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A natureza do valor desejado na habitação social The nature of desired value in social housing Ariovaldo Denis Granja Departamento de Arquitetura e Construção Universidade Estadual de Campinas Av. Albert Einsten, 951, Cidade Universitária Zeferino Vaz, Barão Geraldo Campinas – SP - Brasil CEP 13083-852 Tel.: (19) 3788-2082 E-mail: adgranja@fec.unicamp.br Doris Catharine Cornelie Knatz Kowaltowski Departamento de Arquitetura e Construção E-mail: doris@fec.unicamp.br Silvia Aparecida Mikami Gonçalves Pina Departamento de Arquitetura e Construção E-mail: smikami@fec.unicamp.br Patrícia Stella Pucharelli Fontanini Departamento de Arquitetura e Construção E-mail: pspucha@terra.com.br Lia Affonso Ferreira Barros Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo Rua Boa Vista, 170 - 6º andar, Bl. 2, Centro, São Paulo – SP – Brasil CEP 01014-000 Tel.: (11) 2505-2668 E-mail: lbarros@cdhu.sp.gov.br Dina De Paoli Departamento de Arquitetura e Construção E-mail: dinapilomia@hotmail.com Ana Mitsuko Jacomit Departamento de Arquitetura e Construção E-mail: anamjacomit@gmail.com Rafaela Massei Rodrigues Maçans Departamento de Arquitetura e Construção E-mail: rmacans@hotmail.com Recebido em 30/01/09 Aceito em 22/03/09 Ariovaldo Denis Granja Doris Catharine Cornelie Knatz Kowaltowski Silvia Aparecida Mikami Gonçalves Pina Patrícia Stella Pucharelli Fontanini Lia Affonso Ferreira Barros Dina De Paoli Ana Mitsuko Jacomit Rafaela Massei Rodrigues Maçans Resumo umentar a qualidade e a entrega de valor no ambiente construído pressupõe um processo contínuo de aperfeiçoamento para a presença efetiva de benefícios aos ocupantes. Este artigo apresenta um estudo sobre a natureza do valor desejado de usuários de conjuntos habitacionais de interesse social, que adota como referencia sua natureza subjetiva e multidimensional na percepção do morador. O objetivo da pesquisa é verificar a potencialidade do conceito de valor desejado para a introdução de melhorias nos projetos habitacionais. No método de pesquisa foram utilizadas a técnica de pesquisa declarada com cartões ilustrados e entrevistas semi-estruturadas sobre questões socioeconômicas como instrumentos de coleta de dados. A amostra consistiu de 195 respondentes em quatro conjuntos habitacionais na região de Campinas, SP. Seguiram-se inferências estatísticas com base em intervalos de confiança para a determinação da importância dos itens de valor e análise de conglomerados para se determinarem as associações entre os itens em grupos maiores. O resultado do estudo evidenciou a prioridade do item segurança para agregação de valor, seguido da convivência com a natureza, gastos operacionais menores e diminuição de nível de ruído. A Palavras-chave: Valor desejado. Habitação de interesse social. Geração de valor. Percepção de valor. Entrega de valor. Satisfação do usuário. Abstract Improving quality and adding value to the built environment depends on a continuous improvement process that effectively provides benefits to the users. This paper describes a study on the nature of desired values of families living in social housing projects. It considers the subjective and multidimensional nature of desired value as perceived by users. The study aimed to investigate the use of the concept of desired value for improving social housing. In the research method, the stated preference technique with illustrated cards, and semi-structured interviews were used as data collection instruments. The sample consisted of 195 people from 4 projects in the region of Campinas, SP. Statistical inferences were obtained based on bootstrap confidence values and cluster analysis to assess added value and specific associations between separate items of value. Results indicated that the item safety was a priority in terms of value adding, followed by closeness to nature, low housing maintenance costs, and less noise disturbances. Keywords: Desired value. Social housing. Value generation. Value perception. Value delivery. End-users satisfaction. Ambiente Construído, Porto Alegre, v. 9, n. 2, p. 87-103, abr./jun. 2009. ISSN 1678-8621 © 2005, Associação Nacional de Tecnologia do Ambiente Construído. Todos os direitos reservados. 87 Introdução Diversos estudos vêm sendo desenvolvidos visando melhorar a qualidade de empreendimentos habitacionais de interesse social (EHIS). O conceito de valor está bastante presente nesses estudos, e nas discussões sobre o processo de projeto em arquitetura a sua natureza multidimensional e subjetiva extrapola a dimensão meramente econômica (LE DANTEC; DO, 2009). Na busca da qualidade, vários estudos identificam elementos que caracterizam a satisfação pósocupacional de usuários (OLIVEIRA, 1998; ORNSTEIN; ROMÉRO, 1992; VIANNA; ROMÉRO, 2002). Estudos de avaliação pósocupação (APO) têm como um de seus objetivos retroalimentar projetos com o intuito de diminuir a recorrência de erros. Para atingir os seus objetivos, estudos de APO devem incluir, além da apuração dos índices de satisfação, avaliações técnicas dos empreendimentos. Dessa forma, estabelece-se um vínculo entre a percepção do usuário e a qualidade do projeto e da construção (KOWALTOWSKI et al., 2006a). Estudos de APO em EHIS no Brasil geralmente evidenciam níveis elevados de satisfação de seus usuários (KOWALTOWSKI et al., 2006b). Uma possível justificativa é a situação precária de moradia anterior dessas famílias. Nessas condições, valores elevados de aluguel são cobrados em troca de moradias de baixa qualidade. Também são freqüentes situações de casas em áreas de risco, favelas ou loteamentos clandestinos. Muitas famílias moram em espaços cedidos por parentes, e assim o acesso da família a um EHIS assegura a legalização da sua propriedade e garante um endereço que representa um primeiro contato com a cidadania. É plausível inferir-se que esses altos níveis de satisfação global obtidos em muitos estudos de APO em EHIS brasileiros se devem a essa situação contextual. Portanto, o indicador satisfação do usuário deve ser utilizado com reserva em questões