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Sarau Noturno organizado por Clarisse Ismério representações e sensibilidades sob o olhar da arte cemiterial Clarisse Ismério Organizadora Sarau Noturno representações e sensibilidades sob o olhar da arte cemiterial Editora do Centro Universitário da Região da Campanha Av. Tupy Silveira, 2099 CEP 96400-110 - Bagé - RS - Brasil Telefone: (53) 3242-8244 – Ramal 1102 E-mail: ediurcamp@urcamp.edu.br Site: www ediurcamp.urcamp.edu.br FAT - Fundação Áttila Taborda Presidente: Lia Maria Herzer Quintana URCAMP – Centro Universitário da Região da Campanha Reitora: Lia Maria Herzer Quintana Diretora Acadêmica: Jane Margarete Vilaverde Coordenadores Acadêmicos da Graduação I: Glauber da Silva Pereira Rita Luciana Saraiva Jorge Gerente Financeiro Nélson Sonaglio Editor(a) chefe Ana Cláudia Kalil Huber Editor(a) Auxiliar Clarisse Ismério Assessora Técnica Bibl. Maria Bartira N. C. Taborda Projeto Gráfico Darlan Almeida da Rosa CONSELHO EDITORIAL Ana Cláudia Kalil Huber Clarisse Ismério Elisabeth Cristina Drumm Marilene Vaz Silveira Marília Pereira de A. Barbosa Sandro Moreira Tuerlinckx Dra. (Urcamp) Dra. (Urcamp) Dra. (Urcamp) Me. (Urcamp) Me. (Urcamp) Dr. (Urcamp) Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) _____________________________________________________________ S243 Sarau noturno: representações e sensibilidades sob o olhar da arte cemiterial. / Clarisse Ismério organizadora. - Bagé: Ediurcamp, 2021. 86 p. ISBN: 978-65-86471-20-5 1.Arte Cemiterial. I.Ismério, Clarisse. Org. II.Título. CDD: 718.098165 _____________________________________________________________ Catalogação elaborada pelo Sistema de Bibliotecas FAT / URCAMP Bibliotecária Responsável: Maria Bartira N. C. Taborda CRB: 10/782 Os textos aqui reproduzidos são de exclusiva responsabilidade de seus autores. Dedicamos a presente obra ao grande Mestre Harry Bellomo por nos propiciar o gosto pela pesquisa sobre o patrimônio cemiterial. Ave Bellomo! Sumário Apresentação Ângela Susana Jagmin Carretta 05 Música, Poesia, Pampa e Cemitério Lasie Winkel da Silva Júnior 65 Apresentação Ana Carolina Zago 07 Textos do Sarau Noturno Clarisse Ismério 71 Apresentação Guilherme Cassão Marques Bragança 09 EXTRAS 83 Apresentação Daniel Quintana Sperb 11 Introdução Clarisse Ismério Darlan Almeida da Rosa 13 A Cidade dos Mortos: um reflexo socioestrutural Darlan Almeida da Rosa 15 Sarau Noturno: história de um projeto cultural de valorização da arte cemiterial Clarisse Ismério 23 Novo Sarau Noturno: breve história da virtualização de um evento cultural Clarisse Ismério Darlan Almeida da Rosa Alana Portella Amanda Antunes do Couto 35 (In)Visibilidades femininas na arte cemiterial Clarisse Ismério 45 Um olhar para invisibilidade social feminina no período de 1891 a 1920 através da legislação e sua relação com os cemitérios Amanda Antunes do Couto 59 Dessa forma, compartilho com você, caro leitor, minhas expectativas de que quando este livro chegar a seus olhos, no formato ebook, você esteja com sede de saber um pouco mais sobre este espetáculo inusitado, capaz de dar voz aos mortos, desmistificar o cemitério como campo santo, de silêncio quase absoluto, quebrado por ruídos de choros contidos e transformá-lo num palco sagrado, afinal o cemitério guarda memórias de nossos antepassados, abriga vasto imaginário simbólico, constituindo-se num magnífico espaço cultural. - Mas, e o silêncio profundo? - Ah! O silêncio foi quebrado pelo delicado som de um violino e por vozes fortes, que embargadas pela emoção e pelo compromisso de mesclar textos literários, poesia e romantismo transformam/transformaram o cemitério em um grande palco, na cidade de Bagé – RS. Posso sentir o seu olhar curioso sobre um evento que enalteceu/enaltece a arte cemiterial. Aproveito esta oportunidade para lembrar Manoel de Barros2 (1916-2014), um dos mais notáveis poetas contemporâneos, quando tratou do tempo: Apresentação Convido a você, caro leitor, a participar de uma viagem ao longo do tempo pelos salões que abrigavam os saraus, luxuosas reuniões de amigos, artistas, políticos e livreiros, que participavam dos eventos na intenção de publicizar suas obras. Trata-se de uma viagem não linear, onde os fatos vão e vêm, em consonância com a memória afetiva resultante dos antigos currículos escolares, da leitura de obras literárias, da audição de composições eruditas e da tele audição de séries e documentários. Coube a mim, honrosamente, apresentar-lhes o Novo Sarau Noturno: representações e sensibilidades sob o olhar da arte cemiterial, organizado pela professora doutora Clarisse Ismério, resultado do profícuo Projeto Cultural, implementado em 2008, com vistas a narrar aspectos históricos de Bagé, “Sarau Noturno”, balizado pela arte cemiterial. - Mas qual a etimologia deste termo? O termo sarau teve sua origem no latim seranus / serum, que faz menção ao crepúsculo. Em razão desta etimologia, pactuou-se concretizar os saraus durante finais de tarde ou início da noite para designar acontecimentos musicais ou literários que ocorriam em propriedades particulares, os quais geravam o estreitamento de relações sociais e culturais de acurado grupo. Este formato de evento tem ocorrido desde a Idade Média, marcado pela apresentação de trovadores e cantores. Os luxuosos eventos envoltos por dança, música, literatura, vestimentas luxuosas, comida farta, discussões políticas... uma moça ao piano constituía momentos de olhares atentos, numa só direção. Impossível falar de episódios desta natureza, sem mencionar a participação de Chiquinha Gonzaga em um sarau literário para homenagear a independência do Brasil, momento em que executou ao piano “variações sobre temas das óperas Les Barvards e Barbe-Blues” (Jornal do Commercio, 9 de Set de 1867). Os saraus atravessaram os muros dos palácios, as paredes do teatro e num viés contemporâneo invadiram outros territórios culturais, como a periferia de grandes metrópoles, tomando outro formato, ressignificado por movimentos poéticos, goles de bebida e o protagonismo dos próprios moradores, que através da leitura ouvida fazem ecoar suas vozes nos bares dos subúrbios. O fazem nestes espaços, pois o descaso os privou dos museus, dos teatros dos cinemas. Basta um grupo de pessoas, um microfone e um texto na mão para consagrar os bares como espaços culturais.1 1 O Tempo só anda de ida. A gente nasce, cresce, envelhece e morre. Pra não morrer É só amarrar o Tempo no Poste. Eis a ciência da poesia: Amarrar o Tempo no Poste! Parece que o velho poeta previa que nem mesmo desamarrando o tempo do poste, haveria a morte de heróis ou de nossos antepassados queridos, pois seus feitos, estariam vivos para sempre. Até parece que a professora universitária se inspirou no referido poeta ao criar o Sarau Noturno, comprovando que a arte cemiterial pode enclausurar o tempo. E foi isso que Ismério fez! Ângela Susana Jagmin Carretta Matemática, Mestre em Ciências Exatas, Coordenadora Institucional do PIBID Urcamp 2 Sergio Vaz em entrevista à Luiza Tennina (2011). 5 Manoel de Barros, em entrevista a Boco Martins (2007). Apresentação Desde a sua criação, o Sarau Noturno tem agregado experiências acadêmicas e culturais muito importantes para a Urcamp, especialmente por ter um caráter multidisciplinar, destacando-se como uma atividade artística e cultural para acadêmicos, docentes e comunidade em geral. A cada ano que passa, com o surgimento de novas ideias, com a incorporação de novos membros e com a amplitude que ele vem alcançando, o Projeto Sarau Noturno se consolida cada vez mais, ganhando força, visibilidade na mídia e na comunidade, além de extrema relevância para a nossa cultura regional e institucional. Quando houve o seu surgimento, no ano de 2008, pela Professora Dra. Clarisse Ismério como sua idealizadora, era classificado no âmbito institucional como um Projeto de Extensão, do qual além de ter um intenso envolvimento comunitário e acadêmico, também gerava desde então, publicações científicas em eventos nacionais e internacionais e também artigos e livros, demonstrando a sua notoriedade e fortalecendo a sua existência. Com a sua estabilidade na instituição, e devido ao seu caráter cultural, artístico e acadêmico, tornou-se mais recentemente um Projeto de Ensino da Urcamp, que possui atividades contínuas envolvendo acadêmicos, docentes e comunidade. Mesmo com os desafios da pandemia da Covid-19, por ser um projeto que vislumbra a criatividade, tornou-se capaz de adaptar-se a atividades virtualizadas, tanto de reuniões para as decisões da sua operacionalização, quanto para as apresentações do Sarau Noturno, demonstrando o seu caráter criativo, disruptivo e adaptativo, até mesmo nas situações mais extremas. Foi necessária uma readequação e utilização de recursos tecnológicos, como a inserção de um cenário virtual como um recurso remoto e apresentação via YouTube, prezando sempre pela qualidade desta proposta tão rica para toda a comunidade envolvida. Imensamente gratos por toda a contribuição que o Projeto Sarau Noturno proporciona para a comunidade acadêmica, com enorme satisfação temos a sua existência e continuidade há mais de 10 anos e almejamos que continue por muitos e muitos anos gerando publicações científicas, atividades artístico culturais, interação com a sociedade, cada vez mais abrilhantando a nossa instituição de ensino e a comunidade na qual ele alcança. Vida longa ao Sarau Noturno! Ana Carolina Zago Bacharel em Farmácia UFPel, Mestre em Saúde e Comportamento pela Universidade Católica de Pelotas . Doutoranda no programa de Pós-Graduação em Saúde e Comportamento da Universidade Católica de Pelotas. 7 gulos se fizeram nos moldes auríficos que enriquecem as paredes. Mostraram-nos artes em espaços lacrados e assim buscaram formar nossa opinião do belo e eterno sobre a ideia dos “mestres”, em caixas adornadas. E por muito tempo se moldaram saberes em gostos ditados. Com zelo, respeito, afeto, conhecimento e muito amor, o Sarau Noturno propôs em 2008 a amplitude da visão humana. Propôs a saída dos quadrados centros culturais para que a real e plena contemplação pudesse ser idealizada em local que para muitos só trazia recordações de finais, nem sempre felizes. A proposta apresentada pela Prof ª Dr ª Clarisse Ismério trouxe uma verdadeira e gloriosa revolução no modo de apresentar a arte e a cultura, promovendo uma clara e objetiva compreensão de um dos mais belos acervos de arte do Estado do Rio Grande do Sul – quiçá do Brasil. Um acervo que outrora trazia olhares velados aos passantes e orações para alguns, é trazido à comunidade como sua real e bela essência, um museu fora das paredes, um museu a céu aberto. Assim o Cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé fez-se, de forma mais consolidada, alicerce nas escritas socias e assumiu de fato seu papel protagonista na cultura. O início foi firme, claro e determinado. Após serem elencados os túmulos a serem estudados, a pesquisa sobre seu simbolismo foi então efetivada. Árduas foram as tarefas para que nada ficasse fora do processo. Detalhes que outrora não eram percebidos, agora saltavam aos olhos e mostravam-se fundamentais para cada compreensão. Uma flor, um elo de corrente, uma ampulheta, uma tocha, um anjo, uma cobra, uma coruja, uma toca, um busto, uma placa... Palavras reunidas em conforto e exaltação eternizavam histórias, vidas, artes em sua essência. Nobrezas indicadas em cada centímetro de mármore. Lágrimas de pedra que em vida talvez são se fizessem reais. Anjos em um eterno abençoar àqueles que na vida deviam, por certo, ter a missão de zelar. De fotos não fossem tempos, de pedras representados ficaram, numa expressão tão real que parecem falar, rezar, clamar, ou simplesmente, calar. O Sarau Noturno uniu inteligentemente os mais diversos modelos de expressão artístico cultural em um local talvez nem imaginado em tempo próximo. Por meio do teatro, música e poesia trouxe novamente ao nosso convívio aqueles que talvez em uma biblioteca repousassem suas histórias e em leitos eternos suas memórias. Um dos projetos culturais mais importantes já vistos na cidade de Bagé. Uma construção idealizada na valorização da história e da cultura por meio de um ambiente que em outros momentos pudesse talvez não ter sequer a imaginação de acontecer. À época os relatos foram diversos. Os olhares desconfiados rapidamente Apresentação Os fins nem sempre justificam os meios, tampouco, expressam a real contextualização de um processo existencial. O fim é uma utopia gerada pela socidade ávida por explicações afagantes à alma, porém, talvez não realísticas e que anseiam respostas para o que nem sempre as define, mas servem de acalanto para quem ficou “deste lado do fim”. A arte configura-se como um processo. Processo de imaginar, criar, desenvolver, idealizar, praticar, renovar, estruturar, ensinar, aprender, fixar, viajar, sublimar e expressar. É uma complexidade não necessariamente sequencial, mas que foi por muito tempo introjetada de forma rígida e direcionada nas consciências humanas, formando conceitos e preconceitos retilineamente traçados em instituições pessoais alicerçadas em costumes temporais das sociedades em que o natural não era sentido, mas ditado pelas regras exteriores. Das expressões mais puras e belas do construir artístico e cultural, muitos falam das projeções de pensamentos e sentimentos pessoais, dos viveres e das experiências trazidas pelo artista na sua caminhada de vida. Todavia, há de fato guardado no baú dos escondidos segredos pessoais a real e incorruptível verdade que define a arte na mais sublime forma de expressão: A VIDA! Sim, a vida é a arte! Viver é ser, estar e construir, diariamente, a cultura e fazer dela a arte mais pura para cada sentir da alma. Todavia, sendo a vida a expressão e a existência da arte, esta deve seguir sua idealização quando de vívidas fontes as palavras não mais nutram o vento, a pele não mais traga o arrepio dos sabores e dissabores do mundo e os olhares não mais traduzam o amanhecer, mas de anoitecer eterno se façam em novos começos escurecidos no micro universo a todos destinado. Para muitos, em todas as épocas, o desejo de lembraças eternizadas em seus feitos de glória se constituiu verdade. Para poucos, porém, a memória ainda viva se mantem. Não fossem necessárias apenas as ações de bravura e destacada nobreza, quiseram alguns que seu eterno leito de repouso explicasse os anseios de sua passagem terrena por meio de ostentadas e simbólicas obras de arte. Nossa formação – generalizada não a faço, mas amplio sua abrangência por razões de compreensão – trouxe um profundo pesar cultural. Um engessamento para os traços firmes, melodias harmônicas, cinzeladas perfeitas e polimentos tão lisos quanto as verdades escondidas no âmago de seus criadores. Ensinaram-nos a fechar nosso olhar em paredes, vidrar nossa atenção aos quadrados que retân- 9 refletiam um brilho encantador diante de cada uma das expressões teatrais, literárias, históricas e musicais. A participação neste projeto é muito mais que uma realização pessoal, é uma vivência. É a estruturação de um provento cultural na essência do ser. É estar e viver a cultura de pessoas que construíram nossa sociedade e são agora lembradas de forma respeitosa e com soberania de seus feitos. Não somente aqueles que guardam ali sua existência outrora orgânica, mas todos que também eternizam-se nas catedrais individuais na forma de suas obras de arte que dão vida a blocos sólidos de concreto e fazem do mármore o narrador da própria história. Vida longa e profícua ao Sarau Noturno! Guilherme Cassão Marques Bragança Bacharel em Farmácia (URCAMP), Doutor em Ciência e Tecnologia de Alimentos (UFPEL), Coordenador do Curso de Farmácia da URCAMP/Bagé-RS. 10 inovador. Provoco, inclusive, a não chamá-lo mais de projeto, mas sim, programa, pois já se mostrou perene e maduro ao longo de mais de uma década. Um diferencial competitivo de peso para o Curso de História e para a Urcamp, afinal, o projeto foi referenciado pela Rede Globo de Televisão em horário nobre. É possível inovar ainda mais em um projeto como esse? Sempre é! Imaginem o Sarau Noturno em HQ’s, gamificado ou ainda, presente no Horizon Workroom (muito além do Second Life ou The Sims)! Não seria incrível? Quais outras áreas do conhecimento poderiam usufruir de um insumo tão rico quanto esse? Quantas empresas estariam interessadas em fazer parte de algo tão inovador? A segunda lente, é a pedagógica. Perdi a conta de quantas vezes clamei por mais prática em meio discursos puramente teóricos sobre multidisciplinaridade, interdisciplinaridade, transdisciplinaridade, aprendizagem significativa, entre tantos outros conceitos que, não fosse por educadoras como Clarisse, seriam inférteis e serviriam apenas para alimentar o ego de intelectualóides que nada sabem sobre transformar vidas. O Sarau Noturno materializa o conceito de aprendizagem significativa e me atrevo a dizer que representa um exemplo clássico de projeto transdisciplinar. Sabem quando que as duas lentes se encontram? Quando eu me deparo com um vídeo de uma das apresentações do Sarau Noturno e vejo aquele que veio a se tornar um amigo querido, Professor Guilherme Cassão Marques Bragança, Coordenador do Curso de Farmácia (lente pedagógica da interdisciplinaridade), participando do projeto enquanto músico (lente da inovação que confere espaço as inteligências múltiplas), acariciando as cordas de seu violino como se asas de anjos fossem. Por fim, desejo a você uma ótima leitura desse rico material, agradeço a Clarisse pela honraria em escrever estas linhas e ao Sarau Noturno, votos de vida longa e que se aventure em cada vez mais plataformas e formatos! Apresentação Em meus 17 anos de experiência com ensino superior, protagonizei projetos que conquistaram grande notoriedade com sua relevância acadêmica e social. Participei e tomei conhecimento de tantos outros que me encantaram com seus significativos impactos na vida de muitas pessoas. Sabem o que encontrei em comum em todos eles? Idealizadores apaixonados. Eles são movidos por uma inexplicável força de vontade, senso coletivo e capacidade de mobilização em prol de um propósito comum. No entanto, existe um nível ainda mais avançado que alguns idealizadores alcançam. Eles conquistam esse status devido a perenidade de seus projetos, afinal, não faltam adversidades e razões para que desistam. São resistentes ao tempo e costumam eternizar seus feitos, não somente nos registros escritos e áudio visuais, mas principalmente, no coração de todo aquele que é agraciado com a honraria de participar de seus projetos. Denomino tal nível de Idealizadores de amor, afinal, paixão passa, mas amor não. Amor perpetua. Obviamente, são mais raros, mas quando você encontra um deles no caminho, o sentimento é de pura gratidão ao universo. Clarisse Ismério é uma idealizadora de amor. Dotada de admirável capacidade acadêmica associada a grande sensibilidade e inteligência criativa, deu vida a um projeto com 13 anos de existência. O Sarau Noturno é um dos mais incríveis projetos que tive a oportunidade de conhecer e alegria de acompanhar. Para que o leitor entenda a grandiosidade do que estamos falando, é necessário posicionar o Sarau Noturno sob duas grandes lentes. A primeira lente, é a da inovação. Não existe inovação sem criatividade e não existe criatividade sem a capacidade de combinar diferentes elementos para dar vida a algo novo. Quando o Sarau Noturno combina a história de Bagé, cidade onde nasceu minha amada Mãe Elizabethe Quintana Sperb (em memória), com seu imaginário simbólico e o mescla com passagens e personagens da literatura romântica, materializa os preceitos teóricos e práticos da criatividade. Contudo, a criatividade por si só, não sustenta inovação. Para inovar é preciso agregar valor, gerar diferenciação e escala. Portanto, podemos afirmar categoricamente que o Sarau Noturno é um Projeto extremamente Daniel Quintana Sperb Desenhista Industrial, Doutor em Engenharia de Produção, fundador da Be Formless. 11 Introdução O presente livro se constitui como fruto do amadurecimento do projeto de educação patrimonial Sarau Noturno, desenvolvido no Cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé, que durante sua construção histórica buscou desenvolver a valorização e preservação da cultura, tendo como referência a arte cemiterial. Mas em sua essência não procura unicamente promover o gosto pela conservação do patrimônio cultural, mas muito mais que isso, busca uma educação transformadora sob a perspectiva da estética e memória cultural de uma coletividade. Característica que propiciou ao Sarau Noturno, ao longo da caminhada, ser acrescido por polifonias de vozes e interpretações que lhe deram vida e permitiram um contínuo reinventar. Os capítulos que compõem nosso livro, apresentam cenários cujas construções textuais narrativas que mesclam-se ao tratamento poético das imagens, nas quais o preto e branco remetem as evidências do passado; o bronze a perpetuação das ideologias e representações simbólicas; e as cores a multiplicidade de interpretações e vivências do mundo atual. Esse contexto visa oportunizar aos leitores uma imersão reflexiva e prazerosa ao universo do cênico do Sarau Noturno. A teatralização aqui, perpassa vielas, memórias, vivências, performances de seres e estares; a grafia aqui firmada, além de rememorar e homenagear a notória importância do grande pesquisador cemiterial Harry Rodrigues Bellomo, tatua na carne a experiência conceptual subjetiva dos envolvidos. Que tornemos palpável toda e qualquer passagem por aqui, se e apenas se, nos despirmos de si; que toda e qualquer existência, tenha seu direito à memória consumado. Finalizando a exposição, destacamos que a obra expressa nossa concepção sobre educação patrimonial, que vai para além das ideias mercadológicas de consumo cultural, pois em nosso trabalho, buscamos consolidar uma formação que permite o despertar para o conhecimento sobre o patrimônio cultural, oportunizando engajamento e protagonismo. Assim iniciamos nossa performance cênica e desejamos uma ótima leitura! Clarisse Ismério Historiadora, Doutora em História do Brasil, Coordenadora do Sarau Noturno, Coordenadora do Curso de História da Urcamp, Pesquisadora líderdo do Grupo de Pesquisa e Extensão em Patrimônio Cultural e Ambiental. Darlan Almeida da Rosa Acadêmico do Curso de Arquitetura e Urbanismo, membro da equipe de audiovisual do Sarau Noturno, pesquisador bolsista do projeto Metodologias ativas para o ensino de História e área de Humanidades. Sarau Noturno: representações e sensibilidades sob o olhar da arte cemiterial A Cidade dos Mortos: um reflexo socioestrutural Darlan Almeida da Rosa1 1 Acadêmico do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade da Região da Campanha (URCAMP). Membro do Grupo de Pesquisa e Extensão em Patrimônio Cultural e Ambiental. Aluno voluntário e membro da equipe de audiovisual do projeto de ensino, Sarau Noturno. Pesquisador bolsista do projeto de Metodologias Ativas para o Ensino de História e Área de Humanidades. darlan6367@gmail.com A cidade dos Mortos: um reflexo socioestrutural Introdução (SENNETT, 2020, p. 305), vê-se que para além da manipulação de ações contra o regime, os espaços exprimem falsas liberdades, mesmo que de cunho livre para ir e vir, a repressão das autoridades, só reafirma a função da amplitude, em meio a multidão, afinal, somos só mais um por entre vários outros. Ainda somos predominantemente passivos aos espaços, caráter que cresceu devido a constância das ideias que se tem aos ordenamentos sociais presentes nos espaços públicos. É evidente que, uma massiva parcela da população, é arrastada de seus espaços de enunciação, o fazer urbano hoje, além de carregar jargões históricos que atenuam esses preceitos da compartimentação das ideias, espaços e liberdades