viviam os moradores da Rasa no passado.
Assim, pais, irmãos e demais familiares, distribuídos em grupos pequenos, foram convidados a
entrar em cada uma das salas onde estavam montados os cenários e ali as crianças passavam a contar
sobre a visita que fizeram às anciãs, explicando como era realizado o trabalho necessário para a própria
manutenção do grupo, por meio da pesca com canoa feita pelos próprios residentes com um único
grande tronco. Também relataram como os antigos moradores da Rasa sabiam cozinhar e fazer farinha
no fogão de lenha, com mandioca e milho, o que garantia a estocagem de comida num momento em
que não existia geladeira.
Essa apresentação foi realizada na escola que se abriu ao final do ano letivo para receber a comunidade escolar para visitação, como culminância do projeto da Festa Literária. A construção dos cenários permitiu que os demais docentes também passassem a conhecer aspectos julgados relevantes pelos
quilombolas sobre suas formas de organização, sua história, cotidiano, cultura e processos econômicos,
num denso processo de comunicação. A montagem da exposição durante o evento literário permitiu
que as referências sobre o mundo particular dos quilombolas circulassem no espaço escolar, tornando
visíveis ao público – formado por professoras(es), alunos(as) e seus familiares – as representações dos
lugares de trabalho e também do interior das casas, espaço privado onde a vida cotidiana desse grupo
acontece. Desse modo, as crianças e jovens que participaram da exposição puderam tanto expor, quanto fruir de suas próprias obras estéticas, construídas coletivamente.
Uma vez que os demais docentes pouco saem da escola ao longo do ano letivo, Bianca e sua turma levaram um pouco do quilombo para aquele ambiente. A professora compreende o desafio que é
para seus colegas trabalharem com a cultura da comunidade quilombola, tendo em vista que, em sua
avaliação, possuem pouco conhecimento sobre a formação dela:
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É muito difícil quem vem de fora, quem não é do bairro da Rasa, conhecer. Porque não tem registro.
No YouTube tem uma coisa ou outra de um historiador que veio do Rio de Janeiro e pesquisou. Eu
acho que a gente precisa, a comunidade quilombola precisa de um historiador vir, focar, estudar a
fundo a história da comunidade. Divulgar essa história, em um site oficial da prefeitura de Búzios,
fazer um livro sobre essa história. Assim, teria mais facilidade para o professor ter acesso, porque se
eu não conhecesse a dona Uia, dona Eva, a família do meu esposo que é quilombola, eu não saberia
de praticamente nada. Saberia algumas coisas que tem em site que, às vezes, nem são verdadeiras,
porque quando pergunta aos moradores... O que é preocupante é que os detentores desse conhecimento já estão com a idade bem avançada. E quando eles morrerem? E essa história? Os netos às
vezes não sabem, não se interessam. Os filhos sabem pouquinho. Então, vai acabar se perdendo no
meio de tudo isso aí (Entrevista com a professora Bianca, 29/11/2019).
Essa percepção impulsionou a necessidade sentida por Bianca de ampliar o alcance das discussões sobre a educação em comunidades quilombolas, a partir de ações que extrapolem os muros da escola e aproveitem o potencial dos processos de educação informal engendrados pelos próprios grupos,
portanto, específicos a cada comunidade. A questão da construção da identidade de crianças e jovens,
os conflitos, as influências e dúvidas decorrentes desse processo constituem problemáticas que afetam
toda uma comunidade e os reflexos disso impactam, sobremaneira, o desenvolvimento das ações pedagógicas no ambiente escolar7.
Ainda que de maneira prescritiva, parece oportuno argumentar que o desenvolvimento de uma
educação antirracista que, nesse caso, valorize as especificidades do quilombo e o respeito aos quilombolas, precisa levar em consideração os(as) mestres(as), seus(as) anciãos(as) que são guardiões da
palavra ancestral, uma vez que se encarregam de transmitir o que foi vivido e o que lhes foi ensinado,
preservando as memórias coletivas e os conhecimentos do grupo. É importante frisar que familiares das anciãs apontaram a falta de políticas públicas focalizadas na valorização da cultura local pelo
município de Búzios:
Acho que a gente tem que ter um pouquinho mais de apoio. Ali na Rasa a gente não tem uma
sede. Na Baía Formosa é mais organizada. Você já viu? Eles têm um quilombo, uma sede. Podem
ir lá visitar, participar. Aqui não tem, existe uma casa que é da vovó. Ela está lá deitada o dia todo
na cama e fica cheio de gente. É muito difícil. Não tem um espaço para receber os alunos, têm que
ficar do lado de fora” (Entrevista com Sandra, 21/11/2019).
A Baía Formosa guarda relações históricas de continuidade geográfica com a Rasa, sendo que
pessoas de ambas as comunidades quilombolas mantêm trocas, comércio e relações de parentesco entre
si. Interessante verificar que o fato de Baía Formosa possuir infraestrutura física e sede coletiva é acionado como subsídio para compreender o impacto da falta desses espaços coletivos na vida das próprias
7 Como destaca Libâneo (2014: 81): “Ao fazer da experiência social concreta dos alunos a própria trama do trabalho pedagógico, sobre
a qual se introduz o conteúdo científico das matérias, está-se concebendo o conhecimento como uma atividade inseparável da prática
social. A atividade teórica é o processo que, partindo da prática, leva a ‘aprender’ a realidade objetiva para, em seguida, aplicar o conhecimento adquirido na prática social para transformá-la. A ênfase nos conhecimentos não visa, portanto, o acúmulo de informações, mas
uma reelaboração mental que se traduzirá em comportamentos práticos, numa nova perspectiva de ação sobre o mundo social”.
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pessoas da Rasa, em especial, das anciãs e lideranças comunitárias, que se prontificaram a abrir mão da
intimidade de seu lar para abrigar em suas próprias casas ações consideradas importantes para a comunidade, como a desenvolvida por Bianca e seus alunos.
Aplicação do artigo 26A da LBD desde a perspectiva nativa
As escolas brasileiras são instituições herdeiras dos princípios e valores que constituíram e legitimaram as sociedades ocidentais urbanas e modernas, pautados pelo saber técnico e científico, bem como
pela ideia de progresso e desenvolvimento, em estados nacionais como forma de organização política.
Historicamente, o saber científico é aquele que amplamente legitima os currículos escolares,
que acabam por neutralizar e não discutir aspectos históricos, políticos, econômicos, ideológicos da
produção da própria ciência, pouco apresentando outras formas de construção e transmissão de conhecimentos presentes nas mais distintas sociedades e culturas. Esse processo no Brasil acontece desde a assinatura do Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova, lançado em 1932. Segundo Antonacci
(2016:246): “o chão da escola adequava-se, graças a métodos e equipamentos técnico-científicos, aos
interesses industriais em relação à seleção e formação racional de um trabalhador nacional, nos marcos
do Estado Novo”.
Ao longo dos anos 2000, durante o Governo do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva (Partido
dos Trabalhadores), aconteceu um particular reconhecimento político de movimentos sociais mobilizados para reivindicar e defender o direito de pleno acesso à educação, desdobrando-se na elaboração
das leis 10.639/2003 e 11.645/2008, supramencionadas. Enraizadas em lutas dos movimentos negros
e indígenas, universidades, projetos e programas de capacitação, treinamento e atualização pedagógica
foram interpelados, chamados a lembrar e a embasar docentes com habilidades para reverter e repensar lacunas de nossas histórias. Emergem, assim, abordagens que se ocupam de ações e intervenções
de povos europeus, africanos, afro-diaspóricos, ameríndios, conforme perfil dessas leis fundamentais
para descolonização da história do Brasil, de grades curriculares e de práticas pedagógicas discursivas
(Antonacci, 2016).
No cotidiano escolar, as culturas híbridas de matrizes orais e performáticas – em geral de tradições afro-brasileiras, ameríndias e populares – foram historicamente interditadas, silenciadas, banalizadas, adulteradas, folclorizadas e deslocadas pela modernidade e seus recursos técnico-pedagógicos,
pautados na centralidade do letramento e da ciência tecnológica para a validação de saberes. Tal choque epistemológico e civilizacional foi denominado por Mignolo (2005) de “epistemicídio”, enquanto
processo que acontece em nível micropolítico, dentro de cada sala de aula, sob a chancela do currículo
e da ação de docentes induzidos a assumir o papel estrutural da missão civilizadora do Ocidente, a
partir de releituras e da atualização de táticas e estratégias de colonização e adestramento da mente e do
corpo, sendo estas muito semelhantes às empregadas no passado escravocrata.
A crítica decolonial permite a compreensão das consequências políticas desses processos de longa duração. Os estudantes apresentam desinteresse e desestímulo ao se depararem com conteúdos e
práticas de aprendizagem distantes de seu cotidiano cultural, bem como dos seus interesses imediatos
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para lidar com contingências que afligem e expõem marcas deixadas pela violência e desigualdade étnico-raciais. Estas são causas, muitas das vezes, da não permanência e do abandono da sala de aula por
falta de motivação relativa aos conteúdos da aprendizagem e pela incapacidade da educação oferecer a
segurança de projeção de um futuro pleno e digno, seguindo seu curso sem a construção de alternativas
às formas e aos conteúdos eurocêntricos de transmissão de conhecimentos.
A experiência de contar e ouvir histórias faz parte do processo de construção do saber no espaço
escolar, sendo um importante instrumento pedagógico interdisciplinar de valorização da identidade e
do desenvolvimento do sentimento de pertencimento. Contar e ouvir experiências de vida também é
um meio de registro legítimo da história. Isso porque coloca discentes e seus familiares como agentes,
protagonistas da construção do seu próprio conhecimento. Além de proporcionar um diálogo entre as
vivências de gerações, grupos e pessoas distintas, a valorização das tradições orais permite o compartilhamento de ideias e sentimentos, amenizando o estranhamento das diferenças existentes entre as
comunidades e os sujeitos.
Os mestres e lideranças da cultura popular podem ser caracterizados como atores que se submeteram a intenso treinamento ativo e que, ao longo de sua vida, conquistaram o domínio do exercício da
palavra e do emprego eficiente dos conhecimentos tradicionais. Por meio de suas ações e de seus ensinamentos, acontece a manutenção dos laços comunitários, geralmente a partir de ações micropolíticas
de resistência, resiliência e transmissão das memórias e narrativas contadas sobre a trajetória específica
de seus grupos ao longo do tempo.
A valorização dada aos registros escritos na educação escolar pode, paradoxalmente, se tornar
um empecilho para a compreensão da importância dos conhecimentos que são construídos e compartilhados nas comunidades tradicionais por meio da oralidade. Além do enfrentamento de dilemas
e desafios de ordem política, religiosa, ética e epistemológica, essas comunidades ainda esbarram em
dificuldades que barram a inclusão de suas memórias, sua história, cultura e seus valores nas escolas,
uma vez que estas têm desenvolvido um currículo que tende a reforçar as desigualdades, assimetrias
epistemológicas e sociais.
No caso das ações desenvolvidas por Bianca, foi possível reconhecer alternativas que lançam
mão do currículo escolar, em especial do Artigo 26A da LDB, para valorizar as formas tradicionais
de transmissão de saberes, valores, histórias de vida e experiências que são peculiares à comunidade
quilombola em que a escola está localizada. Pudemos compreender a atenção dessa professora para
questões sensíveis relativas aos conflitos e desigualdades de oportunidades, frutos de formas de violência étnico-racial que constituem o contexto de vivência de seu alunado. Para tanto, foi necessário que
ela considerasse a história da comunidade negra de Rasa contrastada tanto ao processo de colonização
política, econômica, social e epistêmica de africanos e seus descendentes no Brasil, quanto à resultante
diversidade cultural brasileira.
Bianca não tratou de promover a rivalidade entre distintos saberes, como se um se sobrepusesse
ao outro, mas alertou a turma e a comunidade escolar envolvente para a necessidade de promover diálogos entre os conteúdos pré-estabelecidos pelo currículo escolar e os saberes tradicionais. O projeto
desenvolvido pela professora Bianca, sua turma e as anciãs do quilombo atende às manifestações das
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diferenças e aos anseios de construção de um futuro digno, por meio da promoção do diálogo simétrico
entre saberes, condição fundamental para a reelaboração de estratégias endógenas que podem proporcionar a sustentabilidade da vida, bem como a cidadania plena, da própria comunidade.
Ana Carolina de Sousa Vaz é Doutoranda em Políticas Sociais pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF), sob financiamento
da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) e
Mestra em Cognição e Linguagem também pela UENF.
Lilian Sagio Cezar é Doutora em Ciência Social (Antropologia Social) pela
Universidade de São Paulo (USP) e Professora Associada da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF).
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TRADIçãO ORAL, CONSTRUçãO DE DIÁLOGO E CONHECIMENTO
Tradição oral, construção de diálogo e conhecimento na
comunidade quilombola da Rasa
Resumo: O presente artigo é resultado de estudo de caso que tematiza as ações de educação formal
dedicadas à História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena em uma escola localizada na comunidade
remanescente de quilombo da Rasa, no município de Armação dos Búzios (RJ). Por meio da articulação da Antropologia e da Pedagogia, realizamos pesquisa empregando entrevistas semiestruturadas e
abertas realizadas com professoras(es), gestoras(es) escolares e familiares de alunas/os que são quilombolas. Posteriormente, elegemos proceder investida etnográfica acerca das ações desenvolvidas por uma
professora, com seus estudantes e a comunidade, com vistas à participação da turma na Festa Literária
promovida pelo governo do município. Buscamos assim compreender as potencialidades e os desafios
da abordagem dos conteúdos previstos nas leis 10.639/2003 e 11.645/2008. Discutimos, ainda, por
meio da crítica decolonial, o papel da escola diante de sociedades cujos meios privilegiados de transmissão de conhecimentos são a tradição oral e a memória coletiva.
Palavras-chave: Educação; Relações étnico-raciais; Quilombo; Tradição Oral; Identidade.
Oral tradition, dialogue building, and knowledge in the Rasa
Quilombola community
Abstract: This article is the result of a case study that problematizes formal education actions focused
on Afro-Brazilian and Indigenous History and Culture at a school located in the remaining community of the Quilombo da Rasa, in the municipality of Armação dos Búzios (RJ), Brazil. Through the articulation of Anthropology and Pedagogy, we researched by semi-structured and open interviews with
teachers, school managers, and family members of quilombola students. Subsequently, we chose to
carry out an ethnographic effort on the actions developed by a teacher with students and the community to participate in Literary Festival, promoted by the local government. In this way, we tried to
understand the potential and challenges of approaching the contents provided in Laws 10.639 / 2003
and 11.645 / 2008. Through decolonial criticism, we also discussed the role of the school in the face of
societies whose privileged means of transmitting knowledge are oral tradition and collective memory.
Keywords: Education; Ethnic-racial relations; Quilombo; Oral Tradition; Identity.
RECEBIDO: 31/05/2020
ACEITO: 07/06/2021
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D O SSIÊ
Religião e performances corporais:
etnografia com alunos evangélicos
da zona rural de uma escola pública
de Minas Gerais
Sandra Pereira ToSTa
UniverSidade Federal de oUro PreTo (UFoP), oUro PreTo/MG, BraSil
hTTP://orcid.orG/0000-0002-4501-1008
WeSlei loPeS da Silva
rede MUniciPal de edUcação (rMe) e UniverSidade eSTadUal de MinaS GeraiS (UeMG), iTaúna/MG, BraSil
hTTP://orcid.orG/0000-0002-1992-9851
lUciMara aParecida l. coSTa
SecreTaria eSTadUal de edUcação de MG (See) e SecreTaria MUniciPal de edUcação, caPelinha/MG, BraSil
hTTPS://orcid.orG/0000-0001-6255-9000
Notas introdutórias
A escola, como uma das instituições herdeiras do Iluminismo e uma das dimensões fundantes
da modernidade, tornou-se, ao longo da história, uma das mais fortes expressões do sentido de urbanidade, uma vez que representou, no curso do desenvolvimento capitalista, a possibilidade de se alcançar
a universalidade cultural, que é também uma dimensão da sociedade moderna. A escola possui, assim,
por sua institucionalidade, uma historicidade geradora de uma cultura particular à qual todos precisam
se submeter pelo bem da sua funcionalidade. Entre os seus sujeitos, os alunos são, certamente, os mais
importantes. Sem eles não existe escola!
Diante disso, inúmeros estudos afirmam que nas escolas pouco se faz para possibilitar ao aluno
ter espaços de interlocução, entre si e com os outros, a fim de apreender seus desejos, opiniões, preferências, críticas e sugestões. E identificam algumas razões para as dificuldades da escola em reconhecer seus
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alunos em sua condição cultural e social, e não apenas como aqueles que lá estão inseridos num contexto de organização e ritmo próprios, os quais, em geral, não abrem espaços para uma aproximação entre
as autoridades e alteridades escolares. Evidenciaram-se, assim, problemas que vão desde a rotina escolar,
que mantém os educadores na sala de aula quase todo o tempo, sem possibilitar que haja momentos de
reflexão e discussão, até a ausência de um conhecimento mais amplo, de parte desses educadores, dos
meninos e meninas com quem interagem cotidianamente.
A literatura em geral referencia que a escola, tal qual a conhecemos hoje, com suas regras, estrutura, valores e princípios, surgiu na Europa no século XVIII e se organizou nesse cenário histórico
arcando em seu ideário com os valores da época. Sem dúvida, a escola, juntamente com a Igreja e a
família, é considerada o espaço primeiro e prioritário para a formação, socialização e inserção social das
novas gerações. Em outros termos, a escola nunca se encontrou sozinha nesse papel, outras instituições
dividem com ela o locus educativo dos indivíduos.
Uma das características da evolução da escola, em geral, foi ter se organizado por um longo percurso rejeitando outras formas de convívio social e transmissão de conhecimentos que não espelhassem
a reprodução do seu ethos cultural institucionalizado. Quando a escola não reconhece a existência de
outros processos culturais e de aprendizagens, ela se fecha em si mesma. E o que resulta disso é o distanciamento da instituição com seu modus operandi da realidade do seu entorno. Esse entorno hoje não
é mais local ou nacional, ampliou-se nos termos da mundialização, considerando que a sociedade se
organiza numa rede mundial viabilizada pela emergência da tecnologia digital.
Fato é que essa escola, na cultura ocidental, historicamente ensimesmada em seus contextos pedagógicos, defronta-se, na contemporaneidade, com um âmbito muito mais complexo e contrário a
um ideário fundador que pretendeu homogeneizar e uniformizar as condutas dos indivíduos de modo
a integrá-los na ordem social. Nessa lógica a escola, na maioria das vezes, exerce o papel de apagamento
das desigualdades, diferenças e diversidade histórico-culturais, agora amplamente visibilizadas em nível mundial, justamente por conta da chamada “sociedade em rede”.
Contudo, e pelo próprio desenvolvimento histórico, por força das lutas sociais nas décadas de
1970 e 1980 e por conquistas na esfera jurídica, o processo de democratização da educação culminou
com a promulgação da Constituição de 1988, referendada pela LDB nº 9394/96. Os espaços e tempos
escolares vão adquirindo outros contornos e passam a receber alunos de todas as camadas sociais, tornando a educação mais democrática. Tal fato vai se materializando por meio de políticas de universalização do acesso à educação básica implementadas, notadamente, a partir dos anos 2000.
Assim, as instituições escolares vivenciam conflitos rotineiros, os quais muitas vezes ocultam
expressões etnocêntricas que desqualificam aqueles sujeitos oriundos da população pobre e historicamente excluída da escola. A escola se vê, assim, diante de muitos “outros” em suas alteridades e idiossincrasias, que habitualmente não eram encontrados; sobretudo no Ensino Médio e Superior, confrontam
seus pressupostos políticos e pedagógicos.
E há que se reiterar: alunos, muito mais que estar nesta condição, são crianças, adolescentes,
jovens, adultos e idosos que possuem experiências exteriores e anteriores à escola, constroem práticas
e interagem com o mundo de formas variadas, tendo como base vivências e orientações como, por
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exemplo, trabalhadores, consumidores, internautas, filhas e filhos, mães e pais, negros, brancos, rural e
urbanos, LGBTQIA+, rappers, sertanejos, católicos e evangélicos. Todas essas dimensões constituem
esses sujeitos muito diversificados entre si, embora compartilhem características biofísicas típicas de
quem está naquelas fases da vida.
Como se haver, por exemplo, com traços de alteridade como o pertencimento religioso cuja expressão simbólica de identidade se opõe a uma suposta homogeneidade requerida pela escola onde uma
religião parece “dada”, naturalizada em torno do ser católico? Nesse caso, são poucos os estudos que
abordam as denominações não católicas na escola, notadamente em se tratando de alunos adolescentes
e jovens rurais, em suas expressões corporais, cuja produção se articula às rotinas escolares, especificamente às aulas de Educação Física.
Pois bem, estamos falando de interações e conflitos de alunos e alunas na Escola Estadual de Ribeirão da Folha (EEDRF) localizada no distrito homônimo, na zona rural do Vale do Jequitinhonha,
região nordeste do estado de Minas Gerais (que, além de Ribeirão da Folha, conta com duas comunidades: Córrego das Mangabeiras e Córrego das Cabeceiras). O pertencimento religioso autodeclarado
dos estudantes é pela Igreja Evangélica Assembleia de Deus (IEAD)1, e suas performances em aulas de
Educação Física e em outros tempos e espaços escolares. Nestas, o corpo em movimento se produz e é
produzido como um elemento central nos exercícios, nos contatos diretos com professores e colegas,
nos jogos pautados por alianças e disputas. De corpos forjados nas culturas e tensionados pelas implicações doutrinárias daquela denominação religiosa.
Imagem 1: Localização da Comunidade de Ribeirão da Folha no Município de Minas
Novas-MG.
Fonte: Acervo da pesquisa.
1 O campo religioso tem passado por alterações desde os últimos anos do século XX com o crescimento das denominações evangélicas.
Se até meados da década de 1980 o catolicismo era a religião majoritária no Brasil, o censo de 2010 apurou: católicos caíram para 64,6%;
evangélicos já eram 22,2%. Em 2000, 15,4% se disseram evangélicos; em 1991, o percentual de evangélicos era de 9% e, em 1980, de 6,6%.
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A Assembleia de Deus é a primeira igreja tradicional evangélica instalada no distrito de Ribeirão
da Folha, e congrega a maioria dos alunos não católicos da escola pesquisada, conforme levantamento
exploratório feito em 2014.
Quadro 1: Religiões em Minas Novas (MG).
Fonte: IBGE, 2010.
A pesquisa foi realizada entre os anos de 2014 e 2016 com a devida autorização da Superintendência Regional de Educação (SER) e contou com a anuência dos professores da EEDRF, que se
mostraram favoráveis à investigação, e nenhuma objeção foi feita. À época da pesquisa a EEDRF era a
única que oferecia o Ensino Médio na região distrital e contava com 430 alunos matriculados e regularmente frequentes nos três turnos. Por meio de um levantamento realizado em maio de 2015, todos os
320 alunos dos últimos anos do Ensino Fundamental (EF) e do Ensino Médio (EM)2 foram indagados
sobre seu interesse em participar da pesquisa e sobre sua opção religiosa. O resultado foi o seguinte:
2 Apenas para fins de esclarecimento, os últimos anos do EF correspondem ao sexto, sétimo, oitavo e nono anos; o EM é composto pelo
primeiro, segundo e terceiro anos.
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Imagens 2 e 3: Fachada e Pátio da Escola Estadual de Ribeirão da Folha.
Fonte: Acervo da pesquisa.
Dos 25 alunos que se declararam da IEAD, 6 disseram não ter interesse em fazer parte da pesquisa porque se encontravam distantes da igreja e outros 6 não obtiveram o consentimento de seus pais,
restando 13 alunos: Marilene, Edna, Rosiane, Kenia, Keuani, Lucimara, Geovana, Mariane, Jucilene,
Calebe, Silvane, Israel e Dilma, cujos nomes fictícios foram escolhidos por eles.
Quadro 2: Pertencimento religioso dos alunos da EEDRF.
Fonte: Elaborado pelos autores.
Essas e outras provocações modelam este artigo, que tem como objetivo central compreender
quem são esses jovens alunos, como pensam e reagem às alteridades que carregam e visibilizam no
ambiente escolar, por meio, sobretudo, de suas performances corporais nas aulas de Educação Física.
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Os meninos, por eles e por nós: a observação e os cadernos de
campo
O caderno de campo, no processo da observação participante, é um instrumento consagrado da
etnografia, associado a outros procedimentos, tais como: histórias de vida, relatos orais e audiovisuais,
fotografias, croquis, desenhos, narrativas, censos e outros, como já nos ensinou Malinowski (1984).
Oliveira (2006), em um artigo já canônico sobre a investigação em Ciências Sociais, da qual a observação é uma das principais técnicas, numa reflexão aparentemente simples, mas refinada e complexa,
aborda a pesquisa qualitativa em que três atos epistemológicos se fazem necessários: o olhar, o ouvir
e o escrever. Não como atos lineares e sucessivos, mas como atitudes de pesquisa que se entrecruzam
e dialogam ao mesmo tempo. No lastro desta conversação é que entendemos a etnografia como uma
dimensão que, historicamente, institui a matriz disciplinar antropológica. Ou seja, e nos termos assertivos da antropóloga Mariza Peirano (2019:173):
No fazer etnográfico, a teoria está, de maneira óbvia, em ação, emaranhada nas evidências empíricas. Mais: a união de etnografia e teoria não se manifesta apenas no exercício monográfico. Ela está
presente no dia a dia acadêmico, em sala de aula, nas trocas entre professor e aluno, nos debates
com colegas e pares, e especialmente na transformação de eventos de que participamos ou que
observamos em “fatos etnográficos”, como diria Evans-Pritchard. Desta perspectiva, a etnografia é
uma forma de ver e ouvir, uma maneira de interpretar, uma perspectiva analítica, a própria teoria
em ação.
Em nossa etnografia, o caderno de campo, para além de seu uso costumeiro por antropólogos,
foi proposto aos alunos com quem interagimos como recurso para que fizessem registros textuais de
seus modos de pensar acerca de variados temas e tempos de suas histórias e memórias. Em outros termos, duas lógicas foram subvertidas na pesquisa: o caderno do pesquisador passou a ser, também, um
recurso de uso dos alunos que, por sua vez, foram instados a se apropriar de um objeto consagrado na
cultura escolar para atribuir-lhe outros papéis e significados, num movimento de “despedagogização”
de seu pensamento e escrita.
Sabemos quão tensa é a relação de estranhamento a ser feita pelo antropólogo a fim de alcançar
mais compreensão das alteridades, num exercício permanente de relativização. Ou de deslocar-se da
superfície das culturas e imergir nas suas profundezas para alcançar com mais densidade os significados
por elas enfeixados segundo Geertz (1978) em seu clássico texto sobre a briga de galos em Bali. Portanto nos ativemos às proposições geertzianas de que a cultura é pública e o comportamento humano, por
onde os fios dessas culturas são tecidos, é ação simbólica, pois têm significados e cabe aos pesquisadores
alcançar e interpretar o mais profunda e densamente tais sentidos.
Esse movimento constituiu-se num outro desafio para os pesquisadores, os quais, também com a
leitura de Geertz, defrontam-se na transcrição e interpretação daquelas alteridades ou do “outro”, com
o debate sobre a natureza e a autoridade do texto antropológico na escrita etnográfica, ou, numa feliz
expressão: deslocar-se “do campo ao texto”, com a pretensão de falar do “outro”. Na apresentação do
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livro de Clifford (2002), A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX, Gonçalves
(2002:18,19) contextualiza-o:
O dilema atual está associado à desintegração e à redistribuição do poder colonial nas décadas
posteriores a 1950 e às repercussões das teorias culturais radicais dos anos 60 e 70. Após a reversão do olhar europeu em decorrência do movimento da “negritude”, após a crise de conscience da
Antropologia em relação a seu status liberal no contexto da ordem imperialista, e agora que o Ocidente não pode mais se apresentar como o único provedor de conhecimento antropológico sobre
o outro, tomou-se necessário imaginar um mundo de etnografia generalizada.
Problematizando a autoridade do texto etnográfico, Clifford (2002) propõe quatro modos de
autoridade: o experiencial, o interpretativo, o dialógico e o polifônico. E entende que os dois últimos
tipos podem resolver, pelo menos em parte, o dilema da escrita e da sua autoridade. O dialógico, por
permear a etnografia como resultado de um texto cuja produção é parte de uma negociação que envolve múltiplas vozes, conscientes e politicamente significativas; e a polifônica, por romper com os textos
de uma única voz. O autor propõe, então, que o conhecimento etnográfico resulte da colaboração
explícita e extensa dos informantes no percurso da etnografia. É nessa lógica de um pensar e escrever
complexos sobre representações culturais entre alteridades presentes na realidade escolar que nos esforçamos para compreender e textualizar como pensa, age e se representa um grupo de alunas e alunos
regulamente matriculados e frequentes dos últimos anos do EF e do EM da Escola Estadual Ribeirão
da Folha (EERDF).
Nesse movimento dialético e sempre tensionado do campo ao texto, uma escolha assumida por
nós foi a de que a escrita da etnografia, como apropriadamente explica Ricardo Vieira (2003), é uma
terceira versão resultante do encontro entre culturas e alteridades datadas e espacializadas no tempo
da realização da pesquisa empírica em diálogo com os aportes teóricos3. Desse modo, temos a consciência de que o texto aqui apresentado é uma versão interpretativa na qual buscamos estabelecer uma
correspondência entre sentido da ação e significado das representações na qual se centra o problema
hermenêutico da interpretação e significação. Nessa linha de encontro e compartilhamento de intersubjetividades, Vieira (2003) argumenta que o texto etnográfico resulta de três sujeitos, e não de dois.
Explicando: o texto etnográfico não é apenas dos pesquisadores, ele expressa um pensamento e uma
escrita que foram, também, dos “nativos” e do que resultou dessa fusão de horizontes. Como bem expressa o antropólogo português:
Entrevistado e entrevistador alcançam dimensões do pensamento que não são passíveis de equacionar numa simples aritmética tipo 1e1=2. O resultado é possivelmente melhor traduzido por
um 3, símbolo da criação, pois contém uma descoberta e racionalização que resulta da existência
da interacção entre pelo menos dois sujeitos (Vieira, 2003:86).
3 No caso desta etnografia, a escrita do texto é coletiva. Com base na dissertação produzida e orientada por duas das pesquisadoras, o terceiro pesquisador participou desde o início da pesquisa, contribuindo, particularmente, mas não só, com os estudos sobre etnografia e corpo.
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Cada um dos estudantes será apresentado por ele mesmo, numa transcrição literal de suas anotações em seu caderno de campo e nos registros de nossas observações. Ao ler os cadernos, o entrecruzamento de memórias, histórias e imagens ficou bastante explícito, rompendo com as obrigações
e disciplinamentos com que recorrentemente se usa o caderno nas rotinas escolares. Os meninos e
meninas da pesquisa são apresentados, também, individualmente e em duplas, em consonância com
dados de nossa observação sobre as interações entre eles e os modos como recorrentemente chegavam
e encontravam seu lugar na escola ou na quadra. O grupo, como os demais alunos da escola, é parte
da população local, cujo nível socioeconômico é baixo. A maioria deles era de filhos de trabalhadores
rurais e beneficiários dos programas sociais do governo federal à época4.
Quadro 3: Alunos pesquisados e horário das aulas de Educação Física.
Fonte: Elaborado pelos autores. No ano de 2015 cada turma da EEDRF era identificada com uma letra do alfabeto.
Marilene estava matriculada no primeiro ano do EM do turno matutino, tinha 16 anos e frequentava a IEAD desde os 14. Nasceu no distrito de Ribeirão da Folha e vivia nas proximidades da
comunidade da Serra. Nunca morou em outro lugar e revelou que não era seu desejo sair, pois gostava
muito do lugar onde vivia.
Sou uma garota baixa, meio gordinha, cabelos pretos, olhos castanhos e pele branca. Gosto muito
de viajar. Sempre eu faço uma viagem nada muito longe só para as cidades vizinhas e o mais são
para as caravanas com o pessoal da minha igreja. Vamos para shows, batizados, inauguração, encontros de jovens e assim vamos alegres. Amigos tenho um monte, como os colegas de minha igreja
onde eu congrego. Geralmente meus deveres de casa faço sozinha. Mas os trabalhos de sala de aula
sempre sento com alguém, mais é com Edna. Sempre nos finais de semana eu faço algo. No sábado
4 Governos de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2011) e Dilma Rousseff (2012-2016), ambos do Partido dos Trabalhadores (PT).
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de manhã ajudo minha mãe arrumar a casa, depois faço meus deveres de casa e à noite vou para a
igreja e no domingo vou para um campo de futebol com meus amigos jogar bola ou então faço um
passeio para outro lugar. Gosto muito de assistir televisão como novelas e outros programas, pois
não tenho internet (Marilene).
Edna estava com 17 anos e frequentava a mesma IEAD “desde criança”. Não trabalhava fora,
ajudava nos serviços domésticos na casa de sua avó, onde morava. Dedicava seu tempo aos estudos e
depositava seus sonhos no ingresso no Ensino Superior para conseguir um bom emprego, “para meu
sustento e também para ajudar meus pais”, e relatou que nunca viajou para lugar algum.
Sou morena, alta e magra. Tenho vários amigos... Geralmente faço os deveres de casa sozinha. Eu
faço os trabalhos na maioria das vezes com minha amiga Marilene. Em finais de semana eu vou
à Igreja e saio com os amigos. Uso internet sim e assisto televisão, eu acesso todo dia, faço mais é
mexer no Facebook (Edna).
Rosiane cursava o primeiro ano do EM. Ela é irmã de Mariane e Lucimara, que apresentaremos
adiante. Mostrava-se uma menina calada, tímida e não gostava de participar de atividade prática. Ela comentou que somente foi brincar depois que estava mais crescida e só se lembrava de que, quando criança, gostava de observar aqueles que estavam brincando. Acrescentou que teve “uma infância muito boa,
apesar de que era difícil pra ir pra escola, era muito longe e passávamos por muitos perigos e éramos
muito pequenos, mas era divertido”. Sempre morou na comunidade do Cedro, trabalhando em casa
ajudando a sua mãe nos serviços domésticos. Viajou para vários lugares, cidades próximas em caravanas.
Eu defino meu corpo normal, sou um pouco baixa, tenho 16 anos, olhos castanhos, morena clara,
cabelo preto longo e cacheado, sou educada, não gosto de magoar ninguém, não gosto de brigas,
mas sou estressada, respeito as pessoas, principalmente quem é mais velho que eu. Nos fins de
semana eu, minha família e parentes reunimos, assamos frango ou fazemos churrasco e também
vamos a igreja e ensaios. Eu assisto televisão, mas sendo ela sem antena. Eu tenho acesso à internet,
mas não é sempre, o que eu faço é pesquisa e tenho Facebook, mas isso é só de vez em quando e o
que faço mais mesmo é conversar no Facebook. A minha vida é ótima graças a Deus não me falta
nada. Eu pertenço à Igreja Assembleia de Deus. Na minha casa somos sete pessoas e todos são da
mesma religião (Rosiane).
Ao falar de si mesma, Rosiane não se esquecia de dizer que era educada: pelo que depreendemos, significava harmonia no relacionamento familiar, solidariedade e gentileza para com os outros
sem magoá-los. Ela destacava que a sua vida sempre fora muito boa. Em sua casa assistia apenas ao
DVD, não tinha antena para assistir aos canais abertos e aos fechados de televisão. Ressaltava, ainda, que seus pais eram da IEAD há muitos anos e que ela já nasceu em “berço evangélico”. Acrescentou que: “se alguém precisar, minha família oferece ajuda, e os outros também nos oferecem ajuda
se precisarmos” (Rosiane).
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Kênia estava matriculada no nono ano do EF, tinha 15 anos e foi a única entre as alunas da
IEAD de sua sala que aceitou participar da pesquisa. Ela é negra, usa cabelo preso com arcos e algumas
presilhas, veste camisa social, vestidos e saias na altura dos joelhos. Nasceu na cidade de Minas Novas
e sempre morou na comunidade do Estreito. Em sua casa são seis pessoas e todas pertencem à IEAD.
Seus pais são da Igreja há 20 anos.
Sou magra, morena, cabelo preto e olhos pretos. Eu trabalho em minha casa, lavo roupa, arrumo
casa, faço comida, varro terreiro, lavo vasilhas, arrumo cozinha, etc. Já viajei para Capelinha, Angelândia, Minas Novas, Veredinha e algumas comunidades próximas. Nos finais de semana, na
sexta-feira converso bastante com os meus amigos no ônibus e vou para casa descansar da escola
e faço algumas tarefas de casa. No sábado vou arrumar a casa e depois fazer os deveres da escola e
quando sobra tempo vou à casa de minhas amigas passear. No domingo vou à igreja e depois que
termina o culto vou conversar com meus amigos(as) e depois vou na casa de minha vó, em seguida
vou para casa descansar para a escola na segunda-feira em diante. Gosto de tratar as pessoas bem,
de respeitar as pessoas e ser respeitada também. Eu gosto muito de passear. Não assisto televisão
e não tenho internet porque a televisão tem muita coisa boa, porém tem muita coisa ruim que é
contra a vontade de Deus. Eu sou da Assembleia de Deus. Sou muito grata a Deus pelo que ele fez
e faz na minha vida e na vida da minha família e, enfim, na vida de todos. Eu te amo Jesus Cristo.
Minha infância foi muito boa e continua sendo boa, porque eu tenho muitos amigos e colegas, eu
sou uma grande estudante, gosto muito de minha família (Kênia).
Keuani e Lucimara eram alunas do oitavo ano do EF. Keuani tinha 13 e Lucimara 14 anos de
idade.
Meu nome é Keuani, tenho 13 anos e nasci na cidade de Minas Novas. Sempre morei na comunidade do Estreito. Eu pertenço à Assembleia de Deus. Eu trabalho em casa mesmo. Eu tenho muitos amigos. Faço meus trabalhos e atividades com minha prima. Eu sou morena, cabelos pretos,
olhos pretos e sou cristã. No domingo eu vou à igreja e na casa de minha vó. Não uso internet nem
assisto televisão. Fui a um show gospel, eu curti muito, pena que foi pouco (Keuani).
Lucimara mostrava-se uma aluna discreta, e assim como sua irmã Rosiane não assistia à televisão.
Apesar de Rosiane algumas vezes acessar a internet, Lucimara admitia que não utilizava redes sociais.
Ela parecia sempre séria, dificilmente a vimos sorrindo.
Em todas as aulas chegava até a quadra com um moletom de capuz e saia na altura do joelho.
Passava grande parte do horário da aula quieta num canto da quadra com as mãos no bolso da blusa.
Ela relatou que fazia os trabalhos e deveres de casa sozinha, aparentava calma e concentração. Todos os
dias ela chegava, encostava em um canto da quadra com as colegas, lia um livro ou pegava uma corda e
começava a bater para as suas amigas pularem. Uma aluna convidou-a para pular e ela, com um sorriso
tímido, balançou a cabeça dizendo que não.
Nasci na comunidade de Pedra Preta, mas sempre morei na comunidade do Cedro. Eu pertenço
à Igreja Assembleia de Deus. Meu pai é evangélico há 16 anos e minha mãe há 18 anos. Eu tenho
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1,54 m, peso 58 quilos, sou morena, tenho cabelos cacheados. Trabalho em casa mesmo lavando
louças, roupas, casa, etc. Tenho muitos amigos, mas a metade deles são evangélicos, da minha igreja e de outras também. Faço meus deveres e trabalhos de casa sozinha. Eu tenho uma vida muito
legal. Eu não pratico nenhum evento esportivo na minha igreja e como não pratico na minha igreja
também não pratico na escola (Lucimara).
Geovana e Mariane estudaram os anos iniciais do EF na mesma escola de sua comunidade, participaram de praticamente as mesmas atividades físicas e os gestos eram bem parecidos. As duas tinham
12 anos de idade e cursavam a sétima série.
Eu sou da Assembleia de Deus. Na minha casa nós somos sete pessoas e todos são da mesma religião. Eu uso saia, não corto cabelo, não uso esmalte e nem batom. Eu tenho muitos amigos na
minha igreja e em outras igrejas na escola e na comunidade onde moro. Nos finais de semana eu
vou na minha igreja e na casa de meus amigos. Não uso internet e a minha televisão é sem antena
(Mariane).
Morei na comunidade de Pedra Preta, mas agora moro na comunidade do Cedro. Eu pertenço
à Assembleia de Deus. Na minha casa somos seis pessoas e somos todos da mesma religião. Já
faz cinco anos que minha família pertence a essa religião. Eu uso saia composta, não uso blusa
sem manga, não posso usar maquiagem, batom e nem brinco. Eu tenho bastantes amigos, mas a
maioria é da Assembleia de Deus, tenho alguns que são católicos. Eu faço os deveres e trabalhos
sozinha. Nos fins de semana eu vou à igreja. Eu assisto só DVD evangélico e não acesso internet
(Geovana).
Jucilene tinha 17 anos e estava no terceiro ano, nasceu na cidade de Minas Novas, morou algum
tempo em Capelinha e veio para a EEDRF transferida de uma escola daquela cidade. Conhecia Belo
Horizonte. Geralmente ela ficava afastada, não se enturmava e não participava dos esportes coletivos.
Todavia foi a única aluna, entre todos os alunos das diferentes denominações religiosas, que participou
dos ensaios e da tradicional dança realizada na escola em comemoração aos santos juninos. Ela não
revelou se teve o consentimento de seus pais, mas participou da festa. Observamos pela sua fala que ela
se sente presa a costumes que não gostaria de seguir. Ela acrescentou ainda que “as regras da igreja são
exigências além do preciso”.
Sou magra, tenho 1,57 metros. Minha pele é cor clara; cabelo castanho claro e crespo. Sou uma
jovem bonita e legal. Tenho apenas dois amigos, primeiramente Deus e o outro se chama Luiz Fernando. Desde minha infância eu fui uma criança afastada das outras, eu brincava de bonecas, mas
sozinha. Nos finais de semana eu gosto de ficar em casa mesmo, e garrada com meu celular. Gosto
de ver TV também, mas internet não tenho em casa. Quando acesso internet, eu gosto de falar no
Facebook e no WhatsApp com pessoas fora do Brasil ( Jucilene).
Calebe e Silvane cursavam o nono ano do EF. Os dois tinham 14 anos e moravam no distrito de
Ribeirão da Folha. Silvane usava saia com tecidos mais leves, algumas vezes short jeans acima do joelho.
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Ela afirmava que o seu relacionamento com os colegas de sala era muito difícil, “eles não gostam de mim
e de meu amigo Calebe”. Mas não se importava, pois tinha outros amigos:
Eu tenho muitos amigos, tenho amigos na igreja que simplesmente vejo como irmãos, apesar de
sermos todos irmãos em Cristo. Eu uso internet e assisto televisão, não vejo nada demais nisso.
O pastor diz que é preciso saber usar. Eu gosto mais de ouvir músicas evangélicas e acessar meu
Facebook. Lá posso conversar com outras pessoas evangélicas e também com meus parentes e irmãos. Eu congrego na Assembleia de Deus. Em minha casa ao todo somos sete pessoas e nem
todos são evangélicos. Eu e um amigo ensinamos as crianças sobre Jesus e fazemos brincadeiras
com elas (Silvane).
Calebe assim se apresentou:
Sou desempregado, às vezes ajudo a minha mãe a arrumar a casa. De vez em quando eu viajo e
passeio com meus amigos e família. Eu sou uma pessoa que em certas ocasiões eu gosto de ficar
sozinho, tipo fazer as tarefas de escola, mas meus amigos não compreendem isso. Minha infância
foi divertida, eu não vou falar mais porque eu não lembro. Assisto TV, isso é o meu passatempo,
é com a internet que eu me divirto e converso com meus amigos e a TV me ajuda a esquecer de
várias coisas. Ah! Nos finais de semana eu passeio com meus amigos e vou à igreja. É isso que eu
faço o ano todo (Calebe).
Israel e Dilma eram alunos do 1º ano do EM, turno da manhã. Durante as observações as suas
vozes não foram ouvidas. Israel participava de todas as atividades propostas nas aulas. Dilma, por sua
vez, não participava e ficava encostada no alambrado da quadra sem se movimentar muito. Israel é alto,
usava sempre calça e camisa social. Na maioria das vezes, o vimos usando chinelos. À época da pesquisa
de campo tinha 18 anos, nasceu na cidade de Minas Novas e sempre morou na comunidade do Estreito.
Sou da Igreja Assembleia de Deus, tenho 18 anos. A minha infância foi muito boa, eu adorava
muitas brincadeiras como carrinho, bola, peteca e esconde-esconde. Na minha família somos cinco pessoas, mas não somos da mesma religião. Trabalho sempre nas férias escolares, nunca viajo
para lugar longe. Tenho um corpo lindo e saudável. Eu tenho muitos amigos, os deveres de casa eu
faço sozinho. O meu relacionamento com os colegas é de respeito e compreensão. Nos finais de
semana vou à igreja ou na casa de meu vizinho. Eu não assisto televisão e não mexo com internet.
Não usamos a internet porque na internet tem muitas coisas boas e ruins. Para mexer com as boas
temos que passar pelas ruins e a televisão é a mesma coisa (Israel).
Dilma, com 15 anos, nasceu na cidade de Minas Novas e também morava na comunidade do
Estreito. A respeito de sua infância, ela revelou ter brincado e se divertido muito com as suas primas.
“Eu gostava de brincar de boneca, peteca, cozinha e outros. Eu gostava muito de brincar”.
Eu sou magra, alta, cabelos anelados, cor parda. Eu sou comportada. Tenho 1,63 metros e peso 46
quilos. Eu trabalho, arrumo casa, lavo roupas, varro terreiro, lavo vasilhas, e outros. Eu tenho muitos amigos. Eu faço meus deveres sozinha. Nas salas de aulas com outras três meninas. Nos finais
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de semana faço meus deveres, vou passear na casa de minhas amigas, vou na casa do namorado da
minha irmã e aos domingos vou à igreja e divertimos muito. Eu sou da Assembleia de Deus. Na
minha casa somos oito pessoas. Somos eu, meus irmãos, pai e mãe. Meu pai e minha mãe são da
Assembleia, meus dois irmãos mais velhos são católicos. A minha mãe faz quatros anos que ela é
da Assembleia e meu pai faz um ano (Dilma).
Os alunos e sua orientação religiosa: narrativas sobre tal
pertencimento e os corpos
Tanto pelos registros no caderno de campo dos alunos quanto pelas manifestações nas entrevistas realizadas, evidenciou-se que a orientação religiosa na IEAD não foi uma escolha, mas está enraizada na tradição e na imposição familiar de cada um deles. Bem como foram explicitamente destacadas
a disciplina e as sanções como elementos que levam à modelagem de comportamentos nas aulas de
Educação Física e nos cultos promovidos pela referida igreja. Edna, por exemplo, contou: “disciplina
é ficar no último banco quando erramos. Quando fazemos algo errado eles colocam a gente no último
banco e quem é batizado fica sem tomar a santa ceia”.
Marilene é bastante enfática em relação à disciplina e às sanções para quem não a segue rigorosamente. E termina por nos mostrar como a igreja classifica e define a estadia espacial dos fiéis no templo:
Disciplina na igreja é tipo como se você ficasse de castigo. Na igreja existe um espaço para cada
grupo de membros. Jovens no banco de jovens, irmãos com irmãos, criança com criança, irmãs
com irmãs e os bancos de trás para as visitas que vão na igreja que não são crentes.
Tal classificação baseia-se em supostas relações de afinidade e de parentesco estritamente vinculadas aos laços familiares e à faixa etária e na importância atribuída a quem é fiel. Os lugares da frente,
com o significado que carrega em termos de hierarquia e distinção, são ocupados pelos crentes. Os bancos lá de trás, como lugares menos importantes na classificação feita, podem ser ocupados por aqueles
que estão presentes na igreja, mas não são fiéis. Em outros termos, são pessoas convidadas a entrar no
templo, mas são menos importantes pelo seu não pertencimento à IEAD.
Todavia, mesmo os fiéis, aqueles que foram iniciados na igreja por meio do ritual do batismo nas
águas, “descer às águas” para emergir purificado, são alvo de sanções e punições se cometerem algo de
errado; e um dos atos para dar visibilidade à indisciplina é eles se sentarem, também, nos bancos de trás.
Marilene relatou:
A partir do momento que eu pratico algo errado, contra as regras, se eu for batizado, ou seja, se
eu descer às águas, eu sou colocada no banco de trás ficando lá um certo tempo sem participar da
ceia do senhor, sem beber o cálice e comer o pão. Isso é chamado indisciplina, você não estar em
comunhão com Cristo. Existe o capítulo 11 - versículo 27 a 34 de Coríntios que fala um pouco
sobre isso, que diz assim: portanto, qualquer que comer este pão ou beber o cálice do Senhor indignamente será culpado do corpo e do sangue do Senhor.
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O batismo para os fiéis da IEAD é o “mergulho nas águas”, um mergulho profundo que inunda
a pessoa por inteiro e que se conecta ao estado de purificação e sua quebra com atos de indisciplina.
Como alerta Dilma:
A disciplina em nossa igreja é para pessoas que desobedecem às regras da igreja, como cortar cabelo, vestir inadequadamente, falar mal dos outros, ouvir músicas de pessoas católicas. A disciplina é
só para as pessoas batizadas que cometem erros. O batismo evangélico é só para pessoas acima dos
14 anos. O batismo é morrer para o mundo e nascer para Deus. No batismo evangélico não pode
deixar nem um fio de cabelo fora da água dos rios (Dilma).
Marilene foi mais adiante ainda em sua fala. Ela nos explica não apenas sobre as punições para
quem “quebra as regras”; a isso se soma um elemento fundante das religiões, que é o ato fortemente
simbólico do comer, da alimentação do pão e do vinho. Ocupar os bancos lá dos “fundos” é reforçado
pela interdição ao alimento que purifica o corpo e a alma. Desse modo, na classificação demarcada
espacialmente, mostra-se e se expressa a indisciplina e a impureza dos fiéis, que podem “ficar fracos,
doentes” e sonolentos. Portanto um dado de alteridade interna no grupo fica claramente sublinhado
para o ambiente externo. E remete aos que ainda não fazem parte do corpo de crentes, como uma
repreensão antecipada de natureza pedagógica. O pertencimento à IEAD passa pela obediência aos
princípios doutrinários daquela denominação religiosa. E a ocupação dos assentos na igreja carrega essa
marca densamente simbólica.
No relato de Rosiane, encontramos um ponto de vista similar ao de Marilene, ambas compartilham da compreensão do que significa “quebrar as regras”. O disciplinamento é uma prescrição que se
estende para outro elemento muito expressivo da IEAD, qual seja, cantar durante os cultos. Para isso,
são formados os corais, que encerram uma marca distintiva nos momentos de louvação. Se um escolhido para cantar comete algum erro, ele é excluído e não é fácil retornar. O comportamento daquele que
entoava cantos e cometeu um “erro” passa necessariamente por um tempo não definido em que ele será
observado atentamente e julgado no cumprimento da punição.
Disciplina na minha igreja é quando um irmão faz um erro grave, ele fica sem participar da ceia,
que é o símbolo da carne e do sangue do Senhor. Se for alguém que canta em conjunto ficará sem
cantar e não terá a oportunidade. Mas isso tem um tempo determinado, se vai ser de seis meses, um
ano ou até mais. Se completar o tempo e não estiver saído do erro ele não sai da disciplina (Rosiane).
A vida privada dos fiéis não é poupada do julgamento moral da igreja e das possíveis punições.
O aluno Israel vai direto ao ponto: “disciplina é se os casais brigarem, as mulheres cortarem os cabelos, se o seu modo de vestir não estiver correto como a Bíblia manda, isso é indisciplina”. Assim, a
igreja tenta impor controle e disciplina para os fiéis que já são batizados com base nas regras, normas e
condutas e também restrições relativas ao comportamento e atitude. Sairão da condição de disciplinamento (punição) aqueles que não cometerem mais o erro. Não podemos deixar de anotar que a escola
tem regras parcialmente similares. Carteiras dos fundos são ocupadas por alunos considerados indis-
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ciplinados. A proibição de ir ao recreio e não desfrutar da aula de Educação Física é regra observável
nas rotinas escolares.
Nossos alunos na pesquisa certamente não ocupariam os bancos do fundo da sala de aula, pelo
comportamento comedido que reconhecem ser devido à orientação religiosa. Parecem conversar sempre em tom de voz muito baixo, são quietos, calmos, não respondem mal aos colegas ou aos professores.