relacionadas à habitação de interesse social (KOWALTOWSKI et al., 2006b). Em relação ao conceito de valor, Miron (2008) procura estabelecer a relação entre os conceitos de valor e de satisfação para o cliente com base na literatura proveniente da área de marketing. Toma como base o modelo de desconfirmação (OLIVER, 1980) para explicar o processo de formação da satisfação do cliente. Nessa análise infere que os julgamentos de satisfação parecem sofrer influência do valor percebido pelo cliente, tanto na situação de pré-compra (valor desejado) quanto na situação de pós-compra (valor recebido). Sob esse raciocínio, Miron (2008) estabelece uma 88 diferenciação sutil entre os conceitos de valor e satisfação. Assim, o valor percebido está relacionado com a ponderação (trade-off) entre os benefícios recebidos e os sacrifícios exigidos, ao passo que a satisfação global tem orientação psicológica, com base no resultado entre o processo de compra e o de consumo. Adicionalmente, há evidências na literatura de diferenças decorrentes da mensuração entre satisfação e valor percebido por clientes (WOODRUFF; SHUMANN; GARDIAL, 1993). A idealização desta pesquisa tem como objetivo verificar a potencialidade do conceito de valor desejado para a introdução de melhorias em projetos habitacionais, visando ao aumento de qualidade em EHIS. Adicionalmente, o estudo contribui para um melhor entendimento da relação do homem com o seu ambiente construído, a partir da própria visão dos moradores desse tipo de empreendimento. Assim, a presente pesquisa complementa os estudos disponíveis no Brasil sobre avaliação de satisfação de moradores em EHIS e alguns trabalhos com base na percepção de valor com foco no setor privado (PANDOLFO et al., 2007). O estudo está limitado a uma tipologia específica de (EHIS) da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU) e oferece inferências estatísticas sobre o valor desejado de moradores de uma tipologia específica de EHIS da CDHU, com base na técnica de preferência declarada (PD) com o uso de cartões ilustrados. Propõe-se que a percepção do valor desejado pelos próprios moradores de EHIS pode atuar como um estímulo para desencadear mudanças em projetos de habitação de interesse social no país. Adicionalmente, os resultados desta pesquisa também podem apoiar eventuais políticas públicas, visando à criação e entrega de valor nesse tipo de produto. Conceitos gerais sobre percepção de valor Pesquisas sobre percepção de valor pelos clientes têm ganhado importância. A Associação Americana de Marketing revisou recentemente a sua definição com base na noção de valor para o cliente. Debates sobre a lógica dominante na área sugerem que a percepção de valor pelos clientes é de importância central (JIA; ZHANG, 2008). Adicionalmente, os proponentes da mentalidade enxuta (lean thinking) a preconizam como um de seus princípios fundamentais (WOMACK; JONES, 1996). Granja, A. D.; Kowaltowski, D. C. C. K.; Pina, S. A. M, G.; Fontanini, P. S. P.; Barros, L. A. F.; Paoli, D. De; Jacomit, A. M.; Maçans, R. M. R. Não obstante as discussões sobre o conceito de valor se darem em diferentes frentes, a literatura da área de marketing parece sinalizar um consenso sobre a sua definição. Assim, a percepção de valor pelo cliente é vista como uma ponderação (tradeoff) entre os benefícios recebidos pela aquisição do produto ou serviço e os sacrifícios percebidos ao se confrontar o preço destes (MONROE, 1990). Postula-se ainda que esse compromisso entre benefícios e sacrifícios é subjetivo, está relacionado com as ofertas competitivas disponíveis e tem conotação dinâmica (WOODRUFF, 1997). Segundo Woodruff (1997), o cliente idealiza o seu desejo de valor, isto é, o valor por ele esperado no produto ou serviço tanto anteriormente à aquisição quanto posteriormente, já na etapa de uso. Clientes pensam concretamente sobre valor na forma de atributos preferenciais e de desempenho de atributos, juntamente com as conseqüências de se avaliar um produto numa situação de uso. Além disso, clientes formam julgamentos de valor ou sentimentos sobre a experiência concreta de se utilizar o produto, ou seja, a sensação de valor recebido. No momento da escolha, os clientes podem antecipar o valor recebido, porém apenas no momento do uso vivenciarão concretamente o valor recebido (WOODRUFF, 1997). Operacionalmente, são realizadas tentativas de se quantificar valor por meio de desejos com base em atributos, ou preferências, que influenciam a aquisição de um produto ou serviço. Por exemplo, pesquisas com grupos de foco são amplamente utilizadas por empresas para a detecção de atributos desejados pelos seus clientes, ou as suas preferências, ou ainda a determinação de aspectos categóricos para a aquisição dos seus produtos, tais como qualidade do produto e entrega no prazo desejado (GALE, 1996). De maneira similar, pesquisas de satisfação tipicamente buscam respostas de clientes para as questões relacionadas à marca ou empresa sobre os atributos que influenciam as decisões de compra. No entanto, essa visão simplista pode restringir as inúmeras gradações existentes sobre a percepção de valor de clientes (WOODRUFF, 1997). Nesta pesquisa é adotada em seu bojo a percepção de valor desejado por moradores de conjuntos habitacionais de interesse social (CHIS). Nessa situação, o desejo de valor antes do recebimento do produto é elevado, porém a própria concepção dos moradores sobre atributos preferenciais não é contemplada, uma vez que o usuário não participa do processo de projeto e construção desse tipo de produto. Dessa forma, o valor desejado aos olhos do usuário não é a base principal no processo de concepção do empreendimento. Portanto, falta um procedimento para que o valor recebido seja próximo ao valor desejado pelo usuário. Parece ser notadamente o caso no ambiente de habitação de interesse social, onde o espectro de escolhas é praticamente inexistente e não há a influência exercida por marcas ou empresas. Fundamentação teórica da pesquisa O conceito de valor na construção civil remonta à Antiguidade. No primeiro século a.C., Vitruvius 