individuais, salientam a grande selva de pedra, igualmente enquanto geradora de transitoriedades e fluxos individualistas. Existe uma dicotomia neste ponto, nossos percursos são semelhantes às rédeas - o sistema urbano está para as rédeas - bem como - nossos corpos às ações submissas. Ao nos remontarmos ao século XVII, nota-se que os princípios do planejamento urbano se alicerçaram nas interdependências do sistema sanguíneo humano (SENNETT, 2020); o movimento e os fluxos hoje, se sedimentaram em uma estagnação nos modos de pensar e agir perante a pluralidade dos corpos. Ao pensar nos direitos cívicos de nossos corpos políticos, as ruas, enquanto palcos de disputas e manifestações libertárias, traçam ordens que imprimem tais atos. As principais avenidas das cidades - aqui me atendo à Av. Sete de Setembro de Bagé/RS - revelam o papel político desses traçados enquanto percurso coletivo em dadas instâncias. O esquecimento te permeia? O que lembramos é seu, meu, ou nosso? Ao transpassar o espaço urbano, a quem ou ao oque você remonta suas memórias? As vias são igualmente espaços políticos, como visto anteriormente, talvez não libertária em sua prática, mas potencialmente coletora e salvaguardada por memórias individuais e coletivas, elas existem igualmente por nossos papéis. Uma rua, sem sua real mescla de vivências, fluxos e vitalidades, não passa de um expurgo às subjetividades e identidades individuais e coletivas. Ao ter como base o traçado urbano aqui já citado, vê-se um caráter ordenado em suas funções que antes se definiam pelas mesclas mais afastadas e interdependentes, hoje excluem e estigmatizam múltiplas realidades, através de um ideário atravessado pelos pressupostos Positivistas2, onde a ordem tem vez. Ao remontarmo-nos ao final da década de 50 do século XVIII, nota-se usos e funções bem definidas entre suas articulações funcionais, principalmente devido ao cres- Firmada em pressupostos e em um construto social pautado na ordem e progresso, vê-se que o espaço urbano e arquitetônico deixou cicatrizes para além do individualismo, no qual os papéis de gênero e raça são constantemente apagados e submetidos a uma sistemática que é expressa no materialismo cemiterial e para além, no urbanismo e no processo de formação das cidades. O Positivismo enquanto doutrina, norteia ainda hoje, o apagamento da diversidade não só urbana, mas de indivíduos que, ao sofrerem com o estigma da segregação, imprimem no ideário social e urbano, os reflexos de espaços enfermos. Aqui, apontam-se alguns pressupostos das feridas deixadas pelo urbanismo ortodoxo e pragmático da cidade de Bagé/RS, a fim de tecer o entendimento dos reflexos evidentes presentes âmbito cemiterial, refletindo os ideais presentes em vida - fazer a cidade - e na morte - fazer os espaço cemiterial, em correlação com as liberdades e direitos individuais, em meio a amplitude das entrelinhas dos meios de transitoriedade física e seu caráter simbólico. Do urbanismo à cidade dos mortos: espaços estigmatizados Somos mais corruptíveis pelos meios físicos do que acreditamos ser. Fadados à hierarquia dos espaços e a um ideal de enclausuramento pautado na qualidade de vida, a dispersão dos grandes centros urbanos, compartimentou as relações sociais e evidenciou uma geografia monótona e a enfermidade urbana (SENNETT, 2020). Hoje, pairamos pelo físico e repousamos em uma ordem firmada em sistemas de repressão. O Caráter simbólico presente nos construtos arquitetônicos, evidenciam as sistematizações ideológicas intrínsecas em sua concepção, ademais, os fatores econômicos, demográficos, culturais e comportamentais, acarretam em abordagens que destacam o controle e manipulação da estruturação social e arquitetônica em um determinado local, que, funciona como veículo para a criação e manutenção das relações de poder (ZARANKIN, 2003). A sociedade capitalista, tornou-se refém do caráter material, estabelecendo não só uma relação entre ideologia e simbolismos, mas o tratamento dado ao encarar os espaços agora para além da experiência palpável e com efeito afetivo, afinal “O espaço se tornou lugar de passagem (...) Em alta velocidade é difícil prestar atenção na paisagem.” (SENNETT, 2020, p. 17-18). Ao Richard Sennett descrever e elencar as supressões dos espaços, presentes nas praças do antigo regime francês “(...) os espaços abertos de grandes dimensões quebravam com o contato visual e visceral entre o condenado e a massa.” 2 Doutrina de Auguste Comte (1798-1857), que estabelecia o crescimento e avanço através do conhecimento científico, em contraponto aos papéis de gênero - que ao ser absorvido pelo ideário republicano no Brasil - fez com que a ordenação social e desvinculação eclesiástica, ditasse que, “ (...) só assim a humanidade caminharia para o progresso.” (ISMÉRIO, 2018, p.15), reprimindo múltiplas realidades e perpetuando o predomínio de um estado de conservadorismo cognitivo e comportamental. 16 Sarau Noturno: representações e sensibilidades sob o olhar da arte cemiterial cimento econômico e populacional, que a vitalidade do novo município, vinha adquirindo por entre os anseios sociais da época. Enquanto espaços de memória, por entre a selva horizontal em vigor, tem-se ao analisar suas diretrizes que, ao expurgar gradativamente os espaços cemiteriais vigentes, em contraponto ao crescimento e ocupação territorial, não restaram soluções se não o deslocamento e marginalização dos mesmos, fruto de um “contexto de racionalização e higienização urbana.” (BASTIANELLO, 2010, p. 47). Erguida sob um caráter que reflete um ideário social ordenado indiretamente por jargões Positivistas, constituiu um papel viário, que estabelece uma relação hierárquica por entre o espaço urbano. As maneiras de evidenciar as memórias individuais em meio à coletividade, ditava os direitos de ir e vir ao passo que as pluralidades sociais arrastadas pelos princípios de organização, eram levadas as adversidades nos atos de externalizar suas memórias coletivas, como um abafamento, que ecoa por entre um espaço de caráter público, mas ilusoriamente libertário. O aspecto da vitalidade no desenvolvimento de uma cidade - cérebro; coração - as mesclas sociais, o conflito, a guerra dos lugares, uma constante de sobreposições entre si, suas memórias, identidades, lutas, desejos, anseios; Afinal, o que são cidades, se não espaços de culto as nossas memórias individuais e coletivas? de uma vida firmada em conjecturas que abarcam valores morais, socioeconômicos e ideológicos (BELLOMO, 2000, apud BASTIANELLO, 1985, p.15), e principalmente o papel dos eixos que se interligam e mediam suas inter relações. Atendo-me à primeira divisão do Cemitério da Santa Casa (imagem 1), em contraponto à visão de Bastianello (1985, p.18) “Este local é o coração desta necrópole, nele pulsam décadas de memórias”, questiono, Coração, aquele que pulsa, vital por seu funcionamento, sozinho e isolado, serve de que? Afinal, um eco em uma caverna, sem um espectador, ainda é um eco? Imagem 1: Vista do acesso da primeira divisão . Do espaço cemiterial às suas cicatrizes Nossos instantes, pela urbe, são extensões de nós mesmos. Como mero transeunte, você se derrama, se blinda ou deixa não ser o que você carrega? Nossas respostas, evidentemente, irão variar de acordo com distintas pluralidades, como: Gênero, Sexualidade, Raça, Credo. Os espaços são, em sua essência, deficientes; erramos ao projetar um ideal de espaço utópico, que se disfarça de inclusivo por simples fatores físicos. Corpos possuem suas singularidades, e ao se inserirem nos meios, são estigmatizados e interrompidos de ser e fluir. Pollack (1989, p.4) ao definir e discernir distintos núcleos de memória, história e coletividade, aponta que “memórias subterrâneas que, como parte integrante das culturas minoritárias e dominadas”, exprimem uma integridade social que o estado, busca oprimir e não deixar ser; os espaços enquanto meios de disputa, são em essência, lembrados por e para quem? Vê-se essa problemática, ao circundar o espaço cemiterial da Santa Casa de Caridade de Bagé, em conformidade com o sistema viário citadino da mesma cidade, onde é evidente que, por entre o materialismo das vielas, jazigos, túmulos, estátuas e símbolos, o atenuado em vida, se eterniza em morte através de reflexos Fonte: Do autor. Para além de um coração, existem outras diversas cadeias vitais, que através da sua complementaridade, fluem vida. Às margens do espaço cemiterial da Santa Casa de Caridade de Bagé/RS, que permeiam a primeira divisão, possuem predominâncias sociais evidentes e transpassadas; se formos comparar a um coração, tanto quanto o próprio, os indivíduos à margem, tal qual, fluem essa mesma vitalidade. Expurgado da cidade dos vivos, sua racionalidade de fluxos atravessa os ideais de cidade da época. As ruas, igualmente, estendem os espaços de memória e culto ao mediar os atos pela extensão da urbe em questão, afinal, o acesso à primeira divisão possui uma artéria principal que desprende-se na praça Diogo de Souza, e interpela seu traçado com a Avenida Sete de Setembro (Imagem 2 e 3). 17 A cidade dos Mortos: um reflexo socioestrutural Imagem 2: Vista do Portão Principal do Cemitério. Imagem 4: Vista das palmeiras da Praça Diogo Souza. Fonte: Do autor. Imagem 3: Vista da Avenida Sete de Setembro da praça Diogo Souza. Fonte: Do autor. A praça dispõe de duas palmeiras centrais (Imagem 4) que evidenciam um pórtico implícito pela disposição da vegetação e dos estares que se dissolvem para com o acesso do espaço cemiterial, abraçando-o. A via Sete de Setembro, enquanto artifício de memória, servia de espaço ao culto aos sepulcros na necrópole, atravessando a cidade e carregando em percurso, as memórias sociais ali correlacionadas. Fonte: Do autor. 18 Sarau Noturno: representações e sensibilidades sob o olhar da arte cemiterial Acontece que suas verossimilhanças são nítidas extensões, que, ao sondar suas tipologias urbano-cemiteriais, nota-se uma mudança no fazer do mesmo. Enquanto ambiente de permanência, em suas primeiras décadas, resguardou os usos de estar à sombra e ao sol (Imagem 5), onde tornaram-se espaços de ressignificação e racionalização espacial perante a cidade dos vivos, principalmente pelas questões tocantes ao seu caráter museológico e arqueológico por entre as vielas e artérias. Porém, a enfermidade individualista de uma sociedade apoiada na transitoriedade física latente, tornou-os efêmeros em seus fluxos. las tipologias arquitetônicas que igualmente estenderam os papéis da arquitetura enquanto detentora de ideais e memória, bem como o urbano enquanto cenário de disputas étnicas e socioeconômicas. As praças urbanas estão para os estares neste cemitério, afinal, os pulmões das cidades e suas arborizações se estendem para os usos da necrópole, ou melhor, para os nossos usos. Porém, atualmente, o estigma ao mesmo, subverte as permanências e dá lugar a transitoriedade e descaracterização de suas essências. Seus percursos são retilíneos e com firmeza formal, tal qual ao retículo urbano da cidade em que se insere, ao se estender, o solo é uma extensa calçada, somando-se a canteiros arborizados, criando e articulando vielas com diferentes hierarquias e usos, como nas seguintes quadras (Imagem 6 e 7); Imagem 5: Estar à sombra. Imagem 6: Vista. Fonte: Do autor. Enquanto meios de permanência, a conjuntura vigente, ergueu uma necrópole que refletia o ideário de fixação social aos percursos, que posteriormente com a regressão no agir, a transitoriedade expurgou os sentimentos de pertencimento, ao tornar vias, simples meios para um fim que não se apoiam em direitos individuais, ao se tornarem “neutras e padronizadas.” (SENNETT, 2020, p. 367), principalmente pela predominância de uma nova tipologia sepulcral. A ocupação vertical faz-nos atentar ao espaço de enunciação individual que, em suas primeiras divisões, salientam o poderio financeiro da elite da época, através do enquadramento que os sepultamentos tiveram “permitindo a sua identificação tanto no túmulo como na sociedade.” (BASTIANELLO, 2010, p. 149), principalmente pe- Fonte: Do autor. 19 A cidade dos Mortos: um reflexo socioestrutural Considerações Finais Imagem 7: Vista. Os engavetamentos, são reflexos evidentes da massificação constante que o sistema mortuário se tornou; pagamos aluguéis até em morte se nossa fixação não é própria. Ao sondar os entendimentos a respeito da vida que pulsa por entre o espaço cemiterial da Santa Casa de Caridade de Bagé, é possível vislumbrar para além da pedra edificável pela morte, as necessidades humanas não só de erguer os vestígios de memórias que são submissas a um sistema social que expurga o habitar o centro, mas principalmente os papéis estabelecidos de tal maneira, a ponto de se enraizar pelo imaginário urbano e cemiterial. Ambas as dicotomias marginalizam e hostilizam corpos, vivências e o espaço de enunciação individual, seja pela ocupação social abastada nas áreas centrais, bem como a não complementaridade por meio da interrelação entre os diferentes fluxos, usos, vivências e individualidades em meio ao coletivo. A margem sempre esteve ao centro. O problema não se detém nas margens, e livrá-las de suas conjunturas ao trancafiar em novas zonas de habitação, não restaura um ordenamento vigente, apenas hostiliza os mesmos ao ditar o que deve ou não ser feito com base em visões egóicas e puramente mercantis; o problema se estabelece ao normalizar essa sistematização. Hoje, enquanto alguns indivíduos se derramam pelo espaço urbano, uma parcela escancarada, resiste para ter em evidência, sua escuta e anseios desassistidos, que não pelos atos de segregação e supressão individual. Fonte: Do autor. Onde nota-se a evidente divisão entre os espaços, que privilegiam e criam uma atmosfera bucólica, ao passo que, trancafiados em si mesmos, salienta atualmente uma fuga constante não apenas de nós mesmos, mas um assentimento à transitoriedade espacial e social, afinal o excesso de liberdade transeunte domou nossos corpos a falsos derramamentos de memórias. A amplitude foi, e seguirá sendo o leme de nossas estruturas físicas, se a falta de pertencimento carregada pela frieza dos sentidos, prosseguir a introspecção em meio a vastidão pública; o público é um mero palco para o esfacelamento individual implícito. Todos nós, em diferentes magnitudes, gritamos por dentro. A cidade em que se inserem os sepulcros, em sua origem, se caracteriza ainda assim por elementos de ocupação de cunho horizontal - mesmo havendo engavetamentos nas primeiras divisões, tal qual o expresso em vida. Bem como nosso hoje; uma expansão territorial verticalizada em contrapartida aos engavetamentos. Empilhamo-nos em vida - com a ausência de identidades individuais - e nos empilhamos na morte - ao eternizar um ideal de viver, crescer e desenvolver a subalternidade espacial e corporal. Referências BASTIANELLO, Elaine Maria Tonini. Os monumentos funerários do Cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé e seus significados culturais: memória pública, étnica e artefactual (1858-1950). 2010. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Pelotas. BELLOMO, Harry. Cemitérios do Rio Grande do Sul: arte, sociedade, ideologia.Porto Alegre: EDIPUCS, 2000. ISMÉRIO, Clarisse. Mulher: a moral e o imaginário, 1889-1930. EdiUrcamp. 2 Edição Ampliada, 2018. POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Revista estudos históricos, v. 2, n. 3, p. 3-15, 1989. 20 Sarau Noturno: representações e sensibilidades sob o olhar da arte cemiterial SENNETT, Richard. Carne e pedra o corpo e a cidade na civilização ocidental. BestBolso, 2020. ZARANKIN, Andrés. Arqueologia da Arquitetura, modelando o indivíduo disciplinado na sociedade capitalista. Journal of American Archaeology , p. 25-41, 2003. 21 Sarau Noturno: representações e sensibilidades sob o olhar da arte cemiterial Sarau Noturno: história de um projeto cultural de valorização da arte cemiterial Clarisse Ismério1 1 Historiadora, Doutora em História do Brasil, Professora, Pesquisadora,Coordenadora do Curso de História da Urcamp, Idealizadora e Coordenadora do Sarau Noturno. Coordenadora do Projeto Metodologias ativas para o ensino de História e área de humanidades. claismerio@gmail. com Sarau Noturno: história de um projeto de valorização da arte cemiterial Introdução pesquisa e extensão. E, em um segundo momento, evidenciar seu processo de consolidação das apresentações no Cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé. No dia 31 de outubro de 2008, uma noite estrelada e marcada pela lua nova, ocorreu a primeira apresentação do Sarau Noturno no Cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé, que através de monólogos e interpretações cênicas de jovens acadêmicos, contou um pouco da história de Bagé e de seu imaginário simbólico. Foi um evento inovador que buscava sensibilizar e convidar a comunidade a ver o acervo escultórico com “outros olhos” e perceber que o cemitério é um museu a céu aberto, repleto de significados e representações. Tendo como base a metodologia da educação patrimonial visando a “apropriação e valorização de sua herança cultural, capacitando para melhor usufruto destes bens, e propiciando a geração e a produção de novos conhecimentos, num processo contínuo de criação cultural” (HORTA; GRUNBERG e MONTEIRO, 1999, p. 6). O que é plenamente possível, porque os cemitérios patrimoniais possuem estátuas de heróis, musas e anjos que traduzem um universo de representações culturais e sociais fruto da opulência econômica dos municípios. Portanto são importantes fontes históricas que colaboram para a preservação da memória familiar e coletiva; permitem o estudo das manifestações e crenças religiosas, das ideias e posturas políticas; mostram os gostos artísticos da sociedade;a formação étnica do município e da expectativa de vida da população; além de propiciar o desenvolvimento de estudos genealógicos (BELLOMO, 2000). O desenvolvimento do projeto contou com a participação de acadêmicos de vários cursos da Urcamp, que atuaram na pesquisa, construção dos textos e atuação2. E, a partir de sua criação até o momento, o Sarau Noturno tem atuado com apresentações que destacam a importância histórica e artística da cidade de Bagé, sob o olhar da arte cemiterial. No presente capítulo vamos narrar a história do Sarau Noturno, cujas inspirações temáticas encontram-se em minhas leituras e filmes da adolescência, no processo de formação acadêmica vindo a se consolidar no perfil dos projetos de Como tudo começou Hoje observamos nitidamente que a base do Sarau Noturno se encontra nos saberes pessoais construídos na minha adolescência a partir do interesse por mitologia egípcia e grega, contos de Edgar Allan Poe, teatro shakespeariano e pelos muitos filmes da Hammer Film Productions. Essa constatação me levou a refletir sobre a afirmação de Edgar Morin (2017), sobre o verdadeiro sentido da educação de “despertar para a filosofia, para a literatura, para a música, para as artes’’. É isso que preenche a vida. Esse é o seu verdadeiro papel.” Profundamente apaixonada pela história egípcia, iniciamos em 1989 o Curso de História da Pontifícia Universidade Católica (PUCRS), em Porto Alegre. O primeiro semestre foi marcante, pois conheci os professores Arnoldo Doberstein, de História Antiga Oriental, e Harry Rodrigues Bellomo, de História Antiga Clássica, e ambos desenvolveram pesquisas sobre os símbolos representativos na arte fachadista e cemiterial. E, no segundo semestre, passaei a atuar como pesquisadora do Arnoldo Doberstein, que nos orientou no trabalho de conclusão de curso intitulado “A mulher na sociedade egípcia”. Em 1993, no mestrado, sob orientação do professor Moacyr Flores, trabalhamos com o pensamento republicano positivista de Auguste Comte e como este produziu discursos simbólicos que davam à mulher o lugar de guardiã da moral, durante os anos 1889-1930. Para Lynn Hunt (1992) a utilização da figura feminina como símbolo político era uma herança da Revolução Francesa, que elegeu Mariane o signo máximo da nova ordem. Tornavam públicos símbolos e signos da vida privada, ou seja, da mãe que passa a ser representada pela alegoria da República. A doutrina positivista foi empregada no Rio Grande do Sul, por Júlio de Castilhos que deu ao Positivismo uma variante local, o Positivismo Castilhista. A educação da mulher no período era influenciada pela moral católica e pela doutrina castilhista. E as fontes3 consultadas mostravam que existia um imaginário simbólico que determinava que a mulher fosse submissa a rainha do lar e o anjo tutelar de sua família. Na pesquisa trabalhei com as questões de gênero presentes nos jornais, nas peças teatrais e na arte, fachadista e cemiterial, sendo a proposta teórica construída a partir da corrente da História das Mentalidades, tendo como 2 Participaram da primeira fase do Sarau Noturno os seguintes acadêmicos: Ana Carolina K. Cardoso, Felipe Rosa, João Pedro Germano Pagliosa, Mauro Ricardo Lemos e Tiago Alano (Publicidade); Antoniel Martins Lopes, Calvin Furtado, Camila Romero, Iury Madeira e Joseana Pires (Jornalismo); Guiherme Cassão Marques Bragança (Farmácia); Priscila Botelho (Fisioterapia); e os jovens estudantes Heitor Ismério Marques da Rocha, Rebeca Marques e Ivana Oliveira. E atuaram os acadêmicos: Alisson Lug Rodrigues; Lasie Winkel da Silva Junior; Matheus M. Feijó; João B. Varela; Luiza Cozzani, Carolina Ribas e Bruna Remonato (História); Gabriel Fernandes (Ciências Biológicas); Saulo André Eich, Celina Santos, Alice D´Avila, Luiza Feijó, Taiana Carvalho e Michel Alves (Psicologia); Tainá Barbosa (Agronomia); Rosane Coutinho, Paula Scholant (Administração); Márcia Cristina Leite (Sistemas de Informação), Geovana Lucas Camargo e Márcio Meireles (Direito); Jesus Guilheme Morelles (Administração); Ketherine Acosta e Samuel Oliveira (Jornalismo); Felipe Lucas Fagundes, Alisson Rodrigues e Matheus Feijó (História), além da participação especial de Cauã Ita. 3 Almanaque do Globo, jornal A Federação, Revista Kodak, Unitas (Revista da Arquidiocese de Porto Alegre), peças de teatro e arte funerária. Almanaque do Globo, jornal A Federação, Revista Kodak,Unitas (Revista da Arquidiocese de Porto Alegre), peças de teatro e arte funerária. 