Também condenam tumultos ou alvoroços, assim como pouco perguntam ou questionam. São contidos em suas palavras, como o são com seus corpos. “Nós evangélicos temos que pensar muito antes de
falar algo”, comentou Edna. Sua colega Rosiane emendou: “não podemos falar palavrões nem falar dos
outros nem responder os outros com falta de educação. Temos que dar exemplo”.
Essas alteridades se opõem a comportamentos juvenis nas escolas e fora dela, já largamente
tematizados e discutidos em pesquisas acadêmicas e de mercado que retratam adolescentes e jovens
estudantes com atuação ruidosa e transgressora, confrontando alteridades (étnico-raciais, de gênero, geração, econômicas, etc.) e autoridades (familiar, docente), tendo, muitas delas, como eixo a
discussão das identidades.
No âmbito das pesquisas que tematizam adolescência e juventude, podemos delimitar duas perspectivas distintas, mas complementares: aquelas cujo foco são os problemas sociais que atingem a população jovem. Destacam-se nessa via estudos sobre violência, criminalidade, drogas, gravidez na adolescência, entre outros temas que interferem diretamente na condição juvenil brasileira contemporânea
e na educação. Nessa direção caminham os estudos desenvolvidos por Novaes et al. (2016), entre outros
pesquisadores brasileiros. E outra perspectiva busca pensar o jovem e a juventude em sua positividade,
destacando, de um lado, a cultura como espaço de sociabilidade, inserção social e política juvenil. Nesse
caminho, as culturas e grupos de jovens são focados como espaço privilegiado de expressão e construção identitárias, bem como territórios de construção de projetos de vida e futuro. E, de outro, pensar os
jovens como sujeitos sociais e políticos, agentes na sociedade. Importante, nessa direção, são os estudos
e pesquisas conduzidas por Sposito, Souza e Silva (2018), Magnani e Souza (2007), Maia (2010),
Dauster e Feixa (2014), Tosta e Rocha (2011), Pereira (2018), Tosta e Diniz (2020), dentre outros.
Importa notar, porém, que, no rol dessas e outras produções acadêmicas sobre juventude, vários autores indicam que a variável “religião” tem sido pouco considerada na compreensão do perfil dos jovens na cidade. E sobre jovens no campo, recorte do presente artigo, é praticamente inexistente. Mas, paradoxalmente, censos revelam intensa influência do campo religioso na constituição
da identidade desses sujeitos.
Esses corpos são vistos e representados pelos nossos alunos na pesquisa, na medida de nossa
observação e interpretação. Alguns relatos e retratos são modelares para mostrar esses alunos declaradamente evangélicos, sempre, como dizem eles, tendo os preceitos doutrinários em vista. Nesse sentido, podemos perceber que no corpo das meninas, mais do que no dos meninos, as marcas da cultura
religiosa se inscrevem de maneira mais acentuada, por meio de uma estética, comportamentos e gestos
representados como adequados para os membros da IEAD. Tais símbolos comunicam ideais de ser
“crente” e colaboram para o entendimento e percepção dos estudantes acerca de si mesmos, que têm
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RELIGIãO E PERFORMANCES CORPORAIS
como efeito a ideia de que o corpo revela ou pode comprovar em sua materialidade as principais características de sua subjetividade ante a moralização do corpo apregoada pela IEAD.
Não obstante, dita incorporação (Bourdieu, 1988), representada por meio de roupas (detidamente o uso de saia longa para as meninas), cortes e jeitos de pentear o cabelo, o (não/pouco) uso de
maquiagem e gestos geralmente associados aos fiéis dessa matriz religiosa, não acontecem de maneira
uniforme e tampouco na mesma intensidade por parte destes, conforme poderemos ver. Se a IEAD
é uma instituição que busca educar o corpo de seus membros, a escola também o faz a seu modo,
conjuntamente com outras instâncias sociais, dentre as quais se destaca a mídia. Em outras palavras,
os estudantes investigados são perpassados e influenciados por outros valores, normas, percepções e
representações que orientam e enformam o corpo, que vive na experiência do encontro com as coisas e
as pessoas (Le Breton, 2011).
Corpos em movimento: cabelos, roupas, maquiagens e
sociabilidades
Em uma interpretação holística, oportunizando encerrar no corpo o somatório dos aspectos
biológicos, socioculturais e psíquicos, este se configura como um conjunto único de interações com sua
exterioridade, o que condiz com as reflexões de Le Breton (2011:7) quando manifesta:
Moldado pelo contexto social e cultural em que se insere, o corpo é o vetor semântico pelo qual
a evidência da relação com o mundo é construída: atividades perceptivas, mas também expressão
dos sentimentos, cerimônias dos ritos de interação, conjunto de gestos e mímicas, produção de
aparência, jogos sutis de sedução, técnicas do corpo, exercícios físicos, relação com a dor, com o
sofrimento, etc. Antes de qualquer coisa, a existência é corporal.
Desde essa perspectiva, compreendemos o corpo como lugar de comunicação, de diálogo, de
experimentação nas relações com as coisas e com os outros, pois não se encontra alienado das experiências, vivências, afetos, motivações e biografias. Espaço e motivo de infinitas representações, o corpo é
um complexo semântico que se traduz em muitos saberes e olhares, várias formas de percebê-lo e vivê-lo. Essa heteroglossia que perpassa e constitui os corpos é influenciada e marcada pelas descobertas
científicas e tecnológicas, pelas ideologias e discursos religiosos, pela mídia, pelas demandas econômicas, políticas, sociais e culturais. E o lugar de destaque que ele tem ocupado nas últimas décadas em
sociedades industrializadas e fundamentadas pela lógica do capital, bem como ser móvel de várias pesquisas, dá-se pelas possibilidades de sua desconstrução e modificação, principalmente a partir das tecnologias corporais que se difundem a cada dia, relacionadas à moda e à indústria da beleza, e também
ao desenvolvimento técnico-científico em favor da promoção e manutenção da saúde e do bem-estar.
Você é seu corpo! – evocam as mensagens disseminadas por várias instâncias sociais, destacadamente a mídia. O corpo, então, de acordo com os padrões estéticos instituídos e reificados socialmente
na atualidade, em várias sociedades ocidentais, é eleito como signo essencial de beleza e de poder, o que
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implica aos atores de diversas camadas sociais, em diferentes países, a reivindicação de trabalho contínuo, transformação e modelagem dos corpos.
Na perspectiva de Le Breton (2011), o corpo tem se convertido em alter ego para grande número
de pessoas, tal qual um outro que pode ser continuamente maleável, modelável de acordo com seus
desejos e expectativas, vislumbrado como se fosse um cartão de visitas de carne e osso. Reconhecido
como mecanismo de valorização social, o corpo tende a ser percebido como um capital (Goldenberg,
2006) que, em razão de seu cuidado e da aparência, tem motivado várias práticas de consumo. Le
Breton salienta que o corpo é indiscernível do sujeito, está sempre presente, independentemente da
forma como são utilizadas sua vitalidade, força e sensorialidade. No entanto, como ele tem buscado
demonstrar, o corpo tem se tornado objeto de preocupação cotidiana, lugar de destaque, distinção e
hierarquização na vida social.
Vislumbradas por De Lauretis (1994) como algumas das mais profícuas tecnologias de gênero,
a mídia e, especialmente, a publicidade, juntamente com distintas vozes em diversos domínios discursivos, veiculam padrões corporais e comportamentais como lícitos de serem exibidos, admirados e
desejados e, portanto, considerados por muitos como meio de satisfação e realização pessoal.
É preciso considerar, ainda, o poder de agência das pessoas ante as muitas imagens constituídas
que a publicidade e a mídia veiculam. De modo geral, não atendem passivamente às demandas, tampouco as interpretam e realizam-nas do mesmo jeito e na mesma proporção quando o fazem. No processo de incorporação dos aspectos culturais a esse respeito, de constituição da imagem corporal e sua
exibição pública, contam as várias categorias de ordenação social, tais como gênero, classe, idade, grupo
étnico, estilo de vida e, aqui, considerando os jovens pesquisados, detidamente a religião. Não dizemos,
pois, do acatamento massivo das diretrizes sugeridas, pois há também possibilidades de negociação ou
resistência por parte dos sujeitos.
Rosiane, Mariane e Lucimara possuíam o cabelo bem longo; Geovana, Kedma, Edna e Kênia
usavam cabelo afro e curto; as colegas Marilene, Silvane, Dilma e Jucilene tinham cabelo mediano, nos
ombros; os dois meninos (Calebe e Israel) exibiam cabelo curto; e Jucilene era a única aluna do grupo
que tingia o cabelo. Os depoimentos mencionam as prescrições da IEAD relacionadas ao corte do
cabelo, nem sempre em tom de obediência: “não é permitido cortar cabelo, mas muitas não obedecem
porque isso era mais rígido antigamente, agora não é tanto” – comentou Edna. “O cabelo também não
pode cortar porque ele existe no lugar do véu”, disse Lucimara, remetendo à tradição religiosa que, em
geral, o artefato cobre a cabeça em sinal de respeito e compostura. Para Marilene, “o cabelo mesmo eu
já corto sempre. Mas eu sempre penso que o que importa mesmo é o coração, o que está dentro dele,
não o que está em seu físico”.
Quanto às vestimentas, as alunas, com exceção de Jucilene, Marilene e Silvane, usavam somente
saias ou vestidos à altura do joelho; os meninos sempre usavam calças e em nenhum momento foram
vistos usando bermuda ou camiseta sem manga, costumeiramente as roupas indicadas para aulas de
Educação Física. Mais uma vez, em meio às imposições que se apoiam na tradição da igreja, o uso de
calças pelas meninas é considerado uma exceção e isso mostra claramente como o corpo é generificado:
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Existem orientações sim, muitas. Como na vestimenta não pode usar roupa muito curta e nem
blusa sem mangas como camisetas, e não é permitido calças para ir para a igreja, somente saia ou
vestido. Eu, por exemplo, uso calça para ir para a escola, pois acho a saia meio desconfortável. O
pastor diz que para estudar e trabalhar não tem problema, pode sim usar calça (Marilene).
A roupa pode ser vista como um prolongamento da pele e um elemento importante na constituição do corpo, visto que permite aos jovens investigados a expressão e o entendimento de um conjunto de ideias relacionado à sua religião e comportamentos que se pode esperar deles. Porquanto:
Para a humanidade, vestir-se é pleno de profundo significado, pois o espírito humano não apenas
constrói seu próprio corpo como também cria as roupas que o vestem, ainda que na maior parte dos
casos, a criação e a confecção das roupas ficam a cargo dos outros. Homens e mulheres vestem-se
de acordo com os preceitos desse grande desconhecido, o Espírito do Tempo (Köhler, 1996:57-8).
A fala de Israel chamou a atenção, pela assertividade: “temos que vestir comportados porque
a carne tampa os ossos e a roupa tampa a vergonha, as mulheres”. Cobre a vergonha de um corpo
semidespido: “existem orientações da minha igreja em relação ao modo de vestir, tem que vestir-se
composta, não pode usar calça, short, blusa sem manga” – como expressou Dilma. Em relação ao uso
de maquiagens, como rímel, sombras, bases e até o esmalte para as unhas, o que percebemos foram falas
que guardam coerência com os preceitos da IEAD, buscando, porém, certa relativização. A exemplo de
Lucimara, que relatou o seguinte:
Não podemos pintar o cabelo e as unhas, foi o que eu aprendi e eu e os meus irmãos guardamos
até hoje. Muitas religiões (referindo-se às evangélicas) já permitem algumas dessas coisas, a minha
religião cobra tudo isso e nós seguimos. Mas já têm evangélicos da IEAD que usam.
Edna disse: “quanto ao uso de maquiagens, não é permitido, mas ainda têm pessoas que usam”.
Novamente Israel foi assertivo e reforçou o valor estético de acordo com os valores apregoados pela
igreja: “as mulheres não podem usar maquiagem porque é muito feio e Deus não agrada dessas coisas,
senão Deus tinha feito o homem e a mulher com pintura”. Contudo, para Marilene, os crentes não
seguem tão rigidamente as regras da igreja; ela mesma não usa maquiagem por uma razão estética, isto
é, por causar mais espinhas no rosto, as acnes tão indesejadas pelos jovens e que marcam a puberdade.
Maquiagem antigamente não poderia nunca um crente usar. Hoje já é diferente, alguns usam, nem
todos. Uns até são contra, mas outros a vaidade conspira dentro deles e acaba então sendo normal
um crente usar. Eu mesmo não uso porque eu não gosto, pois tenho muita espinha no rosto e
prefiro não colocar.
Essas interdições ao mundano, ao hegemonicamente usual quando falamos de adolescentes e
jovens hoje, são sempre justificadas na tradição da religião à qual declararam pertencimento. Nossos
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alunos na pesquisa demonstraram adesão à IEAD, ainda que tenha sido possível notar o quanto sua
alteridade causava estranhamento.
A igreja é muito legal. Eu adoro! No começo foi difícil me acostumar com todas as regras e práticas
e abandonar tudo que me ligava com outros costumes. Hoje é 100%, mas em vista do que era antes
me acostumei com tudo. Na igreja você se sente tão bem que quando eu estou lá nada me abala,
tem uma diferença tão grande de uma festa ou um forró que nem dá pra comparar. Em uma festa
às vezes dá até morte ou briga, um acidente. Na igreja você ouve só coisas boas e acontecem com
você coisas legais. Toda igreja tem certas regras e não é permitido que elas sejam quebradas. Regras
são regras. Quando você decide aceitar Cristo como seu salvador, você está fazendo um pacto com
ele prometendo não agir de qualquer forma (Marilene).
A lógica do pensamento mítico opera nas falas e interpõe o público e o privado, como é o caso
de Silvane, que assim se expressou: “minha igreja é muito legal, Deus opera grandes maravilhas naquela
igreja, lá eu me sinto a melhor pessoa do mundo, me sinto bem. Igreja é minha segunda casa”.
Possivelmente, é por meio do pensamento mágico e da evocação do sagrado que as dificuldades
de aceitação dos costumes da IEAD são reelaboradas e adquirem funcionalidade em termos de manutenção e reforço do ideário que sustenta a igreja. As dificuldades foram pontuadas em vários depoimentos e no caderno de campo dos alunos, não obstante concordarem que regras não devem ser quebradas
e sim respeitadas. E que, a partir do momento em que fizeram “um pacto com Cristo”, não podem agir
de qualquer maneira. Disseram-se “felizes na igreja”. Exceto Marilene e Jucilene, que declararam não
seguir todas as regras, “mas que apesar de não segui-las, não zombam de Deus”.
Se a escola, os afazeres domésticos e as atividades da própria IEAD ocupam os meninos e meninas durante a semana, nos finais de semana eles constroem espaços de lazer e sociabilidade. Isso com
muitas restrições, quando os comparamos aos jovens do meio urbano, especialmente no tocante ao
acesso, muitas vezes precários para os mais pobres, é fato, ao mundo digital e ao que a rede propicia.
Mas, ainda assim, existem escolhas por parte deles. Dos 13 alunos entrevistados, apenas quatro – Silvane, Edna, Calebe e Marilene – assistiam à televisão por meio das emissoras abertas. Os outros usavam o
suporte televisão para assistirem a DVDs. Apenas Rosiane, Calebe, Silvane, Edna, Marilene e Jucilene
acessavam a internet.
Os alunos destacaram enfaticamente a possibilidade de estarem juntos nos encontros, passeios e
participação em eventos organizados pela IEAD, como os cultos nas casas dos “irmãos”, aniversários,
shows e caravanas. São eventos muito esperados pelos fiéis, evidenciando que as atividades constituem
espaços e tempos de sociabilidades, aprendizagens, criação e fortalecimento de vínculos e lazer. Alguns
deles comentaram:
Nas caravanas fazemos muitas coisas legais, ouvimos sobre Deus, conhecemos pessoas novas, ouvimos cantores louvarem a Deus, louvores lindos, palestras, estudos dentro da Bíblia. O que eu mais
gosto é exatamente de tudo. É verdadeiramente incrível, ainda mais o que vem de Deus (Marilene).
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“Nas caravanas eu não faço nenhuma atividade. O que eu mais gosto de fazer nas caravanas é
cantar no ônibus durante a viagem e o mais é prestar atenção em tudo que for ensinado pelos pastores
e no intervalo tomar um sorvete com os amigos” (Rosiane). “Nas caravanas que nossa igreja pratica
nós cantamos, fazemos teatro e outros. O que eu mais gosto de fazer nas caravanas é conhecer lugares
diferentes, pessoas, prestar atenção no que vai falar nos cultos” (Dilma).
Se por um lado, na cultura da IEAD, a aparência do corpo, os gestos, olhares e os comportamentos podem conduzir para a salvação ou danação eternas, e que as esferas da sexualidade e do lazer são
consideradas as mais perigosas na possibilidade de se alcançar, afinal, a salvação (Mariano, 2004), por
outro, não significa que o lazer não faça parte da vida dos estudantes investigados. Assim, se para alguns
deles as atividades nas aulas de Educação Física podem ser vislumbradas como impróprias para quem
quer alcançar a salvação eterna, daí a razão da vigilância e controle do corpo, existiam atividades de
lazer próprias para os membros da IEAD e que possibilitavam diversão, conforme pudemos observar,
notadamente nas caravanas. Motivação, bastante expectativa e entusiasmo para sua realização, mesmo
ante os olhares atentos e reguladores dos adultos, as caravanas apresentavam para os jovens alunos um
interstício entre a casa, a igreja e a escola, e eram vislumbradas como oportunidade de passear, divertir-se e rir com os irmãos da igreja.
Diferentemente da timidez e inércia que parte dos/as jovens apresentaram nas aulas de Educação Física observadas, elas e eles indicam performar sujeitos ativos nas caravanas e outros eventos da
igreja. Não se trata, portanto, de corpos sem movimento, inativos. Assim sendo, seus comportamentos
nas aulas de Educação Física são apenas de uma parte de suas vidas e, como esperado, não representam
a totalidade de suas vivências e expressões corporais. Portanto, entendemos que, forjado na história
humana, cuja narrativa se constrói na trama com outros sujeitos e coisas (Najmanovich, 2002), o corpo
é miscelâneo, polissêmico e multifacetado.
Perfomances corporais: alunos evangélicos nas aulas de
Educação Física
Em dias sem chuva, para a realização das aulas de Educação Física (EF), os alunos se dirigiam para
a quadra localizada em outra rua e pertencente à comunidade, o que geralmente causava transtornos e
disputa entre os estudantes e demais pessoas que buscavam usar o espaço. Na quadra não havia água encanada nem bebedouros. Para tanto, os alunos portavam uma garrafa pet ou térmica e, quando necessário, voltavam à escola para reabastecerem-se de água. Para amenizar os problemas de uma quadra aberta, na divisa, um grande pequizeiro, árvore típica do cerrado brasileiro que oferecia generosa sombra.
Era muito comum que os alunos pesquisados ficassem em grupos desfrutando da sombra do
pequizeiro em dias de campeonatos e gincanas. Nessas ocasiões, Marilene, Rosiane, Kênia, Keuani,
Lucimara, Geovane, Mariane, Calebe e Dilma sempre eram vistos juntos durante todo o tempo das
atividades. Israel até gostava de jogar futsal, mas como nem sempre era escalado pelos alunos de sua
sala, ele permanecia próximo de seus colegas.
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Imagens 4 a 9: Cenas das aulas de EF: ginástica, jogos, brincadeiras (jogos de dama,
futebol de dedo, policinha) e atletismo (salto em distância e corrida com mudança de
direção).
Fonte: Acervo da pesquisa.
As imagens mostram algumas das atividades observadas nas aulas de Educação Física. Em todas
elas os alunos da IEAD ficaram apenas observando. Isso se explica pelas restrições impostas pela doutrina dos alunos relacionada ao corpo que, em sua maioria, impede-os de praticar determinadas atividades em que este ficaria em evidência. Destacamos as interdições, o controle, a disciplina, a orientação
quanto ao modo de vestir e se comportar, entre outros.
Assim, a resistência ou recusa por parte de alguns alunos em realizar as atividades práticas indicava uma tensão recorrente entre um ethos corporal de sua religião e as demandas pela realização de atividades físicas. Nesse sentido, a fala da jovem Marilene é bastante esclarecedora: “Eu resisto em fazer a
aula porque acredito nos valores pregados pela minha igreja”. Ela acrescenta: “também posso resistir aos
valores pregados pela minha igreja e fazer as práticas corporais propostas nas aulas de Educação Física”.
Na mesma direção, era corriqueiro que Edna e Dilma, ao chegarem à quadra, pegassem uma
peteca e fossem em direção ao canto da quadra, à sombra da árvore, e ali permanecessem durante todo
o tempo lendo um livro ou brincando sozinhas com a peteca.
Eu participo, eu levo livro pra ler nas aulas de Educação Física, eu brinco de peteca, eu não gosto
de jogar nem voleibol. Eu gostaria que as aulas fossem pelo menos um horário de brincadeiras
como pique bandeira, onde todo mundo possa brincar juntos (Edna).
Eu participo das aulas de Educação Física na sala de aula. Eu não gosto de jogar futebol, voleibol,
handebol porque não quero e porque a religião não gosta que jogamos [sic] futebol e outros jogos,
mas joga quem quiser. Eu gosto de brincar de queimada, peteca, dama e outros. Não jogo futebol
e não brinco de outras atividades (Dilma).
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A ascendência da religião sobre o comportamento de Dilma nas aulas de EF também fica evidente em sua justificativa para sua não participação nas atividades que acontecem na quadra, demonstrando que as práticas corporais são socialmente aprendidas por meio de vivência e expressão corporais
cotidianas sob a influência de distintas instituições e constroem-se por meio de usos e gestos cheios de
significados que condizem com o lugar de sujeito. Retomando o seminal texto de Mauss sobre as técnicas corporais que são empreendidas “em uma série de atos montados, e montados no indivíduo não
simplesmente por ele mesmo, mas por toda a sua educação, por toda a sociedade da qual ele faz parte,
no lugar que ele nela ocupa” (1974:218).
Influenciado por Merleau-Ponty e tomando o cerne do conceito de habitus de Mauss, Bourdieu
indica que o habitus manifesta um mundo social, uma moral incorporada, como podemos depreender
da fala de Edna, por exemplo. Assim, para o autor, habitus são disposições duráveis que constituem
todas as experiências, gestos, ações, gostos, percepções, entre outros fatores, e que estão diretamente
relacionados à pertença de um dado grupo social. Esse quadro indica que Bourdieu concebe o corpo
como socialmente instituído e compreende-o como uma superfície sobre a qual a cultura impõe suas
características, fazendo do corpo um lugar privilegiado de controle social e dominação.
Por meio de regras, orientações e informações que encaminham os sujeitos no devir ordinário
de suas vidas, a cultura materializa-se nos corpos em atividades habituais, marcando limites e possibilidades de ação e comportamento. Essas forças ocorrem no corpo de modo inconsciente pelos sujeitos
por meio da incorporação de esquemas de percepção socialmente construídos e veiculados, fazendo
com que os corpos sejam ao mesmo tempo produto e reflexo das condições do entorno social. Nessa
direção, os sujeitos vão se constituindo passo a passo, configurando-se por meio dos ritos, das interações com as pessoas e o contexto. Esse complexo semântico convertido em prática social é, para Butler
(2003), uma questão de performatividade. A partir dos estudos dessa autora sobre a categoria gênero,
entendemos que o corpo é performativo, haja vista tratar-se de uma atuação reiterada e imperiosa em
função das pautas sociais que circundam e orientam as ações dos sujeitos.
Imerso na cosmovisão da IEAD, a atuação do sujeito, de acordo com o lugar que lhe foi destinado e cujas prescrições ligadas a ele devem ser seguidas, está sempre condicionada a recompensas e
castigos. Diante disso, ao desenvolver uma performance corporal, não significa que esse empreendimento se dá tão somente a partir das escolhas pessoais, das preferências e experiências individuais, mas
há uma tensão, dado que a dita performance é um fenômeno que parte da dialética entre os sujeitos e a
sociedade, sendo constituída nos processos sociais.
É justamente a repetição que resulta a eficiência dos atos performativos e que propicia a base para
a constituição de identidades religiosas, como aquelas vinculadas à IEAD. Não obstante, os atos contínuos que destoam das identidades hegemônicas é que possibilitam a subversão da norma e a constituição de novas performances, de novas práticas sociais (Butler, 2003). Essas performances “destoantes”
promovem a reflexão de que não há identidade evangélica preexistente pela qual um ato ou tributo
possa ser medido; não haveria, portanto, atos verdadeiros ou falsos, reais ou deturpados, e a postulação
de uma identidade religiosa verdadeira seria uma ficção reguladora.
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Não falamos aqui, pois, do acatamento massivo das diretrizes colocadas, há também possibilidades de negociação ou resistência por parte dos sujeitos. Inclusive subversão às normas, levando
algumas pessoas à condição de corpos dissidentes (Butler 2003). Desde essa perspectiva, nas análises
levantadas nessa etnografia, é preciso reiterar que compreendemos aqui a pessoa como sempre inacabada, experiência que se constrói a partir da ideia de “estar no mundo” localizado e corporificado em
constante construção.
Em outro dia de observação, notamos que, já na quadra, Marilene e Edna pegaram uma peteca
num saco onde outros equipamentos para as aulas de EF ficavam. Feito isso, as estudantes permaneceram todo o horário num canto da quadra, à sombra do pequizeiro e afastada dos demais colegas, que
se mobilizavam em vários jogos e atividades coletivas. Questionada sobre o fato de comumente não
participar das atividades coletivas, Edna relatou que não gostava de jogar futsal, porque “isso é por falta
de costume, coisa de criação, eu não jogava quando era pequena, aqui eu gosto de jogar peteca, lá em
casa eu não gosto de brincar”.
Nesse mesmo dia Marilene manifestou interesse em brincar com os colegas, o que causou certa
surpresa em Edna, que mirou a amiga como quem não estivesse entendendo. Ante esse gesto, Marilene
nada disse e entrou no jogo balançando os ombros, como que justificando o comportamento “inesperado”. Assim, Edna seguiu sozinha para o seu canto predileto e ora jogava a peteca de um lado para
outro sozinha, ora parava e fica observando seus colegas. Não tendo passado muito tempo, Marilene
saiu do jogo e voltou para junto de Edna, como era ordinário. Algumas vezes as duas paravam o jogo de
peteca, encostavam-se ao alambrado e ficavam olhando os alunos que estavam realizando as atividades.
Findada a aula, elas geralmente voltavam juntas para a escola, sem que houvesse alguma conversa com
os outros discentes da sala.
Durante as observações, também, foi possível perceber que Kênia quase sempre ficava em um
dos cantos da quadra com uma de suas amigas jogando peteca, reservadamente. Relevante considerar
que, quando a peteca caía no chão, ela e suas amigas demonstravam relativa dificuldade em flexionar
o corpo para pegá-la, talvez devido às saias longas que geralmente usavam ou mesmo ao fato de cuidarem-se, ante as diretrizes religiosas, de não evidenciarem algumas partes do corpo, o que poderia
acontecer com o referido movimento. Ante isso, nos demos conta de que elas adaptaram uma maneira
de virar as pernas para a direita ou para a esquerda, joelhos e tronco semiflexionados, esticando bem os
braços até alcançarem a peteca.
Importante também destacar que a incorporação do habitus não é plenamente consciente por
parte dos indivíduos, tampouco está isenta de tensões, crises e possibilidades de mudança, pelo contrário. Ainda que sejam estruturas duradouras, novos habitus vão se constituindo ao longo do tempo
de acordo com o contexto sociocultural e o lugar que o sujeito ocupa. Ademais, o habitus de classe ou
grupo não nega a diversidade de estilos pessoais, pois, para Bourdieu (1988), essas variantes individuais
são “variantes estruturais” pelas quais se revelam as marcas singulares da posição no interior da classe
e da trajetória dos sujeitos. Isso significa dizer que o habitus não tem dimensão determinista, rígida,
mas que é suscetível de transformações, passível de mudanças no decorrer da trajetória dos grupos
ou indivíduos.
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Israel, por exemplo, às vezes participava de alguns esportes coletivos, detidamente futsal e handebol. Nesses jogos, ele fazia grande esforço para acompanhar o ritmo dos colegas, pois, como foi
possível depreender da observação de sua movimentação pela quadra, ele não apresentava muito equilíbrio corporal. Ainda que, no entanto, ele mostrasse interesse no jogo, em nenhum dia observamos
sua voz clamando pela bola para os colegas da sala. Nos jogos de futsal, por exemplo, ele apenas corria
e aproveitava a posse de bola para marcar um gol. Apesar de contido, seu sorriso foi constante durante
toda a brincadeira.
Pelo que depreendemos, Silvane tinha um estilo aparentemente mais descolado em relação às
outras meninas da Igreja: usava short jeans acima do joelho, cabelo curto amarrado, detinha mais destreza corporal nos jogos, dominava bem a bola e manifestava ter bom equilíbrio. Mariane e Geovana,
ao contrário da maioria dos alunos da IEAD, às vezes participavam dos jogos de futsal. As duas, mesmo em dias quentes, costumavam ir para as aulas com uma blusa de frio e capuz, saia jeans, trança nos
cabelos e um chinelo de dedo de borracha um tanto gasto que dificultava a corrida. Eram consideradas
pelos meninos da aula como as melhores jogadoras de futsal do time das meninas.
A dupla desenvolveu uma tática diferente para o jogo, no qual usavam a saia à altura do joelho
para receber a bola, de maneira que ela não passasse pelas suas pernas. Dessa forma conseguiam controlá-la e chutá-la para outra colega de time. Mas, mesmo com as técnicas inventadas, a saia comprida
apertada nas pernas claramente limitava seus movimentos, o que não as impedia de marcarem alguns
gols. Na comemoração dos gols, Mariane, por exemplo, se continha, apenas levantava o braço como se
puxasse uma alavanca invisível e sorria. Outras vezes ela dava pulinhos e um gritinho de alegria, mas
sem se aproximar muito dos colegas de time para a devida comemoração.
Chamou-nos a atenção em um dos dias de observação o fato de que alguns alunos estressavam e
agrediam verbalmente as meninas que ficavam no canto da quadra jogando peteca ou pulando corda.
Segundo os garotos, elas invadiam o campo de jogo. A professora apitou, parou o jogo e disse que, se
eles não respeitassem o espaço das meninas, ela diminuiria a duração do jogo para que só elas usassem
a quadra no restante do tempo. A respeito do ocorrido, Marilene comentou:
Nas aulas de Educação Física é assim, quando vamos jogar bola, primeiro quem joga são os garotos.
Enquanto nós, meninas, ficamos conversando ou brincando de corda ou peteca e depois deles a
gente vai jogar também. Eles não gostam de nós meninas jogarmos bola, é para que assim a quadra
fique livre para eles.
Partindo da premissa de que os corpos e os comportamentos são socialmente aprendidos e reconstruídos histórica e socialmente, podemos problematizar as diferenças nas atitudes corporais das e
dos estudantes em relação às regras de disciplina do corpo, movimentação e hierarquização dos espaços
a partir do gênero dos sujeitos.
Butler (2003) afirma que, em sua materialização em qualquer cultura, os corpos, para serem inteligíveis, precisam fazer sentido em determinada sociedade, ou seja, precisam ser reconhecidos dentro
de dada matriz cultural. A primeira e principal marca, segundo a autora, está na inscrição semântica
de gênero que antepõe masculino e feminino. Assim, os sujeitos se constroem como corpos masculi-
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nos e femininos a partir de diversas tecnologias, discursos institucionalizados e práticas cotidianas na
expectativa de manter o gênero em sua estrutura binária que tem sua base assentada na ideologia da
heterossexualidade (Butler, 2003; De Laurentis, 1994). Vão sendo demarcadas características corporais a partir do gênero dos sujeitos, outorgando direcionamento nas percepções, ações e usos do corpo
em várias perspectivas. Em um processo sócio-histórico, os corpos vão assumindo características que
as sociedades lhes consagraram ao longo do tempo, organizando o mundo de forma dual, dividindo-o
em masculino e feminino, de maneira hierarquizada, inclusive dentro das mesmas categorias (Vale de
Almeida, 1996).
O gênero está diretamente ligado ao corpo, o que significa dizer que a performance de gênero
está relacionada a estilos corporais, estando estes submetidos a um sistema de dominação patriarcal
(Butler, 2003). O corpo, pois, é pensado como uma “superfície politicamente regulada”, constituída
histórica e socialmente. Nessa perspectiva, o gênero, então, faz parte do mapa cognitivo com que os
sujeitos operam, não sendo, entretanto, uma estrutura sólida, duradoura, intrínseca ao indivíduo; é
construído socialmente ao longo do tempo por meio da incorporação, pelos sujeitos, de gestos, movimentos, práticas, disposições corporais masculinas e femininas, regras e estilos, perpassado e influenciado consecutivamente pelas expectativas sociais de cada contexto histórico e social.
Assim, retomando a fala de Marilene sobre a divisão do espaço da quadra “destinado” a meninas
e a meninos, é preciso retomar, ainda que brevemente, que entre homens e mulheres durante muito
tempo ela se assentou na biologia. O argumento central desse discurso era, em uma ótica essencialista, que as diferenças sexuais se ligavam às funções e capacidades de cada sexo, sendo que aos homens,
considerados superiores, cabiam as tarefas mais importantes, tal como o papel de provedor da família,
enquanto que às mulheres eram conferidos os cuidados dos filhos e permanência no espaço privado do
lar (Rosaldo, 1979). A esse respeito, Laqueur (2001) enfatiza que a criação da esfera pública burguesa
suscitou grandes discussões sobre qual(is) sexo(s) deveria(m) ocupá-la legitimamente. Nesse ínterim, a
biologia apareceu muitas vezes como justificativa para “resguardar” a mulher no espaço privado do lar,
uma vez que se considerava, entre outros argumentos de natureza semelhante, que a menstruação era
elemento desfavorável para a participação das mulheres nas atividades públicas.
Quanto às atividades corporais, Goellner (2003) preleciona que, aquelas vislumbradas como
mais intensas, como lutas e esportes, por exemplo, não eram recomendadas às mulheres em virtude
de sua suposta natureza mais frágil em relação ao homem. Essa perspectiva era pautada em explicações
biológicas, mais especificamente na fragilidade dos órgãos reprodutivos e na necessidade de sua preservação para uma maternidade sadia.
A fim de trazer essa discussão para a contemporaneidade, cabe destacar a investigação de Thorne
(1993) sobre as relações de gênero construídas entre crianças e adolescentes em duas escolas norte-americanas nos anos de 1976, 1977 e 1980: o gênero era a categoria que tinha mais relevo nesses
ambientes, manifestado por meio da divisão de espaços e tempos reservados para as brincadeiras de
meninos e meninas. Os meninos, de modo geral, ocupavam grandes áreas para jogos coletivos, enquanto as meninas ficavam com espaços pequenos. As brincadeiras de meninos e meninas costumavam ser
separadas, e um grupo respeitava o espaço do outro sem questionar. Brincar de atividades próprias do
gênero oposto geralmente não era permitido pelas crianças.
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Em sua pesquisa acerca das marcas da educação evangélica no corpo feminino, Rigoni e Prodócimo (2013) manifestam que as preocupações que os fiéis da IEAD têm com a alma, cujo peso recai
ainda mais sobre o corpo feminino em comparação ao masculino no que se refere à vigilância e controle e, obviamente quanto aos espaços a ele destinado – acrescentamos –, teriam como motivo principal
evitar que caia e seja motivação de pecado para os homens, visto que poderia provocar sentimentos
menos “dignos”. Assim sendo, o controle sobre o corpo das mulheres deve fixar-se tanto em sua aparência, por meio da constituição de um corpo discreto, que deve evitar maquiagens, adornos e cores chamativas; bem como nos gestos e comportamentos levados a cabo na igreja, na escola e outros espaços.
Nas falas e observações do cotidiano nas aulas de Educação Física das meninas que compõem
esta pesquisa, pudemos notar que as marcas da religião impõem, em maior ou menor grau para cada
uma delas, modos de perceber e vivenciar o corpo que geralmente obstaculizam uma experiência motora e estética mais livres nessas aulas, em comparação aos meninos, de modo geral, e às meninas que
não pertencem à IEAD.
Se as meninas investigadas não têm uma visão de si e modos de comportar-se uniformes, o que
é de se esperar, é possível afirmar pelo que pudemos depreender, que elas, de maneira geral, apresentam modos de vestir-se e comportar-se com alguma similaridade entre elas nas aulas de EF, como por
exemplo, o uso de saias que impedem alguns movimentos, o cuidado com a visibilidade de seu corpo
pelos outros ao se movimentarem, como ao abaixarem para pegar uma bola ou mesmo ao sentarem-se
no chão. Ademais, fica evidente que a busca pelos espaços que circundam a quadra se trata de uma estratégia de manterem-se afastadas de algumas atividades propostas nas aulas, as quais podem ser vistas
como inadequadas em sua cosmologia religiosa.
Isso posto, é fato que muitas mudanças ocorreram desde então, mas é indiscutível que o corpo
e seu trânsito continuam sendo perpassados na medida em que ele é constantemente marcado pelas
mais diversas pedagogias. É objeto de controle, consumo e hábitos rotineiros que vão, pouco a pouco,
adestrando-o por meio de um poder que se inscreve no cotidiano e contribui para a construção das
vivências corporais dos sujeitos.
Considerações finais
Primeiramente, reiteramos a importância de a escola, no cumprimento de sua função social, que,
além de ensinar é também socializar, conhecer seus alunos como sujeitos concretos “em carne, osso e
sangue”, parafraseando Malinowski, e em suas alteridades. Para isso, faz-se necessário investimento em
pesquisas que tematizem o fenômeno religioso nas múltiplas dimensões em que está integrado, como
uma expressão simbólica e material potente na compreensão da instituição e de seus sujeitos na cultura
rural, abordando, particularmente, jovens alunos em contextos pedagógicos.
Como dito antes, esse é um recorte pouco investigado e que provoca inúmeras reflexões. Fica, assim, o convite para que este artigo estimule pesquisadores a enfrentar os desafios de compreenderem e
visibilizarem escolas pobres no urbano e no rural, imersas numa conjuntura de desigualdade, diferença
e diversidade, que marcam e configuram fortemente a sociedade brasileira.
Num cenário entre a desigualdade histórica e, ao mesmo tempo e paradoxalmente, a evidência
espetacular (Baudrillard, 1991) que tenta colocar a todos numa mesma vitrine virtual, os adolescentes
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e jovens da escola que pesquisamos, na articulação entre o subjetivo e social, constroem-se performaticamente como corpo marcado por uma lógica religiosa, entre outras esferas e processos sociais. Que
ocorrem por meio da incorporação de rasgos da IEAD ancorados em uma estrutura de recompensas e
castigos. Têm como espaço-tempo, a partir de e no qual incorporam marcas socioculturais que comunicam significados e simbologias que possibilitam sua distinção como corpo de um fiel.
Desde essa perspectiva, é necessário considerar o fato de que, em sua materialização em qualquer cultura, os corpos carecem de produção, inscrição e reconhecimento de marcas de um contexto
próprio para que possam existir, isto é, para que sejam inteligíveis, eles precisam fazer sentido em determinada sociedade (Butler, 2003). Assim, os meninos e meninas da pesquisa constituem-se como
sujeitos encarnados (Merleau-Ponty, 1994) pelos/nos caminhos por eles(as) enveredados, nas relações
que mantêm com os pais, irmãos, membros da congregação religiosa da qual fazem parte, bem como
professores, amigos, entre outros sujeitos. Dessa forma, os alunos têm suas ações impregnadas de regras
sociais que vão se internalizando na convivência em sociedade, no caso, especialmente, via religião, mas
não só, cujas regras e informações normatizadoras são naturalizadas por eles em formato de normas,
convenções, tabus e costumes, fazendo com que tenham suas interações orientadas por elas.
Pelo que pudemos depreender da etnografia, se alguns dos estudantes flexibilizavam em alguma
medida algumas regras e preceitos da IEAD a partir de seu entendimento da religião e comportamentos pessoais, destacamos que as possíveis rupturas acontecem em intensidade e modos diferentes de
um para outro, levando em conta que o corpo é sempre um produto cultural não acabado, estando em
contínua construção. Em outras palavras, a estética corporal dos alunos, do modo como é por cada um
experimentada, passa pelos desafios de romper com barreiras individuais que cada um carrega em si,
devido a sua subjetividade e experiências, como também pelo social, na direção do que propõe Mauss,
entre outros, que ressaltam as normatizações sociais que tentam moldar o corpo, em culturas distintas,
por meio de sistemas de classificação.
Sandra Pereira Tosta é Doutora em Ciência Social (Antropologia Social) pela
Universidade de São Paulo (USP) e Professora Visitante do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).
Weslei Lopes da Silva é Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas) e Professor da Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG).
Lucimara Aparecida Lima Costa é Mestra em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas), professora da Rede Estadual de Educação de MG e supervisora da Rede Municipal de Educação de Capelinha (MG).
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RELIGIãO E PERFORMANCES CORPORAIS
Religião e performances corporais: etnografia com alunos evangélicos da zona rural de uma escola pública de Minas Gerais
Resumo: Este artigo tem como objetivo apreender, compreender e interpretar, por meio de uma etnografia numa escola estadual da zona rural de Minas Novas-MG, como um grupo de jovens alunos,
cujo pertencimento religioso era pela Igreja Evangélica Assembleia de Deus, pensam e reagem às alteridades que carregam e visibilizam no ambiente escolar, por meio, sobretudo, de suas performances
corporais nas aulas de Educação Física. Para isso, foram utilizados observação participante, caderno de
campo, inclusive pelos alunos, entrevistas e depoimentos orais. O resultado revelou que eles se constroem como corpo marcado por uma lógica religiosa na articulação entre o subjetivo e o social. Alguns
dos estudantes flexibilizam algumas regras e comportamentos pessoais, outros incorporam com mais
intensidade marcas socioculturais que comunicam significados e simbologias que possibilitam sua distinção como fiel.
Palavras-chave: Etnografia; Escola rural; Aluno evangélico; Performance corporal.
Religion and body performance: ethnography with evangelical
students from the rural area of a public school in Minas Gerais
Abstract: This article aims to apprehend, understand, and interpret, through an ethnography in a state
school in the rural area of Minas Novas-MG, Brazil, how a group of young students, whose religious
belonging was by the Evangelical Church Assembly of God, think and react to otherness that they carry and make visible in the school environment through their corporal performances in physical education classes. For that, participant observation, field notebook, including by the students, interviews,
and oral testimonies were used. The result revealed that they construct themselves as a body marked
by a religious logic between subjective and social. Some of the students make some rules and personal behavior more flexible, others more intensely incorporate socio-cultural marks that communicate
meanings and symbologies that enable their distinction as faithful.
Keywords: Ethnography; Rural school; Evangelical student; Body performance.
RECEBIDO: 30/05/2020
APROVADO: 27/02/2021
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A R TIG O
A doença comunista e a sopa de
morcegos. Sobre tráfico de animais,
orientalismo e pandemia
FELIPE VANDER VELDEN
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS (UFSCAR), SÃO CARLOS/SP, BRASIL
HTTPS://ORCID.ORG/0000-0002-5684-1250
Introdução: o vírus comunista
Na madrugada de 22 de abril de 2020, o então Ministro das Relações Exteriores brasileiro,
Ernesto Araújo, publicou, em suas redes sociais, um texto em que, comentando a publicação, na Itália,
de uma reflexão do filósofo esloveno Slavoj Žižek (2020) sobre a pandemia, anunciava: “Chegou o Comunavírus”. Araújo elaborava, então, um tropo comum aos governos do Brasil e dos Estados Unidos da
América: a acusação de que o novo coronavírus (o SARS-CoV-2) fazia parte de uma imensa e bem tramada conspiração comunista, liderada pela República Popular da China, destinada a abolir as nações e
construir um “projeto globalista-comunista”; tarefa já levada a cabo, segundo o chanceler, por outras
pautas da agenda política internacional, como o “climatismo ou alarmismo climático, da ideologia de
gênero, do dogmatismo politicamente correto, do imigracionismo, do racialismo ou reorganização da
sociedade pelo princípio da raça, do antinacionalismo, do cientificismo”1.
Com essa manifestação, o Ministro mostrava compartilhar da tese, esposada pelo presidente
Bolsonaro e família2 e por outros integrantes dos altos escalões do governo federal, além de seus apoia-
1 Jamil Chade, “Pandemia: ministro denuncia ‘plano comunista’, cita China e questiona OMS”. UOL, 22/04/2020 (https://noticias.
uol.com.br/colunas/jamil-chade/2020/04/22/diante-da-pandemia-chanceler-alerta-contra-plano-comunista-e-questiona-oms.htm,
acesso em 23/06/2020).
2 Já em março, o deputado federal (e filho do Presidente da República) Eduardo Bolsonaro afirmou que a “culpa” pela crise do coronavírus “é da China” (Filipe Matoso e Ana Krüger, “‘Culpa é da China’, diz Eduardo Bolsonaro; embaixador chinês repudia e exige desculpas.
G1, 18/03/2020 (https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/03/18/culpa-e-da-china-diz-eduardo-bolsonaro-embaixador-chines-repudia-e-exige-desculpas.ghtml, acesso em 23/06/2020).
A DOENçA COMUNISTA E A SOPA DE MORCEGOS
dores3, de que a pandemia do coronavírus era parte de um plano de recuperação econômica orquestrado pela “ditadura chinesa”: “toda vez que a China tem problemas econômicos aparece uma grande
doença que se espalha pelo mundo causando crise nos mercados globais e diminuição no valor dos
produtos importados pelos chineses”4. Estaríamos, assim, segundo vários setores que sustentam o atual
governo brasileiro, à mercê de uma conspiração chinesa destinada “a criar caos no mundo” para a final
difusão do comunismo e a hegemonia político-econômico-militar do Império do Meio (Escriba de
Cristo, 2020). Diferentemente da febre amarela no Brasil oitocentista, uma “doença socialista” (Segata,
2016), a Covid-19 seria, neste início do século XXI, uma “doença comunista”.
As insinuações conspiratórias difundidas pelo governo brasileiro e seus apoiadores assumiram
tons francamente racistas5 por parte de outro então integrante do alto escalão em Brasília. No início
do mesmo abril de 2020, o então Ministro da Educação Abraham Weintraub, igualmente em uma rede
social, afirmou que a crise causada pelo coronavírus beneficiaria a China em seu projeto hegemônico
para “dominar o mundo”. Na postagem, o ministro lançou mão de um velho modo preconceituso de
caracterizar os chineses no Brasil: sua suposta dificuldade com a pronúncia da letra “R”. Reproduzindo
a foto de uma capa de um gibi da Turma da Mônica, que mostra os personagens na China, e usando o
personagem Cebolinha, cuja prosódia troca a letra “R” pela letra “L”, Weintraub ridicularizou o fato de
alguns chineses, quando falam a língua portuguesa, efetuarem a mesma troca de letras6.
Se a ideologia política do coronavírus é o que preocupa autoridades brasileiras e norte-americanas – Donald Trump, na época presidente estadunidense, insinuou que o surto do “vírus chinês” teria
começado no Instituto de Virologia de Wuhan, onde fora propositalmente desenvolvido, e também
atribui à China a responsabilidade pela pandemia7 –, meu problema aqui é outro, ainda que também
seja concernente à origem deste poderoso actante viral que provocou uma conflagração de proporções
3 Em cartazes exibidos em protesto diante da embaixada chinesa em Brasília podia-se ler “China virus”. Eduardo Militão, “Faixas ofendem político da China em embaixada, que chama ato de palhaçada”, UOL, 21/03/2020 (https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/03/21/faixas-embaixada-china-brasilia-xingamento-presidente-xi-jinping.htm, acesso em 23/07/2020).
4 Tales Faria, “Bolsonaro está convencido de que coronavírus é um plano do governo chinês. UOL, 16/03/2020 (https://noticias.uol.
com.br/colunas/tales-faria/2020/03/16/bolsonaro-esta-convencido-de-que-coronavirus-e-plano-do-governo-chines.htm, acesso em
23/06/2020). Ver também André Ortega e Pedro Marin, “O coronavírus e a propaganda anti-China”, Revista Opera, março de 2020
(https://revistaopera.com.br/2020/03/22/o-coronavirus-e-a-propaganda-anti-china/, acesso em 21/07/2020).
5 No dia 28 de abril, o ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), atendendo a um pedido da Procuradoria Geral
da República, determinou abertura de inquérito para apurar suposto crime de racismo por parte de Weitraub (Márcio Falcão, Fernanda
Vivas e Rosanne D’Agostino, “STF abre inquérito para investigar Weintraub por suposto racismo contra chineses”. G1, 29/04/2020,
disponível em https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/04/29/stf-abre-inquerito-para-investigar-weintraub-por-suposto-racismo-contra-chineses.ghtml, acesso em 23/06/2020).
6 A desconfiança e a hostilidade contra os chineses não arrefeceu ao longo do ano de 2020, e passou, em um dado momento, para seu
produto de maior destaque no momento: a vacina CoronaVac, desenvolvida pela farmacêutica chinesa Sinovac, e que foi o primeiro
imunizante a chegar ao Brasil. Pesquisa do Real Time Big Data mostrou que, em outubro, 46% dos brasileiros não tomariam a chamada
“vacina chinesa”, contra uma rejeição de 22% a vacinas norte-americanas e europeias, mas de 38% à vacina russa – vê-se que o problema
parece mesmo ser o (suposto) comunismo! Luiz Fernando Toledo, “Brasileiros confiam menos em vacina da China do que nas de outros
países”. CNN Brasil, 19/10/2020 (em https://www.cnnbrasil.com.br/saude/2020/10/16/pesquisa-rejeicao-a-vacina-chinesa-e-maior-no-brasil-do-que-em-outros-paises, acesso em 15/01/2021). Não há registros de recusa, pelos brasileiros, de outros produtos chineses,
dos quais parece impossível abrir mão.
7 Laís Alegretti, “Coronavírus: como política de Trump amplia espaço para China conquistar influência”. BBC News Brasil, 03/05/2020
(em https://www.bbc.com/portuguese/internacional-52410557, acesso em 20/06/2020); João Fellet, “O que se sabe sobre as principais acusações contra a China na pandemia”. BBC News Brasil, 30/04/2020 (em https://www.bbc.com/portuguese/amp/internacional-52466295, acesso em 25/06/2020).
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globais. Com efeito, embora ainda esteja em discussão de que animal emergiu o SARS-CoV-2 em sua
forma agressiva para seres humanos, a narrativa corrente afirma que suas primeiras manifestações ocorreram em um mercado de peixes e frutos do mar (o “Wuhan Huanan [South China] Seafood Wholesale Market” que comercializa também mamíferos e aves silvestres e seus subprodutos8) na cidade de
Wuhan, na região central da China, ainda em dezembro de 2019. Os primeiros estudos, já em janeiro
de 2020, sugeriram a transmissão da doença de cobras para humanos ( Ji et al., 2020; Callaway e Cyranoski, 2020)9. Em seguida, apareceu a hipótese de que o vírus possui como hospedeiros determinadas
espécies de morcegos (Lu et al., 2020), e, pouco depois, que o vírus que infecta humanos teria divergido
da cepa que parasita pangolins (Manis spp.), mamíferos da ordem Pholidota, e “animal consumido
como alimento exótico em algumas regiões da China”10. Mais recentemente, em maio, novas análises
moleculares e filogenéticas contestam estas primeiras hipóteses, afirmando-as ainda inconclusivas (Liu
et al., 2020). Outras espécies também já foram apontadas: visons (minks), furões e até mesmo tartarugas11. Os morcegos, contudo, parecem estar no centro da polêmica, como principais hospedeiros
originários do vírus, e sua transmissão para seres humanos pode também ter se dado, alega-se, pela caça
e introdução desses mamíferos alados nos mercados e pela “degustação” de uma “sopa de morcego”12.