1 postulou que uma construção, para ser considerada arquitetura, deveria incorporar três elementos: firmitas, utilitas e venustas. No último século, esses três elementos de valor foram expandidos na literatura de arquitetura, com atenção especial à relação do homem com o ambiente construído. Diversas diretrizes, com base no conceito de valor, especialmente para projetos residenciais, foram propostas na literatura (CARMONA 2001; MACMILLAN, 2006; SAXON, 2005). Hershberger (1999) expandiu os três princípios originais da arquitetura para oito elementos de valor, apresentados no Quadro 1. Esses oito elementos detalhados em seus atributos são a base recomendada para o processo de projeto arquitetônico, especialmente na sua fase de definição do programa de necessidades. Valores se constituem em elementos-chave que todo projeto de edificação deveria considerar, à semelhança da teoria da hierarquia de necessidades de Abraham Maslow (1998). Benedikt (2008), por sua vez, amplia e adapta essas necessidades com foco específico na arquitetura 2 , quais sejam: sobrevivência, segurança, legitimidade, aprovação, confiança, e liberdade. Adicionalmente, argumenta que o conceito de valor em arquitetura vai além da incorporação mínima ou óbvia dessas necessidades. 1 Marcus Vitruvius Pollio deixou como legado a obra De Architectura (aprox. 40 a.C.), que apresenta os três princípios essenciais para a arquitetura: firmitas (solidez), utilitas (utilidade) e venustas (estética). 2 Benedikt (2008) discute detalhadamente essas necessidades, que, em sua visão, têm o seguinte sentido: sobrevivência (desempenho estrutural, proteção contra intempéries e efeitos climáticos, animais, projéteis); segurança (proteção contra intrusão, contra confisco de propriedade, privacidade e controle de espaços – não apenas a aderência a essa necessidade, mas também a sua garantia plena); legitimidade (proclamação de identidade social, determinação de autoridade, exigir direito de propriedade, distinção consideração especial às pessoas, associação a diferentes instituições e grupos); aprovação, louvor (legais e valores positivos – estéticos, sociais, econômicos, integração com a vizinhança, promover o belo, a saúde e a valorização dos ocupantes); confiança (espontaneidade, novas formas, segurança nos propósitos, elã, substituir menos por mais valor); e liberdade (de deslocamento, opinião, espaço, flexibilidade, de exclusão e privacidade). A natureza do valor desejado na habitação social 89 Na visão de Benedikt (2008), os valores aliam necessidades cuja resposta traz satisfação em nível mais elevado por meio de escolhas conscientes e aderentes à garantia da qualidade e às edificações bem projetadas. Sua teoria unifica aspectos éticos, estéticos e econômicos para a incorporação de valor em produtos da construção civil e apresenta o caminho para a sua implantação por meio de: (a) convencimento pelo exemplo; e (b) encorajamento e o que ele chama de adulação (flattery), relacionada ao compromisso e à consciência e formação do arquiteto 3 . Na revisão de literatura realizada, autores como Carmona (2001), Saxon (2005) e Spencer e Winch (2002), entre outros, discutem a aplicação do conceito de valor na etapa de concepção de edificações. Esses trabalhos são importantes no sentido de se alcançar a necessária abstração e adaptação de conceitos provenientes de outras áreas do conhecimento e contextos (LILLRANK, 1995) e também abrem possibilidades para a sua operacionalização na habitação de interesse social. Aderente a esse arcabouço teórico, a presente pesquisa adota como essência a humanização e a socialização do processo de entrega de valor em habitação de interesse social. Método de pesquisa A investigação sobre o valor desejado de EHIS da CDHU foi realizada em três conjuntos habitacionais de interesse social (CHIS) na região de Campinas, SP, e um na cidade de Valinhos, SP, município este vizinho à cidade de Campinas. A tipologia de empreendimento escolhida foi a mesma nos quatro casos analisados, a saber, conjuntos habitacionais de interesse social e tipologia específica de edificações verticais sem elevador (formato “H”). A disposição dos prédios nesses conjuntos tem como base a repetição do mesmo modelo de forma principalmente ortogonal (Figura 1). Dimensionamento da amostra O dimensionamento da amostra foi realizado com base em Hair Junior et al. (1995). O universo da pesquisa é composto de moradores dos quatro CHIS anteriormente descritos. O cálculo (Equação 1) para a determinação do tamanho da amostra n foi baseado nos seguintes parâmetros: Z = 1,96, 3 Em essência, Benedikt (2008) discorre simbólica e ironicamente sobre a relação de adulação (flattery) comum entre arquitetos e seus clientes. Em sua visão, arquitetos que não adotam esse estratagema correm dois riscos: o de serem ignorados ou o de serem taxados de prima donnas arrogantes. 90 que corresponde ao número de desvios padrão da distribuição normal com base no nível de significância adotado de 95%; N , o tamanho do universo estudado de 4.540 unidades habitacionais; ε = 7%, correspondente ao erro máximo aceitável de estimação; e p = 50%, considerando-se que não existem estimativas anteriores de nenhum dos atributos de valor selecionados. n= Z 2 . p.(1 − p).N (1) ( N − 1).ε 2 + [ Z 2 . p.