24 Sarau Noturno: representações e sensibilidades sob o olhar da arte cemiterial autores Jacques Le Goff, Michel Vovelle, José Murilo de Carvalho e Margareth Rago. Especificamente as questões referentes à arte fachadista e cemiterial buscamos as referências nos trabalhos dos professores Doberstein e Bellomo. Cabe também destacar que neste período tivemos a oportunidade de conviver e compartilhar ideias com a professora Hilda Flores, grande referência nos estudos da História das Mulheres no Rio Grande do Sul. Aliamos aos historiadores citados a teoria de análise dos símbolos desenvolvida Carl Gustav Jung, para elucidar os símbolos expressos no discurso e representações da doutrina moralista positivista que atuou como agente e reflexo da sociedade, tolhendo a mulher de participação política, intelectual e profissional mantendo-a restrita ao espaço privado como educadora e guardiã da moral.4 Mas o grande desafio ocorreu em 2005 quando começamos trabalhar no Centro Universitário da Região da Campanha (URCAMP), situada na histórica cidade de Bagé5, nas atividades de docência e pesquisa. Nesta fase ocorreu toda uma mudança qualitativa na produção científica, pois passamos a agregar à nossa formação a metodologia da Educação Patrimonial, que propicia a “ativação da memória social, recuperando conexões e tramas perdidas (...) promovendo a apropriação pelas comunidades de sua herança cultural, resgatando ou reforçando a autoestima e a capacidade de identificação dos valores culturais” (HORTA, 2000, p. 35). Portanto, é necessário conhecermos o nosso patrimônio cultural, para assim preservar e valorizar nossa história e identidade. E como sabiamente afirmou Aloísio Magalhães: “só se preserva aquilo que se ama, só se ama aquilo que se conhece”. Com este pensamento iniciamos em 2007, o “Projeto História através da Arte Cemiterial”, retomando os conhecimentos adquiridos na graduação e mestrado. O projeto visou contar a história de Bagé através dos túmulos e mausoléus, cuja coleta de dados foi sistematizada em três etapas: identificação dos túmulos e mausoléus; registro fotográfico e levantamento de informações nos jornais locais. E para analisar os dados buscamos autores como Harry Bellomo (1994; 2000), Arnoldo Walter DoBerstein (1992), Tania Andrade Lima (1994), Maria Elizia Borges (2002), Francisco Queiroz (2008) e Clarival do Prado Valladares (1972). E posteriormente os estudos de Eliane Tonini Bastianello (2010) também foram incluídos no referencial. O Cemitério da Santa Casa de Bagé, fundado em 1858, possui um conjunto de túmulos de invejável valor histórico. Em seu acervo guarda uma parte da história de Bagé que pode ser contada por intermédio de seus vultos históricos, das representações simbólicas e pela releitura promovida pelo imaginário social, sendo um cenário bastante profícuo para a criação do evento cultural teatral Sarau Noturno. E, cabe também salientar, a importância da atuação dos acadêmicos que participaram ao longo dos anos do projeto, pois foram os grandes protagonistas do evento cênico. O Sarau Noturno A criação do Sarau Noturno ocorreu de forma despretensiosa, pois a intenção era sensibilizar os colegas da Urcamp e a comunidade em geral, para a importância do acervo do Cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé como fonte para pesquisas. Assim, ao longo do processo de pesquisa e construção textual, os estudantes da Urcamp envolvidos com o projeto passam a conhecer a história local e as representações simbólicas da arte cemiterial. Além dos textos acadêmicos, estudados para compor a investigação sobre história e patrimônio cultural, passaram a conhecer também obras da literatura universal, como as de Charles Baudelaire, George Sand, Lord Byron, Shakespeare e Aristófanes. O resultado foi um roteiro teatral, composto em sua maioria por monólogos, pensado a partir da reconfiguração de atributos e estilos, indo do clássico ao moderno, por intermédio da sobreposição de valores culturais reordenados (LYOTARD,1993), que mesclou os vultos históricos de Bagé com passagens e personagens da literatura romântica. 4 A dissertação de mestrado transformou-se no livro, “Mulher: A moral e o Imaginário 1889-1930”, lançado pela EDIPUCRS em 1995. Tal obra segue ainda hoje como importante referência para os estudos de gênero, sexualidade e educação sendo relançado pela EDIURCAMP em 2018 e no e-book em 2019. 5 A história da cidade de Bagé inicia com a colonização do Rio Grande do Sul, na segunda metade do século XVII, cuja fundação oficial foi em 17 de julho de 1811, deste período em diante foi marcada por tempos de luta e paz. E seu passado perpetua-se nos prédios públicos, nos documentos antigos, nos contos e representações do imaginário popular, formando ao longo do tempo, a autoimagem local (social, política, econômica e cultural) que a difere das demais cidades rio-grandenses. O apogeu econômico de Bagé ocorreu somente na segunda metade do século XIX, sendo estimulado pelo ramal ferroviário que ligava Bagé ao porto de Rio Grande, dinamizando o escoamento da produção. O município de Bagé construiu seu “projeto civilizador” alicerçado no desenvolvimento da indústria charqueadora, que proporcionou um crescimento urbano registrado nos prédios públicos, nas suntuosas casas e palacetes, e também, nos túmulos e mausoléus de mármore de Carrara. Essas arquiteturas urbanísticas e cemiteriais foram produzidas por marmorarias de Montevidéu, Gênova e Porto Alegre, que hoje pertencem ao patrimônio cultural do Cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé. (ISMÉRIO, 2016, 31-33) 25 Sarau Noturno: história de um projeto de valorização da arte cemiterial Assim, as personalidades locais, como o João da Silva Tavares (Visconde de Cerro Alegre)6, o General Antônio de Souza Netto7, Mãe Luciana8 ou o comerciante filantropo Francisco Ilarregui9 dividem o cenário com Hamlet, Ofélia, Elisabeth I e Lisístrata. E somou-se ao arranjo cênico músicas como Greensleeves, Lacrimosa e Bourée. As imagens femininas são predominantes na arte cemiterial, mas demonstram a invisibilidade social e submissão imposta às mulheres ao serem caracterizadas como carpideiras, alegorias e musas para enaltecer os feitos masculinos, num “cenário concebido, pintado e definido por homens” que se “auto escalaram para os papéis mais interessantes e heróicos, deixando para as mulheres os papéis de coadjuvantes”. (LERNER, 2021, p. 38) Porém, no Sarau Noturno, as representações femininas têm voz própria e tornam-se protagonistas para denunciar e lutar contra os cativeiros impostos pelo patriarcado ao longo da história. A estreia do Sarau Noturno ocorreu às 22 horas do dia 31 de outubro de 2008 no Cemitério da Santa Casa de Bagé e, nesse dia, a comunidade bajeense se fez presente para conhecer o evento. Muitos foram levados pela curiosidade, e outros por certa dose de descrença e ironia referente ao projeto. Entretanto, ao iniciar a apresentação, foram envolvidos por uma atmosfera de romantismo e nostalgia, que os sensibilizou frente à grandeza e beleza do local. E puderam constatar que nos túmulos e mausoléus encontram narrativas históricas de seus antepassados que descansam em sono eterno (Imagem 1). A estreia do Sarau Noturno foi registrada pelo jornal Minuano, que destacou a surpresa do público com a proposta do evento e por não saber que existe em Bagé o túmulo do General Netto (Imagem 2). Imagem 1: Primeira apresentação do Sarau Noturno, 2008. Imagem 1: Primeira apresentação do Sarau Noturno, 2008. Fonte: Arquivo da autora. Imagem 2: Registro da primeira apresentação do Sarau Noturno no Jornal Minuano. 6 João da Silva Tavares, o Visconde de Cerro Alegre, comandante da divisão de cavalaria do exército imperial brasileiro, é um dos nobres da história de Bagé. Recebeu seus títulos nobiliários pelos serviços prestados à monarquia e pela lealdade dedicada ao Império. Em 1859, ganhou o de “Barão de Serro Alegre” e, em 1870, ao final da Guerra do Paraguai, lhe foi auferido o título de “Visconde com Grandeza”. Essa distinção autorizava usar em seu brasão de armas a coroa do título superior, no caso o de conde. Por seus feitos também recebeu as comendas de Comendador da Ordem de Cristo e Cavaleiro da Ordem de Aviz (ISMÉRIO, 2016, p. 44-45). 7 Apesar de seu perfil militar, tendo participado da Revolução Farroupilha (1835-1945) e da Guerra do Paraguai (1864-1870), não foi representado como um general em seu leito de morte. Pelo contrário, foi eternizado iconograficamente como um herói ilustrado que, ao invés da farda, veste terno e gravata, símbolos de sobriedade e elegância na época (ISMÉRIO, 2016, p. 37). 8 Luciana Lealdina de Araújo (1870-1930), mais conhecida mãe Luciana, em 1901, criou o Asilo de Órfãs Sã Benedito, em Pelotas, “com o objetivo de amparar e instruir meninas pobres desvalidas, ou seja, órfãs, enjeitadas”(CALDEIRA, 2014, p. 114). Essa personagem foi incluída em 2020 no roteiro. 9 Imigrante espanhol que prosperou através de atividades ligadas ao comércio e tornou-se uma figura de destaque na sociedade bajeense, era considerado “(...) um cavalheiro respeitável, de caráter austero e muito concentrado ao trabalho, conseguindo à custa de incessante labor, adquirir honestamente uma regular fortuna” (O DEVER, 1905 apud. ISMÉRIO, 2016, p. 45). Fonte: Arquivo da autora. 26 Sarau Noturno: representações e sensibilidades sob o olhar da arte cemiterial O público que acompanhou as apresentações pôde contemplar um momento único no qual a história de Bagé foi contada de maneira sensível e envolvente. E tal experiência os marcou profundamente tornando-os admiradores e pesquisadores da arte cemiterial, como relata Ana Romero. turno: É com grande satisfação que acompanhei as atividades do Sarau Noturno, como expectadora, em diversas fases. Tive a oportunidade de assistir ao espetáculo 3 vezes, mas além disso acompanhei as reportagens que tratavam do impacto de quem assiste, das perspectivas de um olhar da idealizadora que foi capaz de entrelaçar aspectos históricos a excelentes textos literários, bem como alunos de diversos cursos num compromisso de se fazer extensão de uma forma bem contemporânea. Numa proposta de promover um evento cultural de alto nível, de desmistificar a morte e de transformar os conhecimentos de suas pesquisas sobre símbolos, contidos nas artes cemiteriais, em conhecimento “popular”. Nós, docentes, sabemos que esta transposição não tem sido comum em nossas universidades. Confesso que fui assistir ao espetáculo pela 1ª vez na intenção de prestigiar o evento promovido pela Universidade em que atuo como docente e para constatar se alguns comentários referentes a ele eram procedentes. Afirmo que não procediam, pois não era nada mórbido, o respeito aos vultos transcendia aquele Campo Santo e uma frase da professora Clarisse durante a abertura do espetáculo traduz toda sua intenção enquanto historiadora: “Trata-se de um museu a céu aberto”. Iniciei sim como espectadora, mantinha a postura inicial de quem observa e examina. Mas ao longo do espetáculo me metamorfoseei em expectadora, pois a cada cena novos personagens surgiam e nos surpreendiam, gerando uma expectativa de que alguma coisa nova poderia acontecer a qualquer instante. Gostei tanto, aprendi muito que retornei e vislumbrei um espetáculo inesquecível. Hoje eu conheço a idealizadora, sou fã da proposta e terei enorme prazer em ser uma de suas personagens, quando os docentes universitários participarem como atores. Parabéns à URCAMP, aos alunos que atuaram/atuam e, em especial à Dra Clarisse Ismério que nos presenteia com seu belíssimo trabalho. (Ângela Susana Jagmin Carretta, Coordenadora da Iniciação Científica da URCAMP, 2016). Para mim esta obra foi algo surpreendente e inusitado. Fui ao cemitério numa certa noite ver minha filha atuar. Não sabia realmente do que se tratava, mas, após esta experiência minha visão mudou. Nasceu então um interesse sobre esta arte. Hoje em dia já não percorro um cemitério sem que observe detalhadamente os monumentos. Fotografo e me ponho a imaginar... Como viveu aquela pessoa e o quê sua família quis eternizar através da simbologia de cada escultura. (Ana Romero, Veterinária, 2016). Colegas professores da Urcamp também prestigiaram o evento e se sensibilizaram com a proposta, pois entenderam o significado do evento de valorização da memória das famílias e promoção do cemitério como um museu a céu aberto. O Sarau Noturno surgiu num momento que a gente trabalhava na produção local, de fazer os estudantes do curso de comunicação de Bagé ter algum tipo de interação com a comunidade. A professora Clarisse teve essa luminosa ideia no sentido de espanto por não saber que de dados específicos do local, com o túmulo de resgatar a memória de pessoas já falecidas e, com isso, resgatar grande parte da história de Bagé, de pessoas que viveram aqui. E no tempo que viveram tinham seus valores que, de alguma forma, estão retratados na arte cemiterial. (...) O cemitério de Bagé é um museu a céu aberto, Bagé é uma cidade que tem mais de 200 anos e o município evoluiu na medida que também evoluíram as escolas arquitetônicas e as artísticas também evoluíram e isso está presente na geografia do cemitério, que tem áreas mais modernas e áreas mais antigas e nesses locais tem manifestações do pensamento daquelas décadas, daqueles períodos históricos”. (Glauber Pereira, jornalista, coordenador do curso de comunicação, entrevistado para URCAMP documenta Sarau Noturno, 2013). A jornalista da Giana Cunha, que na época trabalhava para a RBS Bagé, acompanhou com suas reportagens, desde a primeira apresentação, relatou sua experiência com o evento: Antes de ocorrer as apresentações, algumas pessoas consideravam o Sarau Noturno como um evento mórbido e desrespeitoso. Na realidade os comentários eram fruto do desconhecimento da proposta, por terem medo de ir ao cemitério à noite ou por receio da morte. Esse fato é bastante normal, uma vez que a morte é a grande certeza da humanidade, pois ao nascer já iniciamos nosso processo de finitude. As ideias negativas sobre nosso evento produziram ações positivas, uma vez que instigou a curiosidade de muitos e os fez ir ao cemitério nas noites de sarau para verificar se tais rumores eram realmente procedentes. Como exemplo, destacamos a professora Ângela Carretta que emocionada conta suas impressões sobre as apresentações e como passou de espectadora à admiradora do Sarau No- Fazer um evento no cemitério é no mínimo curioso. E para nós, como pauta, é muito interessante tanto que conseguimos visão estadual da matéria. (...) Olhando a primeira vez no dia não parecia real, uma coisa que nunca tinha visto. A música e a iluminação. Eu achei muito legal, ficou super poético, muito artístico, tanto que outras vezes, em outras versões eu me prontifiquei para fazer as reportagens. (Giana Cunha, jornalista da RBS Bagé entrevistada para URCAMP documenta Sarau Noturno, 2013). A cada apresentação do Sarau Noturno a comunidade de Bagé assistiu um espetáculo teatral composto por música, poesia e história. O que fez com que sua popularidade crescesse tomando uma grande dimensão, vindo a marcar o cenário 27 Sarau Noturno: história de um projeto de valorização da arte cemiterial da cultura estadual e nacional quando foi matéria do Grupo RBS e do Programa Mais Você (Rede Globo) (Imagens 3 e 4). A jornalista da Giana Cunha, que na época trabalhava para a RBS Bagé, acompanhou com suas reportagens, desde a primeira apresentação, relatou sua experiência com o evento: Imagem 3: Matéria do Grupo RBS, por Giana Cunha. Fazer um evento no cemitério é no mínimo curioso. E para nós, como pauta, é muito interessante tanto que conseguimos visão estadual da matéria. (...) Olhando a primeira vez no dia não parecia real, uma coisa que nunca tinha visto. A música e a iluminação. Eu achei muito legal, ficou super poético, muito artístico, tanto que outras vezes, em outras versões eu me prontifiquei para fazer as reportagens. (Giana Cunha, jornalista da RBS Bagé entrevistada para URCAMP documenta Sarau Noturno, 2013) O mesmo ocorreu com os demais acadêmicos da universidade que passaram a admirar e promover o Sarau, pois compreenderam a proposta. Destacamos especificamente o depoimento de Lucas Rohan, jornalista, que salientou a importância da proposta e, por sua proximidade com os atores envolvidos, transformou-se num divulgador informal do acontecimento cemiterial, tanto que quando foi repórter das rádios do Grupo Band, em Porto Alegre, fez uma reportagem nacional. Rohan também enfatizou que o Sarau Noturno o marcou de forma bastante positiva ao desenvolver o gosto pela pesquisa da arte cemiterial, pois adotou como hábito visitar os cemitérios das cidades por onde viaja. Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=i7LpCZilD9I&t=16s Vivenciar o surgimento do projeto do Sarau Noturno, em Bagé, foi um privilégio. Acompanhar as primeiras apresentações no cemitério local e recomenda aos amigos, que sempre recebiam a dica com um pouco de surpresa e curiosidade. Afinal, visitar um cemitério à noite não está nos planos de muita gente... No entanto, apesar da estranheza inicial, o aproveitamento foi de cem por cento. Dez em cada dez amigos aos quais indiquei reservar uma sexta-feira à noite para assistir ao Sarau Noturno compareceram e elogiaram a ação. Como estudante de Comunicação Social na Urcamp, tendo a professora Clarisse Ismério como uma das mestras e sendo colega de muitos atores das primeiras edições do Sarau, me sentia praticamente um divulgador informal da ação. Comentar a existência do evento se transformou em um dos meus assuntos de mesa de bar. “Já imaginou assistir apresentações poéticas num cemitério à noite?”, perguntava aos amigos. As respostas eram, claro, negativas e, partir daí, falava como a experiência era fantástica, rica culturalmente e uma janela de descobertas. Tudo isso, motivado pela empolgação com essa experiência. Assim, quando fui repórter das rádios do Grupo Band em Porto Alegre sugeri que o Sarau Noturno fosse tema de uma reportagem nacional. Tentei driblar a dificuldade óbvia de não poder mostrar as imagens sensacionais dos atores durante a ação e produzi um especial descrevendo o projeto que foi ao ar em todas as emissoras do grupo em formato de reportagem. Um dos efeitos que o Sarau Noturno me causou e carrego comigo até Imagem 3: Matéria do Grupo RBS, por Giana Cunha. Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=8tL0rGO-6PA&t=86s 28 Sarau Noturno: representações e sensibilidades sob o olhar da arte cemiterial Experenciamos a modalidade de palco, com a finalidade de levar o cemitério a outros públicos, realizando apresentações no Festival de Teatro de Dom Pedrito e no Teatro de Santa Thereza em Bagé. Levamos o cemitério para o palco usando o recurso de projeção dos túmulos e mausoléus sob uma tela. Porém observamos que muito da magia que ocorre nas apresentações no cemitério se perdeu, contudo, tais apresentações foram importantes uma vez que divulgaram o evento e despertaram a curiosidade de mais pessoas, que foram assistir à apresentação neste local. Em agosto de 2011, desenvolvemos oficinas de arte na Escola Estadual de Ensino Médio Frei Plácido, fruto de uma parceria com o Projeto Educação e Cidadania, do PROCIBA (Projeto Cidadão Bazgeense), coordenado na época pela professora Cláudia Corral. Nossas oficinas possibilitaram a organização de um novo grupo formado por alunos na faixa etária de 12 a 14 anos (Imagem 6). Dessa forma, houve a possibilidade de montarmos uma versão mais jovem do evento denominado Sarau Noturno Teen. hoje é o costume de não deixar de visitar os cemitérios das cidades por onde passo. Quando estou “mochilando”, seja no Brasil ou não, sempre incluo uma visita para apreciar as obras de arte locais dos cemitérios locais. Fiz isso em praticamente todas as cidades que visitei até hoje e posso recomendar fortemente os cemitérios do Montparnasse, em Paris, e de Highgate, em Londres. Assim como o Sarau Noturno, não vou aos cemitérios por motivações mórbidas, mas sim culturais e históricas. Observar os túmulos, localizar temporalmente a partir das datas nas lápides e verificar as mais diversas formas dos diferentes povos homenagearem seus mortos diz muito sobre a história de um lugar. Contemplar uma obra de arte cemiterial e supor a história daquelas pessoas é uma forma diferente de entender a história social dos lugares. (Lucas Rohan, Jornalista, Lisboa, 15 de fevereiro de 2016) Devido ao impacto e relevância, o Sarau Noturno foi matéria de capa da Revista Aplauso, de número 99, sob o título “Música e poesia no templo da morte”, escrita pela jornalista, Niela Bittencourt, que destacou trechos do roteiro e curiosidades do Sarau Noturno. A matéria foi ilustrada por fotos do fotógrafo Leko Machado (Imagem 5). Imagem 6: Sarau Noturno Teen, 2011.Fotografia de Tony Martins. Imagem 5: Matéria de capa da Revista Aplauso.Fotografias de Leko Machado Fonte. Fonte: Arquivos da autora. Destacamos que, apesar da escola estar localizada próxima ao Cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé, os alunos não conheciam o acervo escultórico do local e nem sua importância histórica. A partir das oficinas ministradas, ensaios e com a apresentação do Sarau Noturno, os alunos envolvidos no projeto passaram a conhecer a importância do local e tornaram-se multiplicadores desse conhecimento. Com a proposta do Sarau Noturno Teen conseguimos sensibilizar a comunidade escolar da região. Devido à projeção nacional, o Sarau Noturno ajudou a inspirar outros admiradores de arte cemiterial, como ocorreu com Julio Polli, memorialista mo- Fonte: Arquivo da autora. 29 Sarau Noturno: história de um projeto de valorização da arte cemiterial Em 2013, na disciplina de Mídia e Cultura do Curso de Comunicação produziu-se um documentário sobre o Sarau Noturno. O resultado foi o documentário “Urcamp Documenta Sarau Noturno”, que conta a trajetória sob a perspectiva de depoimentos de pessoas que participaram ou colaboram como projeto. E, a partir de 2015, passou a integrar o Curso de História, como projeto cultural de extensão (Imagem 8). rador da cidade de Jaú, São Paulo. Ele conta que tomou conhecimento do nosso trabalho que o estimulou a inicialmente promover passeios culturais diurnos e noturnos no Cemitério Municipal de Jaú Ana Rosa de Paula em 23 de julho de 2010 estreou o Sarau Arte Cemiterial: No início de 2009 tomamos conhecimento da pesquisa da professora Dra. Clarisse Ismério, da cidade de Bagé, que produzia um sarau no cemitério. Então, a princípio essa proposta me agradou muito, eu achei interessante. E pensei: porque não fazer isso no cemitério paulista da cidade de Jaú? Então me seduziu essa vontade de que aqui fôssemos realmente uma continuação desse trabalho tão bonito que a professora Clarisse Ismério realiza na cidade de Bagé. E no ano de 2010 começamos a fazer passeios monitorados. Em 23 de julho de 2010 inauguramos os passeios noturnos, sem ainda as atrações do Sarau. Começamos a fazer um trabalho metódico de passeios noturnos e diurnos atendendo escolas e turistas, mas o Sarau nós só conseguimos realizar no dia 2 de dezembro de 2011, foi o primeiro Sarau Arte Cemiterial do município de Jaú. Primeiro Sarau de arte cemiterial do estado de São Paulo e o segundo do Brasil”. (Julio Cesar Polli, Historiador, Criador do Sarau Arte Cemiterial, entrevistado para URCAMP documenta Sarau Noturno, 2013) Imagem 8: Apresentação do Sarau Noturno no Cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé, outubro de 2015. Fotografia de Jeferson Vainer. No ano de 2012, ocorreu uma apresentação especial do Sarau Noturno durante o IV Festival Internacional de Cinema na Fronteira, que ocorreu no mês de novembro em Bagé (Imagem 7). Estiveram presentes na apresentação, além do público fiel, cineastas do Brasil, América Latina e Europa que puderam apreciar a beleza e importância do evento. Imagem 7: Sarau Noturno durante IV Festival Internacional de Cinema na Fronteira, 2012.Fotografia de Tony Martins. Fonte: Arquivo da autora. Participaram das apresentações acadêmicos dos cursos de História, Jornalismo, Publicidade e Propaganda, Psicologia, Farmácia, Fisioterapia, Agronomia, Ciências Biológicas, Administração e Sistemas de Informação. E podemos constatar que a possibilidade de participar do Sarau Noturno auxiliou no processo de desenvolvimento da autonomia e protagonismo dos acadêmicos, como salientam: Como estudante do curso de Biologia, a participação em um evento cultural de cunho universitário, artístico, literário e histórico fez com que as faculdades mentais ganhassem expansão, de maneira que até o conhecimento científico foi envolvido por distintas áreas, graças ao Sarau. Ademais, estar presente em uma etapa de transição desta peculiar Fonte: Arquivos da autora. 