Este artigo13 interroga a construção de cunho orientalista (Said, 1990) das práticas culinárias e
terapêuticas chinesas, que discursivamente produzem a China como um lugar de hábitos bárbaros e
pouco ortodoxos, alimentados pelo que seria um rampante e descontrolado tráfico ilícito de fauna silvestre que drena fabulosas quantidades de animais raros tanto dos frágeis ecossistemas chineses quanto
de outros países, notadamente de seus vizinhos mais pobres do sudeste da Ásia (Donovan, 2004). Os
chineses seriam, assim, os grandes responsáveis, ou culpados (no linguajar das autoridades brasileiras e
de parte da sociedade civil do país), por uma série de vírus emergentes – pois outros desses microorganismos (como o SARS-CoV e o H5N1 da gripe aviária) tiveram origem neste país, principalmente em
suas províncias meridionais (em especial Guangdong) e em Hong Kong (Davis, 2006; Keck e Lachenal, 2019: 29) –, mas não somente porque esses não humanos são politizados comunistas, mas também
em função de condenáveis e desagradáveis hábitos de se empregar animais selvagens na medicina e na
cozinha14.
8 Nsikan Akpan, “New coronavirus can spread between humans – but it started in a wildlife market”. National Geographic, 21/01/2020
(em https://www.nationalgeographic.com/science/2020/01/new-coronavirus-spreading-between-humans-how-it-started/, acesso em
21/06/2020).
9 Ver também Haitao Guo, Guangxiang Luo e Shou-Jiang Gao, “Snakes Could Be the Original Source of the New Coronavirus Outbreak in China”, The Conversation US, 22/012020 (https://www.scientificamerican.com/article/snakes-could-be-the-original-source-of-the-new-coronavirus-outbreak-in-china/, acesso em 21/07/2020).
10 https://www.sanarmed.com/coronavirus-origem-sinais-sintomas-achados-tratamentos (acesso em 23/06/2020).
11 Victoria Gill, “Coronavirus: a hunt for the ‘missing link’ host species”. BBC News, 04/05/2020 (em https://www.bbc.com/news/
science-environment-52529830, acesso em 27/06/2020).
12 Diogo Sponchiato, “Coronavírus: como a pandemia nasceu de uma zoonose”. Veja Saúde, 03/06/2020 (em https://saude.abril.com.
br/medicina/coronavirus-pandemia-zoonose/, acesso em 23/06/2020).
13 Aproveito para agradecer às leituras e valiosas contribuições de Andréia Osório, Flávio Leonel Abreu da Silveira, Ana Cláudia Rodrigues, Ana Paula Perrota, Franck Billé, Clarissa Martins Lima, Fabiano Souza, Piero Leirner, Celeste Medrano e Gabriel Sanchez.
14 De fato, como se verá na conclusão deste artigo, as duas coisas – o comunismo e os hábitos alimentares desagradáveis – constituem
um só e mesmo tropo utilizado contra a China e os chineses.
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A DOENçA COMUNISTA E A SOPA DE MORCEGOS
Este raciocínio, contudo, oculta o fato de que o tráfico de animais da fauna silvestre é um problema de ordem global, afetando dezenas de países em circuitos, via de regra, Sul-Norte, nos quais
espécies ameaçadas, raras e caras, da América Latina, África, Ásia e Pacífico dirigem-se para nações (e
seus restaurantes, colecionadores, joalherias, zoológicos e outros atores) afluentes na Europa, extremo
oriente e no petromundo árabe (Vander Velden, 2018). Além disso, também obscurece a constatação
de que incontáveis animais selvagens circulam amplamente pelo território brasileiro como animais de
companhia exóticos, como carne de caça (em geral ilícita), ou como recursos terapêuticos em várias
medicinas tradicionais ou populares. As oportunidades para a emergência de novos e potencialmente
letais microorganismos em função da intimidade entre coletivos humanos e diferentes animais selvagens – produzindo “ecologias virais” emergentes e potencialmente pandêmicas (Davis, 2006) –, desta
forma, não é, nem de longe, uma exclusividade dos chineses.
A sopa de morcegos
Logo no início da pandemia, ainda no final de janeiro de 2020, começou a se espalhar a notícia
de que o coronavírus teria emergido do consumo de uma “iguaria” da culinária chinesa, a sopa de morcegos, também chamada, em um insólito abrasileiramento da receita, de “moqueca de morcego”15. As
notas vinham com frequência acompanhadas de imagens terríveis, em fotos e vídeos, que ressaltavam
a ojeriza do público diante de uma tradição culinária tão exótica quanto abominável. Um dos vídeos
que “viralizou” – ironia não intencional – na web mostra uma “chinesa” saboreando a infame refeição16.
O vídeo espalhou-se acompanhado de notas do tipo “filmagem perturbadora exibindo alguém
tomando uma sopa de morcego espalhou o temor de que o mortal coronavírus pode ter emergido da
iguaria chinesa”17. Os comentários que acompanhavam tais notícias e imagens nas redes sociais eram,
igualmente, pouco lisonjeiros aos hábitos alimentares “sujos” ou “nojentos” dos chineses, que se alimentariam de “trecos”. Parece-me, de fato, pouco provável que alguém, ao menos no Brasil, esteja disposto a saborear um prato apresentado da forma como o foi: um morcego preto, com dentes à mostra,
emergindo de uma tigela de sopa rala. As imagens claramente operam na construção da repulsa e do
nojo, e são cruciais na visualização do animal como “culpado” pela doença (Lynteris, 2019b: 66). A
cor preta do animal contrastando com os tons claros do caldo, os ameaçadores dentes arreganhados, o
ventre exposto – tudo faz lembrar um caldeirão de bruxa da literatura e da cultura popular (Raffaelli,
2008) – além da comensal, que usa as mãos para morder logo a asa!
O que é bastante interessante é que, ao que tudo indica – e conforme a imprensa internacional
percebeu e noticiou posteriormente –, nenhuma das imagens ou notícias sobre o consumo de sopa de
15 “‘Moqueca’ de morcego pode ter espalhado coronavírus mortal na China”. Acesse Política, 23/02/2020 (em https://www.acessepolitica.com.br/moqueca-de-morcego-pode-ter-espalhado-coronavirus-dizem-especialistas/, acesso em 27/06/2020).
16 As imagens podem ser conferidas, por exemplo, em https://www.facebook.com/agazetaes/photos/a.283468605010135/30443686
85586766/?type=3&theater (acesso em 27/06/2020)
17 Gemma Mullin, “Missing link: coronavirus outbreak could be linked to bat soup say scientists”. The Sun, 24/02/2020 (em https://
www.thesun.co.uk/news/10812276/coronavirus-china-virus-bat-soup/, acesso em 15/07/2020. No mesmo sítio pode-se assistir ao
vídeo.
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morcegos na China parece ter sido produzida na China, mas na República de Palau, uma nação insular
no Pacífico frequentada, de fato, por muitos turistas chineses. Segundo o site The Observers18, todas as
imagens que difundiram o nexo entre a Covid-19 e uma suposta “tradição gastronômica” chinesa foram tomadas por turistas em Palau, com umas poucas na Indonésia. Neste pequeno país da Micronésia,
com efeito, a sopa preparada com pequenos morcegos frugívoros é servida nos mais conceituados restaurantes, cozida em leite de coco com gengibre, legumes e especiarias19. Os restaurantes naquele país
rapidamente não só reivindicaram a tradição da sopa de morcegos, como informaram que o nexo entre
seu consumo e o “infame coronavírus” não estava provado, embora venham recomendando cautela ao
se requisitar a iguaria.
Ademais, como afirmam os especialistas, é muito provável que o cozimento mate os vírus eventualmente presentes nos animais20, demonstrando, basicamente, tratar-se, a história da “moqueca de
morcegos”, de mais um episódio de desinformação e preconceito dirigido contra a China. Mas não nos
importa tanto, aqui, que a receita com morcegos seja palauana ou chinesa – ou, de fato, de qualquer
outro lugar, uma vez que pratos preparados com carne de quirópteros são bastante comuns por todo
o planeta, especialmente nos países do sudeste da Ásia e das bacias dos oceanos Índico e do Pacífico
(Mickleburgh, Waylen e Racey, 2009; Mildenstein, Tanshi e Racey, 2016); o consumo de ampla gama
de quirópteros é reportado nas províncias meridionais da China, mas não parece ser tão frequente e
difundido como em países vizinhos. Entretanto, fixou-se, no confuso imaginário que se consolida em
meio a desinformação sobre a doença (especialmente no Brasil), que se trata de hábito chinês: afinal,
ninguém por aqui conhece Palau, nem o diminuto país e seus costumes interessam particularmente
ao governo brasileiro. Minha reflexão, assim, deixa as sopas de morcego do Pacífico e segue na China
continental, onde a alegada prática do consumo desses ensopados foi conectada ao tráfico de animais
silvestres e o uso de muitos destes na culinária e na medicina tradicional chinesas, que adicionam, pois,
uma boa dose de exotismo, asco e incompreensão em toda esta busca pelas origens.
Mercados úmidos, mercados de animais
A República Popular da China (juntamente com Índia, Indonésia, Malásia, Tailândia... e o Brasil) está entre os maiores fornecedores mundiais de animais silvestres para o comécio ilícito global, seja
este em escala local, regional, nacional ou internacional (Broad, Mulliken e Roe, 2003: 12). Os chineses
apreciam uma infinidade de produtos oriundos de espécies da fauna selvagem – carne, secreções e ex18 Liselotte Mas, “Is bat soup a delicacy in China? We debunk a rumor on the origin of the coronavirus”. The Observers France,
02/03/2020 (em https://observers.france24.com/en/20200203-china-coronavirus-bat-soup-debunk-videos-viral-palau-indonesia,
acesso em 27/06/2020). The Observers é um website (e também um programa de TV) produzido pelo canal francês France 24 e especializado na verificação de notícias internacionais por meio de fotografias, vídeos e relatos enviados por amadores (ver https://www.
france24.com/en/tv-shows/observers/, acesso em 15/03/2020).
19 Ver imagens e receitas em https://www.tasteatlas.com/carprestaurant/fruit-bat-soup (acesso em 27/06/2020).
20 Fernando Mellis, “Manipular morcego para fazer sopa é mais perigoso que ingerir alimento”. Portal R7, 24/01/2020 (em https://
noticias.r7.com/saude/manipular-morcego-para-fazer-sopa-e-mais-perigoso-que-ingerir-alimento-24012020, acesso em 30/06/2020).
Nesta notícia nota-se a resiliência do preconceito: se o cozimento mata o patógeno, então o perigo logo se transfere para a simples manipulação da carne do animal.
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creções, peles, ossos, dentes e chifres, além de espécimes vivos – para usos diversos, incluindo a alimentação (para a qual a história registra pratos cada vez mais exóticos e elaborados) e práticas terapêuticas
do que se convencionou denominar de Medicina Tradicional Chinesa (TCM) ou, mais amplamente
– já que não se trata apenas de um fenômeno chinês – de Medicinas Tradicionais Asiáticas (TAMs).
Entre estes animais consumidos pelos chineses e outras sociedades do extremo oriente (na forma
de alimentos e/ou de remédios) encontram-se espécies raras, como tigres, leopardos, camelos, lobos,
raposas, rinocerontes e pangolins, além de “patas de urso, caudas de veado, nadadeiras de tubarão,
ninhos de aves e lesmas do mar” (Donovan, 2004: 91) – e, claro, cães (Dugnoille, 2018). Ademais,
registram-se práticas consideradas abomináveis – ao menos no Ocidente – como o cativeiro de ursos
para a drenagem constante de sua bile, poderoso ingrediente contra problemas inflamatórios e degenerativos (Livingstone, Gomez e Bouhuys, 2018), além da popularidade de ossos de tigres (Mills e
Jackson, 1994; Schneider, 2012: 65-86) e de chifres de rinoceronte (Fitzgerald, 1989: 105-114) em
preparados com reputados poderes mágicos e medicinais (Donovan, 2004: 92; Liddick, 2011: 43-48).
Tais práticas relativas à fauna não se restringem à China e Taiwan, mas prosperam em países vizinhos
na Ásia e em algumas outras regiões – incluindo os Estados Unidos e suas muitas “Chinatowns” – em
que há grandes comunidades de imigrantes (e de turistas) chineses (Donovan, 2004; Duffy, 2010).
Várias fontes informaram que o já famigerado mercado de peixes e frutos do mar de Wuhan
disponibilizava comercialmente 112 produtos de origem animal, incluindo raposas vivas, crocodilos,
filhotes de lobos, salamandras gigantes, serpentes, ratos, pavões, porcos-espinho, carne de camelo, além
de morcegos e civetas21 – estas últimas implicadas na epidemia de SARS em 2002 em função de seu
aproveitamento na culinária do China meridional (Zhan, 2005). Com efeito, vários estudos que discutem o assim chamado tráfico de fauna, ou de animais silvestres, apontam para os perigos representados
pelos patógenos inadvertidamente traficados pelo comércio internacional de fauna silvestre (cf. Alves,
Rosa e Silva, 2007; Schneider, 2012: 92-96; Machado, 2013). Um biólogo entrevistado por mim em
2015, em Rondônia, bem resumiu o ponto:
Tem também a questão da circulação de doenças por causa dos animais, doenças, vírus, parasitas,
fungos, bactérias, que a gente não conhece. Doenças que circulam entre populações de pets silvestres, pets domésticos e animais silvestres. É um risco sanitário, de saúde pública.
O medo da difusão de microorganismos desconhecidos por meio de animais silvestres extraídos de seus habitats naturais – para se tornarem carne, enfeite ou pet – passou a figurar de modo
proeminente nas discussões sobre doenças infecciosas emergentes (Quammen, 2012), produzindo novas modalidades de imbricação entre os discursos ambientalistas, sanitaristas e mesmo de segurança
nacional (Wyatt, 2013: 49-51), que colocam cada vez mais em discussão moralizante práticas de contato “impróprio” entre seres humanos e animais selvagens. Não é diferente com o SARS-CoV-2: boa
parte das notícias que se debruçam sobre as origens da atual pandemia põe em questão os “exóticos”
21 “On the menu at Wuhan virus market: rats and live wolf pups”. ChannelNewsAsia, 22/01/2020 (em https://web.archive.org/
web/20200122134135/https://www.channelnewsasia.com/news/asia/wuhan-pneumonia-virus-wholesale-market-animal-trading-12302476, acesso em 27/06/2020).
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ou “nojentos” hábitos alimentares chineses, sua participação no negócio do tráfico ilícito de animais
silvestres, a disponibilidade desses seres e produtos em mercados pelo país afora e a aparente mínima
disposição, por parte do governo chinês, em coibir ou controlar o negócio. Mesmo cientistas chineses
se colocaram contra a “ultrapassada e inapropriada tradição do consumo de animais selvagens e seus
produtos” (Li et al., 2020: 276). Além, claro, de libelos contra o “tráfico de animais” de maneira geral,
associado, neste momento, mais do que nunca, a ameaças patogênicas emergentes e atividade com risco
iminente de extinção da própria humanidade. E como se a interrupção antecipada de uma futura pandemia estivesse inteiramente nas mãos dos compradores e vendedores de animais silvestres22 – e dessas
“dádivas letais” ou “venenosas” (lethal/poisonous gifts) às vezes oferecidas por espécimes da fauna, o
presente duvidoso que recebemos da domesticação animal e da crescente proximidade com criaturas
não humanas (Diamond, 1999).
O fato é que os hábitos (e políticas) chinesas relacionadas ao comércio de espécies da fauna silvestre – a questão da “sopa de morcegos”, e da origem zoonótica do coronavírus – têm sido enquadrados nos termos da preocupação internacional com o consumo de carne de caça (assim chamadas bush
meat ou wild meat23) em todo o mundo. De certo modo, a longa história da associação entre doença e
pobreza (Briggs e Martini-Briggs, 2004) desdobrou-se em outro nexo comum, aquele entre a pobreza e
a caça e o consumo de carne de animais da fauna silvestre (Vander Velden, 2018: 99-105). Logo, carne
de caça, pobreza e doença foram diretamente vinculados: o coronavírus só pode ter emergido de chineses pobres que, sem alternativas alimentares, resignam-se a consumir abomináveis “ratos alados”, entre
outras espécies incomuns. Além disso, tomam-se os assim chamados “mercados úmidos” (wet markets)
chineses como lugares insalubres em que se comercializam, na surdina, espécies raras e subprodutos
exóticos e caros de seus corpos – expressão urbanizada do clássico tropo do vírus que escapa de animais
silvestres em remotas aldeias humanas (Garret, 1995; Preston, 1995).
Para começo de conversa, é preciso reconhecer que Wuhan é uma metrópole de 11 milhões de
habitantes, sétima mais populosa cidade do país mais populoso do planeta, e um importante polo industrial e centro político, econômico, financeiro, comercial, cultural, logístico e educacional da China
Central24. Muitas das imagens do mercado em Wuhan circulando na web, além disso, não ilustram
exatamente um lugar insalubre, clandestino e perigoso, tal como imaginamos os cenários de comércio ilícito de animais silvestres25 – ainda que a recepção dessas imagens, devidamente acompanhadas
22 Há muitas manifestações na imprensa associando o novo coronavírus com o tráfico de animais, especialmente na Ásia. Ver, entre
outros, Rachel Nuwer, “Coronavirus disrupts illegal wildlife trafficking, right now”. The New York Times, 29/04/2020 (https://www.
nytimes.com/2020/04/29/science/coronavirus-disrupts-illegal-wildlife-trafficking-for-now.html, acesso em 14/07/2020); Rachel
Nuwer, “To prevent next coronavirus, stop wildlife trade, conservationists say”. The New York Times, 19/02/2020 (em https://www.
nytimes.com/2020/02/19/health/coronavirus-animals-markets.html?action=click&module=RelatedLinks&pgtype=Article, acesso
em 14/07/2020); Helen Briggs, “Coronavirus: putting the spotlight on the global wildlife trade”. BBC News, 06/04/2020 (em https://www.bbc.com/news/science-environment-52125309, acesso em 14/07/2020). Animais domesticados e sistemas industriais de
produção animal parecem estar sendo poupados: afinal, se não comerem morcegos, quem alimentará os chineses senão a BRF Foods,
a Tyson Foods ou a JBS?
23 Os dois termos significam fenômenos distintos: wildmeat normalmente designa carne de caça consumida por caçadores e suas famílias, ao passo que bushmeat define carne de caça vendida para geração de renda (Pangau-Adam, Noske e Muehlenberg, 2012).
24 https://en.wikipedia.org/wiki/Wuhan (acesso em 07/07/2020).
25 Ver, por exemplo, disponível em https://asia.nikkei.com/Spotlight/Coronavirus/China-virus-outbreak not-currently-spreading-WHO (acesso em 22/07/2020).
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por seus textos, provavelmente funcionem no interior do paradigma da fotografia epidemiológica, na
qual se configuram a patogenicidade desses lugares e seus habitantes e se revelam culpados, humanos
e outros-que-humanos (Lynteris, 2016). Um mercado de alimentos como quaisquer outros em muitas partes do globo, inclusive no Brasil26: complexas “infraestruturas multiespécies” (Sodikoff, 2019)
nas quais (con)vivem (e morrem) juntos humanos, animais (legais e ilegais) vivos e mortos, partes de
seus corpos e excreções e produtos, microorganismos, espécies comensais, entre muitos outros seres
(Silveira, Silva e Mercês, 2016).
No entanto, se morcegos (e outras criaturas) são popularmente percebidos, ao menos no Brasil
ou no mundo euro-americano, como habitantes de lugares “sombrios e sujos” (Gomes e Costa Neto,
2016: 102; Laird, 2018), a putativa presença dos quirópteros (e de outros animais exóticos – da nossa
perspectiva, claro) ali acaba por transferir metonimicamente ao mercado suas características: úmido,
sujo, infeccioso, culpável (e culpado). Esses locais passam a constituir hubs de uma enorme e “impura
circulação de animais pelo globo”, na qual o trânsito de distintos seres não humanos é descrito em termos de contágio e taxativamente condenado (Keck, Kelly e Lynteris, 2019: 6).
Epidemias e pandemias são comumente pensadas como frutos da pobreza e da falta da infraestrutura, mas vários casos parecem apontar o contrário: são as facilidades de comunicação e transporte
que vêm incrementando as conexões entre distintas regiões do globo e produzindo a rápida difusão
de patógenos. Com relação ao surto do vírus Ebola na África Ocidental em 2014-16, mesmo tendo
ocorrido em três dos países mais pobres do mundo (Guiné, Libéria e Serra Leoa), sabe-se que a mortal
expansão da doença esteve ligada às melhorias infraestruturais – sobretudo novas rodovias – nesses
países: com isso, “o crescimento econômico intensificou as viagens e permitiu que a doença se espalhasse ao longo das rotas de intercâmbios sociais e econômicos” (Nguyen, 2019: 164).
A mesma coisa costuma se dizer do abate e consumo de animais silvestres: como signos da necessidade, da pobreza e da falta de acesso a mercados lícitos de carne de espécies domesticadas – fruto,
portanto, de uma atividade arcaica, a caça, cuja superação rumo à domesticidade e à produção de animais em escalas industriais indicia a presença da civilização (Vander Velden, 2021). Não obstante, se é
verdade que a caça de animais silvestres (principalmente mamíferos, mas também aves, répteis, anfíbios
e invertebrados) para subsistência ou abastecimento dos mercados locais ou regionais de carnes exóticas e de carne de caça (wildmeat ou bushmeat, fresca, seca ou salgada) prospera – como únicas fontes proteicas – em muitas regiões pobres da África27 (Carpinetti e Fa, 2012; Schneider, 2012: 89-98;
Robinson e Remis, 2014), Ásia (Donovan, 2004; Purnama e Indrawan, 2010; Pangau-Adam e Noske, 2010; Pangau-Adam, Noske e Muehlenberg, 2012) e América Latina (Bennett e Robinson, 2000;
Puyol et al., 2010; Santos, Conceição e Bracht, 2013), constata-se que também sustenta um comércio
26 O jornalista Christopher St. Cavish alerta para a necessidade de não confundirmos os wet markets com os wildlife markets (mercados
em que animais selvagens, muitas vezes ilegamente, são comercializados) na China (“Commentary: no, China’s fresh foods markets
did not cause coronavirus”. Los Angeles Times, 11/03/2020, https://www.latimes.com/food/story/2020-03-11/coronavirus-china-wet-markets, acesso em 30/06/2020).
27 Mesmo na África Ocidental, os animais (bushmeat, sobretudo primatas, roedores e antílopes) caçados nos arredores das aldeias são
“normalmente vendidos em centros urbanos por altos preços” (Bonwitt et al. 2018: 171).
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internacional que busca atender às demandas de expatriados e imigrantes, que buscam por experiências
gustativas (em geral caras e exclusivas) de suas terras natais deixadas para trás (Bowen-Jones, 2003).
Estudos realizados na África também apontam que uma significativa porção dos animais abatidos para consumo são comercializados em mercados urbanos e em restaurantes, que são frequentados
por pessoas relativamente afluentes, ou exportadas para emigrados desejosos dos sabores da terra natal
e que podem pagar por eles (Carpinetti e Fa, 2012). Assim, “[O]nde existe preferência por carne de
caça, sua comercialização resulta no consumo crescente por parte de cidadãos afluentes” (Bennett e
Robinson, 2000: 18); da mesma forma, em países desenvolvidos carnes exóticas são consideradas iguarias que adicionam, de tempos em tempos, variedade à dieta (Phillips, 2015: 143; Liddick, 2011: 50).
Trata-se de um mercado de luxo, de menor escala – quando comparado aos intercâmbios locais
e regionais de carne de animais silvestres –, embora constitua negócio lucrativo, uma vez que atende a
consumidores em busca de produtos exclusivos. A detalhada etnografia de Celia Lowe (2000, 2006)
nas ilhas Togian (Indonésia) demonstra com maestria um desses fluxos sul-norte de espécies exóticas,
algumas delas criticamente ameaçadas de extinção: certos peixes de recife raros e caros – pescados com
métodos assaz destrutivos, utilizando veneno ou explosivos – deste pequeno arquipélago abastecem as
mesas de empresários afluentes em Hong Kong e Cingapura.
Outros países em desenvolvimento também fornecem esses cobiçados animais para chineses
afluentes mundo afora. David Quammen (2012: 187-188) observou que o incremento do consumo de
espécies silvestres na China meridional por volta do início do terceiro milênio era um modismo – denominada Era of Wild Flavour (yewei) – no qual este comércio culinário tem menos a ver com necessidade, antigas tradições e recursos escassos do que com consumo conspícuo associado a modos de obter
e exibir prosperidade e sorte. A alimentação carnívora na China constitui uma arte antiga, sofisticada e
complexa, na qual a variedade de texturas, sabores e combinações são valores – geralmente reservados
às elites – que incluem uma “potente vontade de apropriação do mundo animal” em sua variedade por
vezes extrema, incluindo grande quantidade de espécies (muitas exóticas e estrangeiras), porções de
seus corpos e produtos e modos de preparo (Sabban, 1993: 82-84).
Sabe-se, ainda, como os altos preços alcançados por animais exóticos nos mercados transnacionais não apenas alimentam os negócios, como indicam circuitos do Sul pobre para o Norte rico – ou
de regiões menos favorecidas de um país para suas porções mais abastadas, como, no Brasil, do Norte
e do Nordeste para o Sul e o Sudeste (Renctas, 2001: 28-30). Quem pode pagar por uma araracanga
(Ara macao) que vale entre US$ 5 mil ou 6 mil na Europa e nos Estados Unidos (Renctas, 2001:
56)? Ou por uma arara-canindé (Ara ararauna) que chega a ser vendida por US$ 10 mil no exterior
(cf. Elabras, 2003: 84)? O que dizer de uma arara-azul comum (Anodorhynchus hyacinthinus), por 25
mil dólares, uma jaguatirica (Leopardus pardalis), por 10 mil dólares, ou um raro mico-leão-dourado
(Leontopithecus rosalia), pelo qual se pedem até 20 mil dólares americanos? Quem pode dispor de
dinheiro mesmo por um simples curió (Oryzoborus angolensis), que pode chegar a valer US$ 1.000
no exterior (WWF, 1995: 24)?
Animais silvestres, em muitos casos (como parece acontecer na China, por exemplo), portanto,
não são comida de todo dia, recurso emergial para a carência desesperada de proteína. Mesmo a carne
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de morcegos, na maior parte das regiões onde é consumida, constitui uma iguaria de luxo, custosa e
apreciada somente em ocasiões especiais, ou que só pode ser encontrada em restaurantes (como em
Palau e nas Seychelles) nos quais figura na atração de turistas pelo exotismo (Mickleburgh, Waylen e
Racey, 2009). Mike Davis (2006: 79) assevera que o apreço pela carne de caça na China não é impelida
pela subsistência (como ocorre na África Ocidental), e sabe-se que consumo conspícuo e extravagante
de carne de animais silvestres raros e caros vem drenando a fauna do Sudeste Asiático para afluentes
cidadãos chineses (Donovan, 2004).
Sopas de morcego, assim, não são, em geral, iguarias de povos primitivos, atrasados e doentes,
mas até a terminologia empregada para se referir a este hábito reveste-se de preconceito: conforme
David Quammen comenta, en passant (2012: 40), “quando africanos caçam e comem animais silvestres
nós chamamos de ‘bushmeat’ e lhe imputamos um ônus negativo, embora nos Estados Unidos se trate
apenas de caça [‘game’]” (ver McGovern, 2014). O caso da culpabilização dos chineses pela Covid-19
em função de alguns de seus hábitos alimentares – julgados simultaneamente asquerosos e arriscados –
aparece, então, como nova oportunidade para demonizar a China. É fato, contudo, que o mercado de
animais silvestres e seus corpos e produtos é infinitamente maior e mais complexo, e seus fluxos, com
frequência, destinam-se a abastecer mercados afluentes na Europa, no Japão e nos Estados Unidos (e na
própria China), ou aos turistas abastados do Norte que visitam o Sul global. Em ambas as situações, o
negócio é, em larga medida, mantido por elites interessadas no exotismo ou na saudade dos sabores de
casa. E o Brasil não se encontra fora disso.
Carnes não convencionais
Atitudes preconceituosas contra chineses e imigrantes de origem chinesa no Brasil têm uma longa história: em 1869, por exemplo, em seu livro Importação de trabalhadores chins, o escritor e tradutor José Pedro Xavier Pinheiro falava da “fealdade repugnante”, dos “hábitos extravagantes”, da língua
“pouco eufônica” e da aparência “mais jocosa que terrível” dos nacionais da China (citado em Leite,
1999: 261). Logo que as primeiras notícias sobre a nova doença chegaram ao Brasil, chineses e descendentes (incluindo outros povos orientais, como japoneses e coreanos) relataram casos de discriminação xenofóbica, o que se repetiu em várias partes do globo. Entre as tristes manifestações recolhidas
pelo jornal Folha de S. Paulo no Twitter estavam “quando vejo um chinês, eu atravesso a rua”, “não
compraria uma coca fechada deste povo, porque eles contaminam tudo”, e “os coreanos, tailandeses
e esse resto também são um horror, invadem nosso país, roubam os empregos do nosso povo e ainda
espalham doenças”28.
Obviamente, alguns dos hábitos alimentares dos chineses, que voltaram à tona nos debates em
torno da origem do novo coronavírus, vieram para fazer coro a esta caracterização pouco lisonjeira dos
orientais, e sabemos, já de longa data, como a cozinha (o que se come e, sobretudo, o que não se come
28 Matheus Moreira, “Em meio a surto de coronavirus, orientais no Brasil relatam preconceito e desconforto”. Folha de S. Paulo,
03/02/2020 (em https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/02/em-meio-a-surto-de-coronavirus-orientais-no-brasil-relatam-preconceito-e-desconforto.shtml, acesso em 02/07/2020).
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– ou que não se deve comer) constitui um dos principais pilares das construções da identidade e da
alteridade, da solidariedade e da abjeção, nas quais o consumo de certas carnes constitui violação moral
de certas “regras morais civilizatórias” (Perrota, 2020). Degustar a carne de vários animais selvagens
é normalmente encarado com uma mistura de espanto e nojo. O simples relacionar-se com alguma
proximidade com estes seres também o é, frequentemente: morcegos, por exemplo, são considerados,
em muitos lugares, criaturas hediondas, perigosas, contaminadas, nocivas, venenosas e transmissoras
de doenças, “ratos com asas” ou “aves do diabo”, e comê-los é quase impensável do ponto de vista do
brasileiro comum (Gomes e Costa Neto, 2016).
Constitui exercício instigante olhar para a lista (ver acima) de animais sucessivamente elencados
como suspeitos biopolíticos e potenciais “culpados” pela emergência do SARS-CoV-2. Zhan (2005)
já havia demostrado a ambiguidade das civetas (cujo nome em chinês se traduz por “gato-raposa”)
implicadas no surto de SARS em 2003. Pangolins – os únicos mamíferos com escamas (o termo em
mandarim significa “carpa da colina”, algo como um peixe terrestre) –, da mesma forma, são criaturas bizarras, exóticas, taxonomicamente instáveis, ritualmente significativas (Douglas, 1990; Aisher,
2016: 320) e, de fato, muito pouco conhecidas dos públicos (consumidores) ocidentais – a maioria de
nós, antropólogos e antropólogas, sabendo algo deles justamente via Mary Douglas (Perrota, 2020: 1).
Pouco seria necessário acrescentar a respeito das associações simbólicas negativas das serpentes, seres
terrestres que rastejam na sujeira do chão, vinculados a uma sexualidade traiçoeira, venenosa e incontida e alvos costumeiros de medo e repulsa por todo o mundo euro-americano (Ribeiro, 2017). Morcegos – eles, também, por seu turno, criaturas crepusculares, ambivalentes e poluentes, a meio caminho
entre a ave e o mamífero – compõem, assim, com estas outras espécies (civetas, pangolins, cobras), um
conjunto suspeito de animais de “taxonomia incerta, algo semelhantes a tricksters e sedutores míticos,
e alguma afinidade com outros animais da cadeia alimentar suspeitos por sua lubricidade e lascívia”
(Lynteris, 2016: 122).
A pergunta, então, a ser respondida aqui é: se algumas das receitas da cozinha chinesa (e algumas terapias de sua medicina tradicional) são tão incompreensíveis ou repugnantes, por que apenas esta nação concede livre expressão ao desejo de seu povo pelo consumo de espécies raras e pouco
usuais, pensadas como não comestíveis, talvez sequer ingeríveis? Ou as necessidades dos chineses são
tão agudas que só lhes resta o recurso ao consumo de estranhos animais das florestas? Vimos, acima,
que porção significativa do consumo de carne de animais silvestres e/ou exóticos não é dirigida pela
necessidade, mas pelo luxo. Entretanto, seja uma coisa ou outra, no Brasil registra-se ampla circulação de carnes de espécies selvagens, empregadas, assim como na China, tanto na alimentação como
na medicina dita popular.
Fontes variadas mostram com clareza que no Brasil comercializa-se uma enorme variedade de
animais silvestres e seus produtos, muitos deles ilegalmente – proibidos pela lei 9.605, de 12 de fevereiro de 1998 (a chamada Lei de Crimes Ambientais), que observa que incorre em crime quem “vende,
expõe à venda, exporta ou adquire, guarda, tem em cativeiro ou depósito, utiliza ou transporta ovos,
larvas ou espécimes da fauna silvestre, nativa ou em rota migratória, bem como produtos e objetos dela
oriundos”. Não obstante, amplas parcelas da população brasileira consomem carne de diversas espé-
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cies nativas, assim como fazem uso de substancial diversidade de animais e seus subprodutos (carne,
gordura, pelos, penas, couros e peles, excreções e secreções, sangue, ossos) nas chamadas medicinas ou
terapêuticas tradicional-populares, ou zooterapias (Costa Neto e Alves, 2010; Alves e Rosa, 2010).
Vários estudos em feiras livres país afora vêm chamando a atenção para a compra e venda e o
consumo desregulado de animais da fauna nativa (Alves, Rosa e Silva, 2007; Alves e Pereira Filho,
2007; Alves e Santana, 2008; Alves et al., 2010; Alves, Barboza e Souto, 2009). Morcegos, inclusive,
podem ser encontrados à venda na famosa feira livre de São Joaquim, em Salvador, Bahia (Gomes e
Costa Neto, 2016: 96), e é interessante como quirópteros vez ou outra aparecem em livros de receitas
ocidentais, como na Austrália da Era Vitoriana (em que se julgam raposas-voadoras ‘excellent eating’) e
em uma receita com cebolas, molho de soja e leite de coco publicada no final dos anos de 1970 no New
York Times Natural Foods Cookbook (Laird, 2018: 131-132)29.
Evidências há que, assim como em outras regiões do planeta, o volume de aquisição desses produtos (por caça, captura, compra ou troca) também tem boa parcela movimentada pelas elites ou camadas médias da população – não os mais pobres. Sabemos, há tempos, que o Norte sempre guarda
os melhores cortes de carne, ao passo que ao Sul sobram os retalhos gordurosos (Gewertz e Errington,
2010). Um funcionário do IBAMA em Porto Velho, Rondônia, confidenciou-me, em entrevista em
2014: “A classe média de Porto Velho é quem mais come carne de caça. O pessoal da cidade caça muito
e traz a carne para vender por aqui, na cidade”. O mesmo acontece na tríplice fronteira Brasil-Peru-Colômbia, na região de Tabatinga (estado do Amazonas), onde se verifica um intenso comércio de
carne dos mais variados animais nativos, e onde quelônios (ilegais) são “uma mercadoria diferenciada”
adquirida por “pessoas ‘de dinheiro’” e destinadas, geralmente, “a aniversários ou para festas de fim de
semana” (Pinto, 2017: 144-145).
O apreço pela carne de caça no Brasil pode ser medido no apelo crescente das chamadas “carnes
exóticas” (ou “carnes não convencionais”) no mercado brasileiro. Para se ter apenas uma ideia, pesquisa
realizada na Região Metropolitana de Goiânia encontrou, à venda em açougues, em bares, churrascarias e restaurantes, carne de tartaruga, jacaré, javali, paca, capivara, cateto e queixada – para ficar apenas
nos mais incomuns –, com os autores afirmando, ainda, que o mercado de carnes de animais silvestres e
exóticos encontra-se “em expansão” (Amaral et al., 2016). Carnes de outros animais, nativos e introduzidos ou importados, como emas, avestruzes, cervos, antas, marrecos, cutias e outros, estão conquistando paladares e cardápios de restaurantes elegantes nas capitais do Brasil30, embora já frequentem mesas
menos opulentas há tempos – e nem sempre com procedência legal. A captura/caça, circulação e consumo de várias espécies silvestres é, ao contrário do que se pensa, comum no país: “pequenos animais
(tatus, tejus, preás, mocós, arribaçãs, rolinhas, etc.)” no sertão nordestino “[a]té hoje são considerados
como iguarias, vendidos ou consumidos ilegalmente” (Cavignac et al., 2018: 38).
A existência de ampla circulação e consumo de carne e outros produtos de origem na fauna silvestre no
Brasil, assim como por todo o planeta (cf. Vander Velden, 2018), sugere que culpabilizar as práticas alimentares
29 O mesmo pode ser dito dos Estados Unidos, grandes importadores de fauna silvestre de todo o planeta (inclusive da China) e país que
abriga uma imensa rede de circulação de animais selvagens de todo tipo, e de todo o mundo, para abastecer vários mercados (Green, 1999).
30 Darlene Santiago e Vera Ondei, “Bicho bom”. Dinheiro Rural, 12/12/2016, em https://www.dinheirorural.com.br/secao/agronegocios/bicho-bom (acesso em 08/07/2020).
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exóticas dos chineses não apenas conta como preconceito exclusivista – porque povos de toda parte
comem as mais variadas espécies selvagens –, mas também ignora o fato de que as relações com estes
animais não domesticados, no Oriente e no Ocidente, nem de longe se podem resumir ao seu consumo, alimentar ou medicinal. É fato que já em 22 de fevereiro de 2020, por conta das reações internacionais negativas, a China proibiu a venda e o consumo de animais exóticos – fico pensando em como
se definem “animais exóticos” por lá31 – no país, além de fechar, na mesma época, pelo menos 19 mil
criadouros de animais “silvestres”32 – sem deixar escapar, obviamente, o oxímoro representado pela
noção de “animal silvestre criado”.
Não obstante, reduzir o problema da relação entre animais silvestres e microorganismos patogênicos emergentes ao que se convencionou chamar de “tráfico de animais silvestres” é, mais uma vez,
criminalizar de maneira generalizante – além de torná-las eminentemente contagiosas ou contaminantes – práticas imensamente diversas de interação entre humanos e não humanos. Evidências recentes bastante detalhadas, inclusive, colocam em dúvida se o novo coronavírus emergiu mesmo no
mercado de animais de Wuhan (Zhan, Deverman e Chan, 2020; Andersen et al., 2020)33, e notícias
frescas apontam que o vírus já circulava na China em novembro de 201934, nada tendo que ver, aparentemente, com o Wuhan Huanan Seafood Wholesale Market35. Não podemos, portanto, resumir o
problema a alguns dos supostamente deploráveis hábitos manducatórios chineses. E nem, tampouco,
ao seu regime político. Vírus e outros patógenos emergem o tempo todo, em todo lugar (Garret, 1995;
Quammen, 2012), e testemunham a intimidade do companheirismo entre espécies e a intrincada rede
de emaranhamentos que conectam todos os seres que partilham da Terra.
É imperativo, portanto, não descontar os prejuízos sanitários, econômicos e pessoais causados
pela pandemia nem em todos os humanos que se relacionam com animais silvestres – um fenômeno
31 A categorização de animais como “exóticos”, “silvestres” ou “selvagens” (ou seus equivalentes ou análogos) varia, obviamente, segundo
contextos socioculturais específicos. Ver Coggins (2002) para uma investigação destas categorias na China.
32 “Qual o impacto da proibição da venda de animais exóticos na China”. Ambiente Brasil, 03/03/2020, em https://noticias.ambientebrasil.com.br/clipping/2020/03/03/157395-qual-o-impacto-da-proibicao-da-venda-de-animais-exoticos-na-china.html (acesso em
08/07/2020). Alguns especialistas argumentam que a proibição – há muito aguardada pelas agências críticas aos usos comerciais de
animais selvagens – pode piorar a situação, uma vez que transações ilícitas devem ocupar o mercado formal: na linguagem cromática
do combate ao crime, os negócios passaram do cinza (“gray markets”) ao negro (“black markets”) (Christopher St. Cavish, “Commentary: no, China’s fresh foods markets did not cause coronavirus”. Los Angeles Times, 11/03/2020 em https://www.latimes.com/food/
story/2020-03-11/coronavirus-china-wet-markets, acesso em 09/07/2020). Evidências recolhidas durante o surto de Ebola na África
Ocidental (2013-2016) sugerem que banir o aproveitamento de animais selvagens como alimento como política de saúde pública podem
ter efeito semelhante, ou seja, tornar a vigilância epidemiológica ainda mais difícil, por conta da criminalização das práticas (Bonwitt et
al., 2018: 172). Na verdade, estamos diante de um daqueles double binds que caracterizam a sociedade global contemporânea (Eriksen,
2016): deixa-se a caça ilegal de espécies silvestres seguir seu curso cada vez mais devastador, ou converte-se tudo na produção industrial
de animais silvestres-criados-em-fazendas?
33 Ver também Victoria Gill, “Coronavirus: a hunt for the ‘missing link’ host species”. BBC News, 04/05/2020, em https://www.bbc.
com/news/science-environment-52529830 (acesso em 09/07/2020); James Palmer, “Don’t blame bat soup for the coronavirus”. Foreign
Policy, 27/01/2020 (em https://foreignpolicy.com/2020/01/27/coronavirus-covid19-dont-blame-bat-soup-for-the-virus/, acesso em
15/07/2020). É possível, portanto, que o novo vírus tenha “entrado no mercado”, e não “saído dele” (ver Jon Cohen, “Wuhan seafood
market may not be source of novel virus spreading globally”, Science, 26/01/2020 (em https://www.sciencemag.org/news/2020/01/
wuhan-seafood-market-may-not-be-source-novel-virus-spreading-globally, acesso em 22/07/2020.
34 Jeanna Bryner, “1st known case of coronavirus traced back to November in China”, LiveScience, 14/03/2020 (https://www.livescience.com/first-case-coronavirus-found.html, acesso em 21/07/2020).
35 Bruno Carbinatto, “China diz que wet market de Wuhan provavelmente não foi origem da Covid-19”. Super Interessante, 01/06/2020,
em https://super.abril.com.br/saude/china-diz-que-wet-market-de-wuhan-provavelmente-nao-foi-origem-da-covid-19/ (acesso em
10/07/2020).
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global, cujo regramento demanda uma ação firme por parte de governos, organismos internacionais e
da sociedade civil em geral, sobretudo, no que tange a um controle mais efetivo das interações predatórias entre nós e os seres não humanos – e nem, muito menos, nos próprios animais selvagens vetores ou
hospedeiros de microorganismos patogênicos. Em vários casos documentados (cf. Garcia, 2018), verifica-se movimentos populares de extermínio de animais relacionados, cientificamente ou não, a certas
moléstias – como vetores, hospedeiros ou reservatórios de microorganismos zoonóticos – e tratados
como “vilões epidêmicos” (Lynteris, 2019a) ou “inimigos naturais” (Knight, 2000).
Tendo em vista a publicidade que ganharam os morcegos como hospedeiros do novo coronavírus, a ONG britânica Bat Conservation Trust publicou, em seu website, uma série de instruções
destinadas a esclarecer o público para não haver responsabilização, e consequente abate indiscriminado, de quirópteros por conta de sua relação com a doença36 – e pode-se suspeitar que morcegos sejam
alvos preferenciais, dadas suas funestas associações (como vimos acima), como acontecia com os gatos
na Europa até o século XIX e massacrados em um famoso episódio ricamente analisado por Robert
Darnton (1986). Morcegos, uma das ordens de maior biodversidade entre os mamíferos, lamentavelmente, restam imersos no que Deborah Bird Rose (2011) chamou de deathscapes, presos a sua simbologia negativa como seres contamianantes e ao sofrimento intenso provocado pela destruição acelerada
de seus habitats e sérias ameaças de extinção.
E é, de fato, como vítimas – mais do que “vilões epidêmicos” – que os animais parecem estar sendo tratados nesta recente pandemia de Covid-19: vítimas do tráfico de fauna, da degradação ambiental
e das práticas médico-culinárias abomináveis dos chineses, além da pusilanimidade de suas autoridades
sanitárias, sendo esses dois últimos os verdadeiros vilões, inimigos, ao mesmo tempo, da saúde pública e
da democracia globais. Traficantes de animais e consumidores de carnes exóticas chineses se convertem
nos únicos párias (rogues) sobre quem recaem as acusações, livrando-se o vírus e o morcego (ou outro
reservatório animal) desta necessidade de culpabilização (Fairhead, 2018: 177). Não que eu queira
isentar os seres humanos de quaisquer responsabilidades neste cenário de conjunções perigosas entre
cultura e natureza; mas a questão premente é sobre quais humanos recairá a infâmia?
Embora tenha suas razões de ser no interior sistêmico da Medicina Tradicional Chinesa, pangolins, “os mamíferos mais traficados do mundo”, estão sendo consumidos de maneira voraz e em velocidade alarmante por cidadãos afluentes (VIPs) na China – cuja população de novos ricos cresce de
maneira exponencial – que jogaram suas oito espécies asiáticas e africanas no desolador vórtex da extinção (Aisher, 2016). Talvez seja este mesmo um momento oportuno para repensarmos esses tipos de
conjunções interespecíficas que ocorrem às custas da biodiversidade do planeta e das vidas de milhões
de animais. Mas, como sempre, é preciso cautela para que esta reflexão não conduza à uniformização de
intenções e práticas socioculturais e ao preconceito e a demonização do outro.
36 Ver https://www.bats.org.uk/about-bats/bats-and-disease/covid-19-and-bats (acesso em 24/06/2020). Dezenas de milhares de visons (minks) estão sendo abatidos com gás na Holanda depois que casos de Covid-19 foram atribuídos ao contato com esses animais,
criados em fazendas por causa de sua valiosa pele (Enserink, 2020).
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O que se passa, de fato, é que complexos sistemas de vigilância37 vêm sendo desenhados para
controlar os movimentos de aves migratórias e outros animais selvagens, além, é claro, de seres humanos – cuja circulação acaba por se confundir com o que seriam movimentos desgovernados de doenças,
seus vetores e hospedeiros (Zhan, 2005; Lowe, 2010; Keck, 2020). Ocorre que as muitas incertezas
epistemológicas relacionadas a estes patógenos emergentes nos levam a procurar por “párias animais”
(rogue animals) (Zhan, 2005; Lynteris, 2019a; Dabezies e Prieto, 2020), culpados pela pandemia,
mas também, e sobretudo, por “cidadãos párias” (rogue citizens) ou “sujeitos não sanitários” (unsanitary subjects, segundo Briggs e Martini-Briggs, 2004), justamente aqueles que frequentam mercados
úmidos e relacionam-se com – leia-se, abatem e devoram – animais da fauna silvestre (mesmo que
criados e mantidos em cativeiro) de maneiras que julgamos impróprias, impuras, bárbaras ou contaminantes. O infeliz mercado úmido de Wuhan aparece, na imprensa, como o “Wuhan virus market”,
como se comercializasse vírus.38 E chineses na França e no Canadá criaram, nas redes sociais, a hashtag
#JeNeSuisPasUnVirus (“Eu não sou um vírus”)39, e a frase também apareceu no Carnaval de 2020 na
boca de descendentes de orientais que se viram vítimas de preconceito – presentificação da noção do
imigrante oriental não assimilável (Billé e Urbansky, 2018), agora na forma de um vírus, partícula estranha no interior do corpo nacional –, como a atriz paulista de origem japonesa Ana Hikari, que se
manifestou no Twitter em 08 de fevereiro de 202040.
Chineses e outros povos orientais, desta forma, comprariam e comeriam vírus no mercado, e acabariam por se tornar, eles mesmos, agentes contaminantes, vírus. Busca-se, assim, por uma nação pária
(rogue nation) – neste caso, a China, marcada pela estranheza de seus costumes, e pela quase nenhuma
disposição, diz-se, em alterar tais práticas (note-se, claro, para cumprir agendas globais que podem não
coincidir com as prioridades chinesas) – e, na opinião dos governos brasileiro (e norte-americano), de
uma muito suspeita vontade de expansão e de difusão do comunismo internacionalista e da influência
sinítica pelo mundo, uma manifestação contemporânea dos persistentes “perigos amarelos” entre nós
(Dezem, 2005; Takeuchi, 2008; Billé e Urbansky, 2018). A cidade de Guangdong se torna mesmo uma
“exportadora de vírus” (Davis, 2006: 77), o que sugere a pandemia como (geo)política econômica.
Desnecessário lembrar que a China, dada sua centralidade geopolítica e econômica contemporânea,
37 Em seu livro, Frédéric Keck (2020) descreve detalhadamente as ações e tecnologias de mapeamento e monitoramento das interações
entre múltiplos seres – aves migratórias, animais de planteis domésticos e industriais, vírus e outros microorganismos e pessoas vinculadas
a estes contextos (criadores, produtores, consumidores, turistas) – empreendidas por uma rede constituída por governos e centros de
pesquisa na China, Hong Kong, Cingapura e Taiwan.
38 “On the menu at Wuhan virus market: rats and live wolf pups”. ChannelNewsAsia, 22/01/2020 (https://web.archive.org/
web/20200122134135/https://www.channelnewsasia.com/news/asia/wuhan-pneumonia-virus-wholesale-market-animal-trading-12302476, acesso em 27/06/2020). Uma postagem do Movimento Brasil Livre (MBL) no Instagram, de 16 de março, pergunta:
“Quando a China será responsabilizada pelas doenças que espalha ao mundo?” (https://www.instagram.com/p/B90Qw1jjk3f/?igshid=kdbvs8zfylbe, acesso em 21/07/2020), como se fosse a intenção dos chineses a difusão do coronavírus, da SARS, da gripe aviária e até
mesmo da “peste negra”.
39 https://twitter.com/hashtag/jenesuispasavirus (acesso em 02/07/2020).
40 Ver https://twitter.com/_anahikari/status/1226269810939572224 (acesso em 13/07/2020). Num interessante contragolpe, o presidente Jair Bolsonaro passou a ser, ele mesmo, comparado a um vírus (o ‘Bozovírus’), que tem feito mais estragos ao Brasil do que o
SARS-CoV-2 e precisa urgentemente ser combatido (“Bozovírus: o ex-capitão é tão perigoso quanto o coronavírus e precisa ser impedido
a bem do Brasil”. Carta Capital, 24/03/2020, em https://www.cartacapital.com.br/carta-capital/bozovirus-o-ex-capitao-e-tao-perigoso-quanto-o-coronavirus-e-precisa-ser-impedido-a-bem-do-brasil/, acesso em 22/07/2020). As metáforas em torno do vírus (incluindo
a “viralização” recente de fake news no Brasil e no mundo) merecem atenção à parte.
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está longe de ser um estado pária (rogue nation, também traduzido em português como “estado vilão”
ou “delinquente”) no sentido usualmente aplicado a estados pouco dispostos a abrirem-se às injunções
da comunidade internacional – de fato, a recente derrocada da diplomacia do Brasil e seu aparente
desejo de isolar-se de organismos internacionais para seguir perpetrando seus crimes por aqui é que
parece colocar a país no caminho para tornar-se, ele mesmo, um estado pária41.
Considerações finais: o vírus do ódio
É imperativo, destarte, tomar algum cuidado em assumir a miríade de relações consideradas ilícitas com animais selvagens – um conjunto de práticas culturais muito heterogêneas abrigadas sob a
categoria do “tráfico de animais da fauna silvestre” (Vander Velden, 2018) – como vetores de doenças,
ou reduzi-las a isso (Keck, Kelly e Lynteris, 2019: 3), tornando a miríade de relações multispécies em
questões de saúde pública (Porter, 2013; Brown e Nading, 2019: 9-10)42. De fato, há evidências de que
as práticas de captura, manutenção, abate e consumo de animais silvestres constitui um dos temas sensíveis da agenda (conservacionista) internacional, substanciando percepções de atraso e primitivismo e
gerando choques entre discursos de agências governamentais e não governamentais de alcance transnacional e práticas locais ou regionais relativas à fauna silvestre (Bonwitt et al., 2018).
Efetivamente, portanto, os resultados de toda esta difamação sinofóbica da China e de seus cidadãos parece ser o contrário do que parece pretender o governo de Jair Bolsonaro. Ao destacarmos e
condenarmos, mais uma vez, a estranheza das práticas chinesas, aproveitando o momento para acusá-los de, entre outras coisas, tentar dominar o mundo – por meio de uma doença que, se não escapou de
seus laboratórios militares, ao menos emergiu da conjunção imprópria entre humanos e não humanos
nos mercados úmidos – estamos jogando para baixo do tapete vários hábitos comuns também à sociedade brasileira. Nesta tentativa de tornar o invisível (o vírus) em algo visível (por meio de seus putativos “criadores e “portadores” orientais) para criar algo semelhante a uma unidade nacional (ou mesmo
internacional) fictícia, estamos, igualmente, autorizando a circulação de pseudoteorias acusatórias que
vêm alinhando cada vez mais o Brasil, no cenário internacional, a uma posição que aparentemente é
minoritária, mas de cujo poder ainda não sabemos a extensão. Talvez Noam Chomsky (2020: 15) esteja certo: o coronavírus é grave, mas não é o maior de nossos problemas.