(1 − p)] Da aplicação desses parâmetros na Equação 1 obteve-se o número de 188 entrevistas necessárias do universo total de 4.540 unidades habitacionais. Após a verificação de integridade de dados, foram analisadas efetivamente 195 entrevistas, cujos respondentes habitavam unidades residenciais diferentes (Tabela 1). Técnica de preferência declarada A técnica de preferência declarada (PD) consiste em apresentar diversas alternativas aos respondentes para que uma seja escolhida, e a opção do respondente indica a sua escolha preferida de atributos em relação às demais alternativas (BRANDLI; HEINECK, 2005). Dessa maneira, alternativas de diversos atributos podem ser classificadas, ou subclassificações podem ser identificadas. Essa técnica destina-se a investigar um objeto de estudo como ele poderia ser. No presente estudo, a questão que se coloca por meio da PD é como esse tipo específico de EHIS da CDHU poderia ser, ou como deveria ser. A técnica de PD também pode explicitar uma estratégia de classificação ou hierarquização de preferências (MORIKAWA, 1989). Algumas críticas são encontradas na literatura na adoção de PD. Brandli e Heineck (2005) apontam como um dos problemas o caráter hipotético das questões em PD. Assim, a resposta dos respondentes se baseia em escolha hipotética deles no momento da entrevista, que pode ocasionar divergência se a escolha fosse realizada numa situação real. Adotou-se nesta pesquisa o roteiro de montagem da técnica de PD proposta por Brandli e Heineck (2004), a saber: (a) estruturação para identificação dos atributos mais relevantes a serem incorporados na pesquisa de campo; (b) a aplicação com etapa prévia de pré-teste; e Granja, A. D.; Kowaltowski, D. C. C. K.; Pina, S. A. M, G.; Fontanini, P. S. P.; Barros, L. A. F.; Paoli, D. De; Jacomit, A. M.; Maçans, R. M. R. (c) a análise e interpretação dos dados. Como ponto de partida para a estruturação da pesquisa, e em se tratando de escolhas no contexto habitacional, adotou-se o modelo de valor com quatro atributos-chave propostos por Spencer e Winch (2002), quais sejam: valor financeiro, qualidade do ambiente interno, simbolismo e qualidade espacial. Essa etapa objetivou definir como ponto de partida os atributos de valor mais relevantes para a pesquisa, na forma de critérios, tendo em vista o grande número de variáveis nesse contexto, e facilitar a montagem do estudo de PD. Foi realizado um pré-teste, que avaliou a facilidade de compreensão do instrumento de coleta de dados utilizado, tendo como conseqüência a obtenção de resultados e inferências iniciais. Detectou-se a necessidade de adequações ao modelo de valor de Spencer e Winch (2002), tendo em vista os resultados preliminares obtidos e estudos prévios de APO disponíveis nesse mesmo contexto Valores Humanos Ambientais Culturais Tecnológicos Temporais Econômicos Estéticos Segurança (KOWALTOWSKI et al., 2006b; KOWALTOWSKI et al., 2006c). O modelo de valor adaptado resultante do pré-teste e dos estudos prévios de APO está apresentado na Figura 2. Após o pré-teste, refletiu-se sobre o modelo de coleta de dados a ser utilizado junto aos moradores dos CHIS selecionados. Como a técnica de PD apresenta situações hipotéticas aos respondentes, ponderou-se sobre as barreiras e limitações de se empregarem questionários convencionais e longos nesse contexto. Um dos objetivos desta pesquisa é a obtenção de preferências de valor desejado no produto já em uso, e, portanto, adotou-se um instrumento para entendimento e coleta rápida dos dados, de maneira a hierarquizar os atributos de forma eficiente. Para tanto foi desenvolvido um instrumento específico, na forma de cartões ilustrados, para a coleta de dados junto aos moradores. Características Atividades funcionais e necessidades dos usuários; relações sociais a serem mantidas; características físicas e necessidades dos usuários; características fisiológicas e necessidades dos usuários; características psicológicas e necessidades dos usuários Terreno e vistas; clima; contexto urbano; recursos naturais; resíduos Histórico; institucional; político; legal Materiais; sistemas estruturais; processos construtivos e de concepção da forma Crescimento; mudança; permanência Financeiros; construção; operação; manutenção; energia Forma; espaço; significado Estrutura; incêndio; químico; pessoal; criminoso (vandalismo) Fonte: Hershberger (1999) Quadro 1 – Valores contemporâneos que dão origem aos tópicos de projeto Figura 1 – Tipologia específica do EHIS da CDHU estudada Conjuntos habitacionais da CDHU analisados Campinas F Campinas E Valinhos Recanto Fortuna Total Número de unidades habitacionais por conjunto 1.160 3.140 80 160 4.540 Porcentagem de cada conjunto no universo amostral (%) 25,5 69,2 1,8 3,5 100 Número de entrevistas realizadas Número de entrevistas efetivamente analisado * 56 127 8 8 199 50 130 8 7 195 * Após uma primeira verificação dos dados em relação à sua integridade (dados completos), foram descartados alguns deles, porém as entrevistas analisadas se mantiveram acima do número mínimo de 188. Tabela 1 – Dados do campo empírico de análise, número realizado e efetivamente analisado de entrevistas A natureza do valor desejado na habitação social 91 Fonte: Adaptado de Spencer e Winch (2002) Figura 2 – Modelo de valor utilizado na pesquisa Instrumento de coleta de dados – entrevista socioeconômica e cartões ilustrados Para a obtenção de dados socioeconômicos dos moradores foi desenvolvido um roteiro de entrevista semi-estruturada. Como informações principais a serem coletadas destacam-se dados sociais relativos à composição da família ocupante da unidade, bem como dados relativos à sua situação econômica e de trabalho. Essas informações foram registradas por meio de entrevista semi-estruturada junto aos respondentes. Tendo em vista o contexto de aplicação, decidiu-se pelo desenvolvimento de cartões ilustrados como instrumento de coleta de atributos preferenciais de valor, seguindo o modelo apresentado na Figura 2. Experiências anteriores de APO com questionários ilustrados atestaram a efetividade desse tipo de instrumento (KOWALTOWSKI et al., 2001; KOWALTOWSKI et al., 2002). Os cartões foram concebidos à semelhança das cartas de um baralho. Conforme a Figura 2, há quatro quadrantes de valor no modelo adotado e respectivos detalhamentos em itens. Esses itens receberam algumas adaptações no momento do desenvolvimento dos cartões ilustrados, visando à maior compreensão de termos pelos respondentes. Dessa forma, a definição dos critérios da pesquisa de campo segue principalmente a base conceitual dos trabalhos de Benedikt (2008) e Spencer e Winch (2002), tendo a inserção da realidade local nesse arcabouço como base Kowaltowski et al. 92 (2006b, 2006c). Os quadrantes do modelo são representados pelas seguintes categorias: perspectiva financeira, qualidade espacial, qualidade do ambiente interno e percepções socioculturais – este último se subdividindo em percepções socioespaciais e valores culturais (Quadro 2). Assim, há cinco categorias distintas de cartões (naipes). A categoria percepção socioespacial recebeu seis itens de valor, enquanto as quatro restantes receberam cinco itens. Portanto, totalizaram-se vinte e seis cartões ilustrados. Cada categoria (naipe) recebeu uma cor específica e foi complementada pelos itens de valor de forma mais detalhada para que os respondentes pudessem entender e terem condições de hierarquizar as alternativas que teriam à disposição. Dois cartões correspondentes à categoria perspectiva financeira estão exemplificados na Figura 3. Adicionalmente, cada cartão recebeu uma ilustração alusiva ao seu significado, de forma a permitir o entendimento espontâneo do entrevistado 4 . 