30 Sarau Noturno: representações e sensibilidades sob o olhar da arte cemiterial Fazer a publicação do primeiro livro foi extremamente importante para marcar nossa a autoria na comunidade, pois apareceram pessoas em Bagé e outras localidades que se nomeavam criadoras do evento, e para ampliar a representatividade do Sarau Noturno no meio acadêmico. Na apresentação a grande pesquisadora da arte cemiterial, Maria Elizia Borges, destacou o ineditismo, importância e peculiaridades da proposta do Sarau Noturno: cerimônia despertou orgulho por este ideal. Saber que tal espetáculo passou de incompreendido para internacionalmente respeitado e conhecido, nos faz remeter ao enaltecimento desta criação. que defende e justifica com razão o passado de um município, contado de uma forma totalmente inusitada e inovadora. (Gabriel Fernandes, acadêmico do Curso de Ciências Biológicas, 2018). Os projetos de pesquisa e extensão enriqueceram sobremaneira minha jornada acadêmica. Eles me mostraram um universo de possibilidades que posso seguir na carreira escolhida. (...) Ainda dentro da extensão, fazer parte desse universo me proporcionou ingressar numa experiência até então inimaginável que foi o Sarau Noturno. Participar de um movimento cultural de tamanha importância para nossa cidade e região foi uma vivência incrível. (Márcia Cristina Domingues Leite, Curso de Sistemas de Informação, 2017). (...) ele foi pioneiro no Brasil e conta com a participação de alunos universitários que realizam performances bem complexas: representam personagens da literatura romântica vestidos a caráter; declamam poesias, cantam trechos musicais e teatralizam o contexto histórico bajeense à medida que adentram o cemitério. (BORGES, 2016) O livro foi lançado no Congrega Urcamp 2016, em São Gabriel; no XVIII Encuentro Iberoamericano de Cementerios Patrimoniales, Santo Domingo, República Dominicana (imagem 10); e na 10a. Feira do Livro de Bagé. Durante os anos de atuação o Sarau Noturno presenteou o público com apresentações que destacavam a importância histórica e artística do local. E gradativamente foi se consagrando como um evento cultural reconhecido pela comunidade de Bagé, cuja projeção ultrapassou as fronteiras nacionais e internacionais, através de artigos científicos, palestras, apresentações de trabalhos e do livro publicado pela editora Chiado, de Lisboa em 2016, com fotos de Jeferson Vainer (Imagem 9). Imagem 10:Lançamento do livro do Sarau Noturno no XVII Encuentro Iberoamericano de Cementerios Patrimoniales. Imagem 9: Livro Sarau Noturno, Chiado, Lisboa. Fonte: Editora Chiado. Fonte: https://www.facebook.com/clarisse.ismerio/posts/10207835571792152 31 Sarau Noturno: história de um projeto de valorização da arte cemiterial Outro ponto marcante na trajetória do evento foi a apresentação adaptada ao Cemitério Britânico, de Montevidéu, que ocorreu no XVIII Encontro da Red Iberoamericana de Valoración y Gestión de Cementerios Patrimoniales (Imagem 11 e 12). A RED foi criada em 2000 em Medellín Colômbia e a cada ano realiza seu encontro, reunindo pesquisadores de diversos países, para fortalecer o diálogo entre os saberes científicos e práticos voltados para a preservação do patrimônio cemiterial. O público que prestigiou o Sarau Noturno, ao longo dos anos, sensibilizou-se com a proposta, pois foi possível entender seu significado e a proposta de valorizar a memória das famílias, bem como promover o cemitério como um museu a céu aberto. Observamos, nas falas e na vibração do público em cada apresentação, que foram sensibilizados sobre a importância cultural do acervo de arte cemiterial e de sua preservação. Imagem 11 e 12: Apresentação do Sarau Noturno no Cemitério Britânico, 9 de novembro de 2017. Os saraus deram vida ao cemitério. Ao lugar de onde menos se poderia esperar que viesse vida e fizeram com que as pessoas colocassem um pouco de passado em seu presente, ao mesmo tempo que foram um verdadeiro presente ao nosso passado. Foram um grande êxito. (Nilo Rossel, professor, 2016) O Sarau noturno representou, culturalmente, um olhar diferenciado sobre as obras de arte no município. Arte, literatura, história mesclaram-se e oportunizou a quem assistiu uma excelente oportunidade de conhecer um pouco sobre aquelas pessoas, situações de sua vida e da própria história do local. O que falar de um evento que mistura Arte, Literatura e História: simplesmente perfeito, pois consegue fazer com que o conhecimento adquirido através de pesquisas no âmbito da Universidade seja traduzido e exposto para toda a Comunidade de uma forma diferenciada, única e interessante. Quem poderia dizer que se faz “arte” em “cemitério”? Hoje tenho a certeza de que locais como este representam um espaço artístico, literário e histórico e podem, sem sombra de dúvidas, mostrarem-se como objetos de estudo para a Universidade fazendo com que a própria comunidade perceba seu valor de uma forma diferenciada. (Rafael Sais, Administrador, 2016). A apresentação de dez anos do Sarau Noturno, que ocorreu no congrega Urcamp 2018, propiciou a criação de um vídeo institucional, que possibilitou uma ampla divulgação do evento, via facebook. Atualmente o vídeo possui mais de 4 mil visualizações. (Imagem 13) Fonte: Arquivos da autora. 32 Sarau Noturno: representações e sensibilidades sob o olhar da arte cemiterial No ano de 2019, além das apresentações, também foram oportunizados passeios culturais no cemitério para escolas, eventos e comunidade proporcionando maior conhecimento sobre a importância da preservação da arte cemiterial. Destacamos que o Sarau Noturno, ao longo de suas apresentações e produções científicas, conseguiu sensibilizar a população de Bagé e região sobre a importância de preservar o acervo escultórico presente no Cemitério da Santa casa de Caridade de Bagé. Uma das evidências observamos na crescente busca pelo turismo cemiterial, registrado pelo programa #PartiuRS (Imagem 15). Imagem 13: Vídeo institucional da apresentação de 10 anos do Sarau Noturno, 2018. Imagem 15: #PartiuRS: conheças as atrações turísticas da cidade de Bagé, exibição em 21 de setembro de 2019. Fonte: https://www.facebook.com/watch/?v=2358844901069842 No primeiro semestre de 2019 selecionamos um novo grupo de acadêmicos para compor o Sarau Noturno e os ensaios, ocorreu a primeira apresentação no dia 28 de setembro, às 16 horas no Cemitério da Santa Casa de Bagé, primeira de um ciclo de quatro (Imagem 14). Imagem 14: Matéria sobre as apresentações do Sarau Noturno, 2019. Fonte: https://globoplay.globo.com/v/7940903/?fbclid=IwAR0YDk3rP48JlFBOUwAkIo1E4n-yYuRIC1Y6jIzFPPRpsja25FZjUbzN1gE Considerações finais O Sarau Noturno resultou de uma minuciosa pesquisa desenvolvida nos túmulos, jazigos e mausoléus do Cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé. Um cemitério, que iniciou com modestas catacumbas em 1858 e, com o passar dos anos, cresceu e formou um acervo escultórico de grande riqueza e simbolismo, tanto por seu valor artístico como por traduzir a mentalidade e história de uma época gloriosa. Constitui-se, como um grande “museu a céu aberto” cujo patrimônio cultural, permite reconstituir a história das famílias tradicionais, a mobilidade social, as representações simbólicas e a mentalidade da época, fruto da opulência econômica do município. Assim criamos o Sarau Noturno, para sensibilizar e contar um pouco da história de Bagé, mesclando com passagens e personagens da literatura romântica. Fonte: https://www.jornalminuano.com.br/noticia/2019/09/18/sarau-noturno-retoma-apresentacoes-no-final-deste-mes 33 Sarau Noturno: história de um projeto de valorização da arte cemiterial Um evento sensível, instigante e cativante, que envolve acadêmicos e comunidade num processo reflexivo de valorização da arte cemiterial e da história local. Observamos que, ao longo dos anos de atuação e produção científica, o Sarau Noturno contribuiu na formação cultural dos acadêmicos que participaram do projeto e da comunidade de Bagé, que passaram a ver o cemitério com “outros olhos” e a valorizar seu patrimônio cultural. Portanto, se constitui como um projeto de ensino transformador por proporcionar o desenvolvimento contínuo das competências pessoais e profissionais dos envolvidos sob a compreensão da educação patrimonial. Mas a história do Sarau Noturno não acaba aqui, pois como veremos no próximo capítulo, muito mais ainda estava por vir…. 113-127, 2013. LERNER, Gerda. A Criação do Patriarcado. História da opressão das mulheres pelos homens. São Paulo: Cultrix, 2019. LIMA, Tânia Andrade. De morcegos e caveiras a cruzes e livros: a representação da morte nos cemitérios cariocas do século XIX. In: Anais do Museu Paulista, v.2. São Paulo, p. 87-150, 1994. Disponível em: <http://www.journals.usp.br/ anaismp/article/view/5297/6827>.Acesso em: 05 de agosto de 2018. LYOTARD, Jean-François. O pós-moderno explicado às crianças. 2. Ed. Lisboa: Dom Quixote, 1993. Referências QUEIROZ, Francisco. Os cemitérios históricos e o seu potencial turístico em Portugal. In.”Anuário 21 Gramas”, n.º1, 2008, p. 7- 12. Disponível em: <http://www.franciscoqueiroz.com/Cemiterios_historicos_Potencial_Turistico_Portugal_ versao_21_gramas.pdf>.Acesso em 31 mai 2016 BASTIANELLO, Eliane M. Tonini. Os monumentos funerários do Cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé e seus significados culturais: memória pública, étnica e artefactual (1858-1950). 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Pesquisador bolsista do projeto de Metodologias Ativas para o Ensino de História e Área de Humanidades. darlan6367@gmail.com 3 Acadêmica do Curso de Direito da Urcamp, membro da equipe de audiovisual do Sarau Noturno, pesquisadora voluntária do projeto Metodologias ativas para o ensino de História e área de humanidades. amandaantunesdocouto@hotmail.com 4 Acadêmica do Curso de Jornalismo da URCAMP, membro da equipe de audiovisual do Sarau Noturno, pesquisadora voluntária do projeto Metodologias ativas para o ensino de História e área de humanidades. alanagoncalves@urcamp.edu.br Novo Sarau Noturno: breve história da virtualização de um evento cultural Introdução A proposta do Novo Sarau Noturno foi apresentada num evento online no dia 15 de agosto de 20206. A noite iniciou com palestra da Dra. Fernanda Pedrazzi, docente da UFSM, com o tema “A importância dos cemitérios como guardiões do patrimônio”. E na segunda parte os integrantes do Sarau Noturno apresentaram seus personagens (imagem 1). Em 2020 um novo grupo de alunos integrou-se à trupe do Sarau Noturno5, mas ninguém imaginou o que estava por vir. Um ano de exceção marcado pela pandemia do Covid-19, no qual ficamos imersos em plataformas virtuais, telas de computador, câmeras, microfones, links de vídeo conferências, lives e ensino por meio remoto. E, pela estrutura como foi criado o Sarau Noturno, supostamente deveria ter parado como todos os outros eventos culturais, porém ocorreu exatamente o contrário. Os anos de 2020 e 2021 foram marcados pela reinvenção e reconstrução do Sarau Noturno, sendo criada uma nova proposta de apresentação, novo roteiro, cenário virtual adaptado, apresentação via YouTube e um filme. Assim apresentamos a transformação do Sarau Noturno, do presencial para o universo virtual, destacando a nova linguagem cênica criada e os produtos fruto do processo de reinvenção conceitual e cênica. Imagem 1: Palestra e apresentação da proposta do Novo Sarau Noturno. Novo Sarau Noturno Fonte: Acervo do projeto. O Sarau Noturno foi criado seguindo a proposta metodológica da educação patrimonial visando propiciar a valorização e preservação da arte cemiterial, por meio da “ativação da memória social, recuperando conexões e tramas perdidas”. Assim busca promover “a apropriação pelas comunidades de sua herança cultural, resgatando ou reforçando a autoestima e a capacidade de identificação dos valores culturais” (HORTA, 2000, p.35). E, ao ser transportado para o meio virtual, essa proposta foi mantida, buscando “ambientar os monólogos e cada personagem, com base em sua posição física no evento presencial, foi imprescindível junto à unidade e concepção estética padrão criada ”afinal essa proposta foi mantida, buscando trazer as representações simbólico-culturais tocantes a arte cemiterial que são” presentes por entre o espaço cemiterial da Santa Casa de Caridade de Bagé. O mesmo ocorre com “as questões simbólicas tocantes à arte cemiterial se fazem presentes da mesma forma que o ambiente presencial, com seus túmulos ao lado e ambientados por fundos semelhantes” (ISMÉRIO, COUTO e ROSA, 2021, p. 29). O evento foi nitidamente um sucesso e estiveram presentes prestigiando-o os integrantes da Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais (ABEC), da Rede Iberoamericana de Estudos Cemiteriais, mestrandos do Programa de Pós-Graduação de Patrimônio da Universidade de Santa Maria, o consultor Daniel Sperb, professoras, acadêmicas(os) da Urcamp e comunidade. Contudo, um novo produto deve ser amplamente divulgado, para ser aceito no pela comunidade e mercado. Assim formou-se a equipe de marketing e audiovisual, composta inicialmente por Amanda do Couto e Darlan Almeida da Rosa, sendo reforçada em 2021, por Alana Portella, voltada para atingir o público com diferentes linguagens informativas, como vídeos de fragmentos dos monólogos através da ferramenta IGTV; chamadas para o Facebook e Instagram institucionais e do próprio Sarau Noturno, com imagens de jazigos, estátuas e símbolos; além da contagem regressiva com alguns dos personagens. Foram criadas chamadas, para o facebook e instagram institucional e do próprio Sarau Noturno, com imagens de jazigos, estátuas e símbolos (imagem 2), além de uma contagem regressiva explicitando alguns dos personagens, até o dia da apresentação (imagem 3). 5 Constituindo-se, atualmente como um projeto cultural de ensino, no qual participaram as (os) acadêmicas (os) formado pelas(os) acadêmicas(os) Amanda Antunes do Couto (Direito), Amanda Aires Bispar (Direito), Ana Carolina Moraes da Silva (Ciências Biológicas), Alana Portella (Jornalismo)Camila Barcellos (Direito), Darlan Almeida (Arquitetura), Kátia Silene Antunes da Silva (História), Mateus Mesk Ferreira (Psicologia), Raiana Lima Barreto (Ciências Biológicas), Rayssa Bitencourt(Thanise Maçã Machado Miranda (Ciências Biológicas), Vinícius Rodrigues Ferreira (Arquitetura) e Vivian Torbes (Nutrição), além de ter contado com a participação especial de Cauã Ita. 6 Esse evento foi proposto pelo acadêmico Darlan Almeida da Rosa e acolhido por todos os componentes do grupo. 36 Sarau Noturno: representações e sensibilidades sob o olhar da arte cemiterial Imagem 2: Artes de divulgação para o dia 31 de outubro. As artes produzidas pela equipe de marketing e audiovisual metaforicamente, evidenciaram através das cores e dos aspectos diagramáticos, uma nova etapa do projeto de ensino, por meio das pinceladas em aquarela, sutis e derradeiras, uma vez que a pintura em aquarela se trata de experimentações, criações e concepções criteriosas em seu processo de estudo e criação, dessa maneira, gotejam novas reinvenções e empoderamento das próprias ideias. Sendo as ambientações e performances, de acordo com as especificidades de cada personagem, somadas as iluminações, efeitos visuais e sonoros, que ao serem utilizados, agregaram a dramaturgia dos atos. E para a inserção do universo ciber foi criado um cenário virtual, utilizando a ferramenta OBS Studio7, alicerçado na plataforma do Google Meet para ser transmitida via YouTube em uma Live. A plataforma de vídeo pré-estabelecida, proporciona as usuais videoconferências, um meio visual mais direto e pessoal, onde a presença de cada personagem se daria de maneira inteiramente desprovida de contextualizações e ambientações, revelando demais o “por de trás das cortinas”. Destarte, demonstrava-se restrito e dependente do espectador, tendo em vista o caráter autônomo de acessibilidade da própria ferramenta, o que exigia do público uma compreensão a respeito do manuseio e um conhecimento da cronologia a ser apresentada. Tais pontos afastam dos produtores o controle da experiência, que em contraponto a um produto audiovisual que possui um aspecto individual em sua produção, também gera percepções subjetivas e mutáveis de acordo com as individualidades múltiplas, sendo assim, necessitava-se de um veículo que refletisse tal qual como um construto cinematográfico em sua exibição. Colocando em evidência a necessidade de promover uma imersão controlada no modo de apresentação do evento, pensou-se em possibilidades que abrangessem e colaborassem para a ambientação dos monólogos e simbologias do espaço cemiterial, sem perder o dinamismo. A plataforma de videoconferência pré-estabelecida, estagnava os objetivos propostos: desmistificação, desconstrução e, principalmente, a ambientação das falas que aludem aos túmulos existentes no Cemitério da Santa da Casa de Caridade de Bagé. Com isso, o pilar inicial, a imersão, norteou o desenvolvimento do veículo de apresentação, antes por videoconferência e agora via transmissão igualmente em tempo real, devidamente munidos de ferramentas criativas que permitiram não só apoiar a identidade visual concebida, mas igualmente a sua ambientação, Fonte: Acervo do projeto. Imagem 2: Contagem regressiva para o dia 31 de outubro. 7 Open Broadcaster Software, ou OBS Studio, é um software de transmissão e gravação gratuito. O mesmo permite total personalização e customização dos veículos de indexação dos personagens, onde além de ambientar os aspectos cênicos, climatizou-se e creditou-se igualmente a uma nomenclatura cinematográfica, afinal, desprendido de seu caráter físico, o conjunto inteiro do programa fez com que o produto final pudesse ser alterado de acordo com as necessidades e programações visuais que foram e serão produzidas. Fonte: Acervo do projeto. 37 Novo Sarau Noturno: breve história da virtualização de um evento cultural buscadas para este fim, onde o aspecto subjetivo prevalece, porém inalterado em sua essência, afinal os produtores, por sua vez, mantiveram o controle por trás dos bastidores. Ambientar os monólogos e cada personagem com base em sua posição física no evento presencial, foi imprescindível juntamente da unidade e concepção estética padrão criada. As questões simbólicas tocantes a arte cemiterial, se fazem presentes da mesma forma que o ambiente presencial, com seus túmulos ao lado e ambientados por fundos semelhantes. Assim, possibilitamos que os telespectadores além de encararem o evento como uma peça de teatro virtual, também o entendessem como um pequeno filme. A divisão em atos, correlacionados entre si, bem como a apresentação ao vivo, aludem ao ambiente teatral, mas a colocação dos recursos digitais, somada a possibilidade de revisitar este ambiente posteriormente, trazem o espírito cinematográfico e a conscientização acerca do acervo cemiterial de valor histórico, simbólico e cultural contido nos túmulos, jazigos e estátuas ao levar para o âmbito digital, as experiências do museu a céu aberto. E finalmente, após uma ampla divulgação e inúmeros ensaios na plataforma do Google Meet, o novo Sarau Noturno foi lançado via YouTube, no dia 31 de outubro de 2020 (Imagem 5 e 6), totalmente adaptado ao mundo virtual. A primeira apresentação contou com um público bastante expressivo, composto por 178 assistentes, dos quais professores, coordenadores, alunos da Urcamp, comunidade de Bagé. A apresentação continua disponível na plataforma do YouTube do Sarau Noturno. Imagem 5: Apresentação do dia 31 de outubro de 2020. Fonte: Arquivo do projeto. Disponível em: <https://youtu.be/fiF9n3gsmGk>. Ao conhecer o Sarau Noturno no novo formato, o designer Daniel Quintana Sperb (2021), destaca que trata-se de “um dos mais lindos e inovadores projetos que já vi. Pesquisa, ensino e extensão gerando aprendizado significativo e marcando para sempre a vida de todos os envolvidos. Digno de dar orgulho as maiores referências em educação de todos os tempos!” Para produzir uma apresentação virtual que instigasse a curiosidade, atenção e proporciona-se uma imersão dos espectadores foram necessários alguns cuidados técnicos imprescindíveis: E para a inserção no universo cyber foi criado um cenário virtual, utilizando a ferramenta OBS Studio somado à ferramentas de manipulação, tratamento e pós-produção de imagem, alicerçado na plataforma do Google Meet para ser transmitida via YouTube em uma live. A plataforma de vídeo pré-estabelecida proporciona as usuais videoconferências, um meio visual mais direto e pessoal, onde a presença de cada personagem se daria de maneira inteiramente desprovida de contextualizações e ambientações, revelando demais o ‘por de trás das cortinas’ (ISMÉRIO, COUTO e ROSA, 2021, p. 29). Imagem 4: Apresentação do dia 31 de outubro de 2020. Ocorreram mais duas apresentações, sendo a de 28 de novembro especial para o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) e Residência Pedagógica da Urcamp, a convite da coordenadora institucional, professora ngela Carretta, e de a encerramento de temporada dia 12 de dezembro. Em 2021 o desafio foi ainda maior, pois se concentrou na criação do Novo Sarau Noturno: o filme, sendo pensado e idealizado por conta do isolamento social, explorando os recursos audiovisuais para explanar as personalidades, ima- Fonte: Arquivo do projeto. Disponível em: <https://youtu.be/fiF9n3gsmGk>. 38 Sarau Noturno: representações e sensibilidades sob o olhar da arte cemiterial ginários e simbolismos expressos por entre o espaço cemiterial da Santa Casa de Caridade de Bagé/RS. E para divulgação foram criados pôster e teaser (imagens 6 e 7). Imagem 7: Teaser Novo Sarau Noturno: o filme Imagem 6: Poster Novo Sarau Noturno: o filme. Fonte: Acervo do projeto. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=HMl2YPJi29g> O teaser do filme, ao evidenciar as pinceladas revelando cada personalidade a ser apresentada no produto final, além da dramaticidade, trouxe ao público as novas possibilidades e um novo amadurecimento vigente, uma vez que, os novos recursos audiovisuais, trabalham para com a construção dos entendimentos acerca das personalidades ali expressas, afinal a sonoridade evidente, fora pensada de acordo com as singularidades de cada ato e individualidade. O poster de divulgação, ao ser idealizado em sua disposição e representação gráfica, tomou como norte, o objetivo de difundir as personalidades ali inseridas, bem como aqueles que os representam, tomando como base posters de divulgação cinematográfica. Ao trazer as singularidades e composições de cada monólogo através de suas feições, foi possível caracterizar e apresentar seus respectivos universos, composições e performances. No dia 15 de julho de 2021, foi lançado o filme Novo Sarau Noturno: o filme (Imagem 8), que mantém o roteiro e o argumento inicial da proposta imersiva e dinâmica possibilitada pelas apresentações físicas e virtuais, porém ao alicerçar e explorar de maneira mais aprofundada os artifícios técnicos proporcionados pela pós produção audiovisual, ambientou-se para além dos aspectos estéticos, mas principalmente, sonoros, que anteriormente se davam de maneira homogênea no produto visual. Fonte: Acervo do projeto. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=GtyroIcpl0o> 39 Novo Sarau Noturno: breve história da virtualização de um evento cultural Imagem 9: Personagens do Sarau Noturno. Imagem 8: Matéria sobre o Novo Sarau Noturno: o filme Fonte: Arquivo do projeto. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=GtyroIcpl0o> A licença poética da cena ocorre ao juntarmos duas personalidades de Bagé, cujos feitos repercutem na história do Rio Grande do Sul, pela rivalidade durante a Guerra Farroupilha, que ao se desafiarem para um duelo, são interrompidos por Lisístrata, protagonizada pela acadêmica Ana Carolina Moraes, do Curso de Ciências Biológicas. A acadêmica fala da experiência e adaptação de representar via meio virtual. Fonte: Jornal Minuano. Compreender as linguagens cênicas e atrelar as mesmas ao formato cinematográfico, exigiu compreensão das peças visuais, retratando passagens a nível de roteiro, agora no âmbito das telas, desde sua introdução até seus créditos. Para tanto, através de uma estrutura que assume um papel cinematográfico, somando os atos teatrais as passagens proporcionadas pelas mesclas entre as musicalidades, que em sua totalidade, evidenciam um construto audiovisual, onde as dramaticidades possuem uma linearidade apresentando, desenvolvendo, celebrando e findando a apresentação. Neste momento, cada personagem sendo acrescido com notórias sonoridades específicas, possibilitou dramatizar dores, anseios, contendas, angústias. Cujo clímax ocorre no duelo entre o Visconde de Cerro Alegre, General Netto e Lisístrata (Imagem 9). A minha personagem no Sarau é a Lisístrata, que é uma mulher forte, que vive em um meio extremamente machista que está em uma longa guerra, e neste contexto onde as mulheres não tem voz, ela resolve gritar, e agir para acabar com a guerra e acaba denunciando tudo o que as mulheres passam diante do machismo. Interpretar essa personagem na forma virtual foi um desafio, porque ela carrega uma carga emocional muito grande, ela não aguenta mais viver sob as regras impostas pelo patriarcado, e tudo isso tem que ser transmitido para o público muito mais através da expressão facial e voz, já que o virtual limita um pouco a expressão corporal; além dos demais desafios que todo o grupo desde a direção, produção e elenco conseguiram se adaptar. E na minha concepção, um dos pontos positivos que o virtual nos possibilita é o maior 40 Sarau Noturno: representações e sensibilidades sob o olhar da arte cemiterial alcance do público, a oportunidade de cada vez mais pessoas de lugares distintos conhecerem o Sarau Noturno, que é um projeto incrível que valoriza a ciência, sensibiliza, convida à reflexão, quebra tabus e conta a história através da arte.(Ana Carolina Moraes, depoimento de 24 de setembro de 2021) Imagem 11: Imagens do Cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé. Darlan Almeida da Rosa, acadêmico do Curso de Arquitetura e Urbanismo, reflete sobre a experiência de dar voz a dois personagens dramaticamente dicotômicos, como o herói trágico Hamlet e o bélico Visconde de Cerro Alegre. Enquanto um integrante que ao ingressar no projeto, nunca havia sentido e presenciado a sensação de encenar fisicamente no espaço do cemitério, se tornou um desafio de início, afinal por muitas vezes tendemos a nos amparar a materialidade dos espaços com o objetivo de nos empoderarmos dos mesmos, bem como a história que carregam. Mas interpretar duas personalidades tão ímpares em seus trejeitos, um militar e um personagem da literatura romântica, nunca passaram pela minha cabeça, ainda mais arraigar em si um ideário de gênero ainda hoje presente no militarismo, bem como os devaneios e dramaticidades de um personagem por muitos incógnito. Empatia se resume a tomarmos os sentimentos e vivências externas para que se compreenda a dor, a perda, a felicidade e etc, do outro. Compreender m undos tão afastados: ódio e a o próximos fez com que se surgisse uma paixão evidente pelas performances, que pude transpassar juntamente de minha paixão pelo audiovisual (Darlan Almeida da Rosa, 23 de setembro de 2021). Fonte: Arquivo do projeto. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=GtyroIcpl0o> No filme, a dramaticidade e protagonismo feminino, salienta-se ainda mais pelos efeitos cênicos e dramaticidade das acadêmicas, quebrando, mais uma vez, com a invisibilidade social e submissão preconizada na arte cemiterial. Cabe salientar que, as acadêmicas ao conhecer e representar mulheres fortes, repensam seus saberes e transformam suas vidas (Imagens 12). Imagem 12: Personagens femininos do Sarau Noturno. E, sem perder a proposta inicial do Sarau Noturno de valorizar a arte cemiterial, os túmulos, símbolos e estátuas do Cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé também protagonizam o filme, dispostos via sobreposição de imagens fotográficas no texto de abertura da mestre de cerimônias (Imagens 10 e 11). Imagem 11: Imagens do Cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé. Fonte: Arquivo do projeto. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=GtyroIcpl0o> Fonte: Arquivo do projeto. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=GtyroIcpl0o> 41 Novo Sarau Noturno: breve história da virtualização de um evento cultural A personagem shakespeariana Ofélia, jovem donzela que enlouquece e se suicida ao ser rejeitada por Hamlet e pela depressão oriunda da morte do pai, também se faz presente no sarau. Ofélia em sua fragilidade “expressa a angústia das mulheres sufocadas e cerceadas pela tradição conservadora da sociedade”. (ISMÉRIO, 2020, p. 160) Thanise Miranda, acadêmica do Curso de Ciências Biológicas, descreve sua emoção em viver a personagem e a satisfação de fazer parte do projeto. outra visão para a narrativa contada. É com certeza uma ótima experiência vivenciar estes dois lados. (Alana Portella, 23 de Setembro de 2021). A comparação entre viver a personagem nas apresentações presenciais e transportá-la para a o universo virtual foi expressada por Amanda Antunes, acadêmica do Curso de Direito. Amanda empresta a sua voz para dar vida a duas personagens de realidades opostas, a rainha do lar e a feminista. Participar do Sarau Noturno tem sido uma experiência única, mesmo que de forma virtual. Minha personagem é a Ofélia, uma jovem que ficou cegamente apaixonada de forma platônica. No início foi um desafio realizar tudo online, mas com o esforço e dedicação de todos o projeto está cada vez mais lindo e elaborado. Fico muito contente de fazer parte desse grupo e também de aprender mais sobre arte e história. E indico a todos assistirem pelo menos uma vez, não vão se arrepender. (Thanise Miranda, depoimento de 23 de setembro de 2021). Entrei no Sarau no primeiro semestre da faculdade em 2019 e por isso tive o prazer de vivenciar os ensaios presenciais no nosso palco que é o Cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé. Era uma experiência nova, com bastante movimento e expressão. A personagem que a professora me designou, em um primeiro momento, foi a Feminista. No momento que li o texto pela primeira vez, já me apaixonei por ela e pela possibilidade de mostrar através da arte esse movimento de crítica. Foi quando outra pessoa que participava do grupo deixou o papel de Rainha do Lar, que a professora perguntou se eu tinha interesse em fazer as duas, disse que sim, pois estava disposta a me desafiar. Ao atuar como as duas personagens, me vi vivendo dentro da dinâmica interna que muitas mulheres vivem, a de sentir a pressão social de ser uma rainha do lar e o desejo voraz de manifestar-se e criticar estas imposições como a feminista. Interpretar estas ideias de mulher, sendo uma jovem mulher, foi uma jornada de autoconhecimento, procurei não apenas decorar os textos mas, através dos ensaios em grupo e individual, talhá-los em meus pensamentos, refletir sobre eles a cada encontro. As personagens trazem à tona estes ideais de mulher, de forma a dar voz e vez a tantas mulheres que vivenciaram na vida real estes papéis e foram silenciadas e invisibilizadas. Lembro dos primeiros ensaios, em que a professora nos auxiliou a nos posicionarmos de acordo com cada personagem, e das apresentações, em que precisávamos passar por atalhos estratégicos entre os túmulos para chegarmos aos nossos postos. Ter o público tão perto, olhar no rosto das pessoas que nos assistiam performar era um momento único e de puro êxtase que não vejo a hora de se repetir. Quando a pandemia chegou vimos a necessidade de nos reinventarmos, pois além de sentir que era importantíssimo não deixar o projeto parar, o grupo em si era de uma convivência muito boa e, honestamente, sentíamos falta de nos reunirmos, então retomamos os ensaios por meio de videoconferência. Foi bem diferente! Percebemos que este novo meio precisava de uma abordagem distinta, para os personagens que antes requeriam movimentos e gestos, agora era necessário transparecer pela expressão facial. Neste ritmo de adaptação, construíram-se ideias de como fazer a apresentação online com o sabor da presencial. A melhor maneira que encontramos foi a transmissão ao vivo via Youtube, momento em que performavamos enquanto o público assistia, assim como na apresentação presencial. Contudo, essa imersão no mundo digital abriu as portas para possibilidades que não tínhamos no meio presencial, como por exemplo, adicionar efeitos de iluminação e sonoros, edição de imagem e transições diversificadas. Deste ponto veio a ideia de fazer um filme, em que poderíamos gravar nossa encenação e incutir sobre ela todas as novas ferramentas, para criar algo único, que somente o virtual nos proporciona. (Amanda An- Na nova versão do Sarau Noturno o roteiro foi modificado em algumas partes, tendo como acréscimo uma personagem que conta a história de Luciana Lealdina de Araújo, mãe Luciana, que dedicou sua vida à caridade e acolhimento de crianças órfãs em Pelotas e Bagé. Consideramos que ao reavivar nas representações valorizamos a vida e obra de uma mulher ímpar, que hoje descansa num modesto túmulo do Cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé. Para a acadêmica do Curso de História, Kátia Sillene Silva, “ser convidada para contar a História de uma mulher tão forte como Mãe Luciana foi uma honra. O Sarau me proporcionou isso e eu consegui perder a timidez na Modalidade Virtual”. (Kátia Sillene Silva, depoimento de 24 de setembro de 2021) Outra alteração no roteiro foi a inclusão da Rainha Elisabeth I, para a qual foi adaptado o Discurso do dia de São Crispim, da peça Henrique V, de William Shakespeare, interpretada por Alana Portella, acadêmica do Curso de Jornalismo. Alana, que já havia participado, quando muito jovem, do Sarau Noturno interpretando uma carpideira narra sua experiência e envolvimento com o evento. Minha experiência tem sido fantástica com o Sarau Noturno. Anteriormente já havia participado como Carpideira, contracenando com o público de forma presencial e trazendo significado às jovens que tinham o papel de lamentar o túmulo do falecido. Desta vez, retornando de forma virtual ao Projeto de Ensino, foi perceptível a maturidade obtida para contracenar Rainha Elizabeth I, a predestinada a coroa e subordinada ao poder. São personagens marcantes e fortes, cada uma com suas características que as tornam únicas. Foi preciso muito estudo e comprometimento nesta nova etapa do Sarau Noturno. Ao produzir apresentações e um filme de forma totalmente virtual, foi libertada a criatividade de cada um, criando cenários e efeitos especiais que dão 42 Sarau Noturno: representações e sensibilidades sob o olhar da arte cemiterial CALDEIRA, J. S. (2014). O Asilo de Órfãs São Benedito em Pelotas – RS (as primeiras décadas do século XX): trajetória educativa-institucional. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, Rio Grande do Sul. Disponível em: <http://guaiaca.ufpel.edu.br:8080/handle/ri/2809>. Acesso em : 20 ago. 2020. tunes do Couto, depoimento enviado em 23 de setembro de 2021). Nos depoimentos que as muitas vozes que compõem o Sarau Noturno, observamos a dedicação e comprometimento, que se configura como uma marca dessa trupe de atuadores, que conseguiu levar uma representação cênica teatral para o espaço digital com muita autenticidade. HORTA, M. L. P. (2000). Fundamentos da educação patrimonial. Ciências e Letras: Porto Alegre, n.27, p. 25-35. Considerações Finais Reinventar e ressignificar um evento consagrado como o Sarau Noturno não foi uma tarefa fácil, mas por outro lado a garra das(os) acadêmicas(os) foi determinante, cujas aptidões em áreas extremamente plurais, proporcionaram um universo de possibilidades para além das experiências trancafiadas no ambiente de sala de aula, onde por vezes, o academicismo expurga a criatividade, e deixa estar apenas os aspectos inteiramente produtivos dos processos; o processo aqui, se tornou um deleite para aqueles que se envolveram e imergiram em ideias que anteriormente, pareciam utópicas E, na adaptação ao mundo digital, as peças publicitárias, apresentações virtuais e o filme, ofereceram uma nova proposta de educação patrimonial totalmente voltada para o ambiente virtual. Consideramos oportuno destacar, que a reinvenção não foi somente do evento e seus recursos técnicos, mas de todas(os) nós, que nos desafiamos e saímos da zona de conforto, para adentrar num universo totalmente novo de atuação cênica. E, como já foi explicitado, o Sarau Noturno é um projeto de ensino desenvolvidos por acadêmicos e não por profissionais da área teatral. E mais que tudo isso, nos reconstiuímos como indivíduos, pois o trajeto percorrido aos longo desses anos de instabilidade pandêmica, fortaleceu nossas convicções de que não há limites para uma educação cultural transformadora. Assim, Sarau Noturno inova mais uma vez pelo pioneirismo, preconizando uma proposta de educação patrimonial disruptiva pautada no protagonismo acadêmico e no comprometimento com a preservação e celebração da memória, da história e da arte cemiterial. #somososaraunoturno ISMÉRIO, C.; COUTO, A. e ROSA, D. Novo Sarau Noturno: do presencial ao virtual. In: ISMÉRIO, C. (Org.). Patrimônio Cultural: simbolismos, intertextualidades e polifonias [livro eletrônico]. São Paulo: Vecher, 2021. Disponível em: <https://doi.org/10.47585/9786599324215>. ISMÉRIO, Clarisse. Vozes Femininas do Sarau Noturno: refletindo a arte cemiterial sob a perspectiva das representações e olhares femininos. Revista M. Estudos sobre a morte, os mortos e o morrer, [S. l.], v. 5, n. 9, p. 142–160, 2020. Disponível em: <http://seer.unirio.br/revistam/article/view/9360>. Acesso em: 29 set. 2021. ISMÉRIO, C. (2016). Sarau Noturno. Lisboa: Editora Chiado, 2016. Referênciais BELLOMO, Harry (2000). Cemitérios do Rio Grande do Sul: arte, sociedade, ideologia. Porto Alegre: EDIPUCRS. 43 Sarau Noturno: representações e sensibilidades sob o olhar da arte cemiterial (In)Visibilidades femininas na arte cemiterial Clarisse Ismério1 1 Historiadora, Doutora em História do Brasil, Professora, Pesquisadora,Coordenadora do Curso de História da Urcamp, Idealizadora e Coordenadora do Sarau Noturno. Coordenadora do Projeto Metodologias ativas para o ensino de História e área de humanidades. claismerio@gmail. com (In)Visibilidades femininas na arte cemiterial Introdução jetos de longo prazo, tornando-o mais direto e flexível de ser entendido pelo público politicamente relevante. Ficou conhecido como Positivismo Castilhista ou Positivismo Heterodoxo. O difuso unia a releitura castilhista com os pressupostos comteanos aliados ao cientificismo evolucionista e chegava ao alcance de todos por meio de jornais, revistas, palestras, conferências e dos símbolos e representações presentes da arte fachadista e cemiterial. Já o religioso seguia a doutrina da Religião da Humanidade, também era chamado de Positivismo Ortodoxo e servia de reserva moral para o castilhismo. A moral, a rigidez, o autoritarismo e a disciplina eram os pontos em comum das ramificações que fundiam-se em um único objetivo: organizar a sociedade sob a perspectiva do conservadorismo moral. O caráter conservador positivista consolidou-se no discurso referente à mulher, uma vez que era considerada responsável pela manutenção da moral e pela realização do culto privado. A mulher deveria ser a rainha do lar, a guardiã da moral e o anjo tutelar de sua família e, para atingir esses modelos, seguiria normas pré-estabelecidas pelo Catecismo Positivista no qual Comte recodificou todo o pensamento machista e retrógrado em torno da mulher (ISMÉRIO, 2018). E seguidores do positivismo, como R. Teixeira Mendes, J. Mariano de Oliveira, A.R. Gomes de Castro e Joaquim Bagueira Leal, também foram responsáveis pela difusão do discurso conservador que delimitava a mulher no espaço privado, uma vez que em suas palestras e obras publicadas pela Igreja Positivista do Rio de Janeiro fortaleciam essa visão. Na realidade a doutrina positivista reforçou pensamento preconizado por católicos e médicos sanitaristas que difundiam o “modelo de feminilidade, a esposa-de-casa-mãe-de-família” que deveria se dedicar exclusivamente à administração familiar zelando pelo bem estar de seus entes queridos (RAGO, 1987, p.62). O Papa Pio XI, na encíclica Casti Connubii, salientou que a mulher tem, dentro da organização familiar a nobre missão de ser esposa, mãe e educadora. Ela era considerada o coração da família, o primado do amor da mais pura emoção, enquanto que o homem era a cabeça, detinha o poder e a razão: “Se efetivamente o homem é a cabeça, a mulher é o coração, e se um tem primado do governo, a outra pode e deve atribuir como seu primado do amor” (PIO XI, 1952, p.14) Na mesma encíclica ressalta os princípios do casamento e a importância da concepção dos filhos, pois “mesmo com a mulher legítima, o ato matrimonial é ilícito e desonesto, quando se evita a concepção da prole (...)”. (PIO XI, 1952, p. 24) Os filhos concebidos eram considerados uma bênção de Deus e, caso a mulher não procriasse, era comparada a uma árvore seca, incapaz de dar frutos e continuar o ciclo da vida. Os médicos sanitaristas compartilhavam do mesmo pensamento, ao afir- Os cemitérios patrimoniais se constituem como grandes museus a céu aberto, verdadeiras galerias de arte, nas quais existe a predominância da imagem feminina. E ao admirá-las os incautos podem achar que se trata de uma grande valorização da figura feminina. Porém é um ledo engano. Na realidade essas representações estilizadas da imagem feminina expressam os valores conservadores e machistas quanto ao papel e lugar da mulher na sociedade. Michelle Perrot constatou que ao longo da história tradicional as mulheres foram silenciadas, restritas aos espaços privados, invisibilizadas e estereotipadas nas fontes. Segundo a autora, a “invisibilidade e o silêncio das mulheres fazem parte da ordem das coisas. É a garantia da cidade tranquila. (...) As mulheres são imaginadas, representadas, em vez de serem descritas ou contadas” (PERROT, 2019, p. 17). E considerando que a cidade dos mortos reflete as normativas e posicionamentos da cidade dos vivos, pretendemos no presente capítulo analisar as simbologias da arte cemiterial que estereotipam e invisibilizam as mulheres do período republicano do Rio Grande do Sul. Trata-se de uma revisão e ampliação crítica de nossas pesquisas anteriores sobre a representação feminina nos cemitérios riograndenses. Construção dos modelos femininos A República Velha Riograndense foi marcada pela influência da doutrina Positivista de Auguste Comte, cujo caráter conservador foi plenamente observado no discurso referente à mulher, uma vez que era considerada responsável pela manutenção da moral e pela realização do culto privado. A mulher deveria ser a rainha do lar, a guardiã da moral e o anjo tutelar de sua família e, para atingir esses modelos, seguiria normas pré-estabelecidas pelo Catecismo Positivista. Tudo iniciou em 1882, quando Júlio de Castilhos fundou o Partido Republicano Riograndense (PRR), adotando a filosofia comteana expressa na obra Política Positiva, para dar um sustentáculo doutrinário que garantisse a disciplina e coesão do partido. Boeira (1980, 38-59) salienta que não ocorreu uma simples transposição da doutrina comteana para sociedade rio-grandense. Na realidade, coexistiam três tipos de ideologias positivistas nos anos de 1870 a 1930, que são: o político, o difuso e o religioso. O político foi uma releitura das ideias de Auguste Comte por Júlio de Castilhos, com objetivo de resolver as necessidades imediatas e os pro- 46 Sarau Noturno: representações e sensibilidades sob o olhar da arte cemiterial mar que, em decorrência da concepção, a mulher estava exposta a duas alternativas: poderia tornar-se esposa e mãe devota e com isso enquadrar-se na sexualidade sadia, ou deixar-se levar pelo instinto e tornar-se prostituta, enquadrando-se na sexualidade doente. Para o doutor João F. de Souza, a mulher era predisposta a prostituição resultante, entre outras coisas, à sua beleza e à sua passividade na função reprodutora (ENGEL 1989, p. 77-78). Os positivistas acreditavam que o casamento era muito mais que o espaço onde mantinha uma sexualidade saudável. Era considerado o alicerce da organização social, no qual os noivos se comprometiam em seguir os sete princípios do casamento positivista para manter uma perfeita ordem familiar: Imagem 1: Clotilde de Vaux, a Religião da Humanidade, obra de Décio Villares. Monogamia indissolúvel completada pela viuvez eterna; Sustento da mulher pelo homem; Livre desistência do dote; (por parte da mulher) Livre desistência da herança; (por parte da mulher) Superintendência materna na educação; Liberdade de testar; Liberdade de adotar (HINO AO AMOR, 1902, p.1). A partir dessas determinações, o espaço da mulher ficava restrito a casa, onde deveria dedicar-se exclusivamente ao trabalho doméstico e à educação dos filhos, enquanto o serviço externo para sustentar a casa, caberia ao marido. Ao analisarmos as representações femininas presentes na arte cemiterial do Rio Grande do Sul, observamos que contribuíram para a divulgação dos preceitos e da moral positivista, cujo objetivo era consolidar junto ao imaginário popular o símbolo da perfeição feminina, inspirado em Clotilde de Vaux2, personificação da Religião da Humanidade (Imagem 1), cuja representação iconográfica assemelha-se à Maria, mãe de Cristo, símbolo de todas as virtudes. Fonte: Carvalho, 1993, p. 132. O símbolo perfeito de Clotilde tinha como seu contraste o de Caroline Massin , que significava para Comte tudo aquilo que a mulher não deveria ser, mas ao mesmo tempo, devido à natureza feminina, carregava uma certa propensão para ser leviana, egoísta, irresponsável e irracional. Não podemos esquecer que no imaginário social, toda mulher era descendente de Eva, a pecadora, por3 2 No dia 28 de agosto de 1845 Comte conheceu Clotilde de Vaux, na igreja de São Paulo, onde os dois seriam padrinhos do filho primogênito de Maximillien Marie, amigo de Comte e irmão de Clotilde. Comte logo se apaixonou por Clotilde. Clotilde estava com 30 anos e foi casada com Lepoquer de Vaux, que a abandonou muito cedo. Sendo tesoureiro, desviava dinheiro dos cofres públicos e de particulares e ao ser descoberto fugiu sem deixar vestígios. O filósofo revela sua paixão à amada, mas ela se mantém reservada, pois se achava mais digna de piedade do que de ternura. Apesar de decepcionado com a recusa de seu amor, Comte propôs uma relação fraternal. Quando Clotilde adoeceu, com problemas sérios nos brônquios e abdominais, Comte revelou que seu amor era casto e puro como ela desejava. Deu-lhe o amor divino espiritual. A enfermidade aumentou e ele, não podendo mais visitá-la, escreveu-lhe diariamente, considerando-a sua filha. Em 5 de Abril de 1846 Clotilde faleceu. Numa tentativa de manter viva a imagem da mulher que tanto amou, Comte transformou-a em sua musa, criando a Religião da Humanidade. Nascia uma nova fase da doutrina positivista comteana. (ISMÉRIO, 2018, p. 16-17). 3 Comte conheceu Caroline Massin, uma jovem, dezenove anos, que se prostituía nas galerias de bois, no Palais Royal. Passaram a viver juntos, mas foi uma relação tumultuada, pois Caroline constantemente o abandonava. Comte aceitava esse tipo de relação por ter medo da solidão. Resolveu então casar-se com Caroline, apesar da reprovação dos seus pais. O Casamento também ocorreu devido ao incidente com a polícia. Caroline, Comte e alguns amigos foram abordados por um oficial que pretendia deter a mulher por 15 dias na prisão de São Lázaro, por ela não haver comparecido à inspeção sanitária rotineira para as prostitutas fichadas na polícia. Numa tentativa de evitar problemas e constrangimentos futuros, Comte casou-se com Caroline em fevereiro de 1825, e convidou para padrinhos dois agentes da polícia francesa, amigos do casal, que se encarregaram de eliminar o nome dela dos registros das prostitutas parisienses. Em 1844 Comte separou-se definitivamente de Caroline, sem se divorciar porque ele era contra o divórcio. E manteve o pagamento de pensão que vigorou o mesmo nos períodos em que se encontrava em dificuldades financeiras (ISMÉRIO, 2018, p. 16). 