Como escreveu Rafael Guimarães (2020: 6), “[o] racismo, o sexismo e o especismo andam juntos nessa direção: ao atribuir à Covid-19 uma nacionalidade se está racializando o vírus, desde um lugar
geográfico racializado – amarelo, não branco – e atribuindo às suas práticas culturais – o consumo de
animais silvestres, comportamento primitivo, segundo a hierarquia colonial-moderna, que introduziu animais domésticos para que fossem comidos – a responsabilidade pela disseminação do mal”. E
41 Jamil Chade, “Aos 75 anos, ONU é alvo de campanha inédita do Brasil para esvaziá-la”. UOL, 24/09/2019, em https://noticias.
uol.com.br/colunas/jamil-chade/2020/06/26/aos-75-anos-onu-e-alvo-de-campanha-inedita-do-brasil-para-esvazia-la.htm (acesso em
26/06/2020).
42 Como sugere Simon Evans no título de sua matéria para o site The Conversation, de 17/02/2020, “Coronavirus has finally made us
recognise the illegal wildlife trade is a public health issue”, em https://theconversation.com/coronavirus-has-finally-made-us-recognise-the-illegal-wildlife-trade-is-a-public-health-issue-133673 (acesso em 20/07/2020).
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completa: “[A] sopa é, portanto, de morcegos, que pessoas amarelas, primitivas, insistem em comer”
(Guimarães, 2020: 7). E tinha de ser mesmo uma sopa, um caldo de carne cozida, signo máximo da
refeição plebeia – e perigosamente próxima do podre (Lévi-Strauss, 1968) – e da cozinha feminina
(Montanari, 2008: 80).
É fundamental, ainda, problematizar o difundido “China’s love of eating wild animals”43 que
alimenta a discussão sobre a sopa de morcegos e os perigos dos contatos e contágios interespecíficos.
Se é verdade, como vimos, que a culinária tradicional chinesa usa saborear uma pletora de espécies de
animais silvestres, é igualmente fato que o consumo per capita de carne bovina está aumentando exponencialmente naquele país, que já é o que mais abate bovinos, o terceiro maior consumidor e o segundo
maior importador do planeta – grande parte desta produzida no Brasil (Wedekin, 2017: 45, 57)44.
Ademais, o foco concentrado, agora, nas transações com animais selvagens e em seu aproveitamento
como comida (ilícita ou não) obscurece a constatação de que vários microorganismos perigosos e potencialmente pandêmicos emergiram nas grandes concentrações industriais de animais domesticados
para abate (sobretudo suínos e aves) que alimentam a maioria de nós (Roberts, 2009; Wallace, 2020).
É preciso, assim, cautela na condenação de hábitos alimentares exóticos, pois as nossas ementas
também carregam riscos epidemiológicos consideráveis: a “revolução na criação de animais”, nas palavras do historiador Mike Davis (2006: 105), colocou bilhões de animais confinados em exíguos espaços, muito próximos de nós, e vem entupindo-os de antibióticos e medicamentos de forma descontrolada, criando, com isso, condições ideais para mutações e propagações de “novos vírus” (Porter, 2019)
e de outros seres e as “consequências imprevistas” que mobilizam (Sordi e Lewgoy, 2013). Em um de
seus últimos escritos, Lévi-Strauss (2009) deplorou o absurdo de nossas práticas contemporâneas de
criação animal, nas quais vacas são tornadas “loucas” porque convertidas em animais carnívoros, mas
também canibais (alimentadas com rações farináceas “proteinadas”, feitas de restos cárneos e ósseos de
vacas abatidas), do que resultou uma criatura – o príon (proteinaceous infectious particle) – ainda mais
enigmática do que os vírus.
Estamos informados, ainda, sobre como o pretenso “combate” (ou “guerra”) aos vírus e outros
patógenos virulentos tem servido, em alguns contextos, para desarticular a produção doméstica, de
pequenos agricultores e criadores terceirizados de aves, como aconteceu na Indonésia (Lowe, 2010)
e na Tailândia (Davis, 2006: 121-141), abrindo lucrativos espaços para a expansão de grandes frigoríficos transnacionais de origem norte-americana45. O episódio da peste suína africana (PSA) no Oeste
de Santa Catarina, pensado por muitos na região como ponto-zero do triunfo das megaindústrias da
carne sobre as pequenas criações locais de porcos (Siqueira, 2016), também pode servir de exemplo
43 Charlie Campbell, “The Wets blames the Wuhan coronavirus on China’s love of eating wild animals. The truth is more complex”.
Time, 24/01/2020 (em https://time.com/5770904/wuhan-coronavirus-wild-animals/, acesso em 04/07/2020).
44 Ironicamente, a China suspendeu a importação de carne de frango e porco de várias plantas frigoríficas brasileiras no final de junho,
segundo consta, em função de casos de Covid-19 entre funcionários destas instalações. Ver “China suspende importações de frigoríficos
brasileiros, diz Ministério”. Folha de S. Paulo, 30/06/2020 (https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/06/china-suspende-importacoes-de-frigorificos-brasileiros-diz-ministerio.shtml, acesso em 04/07/2020).
45 Keck (2020: 157) assevera que a domesticação da galinha na China – iniciando esta convivência humano-aviária – foi amplificada
pela indústria do frango norte-americana, que, agora, exporta seu modelo para a mesma China “na forma de um espectro aterrorizante”:
o lócus ideal para a mistura de seres e a emergência de novos patógenos.
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para os potenciais estragos de uma avaliação precipitada, equivocada e frequentemente mal-intencionada das relações entre humanos e não humanos – uma que qualifica como primitivas, atemporais, atrasadas ou impróprias relações com animais silvestres ou formas tradicionais de criação animal
não pautadas pela racionalidade industrial. Um dos resultados disso tem sido, assim, a imposição das
agendas globais (leia-se euro-americanas) de proteção dos animais e do meio ambiente, que devastam
economias e práticas de consumo locais – em nome, neste momento, da luta contra o “tráfico de animais silvestres” e o uso da fauna silvestre como recurso alimentar –, abrindo caminho, via de regra,
para os impérios do gado bovino, suíno e do frango como, parafraseando Thys (2019) carnes “epidemiologicamente lícitas”, que acabam por impor dietas monoespecíficas cada vez menos diversificadas
(Borges e Carneiro, 2020).
Meu objetivo, com este artigo, foi sustentar os perigos do tratamento generalizado de muitas das
relações entre coletivos humanos com animais silvestres como relações impróprias – posto que próprio
para nós, modernos e civilizados, seriam as relações com os animais domésticos ou domesticados, seja
para comê-los, seja para criá-los, amá-los e, de modo geral, relacionar-se com eles. Reforça-se, com isso,
uma oposição problemática entre natureza (selvagem/silvestre) e cultura (doméstico/domesticado), na
qual só estamos autorizados a desenvolver relações com os animais domesticados, os animais silvestres
devendo permanecer, por seu turno, na natureza. Com isso, populações que entretecem relações íntimas com espécies silvestres são postas no polo da natureza, como bárbaros, selvagens, atrasados, criminosos, párias, amarelos, comunistas – e são todos, por assim dizer, epidemiologizados, tornados objetos
de interesse epidemiológico e alvo de políticas e ações (por vezes agressivas) de prevenção, controle e
até mesmo eliminação (cf. Keck, 2020). E, evidentemente, muita, mas muita gente, nesse planeta, não
pode concordar com isso.
Ngkora dereberebel olik, el chelidobel e tellatel – diz o provérbio palauano, “como um morcego
agachado, pendurado mas olhando para baixo” (like a squatting bat, hanging but looking down), que
tem, assim, uma visão invertida das coisas (McKnight, 1968: 7). O sábio dito popular de Palau nos
alerta, de acordo com o antropólogo que o recolheu, para ações ou comentários que visivelmente extrapolam limites. O morcego serve, desta forma, para demonstrar o cuidado necessário na interpretação
de imagens e no desenho de ações, principalmente quando estes processos envolvem a responsabilização ou culpabilização de outrem, humanos ou não humanos. Conforme observou oportunamente
Slavoj Žižek (2020: 90-91), “[a] luta contra o coronavírus só pode ser travada ao lado da luta contra
mistificações ideológicas”.
Vê-se, então, que, ao contrário da sugestão de Frédéric Keck (2020: 158), as ideias de Mao Zedong e a Revolução Cultural seguem tão temidas e ameaçadoras quanto a revolução da criação animal
e os novos vírus emergentes chineses. As implicações mútuas entre preferências alimentares e ideologia
política são reforçados, portanto, em nome do distanciamento que, neste momento, o Brasil parece desejar em relação aos chineses, acusados pelos militares brasileiros de compor com a esquerda um “plano
comunista de aparelhamento” (Leirner, 2020: 213). E isso não é de hoje: em uma pesquisa (realizada
entre 2011 e 2014) sobre a percepção popular sobre os morcegos no município baiano de Feira de Santana, um dos interlocutores, um homem de 34 anos, ao ser indagado sobre quem ou onde se utilizam
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quirópteros na alimentação humana, respondeu, categórico: “Na China e em Cuba sim!” (Gomes e
Costa Neto, 2016: 111). Nosso velho problema, portanto, parece continuar, mas com a ressalva de que,
se os comunistas do passado comiam criancinhas, os de hoje comem morcegos.
Felipe Vander Velden é Doutor em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Professor Associado da Universidade Federal de
São Carlos (UFSCar). Bolsista Produtividade CNPq – Nível 2. A pesquisa que
deu origem a este artigo, realizada em 2014-2015, foi financiada pelo CNPq
(Projeto 409445/2013-4 - APQ).
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A DOENçA COMUNISTA E A SOPA DE MORCEGOS
A doença comunista e a sopa de morcegos. Sobre tráfico de animais,
orientalismo e pandemia
Resumo: Qual foi, afinal, a origem do novo coronavirus, o SARS-CoV-2, que provocou a crise sanitária pandêmica que vem transformando nosso mundo contemporâneo? De qual ou quais espécie(s)
animal ou animais emergiu e em que país começou a se espalhar? Utilizando especialmente fontes da
web, este artigo busca mostrar que as discussões em torno das origens do novo vírus e da doença que
ele provoca articulam o biológico e o nacional, e o político e o viral, de formas complexas, e que estão
intrinsecamente vinculadas a certas formas de relação entre humanos e animais, especialmente aquelas
relacionadas ao seu consumo e ao seu tráfico em escalas internacionais.
Palavras-chave: Coronavírus; Origem; Animais; Tráfico; China.
The communist disease and the bat soup. On animal trafficking,
orientalism, and pandemics
Abstract: What, after all, was the origin of the new coronavirus, the SARS-CoV-2, which caused the
pandemic health crisis that has been transforming our contemporary world? From whicht animal(s)
species did it emerge and in which country did it start to spread? Using especially web sources, this
article seeks to show that the discussions around the origins of the new virus and the disease it causes
articulate the biological and the national, and the political and the viral, in complex ways. That they
are intrinsically linked to certain forms of relationships between humans and animals, especially those
related to their consumption and trafficking on an international scales.
Keywords: Coronavirus; Origins; Animals; Animal trafficking; China.
RECEBIDO: 10/02/2021
APROVADO: 19/04/2021
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A R TIG O
O papel das atribuições na
constituição da hierarquia kadiwéu:
uma análise das distinções
eyiguayegui
GABRIELA DE CARVALHO FREIRE
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP), SÃO PAULO/SP, BRASIL
HTTPS://ORCID.ORG/0000-0001-8110-8512
Nobres fajutos entregues ao ócio: a visão dos agentes coloniais
sobre os senhores eyiguayegui
[…] os mbayá têm sempre uma multidão de guanás que os servem como escravos voluntária e
gratuitamente, que cultivam a terra para eles e lhes prestam outros serviços. Além destes escravos
ou domésticos os mbayás encontram outros muitos nas crianças e mulheres que tomam na guerra
e que não são somente índios, mas também espanhóis, de maneira que o mbayá mais pobre tem
três ou quatro escravos. Estes vão pegar lenha, cozinham, levantam as tendas ou cabanas, cuidam
da alimentação dos cavalos e de prepará-los para a montaria, e também cultivam as terras, o que
é bem pouca coisa. Os mbayás não se reservam mais do que a caça, a pesca e a guerra; de maneira
que me aconteceu de presentear um mbayá que não quis receber o regalo, ordenando a um de seus
escravos recebê-lo: tão vãos e preguiçosos são (Azara, 1809:63, tradução minha).
O PAPEL DAS ATRIBUIçõES NA CONSTITUIçãO DA HIERARQUIA KADIWéU
Ao mesmo tempo em que eram reconhecidos como os “índios cavaleiros”, opositores ferozes da
colonização espanhola e portuguesa nas regiões do Chaco1 e de Cuiabá, os índios Eyiguayegui2 – referidos por Félix de Azara, comissário e comandante das fronteiras espanholas no Paraguai de 1781
a 1801, como “mbayá” e conhecidos atualmente como Kadiwéu ou Caduveo – eram também recorrentemente representados nas fontes históricas como “vãos e preguiçosos”, inimigos “da agricultura e
do trabalho” (Almeida Serra, 1850: 370). Assim, sua imagem de incansáveis guerreiros convivia com
a de nobres fajutos e entregues ao ócio. Segundo os documentos, eles podiam passar dias inteiros sem
comer, se isso os pusesse a salvo da vergonha que sentiriam ao cultivar a terra. De acordo com Almeida
Serra (1850: 204-5), comandante da Coroa Portuguesa que acompanhou a construção do Forte de
Nova Coimbra na metade do século XVI, a “altivez e negação ao trabalho” dos capitães eyiguayegui
os teria feito “desprezar as fadigas da agricultura” e negar qualquer tipo de atividade que pudesse colocar em risco sua nobreza. Sua solução para esse impasse parecia ser simples: saqueavam dos outros,
povos agricultores, o sustento de que precisavam para se manterem vivos. Os primeiros relatos escritos
por exploradores como Cabeza de Vaca ([1555]3) e Schmidel ([1602]), exploradores que protegeram
o Forte Assunção nos séculos XVI e XVII, narram os diversos ataques empreendidos por indígenas
eyiguayegui às roças guarani, além das trocas amigáveis que aconteciam entre esses povos. Em todas
essas descrições, os índios cavaleiros saíam carregados de provisões: milhos, batatas, feijões, abóboras…
Já no final do século XIX, quando os portugueses tentavam aproximar-se dos indígenas e valer-se
de sua mão de obra, uma oferta foi apresentada aos Eyiguayegui: poderiam eles “plantar milho, feijão e
criarem porcos” para os militares residentes no Forte Coimbra, sendo-lhes garantido como retribuição
o pagamento em forma de “ferramentas, panos brancos, rapaduras, aguardente” etc. Depois de discutir
longamente a proposta com o conselho de chefes, o capitão dos Eyiguayegui veio dizer aos portugueses
que “tudo estava muito bem e que elles assim o queriam”, completando logo: quantos “escravos” haviam de mandar para fazer aquelas roças? Porque, segundo afirmava, eles não eram cativos. Da mesma
forma agiram quando lhes trouxeram madeiras para a construção de novas cabanas: disseram “que as
madeiras para elles eram muito duras, e molestavam os hombros, que todos as queriam, mas que lh’as
fossem fazer os portugueses” (Almeida Serra, 1850: 349). Cultivar a terra e carregar madeiras pesadas,
1 O Chaco tem como limites naturais os rios Paraná e Paraguai a leste, as cordilheiras andinas a oeste, o planalto mato-grossense a norte
e a bacia do rio Salado ao sul (Tola, 2013:12). Os estudos do Chaco convencionaram dividi-lo, de acordo com seus níveis pluviométricos,
em três sub-regiões: Chaco úmido, em sua porção oriental, Chaco central e Chaco seco, a leste. Pode-se também subdividir a região
chaquenha em Chaco boreal, ao norte do rio Pilcomayo, Chaco central, entre os rios Pilcomayo e Bermejo e o Chaco austral, a sul do
Bermejo (Tola, 2013:12). Existem mais de vinte povos indígenas na região chaquenha, divididos em seis grupos linguísticos principais:
“Mataco-maká (Wichí-Mataco, Chorote, Nivaclé-Chulupí, Maká), Guaycurú (Toba, Toba-Pilagá, Pilagá, Mocoví, Mbayá-Caduveo),
LuleVilela (Chunupí), Lengua-Maskoi (Lengua, Sanapaná, Angaité, Enenlhet), Zamuco (Chamacoco-Ishir, Ayoreo) e Tupí-Guaraní
(Ava-Chiriguano, Chané, Tapiete, Isoseño-Guaraní, and Guaraní Occidental)” (Combès et al 2009: 69).
2 Lê-se “edjiguadjegui”. Os Eyiguayegui, mais conhecidos como Kadiwéu, são os únicos descendentes atuais dos Mbayá, que eram falantes da língua Guaicuru e habitavam a margem ocidental do Rio Paraguai, no Chaco paraguaio. Segundo o missionário Sánchez-Labrador
([177-1776], v. II:5), esses coletivos, reconhecidos na maioria das vezes como Mbayá, Guaicurú ou Mbayá-Guaicurú se autodenominavam Eyiguayegui, que significa, na língua Mbayá, “oriundos do local em que abunda a palma Eyiguá”. Respeitando a autodenominação
destes grupos, usarei o etnônimo Eyiguayegui para me referir aos ancestrais dos atuais Kadiwéu do Mato Grosso do Sul, respeitando,
porém, os etnônimos utilizados pelas fontes em caso de citação.
3 Considerando a data da primeira publicação das obras aqui analisadas uma informação de grande importância para o desenvolvimento
do argumento, optei por informar, nas citações, apenas esta data, entre colchetes. A edição consultada e citada é informada nas fontes
e referências bibliográficas. No caso dos relatórios militares publicados na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, cita-se
apenas a data de publicação do volume da revista.
CAMPOS V.22 N.1 p. 242-263 jan.jun.2021
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pelo que se depreende das descrições, não era tarefa para boa parte dos Eyiguayegui. Aliás, o “desprezo”
desses indígenas pela agricultura foi um dos principais motivos alegados para o fracasso das sucessivas tentativas de aldeamento empreendidas pelos jesuítas no século XVIII: os missionários não tinham o que comer porque os indígenas se recusavam a trabalhar nas roças (Susnik, 1972:79; Herberts,
2011:22). De acordo com eles, essa era uma tarefa para seus servos e escravos e – por que não? – para
os próprios missionários.
Como conjugar o gênio marcial e aristocrático eyiguayegui à “preguiça” desmoralizante que
muitas vezes lhes era atribuída? De que maneira os autores das narrativas coloniais conectavam essas
características, antagônicas à primeira vista? Em que medida essa “preguiça” descrita pelos documentos
coloniais define a nobreza eyiguayegui e a suposta hierarquia chaquenha? E como as atividades realizadas pelas pessoas contribuía na construção das distinções que operavam nas aldeias eyiguayegui? O
presente artigo se debruça sobre questões como essas, procurando interpretar, à luz de contribuição de
etnografias relativamente recentes sobre os Kadiwéu, as informações sobre os “índios cavaleiros” trazidos pelos escritos de agentes coloniais, sejam eles missionários ou funcionários da burocracia estatal.
De saída, é necessário atentar para o fato de que as fontes analisadas não configuram a totalidade da documentação colonial sobre os Eyiguayegui, e não foi meu objetivo explorar esse universo
de relatórios, cartas e livros do período que vai do século XVI ao XX. Como a principal intenção da
investigação foi a de colocar em diálogo obras históricas e contemporâneas que fundamentam as análises da política eyiguayegui e kadiwéu, acabei por focar nos documentos históricos geralmente citados
como base para a caracterização desses povos como “hierárquicos” e na apreensão das diferenças que
os compõem4.
Trabalho e servidão
A pesquisa que fundamenta o artigo teve como indagação inicial o porquê da caracterização
dos Eyiguayegui, na literatura histórica e antropológica, como “hierárquica” ou, nas palavras de Pierre Clastres (2003:46), organizada por uma “clara estratificação em castas”. Como demonstrado, em
grande parte dos relatos, eles são representados como índios “soberbos” que se diziam “nobres” e “senhores” dos indígenas que haviam sido capturados na guerra – os nibotagi, denominados pelos europeus de “escravos” – e das populações agrícolas com quem mantinham relações próximas – os niyolola, ou “servos”, que podiam ser de diversos grupos, como os Guaná e os Chamacoco, dependendo
do momento histórico.
Ao me dedicar à análise cuidadosa de alguns dos relatos históricos e à tentativa de percorrer os
caminhos que os levaram a denominar relações indígenas por meio de noções como “escravidão”, “servidão”, “nobreza” e “aristocracia”, acabei por encontrar descrições de relações complexas, que podem
parecer contraditórias à primeira vista. Apesar de afirmarem uma estratificação entre as “camadas” dos
cativos/servos e dos capitães, as crônicas admitiam muitas vezes que sua linguagem era limitada e não
4 Uma apresentação mais detalhada das obras analisadas foi realizada em minha dissertação (Freire, 2018), onde também aprofundei a
discussão sobre a metodologia da leitura de fontes históricas à luz de reflexões antropológicas contemporâneas.
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podia exprimir a complexidade do que estavam tentando descrever: essa “hierarquia” era repleta de
elementos considerados contrários a ela, como a ascensão de “escravos” à aristocracia, descrita por fontes como Sánchez-Labrador ([1770-1776]) e Boggiani ([1895]) e comentada e analisada por autores
como Claude Lévi-Strauss (1996) e Rengger (2010)5, e o “carinho” dedicado pelos “senhores” a seus
“criados”, muito bem descrita pela expressão “dulce esclavitud”, de Félix Azara ([1809]). As questões levantadas pela leitura das fontes, assim, foram: por que, mesmo que haja relações de proximidade entre
“senhores” e “escravos” e mesmo que “escravos” possam se tornar chefes, a caracterização das relações
entre os Eyiguayegui sempre foi descrita por meio do conceito de hierarquia? E a partir de que evidências são definidas as condições de “nobres”, “escravos” e “servos”?
Levada por essas perguntas, a leitura paralela dos documentos históricos e da produção antropológica posterior nos faz perceber que, em grande parte dos antigos relatos, a nobreza e a “preguiça”
são tomadas como consequência uma da outra, sendo a “indolência” dos Eyiguayegui uma das facetas
(e indícios evidentes) de seu caráter qualificado como aristocrático. Como se verá a seguir, toda a construção da ideia de aristocracia eyiguayegui pela documentação colonial tem como base o fato de tais
“senhores” não trabalharem. A noção de “trabalho” mobilizada nas fontes, por sua vez, parece estar
ligada a atividades “domésticas” e agrícolas, aquelas evitadas pelos “capitães, que se reservavam, como já
escrevia Azara, apenas à caça, a pesca e a guerra. Veremos que o “horror” dos Eyiguayegui pelo “trabalho”, que consideravam “próprio de escravos”, era diretamente relacionado pelos autores coloniais à sua
“innata soberba” (Almeida Serra, 1850: 348).
Fica evidente, portanto, que a literatura sobre os Eyiguayegui efetua uma ligação entre os conceitos de “trabalho” e de “servidão”. De fato, parece ser no encontro entre essas duas noções que a
“estratificação social” eyiguayegui começa a tomar forma: é perceptível a associação direta entre (um
determinado tipo de) trabalho e servidão efetuada não apenas nos documentos históricos, mas também em análises antropológicas.
Essa conexão automática entre as duas noções, por sua vez, parece ter origem na forma como
foram vistas as diferentes atribuições eyiguayegui. Em primeiro lugar, os autores das fontes já distinguiam o tipo de tarefas realizadas, ou seja, o que “nobres” e “escravos” faziam de acordo com seus próprios termos. De saída, algumas atribuições (categorizadas como “trabalho”) eram entendidas como
inferiores às outras. Em segundo lugar, há uma preocupação com a maneira pela qual se realizavam as
tarefas, ou seja, como os “escravos” e “servos” executavam algumas atividades. De acordo com as fontes
e alguns antropólogos, a particularidade dos nibotagi e niyolola era que eles não apenas executavam
certas tarefas, mas as faziam a serviço de seus “senhores”, servindo-os em qualquer momento. Sugiro
que na base dessa visão estão certas definições de trabalho e servidão que fazem com que atividades diferentes – mas não necessariamente percebidas pelos indígenas como desiguais em valor – sejam vistas
como base de uma hierarquia.
Nesse sentido, a noção de trabalho parece estar, desde sua origem, vinculada à ideia de poder que
acaba sendo transplantada para nossas análises. Minha sugestão, portanto, é a de refinar nosso vocabulário quando nos referimos às tarefas realizadas pelos indígenas. No lugar de trabalho, utilizo daqui em
5 Há uma resenha do livro de viagens de J. Rengger, denominado Viaje al Paraguay em los años 1818 a 1826, feita por Villar (2011).
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diante o termo atribuição quando estiver me referindo aos afazeres das pessoas. O termo é inspirado na
etnografia dos Kalapalo feita por Guerreiro Jr. (2012), e chama atenção para o fato de que, ainda que
algumas tarefas sejam feitas por uma pessoa para outra, isso não necessariamente significa a existência
de um sistema hierárquico por trás dessas ações. Ou seja, assim como as relações kalapalo que são
mediadas por atribuições, também as relações eyiguayegui não trazem necessariamente consigo uma
divisão hierárquica, não definindo uma posição fixa nem para o agente da ação nem para aquele que
a demanda. Sugiro que os dados eyiguayegui sejam lidos nessa chave: não podemos negar que alguns
fazem determinados serviços para outros, mas podemos duvidar do sistema hierárquico que se supõe
por trás desses atos.
Nesse artigo, procuro me deter mais no primeiro aspecto da relação entre algumas atribuições
e a servidão tal como operada nas fontes, ou seja, ao fato de que algumas tarefas são entendidas como
essencialmente inferiores a outras. É importante destacar que, nessa análise crítica, não pretendo fazer
uma leitura que valorize mais os aspectos “hierárquicos” nem os aspectos “igualitários” das relações
eyiguayegui. Ao contrário, considero, como diversas outras reflexões acerca das políticas ameríndias,
que podem existir movimentos centrífugos e centrípetos (Clastres, 2004), a depender de diversos fatores. Nesse sentido, procuro analisar as descrições das fontes históricas fundamentada nesse “perpétuo
desequilíbrio” que Lévi-Strauss afirma ser próprio às filosofias políticas indígenas, e entender os dados
trazidos por elas de uma maneira menos rígida e mais fiel à “inconstância” que caracterizaria, segundo
Viveiros de Castro (2002), as relações e os corpos ameríndios.
“Mais uma carga do que uma honra”: as atribuições do posto de
chefia
Uma das figuras mais complexas descritas pela literatura é a dos chefes eyiguayegui. À primeira
vista, o que salta aos olhos são termos que indicam duras restrições matrimoniais, que parecem afirmar
que esses “nobres” não se casariam com seus criados. Porém, ao mesmo tempo, as descrições analisadas
enfatizam o contrário: grande parte das crônicas aponta para o movimento realizado pelo/os nobres
de procurar cônjuges fora do âmbito local e de criar crianças cativas trazidas do exterior das tolderías.
A nobreza eyiguayegui parecia se constituir, portanto, não por uma concepção de “pureza” que enclausuraria os capitães em uma sociedade em que o casamento é impossível – como sugere Lévi-Strauss em
Tristes Trópicos –, mas no seu exato oposto, ou seja, na procura mesma pelo Outro e pelo exterior, e
pelas relações matrimoniais que se espraiariam Chaco adentro.
Ainda assim, existia – e ainda existe entre os Kadiwéu, segundo etnografias contemporâneas
como as de Duran (2016), José da Silva (2004), Padilha (1996), Pechincha (1994), Ribeiro (1980a,
1980b), Siqueira Jr (1993) e Lecznieski (2005) – uma valorização da hereditariedade. Os relatos descrevem, por exemplo, uma grande festa que acontecia sempre que o filho de um dos capitães nascia,
o que acabava por construir seu prestígio desde recém-nascido. Mas, na mesma festa, era também escolhida uma criança filha de nibotagis que iria gozar, junto com o filho do capitão, do título de chefe.
Nesse sentido, ao mesmo tempo em que havia uma dose de herança na chefia eyiguayegui, havia tam-
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bém a construção gradual das características de um grande chefe, o que em algumas vezes prescindia
do “sangue” nobre. Havia também a construção de outras lideranças, que não vinham dessas linhagens
nobres, o que não é raro no Chaco. Em consonância com as descrições sobre a “hierarquia” eyiguayegui, Diego Villar (2013), por exemplo, argumenta que há, na hereditariedade dos Chané do Chaco
boliviano, matizes que a tornam passível de diversas maneiras de manipulação.
Segundo as fontes, existiam dois tipos de chefes eyiguayegui: o primeiro tipo era composto pelos
que “goza[va]m daquela regalia” por conta de seu sangue e, o segundo, por aqueles que a recebiam em
outras ocasiões, como na festa do capitãozinho. Todos se chamavam niniotagi. Ao capitão grande – o
herdeiro da capitania – dava-se o nome de niniotageleudi, uma junção de iniwtagodi (meu senhor) e
eleudi (grande). Este último adjetivo, eleudi ou elegi, era sua forma de denominação mais cotidiana.
O capitão pequeno chamava-se niniotagilionigi, onde niniotagi pode ser traduzido como “capitão” ou
“senhor” e ionigi como “filho”. Os capitães pequenos eram também denominados inionigi-iguaga, ou
“semelhante a capitão”6.
O título de elegi era aplicável não apenas aos capitães grandes, mas também a suas mulheres e
filhas. Ainda que os documentos históricos afirmem muitas vezes que a nobreza era transmitida via
linha paterna, eles trazem dados também de elegi filhos apenas de uma “senhora” e de pai “comum” ou
mesmo nibotagi. O título de niniotageleudi podia, portanto, ser transmitido tanto por linha paterna
quanto materna7, e não havia uma propensão maior para o lado masculino, como em outros contextos
– refiro-me aqui ao contexto alto-xinguano e, mais especificamente, o Kalapalo, tal como descrito por
Guerreiro Jr. (2012). Tampouco há dados que demonstrem uma menor potência da nobreza quando
apenas um dos pais era nobre: segundo as fontes, capitães grandes podiam ser filhos tanto de pai e mãe
nobres como apenas de um pai ou mãe de linhagem aristocrática.
Os elegi – também denominados por Sánchez-Labrador8 “caciques” – eram os chefes das tolderías, apresentando características muito parecidas com aquelas do titular chief (ou “chefe titular”) de
Lowie (1948: 273-6). A generosidade, a boa oratória e a habilidade de agregar um grupo de pessoas e
mantê-lo em certa harmonia eram certamente requisitos de um bom elegi. Aliado a esses aspectos, a posição de chefia parecia ser também esvaziada de poder, como no modelo proposto por Pierre Clastres
(2003) inspirado nas observações de Lowie. A descrição de Radin (1946), baseada no testemunho do
jesuíta Martín Dobrizhoffer ([1784]) sobre o posto de “cacique” entre os povos de língua Guaicurú, é
exemplar nesse sentido. Segundo o antropólogo, ser capitão entre aqueles índios era
mais uma carga do que uma honra e com frequência este posto traz[ia] mais perigo do que proveito. Pois não reverencia[va]m a seu cacique como um mestre nem lhe paga[va]m tributo ou
ajuda como é costume em outras nações. Não o invest[ia]m com a autoridade de um juiz, um
árbitro ou um vingador... Se repreend[ia] alguém por suas transgressões, com uma só palavra dura
6 A denominação dos capitães é informada por Sánchez-Labrador ([1770-1776], v. II: 19), e a tradução dos nomes é trazida por Mônica
Pechincha (1994: 34).
7 Afirmação feita também por Cabeza de Vaca ([1555]:159).
8 Sánchez-Labrador foi um jesuíta ligado à Companhia de Jesus que fundou entre os Mbayá do norte a missão Nossa Senhora de Belém
em agosto de 1760.
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ser[ia] castigado na seguinte bebedeira, para beber com os punhos dos selvagens embriagados, e o
encheriam publicamente de insultos, como amigo dos espanhóis e como alguém que ama mais a
tranquilidade que a seu povo (Radin, 1946: 188, tradução minha).
Os “proveitos” do posto de chefia, nesse sentido, eram poucos. Na verdade, os elegi pareciam estar sempre tentando atingir o ideal de um bom chefe, que correspondesse às expectativas do grupo. Entre as “cargas” que não apenas os elegi, mas os niniotagi em geral tinham que carregar para continuarem
a ser “nobres”, estava a função de anfitrião das festas. A seguinte descrição de Boggiani ([1895]:188)
esclarece esse ponto:
Por quanto tenho observado até aqui parece que os Caduveo gostam de fazer exibição de grandiosidade e generosidade, mal se achem em condições de fazê-lo. Não gostam de embriagar-se egoisticamente sozinhos; precisam para tanto de boa companhia; parece-lhes necessário que todos
saibam que tal indivíduo está em condições de oferecer aos amigos o prazer imenso de tomar uma
solene bebedeira, que se cante, se dance alegremente, se faça rumor; que os garrafões de aguardente de que dispõe sejam esvaziados com toda cerimônia e com grande pompa; que a memória do
festim dure longamente e o anfitrião chegue a superar, com a sua generosidade e o esplendor da
sua festa, as festas anteriores.
O esbanjamento descrito por Boggiani não era simples mostra de fartura dos anfitriões, ou apenas a procura pela companhia nas bebedeiras, como interpreta o comerciante. De acordo com a afirmação do próprio italiano, os ofertantes das cerimônias tinham a preocupação de “superar, com a sua
generosidade e o esplendor de suas festas, as festas anteriores”, ou seja, as festas dos outros anfitriões – o
que evoca diretamente as competições em forma de potlatch entre os “chefes” da Columbia Britânica.
Os niniotagi (e também os aspirantes a niniotagi) estavam sob constante pressão de afirmar sua nobreza
sobre a dos outros. Essa confirmação, por sua vez, se dava por meio de exibições de “grandiosidade e
generosidade”. “Embriagar-se egoisticamente sozinho”, nesse caso, seria visto como uma grande afronta
a seu grupo e como sinal de mesquinhez: um dos grandes xingamentos eyiguayegui era exatamente a
acusação de sovinice, acami aquilegi - “você é um covarde, miserável, mesquinho e nada liberal”, segundo Sánchez-Labrador ([1770-1776], v. I: 252, tradução minha). A nobreza dos niniotagi é indissociável, portanto, de sua generosidade e capacidade de distribuição: assim que voltavam de suas incursões
a outras aldeias, os chefes davam aos outros habitantes das tolderías tudo o que haviam roubado ou
recebido de presente. Sendo o momento mais propício para a mostra de generosidade, as festas são
centrais na construção da nobreza e dos estatutos eyiguayegui.
Nesse sentido, e como afirma Perrone-Moisés (2015: 53), a festa ameríndia não deve ser vista
como acessória à política; ela efetivamente é (o que chamaríamos de) política. Merekuku Apalay, interlocutor da etnóloga, ao comentar que “dono de festa é como chefe”, resumia a conexão que, segundo a
autora, é evidente: como um anfitrião, o chefe deve ser generoso, bom orador, promotor da concórdia;
e os chefes ameríndios têm de modo geral a obrigação de oferecer festas, de saber cantar e dançar e de
ser “detentor” de objetos de festa, como afirmava Boggiani sobre as festas eyiguayegui; em suma, têm
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que saber como oferecer momentos de alegria (Perrone-Moisés, 2015: 5). Por isso, Boggiani descrevia
anfitriões preocupados em fazer com “que todos saibam que tal indivíduo está em condições de oferecer aos amigos o prazer imenso de tomar uma solene bebedeira, que se cante, se dance alegremente”.
E as atribuições dos niniotagi não paravam por aí. A última passagem do excerto de Radin –
aquela que coloca em contradição “amar a tranquilidade” e, ao mesmo tempo, “seu povo” – remete a
outra característica dos chefes ameríndios tal como descritos na tese clastreana, também presente no
Chaco: sua ferocidade e predisposição para a guerra. Assim, ao mesmo tempo em que deve ser generoso
e bom anfitrião, agregando em volta de si o maior número de pessoas possível, o chefe ameríndio – e
eyiguayegui, como as fontes parecem mostrar – devia também ser feroz, lutando contra uma unificação que levaria à centralização (Clastres, 2004). E esse ímpeto ao exterior não devia se mostrar apenas
na guerra: como afirmei acima, era importantíssimo que os elegi procurassem se casar com pessoas de
outras localidades, trazendo-as para dentro de suas tolderías. Uma das principais atribuições da nobreza eyiguayegui, nesse sentido, era a de se relacionar com o exterior e trazê-lo, já controlado, para as
relações domésticas.
É importante notar que essa nobreza não era composta apenas por chefes: o título de chefe não
se estendia necessariamente à nobreza dos niniotagilionigi – capitães pequenos. Ainda assim, os niniotagilionigi formavam, em conjunto com os elegi, um grupo de pessoas que tinha na festa e na guerra
suas maiores atribuições. No mais, outro ponto a ser ressaltado é o fato de que a nobreza dos capitães
pequenos era apenas vitalícia, não sendo transmissível para as gerações futuras, como no caso dos capitães grandes. Eles podiam adquiri-la nas festas de criação dos capitães e também quando demonstravam
certas aptidões para o cargo, como a capacidade de ser um bom anfitrião e a vocação para a guerra. É
importante notar, assim, que os nibotagi que apresentassem as qualidades esperadas de um bom chefe
podiam muito bem virar capitães de uma toldería inteira, enquanto pessoas que recebiam, por nascimento, o “título de nobreza” e não se esmerassem em desenvolver as aptidões do cargo, ou cujos pais
não investissem na festa de criação do capitão e outras festas iniciáticas, não eram tidas como chefes.
A criação gradual do chefe parece ser, nesse sentido, muito mais importante que a hereditariedade da
posição. Ainda assim, opto por continuar a utilizar aqui o termo “nobreza”, por haver algumas similaridades com a noção europeia: ambas parecem se referir a um porte específico, comedimento e boa
educação. Não deixo de notar, porém, que existem grandes diferenças entre a “nobreza” eyiguayegui e
a dos europeus: a hereditariedade e a “pureza” que parecem ser requisitos no último caso, por exemplo,
não são nem de longe o ideal da aristocracia chaquenha.
De onde vêm, então, os motivos para a literatura sobre os Eyiguayegui efetuarem uma separação
tão marcada entre os nobres e os nibotagi e o niyolola? Como demonstrado, as relações entabuladas
dentro das tolderías são lidas pelas fontes por meio da oposição niniotagi/nibotagi, e praticamente
todas as descrições de um nobre presentes nos documentos históricos são feitas em oposição à de um
“escravo” ou “servo”. Não há, pois, nobreza sem que haja “escravidão”/”servidão”, e a matéria-prima
dessa distinção parece ser os tipos de tarefas realizadas pelos niyolola, nibotagi e niniotagi, descritas nas
fontes como anteriores a eles, definindo-os. Tendo apresentado preliminarmente as atribuições de um
bom niniotagi¸ apresento nas próximas páginas as tarefas dos nibotagi e niyolola.
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“Não podiam fugir porque tinham uma tarefa a fazer”:
atribuições do niyolola e nibotagi
Nobres cavaleiros e nobres damas se divertiam nos torneios; estavam livres dos trabalhos subalternos graças a uma população instalada havia mais tempo, diferente pelo idioma e pela cultura, os
Guaná. [...] Esses Guaná cultivam a terra e pagam um tributo em produtos agrícolas aos senhores
mbaiá em troca de sua proteção, para se preservarem da pilhagem e das depredações feitas pelos
bandos de cavaleiros armados, entende-se (Lévi-Strauss, 1996: 191).
A descrição de Lévi-Strauss, feita com base na leitura dos documentos históricos, versa sobre a
“relação de servidão” entre os Eyiguayegui e os Guaná. Além desse pacto hipotético que teria fundado
a relação entre as duas populações, há outra particularidade dos “servos”, como se depreende da leitura
do excerto e das fontes: sua especialização nas tarefas da terra, que acabaria por deixar “livres dos trabalhos subalternos” os “nobres cavaleiros”, ocupados com a “diversão” proveniente das festas e dos jogos
(os “torneios”). Ainda que as fontes descrevam, muitas vezes, os niyolola “servindo” a seus senhores em
diversas atividades, sua atenção recai sempre na vocação para a agricultura: “os Guaná” cultivavam “a
terra em roças trabalhosas, mas grande parte de seus esforços” serviam de “alimento para seus amos
vagabundos”, conta Sánchez-Labrador ([1770-1776], v. I:305, tradução minha). Seu trabalho da terra
seria trocado, por sua vez, pela vocação para a guerra de seus “senhores”, como afirma Lévi-Strauss. O
“contrato de vassalagem” entre essas duas populações criaria uma relação entre uma sociedade-para-a-guerra e uma sociedade-para-a-agricultura, fazendo-as trocar suas especializações entre si.
De forma parecida, os nibotagi, denominados pelas fontes “escravos”, também eram reconhecidos por suas atividades. Segundo os autores, eles eram indispensáveis ao cotidiano dos toldos, pois
todos os serviços do seu dia a dia estavam ao seu encargo. Fazia parte de suas atribuições “abastecer os
toldos dos senhores de água, lenha e coisas semelhantes” (Sánchez-Labrador [1770-1776, v. I]:133,
tradução minha), além de cozinhar, buscar palmas de eyiguá, construir e limpar os toldos, cuidar dos
cavalos e, às vezes, caçar e pescar (Métraux, 1946:308).
É importante notar que, embora existam diversas descrições dos niniotagi fazendo todos esses
tipos de tarefas, apenas nibotagi e niyolola são por elas definidos. Boggiani ([1895]:133), por exemplo,
afirma que aos escravos competia “os trabalhos grosseiros de serviço e o lavrar a terra”, serviços condizentes com sua condição “selvagem”. De maneira parecida, o antropólogo Santos-Granero, no livro
Vital Enemies (2009: 95), em que se debruça sobre casos de “servidão” nas terras baixas sul-americanas,
entre eles o dos Eyiguayegui, também relaciona os cativos de guerra às “tarefas mais árduas”, definindo-os como “serviçais domésticos”. Susnik (1972: 89), por sua vez, afirma que aos escravos cabia todo
o trabalho e conta da ocasião em que os Eyiguayegui se comprometeram a ajudar os portugueses a
construir o Forte Bourbon, mas se recusaram a fazer o serviço, deixando-o para seus “escravos”, pois o
consideravam um “trabalho pesado”.
É perceptível que a definição de “escravos” e “servos” como pessoas que se ocupam com certas
tarefas está diretamente relacionada à definição de outras pessoas – os nobres – que não se ocupam
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com essas atividades. Lecznieski (2005:225), por exemplo, escreve que muitos Kadiwéu não executam
“tarefas consideradas árduas e menores”, preferindo contratar outras pessoas que possam “lavar roupa
no riacho, ‘levantar uma casa’ ou buscar matéria-prima para ‘levantar cerâmica’”. Ela conta que, no
início de sua estadia entre os Kadiwéu, seus nobres anfitriões – ela estava hospedada na casa do capitão
Paulínio e sua esposa Durvalina, descendentes da família Silva, uma das famílias nobres kadiwéu – insistiam para que ela não fizesse nenhum “trabalho pesado”, “na ‘torreira do sol’” pois, segundo eles, esse
não era “serviço para brancos” e eles tinham “outras pessoas para fazer esse tipo de serviço” (Lecznieski,
2005:13). A antropóloga narra que, mesmo com essa inicial reprovação, ela e seu marido continuaram a fazer atividades consideradas “menores”, fato que logo passou a ser aceito pelos Kadiwéu. Tanto
que, aos poucos, eles começaram a ser requisitados para efetuar aquele tipo de tarefa para seus anfitriões e familiares. “[S]e nos recusávamos a ser nobres, então que fôssemos cativos!”, escreve Lecznieski
(2005:201).
A autora conta que atualmente os Kadiwéu contratam, de tempos em tempos, alguém para cultivar as roças. Segundo a antropóloga, eles manifestam abertamente um “desagrado em relação às atividades agrícolas, explicando que a contratação de empregados se deve sobretudo ao fato de se tratar
de um trabalho árduo, que maltrata a pessoa, obrigada a passar muito tempo ‘com a cabeça rachando
no sol’”. Nessas ocasiões, eles assumem a posição de “coordenadores do trabalho”, assim como os antigos Eyiguayegui faziam com os Guaná – os “mutirões” de agricultores guaná são descritos em Freire
(2018). Não é de se estranhar, portanto, que a maior parte dos agricultores da R.I. Kadiwéu sejam os
Terena e Kinikinau, descendentes autodeclarados dessa população chaquenha. Segundo as etnografias atuais, os Terena e Kinikinau tendem a se concentrar em aldeias separadas da maioria dos nobres
kadiwéu, como as aldeias Campina e São João. De acordo com Siqueira Jr. (1993:128), mesmo sendo
“visivelmente mais pobres”, seus moradores são reconhecidos por “suas qualidades de lavradores e suas
capacidades de trabalho, uma vez que as maiores e melhores roças estão localizadas na Campina”. A vocação dos descendentes dos Guaná para a agricultura é também expressada por Martinho Silva (nobre
kadiwéu) quando este conta sobre a época – meados nos anos 1940 – em que o SPI realocou algumas
famílias Kinikinau e Terena para a RI Kadiwéu constituindo, na ocasião, a aldeia São João ( José da
Silva, 2011: 61).
Nas palavras de Martinho,
[e]sses Terenas, vem sendo aliado com os Kadiwéu, sempre vivendo subordinados, os Kinikinau
subordinados aos Kadiwéu. Não podia fugir porque eles tinham uma tarefa a fazer [...]. Então eles,
os patrícios9 disseram: - Então vocês ficam aqui [...], aqui é o canto da nossa área, aqui qualquer
coisa, qualquer irregularidade que vocês vê, procuram nos localizar, nos avisar o que está acontecendo. Agora vocês têm obrigação, planta milho, arroz, feijão, tudo o que se dá aqui vocês planta,
e nós vamos comercializar entre nós mesmos, lá pelo rio Paraguai, por aí, tudo o que nós conseguir
nós entrega aqui, nós não temos como negociar [...] Nós vamos negociando isso aí, vocês ficam
9 É comum encontrar fala dos capitães e seus cativos referindo-se à parte dos nobres como patrícios, termo que geralmente se refere aos
membros da nobreza da Roma antiga e àqueles que têm atitudes distintas, de aristocrata. O uso desses termos, assim como “nobre” e
“cativo” indica a adoção de um vocabulário que lhes foi aplicado ao longo dos séculos por agentes coloniais e antropólogos, adoção esta
que, ainda que tenha sido imposta, nunca foi efetuada de maneira impensada pelos Kadiwéu.
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como vigilante nosso, como ponto de segurança nosso. Aí toparam, onde existe o PI São João
(Siqueira Jr, 1993:130).
Os Terena e Kinikinau foram levados à R.I. Kadiwéu por Horta Barbosa com a intenção declarada de povoar o território para que os ataques de fazendeiros diminuíssem. Segundo Martinho,
a “obrigação” dos Terena e Kinikinau seria a de avisar caso houvesse alguma invasão, ficando como
“vigilantes”, “pontos de segurança”. O relato de Martinho nos faz ver, além disso, que essa relação de
“trabalho” é um dos pilares de sustentação da relação niniotagi-nibotagi/niyolola. Os Terena teriam a
obrigação moral de cumprir uma espécie de código de honra: “[n]ão podia[m] fugir porque eles tinham uma tarefa a fazer”.
Podemos depreender, ainda do testemunho de Martinho, que há uma contrapartida às obrigações dos Terena e Kinikinau. Segundo ele, os agricultores tinham a tarefa de plantar, e os Kadiwéu, a de
comercializar entre eles ou “lá pelo rio Paraguai” tudo o que conseguissem. Mais uma vez, esse acordo
lembra muito aquele descrito pelos documentos históricos, em que os Eyiguayegui trocavam os produtos agrícolas guaná pelas manufaturas dos europeus. A vocação de “comerciantes” dos Eyiguayegui
aparece também nas descrições coletadas por Susnik, quando esta afirma que os senhores deixavam
seus “escravos” trabalharem no Forte Bourbon para ficarem livres “para fazerem alianças e trocas” com
os portugueses (1972: 82).
Preguiça ou vergonha? Diferentes olhares sobre a nobreza
Eyiguayegui
Além de se ocuparem com os “negócios”, a festa e a guerra, os niniotagi realizavam muitas outras
tarefas. Segundo a documentação colonial, os “capitães” – que pareciam não fazer outra coisa senão
estar em guerras (Schmidel, [1602]:79) – ocupavam-se também com as expedições de caça, com a prataria, a confecção de lanças e flechas, a construção de canoas, a preparação dos couros de cervos, veados
e gado (Sánchez-Labrador, [1770-1776], v. I:297) e a coleta de carandás, palmitos e mel (Rodrigues
do Prado, 1795:33). Além disso, eram descritos como exímios veterinários, pois cuidavam sempre do
gado, das ovelhas e dos cavalos. Estes últimos, aliás, eram centrais tanto nas expedições guerreiras quanto dentro das tolderías – de acordo com Sánchez-Labrador, os (nobres) donos dos cavalos conheciam
“las enfermidades de sus caballos mejor que las suyas próprias”, e lhes direcionavam o melhor dos cuidados, gastando muito de seu tempo com eles (Sánchez-Labrador [1770-1776], v. I:298). A relação dos
“senhores” com seus cavalos era (e continua sendo) tão próxima que a antropóloga Branislava Susnik
chegou a falar sobre a possibilidade de uma “crise étnica” eyiguayegui nos fins do século XVIII, quando
os paraguaios tentaram colocar em prática um plano de “desequestrização” daqueles índios, visando a
diminuir seu poder bélico: segundo Susnik (1972: 91), os aristocratas eyiguayegui não podiam se ver
sem seus cavalos, correndo o risco de virarem “escravos” ou, em língua eyiguayegui, nibotagi.
A “preguiça” dos chefes eyiguayegui, nesse sentido, não se refere à falta absoluta de afazeres por
parte dos “senhores”. Na realidade, a acusação de que a aristocracia vivia em função da diversão parece
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se ancorar não na ausência de atividades, mas em sua não ocupação com certas atividades. Como afirmei
acima, a definição dos nobres está diretamente ligada àquela dos escravos: segundo as descrições, o que
um fazia o outro não fazia. O termo nibotagi é um exemplo disso. Mesmo que ele tenha sido muitas
vezes traduzido por “escravo” ou “cativo”, seu significado exato não é conhecido. A interpretação mais
razoável parece ser a de Susnik (1972: 67), que define aqueles reconhecidos como nibotagi não por si,
mas em relação àqueles que não se encaixam nessa categoria, de maneira parecida com a dupla niyolola-oquilidi. Segundo a antropóloga, o termo nibotagi significava “os que trabalham” e se referia àqueles
que, em oposição ao “‘homem eyiguayegui’, o homem com lança, guerreiro e caçador”, eram conhecidos
como homens “sem lança, o servo; a esses nibotagi, homens e mulheres, correspondia todo o trabalho”.
Ou seja, os niniotagi eram definidos por não fazerem as atividades das quais se ocupavam os nibotagi,
pois, como já escreveu Susnik (ibidem, tradução minha), “certos trabalhos por si mesmos indicavam
logo o status de nibotagi; por essa razão, todos os comuns possuíam dois ou mais ‘nibotagi’, para não
cair na vergonha social do trabalho”.