4 Houve preocupação da equipe do projeto de que eventualmente essas ilustrações pudessem influenciar a escolha dos respondentes. Por isso, as ilustrações utilizadas foram simples, não obstante coloridas, de modo a evidenciar apenas o significado da mensagem. Além disso, no pré-teste validou-se a compreensão dos respondentes utilizando-se cartões com e sem as ilustrações, juntamente com o questionário de avaliação para comparação. O resultado do pré-teste indicou que as ilustrações facilitavam a compreensão e não interferiam nem influenciavam as escolhas dos respondentes. Granja, A. D.; Kowaltowski, D. C. C. K.; Pina, S. A. M, G.; Fontanini, P. S. P.; Barros, L. A. F.; Paoli, D. De; Jacomit, A. M.; Maçans, R. M. R. Figura 3 – Exemplos de dois cartões da categoria perspectiva financeira utilizados nas entrevistas de preferência declarada PERSPECTIVA FINANCEIRA (5 itens) Gastar menos com prestações/financiamento/aluguel Gastar menos com consertos, reparos e reformas Ter oportunidade de negócios Gastar menos com as contas de condomínio, água, luz, gás Gastar menos com transportes PERCEPÇÕES SOCIOESPACIAIS (6 itens) Segurança O lugar Privacidade Aparência do conjunto habitacional (fachadas, limpeza, cores, telhados, janelas, pisos, revestimentos, cor) Áreas comuns (centro comunitário, quadras, parque de diversões) Local para guardar o carro VALORES CULTURAIS (5 itens) Natureza (áreas verdes, árvores, flores) Edifícios com aparência de casas Edifícios com aparências variadas Conjuntos menores com menor número de prédios Elementos decorativos QUALIDADE DO AMBIENTE INTERNO (5 itens) Iluminação dentro do apartamento Acústica do apartamento (evitar barulhos de fora, de vizinhos e entre cômodos) Tamanho e localização das portas e janelas Qualidade (pisos azulejos, vedação, pintura, esquadrias, hidráulica e elétrica) Temperatura dentro do apartamento QUALIDADE ESPACIAL (5 itens) Novos espaços (varanda, quintal, jardim) Tamanho dos cômodos Apartamento com área maior Mais cômodos no apartamento Disposição dos cômodos dentro do apartamento (localização de cada cômodo no apartamento) RÓTULO V1 V2 V3 V4 V5 RÓTULO L1 L2 L3 L4 L5 L6 RÓTULO A1 A2 A3 A4 A5 RÓTULO Az1 Az2 Az3 Az4 Az5 RÓTULO R1 R2 R3 R4 R5 Quadro 2 – Esquema da folha de coleta de dados para registro das preferências dos respondentes – Categorias (naipes) e itens A natureza do valor desejado na habitação social 93 Para que os avaliadores registrassem as preferências dos respondentes, concebeu-se uma folha de coleta de dados para registro das preferências durante a aplicação dos cartões ilustrados junto aos respondentes. A estrutura da folha de coleta de dados 5 para as entrevistas com os cartões ilustrados pode ser vista no Quadro 2. Schmitz (2001) apresenta algumas das formas para se obter a preferência em entrevistas face-a-face, que pode ser a apresentação de um conjunto de escolhas aos respondentes para que sejam ranqueadas ou apenas selecionadas dentro de um bloco único de alternativas, ou ainda na forma de stated choice, em que a escolha preferencial se dá em vários blocos. A presente pesquisa utilizou ambas as formas, em momentos diferentes da entrevista, com os cartões ilustrados. Os autores, junto com alunos pesquisadores que compuseram esse grupo de estudo, se dirigiam normalmente em duplas para realizar a entrevista. Iniciava-se pelas perguntas socioeconômicas. Após essa etapa partia-se para a aplicação da verificação empírica de preferências com os 26 cartões ilustrados. No primeiro ciclo, conduziam-se cinco rodadas, uma para cada categoria, de forma que o entrevistado hierarquizasse (ranqueasse) as suas preferências dos itens que compõem cada categoria (Quadro 2). Um último ciclo era realizado de forma a selecionar apenas as primeiras escolhas (prioridades) de cada categoria. Assim, no último ciclo o entrevistado era solicitado a hierarquizar as cinco escolhas prioritárias de cada categoria, escolhidas no ciclo anterior. Para isso foi utilizada a análise de conglomerados (cluster) (MINGOTI, 2007). Criou-se uma variável nomeada índice geral de importância (IGI). O IGI destina-se a aferir a importância de cada item dentro de sua respectiva categoria e a captar os resíduos de intenções de escolha que possam estar presentes nas alternativas de menor prioridade na visão dos respondentes. O IGI foi estabelecido com base na freqüência com que os itens foram selecionados como primeira, segunda, terceira, quarta e quinta escolhas pelos respondentes. Note-se que há a exceção da categoria socioespacial, que é composta de seis itens. Assim, as freqüências foram ponderadas em 5, 4, 3, 2 e 1 para as categorias com cinco itens. Para os cartões da categoria socioespacial com seis itens, a ponderação utilizada foi 5, 4,2, 3,6, 2,6, 1,8 e 1. A ponderação para a categoria socioespacial foi feita para que a primeira opção pelos respondentes tivesse o mesmo nível de importância em relação às categorias compostas de cinco itens. Resultados e discussão Análise e interpretação dos dados A amostra analisada consistiu de 195 respondentes na condição de moradores de CHIS da CDHU na região de Campinas, SP. Mais detalhes sobre o número de respondentes em cada CHIS estão na Tabela 1. Na seqüência apresenta-se um padrão de inferência em todas as cinco categorias de valor, bem como