47 (In)Visibilidades femininas na arte cemiterial A figura materna, progenitora das novas gerações, se faz presente nos cemitérios, nas alegorias ou nas representações da lembram a grande mater dolorosa Maria (Imagem 2), cuja representação máxima expressa-se na obra Pietá de Michelangelo. Tais representações seguem a tipologia alegórica, que são “representadas nos padrões do academicismo clássico, personificando a dor, a meditação, a consolação, a saudade, a fé, a caridade e a esperança” (BELLOMO, 1994, p. 85). tanto nessas circunstâncias, precisava ser vigiada e mantida enclausurada dentro do espaço privado. E em sua formação deveria ser orientada para ser submissa e abnegada, tornando-se assim boa filha, esposa, mãe e educadora dos filhos. A vida emocionalmente atribulada de Comte serviu de base para edificar a idealização da mulher no Positivismo, que resultou na legitimação da mentalidade conservadora, impregnada de valores moralistas sobre como deveria ser a conduta feminina. Na construção de seus modelos de conduta buscou arquétipos herdados da cultura machista que preconizava a mulher dedicada ao marido, aos filhos e a casa. Foi também fortemente influenciado pelo pensamento clássico, pelos ditames da Revolução Francesa e por Jean Jacques Rousseau. Comte (1994) salientava que “os vivos são sempre, e cada vez mais, governados pelos mortos, tal é a lei fundamental da ordem humana”, na qual os feitos dos heróis do passado servem de exemplos para as futuras gerações. Nessa lógica a arte cemiterial ocupa um importante espaço no processo de educação da sociedade difundindo os preceitos morais estabelecidos. E no que tange a questão feminina exalta os modelos da rainha do lar, anjo tutelar e guardiã da moral. E esses modelos, presentes nas alegorias femininas da arte cemiterial, que consolidaram discursos moralistas e códigos de conduta que delimitavam o espaço de atuação feminino tornando-as “cativas de sua condição de gênero no mundo patriarcal” (LAGARDE, 2005, p. 35). Imagem 2: Maria e Cristo, grande mater dolorosa. Cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé/ RS. A Mãe Rainha do Lar A rainha do lar possuía como obrigações procriar, criar seus filhos, cuidar do marido, respeitando sempre suas exigências, e administrar a casa, pois o “santuário de sua ação angélica é o lar doméstico. Nenhuma mulher pode ser desviada para exercer qualquer função fora do lar sem prejuízo de seus deveres de filha, esposa e mãe” (Leal 1921, 3). E os positivistas valorizavam a imagem da mãe progenitora das futuras gerações, pois era uma maneira de destituir a mulher de todo e qualquer desejo sexual para que seu estado de pureza fosse assim preservado. Foto: Douglas Lemos de Quadros. A Virgem Maria, mãe de Jesus Cristo, simboliza uma mulher sem mácula que se dispôs a obedecer aos desígnios de Deus, sem nunca os questionar. Maria, segundo os evangelhos, foi escolhida por Deus para ser a mãe de seu filho Jesus Cristo, devido às qualidades que possuía. E, após a concepção, permaneceu Virgem mantendo o seu caráter divino e sua história é descrita em quatro passagens dos evangelhos: em Jerusalém, onde encontra o filho entre doutores; em Canaã, quando obtém dele o primeiro milagre; durante a pregação de Jesus e por fim no Calvário ao pé da cruz, quando sua proteção foi confiada a São João. A grande difusão do culto mariano ocorreu dos séculos XI ao XIII que a tornou a grande senhora “única, sem exemplo, virgem e mãe Maria” (DALARUN, A maternidade e especialmente a gravidez, esse estado realmente interessante, essa fecunda floração genética, esse amoroso fruto do paradisíaco do fruto proibido, esse embrionário feto do resgatado pecado original como que diviniza a mulher, coroando-a de uma divina coroa, envolvendo-a de um ninho celestial que a torna muitas vezes santa (CASTRO, 1921, p. 39). 48 Sarau Noturno: representações e sensibilidades sob o olhar da arte cemiterial 1990, p.4), vindo a redimir a mulher do pecado original. Representava uma anti-Eva, cuja força da representação do modelo exerceu uma profunda influência no mundo medieval, que ia do ambiente particular para a esfera política. (LE GOFF, 2018, p. 391) A mãe com a criança ao colo (Imagem 3) reforça os atributos maternos de acolhimento, segurança, paciência e dedicação à nobre missão feminina, cujo sacrifício e “devotamento era parte integral da “natureza” feminina, e que nele estava a fonte mais segura de sua felicidade. Se uma mulher não se sentia dotada de uma vocação altruísta, fazia-se apelo à moral que lhe impunha o sacrifício” (BADINTER, 1985, p. 268). Diante de tanto altruísmo também lhe é atribuída a representação da caridade. O mesmo modelo foi reforçado na mãe consoladora e protetora, atributos inerentes às rainhas do lar. A mulher enquanto mãe deveria orientar, proteger e consolar sua família em todos os momentos. A maternidade estava associada ao sacrifício voluntário de esquecer de si para se dedicar aos filhos, uma vez que “vive no medo constante de que ocorra uma desgraça com seus filhos e só encontra repouso durante o sono ou quando os segura nos braços. Vela por elas à noite, quase tanto quanto durante o dia. Ao menor grito, a mãe corre para arrumar uma coberta, ou consolar de um pesadelo” (BADINTER, 1985, p. 253). Além da representação religiosa, a figura da mãe também aparece em monumentos funerários de cunho político, evidenciando as características inspiradas nas deusas da mitologia clássica, revelando uma outra forma de apresentar a mulher no papel de guardiã da moral. Conforme destaca a historiadora Lynn Hunt, a figura feminina como símbolo político era uma herança da Revolução Francesa, a qual elegeu a Mariane o signo máximo da nova ordem, da mesma forma que tornaram públicos os símbolos e signos da vida privada, no qual a “mulher e a mãe, tão desprovidas de qualquer direito político, foram capazes, apesar disso (ou justamente por isso?), de se converter nos emblemas da nova República (HUNT, 1992, p. 31). Nessa perspectiva, torna-se comum a prática de adotar símbolos maternos para representar cidades ou regimes de governo, como ocorreu no período republicano rio-grandense, no qual as imagens da república despontam na arquitetura fachadista, em monumentos públicos e na arte cemiterial. A Mãe República também se faz presente no mausoléu de Pinheiro Machado4 , obra do escultor Pinto Couto, datado de 1915, personificada por mulher madura que chora pela morte do estadista, expressando o sofrimento da mãe que lamenta a perda de um filho querido (Imagem 4 e 5). Na parte posterior do monumento encontra-se a seguinte frase: “Desoladas tua esposa e a República, lamentam e lamentarão sempre a tua grande falta”. Imagem 3: Alegoria da Maternidade ou Caridade. Cemitério da Santa Casa de Misericórdia, Porto Alegre/RS. 4 José Gomes Pinheiro Machado, fundou juntamente com Júlio de Castilhos, em 1884 o jornal A Federação, que representava os interesses do PRR junto ao governo federal. A posição de Pinheiro Machado foi sempre autoritária e tornou-se uma grande força política durante o governo de Hermes da Fonseca. Foi assassinado em 8 de setembro de 1915, no Rio de Janeiro, por Manso de Paiva. Ao ser enterrado no cemitério da Santa Casa de Misericórdia, Borges de Medeiros promoveu um funeral apoteótico com todas as honras positivistas. (BELLOMO, 1994, p. 35) Fotografia: Arquivo da autora. 49 (In)Visibilidades femininas na arte cemiterial O mesmo modelo foi reforçado na mãe consoladora e protetora, atributos inerentes às rainhas do lar. A mulher enquanto mãe deveria orientar, proteger e consolar sua família em todos os momentos. A maternidade estava associada ao sacrifício voluntário de esquecer de si para se dedicar aos filhos, uma vez que “vive no medo constante de que ocorra uma desgraça com seus filhos e só encontra repouso durante o sono ou quando os segura nos braços. Vela por elas à noite, quase tanto quanto durante o dia. Ao menor grito, a mãe corre para arrumar uma coberta, ou consolar de um pesadelo” (BADINTER, 1985, p. 253). Aos pés do túmulo aparece a musa da História, Clio, que registra a vida do herói em seu livro para ensinar as gerações seguintes, representada pelas crianças (imagem 5). A musa assume o papel de educadora, seguindo os preceitos positivistas, no qual as mulheres deveriam educar seus filhos nos princípios da moral e do civismo, tendo como base a história dos grandes homens do passado. E sendo considerada uma educadora por natureza, a mulher poderia exercer a profissão de professora, orientando os alunos como se fossem seus próprios filhos. Para Teixeira Mendes “a verdadeira mestra é a mãe (...) o tempo preciso para que todas as mulheres pudessem aprender, de modo a exercer a sua função de mães, de formadoras de homens”, futuros gênios e políticos que contribuiriam para a ordem social (MENDES, 1908, p. 15). A mãe República e Musa Clio são colocadas como coadjuvantes da trama histórica para adorar e zelar pela memória de Pinheiro Machado, representado como um herói romano, peito nu e coberto pela bandeira do Brasil, cujos feitos deveriam ecoar além dos tempos5. A Mãe Pátria se faz presente no túmulo-monumento de Júlio de Castilhos de como uma jovem chorosa que segura na mão esquerda a bandeira nacional, e na direita uma coroa de louros para enaltecer o grande líder político. Novamente ressalta-se a figura da guardiã da moral e dos símbolos da pátria (Imagem 6). O túmulo apresenta-se na forma estilizada de uma pirâmide com uma águia no topo, expressando o poder, tendo abaixo a data da constituição castilhista e um medalhão com o rosto do líder político. Na composição da sepultura estão também expressas uma exaltação ao mentor, “A Júlio de Castilhos6, o Rio Grande do Sul”, e os lemas extremamente enaltecidos pelos positivistas: “Ordem e Progresso” e “Os vivos sempre e cada vez mais governados pelos mortos”. Imagem 4 e 5: Mãe República e Musa Clio. Detalhe do Túmulo de Pinheiro Machado. Cemitério da Santa Casa de Misericórdia, Porto Alegre/RS. 5 O mausoléu é classificado por Bellomo (1994, p. 85) na tipologia cívico-celebrativa, pois além de guardar os restos mortais celebrava a memória de vultos de destaque no mundo político, social e cultural. 6 Júlio de Castilhos (1860-1903) foi presidente da província do Rio Grande do Sul na primeira fase do período republicano. Em 1882, fundou o Partido Republicano Riograndense (PRR), adotando a filosofia comteana expressa na obra Política Positiva, para dar um sustentáculo doutrinário que garantisse a disciplina e coesão do partido. Seu governo ficou conhecido como Ditadura Científica Positivista, por seu caráter autoritário e conservador. (ISMÉRIO, 2018). Fotografia: Arquivo da autora. 50 Sarau Noturno: representações e sensibilidades sob o olhar da arte cemiterial Nas imagens apresentadas constatamos evidências da delimitação da mulher como coadjuvante do universo familiar, pois deveria dedicar-se ao papel de mãe/esposa. E observamos que essa mentalidade ainda hoje se faz presente, na medida que na sociedade ainda existe a cobrança da mulher ser mãe e educadora. Imagem 6: Mãe Pátria, Detalhe do túmulo de Júlio de Castilhos, Cemitério da Santa Casa de Misericórdia, Porto Alegre/RS. Anjos Tutelares A mulher enquanto anjo tutelar deveria zelar pela educação das crianças e ser a musa do culto privado positivista para inspirar o marido e os filhos a serem homens honrados, uma vez que “o lugar da mulher é no lar, zelando sobre a saúde de seus entes queridos que a humanidade confiou à sua solicitude” (MENDES, 1908, p. 104). Os anjos são figuras recorrentes na arte cemiterial, que com o passar dos anos sofreram alterações em sua imagem e atributos, sendo que tais elementos acrescidos são fruto do padrão social e do imaginário popular de cada período7. A apresentação dos arcanjos na sagrada escritura e nas obras do período da Contrarreforma era a bélica, na qual todos possuíam armadura para lutar contra os inimigos da fé. Essa forma está dentro da autocompreensão tridentina que propunha o ideal da guerra santa por meio da catequização levando os valores da cristandade aos povos pagãos. A imagem do anjo guerreiro muda com o passar do tempo, tornando-se protetor e intermediário da humanidade perante Deus. Isso ocorre devido à mudança do pensamento cristão, que deixa de lado a postura guerreira para ocupar-se da condução do rebanho (ISMÉRIO, 2016). Na arte cemiterial existia uma tradição que associava as figuras angélicas às sepulturas de crianças, pois no imaginário social elas se tornam “anjos no céu” ao falecerem em tão tenra idade. E no século XIX, passou a ter duas iconografias sucessivas, primeiramente a de um jovem anjo da morte e, posteriormente, tornou-se uma figura feminina de formas exuberantes (VOVELLE, 1991, p. 330331). Assim, devido à influência positivista crescente, foi construído o modelo de anjo feminino, por ser a mulher a consoladora, orientadora e guardiã da moral das famílias, vindo a se constituir como um tema extremamente recorrente na estética funerária do Rio Grande do Sul. E esse modelo exemplar da perfeição 7 Originalmente são definidos como os intermediários entre Deus e mundo, tendo o papel de executar as ordens do senhor, transmitindo os sinais do sagrado, as advertências e executando punições. Os três principais arcanjos são: Miguel, vencedor dos demônios; Gabriel, mensageiro e iniciador; Rafael, guia dos médicos e viajantes. Aparece também com uma certa frequência o nome de Uriel, como um dos príncipes angélicos, sua origem advém do judaísmo tardio. Existem ainda os querubins e serafins que não são originalmente anjos, mas tornaram-se posteriormente. No judaísmo tardio falam também de outros seres celestes, as Virtudes, as Potestades, os Principados, as Dominações e os Tronos. Foto: Arquivo da autora. 51 (In)Visibilidades femininas na arte cemiterial feminina deveria servir de inspiração para todas as mulheres, independentemente de sua condição social, pois para Comte “o anjo deve ser invocado como protetor e modelo” (COMTE, 1988, p. 120). Destacamos primeiramente o Anjo do Juízo, também denominado da Ressurreição (Imagens 7 e 8), uma jovem mulher, com expressão austera, olhos profundos, que na mão direita segura uma trombeta e a esquerda cruza sobre o peito. No livro do Apocalipse do apóstolo João encontramos a referência dos sete anjos, que receberam sete trombetas para revelar os acontecimentos dos últimos dias da humanidade na terra advindos da abertura do sétimo selo (Apoc. 8–9; 11:1–15). A estátua original, Angelo del Giudizio, data de 1882 e foi criada pelo artista Italiano Giulio Monteverde para o túmulo da família Onetto, sendo considerada “o mais belo e sedutor da produção cemiterial monteverdiana”. Monteverde se notabilizou ao esculpir “criaturas celestes executadas para os túmulos de ilustres famílias nobres ou mais frequentemente da alta burguesia em via de afirmação, algumas repetidas em versões mais ou menos autorizadas”. (BECCARO, 2009, p. 59) A historiadora Regina Zimmermann Guilherme revela que o anjo do cemitério Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre (imagem 8), trata-se uma reinterpretação da obra de Monteverde produzida pelo marmorista italiano Leone Lonardi radicado em Porto Alegre (GUILHERME, 2019, p. 132). O anjo da morte também passou a ser personificado por atributos femininos, sendo identificado por uma jovem anja que apaga a chama da vida. Trata-se de uma releitura da personificação da morte na tradição antropomórfica greco-romana, que “devido a ausência de uma divindade específica”, atribuiu a um jovem a incumbência de dissipar a vida. (Bellomo, 2000, 54) Trata-se de uma imagem bastante comum nos cemitérios do Rio Grande do Sul, embora no imaginário social somente a associe a morte com o ceifador, tradicional representação da morte no imaginário medieval. A representação do Anjo da Morte, aqui destacada na imagem 9, ao apagar a tocha, serra a cortina, mostrando que ao morrer se finaliza a tragicomédia da existência humana. Mais uma vez fica evidenciado o papel da mulher como guardiã e sacerdotisa do culto familiar. Simbolicamente a morte evidencia o aspecto perecível e destrutível da existência, mas também de revelação e introdução, pois está presente nos rituais de iniciação assumindo o significado psicológico de transição para uma nova fase, uma nova etapa a ser seguida, pois “liberta das forças negativas e regressivas, ela desmaterializa e libera as forças de ascensão do espírito” (CHEVALIER e GHEERBRANT, 1994, p. 621). Bellomo destaca a multiplicidade de representações e significados da morte, pois “apesar da morte ser uma experiência pessoal, apresenta especificidades de classe, família, cultura e religião”. Podendo ter um duplo sentido na mesma concepção teológica, como ocorre na cristã, que “por um lado apresenta a morte como redenção e felicidade eterna, por outro apresenta a possibilidade de condenação eterna” (BELLOMO, 2000, p. 50 e 54). Imagens 7 e 8: Anjos do Juízo/Ressurreição, São Miguel e Almas e Cemitério da Santa Casa, Porto Alegre/RS. Foto: Arquivo da autora. 52 Sarau Noturno: representações e sensibilidades sob o olhar da arte cemiterial Imagem 11: Anja da Saudade. Cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé/RS. Imagem 9 e 10: Anja da Morte e Anja Guardiã. Cemitério São Miguel e Almas, Porto Alegre. Foto: Arquivo da autora. Carpideiras e alegorias Nos espaços cemiteriais outras representações bastante comuns são as alegorias, personificadas em figuras femininas que reproduzem ideias, pensamentos ou ações humanas. Bellomo destaca que as alegorias presentes nos cemitérios do Rio Grande do Sul, são compostas segundo a estética do classicismo e que com o passar do tempo se observa um aumento dessas figuras uma vez que “os anjos vão se humanizando, ganhando aparência terrena e perdendo suas características celestiais, a ocorrência de alegorias vai aumentando o número de variedades (BELLOMO, 1994, p.84). As estátuas alegóricas são figuras coadjuvantes nas representações da arte cemiterial expressando a submissão feminina diante da sociedade patriarcal. Para os positivistas a submissão feminina era a expressão máxima do amor, uma vez que, “instintos são esses de obediência; porque amar é obedecer. É preterir a vontade própria à vontade alheia; é gozar da felicidade de ver os outros satisfeitos” (LEAL, 1921, p.1). Logo amar significava anular-se em favor de seus Foto: Arquivo da autora. A anja guardiã foi caracterizada em posição de alerta, uma sentinela eterna, que vigilante protege a última morada da família (Imagem 10). E esse modelo exemplar da perfeição feminina deveria servir de inspiração para todas as mulheres, independentemente de sua condição social, pois para Comte “o anjo deve ser invocado como protetor e modelo” (COMTE, 1988, p.120). O Anjo da Saudade em algumas de suas representações aparece como uma mulher triste que delicadamente deposita flores sobre o túmulo, como se fossem lágrimas dos familiares. (Imagem 11). 53 (In)Visibilidades femininas na arte cemiterial entes queridos, exercendo o seu dever de guardiã da moral e cumprindo as exigências que lhe eram socialmente impostas com satisfação, pois a mulher “obedece espontaneamente, porque obedece por amor, não por servilismo”. (MENDES, 1908, p. 49) E a submissão feminina era decorrente do condicionamento moral e simbólico do patriarcado, que determinava suas ações. Se não fosse mãe dedicada e esposa obediente, cairia em profunda desgraça e o seu erro não seria perdoado. Esse pensamento materializa-se na arte cemiterial sob a perspectiva das carpideiras e alegorias. As carpideiras ou pranteadoras personificam a lamentação, dor e perda do ente querido (imagem 12). Trata-se de uma antiga profissão na qual as mulheres eram pagas para chorar nos velórios e enterros. Foi uma das mais antigas profissões femininas, pois foram encontradas referências nas pinturas egípcias, presentes nos hipogeus, túmulos escavados nas encostas de montanhas, e em relatos bíblicos evidenciando que se perpetua a mais de dois mil anos Maria Elizia Borges (2002) destaca que as pranteadoras também exprimem a dor materna pela perda do filho. A doutrina positivista considerava o matrimônio como uma instituição sólida, cujos vínculos se perpetuavam até depois da morte do marido, na lei da viuvez eterna. Era uma regulação da vida das viúvas que deveriam ser fiéis aos maridos, cultuando-os e chorando eternamente a separação. Mantendo-se assim, preservaria a sua pureza e a moral do falecido e, como resultado de seu recato, manteria a família estruturada. Nos cemitérios as representações da viúva eterna misturam-se com a iconografia da carpideira e da saudade. Tais alegorias perpetuam através do pranto e das juras das mulheres, que se comprometeram em honrar e resguardar a moral do falecido marido, mantendo o seu estado de pureza. A saudade, que é representada como uma mulher triste segurando uma coroa de flores, que pode estar sentada ou debruçada sob o túmulo (Imagem 13). Dessa forma, representa todo o sentimento de dor e sofrimento que a perda de um ente querido pode representar para a família e pessoas próximas. A coroa de flores também representa “a vitória da alma humana sobre o pecado da morte” (BORGES, 2002, p. 203). E quando aparece abraçada à cruz agrega, também, a ideia da fé (Imagem 14). Cristo Crucificado se constitui como o símbolo máximo da cristianização e a cruz representa a união entre o céu e a terra, entre o homem e Deus. Para os judeus, a cruz representava o escândalo, para os gregos a loucura, mas tornou-se o símbolo da vitória e esperança dos cristãos (ZILLES, 1994, p. 70-71). Pode, ainda, representar a saudade e esperança quando se apresenta com uma estrela na testa, símbolo da esperança, e olhando para o céu (Imagem 15). A estrela é um astro de luz própria cuja representação está associada à esperança, renovação e renascimento. Foi uma estrela, A Estrela de Belém, que revelou aos três reis magos o local de nascimento de Jesus Cristo, a grande esperança de renovação do mundo. Apesar das características próprias de cada alegoria, todas as figuras femininas resumem-se na representação da viúva eterna e da guardiã da moral, consagradas pelo positivismo. E por meio da arte cemiterial, as imagens femininas transformam-se em viúvas eternas que zelam pela memória das famílias ilustres. Imagem 12: Carpideiras, Cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé/RS. Foto: Arquivo da autora. 54 Sarau Noturno: representações e sensibilidades sob o olhar da arte cemiterial Existem túmulos que, além de guardarem a memória, registram a dor da perda ou uma tragédia ocorrida. Como é o caso do túmulo de José Paixão Côrtes, que narra a morte do menino, Euclides E. Felipe, que ao enfiar a mão em uma toca de coruja foram surpreendidos por uma serpente. Esse inocente gesto lhe custou à vida. No túmulo encontramos entalhada a coruja e a serpente, que são guardadas pelas representações da morte, da saudade e da orante (Imagem 16). Imagem 13, 14 e 15: Alegorias da saudade e esperança, Cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé/RS. Imagem 16: Composição de alegorias do Túmulo de José Paixão Côrtes. Cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé/RS. Fotografia: Arquivo da autora. A coruja é uma ave de rapina noturna qossui diferentes significados nas mitologias. Na Grécia antiga era um dos símbolos da deusa Atena, caracterizando o pensamento racional que se sobressai às trevas. Nos mitos indo-americanos representa a morte e a guardiã dos cemitérios (CHEVALIER e GHEERBRANT, Fotografia: Douglas Lemos de Quadro e Diones Alves. 