Ainda que estivesse se referindo à suposta ignomínia a que os niniotagi seriam submetidos pela
realização de atividades consideradas por ela “inferiores”, Susnik parece ter acertado ao usar o termo
“vergonha”. Muito encontrada na literatura sobre os Jê, a noção de “vergonha” se refere, naquele contexto, à observância de certos protocolos de comportamento que acabam por introduzir e manter distâncias entre recém-casados, sogros e genros e amigos formais, mas não só: segundo Coelho de Souza
(2004: 30), a pertinência da “vergonha” ultrapassa largamente o campo das relações entre afins. Entre
os Krahô, por exemplo, “denota timidez, reserva, autocontrole, observância da etiqueta, distância social, desempenho de papéis sociais” em diversos níveis (Carneiro da Cunha, 1978:123). Ainda que essa
não tenha sido a intenção de Susnik, sugiro ser possível ler a “vergonha” dos nobres eyiguayegui em
uma chave parecida com aquela dos grupos jê, podendo ser entendida como um acatamento a certas
normas de comportamento que marcam distinções entre estatutos diversos, recorrentemente construídos pela observação cotidiana desses protocolos (ver, por exemplo: Melatti, 1979; Seeger, 1981;
Coelho de Souza, 2004).
Como afirmei acima, a “aristocracia” eyiguayegui parecia se distinguir por seu “porte específico, comedimento e boa educação”. Todas essas características, por sua vez, parecem constituir essa
“vergonha” ameríndia, que parece ser, não apenas entre os Eyiguayegui, o maior distintivo de classes
mais “prestigiosas”; entre os Ramkokamekra, por exemplo, existem grupos de pessoas que são mais
suscetíveis à “vergonha”: segundo Coelho de Souza (2004: 31), os indivíduos da classe dos hamren,
constituído por pessoas que ocupam certas posições de prestígio, têm muito pahâm (vergonha) em
relação a outras classes. Uma comparação entre as divisões de tarefas eyiguayegui e os escritos sobre o
decoro entre vários grupos jê poderia indicar vários caminhos de análise, o que demandaria um esforço
que não pode ser feito aqui. Sugiro apenas que se entendermos a “vergonha” dos niniotagi em se ocupar
com determinadas tarefas não como um descrédito às atribuições dos nibotagi, mas como um respeito
a certos protocolos de comportamento que constroem e mantêm determinadas distâncias, veremos
como os diferentes estatutos e, portanto, diferentes pessoas, estavam sendo construídas de acordo com
suas atribuições, ou melhor, se construíam na adoção do comportamento condizente com sua posição.
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É possível encontrar um sentimento parecido, também vinculado a certas distâncias institucionalizadas, nas relações entre anfitriões e convidados nos arete guasu, grandes festas de convite realizadas
pelos mburuvicha (chefes) chiriguano e chané (povos que constituem o outro caso conhecido de “hierarquia” no Chaco). Segundo Domínguez (2020), aqueles que faziam o convite e ofereciam a festa demonstravam seu prestígio e influência, enquanto os chefes convidados demonstravam sua “vergonha” e
eram impelidos a dar festas ainda maiores, em uma disputa pelo prestígio (ver: Nino, 1912).
A oposição niniotagi/nibotagi não era a única a ser construída por este decoro ou código de
honra: as relações entre homens e mulheres também pareciam seguir estes protocolos, que foram interpretados pelos autores das fontes históricas de maneira parecida com a oposição entre “senhores” e
“escravos”. Se, de um lado, os homens eram recorrentemente colocados pelas fontes no âmbito público
e político, as mulheres eram descritas no domínio do particular e do doméstico, caso nada raro nas descrições e análises americanistas, que repetem tais correlações como se nelas houvesse algo de universal,
transcultural ou natural. Vejamos as tarefas consideradas femininas.
Escravidão como essência feminina: as atribuições das
mulheres nobres e não nobres
As mulheres cativas, quando não são descritas como “concubinas” de seus donos, são retratadas
realizando as mesmas atividades dos cativos homens. As mulheres “nobres”, por sua vez, são descritas em uma clara oposição aos “senhores”: de acordo com as fontes, ao mesmo tempo em que ambos
compartilhavam o “sangue nobre”, suas tarefas eram diametralmente opostas. Em contraposição a seus
maridos, pais e irmãos – ocupados, do ponto de vista dos europeus que aportaram no Chaco, com
atividades políticas como a guerra e as reuniões de caciques – as “donas” pareciam se reduzir ao espaço
doméstico: elas cozinhavam, teciam casacos, camisas, ponchos de lã das ovelhas, colhiam cocos, feijões,
frutas e raízes, faziam as esteiras, as louças, potes e panelas. Acima de tudo, elas são descritas fazendo as
pinturas corporais e tirando todos os pelos – sobrancelhas e pestanas – dos próprios rostos e dos seus
maridos, filha/os e cativa/os, em um processo que parecia levar longas horas. A distinção entre as atribuições da nobreza feminina e masculina culminou em uma oposição que subsiste até hoje nas análises
antropológicas e historiográficas: aquela entra a arte e a guerra10.
Essa “divisão sexual do trabalho” descrita pelas fontes e pela literatura atual não traz nenhuma
grande novidade para a etnologia. Ela é geralmente considerada a primeira e mais simples forma de
organização social, à qual vem se sobrepor outros tipos de diferenciação, como as distinções “rituais”, de
classe, etc. Mas é importante notar que, no caso dos Eyiguayegui, praticamente todas as atividades consideradas femininas são compartilhadas pelos nibotagi: ambos cozinhavam, carregavam os pertences
nas mudanças de tolderías e “acompanhavam” as expedições guerreiras, por exemplo. As fontes muitas
vezes nos confundem ao descrever as atividades dos “escravos” ou das mulheres nobres, e a sensação é a
de que os próprios autores se atrapalham na categorização dessas atribuições.
10 A oposição entre arte e guerra é discutida mais a fundo em Freire (2018).
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É interessante salientar que essa relação entre feminilidade e escravidão não é exclusiva dos escritos sobre os Eyiguayegui: a antropóloga Beatriz Vitar (2001: 239, tradução minha), por exemplo,
fala da criação, pelas fontes jesuíticas, de uma “imagem subordinada e servil” das mulheres indígenas
chaquenhas. Segundo o missionário Pedro Lozano (1873: 76) citado pela autora, por exemplo, as mulheres guaicurú seriam “como escravas perpétuas de seus maridos”, ainda que levassem com eles uma
vida conjugal.
Além disso, de maneira similar àquela dos nibotagi, as tarefas da maioria das mulheres também
são retratadas como “árduas”. Observando a distribuição das tarefas nas tolderías eyiguayegui, por
exemplo, Émile Rivasseau ([1936]:72) escreve que “em todas as tribos indianas” é normal que se atribua às mulheres “os trabalhos mais duros e mais penosos”, julgando normal que, nessas circunstâncias,
elas sejam consideradas “ainda mais ou menos como escrava[s]”. Essa sobreposição da distinção entre
“nobres” e “escravos” à divisão sexual do trabalho parece ser consenso nas fontes analisadas. E não apenas às fontes: Fernando Santos-Granero chega a afirmar, sobre os trabalhos realizados pelos “escravos”
ameríndios, que os “cativos homens eram frequentemente obrigados a executar tarefas menores, que
eram consideradas domínio das mulheres” (Santos-Granero, 2009:128, tradução e grifos meus), o que
seria prova do controle de seus capitães sobre eles.
E não apenas a divisão sexual das tarefas é uma velha conhecida da Antropologia: mesmo as funções definidas como masculinas e femininas são apresentadas como universais – de um lado os homens
caçam e guerreiam e, de outro, as mulheres cozinham, cuidam das crianças, tecem, fazem cerâmica... É
possível fazer um paralelo entre as narrativas dos cronistas e as descrições dos Aché-Guayaki de Pierre
Clastres, no qual existe, segundo o autor, “um espaço masculino e um espaço feminino, respectivamente definidos pela floresta onde os homens caçam e pelo acampamento onde reinam as mulheres”
(2003:122). Ali, tarefas de homens e mulheres definiriam a própria existência masculina – “que só se
torna autêntica quando realizada” na caça – e feminina – definida pelas funções da maternidade e do
casamento11. De maneira parecida, os autores dos documentos históricos definem homens e mulheres,
nibotagi e niniotagi. Em seus escritos há uma relação direta entre o que as pessoas fazem e o que elas são:
aos homens nobres, o movimento e a floresta; às mulheres e “escravos”, o sedentarismo e as tolderías.
Assim, uma divisão de tarefas que poderia ter origem em um decoro e em normas não fixas de comportamento passou a ser lida pelos relatos como diferenças inatas a homens, mulheres, nobres e “escravos”,
que acabariam por distingui-los hierarquicamente.
Por isso, quando uma mulher ia para guerra, um nobre cozinhava e um nibotagi caçava, por
exemplo, os autores das fontes tendiam a considerá-los como desvios à regra. É o caso dos cudina que,
segundo Almeida Serra (1850:358), eram homens que faziam os “mesmos trabalhos” que as mulheres.
Ele(a)s eram descrito(a)s como “homens que affecta[va]m todos os modos das mulheres; vest[ia]m-se
como ellas, ocupa[va]m-se em fiar, tecer, fazer panelas, etc.”, vistos como verdadeiras aberrações, “ne11 Esse paralelo entre os dados trazidos por P. Clastres sobre os Aché-Guayaki e aqueles trazidos pelas fontes sobre os Eyiguayegui é mais desenvolvido em Freire (2018). A ideia de que as mulheres seriam “naturalmente” compelidas ao ambiente
doméstico e à procriação que é afirmada pelas fontes é também trazida por Pierre Clastres, que a questiona posteriormente em
outro ensaio, “O infortúnio do guerreiro selvagem” (2004). A solução clastreana para o problema das mulheres eyiguayegui que
seriam, assim como os homens, seres-para-a-morte, é também discutida por mim na dissertação.
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fandos demônios”. O fato de esses homens terem assumido – assim como Krembegi, indígena guayaki
apresentado por Pierre Clastres (2003: 127) – “até as últimas consequências sua condição de home[ns]
não-caçador[es]”, abandonando o arco para viverem “como mulheres”, era para as fontes inconcebível.
O exemplo da reação violenta dos cronistas à existência dos cudinas revela a necessidade desses
autores de atribuir lugares fixos aos personagens de seus relatos. Sua tentativa de impor às populações
chaquenhas formas de relação com características marcadamente europeias acabava por fazê-los procurar categorias intermediárias quando homens não cumpriam o que eles entendiam como seu destino
natural – a caça e a guerra – e quando os nibotagi começavam a se destacar por seus feitos guerreiros,
passando a ocupar posições de chefia. Cativos que se tornavam guerreiros, por exemplo, parecem ser
entendidos pelas fontes como pessoas em um estado de transição da “escravidão” para a “nobreza”,
sendo alocados na camada dos “comuns”, assim como os cudinas eram entendidos como homens que
estavam em seu caminho de ser tornarem mulheres.
Aliás, é interessante perceber o paralelo possível entre os cudinas eyiguayegui e os two-spirit
norte-americanos (por muito tempo conhecidos como berdache), aquelas pessoas que foram muitas
vezes denominadas como “travestis” ou “homossexuais”. Nos dois casos, as fontes históricas localizam
a transformação destes “homens” em “mulheres” no momento em que ele(a)s passam a realizar tarefas
consideradas femininas. “Entre os Yurok, por exemplo, um homem jovem se torna wergern [two-spirit]
quando começa a tecer cestas” e, depois deste momento, ele logo passa a “se vestir como mulher” (Désy,
1993:19). Também entre os Pima, “um menino que mostra uma predileção por brincar com cestas será
‘como uma menina’” (ibidem). A suposta capacidade de transformação de gênero contida nessas atribuições, porém, não será discutida no presente trabalho. O importante aqui é salientar que essas tarefas
não apenas não são fixas a homens e mulheres, “escravos” e “senhores”, como também parecem ter a capacidade de operar transformações corporais e de afetar as distinções que operam entre os Eyiguayegui.
Considerações finais: as atribuições como matéria do devir
Parece haver uma multiplicidade de pontos de vista que se atravessam e são expressados pelas
fontes. O que seus dados permitem entrever é que havia mesmo algo como um “código de honra” (ou
decoro) que demarcava contextualmente certas distâncias; essas distâncias, por sua vez, pareciam se
exprimir também nas diferentes tarefas realizadas pelas pessoas. Ou seja, niniotagi e nibotagi, homens e
mulheres eram realmente distintos por suas atividades, mas não de uma maneira estanque e imutável, e
é por isso que as fontes narram movimentos de transição (ou transformação) entre um estatuto e outro.
Não sendo algo “natural” ou imutável, e podendo ser produzidos e reafirmados por meio do comportamento, esses estatutos não eram estanques, ou matéria do ser, e sim transformacionais, questão do
devir, da transição entre um modo de existência e outro. A leitura dos registros históricos nos leva a
acreditar que, quando uma pessoa passava a se ocupar de atribuições típicas de outros estatutos, seu
corpo mudava e, com ele, sua posição em relação às outras pessoas. Mudam-se as atribuições, muda-se
também a posição ocupada na rede de relações dos nibotagi, niyolola, elegi, homens, mulheres e cudinas.
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Os cronistas, viajantes e missionários autores das fontes, porém, acabaram por interpretar as
diferentes atribuições não apenas como distintas – como elas pareciam ser lidas pelos indígenas – mas
também como desiguais em valor, definindo as categorias que povoavam as tolderías eyiguayegui por
meio do “trabalho” executado pelas pessoas e afirmando serem algumas delas inferiores e outras superiores. Mas a análise atenta desses documentos mostra que em nenhum momento os Eyiguayegui
diziam não realizar tais tarefas por serem elas inferiores a seu status. Se por um lado os dados trazidos
por essas fontes permitem ver que as tarefas eram diferentes entre pessoas distintas, por outro, eles colocam em dúvida o fato de que essa diferença era concebida em termos de superioridade e inferioridade.
Nesse sentido, é necessário atualizar esse debate sobre as atribuições entre os Kadiwéu. É preciso
realizar mais pesquisas que tenham como objetivo entender de que modo essas atribuições operam
transformações nos corpos e nos estatutos eyiguayegui e kadiwéu. Se os “senhores” continuam a delegar certas atividades a outras pessoas, é imprescindível entender qual é o sentido conferido a essas
atribuições por quem as rejeita e por quem as realiza de fato. É necessário também aliar às descrições
que tomam a perspectiva eyiguayegui como central aquelas produções que focam no que os “servos”
e “escravos” pensam dessas relações (ver, por exemplo, Cordeu, 2004). Talvez assim, por meio do diálogo com “senhores” e “servos” a Etnologia dos Kadiwéu possa começar a entender o princípio das
distinções entre esses estatutos.
Gabriela de Carvalho Freire é mestra em Antropologia Social pela Universidade
de São Paulo (USP) e doutoranda na mesma instituição. É antropóloga responsável pela Seção de Etnologia Indígena do Museu de Arqueologia e Etnologia da
Universidade Federal do Paraná (MAE-UFPR). A pesquisa que fundamentou
o artigo obteve financiamento da Capes.
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O PAPEL DAS ATRIBUIçõES NA CONSTITUIçãO DA HIERARQUIA KADIWéU
O papel das atribuições na constituição da hierarquia kadiwéu:
uma análise das distinções eyiguayegui
Resumo: O artigo revisita os escritos de agentes coloniais acerca dos Eyiguayegui e dos Guaná – de
quem os atuais Kadiwéu e Terena se autodenominam descendentes – e de sua suposta hierarquia. Por
meio da leitura dessas fontes em conjunto com reflexões antropológicas contemporâneas sobre os Kadiwéu, populações do Chaco e outros povos ameríndios, pretendo apresentar o papel das diferentes
atribuições na construção das distinções entre aqueles que as fontes denominam “senhores”, “escravos”
e “servos”, e até mesmo entre homens e mulheres. Noções de trabalho e de âmbitos público e doméstico
são mobilizados na discussão, que reflete acerca das assimetrias e das relações de gênero principalmente
entre os Eyiguayegui e Kadiwéu.
Palavras-chave: Gran Chaco; Kadiwéu; Terena; Assimetrias; Formas políticas ameríndias.
The role of attribution in the constitution of the kadiwéu
hierarchy: an análisis of eyiguayegui distinctions
Abstract: This article revisits the writings of colonial agentes about the Eyiguayegui and the Guaná – from whom the current Kadiwéu and Terena call themselves descendants – and their supposed
hierarchy. By reading these sources in conjunction with contemporary anthropological reflections on
the Kadiwéu, the populations of the Chaco and other Amerindian peoples, I intend to present the
role of different attributions in the construction of the distinctions between those whom the sources
call “masters”, “slaves” and “servants”, and even between men and women. Notions of work and of the
public and domestic spheres are mobilized in the discussion, which reflects on the asymmetries and
gender relations, manly among the Eyiguayegui and Kadiwéu.
Keywords: Gran Chaco; Kadiwéu; Terena; Assymmetries; Amerindian political forms.
RECEBIDO: 04/07/2020
APROVADO: 07/04/2021
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A R TIG O
Lideranças, fala e ação política
entre os Guarani Mbya
LUCAS KEESE DOS SANTOS
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP), SÃO PAULO/SP, BRASIL
https://orcid.org/0000-0001-9293-8124
Fala esquiva
Comecemos com uma advertência: assim como em relação a outros povos, não se devem subestimar as condições de enunciação entre os Guarani Mbya. Lembremos que Cadogan (1997 [1959]), por
exemplo, demorou anos de intensa convivência até que concordassem em lhe transmitir os discursos
e cantos sagrados que formaram o Ayvu Rapyta,1 pois não é em qualquer contexto ou para qualquer
pessoa que tais informações são passadas. Essa percepção acredito que seja pertinente não só aos pesquisadores não indígenas que buscam aprender sobre esses assuntos, mas também entre os Guarani,
pois o acesso às falas dos mais velhos (no caso, os xeramoĩ e as xejaryi2) não é algo tão simples, e requer
esforço e habilidade por parte do interessado.
Mesmo obtendo a concordância de um xamã, sua fala pode ainda assim guardar profundas ressalvas, que se manifestarão em lacunas, tergiversações, imprecisões propositais ou outras estratégias,
que podem variar em termos de grau, para despistar ou enganar alguém que não lhes parece merecedor
1 Célebre compilação de cantos, narrativas míticas e exegeses recolhidas entre os Guarani Mbya no Paraguai. Os cantos principais, que
contam o fundamento da palavra humana (ayvu rapyta), são proferidos pelos xamãs em uma modalidade de fala específica e dominada
por poucos, a ayvu porã (belas palavras), intensamente metafórica em suas construções.
2 Literalmente, xeramoĩ significa “meu avô”, mas seu uso remete também à posição do xamã ou, em contextos mais amplos, como na
acepção que utilizei há pouco, é um modo de se referir a um mais velho que se respeita. Seu correlato feminino é xejaryi (“minha avó”).
Tais termos remetem à sobreposição comum entre a posição de liderança dentro de um grupo familiar (normalmente exercida por um
casal de anciãos que são avós de muitos) e as figuras identificadas como xamãs, responsáveis por conduzir os rituais na opy e pelas curas
e cuidados exercidos por meio do xamanismo. Há diversos outros termos que reproduzem essa relação de respeito e referência ao xamã
guarani, entre eles: karai e kunhã karai; e nhanderu e nhandexy, esses últimos, mais comuns em outras regiões.
LIDERANçAS, FALA E AçãO POLíTICA ENTRE OS GUARANI MByA
de tais saberes – em alguns casos3, a fala dos xeramoĩ é extremamente esquiva. O efeito sobre os dados
obtidos, portanto, é bem considerável.
Entretanto, a variedade e as contradições nos dados colhidos pela etnografia não estão apenas relacionadas à dificuldade de sua obtenção. Os xeramoĩ e kunha karai lideram movimentos, estabelecem
temas e estilos. Na medida em que enfatizam oposições e aspectos particulares em detrimento de outros na multiplicidade que compõe o cosmos, suas palavras4 e cantos são enunciações no debate entre os
próprios Guarani sobre os saberes e as práticas que constituem seu modo de vida, o nhandereko. O que
esses personagens fazem, portanto, surge como ação política, pois atua na conformação e dissolução de
movimentos coletivos, definindo – como qualquer liderança – grupos e práticas cuja permanência e
transformações se relacionam a esse jogo de matriz e variantes.
Nesse sentido, há princípios lógicos e temáticos que aparecem como constâncias, atravessando
com pouca diferença o vasto território guarani, mas também há variações, que, mais que imprecisões,
são modificações que fortalecem esses mesmos princípios e, acumuladas em longo prazo, contribuem
para precipitar sua transformação.5 Assim, para além das variações em jogo, como mencionado, há de
ser levar em conta também o lugar a partir de qual pude compartilhar tais momentos entre os Guarani.
Em minha trajetória entre os Guarani Mbya6 ao longo de doze anos, principalmente em aldeias
do Sudeste, pude acompanhar diversos contextos de enunciação de falas das lideranças, desde um âmbito mais comunitário, na mediação de conflito entre parentes, passando pela construção de projetos
em parceria com instituições indigenistas até às reuniões supralocais e grandes assembleias de suas
próprias organizações políticas.
Minha função sempre esteve associada a de apoiador e parceiro na construção de seus movimentos, acompanhando a gestação e condução desses processos nas próprias aldeias. Tais movimentos são
marcados pela iniciativa e diplomacia das lideranças7 que, não raro, têm que lidar com diversos tipos de
impasses, e nos quais a fala, em diversas escalas e situações, é o meio por excelência no qual os dissensos
são elaborados, ainda que não explicitamente, como veremos.
3 Há outros contextos de falas dos mais velhos que poderia se argumentar que seriam mais diretas, como naquelas de aconselhamento
ou admoestação (nhemongueta), sobretudo dirigidas aos jovens. Contudo, mesmo que não estejam tão marcadas por uma preocupação
em proteger conhecimentos restritos e busquem ser mais assertivas, elas ainda assim são povoadas por descrições de exemplos indiretos
e outros procedimentos para se dizer uma coisa dizendo outra. São estratégias que possuem em comum o cuidado em não produzir
confrontações demasiado explícitas ou agressivas.
4 Há um aforismo de Wagner sobre a fractalidade no contexto melanésio que poderia se aplicar ao xamã guarani em relação à fala: “É
esta a fractalidade da pessoa melanésia: a fala formada por meio da pessoa que é a pessoa formada por meio da fala” (Wagner, 1991:6).
5 Essa discussão também se relaciona com o que Carneiro da Cunha (2009 [1981]:59) chama de terrain vague, situações etnográficas
em que se torna um tanto improdutivo ou até enganoso buscar um consenso sistemático dos indígenas a respeito de determinado tema
repleto de versões dissonantes. A análise dessas variações deveria ser feita a partir da enunciação ou da gramática subjacente às mesmas,
dependendo do material analisado, que, no exemplo das diferentes versões sobre a escatologia krahô, seria relativo a um “núcleo reduzido
de relações estruturadas entre a escatologia e a sociedade que a produz” (ibid.:60).
6 Para descrições recentes sobre dinâmicas políticas em outros contextos etnográficos guarani, como no Mato Grosso do Sul, ver: Pimentel, 2012; Seraguza, 2013; Cariaga, 2019; Valiente, 2019. É importante destacar também que, no presente artigo, opto por um debate
mais circunscrito a autores clássicos, não sendo possível, pelos limites do texto, dialogar de forma mais extensa com a etnografia contemporânea. Tal debate, no entanto, nesse e em outros recortes temáticos sobre os Guarani, pode ser encontrado em Keese dos Santos (2021).
7 Para mais discussões a respeito da diplomacia e fala das lideranças no âmbito da cosmopolítica ameríndia, contexto teórico com o qual
este artigo dialoga, ver Gibram, Vanzolini & Sztutman (2020).
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Diferir sem contradizer
Nos projetos realizados no âmbito do indigenismo com os Guarani é importante aprender desde
cedo a sondar as sutis negativas de suas respostas. “Vamos realizar tal projeto? Podemos marcar essa
data? É assim que vocês preferem?” Caso a intenção da resposta ou mesmo a disposição em proferi-la
seja negativa, os Guarani buscam não frustrar a expectativa positiva de seu interlocutor, dando respostas afirmativas se necessário. Entretanto, ao mesmo tempo, querem manter sua autonomia sobre aderir
ou não a tais ações. Trata-se, obviamente, de evitar processos que os obrigariam a fazer algo que não
querem, mas também de evitar ter que romper explicitamente com um potencial aliado, dizendo um
rotundo e agressivo “não”.
Isso, evidentemente, pode intensificar equívocos e gerar mal-entendidos prolongados, mas o
aprendizado do interlocutor indigenista passa justamente não por desconfiar constantemente da palavra guarani, mas por entender que sua fala não privilegia a criação de convenções e contratos. Sua
expressividade requer mais momentos para diferenciar posicionamentos, seja por meio das palavras,
seja por meio de outros modos de expressão. Um “sim” ou uma ausência de “não” dificilmente bastam
por si mesmos. A tradução comum que os Guarani fazem dessa questão à nossa limitada compreensão
de tais sutilezas é saber distinguir entre as “palavras que vêm do coração” e as “da boca para fora”.
Em diversas ocasiões, tive a oportunidade de observar o trabalho de lideranças guarani em seu
meticuloso processo de interpretar as expressões coletivas. Sendo as lideranças iniciadoras e fiadoras de
toda sorte de ações e movimentos, seu sucesso e prestígio está intimamente relacionado a um correto
interpretar desses humores coletivos, que se expressam muito além das falas convencionais. Em uma
mesma tarde na opy (casa de rezas), um orador mbya pode iniciar seu discurso concordando veementemente com seu predecessor e, em seguida, expressar implicitamente posição contrária. Podemos ver
um respeito e uma tolerância acentuados nesse movimento, mas isso não exclui a diferença que tal discurso busca engendrar. A estratégia é um aparentemente paradoxal diferir sem contradizer.
As lideranças guarani têm que ser hábeis jogadores. Sua destreza está em justamente operar necessitando que as possibilidades de escolhas coletivas, ora ou outra, atualizem-se. Afinal, são por excelência realizadores de ações, puxadores de movimentos. Há que se garantir os mutirões, as idas a manifestações, organizar retomadas, buscar consensos sobre penalidades. E há também que se evitar o abuso
dos bailes. Nada disso, porém, pode ser feito em demasia. “Mandar” demais é apenas o primeiro passo
para em seguida “mandar” de menos. Assim que a comunidade sente que não há um devido equilíbrio
entre atualizar as tendências coletivas imanentes (muitas vezes contraditórias) em ações e, de outro
lado, deixar suas possibilidades em aberto, ela passa a abandonar as lideranças consideradas ruins, que
têm seu prestígio diminuído. Nesse sentido, a liderança tida como tirana equivale à liderança omissa,
ou seja, aquele que exagera na condução de ações equivale àquela que peca por sua falta.
Assim, os Guarani se afastam da má liderança; da mesma forma que fazem com um jurua incômodo na aldeia, dizem “sim” a um chamado e simplesmente “dão um perdido” em seguida, ou seja,
ignoram sua realização. Nada mais esquivo, no sentido de suas intenções enganosas, que “dar perdidos”,
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LIDERANçAS, FALA E AçãO POLíTICA ENTRE OS GUARANI MByA
“matar reuniões” etc., práticas comuns e um dos tipos de protestos mais realizados na política comunitária dos Guarani.
Outra característica marcante é o extremo receio sobre a responsabilidade na enunciação de
broncas e penalidades relativas a faltas cometidas no contexto da aldeia. Da mesma forma como eles
são ciosos para iniciar qualquer ação coletiva, esse tipo de fala é, poderíamos dizer, um movimento
arriscado. Trata-se de uma atribuição da figura do cacique, mas, em aldeias em que mais lideranças
compartilham essa função, são comuns o receio e a evitação em realizar essa tarefa. Parece que a enunciação de uma fala explícita de condenação de outrem abre margem para uma possível retaliação de
cunho pessoal. Quer dizer, mesmo que a avaliação da falta e as medidas de justiça sejam discutidas em
um âmbito coletivo, quem enuncia a pena não se vê protegido por qualquer institucionalidade de um
cargo representativo.
A fala, nesse sentido, é sempre pessoal, e explicitar posições duras contra alguém em específico
pode gerar receios no enunciador, que, muitas vezes, prefere se furtar à tarefa ou amenizar a formulação
da fala, deixando-a o mais ambígua possível. O medo da vingança revela assim a ausência de qualquer
imunidade estatal na política da aldeia, bem como a importância da coragem e do trato diplomático
para as lideranças, cujas falas podem até expressar anseios de um coletivo maior, mas estão inevitavelmente e intimamente ligadas à pessoa que as enuncia.
Falas diplomáticas
A estrutura e o funcionamento da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY)8 parece expressar uma
coexistência profícua entre organização e dispersão política. Abrangendo seis estados brasileiros (além
de manter relações com os Guarani presentes na Argentina e no Paraguai), e estabelecendo, por princípio, que todos os Guarani são membros da organização, o processo de articulação promovido pela
CGY busca não se sobrepor às formas de liderança já praticadas nas aldeias e regiões. Assim, se as
demandas da luta pela regularização de seus territórios e direitos em diversos momentos exigem articulações suprarregionais, centralização de decisões e certa burocracia administrativa, ao mesmo tempo
cada região, cada aldeia e cada liderança atua de forma autônoma e desenvolve suas próprias estratégias,
que não deixam de incluir também períodos de dispersão e fragmentação política. Essas ocasiões são
importantes não só pelo equilíbrio que promovem, coibindo intromissões nas autonomias locais, mas
porque garantem processos de renovação das lideranças e das parcerias com apoiadores não indígenas.
É interessante a semelhança do momento atual, em que os Guarani buscam se articular por meio
de organizações como a CGY, com o modo como Bertoni descreve os Guarani Mbya de fins do século
XIX na região da Tríplice Fronteira (Brasil, Argentina e Paraguai), que estavam organizados em uma
espécie de confederação em que cada grupo e cada aldeia possuía suas próprias assembleias, nas quais
se chegava às decisões por consensos, alcançados por “convicção, persuasão ou mesmo por espírito de
8 Organização política autônoma do povo Guarani, que articula as aldeias presentes no Sul e Sudeste brasileiro. Para mais descrições das
assembleias da CGY e sua relação com modos de liderança entre os Guarani Mbya, ver Keese dos Santos (2021). Para uma análise focada
em comunicados públicos da CGY, ver Pereira (2018).
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solidariedade” (1922:60-1). Em momentos de circunstâncias específicas, eram buscados “chefes-executivos” supralocais, assistidos por conselhos de anciãos e sábios. Essas antigas descrições de Bertoni
não diferem muito do que eu mesmo testemunhei de modo geral nas aldeias e articulações políticas
guarani mbya, que equilibram autonomias locais com referências políticas regionais, configurando
zonas de influência.
Acredito, no entanto, que é possível matizar ainda mais essa noção de consenso, conceito mobilizado de modo um tanto automático nas discussões sobre autonomia e horizontalidade política. Muitas vezes, o que observo entre os Guarani é que, apesar de sua tendência à dispersão política, é demasiado custoso divergir internamente de modo explícito. Isto é, no momento em que já está conformado
certo movimento, em que já se estão propondo seus encaminhamentos, dissentir significa se colocar à
frente de um possível novo movimento, uma nova fila. E iniciar uma ação é algo de que os Guarani em
geral têm muito receio, pois se trata de uma responsabilidade e exposição que poucos estão dispostos a
enfrentar – eis a importância das lideranças.
Assim, inclusive em uma situação com uma quantidade razoável de pessoas insatisfeitas com
um suposto consenso em formação, se não há quem dê voz e encarne o movimento de dissenso, ele
simplesmente não aparecerá. Quando ele aparece é, às vezes, até difícil distingui-lo: manifestar dissensos em reuniões é a mais fina arte da diplomacia entre os Guarani Mbya. Evita-se ao máximo que o
dissenso transpareça como uma afronta, uma agressão. Trata-se antes de propor cuidadosamente um
novo entendimento consensual que, mesmo que não seja novamente do agrado de todos, ao menos o
seja de modo suficiente. Dessa forma, vai se constituindo o clima sereno das reuniões e assembleias dos
Guarani Mbya, nas quais a formalidade e o total respeito à fala de cada um são absolutamente notáveis.
Vejamos agora tal problemática de modo mais aproximado a partir de uma fala de um jovem
guarani que tem assumido relevantes papéis como liderança.
Pra começar, uma questão para ajudar a entender sobre como a fala é importante para nós Guarani
é que mesmo quando estamos lidando com problemas do mundo do jurua, do jurua reko [modo
de ser dos jurua), que tem seu funcionamento baseada em documentos, em um monte de papel,
sem a fala acompanhando, o papel não funciona. Não posso simplesmente enviar um documento
para as demais lideranças sobre alguma decisão, algum encaminhamento e achar que isso é suficiente. Precisa ter junto uma fala acompanhando, não só para explicar, mas para dar legitimidade.
Pra nós, só o papel não basta. Pode ser um documento importantíssimo, e ele pode até ser lido aos
demais, mas se não tiver uma fala junto, não será dada a devida atenção.
A fala, nas organizações em que atuo, ela que encaminha as coisas. As definições e encaminhamentos, alguém tem que falar, alguém tem que encaminhar, alguém tem que falar a estratégia.
É por isso que os Guarani têm muito cuidado com a palavra. O ayvu (fala) é utilizado muito sutilmente, muito devagar. É a forma como os nossos mais velhos, nossos xeramoĩ e xajaryi fazem. Porque no ayvu, você tem que ter o corpo do ayvu também, em si. Então, a fala tem um corpo dentro
da gente, que ela vai indicando, são indicadores para você ter um bom diálogo. Se eu tenho alguma
coisa que eu não estou de acordo, se eu não estou aceitando algo, não vou falar primeiro. Espero
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LIDERANçAS, FALA E AçãO POLíTICA ENTRE OS GUARANI MByA
os outros se manifestarem antes. Porque a maneira como eu estarei me expressando, se não tiver
uma segurança, se esse corpo do ayvu não estiver formado em mim ainda, de como vou alinhar
tudo, para dar meus pitacos, chegar numa definição, se não tenho isso, não posso me expressar.
Porque sem esse corpo bem formado posso falar um monte de coisa e acabar me atrapalhando,
concordar ou encaminhar para um outro lado que eu não queria. Porque a palavra tem esse poder
de encaminhar, de agir.
Ouvir o outro é a parte mais importante. Muitas vezes quando estou inseguro, eu prefiro ouvir
antes, porque daí eu vou pegando e montando esse corpo que eu falo: saber dar início à fala, no
meio dar aqueles pitacos, e também chegar numa definição. Acho que é isso pra mim, porque eu
tenho que chegar nesses três pontos importantes.
Em um diálogo conflituoso, você tem que pegar tudo que seu oponente está falando e entendendo
e transformar ao contrário. Você não pode gritar, olhar feio. Se ele está xingando, você tem que
falar palavras bonitas, se ele está olhando feio, você tem que dar uma risada, se ele está muito gelado, você tem que descongelar ele! Você tem que usar toda a sabedoria do nhandereko [o modo de
ser guarani]. A questão da diplomacia é isso, né? Eu não sei, não sabia o que era diplomacia jurua
reko rupi [no modo de ser dos não indígenas] “Diplomacia”, que porcaria é essa? Mas é como você
lida, como que você se relaciona com o outro. Por mais que você possa estar falando coisas muito
contrárias a quem te ouve, você pode estar dando pontadas, mas mesmo assim você não o deixa
pegar essas críticas e retornar para você. Acho que isso os Guarani sabem fazer muito bem. De não
usar uma forma agressiva para se contrapor. Você tem que fazer totalmente o contrário do que
está sendo feito por quem te agride na fala. Para jurua kuery não, se um grita, um pega a cadeira,
outro joga! Então, é isso, a palavra tem esses poderes muito contrários a esse tipo de agressão, e
nhandekuery tem muito isso nas organizações que envolvem outras comunidades. É muito usado
isso como jeito de agir por meio da fala.
Já para os jura kuery, é a hierarquia política que domina, que prevalece, que permanece: é a fala do
superior. No sistema político jurua, o diálogo não ocorre de verdade. Se vem um deputado, todos
tem que calar a boca e ouvir o cara. Não há uma igualdade da importância da fala no jurua reko, é
só o cargo maior que fala e que pode escolher ouvir ou não ouvir os outros. Isso vem da educação
do jurua, de obedecer a fala do superior, que vem desde a escola. No mundo da política do jurua
é dessa forma que funciona.
Mas às vezes aparece algum doido Guarani que acha que gritando resolve alguma coisa. Mas em
geral assim não funciona com a gente. (Tiago Karai Tataendy)
É curioso como um dos exemplos para marcar a distinção com que os Guarani agem por meio da
fala, e que inicia esse trecho, é justamente uma inversão em relação aos processos que dão legitimidade a
acordos políticos no mundo jurua. Se para os não indígenas qualquer acordo só tem validade se estiver
formalizado em algum documento, em algum papel assinado, para os Guarani se dá o oposto: o papel
por si só não consegue agir, é necessária uma fala que ponha o acordo ali codificado em movimento e
dê legitimidade a ele.
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Isso parece derivar de um contraste fundamental que é marcado ao final do trecho: a fala como
modo de ação política no mundo não indígena é fundada na hierarquia do poder coercitivo. Dessa
forma, ela parece vir marcada de índices relacionados a esse poder: a agressividade, quando a hierarquia
ainda está em disputa; ou a fixidez e prevalência do cargo “superior”, que torna o diálogo desigual e
ao mesmo tempo permite acordos realizados por meio do papel assinado, que é a expressão formal da
autoridade do cargo.
No entanto, no contexto guarani, em que a coerção como modo político não adquire centralidade, a fala e a disputa se fundam em outros critérios. Em contraste, atitudes que visam coerção, posturas
demasiado exaltadas ou enunciações em tons agressivos são restringidas e vistas como um comportamento extremamente inadequado não apenas em contextos de reuniões, mas em qualquer conversa
entre parentes. A boa habilidade oratória é caracterizada, assim, como a construção de um corpo, o
corpo do ayvu, cuja coerência e concretude em sua composição será fundamental para produzir o encaminhamento ou ação desejada por meio da fala. Ouvir o outro, desarmar a agressividade, fazendo o
contrário dela e revelar ponto por ponto de sua inadequação e, logo, sua impotência como ação, compõem a estratégia de diplomacia descrita na fala dessa liderança.
Eis rapidamente um exemplo de uma fala diplomática durante uma discussão entre lideranças
guarani sobre melhorias nas escolas. Muitas das intervenções nesse debate versavam enfaticamente
sobre a importância dessa instituição e a necessidade de que todos os Guarani tivessem uma formação
à altura da dos jurua, para assim “serem alguém na vida”. Parecia haver um consenso em torno dessa
formulação. No entanto, uma liderança que, apesar de professora, tinha posicionamentos críticos em
relação à escola, buscou a seguinte estratégia em sua fala para se contrapor aos demais: “Se todos forem à escola pra serem ‘alguém na vida’, quer dizer, para deixarem de ser como nossos avós e sábios do
passado – como se eles fossem ‘nada na vida’ –, quem ficará na aldeia catando piolho?” ( Jera Guarani).
Assim, o tom jocoso da crítica em seu final, que visava diplomaticamente atenuar sua agressividade, não
deixou de revelar aos demais a necessidade de repensar a relação entre a escola e o nhandereko guarani,
de forma que a primeira não seja extremamente nociva ao último, comprometendo a própria reprodução de seu modo de ser.
Sigamos agora para analisar mais detidamente contrastes entre as lideranças guarani a partir
de um exercício de contraposição entre modelos analíticos de lideranças atuais, para assim tentarmos
vislumbrar quais suas lógicas e funções mais elementares e distintas relações entre fala e ação política.
Enfatizo que as descrições que farei a seguir, extraídas da justaposição de casos concretos, revelam não
mais que funções ideais, modelos que concentram atributos e comportamentos, possibilitando entrevermos alguns contrastes e relações de modo mais destacado. A confiança que os Guarani depositam
nesses modos de liderança também oscilará consideravelmente, assim como também as lideranças poderão, na prática, exercer esses papéis apenas momentaneamente e de forma conjugada, em uma variação de arranjos e disposições.
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LIDERANçAS, FALA E AçãO POLíTICA ENTRE OS GUARANI MByA
O infortúnio da liderança indígena
“Você diz que é liderança, mas nunca ouvi falar que você já foi pra Brasília!” Assim foi interpelado certa vez um já idoso xondaro que fazia parte do grupo de lideranças da aldeia Tenonde Porã.
Ser liderança, para muitos da aldeia, significa viajar para diversas reuniões sobre assuntos relativos a
demarcação de terra, escola, saúde, projetos etc., toda uma infinidade de consultas e tratativas para as
quais são requisitados representantes indígenas, as chamadas lideranças.
O mais emblemático dos destinos não é outro senão Brasília (DF), lugar das maiores autoridades
do mundo dos brancos e principal “campo de guerra” atualizado. Viajar, além de um imperativo cada
vez mais recorrente para os que são lideranças, é fonte de prestígio, como sugere a provocação da fala
citada. Contudo, é um processo custoso, que implica um sacrifício das lideranças em nome dos demais,
além de outros infortúnios, como veremos.
Nos anos 1980, um grupo de lideranças e caciques guarani do Sudeste, composto sobretudo de
xamãs, empreendeu um movimento de articulação que pressionou os órgãos oficiais a promover uma
leva de pequenas e urgentes demarcações de áreas ainda não reconhecidas. Naquele contexto, essas
lideranças começaram a fazer viagens a Brasília e outras incidências políticas em favor de suas reivindicações territoriais. Ainda hoje é comum ouvir nas aldeias guarani do Sudeste falas reconhecendo e
exaltando o esforço dos protagonistas daquele período, quando “nossos avós lutaram” (nhaneramoĩ
kuery ojoguero’a raka’e jurua kuery rovaire) para garantir um lugar para todos viverem.
Junto a esses chefes-xamã, estavam jovens guarani, que, além de acompanhá-los nas diversas viagens de articulação política, compunham uma geração que começava a frequentar escolas e se apropriar
de conhecimentos formais relacionados ao mundo dos jurua. Anos depois, esses jovens se tornaram caciques ou lideranças destacadas, identificando aquele período como não só crucial para o aprendizado,
mas também como a época em que começaram a se fazer conhecidos em diversas aldeias por meio das
viagens de articulação política, como revela este comentário de Timóteo Vera Popygua registrado por
Macedo (2009:59):
Eles criaram a Aguaí,9 que pegava aldeias do litoral sul, litoral norte e da capital, uma associação
deles em que somente os pajés participavam e os caciques, porque são todos velhos. E a luta da
Aguaí era pra demarcação de terra indígena. […] Não é que eles não tinham dificuldades, mas eles
são fortes, a parte espiritual, então eles conseguiram. E eu acompanhava, sempre ia na reunião,
depois de dois anos já conhecia todas as aldeias de São Paulo, porque eu participava com o José
Fernandes.
Essa nova geração de caciques e lideranças experimentou um novo contexto de relações políticas
com o mundo dos brancos. Após a Constituição Federal de 1988, consolidou-se uma nova estratégia
de garantia e acesso a seus territórios tradicionais, que passava por maior incidência política junto aos
órgãos oficiais para reivindicar seus direitos reconhecidos constitucionalmente, visibilidade crescente
9 Ação Guarani Indígena, associação de articulação política dos Guarani do estado de São Paulo. De certa forma, foi uma das experiências
de articulação interaldeias antecedentes à CGY.
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nos meios de comunicação e o desenvolvimento de projetos culturais/socioambientais como forma
de afirmação cultural e alternativa de renda. Tudo isso confluiu para que os encontros de articulação
entre aldeias, reuniões em sedes de órgãos governamentais e instituições da sociedade civil, assim como
diversas outras demandas, transformassem o movimento dessas lideranças em um trânsito constante
entre aldeias e cidades.
As lideranças viajantes começaram a ficar reconhecidas em diversas aldeias e ganhar notoriedade, sobretudo pela habilidade crescente na mediação com os jurua. Eventualmente, essas mediações
resultavam em aquisições e mudanças consideradas positivas por suas comunidades (relacionadas a escola, posto de saúde, projeto de casas de alvenaria, implementação de grupos técnicos de identificação
e demarcação, projetos de compensação socioambiental, etc.).
Não temos aqui o ser-para-a-morte, guerreiros indígenas que almejavam a glória e o prestígio
oriundos da guerra ao limite de desejarem a morte, que Pierre Clastres (2004 [1980]) reconheceu entre
os povos chaquenhos e cujo ímpeto existiu ao menos até o conflito armado entre Paraguai e Bolívia
– Guerra do Chaco (1932 -1935) –, que assolou a região do Chaco Boreal. Entretanto, as expedições
empreendidas pelas lideranças guarani atuais reproduzem, em alguma medida, as relações entre prestígio e infortúnio que os guerreiros do passado experimentavam de modo radical.
A intensa e crescente demanda por viagens de articulação política coloca um problema para essas
lideranças. Se parte de seu prestígio foi construído e está atrelado a essa dinâmica constante, os laços de
parentesco e reciprocidade, que são construídos no dia a dia da aldeia, ficam significativamente comprometidos. Problema semelhante é apontado por Gallois no caso do processo de representação nos
conselhos supralocais wajãpi, povo tupi do Amapá: “A política indigenista obriga às vezes a preparar
pessoas muito rapidamente e cria uma ruptura muito grande. Essas pessoas não conseguem mais escutar as vozes de suas bases nem conseguem voltar” (Gallois, 2001:113).
Não é raro encontrarmos casos de lideranças que possuem muito prestígio regionalmente ou
são até nacionalmente reconhecidas, mas não gozam da mesma situação em suas próprias aldeias.
Algumas, na ausência de laços locais ou mesmo diante de sua deterioração, passam a viver errantes, de aldeia em aldeia, por vezes estabelecendo novos casamentos, mas que tendem a ser efêmeros,
reiniciando o ciclo de errância.
Assim, uma contradição aparente se expressa aqui. Ao mesmo tempo que o coletivo da aldeia
admite a necessidade dessas posições mediadoras com o exterior, reconhecendo-as em um lugar de
prestígio, ele tende a sabotar o prestígio quando oriundo exclusivamente dessa posição. É comum em
reuniões de lideranças e representantes das aldeias que um deles faça uma fala sobre a dificuldade das
viagens e de como muitos parentes que ficam na aldeia não reconhecem esse sacrifício pelo coletivo,
reclamando da suposta vida de privilégios das lideranças que viajam.
Ou seja, a liderança que buscar extrair seu prestígio unicamente das viagens de articulação política produzirá uma cisão entre exterior e interior – seu prestígio estará sempre e apenas fora de casa
–, lançando-se em um ciclo de dependência com a dinâmica das viagens, que, para os Guarani Mbya,
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extremamente avessos à vida fora de uma aldeia,10 leva a uma difícil e infortunada situação. Nesse limiar
de vida em um exterior que nunca se concretiza totalmente, há uma maior vulnerabilidade a perigosas
relações de alteridade com sujeitos que coabitam a terra, e os modos do exagero se insinuam na tristeza,
no alcoolismo, na raiva e na vingança.11
A alternativa da liderança para não cair em tal ciclo, portanto, é não se apoiar unicamente em
relações exteriores a sua aldeia como fonte de prestígio para exercer seu papel. Da mesma maneira que
os xamãs, as lideranças atuais devem se equilibrar entre as potências oriundas do exterior (divindades,
espíritos-donos e jurua) e as dinâmicas da reciprocidade interna às aldeias, do constante processo de
fazer parentes, de produzir a consanguinidade a partir do “fundo virtual de afinidade” (Viveiros de
Castro, 2002) 12. Ainda que, entre os ameríndios, a exterioridade seja condição necessária para a atualização das relações internas – quer dizer, é por meio das relações com alteridades de fora do socius que as
subjetividades podem ser construídas –, o inverso também é verdadeiro, a pura e isolada exterioridade
leva ao infortúnio da morte13.
Não por acaso, são muitas as lideranças guarani que tentam dosar e evitar um número excessivo
de viagens, inventando as mais variadas desculpas para se furtar a alguns compromissos fora da aldeia.
Sabem que junto à fama e ao prestígio, hoje expressos até na difusão de fotografias selfies tiradas dentro
de aviões e ao lado de autoridades jurua, vêm ameaças tão sedutoras e perigosas como as que estão nas
matas, devido à presença de diversos sujeitos extra humanos que lá habitam e que podem provocar
transformações corporais14. Ficar famoso, soberbo (-jerovia), é se aproximar dos seres donos dos humores da raiva, do ciúme e da inveja, que podem dominar a pessoa e causar malefícios a todos que estão
próximos a ela.
Eis um tema-chave para seguirmos na discussão sobre os diferentes atributos das lideranças e
para o qual o infortúnio da liderança, em suas novas “expedições guerreiras”, aponta como problema:
a questão da reciprocidade. O termo guarani para esse conceito é o célebre mborayvu (ou mborayu).
Trata-se de uma palavra historicamente marcada pela tradução cristã do “amor ao próximo” e que fez
10 Outra situação que ilustra essa dificuldade é o baixíssimo número de Guarani Mbya que concluem cursos superiores em que tenham
que morar fora da aldeia. Muitos chegam a entrar nos cursos, mas tendem a abandoná-los, não só por empecilhos econômicos ou acadêmicos, mas principalmente em razão da impossibilidade de se viver muito tempo longe de aldeias e dos parentes. As alternativas,
nesse caso, têm sido programas de formação superior diferenciados que permitem, ao menos, uma dinâmica de alternância entre aldeia
e universidade.
11 Um exemplo extremo do “infortúnio da liderança indígena” é o caso do cacique kaiowa Ambrósio Vilhalva, de Mato Grosso do Sul,
assassinado em fins de 2013. Ele foi uma importante liderança na articulação da luta pela terra entre os Guarani e Kaiowa, prestigiado e
famoso por sua participação no filme Terra Vermelha (2008), e sua morte violenta, relacionada à vingança, aponta, ao menos em parte,
para a oposição entre prestígio externo e deterioração de relações internas. Tudo isso no contexto de cerco e violência brutal que atualmente assola os povos indígenas da região (Morais, 2017).
12 Nesse aspecto, as considerações sobre o parentesco na Amazônia cabem perfeitamente aos Guarani: “a afinidade como dado genérico,
fundo virtual contra o qual é preciso fazer aparecer uma figura particular de socialidade consanguínea. O parentesco é construído, sem
dúvida; ele não é dado. Pois o que é dado é a afinidade potencial” (Viveiros de Castro, 2002:423).
13 A questão da distância ideal, nem muito dentro, nem muito fora é um tema especialmente desenvolvido por Lévi-Strauss (2006
[1968]) nas Mitológicas. No contexto etnográfico guarani, foi trabalhado por diversos autores, entre eles, Pierri (2018) e Pereira (2019).
De minha parte, desenvolvi especialmente essa questão no âmbito dos movimentos guarani face à colonização em Keese dos Santos
(2021).
14 Tal processo de transformação é amplamente citado na bibliografia guarani. No contexto mbya é descrito pelo termo -jepota. Outro
termo também utilizado para se referir a esse processo é -jeko me’ẽ, que pode ser traduzido como “entregar a própria vida”. Para mais
considerações e narrativas a respeito do -jepota, ver Macedo (2011).
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Clastres (1990 [1974]:30), por exemplo, recusar essa mesma proposta contida em Cadogan, traduzindo o verso recolhido pelo etnólogo paraguaio mborayu rapytara oikuaa ojeupe para “ele sabe então por
si mesmo a fonte do que está destinado a reunir”. Mborayu, segundo essa tradução poética de Clastres,
é “o que reúne”, expressando a ideia antes de solidariedade que de amor.
Não obstante, a tradução de Cadogan fez escola e contribuiu, entre outras coisas, para obliterar diversos aspectos do xamanismo mbya, fazendo-o aparecer como “desjaguarificado” (Fausto,
2005).15 De minha parte, em relação ao mborayvu, ficarei mais próximo à sugestão de P. Clastres, na
vizinhança semântica de “solidariedade” e, principalmente, “generosidade”. Voltemos, então, à discussão sobre as lideranças.
Se no polo da liderança viajante o prestígio aponta para a soberba (jerovia) e está relacionado
com aspectos negativos para a socialidade, impactando na produção do parentesco e tornando seus
laços efêmeros ou deteriorados, o polo da liderança marcado por uma expansão do mborayvu produzirá o prestígio em relações mais imanentes ao convívio na tekoa. Contudo, essa expansão do mborayvu
aponta para um aspecto ambíguo em relação ao parentesco, que não deixa de gerar também um certo
infortúnio para a liderança.
Passemos agora para uma fala que irá problematizar as relações de prestígio, generosidade e ação
nas falas e atuações das lideranças guarani
Como já trabalho há bastante tempo como liderança, eu observo, fico analisando como cada um
sente essa função, de como pronunciam-se para os seus parentes.