uma análise final com todos os itens das categorias juntos. São analisados os resultados com base no IGI nos intervalos de confiança bootstrap. Para a análise e interpretação dos dados obtidos utilizou-se inferência estatística (ANSELMO; MAIA, 2008). A inferência estatística permite produzir afirmações sobre a amostra do universo estudado. O programa utilizado foi o R-project versão 2.8.0. O nível de significância adotado nos testes foi de 5%. A análise foi dividida em duas classes, a saber: Após a apresentação de resultados da análise estatística das cinco categorias isoladamente, mostram-se os resultados provenientes de todas as categorias juntas, bem como uma discussão e inferências obtidas. Por fim, apresentam-se os resultados provenientes da análise de conglomerados (clusters) como forma de se analisar a similaridade de grupos de itens entre si. (a) para a avaliação da importância dos itens dentro de cada categoria foram utilizados intervalos de confiança bootstrap com correção de Bonferroni; e Perspectiva financeira (b) foi realizada a avaliação de comportamento para se analisar quais itens se relacionam entre si. 5 Os textos dos itens que compõem cada categoria nas cartas foram preservados aqui em sua forma original, pois eles foram selecionados de forma a possibilitar a compreensão de leigos no momento das entrevistas. Portanto, há pequenas adaptações textuais e de conteúdo em relação ao modelo da Figura 1. Os rótulos atribuídos a cada item serão utilizados posteriormente a partir da seção análise de conglomerados (clusters). 94 A Figura 4 mostra os intervalos de confiança bootstrap. O número total de comparações possível é c = 10. Assim, cada intervalo foi construído com 99,5% (5% em 10) utilizando-se a correção de Bonferroni. Não havendo sobreposição entre os intervalos, interpreta-se que há diferença estatística mínima de 5% entre eles. Observa-se que há sobreposição no IGI entre os itens “gastar menos com condomínio, água, luz e gás” e “gastar menos com prestações, Granja, A. D.; Kowaltowski, D. C. C. K.; Pina, S. A. M, G.; Fontanini, P. S. P.; Barros, L. A. F.; Paoli, D. De; Jacomit, A. M.; Maçans, R. M. R. financiamento e aluguel” quando se utilizam os intervalos de confiança. No entanto, esses dois se diferem dos demais itens. Assim, observam-se dois grupos, o primeiro com IGI entre 23,2% e 25,6%, e o segundo entre 15,5% e 18,2%. Percepções socioespaciais A Figura 5 apresenta os intervalos de confiança. Como nessa categoria há seis itens, o número total de comparações é c = 15. Assim, utilizando-se a correção de Bonferroni e fixando-se a significância em 5%, cada intervalo foi construído com 99,7%. Destaca-se a preferência dos respondentes para o item “segurança”, com IGI observado de 23,9%. Nessa categoria também há destaque para o item “privacidade”, com IGI de 18,8%. Não houve diferença estatística entre os itens “aparência do condomínio habitacional (fachadas, limpeza, cores, telhados, janelas, pisos, revestimentos, cor)”, “áreas comuns (centro comunitário, quadras, parque de diversões)” e “o lugar”, que apresentaram IGI entre 14,6% e 15,7%. A categoria “local para guardar o carro” foi a que apresentou menor preferência (IGI de 11,8%). entre cômodos)” e “qualidade (pisos, azulejos, vedação, pintura, esquadrias, hidráulica e elétrica)”; e o outro grupo composto dos itens remanescentes, sem grande diferenciação estatística. Ambos os grupos possuem baixa diferenciação quando analisados sob a perspectiva dos intervalos de confiança. Qualidade espacial Na análise do IGI observado nessa categoria há apenas a sugestão de que o item “disposição dos cômodos dentro do apartamento (localização de cada cômodo no apartamento)” é o de menor destaque na categoria, com IGI observado de 13,8% (Figura 8). Na análise dos intervalos de confiança, evidenciase um grupo com pouca diferenciação estatística composto dos itens “mais cômodos no apartamento”, IGI observado de 22,6%, “apartamento com área maior”, IGI de 21,8%, “tamanho dos cômodos”, IGI de 21,2%, e “novos espaços (varanda, quintal, jardim)”, IGI de 20,4%. A seguir apresentam-se as análises com base no IGI e nos intervalos de confiança considerando-se todas as categorias juntas. Valores culturais Quando se analisa o IGI observado, há destaque para o item natureza (28,0%). Não há diferença significativa entre os demais itens, com o IGI se estendendo de 21,3%, “edifícios com aparência de casas”, até 15,6%, “edifícios com aparências variadas” (Figura 6). Quando se analisam os índices de confiança, há destaque diferenciado para o item “natureza (áreas verdes, árvores, flores)”. O item “edifícios com aparência de casas” também aparece em destaque, diferenciando-se dos demais. Os demais itens apresentam uma maior sobreposição, portanto com menor diferenciação entre si. Qualidade do ambiente interno Na análise do IGI observado há destaque para os itens “acústica do apartamento (evitar barulho de fora, de vizinhos e entre cômodos)”, com IGI de 25,4%, e “qualidade (pisos, azulejos, vedação, pintura, esquadrias, hidráulica e elétrica)”, com 24,8%. Os demais itens permanecem numa faixa similar de preferência pelos respondentes, numa faixa de 16,3% a 17,2% (Figura 7). Analisando-se os intervalos de confiança, percebem-se dois grupos distintos: um deles formado pelos itens de destaque “acústica do apartamento (evitar barulho de fora, de vizinhos e Discussão de todas as categorias juntas Da análise do IGI dos 26 itens do modelo de valor adotado, novamente há destaque para o item “segurança”, com IGI observado de 16,5%, seguido dos itens “natureza (áreas verdes, árvores, flores)”, com 10,5%, “gastar menos com contas de condomínio, água, luz e gás”, com 9,6%, e “acústica do apartamento (evitar barulhos de fora, de vizinhos e entre cômodos)”, com 8,4%. Os demais itens, com os respectivos IGI observados, podem ser vistos na Figura 9. Como agora se tem os 26 itens juntos de todas as categorias, o número total de comparações possível é c = 325. Utilizando-se a correção de Bonferroni, cada intervalo individual foi construído com 99,98%. Dos resultados