Nesse sentido, sobre os líderes que vivem aqui, ou que vivem em outras aldeias, e em muitas aldeias,
às vezes eu penso: como que esse, ou aquele, ficou conhecido como liderança notável, como conseguiu, sem ter mérito de verdade, ser conhecido como tal? Eu tenho isso comigo [esse pensamento].
Para mim, a liderança que está mais à frente, ou mesmo uma que não esteja, é aquela que fica atenta, que pensa nas coisas, que sofre com as dores de outros, que não deixa as coisas paradas, e que
não atua por reconhecimento dos outros.
Conheço muitas lideranças. Na minha aldeia hoje tem bastante, e atualmente tem mulheres também, homens e jovens. Observo essas lideranças e alguns não são reconhecidos em outras aldeias,
não são citados. Porém, vejo que falam a verdade. É verdadeira a generosidade que eles mostram.
Algumas lideranças usam a palavra para dizer (e quantas vezes escutei falarem isso!): “Eu tenho
compaixão por todos, me preocupo com todos”. Muitos falamos assim, porém, nós que moramos
na aldeia, conhecemos o comportamento de todos, o que cada um já fez, o que já fizemos, o que
15 Diversos trabalhos recentes, como Heurich (2011), Pereira (2014) e sobretudo Pierri (2018), questionaram com afinco os argumentos de Fausto sobre essa suposta “desjaguarificação” dos Guarani atuais. A formulação de Fausto, de certa forma, ecoa a proposta de
Helène Clastres (1978) sobre as transformações históricas dos Guarani, que teriam passado da guerra e do canibalismo ao profetismo e,
posteriormente, do profetismo ao ascetismo. É importante lembrar que o foco excessivo no ascetismo como principal aspecto do xamanismo guarani atual teria produzido descrições limitadas, caracterizando-o apenas em seu âmbito restritivo (ver Pierri, 2018). Ademais,
o problema da proposta de Clastres é o caráter exclusivo que essas “etapas” sugerem, obliterando a presença de elementos dissonantes e
lhe dando um ar evolucionista.
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eu já fiz. E os Guarani ficam prestando atenção nisso também. Por exemplo, nos reunimos na opy,
e eu falo sobre generosidade, sobre a preocupação com os outros, sobre o bom comportamento.
Porém, ao sair da reunião, quando estou fora desse contexto, faço as coisas de qualquer jeito: de
repente sou brava, sou egoísta. Como hoje em dia quando os jurua (não indígenas) doam coisas
velhas, comida, cadeiras velhas, e daí, eu que falei que me preocupava com todos, posso ficar enlouquecida [por querer essas coisas apenas para mim].
Até mesmo com os parentes mais próximos a pessoa pode arrumar briga, ainda que seja por esse
motivo banal, pode até falar em tom mais alto, e tudo isso os Guarani vão analisando. E de repente,
a pessoa volta, e fala na reunião: “Eu tenho compaixão por todos, me preocupo com todos”, e todos já ficam olhando: “Como assim!? ‘Tenho compaixão’, fala isso, mas ainda ontem estava brava,
falando alto por conta de roupas velhas”.
Assim, as lideranças das aldeias atuam de modo diferente. Às vezes tem liderança que faz o uso da
palavra de forma vazia, fala de forma vazia.
Porque na nossa cultura, a fala tem muito peso, e nesse sentido, algumas lideranças detêm esse
saber, de como vão conduzir a palavra, como vão colocar-se a fim de convencer seus parentes,
mesmo não sendo líderes que seguem o caminho da generosidade. Dessa forma, às vezes, têm
lideranças que viajam entre as aldeias, falando de maneira bela, e quanto mais tiver a presença de
pessoas mais velhas [anciãos e xamãs], melhor será pra essa liderança alcançar esse convencimento.
Como são Guarani, como cresceram e tornaram-se adultos na aldeia, escutaram as falas dos mais
velhos e aprenderam a reproduzi-la. Assim, enganam aqueles que deixam-se ludibriar [por essas
falas]. Mas desse modo, lamentavelmente, não servem como lideranças. Porque essas lideranças
podem até falar para todos, porém, as pessoas sabem identificar em algumas oportunidades o que
realmente esses fazem como liderança. Pois são nos momentos em que a liderança falha em tomar
providências, que os que vivem na aldeia vão percebendo: “Nessa situação e não fala nada, nessa
situação e não veio, não fez nada, não nos ajudou, acho que só pensa em si mesmo, só fala dos
parentes mais próximos”.
Não trabalhamos só para os nossos parentes que gostam da gente, falo isso. Os nossos parentes que
vivem na aldeia, gostem da gente ou não, bravos ou não, se é para trabalharmos para todos eles,
temos que ter generosidade nos nossos corações. Dessa maneira, podemos ouvir o que eles têm a
dizer, e se fizerem alguma coisa errado, se não gostarmos, temos que mostrar porque é ruim, essa
é a nossa função.
E por fim, eu penso que as futuras lideranças, se não procurarem a generosidade, se não pedirem
para o seu Pai Verdadeiro a sabedoria da generosidade, se não se darem conta disso, até podem se
tornar conhecidos por todos, porém, para mim, não serão legítimos. ( Jera Guarani)
Essa fala foi proferida por uma importante liderança feminina da T.I. Tenondé Porã, cuja aldeia
principal, Tendonde Porã, talvez seja a mais populosa habitada pelos Guarani Mbya. Assim, o trabalho
das lideranças locais se torna complexo, pois elas devem mediar a relação entre as diversas parentelas
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que convivem e disputam espaço em uma aldeia cuja população cresceu muito em um contexto de
extrema restrição territorial e proximidade à maior mancha urbana do país. Nesse sentido, um dos aspectos que podemos ressaltar da fala é a distinção entre parentes, parentes próximos e as próprias lideranças, e a indicação de como isso coloca uma questão-chave sobre como o mborayvu, a generosidade,
opera nessa complexa dinâmica entre parentesco e política.
Vale notar também como características centrais em descrições clássicas das lideranças ameríndias aparecem nessa fala. A liderança é “aquela que fica atenta, que pensa nas coisas, que sofre com as
dores de outros, que não deixa as coisas paradas”. Ela deve ter também coragem para agir, para fazer valer a sua fala, e para isso é necessário verdadeiramente pôr em prática o mborayvu, conforme a tradução
sugerida pela própria autora da fala, em contraposição ao egoísmo (ndaxeporayvui, umas das formas
negativas, utilizando-se o radical de mborayvu). Assim, liderança é quem inicia algo, quem mantém o
movimento, quem exerce a generosidade. Entretanto, em contraposição ao prestígio oriundo de ficar
famoso, a boa liderança “não atua por reconhecimento dos outros”.
E não é apenas essa forma de prestígio relacionada à fama que é criticamente abordada na reflexão transcrita, mas também outra importante característica atribuída às lideranças indígenas: as habilidades oratórias. Embora o saber falar (ayvukuaa) seja descrito como algo central no modo de ser
dos Guarani, a fala tem que ter uma contrapartida em ações, caso contrário, pode posteriormente ser
considerada vazia e mero artifício.16 É, portanto, o respeito – e não a obediência – o que marca a relação
entre a liderança e os demais.
Essa relação fundamental para os Guarani entre palavra e ação, que a fala citada expressa de forma enfática, é notada de modo perspicaz por Bertoni, que a demonstra em um caso da obstinada recusa
dos Mbya à catequese. Segue um trecho que contém uma fala exemplar proferida por um Guarani na
virada do século XIX para o XX:
Os Avá-Mbihás se recusam ainda mais que outros Guarani a qualquer avanço na direção da catequese. Eis a razão: a sua religião é uma sanção prática da moralidade, eles não julgam qualquer outra religião que não da maneira de colocar em prática ideias morais. É inútil lhes passar doutrinas;
eles permanecem em silêncio, com um vago gesto de aprovação; mas eles observam atentamente
nossas ações. Se não são escrupulosamente cumpridas as doutrinas, toda a nossa eloquência está
perdida. E Deus sabe se as ações cristãs respondem aos seus mandamentos. Aí a objeção eterna
que se opõem a nós: “Vocês ensinam uma doutrina que é boa; diz que o seu Deus só ordena a boas
coisas; mas vemos que as ações dos cristãos distanciam-se muito frequentemente de sua doutrina;
isso prova que o seu Deus não é nosso, pois ele não sabe guiá-los”. Ou: “Vocês dizem que seu Deus
ordena amar a todos os homens; mas vocês mentem, vocês nos roubam, vocês ofendem nossas mulheres e nos matam por ninharia; seu Deus não é Deus dos índios, enquanto que o nosso, que é de
16 Testa enfatiza essa importância: “Seu falar (-ayvu) exprime também a capacidade de fazer, meio pelo qual o coletivo consegue colocar à prova a eficácia desse falar e dos saberes que ele enuncia. Nisso, uma liderança, seja cacique ou rezador, ocupa e mantém essa
posição à medida que suas palavras são capazes de se traduzirem em ações” (Testa, 2014:208). Também em Monteiro há uma citação
do cronista quinhentista Gabriel Soares de Sousa que expressa a importância do chefe que não apenas fala generosamente, mas cuja
ação correlata é exemplo iniciador de movimentos: “Ele [o chefe] não apenas trabalhava ao lado dos seus seguidores, como também
fornecia o exemplo: ‘quando faz [as roças] com a ajuda de seus parentes e chegados, ele lança primeiro mão do serviço que todos’”
(1971 apud Monteiro 1994:23).
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todos, nos diz para nunca fazer mal a vocês. O que prova que ele é superior ao de vocês”. Em 1887,
eu tinha conseguido convencer os notáveis Mbihás da parcialidade Pirapeíh a importância de se
unir e fundar uma redução na costa do Paraná, a ser organizada sobre sua base comunista. Para
completar a coisa, eu tive a ideia de oferecer-lhes a catequese. “Guarde isso para você” – exclamou
o meu melhor interlocutor indígena – “tudo estaria perdido para sempre!”. (Bertoni 1920:60)17
Voltando à fala transcrita da liderança, é explícito o contraste crítico entre as lideranças que,
embora amplamente reconhecidas, não efetivam na prática o mborayvu enunciado nas palavras, e as
lideranças que o fazem, demonstrando a eficácia de sua atuação e de seus saberes.18 O primeiro e criticado modelo de liderança na fala se aproxima de algo que poderíamos chamar de liderança viajante,
espécie de guerreiro atualizado que funda seu poder na exterioridade e é, em contrapartida, alvo da
desconfiança do grupo local.
Entretanto, esse segundo caso, que busca expandir a generosidade do mborayvu, tampouco está a
salvo do infortúnio. Se, por um lado, suas palavras e ações também logram construir prestígio e formar
grupos que os seguem, liderando suas próprias filas, por outro, o parentesco também parece cobrar
seu preço no processo de expansão da generosidade: “meus parentes já ficaram bravos comigo, quantas
vezes meus familiares não falaram coisas ruins para mim”. Em aldeias compostas de várias famílias extensas, expandir a generosidade para além da sua própria família, quer dizer, atuar contra o egoísmo e
o faccionalismo de sua parentela, resulta em retaliações vindas dela própria.
A título de comparação entre esses dois polos de liderança no âmbito das dinâmicas de parentesco, o que temos é que, se a liderança viajante privilegia sua relação com o exterior da aldeia e tende a
reduzir seus laços a seus parentes mais próximos ou até a si própria, entrando na dinâmica de errância
entre aldeias, a prática de estender o mborayvu (generosidade) para além de sua própria parentela rompe com o favorecimento do próprio grupo familiar, contrariando seu faccionalismo e buscando uma
unificação pacificadora – lembremos da tradução de P. Clastres de mborayu como “o que reúne” – em
uma aldeia densamente povoada por diversas famílias extensas.
Ou seja, um agride a produção do parentesco por meio de um movimento de redução e o outro,
ao contrário, agride a dinâmica do parentesco em um movimento em direção a sua expansão. Um se
endivida com as forças do exterior da tekoa (relações com o mundo dos brancos, prestígio interaldeias,
17 Creio que é importante situar melhor o leitor em relação a essa passagem e a esse autor. Moisés Bertoni (1857-1929) foi um pesquisador e escritor suíço de influências anarquistas radicado no Paraguai, às margens do Paraná e próximo à Tríplice Fronteira, na última década do século XIX. No pós-Guerra do Paraguai, ele foi beneficiado pelo contexto da privatização fundiária, obtendo uma propriedade, na
qual fundaria a colônia científica hoje conhecida como Puerto Bertoni. A área, que possuía 12,5 mil hectares, sobrepunha-se a territórios
habitados por grupos guarani, com quem Bertoni manteve grande proximidade. Apesar das limitações relacionadas a suas filiações teóricas no campo das ciências humanas, sua extensa obra, sobretudo a dedicada aos Guarani, possui importantes dados etnográficos do período e aponta, como revela o trecho citado, para a convivência do autor com os Guarani, questões que mereceriam ser melhor pesquisadas.
18 Tal perspectiva crítica se insere, como dito antes, nesse contexto de grande aldeia composta por vários grupos familiares, como é o caso
da Tenonde Porã, em que se exige que a liderança não limite sua generosidade apenas a uns poucos parentes mais próximos.
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etc.), enquanto o outro amplia o escopo dos que podem receber seus bens.19 Ambos, no entanto, estão
sujeitos ao infortúnio de retaliações, seja do grupo que compõe a tekoa, seja do interior da própria
família. De um jeito ou de outro, chegamos à máxima clastreana de que “o poder é contra o grupo” (e
vice-versa).20 Mas qual grupo? A família extensa? Toda a comunidade que compõe uma grande aldeia?
Agrupamentos supralocais? Definir o grupo, agir a partir dele e conduzi-lo é justamente o trabalho de
uma liderança ao se lançar em movimento. O movimento precede o grupo, é ele que o produz, mas
também que o desfaz, muitas vezes à despeito da liderança que o iniciou.
Cabe lembrar mais uma vez que as lideranças guarani atuais não encarnam de maneira pura
cada um desses polos (ou funções). Ao contrário, conjugam diferentes momentos e pesos desses movimentos, tendendo mais para um ou para outro, podendo até estabilizar consideravelmente processos e
posições: não é incomum encontrarmos casos de caciques que se estabilizam no cargo quando logram
monopolizar as cada vez mais necessárias relações com o mundo dos brancos por meio da apropriação
de saberes ligados à tecnocracia estatal, saberes que os demais de sua aldeia não possuem, aceitando,
assim, sua posição, ainda que muito os desagrade.
Para concluir, podemos dizer que a expansão do mborayvu para o exterior da parentela inaugura
um grupo maior, a despeito da insatisfação dela. Já a redução da generosidade por meio do monopólio
das relações com o exterior da aldeia distingue um dentro e um fora do grupo em que a liderança é
um famigerado mediador. Logo, a ação política das lideranças, em ambos os polos, está diretamente
vinculada aos grupos que são constituídos e dissolvidos a partir de seu movimento. E a fala é um modo
privilegiado por meio do qual esse movimento toma corpo.
Lucas Keese dos Santos é mestre em Ciências (Antropologia Social) pela Universidade de São Paulo (USP) e assessor da organização indígena Comitê Interaldeias.
19 Mais que simplesmente bens materiais, penso aqui de forma semelhante à observação de Pimentel em relação ao comentário de Lévi-Strauss a respeito do engenho ou engenhosidade: “Outra associação interessante que Lévi-Strauss realiza é entre a generosidade e o
xamanismo, a partir da percepção de que o chefe deve cultivar o dom do engenho (ingenuity), expressão intelectual da generosidade. Da
mesma forma que prepara curare para as flechas de todos, faz bolas de borracha para os jogos coletivos, ou canta e dança para animar o
grupo, o chefe também pode curar, como forma de prestar favores a seu povo. Isso, ainda que, segundo o autor, a vida mística fique em
segundo plano no cotidiano nambikwara e pareça mais comum que chefe e xamã sejam, normalmente, ali, figuras distintas” (Pimentel,
2012:22). Isso também ajuda a entender a importância para as lideranças guarani, mesmo não sendo xamãs, de articular saberes ligados
ao xamanismo. É muito comum encontrarmos essas disposições nas lideranças atuais, inclusive nas mais próximas ao mundo dos jurua.
20 “Tendo atingido um nível de generalidade profundo, no qual pôde descobrir a relação negativa entre o político e a troca, e concluir de
modo justo que o poder é contra o grupo, Clastres desvendava, sem se dar inteiramente conta, uma propriedade do político que é geral,
ou seja, independente de ser o seu regime de funcionamento selvagem ou estatal. Pretendeu, em seguida, singularizar a chefia indígena
por meio de uma exterioridade que é também um fenômeno geral – pois não sucederá o mesmo a um poder que é potente?” (Goldman
& Lima, 2001:297).
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Lideranças, fala e ação política entre os Guarani Mbya
Resumo: O presente artigo se constitui de fragmentos etnográficos e breves análises sobre modos de
relacionar fala, parentesco e alteridade no âmbito da ação política realizada por lideranças guarani.
Recolhidos entre os Guarani Mbya da região Sul e Sudeste do Brasil e com maior enfoque no estado
de São Paulo, em encontros realizados entre os anos de 2015 e 2020, tais fragmentos apontam para a
centralidade da fala e o uso diplomático que os Guarani Mbya dela fazem para agir entre os seus e entre
os outros, notadamente em suas relações com os não indígenas, chamados genericamente por eles de
jurua kuery.
Palavras-chave: Guarani Mbya; Antropologia política; Formas políticas ameríndias; Resistência indígena; Lideranças indígenas.
Leadership, speech and political action among the Guarani Mbya
Abstract: This article consists of ethnographic fragments and brief analysis relating speech, kinship
and alterity within the scope of political action carried out by guarani leaders. Collected among the
Guarani Mbya from the south and southeast of Brazil and with a focus on the state of São Paulo, in
meetings held between the years 2015 and 2020, such fragments point to the importance of speech
and the diplomatic use that the Guarani Mbya make of it to act among their own and among others,
notably in their relations with non-indigenous, generically called jurua kuery.
Keywords: Guarani Mbya; Political Anthropology; Amerindian political forms; Indigenous resistance; Indigenous leadership.
RECEBIDO: 01/10/2020
APROVADO: 11/04/2021
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TR ADUçãO
Vinciane Despret – vozes de outros
mundos
JULIANA FAUSTO
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ (UFPR), CURITIBA/PR, BRASIL
HTTPS://ORCID.ORG/0000-0002-3446-9486
MIGUEL CARID NAVEIRA
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ (UFPR), CURITIBA/PR, BRASIL
HTTPS://ORCID.ORG/0000-0002-7337-4746
Filósofa e psicóloga, Vinciane Despret desenvolve investigações multiespécies que demandam
uma articulação transdisciplinar capaz de, ao apresentar modos e mundos outros, abrir possibilidades
de aprendizagem e expansão imaginativa para o reduzido mundo humano. Esse ponto de chegada não
foi alcançado sem esforço. Depois da graduação em Filosofia, Despret estudou Psicologia de modo a
poder clinicar. Conforme conta, sua formação original não lhe garantia boas perspectivas de emprego,
uma vez que na Bélgica não havia a obrigatoriedade do ensino de Filosofia nas escolas. Foi no curso de
Psicologia que a autora descobriria sua paixão, que paradoxalmente não estava nas disciplinas, teorias
e autores que tratavam da clínica ou sequer da mente e do comportamento humanos neles mesmos,
mas naquelas que diziam respeito ao comportamento e à psicologia animais. A Etologia, para Despret,
significava a junção da descoberta de novos mundos, os dos animais extra-humanos, com a narração
desses mundos, as estórias e histórias que compunham as vidas dos animais que faziam esses mundos.
Um trabalho de campo, no qual passou meses em Israel “etnografando” etólogos que “etnografavam”
o zaragateiro-árabe (Argya squamiceps), resultou em seu primeiro livro Naissance d’une theorie éthologique: la danse du cratérope écaillé (1996). Durante a escrita do livro, conheceu o trabalho de Isabelle
Stengers, sob cuja orientação escreveria a tese Savoir des passions et passions des savoirs, em 1997.
Desde seu primeiro livro, Despret desenvolve sua prática filosófica como uma arte de tecer narrativas por meio de elos insuspeitos, colocando questões a resoluções tidas como naturalizadas. Detecta
sinais que passaram despercebidos, relê casos aparentemente fechados à luz de novas pistas, sugerindo
versões e narrativas outras, frequentemente mais instigantes que as originais. Como a própria autora
explica, ainda que tenha se formado em Filosofia, a sua chegada aos filósofos se deu por caminhos
tortuosos. A filosofia que percebia como mais tradicional a aborrecia pela insistência no conteúdo dos
problemas tratados pelos filósofos, em vez de seus conceitos ou gestos especulativos, e pelo método
crítico, que se afirmaria pela separação, denúncia e desejo de “abrir os olhos” dos outros. A aliança com
um certo grupo de autores, teorias e conceitos foi, portanto, fundamental para o desenvolvimento de
seu método: o conceito leibziano de compossibilidade lhe deu o que ela chama de “versão”, a possibilidade de que diversas narrativas coexistam simultaneamente, por oposição a “visão”, a subsunção de
quaisquer narrativas – ainda que compossíveis – a uma só. A teoria das emoções de William James e
o seu conceito de indeterminismo permitem que Despret coloque em questão as direções de causa e
consequência – o que/quem causa e o que/quem é causado –, além de fornecer a ela um mundo sempre
em processo de feitura, jamais pronto. Por sua vez, Alfred North Whitehead a previne de cair no erro
moderno de bifurcar a natureza, isto é, separar ontologicamente a matéria bruta e os pensamentos ou
sensações. Somam-se a essa constelação o filósofo francês Gilles Deleuze e colegas contemporâneos
com quem Despret trava constante diálogo, tais como a já citada Isabelle Stengers, mas também Bruno
Latour, Donna Haraway e outros.
Depois de seu estudo sobre emoções, a autora vem se dedicando a estudar animais e relações
humano-animais, tendo publicado uma série de livros a esse respeito, tais como Quand le loup habitera
avec l’agneau (2002), Hans, le cheval qui savait compter (2004a), Être bête (com Jocelyne Porcher, 2007),
Penser comme un rat (2009) e Que diraient les animaux si… on leur posait les bonnes questions? (2012).
Nesses livros, nunca se trata da Animalidade como questão filosófica, mas de animais reais, situados,
em conexão. Trata-se de devir-com, conceito cunhado por Despret e desenvolvido mais tarde por Haraway; não do devir deleuziano, mas de tornar-se-outro-com-outro, em presença de outro, geralmente
animal. Devir-com um animal, determinado animal, um animal que se conhece e com quem se estabelece alguma relação, muda quem o humano que entra naquela relação é e muda quem o animal é. Esse
processo, descrito em seu artigo “The body we care for: Figures of anthropo-zoo-genesis” (2004b), é
também aquele pelo qual os relata da relação tornam um ao outro capazes, autorizando-se mutuamente.
Para que o devir-com aconteça, contudo, é preciso que haja abertura, disponibilidade e interesse de ambas as partes. É nesse ponto que Despret, a filósofa da ciência, torna-se também uma investigadora de dispositivos experimentais. Segundo a autora, não há observação científica que não seja
mediada pelo dispositivo criado para realizá-la e que não construa um determinado tipo de relação
através dele, envolvendo os sujeitos nesse processo. Como adverte Despret “às vezes os resultados obtidos são antes de tudo e tão só devidos ao dispositivo” (2011a:70). Por isso, os procedimentos seguidos
nas experiências laboratoriais propõem ou inibem observações e entendimentos, algo que os etólogos
mais convencionais nem sempre levam em consideração: como entender a capacidade que se pensou
matemática do surpreendente cavalo Hans – nos ensina Despret – sem ter em vista o que se passava
entre ele, os companheiros humanos com quem se engajava em um jogo de perguntas e respostas e
sua experiência com os cientistas? (Despret, 2004a); o que pensar das conclusões a que chegaram os
etólogos que examinaram nos anos 1950 a ancoragem natural do “bom comportamento maternal”
quando contrastadas com novos dados sobre o comportamento dos macacos (mais exatamente das
macacas) bonnet e langures? (Despret, 2011a). Os dispositivos permitem obter resultados diferentes
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VINCIANE DESPRET – VOzES DE OUTROS MUNDOS
também dependendo da espécie submetida a ele: “Em outras palavras, o modelo só deve sua aparente
confiabilidade na forma como a pesquisa está construída: vocês podem demonstrar a naturalidade de
vários comportamentos, contanto que escolham a espécie correta” (2011a:70). Como a filósofa insiste,
trata-se de, interessadamente, fazer boas perguntas aos animais, perguntas que sejam interessantes a
eles, tornando-os por sua vez interessados.
O uso do termo “construída” não é casual. Afirmar que “a pesquisa está construída” não significa
que se admita extrair qualquer conclusão a depender do nível de interesse ou do método utilizado, mas
sim que cada pesquisa é feita de uma maneira concreta. Quer dizer também que os contextos práticos
das pesquisas fazem parte das respostas dos animais, promovendo ou inibindo alternativas e invenções
em aberto, uma oportunidade para que criem suas próprias percepções, suas próprias significações.
É de suma importância, como Despret deixa claro, que os sujeitos experimentados possam ser
recalcitrantes, que possam recusar, rearranjar ou propor novas questões em um experimento. E as maneiras utilizadas para que isso aconteça podem ser diversas: pobres ou proveitosas, limitantes ou multiplicadoras, reificadoras ou subjetivantes, por exemplo. O foco sugerido, portanto, não é o de uma correspondência com uma verdade que preexista aos procedimentos, mas as consequências e implicações
desses procedimentos. Por outras palavras, as respostas obtidas nas pesquisas dependem das perguntas
que somos capazes de elaborar, tanto quanto dos modos pensados e aplicados para obtê-las.
Despret toma partido. Trata-se afinal (ou para começar) de propor modos de relação que quebrem a subordinação, a objetivação rígida dos sujeitos, daqueles que, até em um contexto tão reificador
como o de laboratório, nunca deixaram de sê-lo: sujeitos dispostos, sujeitos em um dispositivo. Como
ela sugere, além de medir reações a estímulos, os dispositivos também criam subjetividades (2011b).
Como perguntar coisas que interessem? Como fazer os animais se engajarem na pesquisa a partir de
um agenciamento que seja motivador, não só para o pesquisador, mas também para o pesquisado?
Ovelhas ou babuínos – para citar dois exemplos amplamente usados pela autora – fazem mundo tanto
quanto cientistas, a partir de suas potencialidades e interesses. Mas trata-se, é claro, de potencialidades
e interesses diferentes e, portanto, de mundos diversos.
Se nessas obras de Despret vemos desabrochar o surgimento de novos mundos e composições
multiespécies, há também a Despret narradora de mundos desaparecidos. Interessada pelo problema
da extinção, ela escreveu alguns artigos importantes sobre essa catástrofe, como o posfácio de Extinction studies: Stories of time, death and generations (2017), editado por Deborah Bird Rose, Thom van
Dooren e Matthew Chrulew. Intitulado “It is an entire world that has disappeared”, o texto aborda a
questão a partir do que o mundo perde com cada extinção. Tanto o mundo criado e habitado por uma
espécie, quanto a percepção do mundo sobre si por meio da percepção daquela espécie sobre o mundo.
O que chamamos, assim, de mundo, resultado sempre provisório do arranjo de muitos mundos-pontos-de-vista que percebem e se percebem, teria também uma percepção de si através dessas percepções.
Uma extinção, dirá Despret, é a perda de um desses mundos, de uma dessas percepções e causa uma
rarefação de fato na concreção do mundo.
Não foi por acaso, como esse percurso mostra, que a filósofa chegou aos mortos, ainda que tenha
havido um evento disparador da escrita de Au bonheur des morts – Récits de ces qui restent (La Décou-
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verte, 2015), e dos artigos e conferências em torno a esse projeto, um evento pessoal doloroso: a morte
de sua irmã mais nova. Nesse livro, Despret aborda a questão da relação com os mortos de uma maneira
outra que aquela do trabalho de luto e do regime simbólico. A primeira, além de dizer respeito apenas
a quem vive, teria por finalidade o esquecimento do morto; ao final do “trabalho de luto”, o “Eu fica
novamente livre e desimpedido”, como sabemos desde Freud, pelo menos. Já a postulação do regime
simbólico, por sua vez, livraria o pesquisador de investigar os mortos, uma vez que sua atenção recairia
sobre o sentido “metafórico” dos discursos e práticas daqueles que mantêm relações com os falecidos
sem que a existência destes precise ser levada a sério. Interessada em como os mortos podem perseverar,
Despret recorre então ao conceito de “modos de existência” de Étienne Souriau (2021), e à obra, influenciada por esse filósofo, de Bruno Latour (2019), além do trabalho de Isabelle Stengers.
Nas páginas a seguir, versão expandida e traduzida da 2ª Conferência Lévi-Strauss, ministrada
pela autora na École de Hautes Études em Sciences Sociales em 2018, Despret parte de uma simples
frase de um interlocutor de pesquisa em direção a um certo mundo que a afirmação faz surgir: “os
mortos são gente como os outros”, comenta Philippe. Não se trata de descobrir se é ou não verdade que
algo continua após a morte, se os mortos são realmente como os outros, mas de compreender qual é o
modo dessas existências para, a partir daí, aprender quais os regimes de veridicção adequados a esses
seres. E não só isso, mas aprender também como os vivos são interpelados pelos mortos para que estes
possam seguir existindo e quais os cuidados envolvidos nessa combinação transexistencial. De certa
forma, são a vida e a morte que se transformam através dessas combinações. Afinal de contas, como a
própria filósofa se pergunta ao fim de seu livro, “o que podemos saber daquilo que nos mantém vivos?”
(2015: 212).
Juliana Fausto é Doutora em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica
do Rio de Janeiro (PUC-RJ) e Pós-doutoranda do Programa de Pós-graduação
em Filosofia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), com bolsa PNPD/
Capes.
Miguel Carid Naveira é Doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e Professor Associado da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
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Vinciane Despret – vozes de outros mundos
Resumo: Apresentação ao texto Pesquisar junto aos mortos, versão expandida e traduzida da 2ª Conferência Lévi-Strauss, ministrada por Vinciane Despret na École de Hautes Études em Sciences Sociales em 2018.
Palavras-Chave: Vinciane Despret; Filosofia da ciência; Etologia; Relações multiespécies.
Vinciane Despret – voices from other worlds
Abstract: Presentation of Enquêter avec les morts, an expanded and translated version of the 2nd Lévi-Strauss Conference, given by Vinciane Despret at the École de Hautes Études en Sciences Sociales
in 2018.
Keywords: Vinciane Despret; Philosophy of science; Ethology; Multispecies relations.
RECEBIDO: 05/04/2021
APROVADO: 23/04/2021
288
CAMPOS V.22 N.1 p. 283-28 8 j a n . j u n . 2 0 2 1
CAMPOS V.22 N.1 P. 289-307 JAN.JUN.2021
TR ADUçãO
Pesquisar junto aos mortos
VINCIANE DESPRET
UNIVERSITÉ DE LIÈGE, LIÈGE, BÉLGICA
tradução1 2
IGOR ROLEMBERG
ÉCOLE DES HAUTES ÉTUDES EN SCIENCES SOCIALES (EHESS), PARIS, FRANÇA E MUSEU NACIONAL, UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO (UFRJ), RIO DE JANEIRO/RJ, BRASIL
HTTP://ORCID.ORG/0000-0002-5171-1254
Revisão técnica
PAULO RENATO GUÉRIOS
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ (UFPR), CURITIBA/PR, BRASIL
HTTPS://ORCID.ORG/0000-0002-8395-6272
“Os mortos são gente como os outros”. Philippe, que, há alguns anos, é médium no círculo espírita da cidade onde moro, me brindou com essa proposição. Assisti a várias sessões desse grupo, em geral
conduzidas por sua mãe, Michèle Willemsem, que também é médium. Essa reflexão, “os mortos são
gente como os outros”, foi concedida alguns meses atrás, durante uma entrevista, para a qual convidei
os dois, em minha casa. No decorrer dessa longa conversa, pedi para eles me explicarem o modo como
1 [Nota do tradutor] Referência do artigo original: Despret, V. (2019). Enquêter auprès des morts. L’Homme, 230, 5-26. https://doi.
org/10.4000/lhomme.33844. Ele é a versão aumentada da 2ª Conferência Lévi-Strauss de 2018, ministrada pela autora na École des
Hautes Études en Sciences Sociales. Agradecemos a ela e ao comitê de redação da L’Homme, pelas autorizações gentilmente concedidas para a publicação desta tradução em português. Acrescentamos-lhe um resumo e mantivemos as palavras-chave da versão original.
“Inquiries raised by the dead” foi o título em inglês que o artigo recebeu na tradução de Catherine V. Howard, publicada em: Despret,
V. (2019). Inquiries raised bay the dead. Hau: Journal of Ethnographic Theory, 9(2), 236-248. http://dx.doi.org/10.1086/705734. Mantivemos este título nos metadados, porém elaboramos um outro abstract cujo conteúdo estivesse mais próximo ao do resumo em português, criado para a tradução publicada pela Campos: Revista de Antropologia.
2 [Nota do tradutor] O termo enquête, em francês, tanto nesse texto de Vinciane Despret, como em outros que trabalham a pragmática
da linguagem, sustenta uma ambiguidade intencional entre “pesquisa” e “investigação”, para simetrizar os diferentes modos de inquirição
em que se lançam os atores, estejam eles inseridos no mundo acadêmico, ou não. Ao trabalho de campo universitário, como o de Despret,
associamos geralmente o termo “pesquisa”, mas vale lembrar que a autora está particularmente interessada nos modos de inquirição ordinários, como os dos frequentadores de círculos espíritas, que, conforme sustenta, nada devem em termos de legitimidade epistemológica
aos de fatura universitária. Assim, traduzimos “enquêter” no título por “pesquisar”, mas em outros momentos optamos por “investigar”,
para ressaltar que essa ambigüidade está sempre presente, e desfazer dualismos. Portanto, quem pesquisa com os mortos? A filósofa, certamente, mas também as pessoas em contato com seus falecidos. As notas que se seguem, quando não precedidas por [Nota do tradutor],
são todas da autora.
entravam em comunicação com os defuntos: o que significa ouvir, cheirar, ou ver, nesse caso? Evocamos suas histórias, sobretudo a de Michèle, surpreendentemente comparável àquelas que os etnólogos
interessados em destinos fora do comum descreveram, com provações, exposições corporais perigosas,
brigas com a morte, sentimentos de presença e surpreendentes sonhos premonitórios. Venturas que
essas pessoas conseguiram socializar e souberam transformar em aventuras.
“Os mortos são gente como os outros”, me dizia Philippe. Ao reler essa frase, lembrei que já
havia encontrado formulações muito parecidas, ao longo de minhas pesquisas. Havia lido algo assim
no editorial do New York Times de 24 de abril de 2014, intitulado “Neanderthals are People, Too”.
Seu autor, o geneticista sueco Svante Pääbo, diretor do Departamento de Antropologia Evolucionária
do Instituto Max Planck em Leipzig, e responsável pelo projeto internacional de sequenciamento do
genoma de Neandertal, opôs-se firmemente ao projeto de seu colega, George Church, de clonar um
neandertalense. O que é mais impressionante é que o artigo começa evocando o avô do autor, morto de
gripe espanhola, em 1919, com 30 anos de idade. Seus filhos e netos não puderam conhecê-lo, prossegue Pääbo. “Ele era um matemático brilhante”, explica, e “como cientista, eu teria curiosidade em saber
como ele era”. “Mas”, ele acrescenta ainda, “me consolo ao pensar que ele continua a viver em mim”3.
Vocês poderão notar que, quando tento me distanciar do tema, ele me toma novamente, de
imediato. É o que acontece frequentemente com os mortos. Apontemos ainda – e isso não nos afastará
muito do assunto – que a invocação do avô no argumento não é gratuita: “Desejaria”, escreve Pääbo em
conclusão de seu artigo, “exumar os ossos de meu avô para recriar, a partir deles, um gêmeo monozigótico que viveria, assim, 95 anos após a morte de seu antecessor? A resposta é claramente não. E como
minha resposta é não, por que seria diferente para o Neandertal?”. Os mortos são gente também – em
todo caso, se estamos tratando de mortos humanos.
Mas os não-humanos também podem ser objeto de requalificação e tornar-se gente. E foi novamente no New York Times que encontrei, ao acaso de minhas pesquisas sobre os animais, uma ilustração, mais precisamente no artigo de 5 de outubro de 2013, intitulado “Dogs are People, Too”. Dessa
vez era assinado por um especialista em neurologia, Gregory Berns. Berns descreve o trabalho de sua
equipe com cachorros. Eles buscam saber o que os cachorros pensam, e talvez mesmo, destaca ele, o
que eles pensam de nós, humanos. Como os cães não falam, os cientistas decidiram explorar o modo
como seus cérebros funcionam através de uma técnica de imagem cerebral, a fim de estabelecer possíveis semelhanças. E eles descobriram que o funcionamento era muito similar ao dos humanos. Será
isso que fará os cachorros serem gente como a gente? Na verdade, não creio que sejam as semelhanças cerebrais que determinem a possibilidade dessa aproximação, mas, antes de tudo, a maneira pela
qual elas foram construídas. Quando similitudes são construídas em laboratório, aprendi que é preciso
interessar-se pelo dispositivo que permitiu sua emergência. E, de fato, o dispositivo é muito impressionante: Gregory Berns e sua equipe organizaram formas de estágio para cães voluntários, ao longo
das quais esses cachorros aprenderam a permanecer dentro do PET scan (supondo que o aparelho foi
criado para eles). Quando digo “cães voluntários”, refiro-me a diversas características do procedimento
experimental: os cientistas criaram um formulário de consentimento esclarecido, parecido com aquele
3 Todos os trechos de artigos de jornal ou de livros em inglês foram traduzidos por mim mesma.
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que os pais devem assinar no momento em que seus filhos participam de pesquisas. Nesse formulário,
está indicado o fato de que a participação deve ser voluntária, e que o cão tem o direito de abandonar
a experiência se o dono julgar que assim ele o deseja. E se o cão expressa, ele próprio, essa vontade, se
ele não quiser entrar no aparelho, ou se ele manifestar vontade de sair, será dispensado da experiência.
Os etnólogos Aude Michelet e Charles Stépanoff, num belo artigo, defenderam o argumento de que
o antropomorfismo nos tornou humanos e que nossa capacidade de imputar motivações, perspectivas
e emoções a outras espécies teria, sem dúvida, influenciado o que chamamos de “sucesso evolutivo” de
nossa espécie. Mas, observam, o antropomorfismo tem igualmente efeitos sobre o antropomorfizado:
ao serem tratados pelos humanos como alter ego, “os cães acabaram por lhes serem parecidos” (Michelet & Stépanoff, 2016:45). Note-se também que o antropomorfismo participa plenamente ainda
do devir “pessoa” dentro da nossa espécie, pois é por tratarmos bebês e crianças como humanos entre
humanos que esses últimos tornam-se pessoas como os outros, ou seja, diferentes como os outros. São
práticas de engendramento, segundo Luc Boltanski, ou de instauração, se me refiro a Étienne Souriau.
Observo de passagem que esses três casos, o dos mortos familiarizados, o dos cães antropomorfizados e o do Neandertal re-humanizado, têm, como característica comum, mas também como diferença, o uso de tecnologias específicas. Acabo de descrevê-las para os cães, mostrando os efeitos do próprio
dispositivo na construção da semelhança. Essa utilização tecnológica é clara hoje para o Neandertal,
sobretudo a partir dos mais recentes trabalhos de arqueólogos e paleontólogos que, graças às técnicas
de escavação e decifração, mas também graças às técnicas de sequenciamento do genoma aplicadas pela
equipe de Pääbo, puderam recolocar em questão a imagem opaca, de bruto, que o Neandertal tinha, a
qual – suspeito, junto com outros colegas – permitia ao excepcionalismo humano assegurar sua inquestionabilidade. As técnicas dos médiuns, por sua vez, são também tecnologias de redução da distância,
já que elas, concretamente, ambicionam tornar [o morto] presente. São dispositivos de convocação.
Mas isso não é tudo. E é sob o signo deste “isso não é tudo”, que pontuava maravilhosamente os trabalhos de Lévi-Strauss, que gostaria de inscrever o que vem pela frente.
Mas isso não é tudo. Pois se trata de pôr em ata – ou em ato – que os mortos são gente como
os outros, de reduzir a distância e construir formas de proximidade. E no entanto a proposição de
Philippe sinaliza outra coisa. Se com esse “como os outros” ela insiste sobre a familiaridade das relações
com os mortos, ou seja, sobre o fato de que possamos ter relações com os mortos que apresentam o
mesmo caráter de familiaridade daquelas que podemos ter com os vivos, ela indica, ao mesmo tempo,
que os mortos são, assim como os vivos, diferentes uns dos outros. Prova disso é, por exemplo, o fato
de Michèle relembrar, nas sessões em que as pessoas vêm para pedir para serem colocadas em contato
com um falecido, “que nunca se sabe com quem podemos cruzar”, retomando as mesmas palavras que
o etnólogo Christophe Pons (2002) ouviu durante sua pesquisa na Islândia. Essa diferenciação se mostra, aliás, recíproca: somos pessoas também para os mortos, não apenas porque aqueles cuja presença é
assegurada pelos médiuns se dirigem a pessoas específicas e bem identificadas (filho, filha, neto, neta,
sobrinho, sobrinha, ou amigos), mas também porque, de forma notável, os mortos estão atentos à
própria personalidade do médium. Assim, quando evocávamos os registros sensoriais pelos quais os
médiuns recebem as mensagens, Philippe me confidenciou, com um certo humor:
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Pude constatar que os espíritos fizeram estudos de pedagogia. Sabemos que para dar uma aula,
é preciso mobilizar todos os registros sensoriais que estão distribuídos entre os alunos (registros
visuais, auditivos, sinestésicos…) e, assim, o professor tem de se movimentar, falar, escrever… No
meu caso, eu tenho uma tendência auditiva, e é dessa forma que as mensagens me chegam em geral, enquanto as mensagens visuais são pobres para mim. Os espíritos se esforçam para fornecer a
mensagem no registro sensitivo do médium para o qual se dirigem.
Observamos que o modo como Philippe formulou sua constatação apresenta uma característica
familiar a todos aqueles que trabalharam com médiuns. Com efeito, há uma redistribuição da potência
de agir, tendo, como corolário, um apagamento deliberado da pessoa do médium, seu retraimento:
ele deve se deixar ser habitado por um outro ser e deve, para tanto, deixar que a vontade desse último substitua a sua. Esse apagamento é condição para o sucesso do dispositivo. Ele pode tomar diversas formas, identificadas tanto por Maurice Bloch (1993), quanto por Giordana Charuty (2002) ou
Christine Bergé (1990). Mas todas essas formas manifestam que o médium é alheio a suas produções,
é apenas um canal, o que ratifica a presença de um terceiro ali. Prova disso é, por exemplo, o fato de que
às vezes o médium não compreende a mensagem que está transmitindo. Acrescento, de passagem, que
esse modo de operar sempre coloca aquele que faz uma consulta numa posição de trabalho interpretativo, de pensamento, o que, a meu ver, vincula, então, esse dispositivo aos procedimentos terapêuticos.
Voltarei a isso mais à frente.
Ainda assim, a não-compreensão da mensagem por quem a transmite atesta um estar-em-relação
particularmente bem sucedido com o falecido. E ele será ainda mais bem sucedido, dizem os médiuns
claramente, se a mensagem encontrar uma ancoragem no real. Pois é isso o que fará a mensagem: procurar uma ancoragem. E pôr aquele a quem ela se destina na busca dessa possível ancoragem, ou seja,
em um trabalho de investigação: o que ela quer me dizer? o que ela quer de mim? Uma investigação
com o morto. Em outros termos: a mensagem, à espera de significação, em busca de uma ancoragem, a
mensagem como enigma, põe seu destinatário em movimento, coloca-o para pensar. Ela irá produzir
um certo tipo de atenção e um outro regime de afeto – sobretudo se a mensagem não adquirir significado imediatamente. Em breve volto a isso. Parece-me que aí está uma dimensão terapêutica, essencial
do dispositivo: não sua possível condição de sucesso, mas o possível sucesso em seus efeitos. Porém essa
versão da história é a minha; para o médium, a questão do sucesso reside, antes, em sua possibilidade
de ter constituído uma retransmissão confiável. “A mensagem”, me diz Philippe, “nunca é tão convincente quanto nos momentos em que estamos tão surpresos quanto os outros: a mensagem toma, em
certas ocasiões, caminhos tão tortuosos, que só receberá seu significado quando se realizar no real; é o
real que lhe dá sentido, retroativamente”. Philippe relata que ele estava transmitindo uma mensagem
– prossegue ele, dizendo que é o mais frequente – cheia de banalidades: “Descanse”, “Cuide-se”. No
entanto, ao final da mensagem, ele pergunta a um casal se há um problema com o carro. Diante da
resposta negativa, ele lhes diz: “Tenho que transmitir. Não quero lhes preocupar, mas se houver algum
problema, pensem nisso antes de dar partida”. Uma ou duas semanas mais tarde, o casal retorna para
lhe agradecer: ele salvou a vida da esposa. Após a mensagem, fizeram uma revisão no carro e a esposa
pegou a caminhonete para seus deslocamentos. Ora, seu veículo sofreu uma colisão violenta, sem con-
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sequências, dada a altura do assento do motorista. Num carro comum, em contrapartida, esse acidente
teria conseqüências muito mais graves, e ela teria ficado no mínimo seriamente ferida. “Essa mensagem
permitiu”, diz Philippe, “por uma série de coincidências, se pensarmos que são coincidências, e a partir
de uma mensagem banal, que as coisas tenham mudado”.
Ao deixar em aberto a questão das coincidências, e decompondo um encadeamento, que, no
final das contas, é bastante aleatório e suscetível de muitas outras reconstruções, Philippe traduz, na
realidade, uma dimensão dessas situações sobre a qual, creio, não insistimos suficientemente: o fato
de que elas não apenas são sempre marcadas por uma forte indeterminação, mas sobretudo uma indeterminação da qual o medium tem bastante consciência. E, ao reler as notas, me dou conta de que o
dispositivo mediúnico estabelece uma ontologia, e uma epistemologia da relação entre verdade e real,
de notável sofisticação: é o real que confere o sentido, ou seja, é o real que confere verdade ao anúncio.
Em outros termos, é no real que o anúncio busca, e às vezes encontra, as condições de sua realização.
Segundo William James, a verdade é aquilo que acontece com um enunciado; um enunciado em busca
de verdade participa de uma realidade em processo de construção. E, nesse processo de se fazer a realidade, o portador do enunciado em busca da verdade tem contribuição ativa (1913 [1909]:69; 1948
[1911]:263). Não nos encontramos no regime da prova, longe disso, mas no da provação. Pois se trata
mesmo de uma provação: um anúncio lança seu destinatário na busca de sua realização. Isso é próprio
dos enigmas. Diante de um enigma, apenas uma resposta é possível para aqueles que sabem acolhê-lo:
o que fazemos com isso? É a questão que eu mais ouvi nas histórias que me contaram as pessoas confrontadas com uma questão do defunto. E isso me parece indicar que elas haviam compreendido que o
que tinham diante de si era da ordem do enigma.
O enigma do anúncio, tal como o concebe Philippe, preenche, assim, de forma admirável, as
condições de felicidade que William James atribuía à verdade: na busca de se tornar verdadeiro, de se
realizar, um enunciado faz sua contribuição para o real, sob o modo de uma ampliação. E, mais notável
ainda, essa realização não equivale a uma resolução, pois a indeterminação que ele traz encontra-se,
apesar de transformada, no desfecho de sua realização. Prova disso é a perplexidade que a acompanha:
devemos chamar isso uma série de coincidências? O acidente teria acontecido se tivéssemos guardado
o carro? A realidade empresta ao enunciado sua significação, e eu digo mesmo “empresta”, porque essa
última pode ser sempre submetida ao trabalho do pensamento, sem esgotar os múltiplos sentidos desse
enunciado, nem o sentido de suas relações. “O próprio de uma indeterminação ativamente cultivada”,
escreve Isabelle Stengers, “é de suscitar que outras indeterminações entrem em ressonância com outros
modos de cultivo” (2007:44). Essa é a marca de todas a histórias que me foram contadas durante o
tempo em que desenvolvia minha pesquisa, e daquelas que me chegaram depois do seu término, em
resposta a ela.
O jovem etnológo Paul Sorrentino pesquisou, ao longo dos últimos anos, a invenção de um novo
ritual de possessão no Vietnã. Pessoas aprendem, no quadro de um ritual, o àp vong, a acolher e deixar-se
possuir pelo espírito de um de seus desaparecidos, permitindo a esse último expressar desejos que não
foram realizados, de cuidar da família, de dar notícias, ou até – o que tem muito valor num país que
esteve durante muito tempo em guerra, no qual uma grande quantidade de mortos não puderam ser
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encontrados – de os guiar na busca de seus corpos. Nas últimas linhas de agradecimento que abrem seu
livro, Sorrentino afirma que certas passagens foram redigidas no quarto do hospital onde, cito, “[seu]
pai se preparava a um combate que no fim das contas não teve tempo de levar adiante” (2018:11).
Durante nossa última conversa, eu lhe falei do depósito de meu manuscrito e do início do trabalho
editorial, do qual esse livro é o resultado. Enquanto eu o escrevia, aprendi que podíamos tornar
um morto presente ao simplesmente nos dirigirmos a ele. Então é isso: acabou. (ibid).
“Então é isso: acabou”. Essas palavras, para além do fato de terem me emocionado muito mais
do que poderei dizer neste momento, me redirecionaram às últimas linhas do epílogo do mesmo livro,
quando, diante da multiplicidade de versões possíveis e contraditórias de uma mesma história, a da
possessão de Kien pelo avô da esposa, Sorrentino conclui: “As pesquisas etnográficas, assim como as
experiências de possessão, nunca se concluem realmente”. (Ibid:320).
Não acabou, porque jamais termina. Pois essa é mesmo a posição que Paul Sorrentino toma,
quando confrontado à questão da verdade da possessão por um defunto – está-se realmente possuído? é
realmente o morto? – a posição de aprender com aqueles que experenciam isso, a não encerrar a questão
com uma resposta unívoca, mas, antes, a buscar uma ancoragem que corresponda melhor às experiências que deixam perplexos aqueles que se engajam nelas, uma ancoragem à altura de uma experiência
que se encaixa ainda menos em categorias estreitas e binárias da crença, na medida em que transborda
as da crítica, o tempo todo. Essa ancoragem, Sorrentino, com sabedoria, optará por exercê-la a partir
das condições ecológicas que tornam essas experiências possíveis, a partir dos meios onde se alimentam para poder existir. Pois a questão da verdade pode constituir um verdadeiro veneno para essas
situações, sobretudo quando – Isabelle Stengers nos ensinou – ela se põe nesses termos: “É realmente
isso?” (2014:154). E, no entanto, ela não cessa de se colocar, frequentemente sob o modo – o que é uma
bobagem nossa – do “ou…ou”: ou você diz “realmente possuído”, ou tudo isso é apenas um produto da
sua subjetividade. O que é preciso aprender, e aí está a bela lição da ecologia das práticas que ela nos
ensinou, é a procurar o regime pertinente no qual um enunciado, um ato, ou uma experiência, encontra
o real, e torna-se verdadeiro. Conservar ainda mais inestimavelmente a questão da verdade, e cito novamente Paul Sorrentino, porque aqueles que se engajam nessa experiência da possessão “abordam-na
tanto com discernimento e senso crítico quanto com emoções e expectativas construídas anteriormente a seus engajamentos no ritual de àp vong” (2018:33).
E é ao cultivo da hesitação e indeterminação, tão notáveis nessas situações, que o etnólogo é convidado. E, de fato, Sorrentino, ao longo da pesquisa, vai aprender a transformar a impossibilidade de
saber “a palavra final da história” 4(Ibid:145) no que eu chamaria de uma “ética dos relatos”. Amor fati.
Não buscar a palavra final da história. Acabo de mencionar, com relação a essa pesquisa no Vietnã,
uma possível “ética dos relatos”. Esse termo que seu trabalho me inspira, aplicarei hoje a esta interessante
história que, ao que me parece, orienta a leitura do antropólogo Heonik Kwon acerca dos fantasmas no
4 [Nota do tradutor] Optamos pela tradução literal de “connaître le fin mot de l’histoire”, porque a autora, em diversas passagens, destaca
o inacabado, a impossibilidade da finititude e do conhecimento completo dos fenômenos experimentados. Mas em francês a expressão
guarda também o sentido de “desvelar o segredo” – no caso em tela, a impossibilidade disso – e se adequa também ao que ela quer expressar. Agradeço ao revisor pela observação.