evidenciados pela Figura 10, houve diferença estatística destacada para o item “segurança”, que apresentou IGI igual a 16,5%. Os demais itens aparecem com índice entre 0,3% e 10,5% e se constituem num grupo com grande sobreposição. Estudos anteriores em APO com foco em satisfação realizados pelos autores no mesmo contexto (KOWALTOSKI et al., 2006b) apresentam corroborações e contrapontos com o presente estudo. O item “segurança” no referido A natureza do valor desejado na habitação social 95 estudo de APO mostrou opiniões positivas quando relacionado com a própria unidade residencial, porém mostrou julgamentos insatisfatórios quando referenciado ao ambiente externo e às vizinhanças do conjunto habitacional. Portanto, infere-se que o item “segurança” está diretamente relacionado à capacidade de controle pelo próprio usuário. Já na presente pesquisa o item “segurança” foi considerado prioritário entre os 26 itens analisados, mesmo em locais da amostra com baixos níveis de violência, como foi o caso do CHIS em Valinhos. Há que se refletir que numa sociedade com altas taxas de criminalidade a necessidade premente de se sentir seguro pode acarretar certo viés na percepção dos respondentes. No estudo de APO anterior, os respondentes relacionaram a vegetação com o aumento de conforto ambiental; ao mesmo tempo, a população avaliou negativamente a paisagem natural de seus CHIS. Adicionalmente, foram observadas poucas iniciativas da própria população no sentido de compensar essas carências, por exemplo, na forma de plantio de árvores e cuidados com as áreas abertas, entre outras. Na presente pesquisa corrobora-se a grande valorização de elementos naturais na implantação de CHIS (Figuras 9 e 10). O item “acústica” também se destacou no presente estudo. Infere-se que a população almeja viver com sossego, não obstante os padrões dinâmicos e ruidosos da sociedade nos tempos atuais. No estudo anterior de satisfação observou-se que a população tem pouco conhecimento sobre oportunidades de introdução de melhorias visando a maiores níveis no seu próprio conforto. Especificamente, o ruído representou ser um incômodo para a metade dos respondentes em estudos anteriores, notadamente ruídos emitidos por vizinhos, brincadeiras de crianças, entre outros, que causam constrangimentos e interferem na privacidade dos moradores. Novamente apurouse certo desalento dos respondentes sobre como se resolver essa questão por iniciativa própria. No caso específico do combate ao ruído, medidas no âmbito projetual são indicadas, tais como estanqueidade acústica de esquadrias, elevação do andar térreo, aumento de recuos, barreiras vegetais, entre outras. Com relação aos itens relacionados à estética, tanto do desenho urbano como da arquitetura propriamente dita, nota-se na presente pesquisa pouca priorização pela população. No entanto, os estudos anteriores de satisfação apuraram níveis elevados quanto a esse quesito. Uma possível explicação é que houve a necessidade de escolha hierárquica de itens de valor na presente pesquisa, enquanto nos estudos anteriores de satisfação apurou-se de maneira determinística e individual 96 cada fator, de maneira isolada. O ponto comum entre os dois métodos é a reflexão inevitável da situação atual em que o entrevistado se encontra com a importância ou o valor dado ao item em questão. A parte final da exposição de resultados apresenta as associações entre os itens em grupos maiores, por meio de análise de conglomerados (clusters). Essa técnica é exploratória por natureza e tem por objetivo dividir os itens da amostra em grupos, de forma que os itens pertencentes a um mesmo grupo sejam similares entre si com respeito às variáveis (características) que neles foram medidas, e os elementos em grupos diferentes sejam heterogêneos em relação a essas mesmas características. A variável em foco foi o IGI, e as características avaliadas foram as freqüências de cada um dos itens e suas respectivas escolhas em primeira, segunda, terceira, quarta e quinta opções (e até a sexta opção para o caso da categoria percepções socioespaciais). Para a análise de conglomerados, os gráficos obtidos foram os dendogramas. Foram construídos a partir de matrizes de distâncias obtidas para todos os possíveis pares de combinações de variáveis. A Figura 11 exibe dois dos métodos utilizados com o algoritmo da ligação média (average linkage), pois os mesmos representaram a maior parte da literatura investigada. A principal intenção da análise de conglomerados é obter um grau geral de classificação. A escolha da altura de corte é subjetiva e depende do propósito da investigação. A altura do corte foi obtida de maneira a se determinarem seis níveis. Nota-se a diferença nos dois últimos níveis conforme se considere o método euclidiano ou o Manhattan (Figura 12). No caso, procurou-se a aglomeração dos itens para uma eventual implantação gradual desses seis níveis nos projetos de CHIS da CDHU, apoiando uma possível iniciativa de política pública de entrega de valor nesse tipo específico de produto. Numa primeira reflexão, muitas oportunidades de melhorias existem nos projetos da CDHU que não implicariam custos de grande magnitude. Alguns desses itens podem ser realizados por meio de simples modificações projetuais. Outros exigirão alguma contrapartida financeira. Existe ainda a possibilidade de iniciativas colaborativas para a criação e fortalecimento do vínculo dos moradores e o seu novo ambiente habitacional, proporcionando também maior conhecimento dos aspectos materiais e construtivos, e da vida em coletividade. Dessa maneira, a configuração arquitetônica deve contribuir no apoio das ações Granja, A. D.; Kowaltowski, D. C. C. K.; Pina, S. A. M, G.; Fontanini, P. S. P.; Barros, L. A. F.; Paoli, D. De; Jacomit, A. M.; Maçans, R. M. R. sociais, estimulando os usuários a terem iniciativa e participação ativa na introdução de melhorias. Para amparar as iniciativas apontadas, tanto a Companhia Habitacional quanto os próprios moradores podem recorrer ao plano sugerido de implantação gradual de valor conforme os níveis da Figura 12. Figura 