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Vietnã contemporâneo. Na região de Da Nang, narra ele, o hóspede de passagem recebe geralmente, ao
fim da conversação, um copo d’água vindo do poço, que, segundo se diz, foi oferecido por um espírito.
Esse primeiro copo d’água é ligeiramente salgado. Os seguintes, vindos do mesmo reservatório, não o
serão. Nem todo mundo pode sentir o sal dessa água. Ora, Kwon fica intrigado: confessa ter conhecido a experiência do sal raras vezes (2008: 104). Como uma água de poço pode ter o sabor de água do
mar? Por que para alguns e não para outros? É minha alma ou meu corpo, interroga-se Kwon, que reconhece o sal? E se alguém o reconhece e outros não, quem é que tem um problema? Ele ou os outros?
Essas questões não pedem uma solução, mesmo que sempre possamos respondê-las. Aí está sua força
performativa. Kwon leva isso em consideração, ao confessar que, para a questão de saber se o sal está na
água ou na boca (para não dizer na cabeça), se é normal ou não prová-lo, anormal ou não fazê-lo – para
a questão de como compreender esse fenômeno estranho – ele não tem nenhuma resposta razoável.
“Mas”, continua, “no lugar de respostas, a experiência do sal espiritual me conduziu a outros eventos e
outras histórias, e minha sede de tornar-me capaz de sentir como os outros, abriu novos acessos para
compreender esses eventos e essas histórias […]. Um provérbio frequentemente evocado no Vietnã é:
‘Os ancestrais comeram muito sal, os descendentes desejam água’ ” (Ibid:105).
Esse provérbio, que pode ser utilizado em contextos muito diferentes, pode ter vários significados. Um deles se liga a esta história:
Os verdadeiros desejos humanos, diz esse provérbio, não são aqueles de um indivíduo isolado.
A origem do desejo encontra-se, como o sal da água ofertada pelo espírito, em outro alguém, e é
somente na presença desse outro que a água se torna salgada. O desejo de se lembrar e comemorar
pode, da mesma forma, ser um desejo que emerge entre um passado e um presente, e que é compartilhado entre aquele que lembra e aquele que é lembrado (Ibid:105-106).
São os mortos que reclamam a necessidade de serem lembrados? Somos nós que lhes imputamos
esse desejo? Não dar a última palavra é respeitar o que Gilles Deleuze denominava um “agenciamento”.
É a relação de forças que sustenta um acontecimento; o desejo de ser lembrado e o desejo de lembrar
“estão acoplados”, juntos. Não há precedência. Desmembrar esse agenciamento, atribuir uma prioridade ontológica ao imaginário dos vivos – “ele seria a causa real desse desejo” –, ou à vontade dos mortos,
retiraria todo seu significado, destruiria o que Étienne Souriau designou como seu “fulgor de realidade”, sua força ontológica própria, sua “maneira de ser” enquanto agenciamento (1939:10).
Se revisito hoje essa história que atesta uma ética dos relatos, é porque ela me parece traduzir não
apenas um consentimento de não impor a palavra final da história, mas porque ela atesta também a
vontade de transformar ativamente esse consentimento em uma obrigação: a de dar continuação. Uma
obrigação de imaginar, de pensar, de honrar a recusa de a história se encerrar.
“Isso não é tudo”. Ou, se tomo emprestado a Eduardo Viveiros de Castro a bela fórmula que
ele oferece em retorno a Claude Lévi-Strauss: “Isso não é tudo, pois nada jamais é tudo” (2008:130).
Isso não é tudo, porque Heonik Kwon aceita a provação do enigma, que não espera uma resolução,
mas, ao contrário, uma continuação. Trata-se de reformular a questão para esta: o que faço com isso?
Compreender não deveria querer dizer outra coisa, a não ser isto: “apre(e)nder com”. Dar continuação
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é isso, e retomo agora o que Mathieu Porte-Bonneville, inspirado em Wittgenstein, atribuiu ao termo
“compreender”5: se eu pergunto a você sobre a relação entre dois, quatro, oito, dezesseis, você diz que
compreendeu e propõe trinta e dois. Você dá continuação. Pois o que caracteriza os relatos que os mortos nos fazem criar é que, justamente, eles nunca terminam. Ao contrário, esses relatos são um protesto
contra o que se dá por acabado. Ao que me parece, é o que se tira de todas as histórias que pude recolher,
seja em sua forma, seja na continuação que elas suscitam. Há uma redistribuição constante de perspectivas e de potências de agir. São tecnologias de re-convocação. Os relatos, em outros termos, re-suscitam.
Com base nessa hipótese, me dei conta de que os relatos que havia transmitido, seja em publicações, ou em conferências que pude dar durante minha pesquisa, tinham o mesmo efeito. No início
de 2015, minha pesquisa estava a princípio terminada, ou ao menos era esse o meu desejo; ia me voltar
para outros viventes acompanhados de outros seres… por que não os pássaros? Os pássaros são muito
interessantes também, e constituem outros modos bem promissores de comunicar a terra com os céus.
Mas os mortos não entendem da mesma forma. Não apenas os mortos faziam com que os vivos fizessem coisas, e essa era o motivo de minha pesquisa, mas agora os mortos de uns faziam com que os vivos
de outros fizessem coisas. Assim, bem na segunda semana de setembro, enquanto preparava esta conferência e retomava novas leituras descobertas posteriormente, recebi dois e-mails. Um de Bernard Féru
que me dizia que, ao ler histórias que compartilhávamos, foi se dando conta de que o romance que havia escrito, La veuve du procureur (2018), seguia a intuição de várias pessoas, que se sentem compelidas
a cumprir o que o morto não pode mais fazer. Um outro, de Christophe Laurens, me anunciava que ele
havia perdido o pai no último verão. Continuava: “e pensei em você, quando fiquei escolhendo bons
sapatos para ele passear no além”. Christophe me perguntava também se eu havia visto o documentário
Carré 356, relembrando-me que, num dado momento, vê-se um epitáfio que confia aos pássaros o cuidado de transmitir a uma menininha morta muito cedo os pensamentos dos vivos. Não me recordava
dessa inscrição fúnebre, mas ela me fez lembrar um e-mail de Jean-Christophe Janin recebido no final
de 2015, me contando que o casal com quem ele mantinha uma correspondência havia colocado, sobre
o túmulo de sua jovem filha falecida, uma caixa de correios. Desde então recebem regularmente mensagens de pessoas que gostavam/gostam de Juliette e até mesmo de desconhecidos. Ele concluía dizendo
que “ela ainda vive!”. Acrescentou que sua mãe tinha afirmado: “É difícil criar uma criança morta”, e
comentou: “para tornar essa ação mais leve e positiva, seria melhor pensar em ‘criar’ como ‘instaurar’ e
não como ‘educar’ ”.
As palavras de Jean-Christophe são justas, “justas” no sentido de que tocam, com muito tato, a
inteligência da experiência que ele transmite. Pois é exatamente como leitora de Souriau que também
compreendia que o que fazem esses pais é “criar” uma criança, instaurar sua existência, promovê-la, e
continuar a fazê-la crescer. Eles a preservam no seu ser. Essa nova existência, que prolonga aquela que
Juliette havia começado, é exigente, demanda cuidados, inventividade e atenção, graças aos quais ela
5 Cf. o programa radiofônico “La grande table” sobre o tema “Precisamos elaborar nosso luto?”, difundido na rádio France Culture, em
02 de dezembro de 2015.
6 Documentário autobiográfico de Éric Caravaca, realizado em 2017. Entre a França e o Marrocos, o ator-cineasta busca encontrar vestígios de sua irmã mais velha, Christina, morta aos três anos, de quem não resta mais quase nada, a não ser o “túmulo 35” do cemitério
de Casablaca onde repousa.
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pode prosperar. Pois com essa caixa de correios, Juliette continua a viver para os outros, e, até mesmo,
existir para outros que ela não conheceu em sua primeira vida, e que participam ativamente em sustentar a existência da qual ela se beneficia nesse momento. Ela recebe esse complemento de biografia que
lhe permite estabelecer novas relações ou prolongar antigas, que lhe dá a possibilidade, em resumo, de
estar presente (no sentido também de ser conjugada no presente) e de continuar a agir em outras vidas.
Mas o que esses gestos, e os relatos que os prolongam, fazem especificamente sentir, é a necessidade de manter viva e ativa a indeterminação. Eles encetam, para isso, todo um arsenal tecnológico a
fim de preservá-la. Fazem, em outros termos, o que a psicóloga clínica Magali Molinié, inspirada por
Deleuze, nomeia, para qualificar seu próprio procedimento junto aos enlutados, “acompanhar através
do meio” (2006:137). Acompanhar através do meio, especifica ela, é abordar a questão de modo a não
perder de vista nem os vivos nem os mortos; é aprender a acompanhá-los ou a encontrá-los por meio
daquilo que os liga, que “os mantém juntos”. É o que fazem os relatos: proteger a polifonia das versões.
Pensar através do meio, o que fazem as pessoas que fabricam esses relatos, é também não separar aquilo
que interrogamos – uma experiência, um ser, uma presença — do meio que ele/ela requer para existir.
Esse tipo de relato constitui, nesse sentido, para nós, um dos nichos ecológicos privilegiados, não o
único, mas um dos nichos possíveis. O arsenal tecnológico que reúne as condições de manutenção da
existência é diverso. Há atos, que alimentam relatos, e que deles se alimentam: escolher com cuidado
os calçados; preparar o prato preferido da esposa amada, no dia de seu aniversário; escrever cartas
endereçadas ao ausente; dedicar uma obra, continuar o que ele ou ela fazia e que não pôde ser concluído; acolher as presenças; falar, sonhar, buscar os sinais e construir, a partir dessas experiências, e com
muito cuidado, seus relatos. E para esses, como acabo de evocar, tratar-se-á, a cada vez, de uma pequena
jóia de invenção linguística, de maneira a manter abertas todas as possibilidades, com, por exemplo, a
engenhosidade da construção formal em termos de “como se”, “como se ele quisesse me dar um sinal”,
particularmente capaz de sustentar a perplexidade que alimenta a experiência.
Assim, a expressão “como se ele quisesse me dar um sinal”, que tantas vezes surge de uma forma ou
de outra, deixa em aberto a questão da intenção do defunto, e intacta a incerteza de se o sinal é produto
da interpretação daquele que o recebe, ou se emana “realmente” do defunto. É claro que há também o
uso de metáforas, ou até mesmo a invenção de novos sentidos para as palavras. Existe, mais abertamente, a técnica de oscilar entre duas versões contraditórias: “É coisa da minha cabeça ou é outra coisa?”.
O relato, dessa forma, pela indeterminação que ativamente preserva, é mantido vivo. Pois, justamente,
o perigo do qual escapa é a palavra final. É o que aprendi a chamar de “tato ontológico”. É esse tato que
encontro na resposta que dá o jovem Rachid à questão que uma de minhas estudantes de psicologia
lhe faz, a saber, se ele às vezes sentia a presença de seu irmão mais novo, morto num acidente de moto:
Sim, muitas vezes, por uma sombra, um barulho, pelo sonho. Pelos objetos que pertenciam a ele
também. Assim que sinto sua presença, aceito a princípio essa presença e tento deixar as portas
e janelas abertas, ou até mesmo abro as cortinas para deixar a luz penetrar. Não tenho medo ou
coisas do tipo. Permaneço mais passivo e tento lidar com isso. Quando sinto sua presença, abro a
janela para que ele possa sair se quiser. (Doutrelpont, 2012).
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Sentimos nessa narração uma gradação habilmente orquestrada, da distribuição daquilo que se
chama “agentividade” ou “agência”, e que traduzo, seguindo Bruno Latour, como potência de agir:
sombras, barulho, sonho, objetos que pertencem ao defunto e que apenas evocam a presença; depois
a luz e as janelas abertas que preparam não mais a evocação, mas a invocação; por fim, a janela aberta
para deixa-lo partir, se assim o quiser, atesta, com notável tato, um ritual de convocação surpreendentemente sofisticado. Rachid cria a situação que permitirá a esse desejo existir, e esse desejo ganha ainda
mais autonomia, porque ele pode se manifestar como desejo de não dar continuidade à convocação,
ou, mais precisamente, decliná-la.
Mas restava uma modalidade que não havia levado em conta durante minha pesquisa, ou que me
havia estranhamente escapado: prolongar o relato pelo meio mais simples: abri-lo aos outros, mas desta
vez sob o modo da ficção. E oferecer, através dela, o suplemento biográfico que o morto parece pedir.
Uma senhora me enviou um e-mail durante o verão de 2016, e eis o que ela conta:
Minha mãe, Lore, faleceu há mais de um ano, no dia 7 de maio de 2015. Enquanto era viva, expressou a vontade de ser cremada, ao contrário de meu pai, enterrado 17 anos antes. Grande viajante, tendo trabalhado na aviação civil de 1958 a 1970, apaixonada pelos desertos, mamãe havia
expressado, várias vezes no passado, o desejo de que suas cinzas fossem dispersadas no deserto.
Em nossas últimas conversas, tinha compreendido que o deserto que idealmente poderia acolhê-la seria o de Namíbia. Seria então esse, sem que ela tivesse, aliás, nitidamente (linda expressão)
pedido. O deserto de Namíbia e sua areia alaranjada a marcaram, pois foi o último que havia descoberto antes do nascimento de seu único neto; o deserto mais velho do mundo, “o mais especial”
segundo suas próprias palavras. Para não falar das diversas ligações com esse país, antiga colônia
alemã, que só podiam atrair sua personalidade ambivalente e desenraízada, tendo mamãe nascido
na Alemanha e depois migrado para França. Para mim, no ano passado, isso ficou muito claro. Sua
destinação final tinha que ser essa, eu (me) devia atender a esse pedido implícito, e essa seria sua
última viagem. E através dela, mamãe me faria descobrir outros horizontes, uma outra perspectiva… para assegurar um mensageiro, questão de transmissão. Ao longo do verão de 2015, dei início
aos procedimentos para visitar com nossos familiares (meu filho e meu companheiro) a Namíbia
e leva-lá para lá. Seria mais correto dizer que me engajei numa verdadeira corrida de obstáculos.
Efetuei e cumpri todas as formalidades requeridas, mais até do que seria preciso, tendo obtido
todas as autorizações necessárias para que o translado da urna funerária ocorresse sem transtorno.
Depois aguardei a data de partida. Essa foi uma longa espera; investi muitos e grandes afetos nessa
viagem. Já em Namíbia, por fim (the end? ainda não), perdemos, no segundo dia de nossa estada,
uma parte de nossas bagagens, roubadas de nosso veículo. Nossas malas estavam no bagageiro do
carro alugado, trancado e estacionado na cidade. Entre as sacolas roubadas estava… a urna contendo as cinzas de mamãe! No dia 07 de junho de 2016, ou seja 13 meses depois, dias após dia, de ela
ter dado seu último suspiro. Ela literalmente partiu pelos ares, mas não no sentido que eu previa.
Para quem? Para ela? Para mim? Passado o choque e o desmoronamento emocional ocasionado
por essa desventura surrealista, procuro a partir de agora qual sentido dar a essa história. Esse
relato pode parecer rocambolesco, digno de um roteiro de filme. Mas não é nada disso. Ele toca
em algo essencial e profundo. Eu percebo isso, mesmo se não consigo ainda ter o recuo necessário
em relação ao acontecimento. Tenho, é claro, algumas pistas de reflexão, algumas convicções e
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intuições, mas enfrento às vezes alguns sobressaltos, angústia intensa, quando recordo o roubo.
Fiz boletim de ocorrência no local, mas a polícia namibiense não encontrou nada até hoje, mesmo
que o agente de viagem tenha, até onde sei, lançado comunicados na rádio e nas redes sociais.
Devo, agora, prevenir o Quai d’Orsay, caso a urna seja encontrada no futuro, por causa da legislação relativa à proteção dos corpos! De fato, me senti desprovida; minha ação ficou inacabada, não
conduzi esse projeto íntimo e pessoal até o fim… Mamãe aterrissou no solo da Namíbia mas onde
estão suas cinzas hoje? […] Após ter deixado a Namíbia com alguns pesares (um eufemismo), me
pergunto: teria desnaturado a vontade de mamãe ou, pelo contrário, ela se escapuliu para ganhar
definitivamente uma forma de liberdade? No final da vida, ela havia se definido como um ‘pássaro
migratório’… Estaria ela me convidando a desapegar disso?
Confesso que achei a ideia de uma fuga tão bonita que respondi ao e-mail nesse sentido. O que
qualifiquei de “magnífica escapadela póstuma” me pareceu ao mesmo tempo, dentro da idéia de minha
interlocutora de um convite a desapegar disso, uma lição de liberdade. Os últimos desejos, muitas vezes
esquecemos, exigem uma continuação. Esse é um dos sentidos possíveis ao que chamamos de “herdar”
– aliás, deveríamos falar mais em “penúltimos desejos”, estando os vivos encarregados de cuidar dos
últimos. Minha interlocutora me respondeu pouco tempo depois de ter se matriculado em uma oficina
de escrita, dizendo estar preparada desta vez para dar essa continuação sob o modo da ficção, e oferecer
a sua mãe o que Souriau consideraria talvez como uma promoção dentro da existência. O roubo não
teria a palavra final.
A história de Lore, morta viajante, poderia encontrar ressonância com a belíssima pesquisa
realizada por Arnaud Esquerre (2011) sobre a circulação das cinzas. Na verdade, graças ao roubo,
as cinzas de Lore beneficiaram de muito mais liberdade do que autoriza a lei francesa desde 2008 –
as dificuldades administrativas da viagem e a necessidade de prevenir o Quai d’Orsay são provas dessas
restrições de liberdade. Dez anos antes, minha interlocutora teria escapado de todos esses aborrecimentos administrativos. Com efeito, entre 1976 e 2008, explica Esquerre, com a generalização da cremação e a relativa ausência de enquadramento legislativo, milhares de mortos circularam livremente pelo
território, entre a população, o que, aliás, levou Grégory Delaplace (2015) a destacar que o lugar dos
mortos se punha menos em termos de lugares do que de trajetórias. Porém, mais surpreendente ainda,
ao ler a pesquisa de Arnaud Esquerre, é o estranho complexo de pensamentos que regeu a mudança
da lei. Gostaria de me ater a dois dos argumentos que foram apresentados. Para introduzir o primeiro,
retorno por alguns instantes à comparação que abria minha apresentação, relativa a todos esses seres
problemáticos que são chamados a serem gente como os outros. Por falta de tempo, deixarei os cães de
lado para evocar novamente o Neandertal que Svante Pääbo queria proteger de uma tentativa de clonagem. No final de sua argumentação, Pääbo recorre tanto a seu avô quanto ao Neandertal, e termina
por essa frase: “Que descansem em paz”. E esta é uma reclamação recorrente, que podemos encontrar,
por exemplo, no final da Primeira Guerra Mundial, como sublinha o historiador Jay Winter, quando
os políticos, em seus discursos, invocavam os mortos para restaurar a ordem social, fazendo-os reféns
de conflitos que lhes eram completamente estranhos. Isso despertará a indignação de muitos soldados,
incluindo o poeta Marc de Larreguy, que pedirá, em nome de seus camaradas – aos quais, se juntará
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pouco tempo depois, com sua morte – “que os deixemos enfim apodrecer tranquilamente” (apud Winter, 2008 [1995]:229). Não deveríamos deixar os mortos tranquilos, para retomar o título de um artigo
de Pascal Boyer (2016), distorcendo-o um pouco? Ou ainda, na versão espontânea de Emmanuel Berl,
“se cremos que os mortos sobrevivem, como acreditar que eles não fazem nada, que não tem nada a
fazer, que não os incomodamos nunca?” (1995 [1956]:80). Voltemos à pesquisa de Arnaud Esquerre:
o argumento da tranquilidade dos mortos, surpreendente nesse início do século XXI, parece poder
nos convencer da necessidade de uma regulamentação sobre sua circulação. Acabou a festa. Ou, para
resgatar uma das formulações utilizadas por um relator da Assembléia Nacional, “o princípio da paz
dos mortos impõe […] que a sepultura escolhida seja estável” (apud Esquerre, 2011:79). A questão jurídica, na verdade, é identificar os lugares onde repousam os mortos, imobilizá-los e torná-los acessíveis
a todos. Um segundo argumento intervém aqui, associado, de forma estranha, ao primeiro, pois vem
das profundezas da doxa psicológica e se assemelha ao que poderíamos chamar de “novo regime das
obrigações do luto”. Com efeito, uma eventual apropriação das cinzas, ou sua disparição, ameaça, segundo o legislador (e segundo vários atores que se posicionaram nesse caso, inclusive representantes da
Igreja), a possibilidade para os enlutados de fazerem o trabalho de luto. E podemos concluir, tanto com
Arnaud Esquerre quanto com a socióloga Dominique Memmi (2014), que o que estava em questão era
a proteção do psiquismo dos vivos.
Não voltarei ao que o psicanalista Jean Allouch (1997), a psicóloga Magali Mouliné e alguns
outros denunciaram como o absurdo desse trabalho de luto, que não deixa de evocar uma enésima
tentativa de domesticação das psiques. A aparente incongruência que consiste em conceder aos mortos
uma vontade, a de estar em paz, e, ao mesmo tempo, invocar um sistema teórico que afirma que quando os mortos morrem eles estão mortos, e portanto não devem desejar mais nada, talvez não seja tão
incongruente assim, se pensarmos que essas duas injunções, no fim das contas, convocam uma mesma
atitude: a de querer claramente manter a separação entre vivos e mortos. Se deixá-los em paz significa
deixá-los serem/estarem mortos, e se o trabalho de luto, como prescrição, implica uma imposição de
se separar deles, os argumentos relacionam-se a uma mesma regra de socialidade, tanto para os mortos
como para os vivos. Isso me parece ainda mais plausível diante do fato de que – dado o uso da teoria
do luto pelo Estado, por sua vontade de retomar por conta própria a imposição de separação [entre
vivos e mortos], para proteger o psiquismo de seus cidadãos – um dos argumentos a favor de tornar
disponíveis a todos as cinzas do defunto repisou uma série de anedotas infelizes, por exemplo o fato
de que a detenção em domicílio da urna com as cinzas de uma primeira esposa teria ocasionado o
pedido de divórcio da segunda, ou ainda, a obrigação, para uma criança, de saudar todas as manhas
seu irmãozinho falecido.
Seria de se esperar que para os círculos espíritas, cujas práticas vão totalmente em sentido contrário à teoria do luto, a questão da tranquilidade dos mortos não fosse levantada, pois, longe de favorecer
a separação, suas práticas não cessam de gerar contatos. Ora, uma análise das sessões me parece, ao contrário, mostrar uma clara preocupação dos médiuns com o fato de que os vivos podem, por vezes, atrapalhar o destino de seus familiares falecidos. Vale ressaltar que essas sessões, pelo menos no círculo que
frequentei regularmente para minha pesquisa, são coletivas, organizadas duas vezes por semana numa
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sala que acomoda geralmente cerca de trinta pessoas. Ao entrar, os participantes podem, se desejarem,
deixar uma fotografia do defunto com o qual gostariam de entrar em contato, e que será entregue aos
dois médiuns oficiantes. Isso não impede visitas intempestivas de mortos não convocados por uma
fotografia. Na verdade é o que mais acontece, seja para os mais acostumados, que acabam por conhecer
bem os médiuns, seja para as pessoas de passagem. Gostaria de evocar duas situações, mas muitas outras
poderiam receber esta mesma leitura, onde ficou claro para mim que o trabalho de Michèle e de Philippe consistia em desfazer laços muito apertados ou mal tecidos, em nome do bem-estar dos mortos.
Michèle se dirige a um homem com aproximadamente 40 anos, em tom de reprovação. Sua esposa
está aqui, diz ela. Ela não está bem. “Parece que você se compraz com a infelicidade”. Ele exclama: “Me
comprazer com a infelicidade! Só faltava essa!”. Todo mundo ri. Michèle continua: “Mas você deixa
sua mulher infeliz; sua esposa se sente culpada. Não podemos culpabilizar os mortos. Não é culpa deles
terem ido embora; era a hora deles, não há nada que possamos fazer. E sua mulher se sente culpada
porque você a deixa culpada”. Manifesta-se nessa troca uma inflexão sutil na teoria do luto. E essa inflexão inverte radicalmente a relação. Não se trata mais de se desligar do falecido para reinvestir outros
objetos, “liberar-se das amarras”, como dizem alguns. Não. É a morta que, aqui, pede para ser liberada.
Se, com essa inversão, parece que o destino do morto está no centro de preocupações dos médiuns,
não deixaremos de notar, entretanto, que o que está em jogo também aqui, e que a médium desfaz, é a
impossibilidade para um vivo de tomar a difícil decisão, às vezes impossível, de enviar o morto a uma
forma de não-existência ao se desfazer de uma dor que atesta o fato de que o morto existiu, uma dor
que mantinha [o morto] no ser. Aí está a genialidade do dispositivo: se a ordem vem da própria morta,
se a obrigação de se reconectar com a vida emana dela como uma necessidade, isso pode ser atendido.
É o que me leva a dizer, ou a redizer, que o dispositivo espírita é um dispositivo terapêutico. A outra
situação diz respeito a um jovem que veio com a fotografia de seu amigo. Ele havia se matado alguns
meses antes. Com bastante tato, Philippe lhe disse que não poderia entrar em contato com ele, porque
estava muito mal, e que eram outros seres que lhe respondiam. Continuou:
Falam-me de alguém que era muito otimista, com uma visão um pouco ingênua, mas progressivamente aconteceu alguma coisa, ele foi de desilusão em desilusão, e não havia mais nada de interessante ou bonito. Enquanto era vivo, teve que se isolar. Você se lembra dele quando ainda estava
bem? [o jovem responde que sim]. Se você pensar nele enquanto ele ainda estava bem, isso poderia
ajudá-lo a partir. É como se ele estivesse num casulo trancado, é o que me dizem outras entidades.
Era uma pessoa muito gentil, super sensível. Ele esperava que o mundo fosse como ele. São realmente desilusões que aconteceram progressivamente. Não é nem mesmo uma questão de culpa,
ele ainda não está neste ponto. Quando pensamos nele, pensamos no fim e isso o prende ainda
mais. Isso lhe demanda um processo ativo de vê-lo feliz e sorridente. É necessário e útil enviar-lhe
[ao morto] pensamentos positivos e visualizá-lo feliz e alegre. Se você foi instado a trazer a foto
dele, é porque há algo a se fazer por ele. Será preciso retornar com sua foto daqui a algum tempo.
A descrição do vidente está correta (eu conhecia tanto o jovem como o seu amigo), ou ainda
– deixemos de lado o que sabemos e que nos situaria num regime de verdade que talvez não seja o
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mais adequado nesse enquadramento – ela toca de modo correto. Pois a questão não é de saber se ele
diz ou não a verdade. A questão é de compreender o que sua proposição toca, e quais são seus efeitos.
Ela faz sentido; ela se torna verdadeira; ela reconstrói a história de tal modo que oferece algo em que
se apegar [uma ancoragem]. O que não pôde ser feito ainda o pode ser. Essa proposição põe o jovem
enlutado numa outra postura em relação ao falecido; ela transforma sobretudo, com um mesmo gesto,
o regime de ação e de afetos: o faz passar de um regime passivo a um regime de atividade, de paixões
tristes a paixões alegres. O vivo, assim ativado e tocado, parte com uma responsabilidade: reconstruir
o passado, ativamente, para abrir outros possíveis no futuro. Agir e transformar as maneiras de ser, não
retrospectivamente, mas retroativamente.
A ancoragem que escolhi certamente não seria aquela pela qual os videntes descreveriam suas
práticas, o que obviamente levanta a questão da fidelidade e da interpretação. Paul Sorrentino encontrou um problema relativamente similar com os pesquisadores vietnamitas trabalhando no Centro de
Pesquisa sobre os Potenciais Humanos, em Hanoï. Eles se esforçam em mostrar a veracidade das competências que a possessão emprega. Apesar de compartilharem o interesse pela possessão, Sorrentino
observa que esses pesquisadores são mais relutantes em aceitar sua ideia de que as próprias atividades
de pesquisa teriam contribuído ao desenvolvimento das práticas de possessão pelos mortos (2018:155,
nota 19). É completamente compreensível que eles tenham o sentimento de que essa leitura construtivista possa ir de encontro ao regime da prova que guia seus trabalhos, pois esse regime de prova exige
a autenticidade dos mecanismos de possessão, uma autenticidade que se veria irremediavelmente manchada de suspeição, se viéssemos a acreditar que as pesquisas poderiam ser a causa do fenômeno que
eles estudam e que os pesquisadores o promovem a partir do momento em que decidem estudá-lo. Mas
Sorrentino não pode aderir a esse regime da prova, pois isso o obrigaria a aceitar uma definição cienticista da verdade: só existe realmente o que existe por si próprio. A abordagem construtivista que ele
escolhe, aceitando que o trabalho de pesquisa é parte constitutiva do fenômeno que os pesquisadores
observam, permite-lhe não ter que sentenciar sobre o conteúdo exato da realidade que ele estuda, e escapar da escolha intimatória entre “é construído” e “é real”. Não. Como Bruno Latour nos ensinou, uma
vez que nos livramos da definição cienticista das ciências, o fenômeno é tão mais real quanto mais bem
construído. Ao pesquisador cabe estudar como é construído, e sobretudo, como isso se mantém. Mas o
problema da verdade ou da autenticidade não é um problema abstrato para esses pesquisadores vietnamitas: esse centro de pesquisas teve de enfrentar inúmeras dificuldades para obter do Estado a possibilidade de desenvolver seus trabalhos, obter um amparo legal e não cair sob ação das leis contra as superstições (Sorrentino, 2018:157). Como, ao mesmo tempo, não colocar os pesquisadores em perigo sem
deixar de atender aos requisitos de sua própria prática? É aí que o pesquisador se encontra, sem dúvida,
na posição do diplomata que põe em cena Isabelle Stengers (2003,2006): trata-se de aprender a pensar
com os outros, mas sabendo que será preciso retornar aos seus. Estamos longe aqui da palavra final.
Fiquem tranquilos, no que concerne esta conferência, estamos quase lá [no fim]. Mas eu seria
negligente, voltando para Michèle e Philippe, se, ao tratar de pensar a dificuldade de compreender o
trabalho dos médiuns como um trabalho terapêutico, não recorresse ao auxílio extraordinário que
constitui, para vários dentre nós, o trabalho de Jeanne Favret-Saada. O antropólogo Jérémy Damian
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(2014:528) relata que, quando ela retorna, algumas décadas mais tarde, ao dispositivo de desenfeitiçamento que havia estudado no Bocage, optando por apresentá-lo como um “dispositivo terapêutico” de
cura e os desenfeitiçadores como “terapeutas”7, ela supõe que:
a acolhida de uma tal proposição não se fará no sentido que teria parecido mais óbvio: os desenfeitiçadores sentindo-se realizados por serem enfim reconhecidos como verdadeiros e eficazes
terapeutas. Ela especifica, com efeito, que os ‘verdadeiros’ terapeutas – aqueles que têm o habito
de se apresentar enquanto tais – estariam, no fim das contas, mais inclinados a aceitar os desenfeitiçadores como um dos seus, do que os desenfeitiçadores estariam para se reconhecerem como
pertencentes ao círculo dos terapeutas (Ibid: 529).
Jérémy Damian retomou o problema em seu próprio campo com praticantes da danse improvisation contact e demonstra que o que poderia ser vivido como uma traição pelos desenfeitiçadores
mostra-se, e aqui são meus termos, um compromisso justo. Pois, de fato, Jeanne Favret-Saada opta por
deliberadamente não operar o gesto crítico que consistiria em bifurcar o real entre, de um lado, aparências, ilusões, subjetividade ou projeções, e, de outro, uma realidade verdadeira à qual apenas o pesquisador crítico teria acesso. Assim como ela não remete, a não ser excepcionalmente, a uma interpretação
simbólica da feitiçaria – o que seria a alternativa “aceitável” para a vulgata antropológica – ela constata,
aliás, que a referência ao simbólico é geralmente mais convocada nos momentos em que o observador
se encontra confrontado com enunciados que considera falsos (2009:149). Ela oferece, assim, a seu
campo uma abordagem pragmática em termos do que “faz” o desenfeitiçamento e o que ele permite
as pessoas fazerem. Se lhe parece interessante autorizar-se a não ter a mesma grade de leitura dos desenfeitiçadores, escreve Jérémy Damian, “é que isso lhe permite descolar-se da alternativa que mantém
refém a eficácia dessas práticas entre “acreditar” ou “não acreditar”. Sem emitir nenhum julgamento,
sem descreditar nenhuma experiência, ela “povoa o mundo com uma prática suplementar interessante”
(2014:529). E Damian relembra o que Viveiros de Castro atribuía como tarefa da antropologia: “Se há
alguma coisa que cabe de direito à antropologia, não é a tarefa de explicar o mundo de outrem, mas a
de multiplicar nosso mundo” (2009:169).
A questão da divergência se coloca para mim de outro modo ainda, pois, no fim das contas,
minha ancoragem prático-teórica é muito mais próxima da dos médiuns do que da prática de desenfeitiçamento das terapias convencionais. Philippe e Michèle sabem que, ajudando os mortos, ajudam
os vivos. E sabem que é preciso ajudar os vivos a cuidar dos mortos. A leitura que proponho a eles é,
na verdade, muito semelhante, em aparência, à deles, exceto que a minha inverte radicalmente a perspectiva. Ela desloca o foco dos mortos para os vivos, não para negar a possível implicação dos mortos,
mas porque tenho que admitir que meu saber se interrompe aí. Não posso saber se eles ajudam os
mortos, nem se esses últimos são afetados por essas histórias. Mas eu posso ver e ser sensível ao fato
de que as proposições dos médiuns não apenas ajudam os que ficam– o que não é pouco – como são
também apaixonantes. E que o mundo que eles contribuem a fazer existir, e no qual eles trabalham, é
bem povoado. Eduardo Viveiros de Castro dizia ainda que a antropologia estuda as variações impor7 Em particular os capítulos II, “Terapia sem saber”, e III, “A invenção de uma terapia” (Favret-Saada, 2009: 24-77)
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tantes. Michèle e Philippe conferem importância a mais seres para os quais os vivos importam. Não é
tudo. Mas já é muito importante.
Vinciane Despret é professora do Departamento de Filosofia da Université de
Liège, na Bélgica.
Tradução
Igor Rolemberg é doutorando em Ciências Sociais na École des Hautes Études
en Sciences Sociales (EHESS) em co-tutela com o Programa de Pós-Graduação
em Antropologia Social do Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ).
Revisão técnica
Paulo Renato Guérios é Doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional,
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Professor Associado da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
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Pesquisar junto aos mortos
Resumo: “Os mortos são gente como os outros”. A partir dessa proposição, feita por um de seus interlocutores em campo, a autora se lança numa investigação sobre os dispositivos e agenciamentos que
permitem reduzir distâncias entre vivos e mortos e operar a comunicação entre eles. Respeitando as
indeterminações aí presentes, incorporando-as à descrição e restituindo a riqueza das operações engendradas pelos atores, inclusive seus próprios modos de investigar o significado das mensagens dos
mortos/espíritos, o texto aborda uma variedade de temas que animam o debate antropológico, tais
como: antropomorfismo, rituais de possessão, comunicação inteligível e sensível, regimes de verdade,
dispositivos terapêuticos, entre outros.
Palavras-chave: Médium; Espiritismo; Morte; Luto.
Inquiries raised by the dead
Abstract: “The dead are people like everybody else”. Beginning with this statement, made by one of the
author’s interlocutors, she launches an investigation into the devices and agencies that allow to reduce
distances between alive and dead, searching the ways in which they establish communication. Respecting the indeterminations present therein and adding them in the description, the author depicts the
diversity of the work engendered by the actors, including their own ways of inquiring the meaning of
dead’s / spirits’ messages. The text addresses a variety of themes at the core of anthropological debates,
such as: anthropomorphism, rituals of possession, intelligible and sensitive communication, régimes de
vérité, therapeutic devices, among others.
Keywords: Medium; Spiritism; Death; Mourning.
RECEBIDO: 17/02/2021
APROVADO: 10/04/2021
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RESENHAS
Leirner, P. de C. (2020). O Brasil no Espectro de uma Guerra Híbrida: militares,
operações psicológicas e política em uma perspectiva etnográfica. São Paulo:
Alameda Editorial. 329 p.
CIMÉA BARBATO BEVILAQUA
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ (UFPR), CURITIBA/PR, BRASIL
https://orcid.org/0000-0002-6886-0395
A forma mais simples de apreciar a importância da obra de Piero Leirner está em seu próprio
título: não é todos os dias que um vocabulário analítico especializado é incorporado ao debate público
sobre os impasses da vida nacional. A repercussão do léxico associado à guerra híbrida, disseminado a
partir da análise de Leirner, deve-se sem dúvida ao seu poder de elucidar os sobressaltos políticos e as
transformações do Estado em curso no Brasil. Todavia, a conjuntura é apenas a camada mais evidente
de um movimento analítico que se desenvolve simultaneamente em diferentes escalas e dimensões – e,
nesse sentido, é isomórfico ao seu objeto.
Versão pouco modificada da tese de professor titular de Antropologia do autor, defendida em
dezembro de 2019 na Universidade Federal de São Carlos, o livro desenvolve uma reflexão teórica
profundamente original, lastreada em uma trajetória de pesquisa com militares que remonta à década
de 1990 – e, no período mais recente, em um percurso etnográfico singular, que radicaliza o caráter
relacional do conhecimento antropológico e dá nova expressão a uma antropologia pública. É também uma contribuição para a história da disciplina, não simplesmente por retraçar antigas e sempre
controversas relações entre antropólogos e forças armadas, mas ao expor a perturbadora conversão de
conhecimento antropológico em doutrina militar. Se esse movimento passa a prescindir da participação direta de profissionais da área, sua origem é precisamente o que permite ao antropólogo compreendê-lo de forma mais acurada.
Como o autor narra na introdução, a percepção de que processos em curso no Brasil evocavam
elementos de sua experiência de pesquisa começou a se delinear em 2014. Ao ver pela primeira vez a
expressão “guerra híbrida” ser empregada por um antigo interlocutor, a intuição ganhou contornos
mais nítidos: as chamadas “jornadas de junho” de 2013 tinham muitas similaridades com o que ora
é reconhecido como uma estratégia norte-americana para provocar “revoluções coloridas” e desestabilizar governos, ora identificado como uma doutrina conspiratória russa com sinal invertido e fins
similares – como sustentavam as publicações dirigidas ao público militar brasileiro que começavam a
se multiplicar.
Nestas, uma combinação peculiar de diferentes elementos de teorias da guerra híbrida, amalgamados a preocupações e diretrizes preexistentes nas Forças Armadas, disseminava a ideia de que o
Brasil estava sob ataque e localizava o inimigo não apenas no interior das nossas fronteiras, mas no
coração do próprio governo. Simultaneamente, a Operação Lava-Jato produzia seus primeiros efeitos e
consagrava os heróis da mais recente cruzada anticorrupção.
Acredito que Leirner tenha percebido antes que qualquer um de nós o padrão inusual que conectava essas iniciativas: não apenas a ação disruptiva de setores do Estado contra outros setores do
Estado, mas a projeção de seus próprios movimentos como ações daqueles contra os quais se dirigiam.
Esses indícios o levaram a retomar elementos sedimentados ao longo de sua trajetória de pesquisa, ao
mesmo tempo em que se engajava na discussão política em tempo real com um espectro crescente de
interlocutores. O que de início foi uma reação ao enredo político-jurídico corrosivo que se precipitava,
e um esforço para compreender o papel que nele cabia às Forças Armadas, tornou-se um experimento
etnográfico de produção de conhecimento em rede, em especial via Facebook, “em um ciclo de alimentação e feedback” (:45). E não por acaso.
Em virtude de suas qualidades homólogas, faz parte da doutrina da guerra híbrida a percepção
das redes sociais como equivalente bélico do “terreno” nas guerras clássicas. Neste caso, portanto, entrar nas redes sociais e agir nelas equivalia ao preceito antropológico clássico de “entrar em campo” e
participar de uma das frentes em que a guerra é travada (:46). Desencadeou-se assim um esforço cotidiano de análise pela experimentação com noções militares associadas à guerra híbrida, em especial a
de “operações psicológicas”. Suas múltiplas refrações deram origem à tese agora transformada em livro,
cujo registro de escrita, quase coloquial, guarda as marcas da própria situação etnográfica. Publicações
no Facebook, entrevistas, notícias, trabalhos acadêmicos, documentos e manuais militares reagem uns
aos outros “sem distinção, sem hierarquização: em rede” (:54).
A proposição de base, desenvolvida ao longo de três capítulos, é a da existência de uma guerra
híbrida em curso no Brasil, operada em várias escalas e há muito mais tempo do que se imagina. A
chegada de Jair Bolsonaro à presidência é um de seus efeitos, mas seguramente não o último: a guerra
híbrida não tem como horizonte o seu próprio fim. Por isso mesmo, a conclusão do volume não é um
epílogo, mas a transição para um novo estágio, paradoxal apenas se lido a partir da oposição canônica entre política e guerra: o governo da guerra híbrida, cujas contradições fabricadas camuflam uma
completa reconfiguração do Estado e a concentração de seus poderes no que Leirner designa como um
“consórcio militar”.
De acordo com o autor, o que distingue o caso brasileiro é um percurso inverso ao dos ataques
híbridos que desencadeiam revoluções coloridas, nos quais o agenciamento de protestos nas ruas avança Estado adentro, solapando suas estruturas. Aqui, uma doutrina da guerra híbrida gestada no núcleo
militar teria operado inicialmente no interior das próprias Forças Armadas, muito antes de se estender
para além da caserna. Seus mecanismos entram gradualmente em ressonância com outros atores e instituições – notadamente o judiciário, mas também seus próprios alvos –, até que a guerra híbrida se
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torne “um fenômeno estrutural e disseminado” (:282). É preciso não perder de vista que a produção
do conceito é, de saída, sua própria efetivação e o influxo de seu alastramento, de forma tão mais eficaz
quanto mais imperceptível para os agentes que participam dessa dinâmica. Como insiste o autor, trata-se efetivamente de “uma dinâmica de guerra, não de uma maquinação militar sem maiores efeitos”
(:43).
A essa altura, deve estar claro que o escopo da análise não é a “aplicação” da (ou de uma) noção de
guerra híbrida como uma fórmula para o entendimento da história brasileira recente, mas a apreensão
etnográfica de agenciamentos “nativos” (embora não inteiramente autóctones), amadurecida ao longo
de um percurso intelectual que vai da política à guerra e desta retorna à política (:58).
No capítulo 1, Leirner remonta aos primeiros passos de sua experiência de mais de 25 anos de
pesquisa com militares. Se a noção de guerra híbrida implica a dissolução da fronteira entre política e
guerra, no Brasil do início dos anos de 1990 se tratava justamente de reinstaurar a separação entre ambas, depois de duas décadas de regime militar. Prevalecia então nas ciências sociais um firme consenso
segundo o qual a intervenção fardada na vida pública advinha de alguma “falha” ou “anomalia” na
política. Considerando, entretanto, o número e a distribuição global de golpes de Estado envolvendo
militares na história recente, era o próprio consenso analítico que suscitava interrogação (:58-61).
Delineia-se assim um projeto radicalmente inovador: tomar a guerra como ponto de partida
para compreender a movimentação política de militares. Num primeiro momento, esse percurso leva
a interpelar uma longa tradição intelectual que toma as fronteiras entre o público e o doméstico, a política e a guerra como premissas não-problemáticas. A agudização recente das qualidades híbridas da
guerra, por sua vez, permite reequacionar o entendimento de suas relações com a política e a própria
noção de intervenção militar. Encontra-se aí o cerne do argumento teórico do livro, mas chegar a ele
requer, por assim dizer, aproximações sucessivas em diferentes planos.
O primeiro deles é uma experiência etnográfica marcada pela constante produção de ambiguidades e contradições. Não se trata de um detalhe trivial: tal padrão faz parte dos manuais militares de
“operações psicológicas”, cuja importância cresce no Brasil a partir de fins da década de 1990, reverberando o rearranjo das concepções da guerra na doutrina norte-americana a partir da “captura da
antropologia pela máquina de guerra” (:85).
Para o entendimento desse processo, Leirner recupera parte da história das relações entre a antropologia e as forças armadas, em especial a participação de antropólogos britânicos e norte-americanos
na Segunda Guerra. Particularmente decisivo, aqui, é o caso de Gregory Bateson. Ainda que à revelia
dele mesmo, algumas de suas formulações – notadamente as que decorrem do conceito de cismogênese
e de aproximações à cibernética – vieram a ser empregadas em experimentos da inteligência militar
norte-americana. Posteriormente, já como parte de um repertório institucional, converteram-se em
fundamentos das teorias das guerras irregulares, não convencionais ou híbridas, cujo desenvolvimento
prático ocorreria inicialmente em operações no Iraque e no Afeganistão. A expertise adquirida por oficiais brasileiros em treinamentos nos Estados Unidos, infundida por aclimatações doutrinárias locais,
teria produzido aquilo a que Leirner se refere como a “virada ontológica” que desaguou na noção (e na
prática) da guerra híbrida entre nós.
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Em outro plano e como corolário de um longo acúmulo etnográfico e reflexivo, o capítulo 2 explora teoricamente as condições de emergência dessa nova equação militar. Ou talvez seja mais correto
dizer o contrário: são as novas condições da guerra que implicam um reequacionamento da teoria política. O argumento se desdobra em dois passos. Primeiramente, trata-se não apenas de problematizar a
indexação da guerra e da política à gênese do Estado, mas sua persistência como uma espécie de matriz
do pensamento que, a despeito da diversidade de suas expressões, replica incessantemente a ideia de
que o Estado domestica a guerra e, a partir disso, dispõe política e guerra em campos opostos. Mas se
é preciso reafirmar a cada momento essa separação, pergunta Leirner, não seria porque ela própria é
em alguma medida artificial e deixa como resíduo inexplicado “a permanência da guerra em um estado
latente”? (:127).
Destacar-se da circularidade desse pensamento permite sustentar, num segundo momento, que
as situações em que a guerra supostamente “invade” a política não ocorrem em virtude de alguma
anomalia desta, mas porque ambas estão constitutivamente imbricadas. Isto requer uma teorização
radicalmente diferente, advinda de formas de socialidade que também o são. Se há uma razão, por assim dizer, metodológica para esse passo, conforme a conhecida advertência de Bourdieu sobre os riscos
de descrever o Estado e os fenômenos que lhe são (supostamente) correlatos a partir de suas próprias
categorias, há também uma motivação etnográfica. Para o coronel Frank Hoffman, tido como o autor
da expressão guerra híbrida, alguns de seus componentes evocariam as “guerras primitivas”. Contudo,
enquanto o militar norte-americano pretendia ressaltar uma suposta ausência de regras, relevante para
Leirner é sua indiferença à separação entre domínios ou “esferas”. Assim, a partir de desdobramentos da
reflexão antropológica sobre guerras não-estatais, torna-se possível perguntar: se “a guerra híbrida está
se tornando uma espécie de ‘condição final’ da guerra, não será justamente por reproduzir sua característica mais prístina, que é o hibridismo?” (:156).
Para leitoras/es mais interessadas/os na crônica do presente, a importância desse verdadeiro tour
de force histórico e teórico pode passar despercebida. Entretanto, é da possibilidade de situar a análise
em um ponto (logicamente) anterior às divisões consagradas por nossas teorias políticas que depende a
compreensão do alcance mais profundo de métodos e dispositivos bélicos constitutivamente híbridos.
Pois ao embaralhar aquilo que foi separado, dissimula-se a própria existência de uma guerra. E menos
ainda é possível discernir de onde, afinal, vem o ataque. A demonstração empírica de como essa “grande
inversão” tem ocorrido no caso brasileiro, a partir da mobilização analítica, em modo reverso, do próprio repertório que a produz, é a matéria do capítulo 3.
Conforme Leirner destaca, o conceito de cismogênese “está para teoria da guerra híbrida assim
como a prática da guerra híbrida induz à cismogênese” (:179). Como já ensinava Bateson, a cismogênese é uma dinâmica relacional que se instaura a partir de aspectos preexistentes e é retroalimentada pelas
iniciativas de atores distintos. Desse modo, compreender como militares brasileiros se envolveram na
guerra híbrida implica, em primeiro lugar, reter um dado etnográfico fundamental: o modo como o conhecimento é produzido nas Forças Armadas, que favorece sua concentração nas mãos de agentes-chave e se dissemina como instrução. Não menos importante, o imperativo de transformar o pensamento
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em ação alinha em relação especular a descrição do inimigo e o modo como o próprio Exército deve se
organizar e agir para enfrentá-lo (:187).
A partir daí Leirner explicita como elementos ideológicos e doutrinários foram articulados por
certo núcleo militar na produção de uma teoria da guerra híbrida – cuja propagação na própria caserna,
de acordo com o autor, foi também sua primeira atualização. A receita envolve, entre muitos outros ingredientes, o anticomunismo latente desde a Intentona de 1935 e transformações da doutrina da guerra revolucionária que, a partir da década de 1990, acionaram a Amazônia como cenário prototípico.
Mais recentemente, a operação no Haiti não apenas acelera a incorporação de um aparato doutrinário
e operacional norte-americano, como também propicia uma experiência-laboratório de dissolução da
fronteira entre intervenção militar, produção do Estado e exercício do governo. No âmbito interno,
a instauração da Comissão da Verdade acirra as tensões entre governo e Forças Armadas e estimula a
abertura dos quartéis à política. Paralelamente, a articulação de ações conjuntas com outros agentes
institucionais (membros da Polícia Federal, Procuradores e Juízes) aprofunda a indistinção entre defesa e segurança. Por fim, o próprio governo de Dilma Rousseff estabelece o arcabouço político-legal
que, com o concurso de inúmeros atores, daria impulso a um novo projeto militar de aparelhamento do
Estado e de construção de hegemonia – precisamente aquilo que se atribuiu ao PT.
Conectando com brilhante precisão uma imensa massa de dados, Leirner identifica os princípios, os principais artífices e o passo-a-passo da guerra híbrida brasileira. O impeachment e o lawfare,
assim como as eleições de 2018 e as aparentes contradições do atual governo podem então ser vistos
como momentos de uma mesma dinâmica de “abordagem indireta” e “criptografia”, da qual as Forças
Armadas emergem como solução de ordem. Ao expor com refinamento etnográfico, originalidade teórica e uma boa dose de coragem a urdidura dos processos que recolocaram os militares no “centro” da
vida nacional, O Brasil no espectro de uma guerra híbrida já nasce como referência incontornável para
as ciências sociais. Mais que isso, é leitura urgente para a desarticulação do “domínio de espectro total”
prestes a se completar.
Ciméa Barbato Bevilaqua é Doutora em Ciências Sociais (Antropologia Social)
pela Universidade de São Paulo (USP) e Professora Titular da Universidade
Federal do Paraná (UFPR).
RECEBIDO: 30/12/2020
APROVADO: 20/01/2021
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RESENHAS
Gamlin, J. et al. (eds). (2020). Critical Medical Anthropology: Perspectives in and
from Latin America. London: UCL Press.
ULIANA ESTEVES
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO (UFRJ), RIO DE JANEIRO/RJ, BRASIL
https://orcid.org/0000-0001-7715-9413
Desigualdades estruturais, violência, discriminação e ativismo. Estas são algumas das categorias
abordadas na obra organizada por Jennie Gamlin, Sahra Gibbon, Paola M. Sesia e Lina Berrio, pesquisadoras situadas na Inglaterra (as duas primeiras) e no México (as duas seguintes). Tais categorias
se desdobram em dez capítulos, os quais tratam de distintas questões em torno do processo saúde/
doença/cuidado. Em conjunto os textos evidenciam aquilo que seria a caraterística da Antropologia
Médica Crítica na América Latina (AMC-AL), demarcada, no prefácio, por Eduardo Menéndez: a
descrição de contextos de exclusão, degradação, racismo e agressão a que foram submetidos setores
sociais e grupos étnicos na região.