4 – Intervalos de confiança (bootstrap) para o IGI por item – categoria perspectiva financeira Figura 5 – Intervalos de confiança (bootstrap) para o IGI por item – categoria percepções socioespaciais A natureza do valor desejado na habitação social 97 Figura 6 – Intervalos de confiança (bootstrap) para o IGI por item – categoria valores culturais Figura 7 – Intervalos de confiança (bootstrap) para o IGI por item – categoria qualidade do ambiente interno Figura 8 – Intervalos de confiança (bootstrap) para o IGI por item – categoria qualidade espacial 98 Granja, A. D.; Kowaltowski, D. C. C. K.; Pina, S. A. M, G.; Fontanini, P. S. P.; Barros, L. A. F.; Paoli, D. De; Jacomit, A. M.; Maçans, R. M. R. Figura 9 – IGI para todas as categorias e respectivos itens juntos (26 itens no total) Figura 10 – Intervalos de confiança (bootstrap) para o IGI para todas as categorias e itens juntos (26 itens no total) A natureza do valor desejado na habitação social 99 Figura 11 – Análise de conglomerados (cluster) pelo método euclideano e Manhattan (itens rotulados conforme quadro 2) (a) (b) Figura 12 – Análise de conglomerados (cluster) pelo método (a) euclideano e (b) Manhattan (itens rotulados conforme o Quadro 2) Conclusões O presente trabalho utilizou a técnica de pesquisa declarada como forma de se analisar o valor desejado do produto em uso de moradores de uma tipologia específica de CHIS da CDHU, fazendo uso de cartões ilustrados de itens de valor. Essa técnica de coleta de dados se mostrou mais rápida e eficaz nesse contexto em relação às técnicas tradicionais de aplicação de questionários fechados, que os próprios autores utilizaram em estudos passados de APO. Tendo em vista o foco da pesquisa de socializar e humanizar o processo 100 de entrega de valor, os resultados obtidos complementam e dão uma nova perspectiva aos estudos já desenvolvidos no país sobre satisfação do usuário em habitação de interesse social. Adicionalmente, poderão apoiar eventuais políticas públicas visando à criação e entrega de valor nesse contexto. No campo empírico houve destaque dos itens “segurança” e “natureza”, respectivamente, nas categorias Percepções socioespaciais e Valores culturais. No entanto, isoladamente, o item “segurança” foi o único que apresentou diferenciação estatística com o uso dos intervalos Granja, A. D.; Kowaltowski, D. C. C. K.; Pina, S. A. M, G.; Fontanini, P. S. P.; Barros, L. A. F.; Paoli, D. De; Jacomit, A. M.; Maçans, R. M. R. de confiança, comprovando-se o seu apreço como item desejado de valor na perspectiva dos respondentes. Adicionalmente, sabe-se que a questão da segurança não se resolve unicamente com a instalação de barreiras como muros altos, grades, guaritas, sistemas eletrônicos de controle de territorialidade, entre outros. Sobretudo são necessárias ações no âmbito comportamental do próprio usuário, com o apoio de configurações projetuais mais adequadas que permitam vigilância constante e natural, conforme preceitos já estabelecidos por Oscar Newman (1972). Mesmo que a percepção de valor seja alta e as condições atuais não correspondem ao ideal, essa constatação nem sempre é capaz de promover ações de melhoria pelos próprios moradores. Nesses casos, intervenções exemplares por agentes externos como a Companhia Habitacional, promotora do empreendimento, e mesmo por organizações não-governamentais são necessárias. Além disso, o projeto pode conter elementos que encorajem os usuários a ter iniciativa e participação ativa nessas melhorias. Exemplos nesse sentido poderiam ser locais prévia e claramente demarcados para que os usuários se envolvessem no plantio, cuidado e usufruto de áreas verdes. Finalmente, a pesquisa evoca estudos adicionais para se apurar mais precisamente o conceito de valor no contexto analisado. Exemplo nesse sentido seria a criação de um marco teórico conceitual que traduzisse os itens de valor em possíveis ações projetuais. Adicionalmente, há que se considerar que nos produtos de construção civil cada agente do processo pode ter uma percepção bastante singular sobre conceitos de valor, criando necessidades de gestão de eventuais conflitos. Outro aspecto é o alegado trade-off entre entregar valor ao usuário e os custos adicionais decorrentes dessa ação, especialmente num ambiente politizado como a habitação de interesse social. Assim, justifica-se a concepção de um modelo de criação de valor mais específico e detalhado para o contexto analisado. Adicionalmente, os autores postulam como proposição que vários dos itens de valor utilizados nesta pesquisa não teriam necessariamente uma contrapartida de aumento dos custos. Um possível caminho é que esses produtos sejam concebidos e projetados dentro do conceito de custeio-meta, com adaptações conceituais necessárias ao contexto. Como o custeio-meta foca o processo de criação e entrega de valor, a oportunidade se estabelece, uma vez que grande parte dos custos é determinada já na fase de concepção de produtos. Referências ANSELMO, C. A. F.; MAIA, R. P. Relatório Técnico. Inferências Estatísticas da Aplicação dos Cartões Ilustrados na CDHU. Campinas, 2008. 38 p. BENEDIKT, M. L. Human Needs and How Architecture Addresses Them. Austin, TX: University of Texas Press, 2008. 17 p. BRANDLI, L. L.; HEINECK, L. F. M. As Abordagens dos Modelos de Preferência Declarada e Revelada no Processo de Escolha Habitacional. Ambiente Construído, Porto Alegre, v. 5, n. 2, p. 61-75, abr./jun. 2005. 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Agradecimentos Os autores agradecem à Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP), pelo apoio a esta pesquisa, e à Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU), pela colaboração na obtenção de dados. Agradecem também à colaboração inestimável dos estatísticos Cézar Augusto de Freitas Anselmo e Rafael Pimentel Maia. Os autores agradecem ainda aos assessores da Revista Ambiente Construído pelas relevantes contribuições sob anonimato, que propiciaram maior precisão conceitual a esta versão final do artigo. A natureza do valor desejado na habitação social View publication stats 103