Menéndez, argentino radicado no México, é uma importante referência para a AMC-AL e suas
discussões aparecem como um fio condutor do livro. Os conceitos de autocuidado e modelo médico hegemônico servem como base de argumentação para diversos textos. Para o autor, ao evidenciar
distintas formas de cuidado, a AMC-AL demonstra uma visão holística do processo saúde/doença/
cuidado. A perspectiva biomédica unilateral – e as dinâmicas de poder aí envolvidas – é questionada a
partir dos saberes de grupos subalternizados e da criação e usos de critérios preventivos.
O livro é resultado de uma série de eventos realizados no México, no Brasil, na Inglaterra e em
Portugal (coordenados pelas organizadoras da obra) nos quais pesquisadores da Argentina, do Brasil,
do Equador, do México, da Inglaterra e dos Estados Unidos apresentaram seus trabalhos. Segundo as
organizadoras, os encontros aprofundaram o olhar da teoria crítica latino-americana sobre as desigualdades na saúde, sendo este o primeiro livro a reunir, na língua inglesa, contextos etnográficos da
América Latina e teorias da AMC. O esforço seria o de difundir as pesquisas de autores com quase
ou nenhuma publicação neste idioma. Tal estratégia é justificada pela riqueza dos trabalhos realizados na região, por suas especificidades históricas de engajamento com a teoria crítica e pelo fato de
que no mundo acadêmico etnocêntrico e anglófono as contribuições da ACM-AL são escassas, sendo
ignorada a produção antropológica em espanhol. O leque temático não conseguiu incluir, contudo,
a importante contribuição dos estudos da saúde das populações negras desenvolvidos no Brasil, no
Equador e na Colômbia, como ressaltado pelas organizadoras que, também, afirmam estar em débito
com a Região Andina e o Cone Sul da América Latina.
Ao longo da coletânea é notável a força do referencial teórico latino-americano no tratamento
das questões; além de Menéndez, destaca-se a presença do antropólogo mexicano Guillermo Bonfil Batalha. As orientações teóricas-metodológicas se mantêm alertas para determinantes sociais e relações
de poder em torno da saúde/doença/tratamento e para as respostas coletivas e individuais aos problemas. A criatividade na articulação metodológica é outra marca dos capítulos. O trabalho de campo se
vale de descrição de trajetórias, mapeamento social, análise de mídia e de discurso público.
O livro é dividido em três seções temáticas. Os quatro capítulos que compõem a primeira parte
– “Intercultural health: Critical approaches and current challenges” – abordam questões relativas ao
ativismo e à intermedicalidade. No primeiro, Esther Jean Langdon e Eliana E. Diehl retomam processos de formação e consolidação do Grupo de Trabalho em Saúde Indígena da Associação Brasileira de
Saúde Coletiva (ABRASCO). As autoras consideram que os engajamentos críticos dessa rede interdisciplinar de pesquisadores contribuiriam para as discussões de uma abordagem crítica latino-americana.
Seus membros articulam a pesquisa com a participação em fóruns públicos de formulação e avaliação
de políticas de saúde.
Para examinar essa articulação, Langdon e Diehl abordam, especificamente, o Núcleo de Estudos sobre Saúde e Saberes Indígenas (NESSI) e suas investigações sobre os cuidados entre os Kaingáng
de Santa Catarina e os distintos modos de participação indígena no sistema de saúde. O texto sublinha,
ainda, que a postura crítica da antropologia da saúde no Brasil acarreta uma rejeição da antropologia
médica como rótulo, entendendo que ela subordinaria o conhecimento antropológico ao empirismo
biológico e psicológico da ciência médica na compreensão do sofrimento humano.
O capítulo de Jennie Gamlin e Lina Berrio, por sua vez, busca extrair as contribuições da etnografia colaborativa e de longo prazo com as comunidades indígenas para a teoria crítica na antropologia médica. A agência dessas populações na saúde e na pesquisa seriam fundamentais para uma produção teórica sobre medicina e saúde que emerge dos mundos indígenas. Ao discutir as experiências
de parto de Sukulima e Juana, mulheres indígenas acompanhadas por projetos comunitários de saúde
da mulher no México, as autoras entendem que as colaborações entre pesquisa e ativismo em torno da
mortalidade materna estão coproduzindo uma teoria antropológica crítica anticolonial.
Partindo de uma perspectiva da antropologia das emoções, Frida Jacobo Herrera e David Orr
apresentam um estudo comparativo sobre a experiência do susto, conhecido também como “doença do
medo” ou “perda da alma”, no México e no Peru. As dimensões emocionais da experiência do medo
ofereceriam uma visão crítica sobre as vulnerabilidades experimentadas por grupos sociais específicos.
O esforço teórico dos autores recai sobre a análise dos imbricamentos entre a produção sociocultural
de experiências emocionais e as estruturas socioeconômicas, a partir da observação de como as comunidades podem vincular condições como susto ao sofrimento social. Os medos dessas comunidades responderiam a ameaças específicas – como a violência –, mas também seriam moldados por marcadores
como gênero, classe e idade.
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O capítulo escrito por Rebecca Irons, fechando a primeira seção da coletânea, questiona a
monossemia do entendimento biomédico sobre dois medicamentos que podem ser tomados após a
relação sexual desprotegida – a pílula anticoncepcional de emergência e o misoprostol (uma “pílula
abortiva”) – a partir do uso feito por mulheres de baixa renda no Peru. A percepção e o uso de pílulas
pós-coito estariam intimamente relacionados aos conceitos locais de tempo no desenvolvimento fetal.
As diferentes medidas temporais mobilizadas pelas mulheres sugerem que a pílula pós-coito existe em
“realidades múltiplas” nesse contexto. As realidades conflitantes entre a experiência das mulheres e a
das principais instituições controladoras da política e da opinião pública aprofundariam a precariedade da saúde de mulheres em posições vulneráveis.
Os fluxos de pessoas por espaços fronteiriços e de saberes por entre redes de conhecimento são
discutidos na segunda parte do livro – “Globalisation and contemporary challenges of border spaces
and biologised difference” – composto por três capítulos. Olga Lidia Olivas Hernández analisa trajetórias de homens migrantes na região de fronteira entre os Estados Unidos e o México. O texto examina a sobreposição entre trajetórias de migração e práticas e significados do uso de drogas, investigando
como a experiência de migrar afeta a saúde dos sujeitos. A autora identifica diferentes interpretações
para o uso de drogas: doença, hábito, vício e, ainda, estratégia de autocuidado no enfrentamento das
dificuldades vivenciadas em condições de precariedade. Tal uso também pode ser entendido como uma
consequência da violência estrutural exercida pelo sistema de imigração norte-americano.
O capítulo seguinte, assinado por Rubén Muñoz Martínez, Carmen Fernández Casanueva, Sonia Morales Miranda e Kimberly C. Brouwer é apresentado como o primeiro estudo focado na fronteira do México com a Guatemala a analisar as condições socioeconômicas, políticas e culturais implicadas na exposição ao HIV por homens migrantes indocumentados que realizam trabalhos sexuais.
Os autores fazem um mapeamento social dos espaços percorridos por esses sujeitos com o interesse de
analisar a estigmatização e discriminação por eles vividas. Assim, elucidam processos de vulnerabilização social ao HIV de migrantes masculinos em um contexto de fronteira.
No capítulo que encerra a segunda seção, Melania Calestani e Laura Montesi analisam, a partir
de uma abordagem comparativa, as representações sociais da diabetes no México e das minorias étnicas
na medicina de transplante no Reino Unido. As autoras consideram que a reinvenção das categorias
“raça” e “etnia” pela ciência apontaria para como o reforço étnico-racial pode contribuir com o aprofundamento de desigualdades racializadas em sociedades estratificadas. Calestani e Montesi tomam
como aporte teórico discussões da antropologia da epigenética e, principalmente, da epidemiologia
crítica para analisar como “influências sociais” podem se corporificar. Para as autoras, esta abordagem
não nega as diferenças étnico-raciais nos padrões de doença, contudo as compreende como “resultados
encarnados de caminhos de poder”, caracterizadas por uma somatização das tensões raciais. À medida
que as instituições da ciência examinam seus corpos, os próprios sujeitos também dão sentidos à diabetes e à doação de órgãos.
A última parte do livro, com três capítulos, é intitulada “Political economy and judicialisation”.
Rosa María Osorio Carranza discute a expansão de um tipo específico de sistema de saúde privado que
vem se consolidando no México. Tal sistema se caracteriza pela alocação de consultórios contíguos a
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farmácias. Promovido pela indústria farmacêutica, o surgimento dessas clínicas gerais privadas é enquadrado no contexto de políticas públicas para a privatização dos serviços de saúde no país. Carranza
considera que este modelo ratifica um processo de farmacologização que incrementa o uso de medicamentos. O olhar para este processo considera, ainda, as motivações dos diversos atores envolvidos no
sistema, como os usuários e suas escolhas.
Paola M. Sesia descreve o caso emblemático de violação do direito à assistência durante o parto
de Irma López Aurélio, indígena de Oaxaca, no México. O texto apresenta uma análise de como a
violência obstétrica emerge enquanto categoria mobilizada por organizações litigantes no processo de
judicialização da violação de direitos humanos na saúde materna sofrida por Irma. Sesia considera este
enquadramento como um terreno fértil para investigações desde uma perspectiva da AMC-AL. “Violência obstétrica” se revela como uma categoria semântica, constituinte de um novo marco jurídico na
defesa dos direitos humanos das gestantes; e, também, epistêmica, na medida em que define um campo
social de atuação médica, apresentando uma crítica à obstetrícia hegemônica.
No último capítulo da obra, Waleska Aureliano e Sahra Gibbon analisam o processo de judicialização no caso de doenças raras no Brasil. As autoras mostram as nuances dos “complexos emaranhados” entre o tribunal e a clínica, descrevendo, com delicadeza, os modos como as categorias “vida” e
“valor” são mobilizadas e contestadas nos terrenos onde a judicialização se desenvolve no país. Aureliano e Gibbon discutem como, nesse contexto, são gerados tipos particulares de subjetividades políticas
ambíguas. A noção de economias afetivas também é empregada para examinar como reivindicações
múltiplas, em especial dos pacientes e seus familiares, sobre o valor ou preço da vida são mobilizadas na
judicialização de medicamentos de alto custo para doenças raras no Brasil.
O posfácio é de autoria de Claudia Fonseca, antropóloga norte-americana radicada no Brasil,
importante referência, em especial, nos estudos de gênero, família, adoção e ciências. Além de alinhavar as principais questões levantadas na obra, mormente a alocação da biomedicina como um dentre os
variados sistemas possíveis de cuidados, e de sublinhar a pertinência do trabalho etnográfico, Fonseca
aponta para desdobramentos necessários nas investigações da AMC na América Latina. O primeiro
ponto destacado é o de pensar em como identificar e alistar, entre os agentes da biomedicina, aliados
críticos, profissionais que, ao vivenciarem as ambivalências de suas práticas, possam estar abertos ao
diálogo e às alterações criativas nos próprios saberes e práticas. O segundo é incluir na perspectiva
antropológica crítica a influência de várias agências internacionais. Desta forma, chama atenção para
como os esforços humanitários de organizações internacionais por vezes estão associados a intervenções militares e bloqueios econômicos, levantando questões sobre motivações e efeitos das ações. Por
fim, destaca como os problemas abordados na obra não são simples, por isso defende que o engajamento dos pesquisadores deva vir apoiado pelo envolvimento dos pacientes. Esse envolvimento ajudaria,
segundo Fonseca, na formulação de alternativas novas e mais eficazes no combate às desigualdades
incorporadas que afligem o mundo contemporâneo.
Apesar do notável esforço de inserir a teoria latino-americana em um mercado anglófono, a publicação da coletânea apenas em inglês decerto impõe limites para o acesso à leitura na região. Contudo, a obra é uma necessária contribuição para a antropologia e se torna referência importante nos estu-
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dos de saúde/doença/cuidado e ativismo. O esforço etnográfico de descrição multiescalar de processos
políticos e econômicos revela como esses não servem apenas como pano de fundo ou de contextualização das situações, mas antes, como eles são corporificados, produzem relações e instauram resistências. O comprometimento político dos autores também é uma marca importante da obra e da própria
AMC-AL. A potência dos engajamentos é reverberada na produção teórica e no desenvolvimento de
etnografias multissituadas que explicitam e contribuem com os diversos espaços de lutas por direitos.
A obra é, pois, um chamado ao diálogo e um convite a um mergulho na teoria social latino-americana.
Uliana Esteves é Doutora em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/Universidade Federal do
Rio de Janeiro (PPGAS/MN/UFRJ).
RECEBIDO: 01/02/2021
APROVADO: 03/03/2021
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RESENHAS
Porto, N; Lima Filho, M. (orgs). (2019). Coleções étnicas e museologia
compartilhada. Goiânia: Editora da Imprensa Universitária. 261 p.
MANUELINA MARIA DUARTE CÂNDIDO
UNIVERSITÉ DE LIÈGE, LIÈGE, BÉLGICA E UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS (UFG), GOIÂNIA/GO, BRASIL
http://orcid.org/0000-0001-9695-3807
Tomada 1
1987: o artista James Luna, de origem Puyukitchum, realiza sua performance no Museu do Homem de San Diego, Califórnia. Deitado em uma vitrine, rodeado por objetos como fotos, seus
livros preferidos, papéis de divórcio e diploma universitário, ele aponta para uma problemática
muito candente: como as culturas indígenas são representadas nos museus. Corta.
Tomada 2
Em uma viagem de turismo em 2010 a Goa, Índia, na Basílica do Bom Jesus, a antropóloga Renata
Menezes vê o local onde são expostos restos mortais de São Francisco Xavier, e se interroga: “corpo
morto, insepulto, é um objeto?” (:117).
Tomada 3
2018: o Museu Antropológico da Universidade Federal de Goiás (UFG) realiza o Seminário Coleções étnicas e museologia compartilhada, pré-evento do 18º Congresso da International Union of
Anthropological and Ethnological Sciences (IUAES).
O livro objeto desta resenha resulta do citado Seminário, e foi organizada por Manuel Lima Filho, professor de Antropologia da Universidade Federal de Goiás, e Nuno Porto, curador para África e
América Latina do Museu de Antropologia da University of British Columbia. Para as coordenadoras
do 18º IUAES, Miriam Grossi e Simone Lira da Silva, a coletânea marca a liderança mundial da Antropologia brasileira e atesta a posição proeminente da UFG nos campos do Patrimônio e da Museologia.
Sua publicação ocorre na Coleção Diferenças, do PPGAS/UFG.
Os organizadores do Seminário e do volume realçam como a cultura material já preservada historicamente em museus vem sendo retomada pela Antropologia, pela Museologia Social e por outras
áreas por meio da “perspectiva da diferença” (:11). A obra, composta por oito artigos, além de apresentação e prefácio, também aciona, lateralmente, a discussão sobre a virada ontológica que consiste, entre
outros efeitos, no avivamento das preocupações, nas Ciências Humanas, a respeito das relações entre
humanos e coisas (:120).
No texto “Exercício breve sobre a formação de séries etnográficas a partir de coleções etnológicas”, Edmundo Pereira propõe um exercício de “comparação de trajetórias de colecionamento” que
originaram três coleções do Setor de Etnologia e Etnografia do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro: Botocudo, Pareci e Apinajé. O autor investiga os processos de formação das
coleções, propondo categorias para classificá-los segundo suas semelhanças e diferenças e elaborar um
quadro comparativo entre eles. Tendo passado por incêndio em 2018, todos os estudos sobre coleções
deste museu, como o presente artigo, que registram dados sobre a coleção e sua distribuição espacial na
exposição de longa duração daquele momento, revestem-se de ainda maior importância.
Nuno Porto, um dos organizadores, contribui com o texto “Para uma prática curatorial comprometida com justiça social”, no qual problematiza como os museus têm construído seus discursos
em torno da ideia de autoridade anônima, camuflando o fato de serem formados por atores sociais. Ele
critica a colaboração e a consulta usadas como formas de se legitimar e “manter as aparências” e procura
“alternativas do sul” a estas práticas. Destarte, apresenta experiências brasileiras como a Sala do Artista
Popular do Centro de Folclore e Cultura Popular Edson Carneiro, concebida para apoiar os produtores em relação ao mercado consumidor, a partir da ideia de que preservar a vida e a dignidade do artista
popular é tão essencial quanto preservar a obra. Também ressalta iniciativas africanas que têm por base
a Sankofa, uma filosofia sobre as relações entre passado e futuro. A partir destas provocações e de um
olhar crítico sobre a experiência de sua própria instituição, Porto destaca o desafio dos museus que se
baseiam em coleções, pela necessidade de se reverem profundamente e assumirem o compromisso com
a justiça social.
A fala de Takumã, líder Kamaiurá do Parque Indígena do Xingu, volta a ecoar no texto de Camila A. de Moraes Wichers “‘Todo mundo ficou com medo desse caco’: práticas de colecionamento
e colonialidade na formação da Coleção da Lagoa Miararré, Xingu”. A frase foi dita em entrevista a
Acary Passos de Oliveira, primeiro diretor do Museu Antropológico da UFG, em 1976. O Museu recebera entre 1971-72 alguns objetos retirados da lagoa sagrada, mas a coleção foi “silenciada” por várias
décadas nas reservas técnicas. Sua pesquisa percorre, a partir de 2016, as relações entre pesquisadores
e indígenas e o choque de alteridades. A autora destaca situações em que indígenas assumiram as negociações com figuras como Orlando Villas-Bôas, Acary de Passos Oliveira, Pierre Becquelin e Nobue
Myasaki. Na retomada recente da coleção, a pesquisadora busca afastar-se das práticas marcadamente
coloniais e ressignificá-las em um diálogo com integrantes do povo Kamaiurá, problematizando tensões inerentes à atuação do próprio Museu.
Os sistemas de classificação aparecem como problemas relevantes em diferentes capítulos. Advogando por uma Antropologia da Devoção, Renata Menezes pergunta: “Os objetos religiosos cabem
em quais vitrines?”. Ela problematiza as fronteiras entre religião e cotidiano e entre religião e materialidade, tendo em vista que “grande parte do tempo dedicado à religião envolve o manuseio de coisas”
(:121). Tais coisas possuem um estatuto muito mais poroso do que simplesmente a definição como
religiosas ou laicas possa indicar. Ao se interessar pela investigação das passagens entre um estatuto e
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outro e da própria musealização, Menezes põe acento no debate, nos “constrangimentos dos problemas
classificatórios” (:123) e naqueles causados por práticas de manuseio e exposição que desconsideram a
perspectiva dos detentores.
O texto “Interculturalidade e saberes compartilhados: estudo da Coleção William Lipkind
(1938-1939) do Museu Nacional/UFRJ” apresenta estudos liderados por Manuel Lima Filho em conjunto com Marília Caetano Morais, Lucas Yabagata e Lucas Santana Silva. O grupo investiga a coleção
formada durante o trabalho entre os Inỹ Karajá de Lipkind e abrigada no Museu Nacional até o incêndio de 2018. O aspecto intercultural da pesquisa consiste em investigar a percepção dos Inỹ Karajá
no reencontro com esta coleção. A ausência de mana em determinados objetos rituais aparece como
requisito para a musealização. A relação entre coisas e cura é também mencionada tendo por base estudos que indicam o fabrico do artesanato como ato para evitar o adoecimento e como transformação
de dor em arte. Isto sugere uma potencialidade ainda inexplorada de investigações que olhem para as
conexões entre práticas curatoriais próprias do mundo dos museus e este sentido do lidar com as coisas
como cura.
O povo Inỹ Karajá tem sido assolado por sucessivos golpes como a epidemia de suicídios, notadamente entre jovens rapazes, e a pandemia de Covid-19. Toda perspectiva de cura física e espiritual deve
ser ensejada inclusive como parte do compromisso com a preservação do seu patrimônio, que é, antes
de mais nada, a vida. Ainda nesse texto, note-se o interesse da experiência de reclassificação das coisas
de acordo com as categorias nativas. Tais práticas de compartilhamento de saberes são potencializadas,
vale ressaltar, pela existência da Licenciatura Intercultural Indígena na UFG. Note-se ainda o desejo de
museu expresso pelos Inỹ Karajá em oficina ministrada por Marília Morais na Ilha do Bananal, que permite encetar novos desdobramentos com outros projetos realizados na UFG, como o Presença Karajá.
Renato Athias se inquieta pela “representação museológica da diferença” (:166) no texto “Entre
máscaras, maracás, imagens e objetos xamânicos em museus”. Pensa a passagem de objetos xamânicos a
estes novos contextos, a partir do caso da exposição que realizou no Museu do Estado de Pernambuco,
por meio de curadoria compartilhada. Entre os procedimentos inusuais nos museus, menciona a substituição de um par de búzios deteriorado que era um instrumento musical dos Fulni-ô. Após negociação com o grupo (e certamente com os pruridos técnicos do museu), no ato da abertura da exposição
ocorre a substituição dos búzios inutilizados por “uma cópia autorizada e autenticada” (:168).
O autor reflete sobre a ausência, nos relatos de naturalistas-viajantes que coletaram para museus
desde o século XVIII, do interesse em trazer junto com os objetos as narrativas nativas e se detém no
primeiro caso bem-sucedido de restituição no Brasil, o da machadinha Krahô do Museu Paulista, em
1986. Aqui, enfatiza o papel de coesão social que todo este processo de luta e restituição representou
para o grupo, valorizando a imaterialidade inerente ao objeto. Athias retoma o caso dos búzios Fulni-ô
para lembrar que eles nunca desejaram o retorno daqueles que não mais serviam como instrumentos
musicais, o que leva a uma problematização muito instigante, visto que museus muitas vezes definem
seus objetos exatamente pela perda do valor de uso.
Em “Etnicidade e fronteira nas práticas de colecionamento no médio Araguaia”, Rafael S. G. de
Andrade volta aos Inỹ Karajá. Não é à toa que vários capítulos abordam este povo, visto que a insti-
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tuição que abrigou o Seminário possui uma trajetória de 50 anos de estudo a seu respeito. Este artigo
explora “o lugar dos aruanãs nas práticas de colecionamento que tiveram lugar no médio Araguaia”
(:198), ressaltando a produção concomitante de coleções de ideias e de coisas. Os aruanãs ou ijasó são
seres “que visitam as aldeias em momentos rituais [...], na forma de um par de dançarinos que saem da
casa dos Aruanãs (:197)” cobertos por uma máscara de palha. Uma série de preceitos lhes são associados, como a proibição do olhar das mulheres. Em 2012, por ocasião da abertura de uma exposição do
Museu Nacional, os Inỹ presentes solicitam a retirada destas máscaras, o que foi seguido pelo museu,
incluindo imagens veiculadas no site da instituição. A partir daí uma discussão ainda inconclusiva foi
iniciada em reuniões de pajés, sobre a presença das máscaras de aruanãs em museus.
Finalmente, o livro traz o capítulo de Nei Clara de Lima e Rosani Leitão, “Patrimônio cultural
Iny-Karajá e política de salvaguarda: diálogo intercultural e trabalho compartilhado”, que apresenta as
políticas de salvaguarda do patrimônio cultural brasileiro, contextualizando o registro das ritxoko, bonecas de cerâmica produzidas pelas mulheres Inỹ Karajá como patrimônio cultural imaterial do Brasil.
Elas afirmam que “as bonecas expressam a complexidade do universo sociocultural Iny Karajá, produzindo narrativas sobre o que é ser Karajá, sobre como se vêm e se autoconcebem.” (:230). Finalmente,
o texto introduz a metodologia e os resultados do projeto de salvaguarda executado com recursos do
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, enfatizando seu caráter colaborativo e compartilhado, a partir de metas definidas em conjunto com lideranças e ceramistas.
Tal projeto, que atingiu 21 aldeias, teve jovens indígenas Inỹ Karajá como articuladores/as locais
e realizou atividades como: a divulgação das ritxoko como patrimônio cultural brasileiro; a formação
em gestão de projetos culturais e em documentação audiovisual (reivindicação do grupo); oficinas de
fortalecimento do artesanato tradicional que promoveram intercâmbio entre mestres/as das diferentes
aldeias, e despertaram iniciativas de retomada de práticas e de rituais tradicionais. Neste caso houve a
reconfiguração da ideia inicial de realizar uma exposição pelo fato de as lideranças desejarem colocar os
objetos em uso nestas ocasiões ou usar os que ficaram inacabados como elementos didáticos. A quarta
meta trabalhou o fortalecimento do Inỹribè, língua nativa, por meio da elaboração conjunta do livro
bilíngue Arte Iny/Karajá: patrimônio cultural do Brasil. As considerações finais destacam a cocriação
de diferentes pedagogias patrimoniais e, sobretudo, o aprendizado sobre a indistinção entre material
e imaterial, além de afirmar o momento político atual como uma convocação a quem trabalha com
patrimônio a uma “atuação cada vez mais politizada nas arenas da vida cultural brasileira” (:258).
Arte, Antropologia, Museologia e muitos campos estão problematizando há algumas décadas
as práticas de colecionamento e de musealização: Appadurai e Breckenridge afirmam que museus são
bons para pensar, Clifford alerta que museus são zonas de contato. Neste exercício de reflexividade e
desnaturalização da realidade muito próprio da Antropologia, deixam-se de pensar somente sobre a
coisas que são colecionadas pelos museus, mas sobre os próprios museus como coisas, produtos das
relações sociais. Museus se afirmam como objetos privilegiados das reflexões da Antropologia.
Esse livro aponta para as novas práticas em instituições museais, ancoradas no protagonismo
das comunidades de origem dos acervos, e que pretendem estabelecer relações outras com tais comunidades de forma a não reproduzir e naturalizar os modelos de musealização estabelecidos em regime
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de alteridade radical, desterritorialização, assimetrias e violências epistêmicas. Trata-se de um debate
contemporâneo da mais alta relevância e em sintonia com as demandas dos movimentos indígenas em
todo o mundo, às quais os museus devem ser permeáveis. O momento é mais que propício, visto que a
própria definição de museus está sob cálido debate.
Manuelina Duarte é doutora em Museologia pela Universidade Lusófona de
Humanidades e Tecnologias. Atua como professora na Universidade de Liège,
Bélgica, e no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Goiás (PPGAS/UFG).
RECEBIDO: 17/02/2021
APROVADO: 11/03/2021
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RESENHAS
Biruk, C. (2018). Culture and politics in an African research world. Durham:
Duke University Press. 277 p.
FELIPE ANTÔNIO HONORATO
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP), SÃO PAULO/SP, BRASIL
HTTPS://ORCID.ORG/0000-0003-3732-6533
Cooking data: Culture and politics in an African research world, primeiro livro de Crystal Biruk,
professora associada de antropologia da McMaster University, no Canadá, foi construído para ser uma
etnografia da produção de dados quantitativos. São perguntas centrais e que nortearam a composição
do livro: como unidades cruas de informação adquirem valor estatístico e embasam políticas públicas e
intervenções? De que forma as dinâmicas e práticas de campo da cultura de aplicação de questionários
mediam a produção de números? Como dados quantitativos sobre saúde e seus mundos sociais são
co-produzidos e com quais consequências para as economias locais, formulação de conhecimento e
experiência vivida?
O termo cooking data, presente no título do livro de Biruk, tem origem em uma obra
de Lévi-Strauss, The raw and the cooked, de 1969, e possui dois sentidos: fabricar dados ou processar
dados crus, para que eles virem dados de alta qualidade. Uma única expressão, que carrega em si, portanto, dois sentidos antagônicos que marcam a tônica da produção de dados em campo: criar uma
padronização que evite a produção de dados de baixa qualidade – o que inclui dados inventados – e que
leve à produção de dados de alta qualidade, que, à frente, servirão para embasar estatísticas acuradas e
políticas públicas bem planejadas.
Na introdução da obra, a autora explica que, para elaborar o livro, ela acompanhou, entre 2005 e
2007 - 2008, o trabalho de campo feito, principalmente, por dois projetos: o LSAM e o MAYP. Ambos
os projetos coletaram dados de pesquisa e testes de HIV, a nível doméstico, de moradores do Malawi,
especialmente em áreas rurais. Enquanto os dados do LSAM rastrearam as condições demográficas,
socioeconômicas e as condições de saúde no Malawi rural, os dados do MAYP rastrearam uma amostra
de jovens casais em sua transição ao matrimônio.
A antropóloga detalha que sua observação participante pode ser dividida, basicamente, em três
etapas. Inicialmente, um período de 3 meses no LSAM como assistente de pesquisa no ano de 2005,
onde sua função era colaborar com as tarefas diárias de pesquisa. Depois, entre 2007 e 2008, ela trabalhou para diferentes projetos, ajudando em todas as etapas das investigações: checagem e aplicação de
questionários, logística, catalogação de dados, etc. Por último, em 2008, após o término dos projetos de
pesquisa, Crystal Biruk ainda ficou um mês nas áreas onde se encontravam as amostras do LSAM e do
MAYP, conversando com entrevistados pelos projetos junto com um assistente de pesquisa.
Formatar o design de uma pesquisa é uma negociação que envolve diversos fatores: recursos
financeiros, a capacidade de implementação de uma pesquisa, etc. Em “The office in the field: building
survey infrastructure”, primeiro dos cinco capítulos que compõem o livro, a pesquisadora reflete justamente sobre isso: faz uma extensa análise etnográfica das questões, tensões e problemáticas sociais
envolvidas na preparação de uma pesquisa de campo, que, nos casos estudados por Crystal Biruk, constituíram-se na aplicação de questionários em zonas rurais do Malawi. A autora aborda pontos como a
complexidade envolvida no processo de tradução de questionários de línguas estrangeiras, a exemplo
do inglês, para línguas locais do país africano: a tradução de pesquisa não é apenas preocupada com a
dimensão linguística, mas também em saber se as traduções fazem sentido no âmbito cultural em que
serão utilizadas – não se pode, por exemplo, usar uma situação cotidiana para ilustrar uma questão que
não faça sentido no contexto para o qual se está traduzindo. Uma tradução correta e acurada de um
questionário é tão importante para uma pesquisa quanto entrevistadores bem treinados, que façam as
perguntas exatamente como ensaiado ou escrito.
Neste mesmo capítulo a autora trabalha com as diferenças entre o Norte e o Sul global refletidas
no ambiente de pesquisa. De acordo com ela, há um reconhecimento da desigualdade das cooperações
de pesquisa entre estas duas distintas regiões econômicas do globo; o elo de ligação entre pesquisadores
das duas áreas é o dinheiro, proveniente do financiamento para pesquisas que verte do norte em direção ao sul. Isto acaba por formar uma hierarquia no trabalho de campo: o nível mais baixo é ocupado
pelos coletores de dados que vão para o campo, vistos como mão de obra não qualificada e facilmente
substituível; o nível mais alto é ocupado por pesquisadores do primeiro mundo, que comandam pesquisas à distância; entre estes dois níveis estão os pesquisadores locais, do terceiro mundo, que oferecem expertise local e coordenam o trabalho feito pelos coletores de dados.
O segundo capítulo, “Living project to project: brokering local knowledge in the field”, vai tratar justamente do papel da mão de obra local no escopo destas investigações científicas internacionais
desenvolvidas no Malawi: pode parecer que os pesquisadores do terceiro mundo não são protagonistas
nelas, mas a verdade é que eles dominam os processos logísticos e de pesquisa em campo. Formou-se,
no Malawi, um “mercado” de venda do conhecimento: acadêmicos africanos, muitas vezes, dependem
destas atividades de cooperação para complementar os baixos salários oferecidos pelas universidades
no continente; eles, que em várias ocasiões participam de múltiplos projetos ao mesmo tempo, deixando um pouco de lado suas áreas de expertise a favor dos ganhos, oferecem, como grande diferencial a
parceiros estrangeiros, que são, principalmente, universidades estadunidenses e europeias, o seu conhecimento da realidade local, uma moeda de troca muito valiosa nestes contextos.
Neste segundo capítulo, Biruk também discute sobre o trabalho dos coletores de dados no campo, fazendo uma etnografia destes. A autora tenta subverter a ideia de que eles são trabalhadores de
baixa qualificação, como se acredita: ela mostra como este tipo de função, apesar de temporária e apresentar vínculos empregatícios precários, pode significar mobilidade social para algumas pessoas no
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Malawi; a oportunidade oferecida pela participação nessas pesquisas para locais é boa, se comparada à
realidade do país africano. Fica claro, ao longo do capítulo, que estes pesquisadores de campo prezam
muito por manter uma boa relação com seus empregadores, bem como pela qualidade dos dados que
coletam, afinal a confiança dos pesquisadores internacionais é o que vai lhes garantir, futuramente,
novos trabalhos.
O terceiro capítulo, batizado de “Clean data, messy gifts: soap-for-information transactions in
the field”, traz uma discussão sobre a ética e a simbologia de se dar sabão em troca da participação de
respondentes nas aplicações de questionários em campo. Ele é enxergado, do ponto de vista prático,
como uma recompensa ideal, pois é fácil e compacto para ser carregado pelos pesquisadores em campo.
Já no ponto de vista ético, no entanto, não é unanimidade: se, por um lado, é um produto de moderado
valor econômico, não se configurando, então, como um possível incentivo à participação de ninguém
nas pesquisas, o sabão, por outro lado, é condenável, porque, na melhor das hipóteses, ninguém deveria
receber nada em troca por participar de uma pesquisa – os respondentes deveriam participar apenas
pela vontade de colaborar.
Crystal Biruk aborda toda a expectativa que acabou sendo criada no Malawi, por parte de quem
iria responder os questionários, quanto ao ganho do sabão, implicando em situações como, por exemplo, pessoas se passando por outras para poderem ter acesso à recompensa. Para além das questões
éticas e práticas, há também, como já anunciado, o problema da simbologia que o sabão carrega consigo
no país africano: o produto foi um sinônimo de saúde e de uma modernidade racializada durante o
período colonial.
Durante o decorrer de todo o livro, a autora destaca a presença, no ambiente de pesquisa, de uma
falsa oposição entre o campo (que seria um lugar bagunçado e onde os números são pessoas, tomam
vida) e o escritório (onde o trabalho de processamento dos dados é feito, que seria limpo, organizado,
e onde os entrevistados no campo viram números, cifras). É sobre o desafio de colher dados confiáveis
e padronizados – clean data – em um contexto supostamente bagunçado, onde os coletores de dados
têm de conviver com situações inusitadas, e, muitas vezes, com o improviso, que o quarto capítulo,
“Materializing clean data in the field”, trata.
“When number travel: the politics of making evidence-based policy” finaliza a obra.
Nele, Crystal Biruk questiona o paradigma que se vive atualmente das políticas públicas baseadas em
evidências, contando casos acontecidos no Malawi em que convicções pessoais de pesquisadores e o
senso comum se sobrepuseram a dados e evidências científicas. Tais situações levam Biruk a questionar
o fato de que mesmo a padronização sendo uma obsessão de pesquisadores que coordenam pesquisas
de campo, para que dados não sejam fabricados, de certa forma eles ainda podem acabar sendo inventados, na última ponta do processo.
Cooking data: Culture and politics in an African research world constitui-se, então, como um livro
de grande relevância para todos que queiram ter uma ideia detalhada de como funcionam os processos
aplicação de questionários e produção de dados quantitativos na África, ainda que o livro trate especificamente do contexto do Malawi. A etnografia realizada por Biruk também é importante para de-
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monstrar que dados, números, não são “frios”: eles, para serem produzidos, envolvem conflitos sociais,
conflitos éticos, pessoas, entre outros fatores que se imbricam em uma complicada relação.
Felipe Antônio Honorato é doutorando em Mudança social e participação política pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo
(EACH-USP) e professor da Faculdade IESCAMP.
RECEBIDO: 31/01/2021
ACEITO: 23/04/2021
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RESENHAS
Giumbelli, E.; Rickli, J.; Toniol, R. (orgs.). (2019). Como as coisas importam:
uma abordagem material de religião - textos de Birgit Meyer. Porto Alegre: Ed.
da UFRGS. 334 p.
GABRIELLE B. CABRAL
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL (UFRGS), PORTO ALEGRE/RS, BRASIL
HTTPS://ORCID.ORG/0000-0001-8182-7701
Por longo tempo, as Ciências Sociais guiaram-se por uma narrativa em que a religião estaria em
decadência. A questão era assim compreendida pois o paradigma da secularização prescrevia o declínio
da religião na vida social a partir da modernidade. Ecoando esta metanarrativa, as mídias e as novas
tecnologias de comunicação eram vistas como possíveis agentes secularizantes. No entanto, as previsões dos analistas não se concretizaram e a religião permanece em evidência na esfera pública, tendo as
mídias, neste contexto, um papel central.
À vista disso, os estudos de religião e mídia passam a ocupar uma posição central para a compreensão do posicionamento da religião na atualidade. Para além dos estudos sobre a utilização e apropriação das mídias de comunicação por atores religiosos, procura-se compreender o papel da religião
enquanto mídia. Ou seja, parte-se do reconhecimento de que a religião implica em uma forma de comunicação mediada, na qual somente é possível manifestar a esfera do sagrado no mundo conhecido
e visível por meio de mecanismos de mediação. Dessa forma, a comunicação com/sobre o sagrado
sempre é performada através de algum suporte material, seja por meio de textos, ícones, arquitetura ou
por meio do próprio corpo dos fiéis. É ainda importante notar que o foco nas materialidades oferece a
oportunidade de ir além do conceito de crença, este ligado a análises que entendem religião como algo
interiorizado, privilegiando a dimensão simbólica.
A abordagem material da religião tem como um de seus principais nomes a antropóloga alemã
Birgit Meyer, acadêmica vinculada ao Departamento de Filosofia e Estudos Religiosos da Universidade
de Utrecht, Holanda. Seu trabalho é enfim apresentado ao público brasileiro através do livro Como as
coisas importam: uma abordagem material da religião, organizado por Emerson Giumbelli (UFRGS),
João Rickli (UFPR) e Rodrigo Toniol (Unicamp) e publicado pela Editora da UFRGS. Apesar de já
contar com alguns artigos traduzidos para a língua portuguesa, este é seu primeiro livro publicado em
nosso idioma, fruto de extensos diálogos entre a autora e os organizadores. A coletânea traz artigos
reflexivos que inspiram novos olhares teóricos e metodológicos sobre religião e mídia.
Tendo realizado pesquisas principalmente entre os pentecostais de Gana, a autora interessa-se,
sobretudo, pelo tema das materialidades presentes em contextos religiosos, como os usos da iconografia cristã, as produções audiovisuais de conteúdo religioso e até mesmo os equipamentos audiovisuais
presentes nos cultos. Ao colocar a dimensão material como principal interesse de pesquisa, a questão
dos processos de mediação e dos mediadores envolvidos na materialização do religioso torna-se central.
Apesar de partir de contextos de pesquisa etnográfica no continente africano, a abordagem teórica
abre-se para a reflexão em diferentes cenários, com base no debate oportunizado por projetos de pesquisa interdisciplinares coordenados pela autora. Assim, por assumirem um caráter bastante abrangente, as formulações são instrumentos de análise possíveis também para a realidade brasileira.
Os textos escolhidos para formar a coletânea partem de diferentes contextos – isto é, enquanto
alguns capítulos são provenientes de capítulos introdutórios (como os capítulos 1 e 2), outros foram
publicados originalmente como artigos e trazem desdobramentos mais recentes do pensamento da
autora (ver capítulos 3, 5 e 6). O quarto capítulo, por outro lado, baseia-se na aula inaugural da autora
na Cátedra de Estudos Religiosos na Universidade de Utrecht (2012), e destaca-se pela síntese dos
aspectos centrais da abordagem material da religião.
Apesar dos contextos diversos, todos os capítulos concatenam as principais linhas argumentativas da autora. Uma noção que é abordada ao longo de todo o livro é a de forma sensorial, uma das
principais formulações da autora. No decorrer da coletânea, a autora desenvolve o argumento de que
“a religião pode ser mais bem analisada como uma prática de mediação, para qual as mídias, como
tecnologias de representação empregadas pelos seres humanos, são intrínsecas” (:60-61). Para isso, é
preciso que a noção de mídia seja ampliada para além dos meios de comunicação de massa, incluindo
os demais mediadores que materializam o religioso através de práticas e objetos. A noção de formas
sensoriais, por sua vez, inclui as mídias e pode ser entendida enquanto uma ferramenta analítica que
procura compreender “como as mediações reúnem e vinculam as pessoas umas com as outras e com o
transcendental” (:64). Em outras palavras, as formas sensoriais têm a ver com os modos pelos quais as
mediações atuam na formação estética das pessoas.
A noção de formação estética é outro importante tema abordado pelo livro. Procurando dar atenção à questão da efetivação das comunidades, Meyer desenvolveu esta noção a partir de um diálogo
com o conceito de “comunidade imaginada” de Benedict Anderson – discussão desenvolvida principalmente ao longo do primeiro capítulo. Primeiramente, optando pelo termo “estética”, em substituição a “imaginada”, a autora resgata a noção aristotélica de aisthesis, compreendendo estética enquanto
uma forma de engajamento com o mundo por meio dos sentidos e, assim, partindo em direção a uma
abordagem que abarque a experiência corporal. Sua segunda substituição – “comunidade” por “formação” – diz respeito a um entendimento de comunidade como um processo dinâmico e performativo
que inclui tanto entidades sociais quanto processos de formação. De modo resumido, a noção de formação estética compreende o compartilhamento de formas específicas de engajamento sensorial com
o mundo, constituindo sujeitos e comunidades.
Outra questão importante abordada pelo livro é a da indissociabilidade entre a religião e as
coisas. Segundo a autora, a ideia de que há um antagonismo entre religião e materialidade, postura
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que norteou por muito tempo os estudos de religião, reside em uma noção universalizante de religião
enquanto crença. Derivada da religiosidade protestante, a noção de “crença” privilegia uma ideia de
religião ligada à interioridade e ao imaterial, acabando por dizer pouco sobre a religião na prática,
isto é, sobre a presença tangível da religião no mundo. Dessa forma, a proposta de Birgit Meyer, em
consonância às ideias de Hent De Vries, é a de “explorar as formas e elementos particulares, através dos
quais a ‘religião’ é instanciada [...] no mundo” (:87). No entanto, como a autora deixa claro, ir além do
antagonismo requer um constante exercício reflexivo e crítico para repensar as categorias de análise a
partir da produção etnográfica (:95).
A autora ainda sugere que se busque uma abordagem integrada que não considere apenas o
conteúdo, mas também a forma, noções que para ela são irredutíveis. Dessa maneira, para a abordagem material, religião se refere a “conjuntos específicos, autorizados e transmitidos de práticas
e ideias que visam ‘ir além do ordinário’” (:187) que se manifesta no cotidiano, a partir de práticas
empiricamente observáveis.
Para além da noção de religião como mediação discutida anteriormente, o livro aborda a questão
de como é fabricada a presença extraordinária imediata vivenciada pelas pessoas. A chave para compreender essa questão de como o sagrado materializa-se no cotidiano dos fiéis é por meio da noção de
mediação. A autora enfatiza que as mídias religiosas podem ser qualquer coisa que sirva de mediador do
“acesso ao que está além do ordinário” (:190), e estão sujeitas a processos de autorização e autenticação.
Nesse sentido, as formas sensoriais são importantes para entender a dimensão estética que orienta o
envolvimento dos sentidos e da corporeidade dos fiéis e produzem a sensação de presença.
Ainda entre as preocupações da autora, há a questão do desenvolvimento de uma abordagem
capaz de “capturar o uau!” (ver capítulo 6) – isto é, as sensações e emoções vivenciadas em contextos
de saída do ordinário pelas pessoas em contexto religiosos – sem, no entanto, descartar a experiência
como ilusão, tampouco como um efeito do “sobrenatural”. O encanto, “emoção poderosa gerada através de um método padronizado” (:273), tem implicações nas relações de poder e pode ser observado
e pesquisado na prática, o que estimulou a autora a formular sua noção de formas sensoriais, conceito
que permite compreender a formação da experiência religiosa de um ponto de vista desde dentro, mas
também sob um olhar externo.
Se após o estudo dos capítulos ainda restarem dúvidas a respeito dos conceitos básicos da abordagem material da religião, o leitor pode ainda esclarecer alguns pontos com uma entrevista concedida
pela autora especialmente para este volume. Conduzido pelos organizadores do livro, o diálogo dá
conta do intervalo entre os textos (sendo o mais recente de 2016) e seus desdobramentos posteriores,
atualizando o leitor quanto à produção mais recente de Meyer e de seus atuais projetos de pesquisa. A
autora também comenta a respeito de sua formação intelectual e suas pesquisas na África, bem como
de suas expectativas em relação aos novos projetos.
Em suma, os argumentos da abordagem material da religião trazidos pelo livro são uma importante contribuição para o campo da Antropologia, em especial à Antropologia da Religião. Para além
da mera inclusão das mídias nas análises, é preciso atentar para os jogos de poder envolvidos na apropriação, legitimação ou rejeição dessas mídias nos contextos estudados – processo este que passa por
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um entendimento de estética, sua relação com os sentidos e formas de engajar-se com o mundo. Em
outras palavras, Birgit Meyer, através de sua abordagem material, nos dá excelente ferramenta analítica
para compreender as performances que envolvem o processo de mediação e materialização do sagrado
na vida cotidiana dos fiéis.
Gabrielle B. Cabral é Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS).
RECEBIDO: 08/10/2020
APROVADO: 22/03/2021
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DIR E T R Iz E S PA R A A U T O R E S
1. CAMPOS – Revista de Antropologia aceita as seguintes
contribuições, que podem ser enviadas em português, inglês, francês
ou espanhol (para publicação na língua original):
1.1. Artigos: os artigos devem ser inéditos. Não devem exceder
12.000 palavras, incluindo figuras, notas e referências
bibliográficas.
1.2. Ensaios bibliográficos: balanço crítico sobre a contribuição de
um ou vários livros, desde que tratem de temas correlatos, ao campo
da Antropologia. Devem apresentar referência completa das obras
analisadas, indicando o número de páginas de cada uma. Não devem
exceder 6.000 palavras, incluindo referências bibliográficas e notas.
1.3. Resenhas: resenhas de livros ou de filmes etnográficos editados
nos três últimos anos, seja título nacional ou estrangeiro. Devem
apresentar no título a referência completa da obra analisada,
conforme o padrão bibliográfico adotado pela revista. Não devem
conter notas ou referências bibliográficas fora do texto. Não devem
exceder 2.000 palavras.
1.4. Traduções: traduções de trabalhos relevantes no campo da
Antropologia e indisponíveis em língua portuguesa. Devem ser
acompanhadas de cópia do original utilizado na tradução, bem como da
autorização do detentor dos direitos autorais (autor e/ou editoras)
permitindo sua publicação em português. O eventual pagamento de
taxas relativas à autorização da tradução é de responsabilidade do
proponente da tradução. Não devem exceder 12.000 palavras, incluindo
figuras, notas e referências bibliográficas.
1.5. Entrevistas: devem apresentar o(s) nome(s) do(s)
entrevistado(s) como primeiro(s) autor(es), seguido pelo nome do(s)
entrevistador(es). Deve conter uma apresentação de cerca de 500
palavras. As submissões devem ser acompanhadas da autorização do(s)
entrevistado(s), concordando com a publicação do trabalho. Não devem
exceder 12.000 palavras.
1.6 Ensaios etnofotográficos: ensaios visuais contendo entre 6 e
12 imagens, p&b ou coloridas, com resolução a partir de 300 dpi.
Legendas são opcionais. Os ensaios devem ser acompanhados de uma
apresentação com até 2.000 palavras e as devidas autorizações de uso
de imagem.
2. Todas as submissões indexadas, com exceção das resenhas, precisam
ser acompanhadas por três elementos: título, resumo e palavraschave, todos apresentados em português e em inglês, dispostos na
primeira página do material. O resumo deve conter entre 100 e
150 palavras. A lista de palavras-chave deve conter entre três
e cinco descritores, separados por ponto-e-vírgula. Recomendase a utilização do Thesaurus UNESCO ou ERIC para definição dos
descritores.
3. São aceitas submissões em fluxo contínuo e mediante chamadas
específicas.
4. A pertinência para publicação será avaliada pela Comissão
Editorial, no que diz respeito à adequação ao perfil e linha
editorial da CAMPOS – Revista de Antropologia (desk review), e por
pareceristas ad hoc em regime de duplo-cego (double blind review),
no que diz respeito ao conteúdo e qualidade das contribuições.
5. As submissões devem ser encaminhadas exclusivamente via SER UFPR. Os textos devem ser submetidos em formato .DOC (não serão
admitidas submissões em PDF). A primeira versão do texto deve ser
submetida sem quaisquer marcas de identificação de autoria (isto é,
sem nome e informações institucionais, agradecimentos, vinculação
do artigo a projetos de pesquisa e financiamentos), assegurando a
avaliação por pares cega. Pela mesma razão, os trabalhos de própria
autoria eventualmente citados no manuscrito devem ser substituídos
pela seguinte notação: Autor/a, ano.
6. Durante a submissão os autores deverão registrar na plataforma os
seguintes metadados: nome completo; ORCID ID, filiação institucional
(nome da instituição por extenso), país, resumo da biografia
(titulação máxima), título da submissão em português, resumo em
português, área de conhecimento, palavras-chave, idioma e, se for
o caso, agência de financiamento da pesquisa. Também se solicita
a inclusão das referências bibliográficas (com doi, sempre que
disponível) no respectivo campo da plataforma OJS, que hospeda a
revista.
7. Imagens (em formato JPG, TIFF ou GIF) devem sempre ser
encaminhadas como documentos suplementares, uma a uma, com resolução
mínima de 300dpi. O texto principal deve apresentar indicação do
ponto da inserção das imagens. No texto, todas as figuras devem ser
numeradas e tituladas corretamente, incluindo a devida fonte da
imagem e, quando cabível, autorização para sua reprodução.
8. Os textos deverão ser formatados considerando os seguintes
parâmetros: tamanho A4; margens de 3 cm; fonte Times New Roman,
corpo 12; espaçamento entrelinhas 1,5; espaçamento entre parágrafos
0; alinhamento justificado; recuo especial na primeira linha 1,25.
Citações superiores a três linhas devem aparecer em parágrafo
próprio, com recuo de quatro centímetros, fonte Times New Roman,
corpo 11, espaçamento entrelinhas 1,0.
9. Deve-se reservar o recurso das notas para esclarecimentos e
adendos substantivos ao texto. O uso de notas meramente referenciais
deve ser evitado, devendo a remissão à bibliografia ser inserida
diretamente no corpo do texto com o seguinte formato: sobrenome
do autor/vírgula/ano de publicação/dois pontos/página, conforme
exemplo: (Sahlins, 1995:43-47). Recomenda-se que as notas não
ultrapassem a extensão de 500 caracteres com espaço.
10. O uso do itálico deve ser reservado a palavras estrangeiras,
termos nativos e títulos de obras citadas no corpo do texto.
Negritos e sublinhados não devem ser utilizados no corpo do texto.
11. A partir de 2021 a Campos passou a adotar o estilo de referência
da American Psychological Association (APA) - 6a. ed . Dispostas em
ordem alfabética no final do trabalho, as referências devem respeitar
(com especial atenção ao uso de maiúsculas, itálico, pontuação e
ordem de elementos) o formato que aparece nos seguintes exemplos:
-------------------------------a) livro
Único autor: Dumont, L. (1966). Homo hierarchicus: le système des
castes et ses implications. Paris: Gallimard.
Dois ou mais autores: Comaroff, J. & Comaroff. J. (1992).
Ethnography And The Historical Imagination. Colorado: Westview
Press.
b) coletânea na íntegra
Overing, J. (ed). (1985). Reason and Morality. London & New yoik:
Tavistock Publications.
c) capítulo de livro
Strathern, M. (1980). No nature, no culture: the Hagen case. In: C.
MacCormack & M. Strathern (eds). Nature, culture and gender (pp. 174
- 222). Cambridge: Cambridge University Press.
d) artigo em periódico
Herzfeld, M. (2019). What is a polity? 2018 Lewis H. Morgan Lecture.
HAU: Journal of Ethnographic Theory, 9(1), 23–35. http://dx.doi.
org/10.1086/703684
e) tese acadêmica
Garcia Jr, A. R. (1983). O Sul: Caminho do Roçado - Estratégias de
Reprodução Camponesa e Transformação Social (Tese de Doutorado).
Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro.
-------------------------------12. Direitos Autorais para artigos publicados nesta revista são do
autor, com direitos de primeira publicação para a revista. Qualquer
reprodução em outros veículos, desde que autorizados pelos/as
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13. As afirmações e conceitos emitidos em artigos assinados são de
absoluta responsabilidade dos seus autores.
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