55 (In)Visibilidades femininas na arte cemiterial 1994, p. 293). E a serpente também possui múltiplos significados, mas predomina a interpretação da tradição judaico-cristã, na qual está associada ao demônio, responsável pelos desmandos e sofrimento da humanidade. O papel de coadjuvante feminino fica mais evidente quando as alegorias representam atributos de heróis, que eram “homens que se destacaram na política, cultura e dentro de suas próprias famílias. O positivismo no Rio Grande do Sul, ao utilizar a arte funerária como veículo de perpetuação de sua ideologia, teve como objetivo principal consolidar seus atos para as futuras gerações” (SILVA, 2007, p. 14). Um exemplo no qual constatamos essa característica é o mausoléu de Antônio de Souza Netto, que apesar de seu perfil militar, participou da Revolução Farroupilha8 e da Guerra do Paraguai9, não foi representado como um general em seu leito de morte. Pelo contrário, foi eternizado iconograficamente num brasão cívico-celebrativo como um herói ilustrado que, ao invés da farda, veste terno e gravata, símbolos de sobriedade e elegância na época. No alto do mausoléu a figura de destaque é uma anja guardiã orante, que zela pela moral e pelos valores cristãos do General Netto (Imagem 17). A celebração e perpetuação da memória do herói são eternizadas as alegorias do saber e do heroísmo. A alegoria do saber, destacada na imagem 18, pode ser interpretada como Clio, a musa da história, pois apresenta dois livros fechados. O livro que está ao seu colo representando a história da Revolução Farroupilha, onde foram moldados princípios como cidadania, liberdade, separatismo e liderança política no Rio Grande do Sul. O outro livro, que está debaixo do pé da musa, refere-se à Guerra do Paraguai. Nessa representação Clio ocupa seu lugar de guardiã da história e da tradição, sendo ela a responsável por imortalizar a história do herói ilustrado, que tem a cidade de Bagé seu lugar de descanso. Imagem 18 e 19: Musa Clio e Alegoria do Heroísmo, detalhe do Mausoléu do General Souza Netto Cemitério da Santa Casa de Bagé/RS. Imagem 17: Mausoléu do General Souza Netto Cemitério da Santa Casa de Bagé/RS. Fotografias: Diones Alves. Fotografias: Diones Alves. A alegoria do heroísmo, destacada por uma jovem com o semblante triste e, no seu colo, encontra-se uma coroa de louros (Imagem 19). A coroa de louros, símbolo da vitória e da glória, na antiguidade clássica era uma homenagem atribuída aos heróis e aos atletas. 8 A Revolução Farroupilha ou Guerra dos Farrapos ocorreu de 1835 a 1845, na qual as elites políticas da província de São Pedro do Rio Grande do Sul se insurgiram contra o governo imperial do Brasil. O resultado foi a declaração de independência da província como estado republicano, dando origem à República Rio-Grandense. 9 A Guerra do Paraguai ocorreu de 1864 a 1870, sendo travada entre o Paraguai e a Tríplice Aliança, formada pelo Brasil, Argentina e Uruguai. 56 Sarau Noturno: representações e sensibilidades sob o olhar da arte cemiterial Considerações finais unicamp.br/chaa/rhaa/downloads/Revista%2011%20-%20artigo%204.pdf>. Acesso em: 31 de maio de 2021. A arte cemiterial, produzida após a instauração do governo castilhista positivista republicano, refletia a austeridade e o conservadorismo da ditadura científica, cuja função era orientar a sociedade dentro dos valores morais positivistas, por meio de símbolos e signos. No ideário positivista, a mulher foi transformada na grande guardiã, a musa inspiradora, o anjo tutelar, tanto da família como do Estado. Além de guardar a honra da família, deveria inspirar os homens a serem cidadãos participativos. O maior objetivo dessas representações era educar a população e, principalmente, a mulher, conscientizando de seus deveres e de seu lugar dentro da sociedade, manipulando o imaginário popular por intermédio de musas, alegorias e anjas. A doutrina positivista formulou um discurso simbólico que propunha a organização da sociedade sob a perspectiva de uma moral conservadora e, portanto, atuou como agente, impondo os conceitos de um grupo político detentor do poder. Mas, por outro lado, atuou como reflexo da sociedade na medida que fortalecia a mentalidade que relega a mulher uma figura submissa e coadjuvante da trama histórica, tolhendo sua educação, desenvolvimento profissional e científico. A partir das evidências apresentadas podemos afirmar que as imagens femininas presentes na arte cemiterial são reflexos do pensamento patriarcal que preconizava a submissão e invisibilidade feminina, uma vez que as tornava deusas de pedra que, em seu pranto, deveriam zelar eternamente pela moral das famílias ilustres. BELLOMO, Harry. A Produção da Estatuária Funerária em Porto Alegre. In. Rio Grande do Sul. Aspectos da Cultura. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1994. Bellomo, Harry. In FLORES, Hilda (org.). Vidas e Costumes. Porto Alegre: Nova Dimensão, CIPEL, 1994. BOEIRA, Nelson. O Rio Grande de Augusto Comte. In. RS: Cultura & Ideologia. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980. BORGES, Maria Elizia. 2002. 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Porto Alegre: EDIPUCRS. 58 Sarau Noturno: representações e sensibilidades sob o olhar da arte cemiterial Um olhar para invisibilidade social feminina no período de 1891 a 1920 através da legislação e sua relação com os cemitérios Amanda Antunes do Couto1 1 Acadêmica do Curso de Direito da Urcamp, membro da equipe de audiovisual do Sarau Noturno, pesquisadora voluntária do projeto Metodologias ativas para o ensino de História e área de humanidades. amandaantunesdocouto@hotmail.com Um olhar para invisibilidade social feminina no período de 1891 a 1920 artravés da legislação e sua relação com os cemitérios Introdução Mesmo cidades e regiões não positivistas, como Bagé, recebiam a influência deste ideário, pois além de ser uma ideia forte que percorria o país, ele encontrou terreno fertil para se estabelecer no imaginário social, principalmente no que diz respeito às mulheres - tendo em vista algumas similaridades que possuía com os dogmas da fé católica, religião forte em todo o país. A exemplo destas similaridades, podemos citar a relação entre essa necessidade de haver o modelo de mulher a ser seguido e as figuras femininas da religião católica. Estudando um pouco sobre as mulheres na história e percebendo que nem sempre elas são descritas, reveladas ou mesmo permitidas de se fazerem registrar, despertou-se o interesse de conseguir vê-las através de sua invisibilidade. Este texto apresenta o que significa esta invisibilidade das mulheres, um pouco das ideias que levaram a esta proposital invisibilização e como é possível perceber que elas estavam ali. Tal pesquisa possui como objetivo demonstrar como os cemitérios e a legislação são capazes de captar a invisibilidade social feminina na sociedade, tendo como base o Cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé, a Constituição de 1891 e o Código Civil de 1916. Sob a perspectiva da legislação Como assim invisível? A invisibilidade vestida na mulher conferiu a ela várias impossibilidades. Ela não era considerada cidadã e não atuava socialmente da mesma forma que os homens. É possível perceber a forma como as mulheres eram tolhidas no Brasil no período de 1890 a 1920, sob a perspectiva da legislação vigente na época. Tanto a constituição como o código civil são ferramentas capazes de serem articuladas para demonstrar esta questão. Em um primeiro momento, faz-se importante entender que a legislação, de um forma ampla, possui os poderes de ser reguladora e impositiva. Toda norma é criada com o objetivo de atingir um interesse social, seja para regulá-lo, e auxiliar a definir a forma de manejá-lo, ou para impor uma determinação. A partir de uma análise sobre a legislação de uma sociedade, é possível perceber o que ela buscava atingir e quais eram as questões que ela precisava lidar no cotidiano. Com efeito, seguindo o entendimento da pirâmide de Kelsen3 de que temos como hierarquicamente mais importante e fundamental a constituição de um país (KELSEN, 1998), começaremos a nossa análise por ela. No período pesquisado estava vigente a Constituição dos Estados Unidos do Brasil, promulgada em 1891, dela cumpre destacar o entendimento do art. 72,§ 2º : Ao falar em invisibilidade feminina, tratamos da questão de que, ao longo do tempo, em vários lugares do mundo, as mulheres deixaram de ser vistas em alguns aspectos da sociedade. Trago a expressão “deixaram de ser vistas”, pois o fato é que esta exclusão delas de alguns âmbitos, assuntos e contextos era proposital, tendo em vista que segundo diversos ideários adotados através das épocas, não era adequado à uma mulher envolver-se em determinadas situações e assuntos, uma vez que “em muitas sociedades, a invisibilidade e o silêncio das mulheres fazem parte da ordem das coisas” (PERROT, 2007. p.17). No Brasil, não foi diferente, além das influências já estabelecidas no país desde a colonização como as da religião católica e as da sociedade patriarcal e machista, destacamos: o positivismo2. A doutrina pensada por Auguste Comte (1798 - 1857) percorreu o país no final do século XIX e início do século XX e influenciou muito na visão que se tinha das mulheres neste período, “Comte impôs modelos de conduta feminina baseados na mentalidade patriarcal, formada ao longo da história da humanidade”(ISMÉRIO, 2018, p.16). Seus seguidores preconizavam, além de outras coisas, por uma organização da sociedade a fim de atingir o progresso, mas mantendo aquilo que fosse essencial, “buscavam organizar a sociedade através de uma moral rígida baseada na norma positivista de ‘conservar melhorando’”(ISMÉRIO, 2018, p.10). Definir os papéis da mulher e o que era esperado dela, construía o modelo de mulher, um ideal a ser seguido, o que eles entendiam como fundamental para cumprir com o objetivo de manter a ordem na sociedade. Dentre as determinações estabelecidas, por exemplo, há a de que “a mulher deveria permanecer em casa, dedicando-se ao papel de guardiã da moral e dos bons costumes” (ISMÉRIO, 2018, p. 20) 3 Hans Kelsen foi um jurista e filósofo austríaco, que viveu entre 1881 e 1973. É considerado um dos mais importantes e influentes estudiosos do Direito no ocidente, bem como a expressão máxima do Positivismo Jurídico. Ele desenvolveu a teoria representada como a pirâmide de Kelsen, baseada no princípio da hierarquia, onde está disposto por ordem de importância e influência os diplomas legais em um Estado. A referida ordem se dando da seguinte forma: 1-Constituição; 2-Leis Complementares; 3-Leis ordinárias; 4-Medidas Provisórias e leis delegadas; 5-Resoluções/ Jurisprudência. 60 Sarau Noturno: representações e sensibilidades sob o olhar da arte cemiterial relacionada à igualdade perante a lei e ao caráter impositivo das legislações. Aquele que não é capaz tem a lei incidida sobre si impositivamente de forma igual aos capazes, contudo, não possui a “permissão” que estes detêm, de tornar-se atuante apto a manejar por entre a legislação, produzindo atos e consequências jurídicas de forma autônoma, deixando assim a sua pessoalidade nos registros civis. Referir-se à mulher como relativamente incapaz enquanto casada, quer dizer que a partir do casamento é suprida a sua autonomia em alguns pontos, dessa forma, tornando-a propositalmente invisível para alguns âmbitos, colocando-a sob a responsabilidade do marido. Consultando livro de código civil comentado por Clóvis Beviláqua (1940) percebe-se que o jurista reconhecia a necessidade de fazer-se representar na legislação a igualdade entre os cônjuges, ainda que sob a “chefia” do homem - como apontado no Art. 233, caput, do diploma legal -, contudo, o texto promulgado estabelecia a incapacidade relativa da mulher casada, assim como a necessidade de autorização do marido para exercer profissão (TOMASEVICIUS FILHO, 2016). Art.72 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes á liberdade, á segurança individual e á propriedade, nos termos seguintes: [...]§ 2º Todos são iguais perante a lei (BRASIL, 1891)4 A constituição possui caráter determinante em um Estado, é neste diploma que se estabelecem as diretrizes de organização e as ideias acordadas pelo país. Portanto, analisar que a carta magna nacional de 1891 passou a adotar e defender a ideia de igualdade perante a lei, estipulando que sobre todos deverá incidir de mesma forma e peso aquilo que for determinado nesta e nas demais legislações, demonstra que, na sociedade da época, esta era uma visão em desenvolvimento, seja por necessidade impositiva ou reguladora. No que abrange as mulheres, ressalta-se que a palavra “todos” as inclui, apesar de ser uma palavra de gênero masculino, ela abarca uma pluralidade que trás sim visibilidade a mulher, justamente por esta inclusão implícita. A lei irá incidir sobre ela da mesma forma que a todos, ela será tão digna de seus direitos quanto os outros serão dos seus. Contudo, nem todo direito é direcionado a elas e nem sempre elas poderão exercê-los da mesma forma que os demais, este é o nosso ponto. Após a constituição, guiamos o nosso raciocínio até as leis ordinárias, qual seja neste estudo, o Código Civil de 1916. Trata-se justamente do primeiro código civil do país, organizado por juristas renomados, dos quais se destaca Clóvis Beviláqua5, seu principal escritor. Beviláqua seguia alguns ideais positivistas, por isso é possível perceber as influências desta doutrina no diploma legal. Neste código podemos destacar normas que abordam a invisibilidade e limitação feminina de forma significativa, nele encontramos a capacidade feminina sendo suprimida, o casamento sendo regulado e a família sendo exaltada, bem como a posição da esposa e seus direitos dentro desta instituição. Nesse ritmo, começamos a observação sobre este código, ressaltando o inciso II do artigo 6. Observações - [...] 2- [...] O projeto primitivo não consagrava a incapacidade da mulher casada; mas a Comissão revisora, nomeada pelo governo, recusou a inovação, aliás, sem a discutir. [...] 3- As mulheres não casadas, sejam solteiras ou viúvas, gozam da plenitude dos direitos civis. [...] Realmente a mulher possui capacidade mental equivalente à do homem, e merecem igual proteção do direito. Já é um sacrifício à justiça submetê-la à autoridade do marido, pela necessidade de harmonizar as relações da vida conjugal. (BEVILAQUA, 1940)6 Art. 233. O marido é o chefe da sociedade conjugal. Compete-lhe: I. A representação legal da família. II. A administração dos bens comuns e dos particulares da mulher, que ao marido competir administrar em virtude do regime matrimonial adaptado, ou do pacto antenupcial (arts. 178, § 9º, nº I, c, 274, 289, nº I, e 311). III. direito de fixar e mudar o domicílio da família (arts. 36 e 233, nº IV). IV. O direito de autorizar a profissão da mulher e a sua residência fora do tecto conjugal (arts. 231, nº II, 242, nº VII, 243 a 245, nº II, e 247, nº III). V. Prover à manutenção da família, guardada a disposição do art. 277. [...]Art. 242. A mulher não pode, sem autorização do marido (art. 251): I. Praticar os atos que este não poderia sem o consentimento da mulher (art. 235). [...]VII. Exercer profissão (art. 233, nº IV). (BRASIL, 1916) Art. 6. São incapazes, relativamente a certos atos (art. 147, n. 1), ou à maneira de os exercer: [...]II. As mulheres casadas, enquanto subsistir a sociedade conjugal.[...] (BRASIL, 1916). No estudo do direito e da legislação, entende-se como capaz aquele que pode exercer pessoalmente os atos da vida civil. A capacidade está amplamente 6 61 Texto adaptado à nova gramática. Um olhar para invisibilidade social feminina no período de 1891 a 1920 artravés da legislação e sua relação com os cemitérios Art. 246. A mulher que exercer profissão lucrativa, terá direito a praticar todos os atos inerentes ao seu exercício e à sua defesa, bem como a dispor livremente do produto de seu trabalho. Percebe-se então, a necessidade de, a partir deste ponto, alinhamos nosso pensamento para perceber a influência da organização familiar na dinâmica social. Ressalta-se que no período em questão, o país recebia forte influência do positivismo e, para esta doutrina, a família constituía importante papel na organização social, pois é a partir dela que se disseminam os valores morais e se estabelece uma primeira forma de ordem. Além disso, vale lembrar que, o positivismo também compreendia que o lugar em que a mulher deveria exercer o seu papel era o do lar familiar, pois caberia a ela guardar a moral e os bons costumes, passando este ensinamento aos filhos (ISMÉRIO, 2018). O Código Civil de 1916 possui artigos versando precisamente sobre os bens da família e enfatiza em vários outros a influência desta organização. É o caso do Art. 233 disposto acima, percebe-se que o inciso primeiro fala “A representação legal da família”, isto inclui em princípio a esposa e se estende aos filhos, pois, segundo os procedimentos da época, uma nova família começa a partir do casamento. A própria estrutura do código já nos revela uma certa ordem do desenvolver das coisas. O livro I da parte especial do código civil de 1916 é intitulado “Do direito de família”, tendo como primeiro título “Do casamento”, constituído por seus capítulos, seguido pelos títulos “Dos efeitos jurídicos do casamento”, “ Do regime dos bens entre os cônjuges”, “Da dissolução da sociedade conjugal e da protecção da pessoa dos filhos”, “Das relações de parentesco”, “Do patrio poder” e, por fim, “ Da tutela, da curatela e da ausência”. O diploma então dispõe sobre este outro instituto construtor da família, a partir do artigos 180 até o 228, precisamente. Contudo, podemos seguir entre os demais títulos para compreender a estrutura deste instituto, haja vista que as disposições sobre este tópico mesclam-se bastante com o tema família, tanto que os artigos seguintes vem a tratar dos filhos, como uma extensão do casamento. Dessa forma, é possível entender um pouco como era arranjada a família neste período, compreendendo o que era direito e o que era dever de cada um perante a lei. Todavia, nosso objeto de resgate em percepção neste trabalho, é a mulher. Michelle Perrot7, em seu livro Minha História das Mulheres disse: “a mulher casada é, ao mesmo tempo, dependente e dona de casa. Cabe a ela usar os poderes que lhe são conferidos ou relegados” (PERROT, 2007. p. 47). Entre os artigos 240 e 255, que constituem o capítulo “ Dos Direitos e Deveres da Mulher”, incluído sob o título “ Dos efeitos jurídicos do casamento”, vemos os poderes que são conferidos à mulher: Art. 247. Presume-se a mulher autorizada pelo marido: I. Para a compra, ainda a crédito, das coisas necessárias à economia doméstica. II. Para obter, por empréstimo, as quantias que a aquisição dessas coisas possa exigir. III. Para contrair as obrigações concernentes à indústria, ou profissão que exercer com autorização do marido, ou suprimento do juiz. Paragrapho unico. Considerar-se-á sempre autorizada pelo marido a mulher, que occupar cargo publico, ou, por mais sois meses, se entregar a profissão exercida fóra do lar conjugal. Art. 248. Independentemente de autorização, pode a mulher casada: I. Exercer o direito que lhe competir sobre as pessoas dos filhos de leito anterior (art. 329). II. Desobrigar ou reinvindicar os imóveis do casal que o marido tenha gravado ou alienado sem sua outorga ou suprimento do juiz (art. 235, nº I). III. Anular as fianças ou doações feitas pelo marido com infração do disposto nos nºs III e IV, do art. 235. IV. Reinvindicar os bens comuns móveis ou imóveis doados, ou transferidos pelo marido à concubina (art. 1.177). V. Dispor dos bens adquiridos na conformidade do número anterior, e de quaisquer outros que possuam livres da administração do marido, não sendo imóveis. VI. Promover os meios assecuratorios e as acções que, em razão do dote ou de outros bens seus, sujeitos á administração do marido, contra este lhe competirem (arts. 263, 269 e 289). VII. Propor a ação anulatória do casamento (arts. 207 e seguintes). VIII. Propor a ação de desquite (art. 316). IX. Pedir alimentos, quando lhe couberem (art. 224). X. Fazer testamento ou disposições de última vontade. [...]Art. 251. À mulher compete a direção e a administração do casal, quando o marido: I. Estiver em lugar remoto, ou não sabido. II. Estiver em cárcere por mais de dois anos. III. For judicialmente declarado interdito. Parágrafo único. Nestes casos, cabe à mulher: I. Administrar os bens comuns. II. Dispor dos particulares e alienar os móveis comuns e os do marido. III. Administrar os do marido. IV. Alienar os imóveis comuns e os do marido mediante autorização especial do juiz. (BRASIL, 1916) Os artigos falam por si, é possível perceber que apesar da opressão, algo restava às mulheres, em direitos, para desempenhar as funções que lhes foram 7 Michelle Perrot, historiadora e professora francesa, nascida em 18 de maio de 1928 em Paris, lecionou na Sorbonne e na emérita Universidade Paris VII. 62 Sarau Noturno: representações e sensibilidades sob o olhar da arte cemiterial Considerações Finais designadas, não que tenham sido suficientes. Contudo, é importante perceber que quem confere os poderes a mulher não é apenas a lei, mas também o marido. A norma apenas regula aquilo que será permitido ao marido autorizar à mulher, não só para diferir daquilo que já lhe é direito, mas também cumprindo a função de conferir poder ao marido, de forma a exprimir na lei o reflexo das crenças da sociedade, de que a mulher deve ser controlada e protegida pelo homem, perdendo sua autonomia, sendo assim retirada de si sua capacidade. Nesta forma de medir, conter e restringir o poder da mulher, dar a tutela deste poder a outra pessoa - o marido -, vemos a sua invisibilização, o movimento que a sociedade definiu, e manifestou em lei, de vestir sobre a mulher um véu de domínio. Este movimento de cercear a mulher tem seu ápice no casamento, mas isso não significa que ela não seja invisibilizada desde antes, a lei, contudo, permite que ela seja vista somente neste contexto. Ao perceber como se relacionam os cemitérios, a sociedade e a legislação, é possível ver a invisibilidade colocada sobre a mulher, captá-la através dos registros da sociedade, quase como uma brincadeira de pique esconde, em que, a mulher da época, não sabia estar brincando com a mulher do futuro que hoje a busca. As mulheres fizeram e ainda fazem muita história. Sendo assim, revela-se o quão importante é que nós continuemos a pesquisar para desinvisibilizar as mulheres do passado, perceber o véu que nos cobre no presente e não permitir que as mulheres do futuro sejam cobertas. Referências Relação com os cemitérios BEVILAQUA, Clóvis. Codigo Civil dos Estados Unidos do Brasil Commentado. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1940. A legislação de um território, assim como os cemitérios de uma cidade, possuem uma capacidade em comum: a de refletir alguns traços da sociedade em que estão inseridos. Como demonstrado no subtítulo anterior, a legislação retrata aspectos da sociedade, o que ela experiencia no cotidiano e o que ela precisa regular. Os cemitérios, por sua vez, conseguem demonstrar diversos traços sociais através de sua estrutura. Através das artes e dos materiais escolhidos para a construção das obras, é possível perceber a condição social das famílias e a imagem que eles gostariam de passar no pós morte, além disso, a posição espacial do cemitério na cidade, bem como a forma como se estrutura, dizem muito sobre a relação da sociedade para com o cemitério e a morte. (ROSA, 2021) Nessa toada, o papel da mulher nas representações cemiteriais também é capaz de demonstrar a sua invisibilidade, uma vez que a doutrina positivista exercia boa influência no imaginário social e este era articulado no momento da morte, de forma a eternizar e exaltar os conceitos morais dos heróis de guerra e das honrosas mulheres de família, com o objetivo de encorajar a adesão dos modelos de pessoas, principalmente, o modelo de mulher. Este era esculpido através da forma como são retratadas na função que exercem de resguardar a honra da família ou de contar uma história ou, ainda, de chorar eternamente por algum ente que partiu (ISMÉRIO, 2021), cumprindo exatamente o papel que lhes foi designado. BRASIL. Constituição (1891) Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, 1891. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao91.htm>. Acesso em: 27/07/2021 BRASIL. Código Civil. Lei n° 3.071 de 1° de janeiro de 1916. BRASIL. Código Civil. Disponível em < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l3071.htm> Acesso em: 27/07/2021 BRASIL. Código Penal. Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890. BRASIL. Código Penal. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/d847.htm> Acesso em: 27/07/2021. ISMÉRIO, Clarisse.(In)Visibilidades femininas na arte cemiterial. In. ISMÉRIO, Clarisse (Org). Novo Sarau Noturno: representações e sensibilidades sob o olhar da arte cemiterial. Bagé: EdiUrcamp, 2021. ISMÉRIO, Clarisse. Mulher: a moral e o imaginário. 2ª edição ampliada. Bagé: Ediurcamp, 2018. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6ª edição. São Paulo: Martins Flores, 1998. 63 Um olhar para invisibilidade social feminina no período de 1891 a 1920 artravés da legislação e sua relação com os cemitérios PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo: Contexto, 2007. TOMASEVICIUS FILHO, Eduardo. O legado do Código Civil de 1916. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo. São Paulo, v. 111, p. 85 - 100, jan./dez. 2016. Disponível em <https://www.revistas.usp.br/rfdusp/issue/ view/9814> Acesso em: 01/08/2021 ROSA, Darlan. A Cidade dos Mortos: um reflexo socioestrutural. In. ISMÉRIO, Clarisse (Org). Novo Sarau Noturno: representações e sensibilidades sob o olhar da arte cemiterial. Bagé: EdiUrcamp, 2021. 64 Sarau Noturno: representações e sensibilidades sob o olhar da arte cemiterial Música, Pampa, Poesia e Cemitério Lasie Winkel da Silva Júnior1 1 Historiador, formado pelo Centro Universitário da Região da Campanha (URCAMP) (2019). Atualmente é professor de história e filosofia da Escola Mondrian Fundamental, em São Gabriel/RS. Música, Pampa, Poesia e Cemitério O interesse do homem como espécie acerca da morte é ancestral, longevo e atávico assim como a forma de encarar o destino que a todos é legado. Remonta as primeiras questões filosóficas nascidas nas mais longínquas culturas e, convenhamos, não deve ter sido tema de fácil discussão na ágora ou em qualquer reunião ou encontro tribal. Explicar para um jovem curioso de “onde viemos e para onde vamos” deve ter sido tarefa difícil aos anciões, filósofos e pais. Qual era o destino do homem que morria numa guerra ou durante uma persecutória caça? Por que causas perecia um membro perante todos os integrantes de uma comunidade? Deveriam ser questões que intrigavam o homem pré-histórico. As respostas encontradas pelos antigos podem ser notadas na forma em que zelavam por seus cadáveres e na própria religião. Na Grécia e em Roma, os cadáveres normalmente eram enterrados na casa da própria família, assim como a memória do falecido era cultuada em pequenos altares residenciais, demonstrando que através do culto à memória do antepassado acreditavam na vida pós-morte. Os autóctones americanos, especialmente araucanos e pampianos, enterravam seus os cadáveres no campo, sem demarcação da localidade ou preocupação com algo que lembrasse um caixão, contudo, não deixavam de ter metafísica. Os mongóis, por exemplo, simplesmente abandonavam seus cadáveres nos campos ou os jogavam nos rios. Na China, curios, o normal era a incineração do cadáver, porém, como o processo era demorado e dispendioso, foi sendo lenta e gradativamente substituída pelo enterro do corpo. Os egípcios e incas2 optavam pelo embalsamento do cadáver, comumente oferecendo alimentos para seus mumificados cadáveres. Podemos, dessa forma, logo concluir que há três tipos de rituais religiosos comuns: o enterro, a cremação e o embalsamento3. As pirâmides no Egito, são enormes sepulcros dos faraós. Os grandes mausoléus europeus ou babilônicos eram o último destino dos reis, para a esmagadora maioria de camponeses e escravos as valas eram suas últimas moradas. Não havia uma preocupação com um local específico para depositar os cadáveres em grande quantidade na maioria das culturas e civilizações antigas. Os cristãos primitivos, crentes na ressurreição de Cristo, serão os primeiros preocupados com a preservação coletiva dos corpos. A própria origem da palavra cemitério explica a visão dos cristãos primitivos com relação ao pós-morte: cemitério tem origem na palavra grega koimeterion que foi absorvida pelo latim como coemeterium. A palavra significava “local para dormir ou local de descanso”, ou seja, a vida pós-morte seria reestabelecida no corpo que ficara no plano terreno, por isso a necessidade de se preservar os corpos. Perseguidos em Roma até o século IV, os primeiros católicos enterravam os seus cadáveres fora dos muros da cidade, em tumbas subterrâneas. Com a popularização e expansão do catolicismo na Europa é possível notar o surgimento de cemitérios em várias regiões do velho continente. Nas naus ibéricas, durante a colonização do Novo Mundo, embarcou junto a cultura peninsular, imposta aos ameríndios e os escravizados africanos. Língua, vestimenta, modos, tecnologia, ferro, instrumentos musicais e germes, parafraseando o título do livro de Jared Diamond4, vieram parar em solo Americano. Os colonizadores ibéricos acreditavam que os autóctones locais eram selvagens e violentos por natureza, a visão dos europeus sobre as diferentes tribos locais era a mesma, porém, souberam articular as diferenças que havia entre os grupos indígenas para gerar conflito entre as mesmas. Os conflitos obviamente existiam, as tribos viviam em guerras, porém, como diretores de uma peça de teatro sangrenta, os “civilizados” fizeram com que os interesses dos atores, os indígenas, fossem alterados. O massacre das comunidades indígenas é uma das tristes histórias que assolam o continente americano até os dias de hoje. A língua que surgia na América do Sul era um misto de dialetos dos grupos linguísticos indígenas locais com o português ou espanhol, a depender da região. Os bandeirantes brasileiros, como Borba Gato ou Domingos Jorge Velho5, falavam a “língua geral”. No sul do continente, especialmente na Bacia do Rio da Prata, não era diferente. O interesse de portugueses e espanhóis pelo controle da região, fez com que surgissem duas cidades importantíssimas no Prata: Buenos Aires e Colônia de Sacramento. A língua que surgiria na região era o misto dialetos português, espanhol, charruana e guarani. O primevo gaúcho, andarilho da pampa, nasce nesse caudaloso e colonial cenário. A literatura e a música da região, introduzida especialmente em Buenos Aires, Rio Grande, Colônia do Sacramento e Montevidéu, era essencialmente europeia. A literatura utilizava-se da escrita ibérica clássica, ou seja, uma literatura produzida na América com pretensões europeias. O cenário não mudava no quesito musical. Literatura e música eram exclusividade de criollos e das elites locais. Classes populares, em seus momentos de lazer, também criavam canções, porém, encaradas pela elite criolla como “pobre”. Daí surge uma divisão muito discutida: erudito versus popular6. Portanto, em linhas gerais, o que se chama de “música popular” emer4 Armas, Germes e Aço. 1997. 5 Domingos Jorge Velho, segundo descrição do carmelita Francisco de Lima, foi um dos homens mais selvagens com que já havia conversado. O bandeirante pouco falava português, sendo fluente somente no Tupi. (BUENO, 2002, pág. 69) 6 NAPOLITANO, 2002, pág. 9. 2 “As mais antigas evidências arqueológicas conhecidas de mumificação artificial de corpos”, segundo a Unesco. 3 DA CRUZ, Manoel. 1882. 66 Sarau Noturno: representações e sensibilidades sob o olhar da arte cemiterial a cultura que rodeia este tipo de construção versal, notaremos que há uma forte valorização pelos hábitos mais comuns ou simples, tipicamente ligados à forte disseminação da religião Católica, especialmente a corrente Apostólica Romana. O próprio índio11, que geralmente aparece em payadas e poemas, é um exemplo dessa vida simples que aspiram e anseiam os escritores e payadores gaúchos. É importante ressaltarmos que há uma espécie de culto a idealização de um “gaúcho-herói”, imortalizado no imaginário popular sulino brasileiro, muito bem elaborado e defendido em músicas e poemas. Esta figura com traços ímpares de características possui algumas características, tais como: a defesa de sua terra12; a visão coletivista da sociedade que o cerca; um predestino á salvaguardar sua cultura que o estrangeiro13 tenta destruir e uma forte hierarquização social14. Estas podem não estar completamente distinguidas na forma que transcrevemos acima e podem ser enxergadas à luz por outras palavras, como as de Larruscain. giu do sistema musical ocidental tal como foi consagrado pela burguesia no início do século XIX, e a dicotomia “popular” e “erudito” nasceu mais em função das próprias tensões sociais e lutas culturais da sociedade burguesa do que por um desenvolvimento “natural” do gosto coletivo, em tomo de formas musicais fixas. (NAPOLITANO, 2002, pág. 10) Na pampa gaúcha, muito por conta do sistema do latifúndio, os pequenos vilarejos e cidades estavam muito distantes entre si. Se já havia uma grande dificuldade de comunicação entre metrópole e as principais cidades americanas, não era diferente entre os vilarejos e os grandes centros comerciais e urbanos do Novo Mundo. Los gauchos, termo utilizado para identificar os homens campesinos que procuravam por empregos temporários de estância em estância após o latifúndio ser instalado, eram vistos como páreas. Sem estudos, analfabetos, comumente descendente de ibéricos e nativos, vistos como mão de obra barata nos campos platinos, o gaúcho era um termo pejorativo. Esses andarilhos, por vezes, carregavam violões, pondo-se a cantar em ritmos simples improvisando versos, sendo muito comum ser chamados de payas os que se propunham a cantar dessa forma. Nasce, dessa forma, o estilo payada e seus cantores chamados de payadores.7 Os payadores8 foram figuras importantíssimas para a comunicatividade dos pampas argentino, brasileiro e uruguaio, pois levavam informações e notícias de outras regiões para os vilarejos onde se propunham tocar. Muitos payadores utilizavam nos seus improvisos reflexões e questões filosóficas, tornando-se figura importantíssima9 nos pampas platinos. Por conta de a esmagadora maioria das payadas não terem sido documentadas, é muito provável que diversas vezes o termo morte e cemitério foi percorrido pelos trovadores locais. Ao compasso do crescimento da payada encontrava-se, também, um estilo musical popular, futuramente chamada de “tradicionalista”, “regional” ou simplesmente “música tradicionalista gaúcha”. Com influências idênticas aos da payada o estilo animava festas e danças10 no coração da vida social platina. Certamente as visões de uma determinada comunidade sobre seus próprios cemitérios é difusa, compreensivelmente, e podem ser notadas nas canções populares. Partindo dessa afirmação começamos a nortear o texto já que, por exemplo, a payada e a música gaúcha tem um caráter muito regionalista, especialmente na região sul do Brasil (Rio Grande do Sul, Santa Cataria e Paraná), Uruguai e ao no norte e nordeste da Argentina. Se levarmos em consideração que 7 8 9 18) 10 Na história rio-grandense houve grupos e pessoas que produziram narrativas sobre a origem do mito do gaúcho rio-grandense. O “mito” do gaúcho-herói diz que os habitantes do Rio Grande do Sul, por seu passado histórico, têm qualidades autênticas do homem dos pampas como a coragem, a bravura, a lida campeira e a hospitalidade. (LARRUSCAIN, 2012, p 33) A morte é inevitável, um acontecimento na qual todo ser vivo terá de enfrentar, porém, é somente o homem que irá, através da consciência, ter uma preocupação com a finitude. Essa preocupação resulta em duas visões sobre a morte, indiretamente ligadas à metafísica: uma mais positiva, ligada diretamente ao mundo metafísico, independentemente de religião e outra mais pessimista, ligadas ao desaparecimento completo do ser e consciência de sua finitude, como as ideias de Schopenhauer. Se levarmos em consideração o parecer do filósofo alemão Arthur Schopenhauer, os animais só conhecem o presente, não tendo experiência das dimensões temporais do futuro e do passado. “Justamente por causa disso, os animais não sentem propriamente sequer a morte: eles só poderiam conhecê-la quando ela se apresenta; mas então, eles já deixaram de ser. Desse modo, a vida dos animais é um prolongado 11 Termo comum na região pampiana do Estado para identificar o gaúcho, também. 12 A pampa. 13 O estrangeiro deve ser compreendido nessa situação, inclusive, como quem comunga da mesma língua e cultura, porém, de outra região do Brasil. Walter Spalding em seu livro A Invasão Paraguaia no Brasil, de 1940, chama a atenção para “[...] o papel do Rio Grande do Sul na guerra de 1865 – 1870, o autor destacava a formação histórica gaúcha, ligada aos confrontos militares com os espanhóis e hispano-americanos na defesa da fronteira brasileira, bem como as históricas e tradicionais experiências dos rio-grandenses nas lutas da “liberdade contra a tirania”, para demarcar a importância dos sul-rio-grandenses [...]”. (ALVES, 2003, pág. 145). 14 Esta, talvez, seja melhor explicada ao observar-se a formação dos latifúndios pampianos. VIDART, 1967, pág. 68. No Brasil também são chamados de Pajadores e, dependendo da região, trovadores. Para Lugones o payador é um “heróe y el civilizador de la Pampa”. (FANLO, 2014, pág. NAPOLITANO, 2002, pág. 8. 67 Música, Pampa, Poesia e Cemitério presente. Sem reflexão, eles vivem nele e nele sempre sucumbem inteiramente” (JÚNIOR, 2005, p. 13). Que ayuden mi pensamiento, Lespidoen este momento Que voy a cantar mi historia Me refresquenla memoria, Y aclaren mi entendimiento. Vengan santos milagrosos, Vengan todos en mi ayuda, Que lalengua se me añuda Y se me turba la vista; Pido a mi Dios que me asista En una ocasióntanruda. (HERNÁNDEZ, 2012, p. 46). Jayme Guilherme Caetano Braun, figura importantíssima da cultura gaúcha, não encarava a morte de forma pessimista. Jayme era, segundo suas próprias palavras, um “religioso pagão” encarando a o tema da morte com tranquilidade e serenidade15. Leiamos um trecho de sua payada Galpão Nativo. Mas se não houver campo aberto Lá em cima quando eu me for Um galpão acolhedor De santa fé coberto Um pingo pastando perto Só de pensar me comovo Eu juro pelo meu povo Nem todo céu me segura Retorno a velha planura Pra ser gaúcho de novo. (BRAUN, 2017) Don Atahualpa Yupanqui, pseudônimo do argentino Héctor Roberto Chavero, talvez a maior voz do estilo payadoresco, também construiu uma poética sobre a morte. Em diversas de suas payadas o tucumano, muito por conta de sua trajetória de vida18, questiona a metafísica católica bem como a organização social das comunidades andinas. Un día yo pregunté Abuelo, ¿dónde está Dios? [...] Mi abuelo se puso triste Y nada me respondió Mi abuelo murió en los campos Sin rezo ni confesión Y lo enterraron los indios Flauta de caña y tambor Y lo enterraron los indios Flauta de caña y tambor [...] Hay un asunto en la tierra Más importante que Dios Y es que naide escupa sangre Pa’ que otro viva mejor [...] ¿Que Dios vela por los pobres? Tal vez sí, y tal vez no Pero es seguro que almuerza En la mesa del patrón [...] (YUPANQUI, 2012, p. 46). O imortal José Hernandéz16, também nos regala em sua obra com esta fé no mundo metafísico. Seu trabalho poético, considerado um clássico americano17, foi escrito em estilo campestre, ou seja, um estilo de escrita baseado nos termos e falas comuns de los gauchos sureños. Além disso, no trecho podemos notar o espírito dos gaúchos pampianos, distantes da vida citadina. Sua obra, sem sombra de dúvidas, inspirou e inspira vários escritores e músicos platinos até os dias de hoje. Aquí me pongo a cantar Al compás de lavigüela Que elhombre que lo desvela Una pena estrordinaria, Como la ave solitaria Conel cantar se consuela. Pido a los santos delcielo 15 Podemos notar que no trecho o payador afirma que, caso não encontre “campo aberto”, “cavalo” e um “galpão” ele voltará aos campos pampianos para ser gaúcho novamente, ou seja, há uma clara referência ao renascimento de Jesus Cristo. 16 José Hernández, argentino natural da cidade de Buenos Aires, foi um poeta, político e jornalista. É autor de Martín Fierro, considerado o livro pátrio da Argentina. Após uma doença, ainda quando jovem, foi recuperar-se no campo, onde conviveu com gaúchos argentinos e aprendeu o manuseio do gado, seus usos e costumes, além, do contato com a linguística, totalmente diferente do espanhol falado em Buenos Aires. Fora um autodidata e, nos anos de agitação política na Argentina (1852-1872), estava convicto que as províncias argentinas deveriam ser independentes, não mais ligadas ao controle central de Buenos Aires. Faleceu em 21 de outubro de 1886, em Belgrano, vítima de um ataque cardíaco. Foi sepultado no Cemitério da Recoleta e no dia 10 de novembro celebra-se, em sua homenagem, o Dia da Tradição na Argentina. 17 El Gaucho Martin Fierro. 1872. Em sentido quase que contrário ao de Don Atahualpa podemos citar outro grande folclorista argentino, Facundo Cabral. Cabral, que possuí uma história de vida tão interessante como a de Don Atahualpa, afirmava que havia conhecido Deus através de um morador de rua. Sua obra mais famosa é No Soy de Aquí, Ní 18 Uma de suas obras mais conhecidas é El Payador Perseguido, de 1964. Nela o artista “conta” brevemente sua história de vida através de poemas. 68 Sarau Noturno: representações e sensibilidades sob o olhar da arte cemiterial Soy de Allá, de 1970. A afirmação de que encontrara Deus nas ruas fez com que o artista argentino produzisse diversas obras em sentido metafísico. tura popular traduzida em versos rimados por seus declamadores e, como já fora visto, comumente realizada de improviso. A música atrelada aos versos poéticos é uma forma de construção de uma identidade regional ou nacional, tal qual o fez Jayme Caetano Braun em suas obras. [...] Pues todito es tan perfecto porque perfecto es Dios que se mueve alguna estrella cuando arranco una flor por eso si hay uno hay dos. Supe del diablo la noche que al hambriento dije no también esa noche supe que el diablo es hijo de Dios. [...] (CABRAL,1970). O campo musical popular desenvolvido nas Américas apontou para uma outra síntese cultural e, guardadas as especificidades nacionais e regionais, consolidou formas musicais vigorosas e fundamentais para a expressão cultural das nacionalidades em processo de afirmação e redefinição de suas bases étnicas. Não é mera coincidência o fato de que os grandes gêneros musicais americanos se consolidaram nas três primeiras décadas do século XX, momento histórico que coincide com a busca de afirmação cultural e política das nações e do reordenamento da sociedade de massas. A consolidação do campo musical popular expressou novas sociabilidades oriundas da urbanização e da industrialização, novas composições demográficas e étnicas, novos valores nacionalistas, novas formas de progresso técnico e novos conflitos sociais, daí resultantes. Mais do que um produto alienado e alienante, servido para o deleite fácil de massas musicalmente burras e politicamente perigosas, a história da música popular no século XX revela um rico processo de luta e conflito estético e ideológico. Neste processo, os vários elementos que formam a música popular foram tema de discussões (formais e informais), alvo de políticas culturais (estatais ou não), foco de apreciações e apropriações diferentes, objeto de formatações tecnológicas e comerciais. (NAPOLITANO, 2002, p 18). O levantamento de poesias e músicas sobre o tema ainda é uma ferramenta pouco popular19 no ambiente de pesquisas históricas, contudo, é importante citar, que há uma movimentação no sentido de preencher tais lacunas como cita Marcos Napolitano. O desafio básico de todo pesquisador que se propõe a pensar a música popular, do crítico mais ranzinza até o mais indulgente “fã-pesquisador”, é sistematizar uma abordagem que faça jus a estas duas facetas da experiência musical [...] Portanto, as relações entre música popular e história, assim como a história da música popular no Ocidente, devem ser pensadas dentro da esfera musical como um todo, sem as velhas dicotomias “erudito” versus “popular”. (NAPOLITANO, 2002, p 8-1112). Graças a objetos de uma cultura material, os cemitérios, somadas a uma rica produção de ordem textual e musical, a qual denominamos cultura imaterial, mesmo que não com o claro objetivo de formar uma identidade cultural com raízes anteriores, é inegável que esta construção cultural existe e transcorre através de poesias. Além de nos evidenciar a afirmação acima citada à música e a poesia nos fornecem um próspero, fértil e farto manadeiro de oportunidades a serem vasculhadas com o intuito de compreendermos como cada cultura ou comunidade assimila temas tabus como os cemitérios e a morte. Em uma cultura tão enraizada como a do Rio Grande do Sul, onde encontramos a construção de heróis como emblemas de uma base da cultura gaúcha, nada mais justo ou compreensivo de que encontremos um culto ou homenagem a estes heróis. Tais atos ou gestos podem ser apreciados nas ricas obras poéticas que aqui se produziu e reproduziu, sendo levadas para dentro dos muros cemiteriais, ou melhor, compreendidas de dentro dos muros. Assim a poesia nativista de Jayme Caetano Braun, que pode ser considerado um elemento norteador para compreendermos como os nativistas entendem os cemitérios, com seus túmulos e mausoléus, e a própria morte. Na construção poética jaymesca a morte é encarada com a crença na vida pós-morte, podendo ser dividida em duas modalidades Se levarmos em consideração as ideias de Benedict Anderson em seu livro Comunidades Imaginadas, podemos afirmar que a construção de uma cultura ou ideia de comunidade tem que necessariamente reconstruir um passado comum a todos aqueles que na comunidade convivem e, por que não, nada melhor do que estátuas, túmulos e cenotáfios, somados a uma produção poética e musical agregados de um teor religioso para formar uma forte identidade regional, tal como a dos gaúchos. Assim a imagem do gaúcho foi fortemente auxiliada pela poesia e música regionalista, talvez muito mais do que visou qualquer centro de tradições, grupos ou entidades com o objetivo de salvaguardar uma cultura. A payada é uma construção musical nascida diretamente do seio da cul19 Podemos citar outros payadores ou compositores platinos, tais como: Mercedes Sosa, Ángel Parra, Jorge Cafrune, Noel Guarany, José Llaralde, Lisandro Amaral, Horacio Guarany entre outros. 69 Música, Pampa, Poesia e Cemitério da canção nativista estudantil em Santana do Livramento – RS. UFSM. Santa Maria. 2012. Disponível em: <http://www.grupodec.net.br/wp-content/uploads/2015/10/AProducaoDoSujeitoMusicalCampeiro.pdf>. Data de acesso: 10 de Junho de 2017. religiosas como a cristã apostólica romana e, em parte, por releituras indígenas interpretadas por nativistas gaúchos, como o próprio Jayme e Lisandro Amaral. Para com a imagem do cemitério em seu corpo físico é importante notarmos e ressaltarmos o entendimento de importância e preservação do cemitério, e este transcende os mausoléus adornados, seja por questões aquisitivas ou de importância relevante na sociedade, ou aqueles de caráter mais popular, como afirmou o próprio Andarengo, os que forjaram e defenderam as fronteiras sulinas sem serem lembrados por seus esforços. Os poemas e ou payadas, e aqui não entraremos numa discussão entre erudito versus o popular já que não cabe a este trabalho tal diferenciação são, assim como boa parte da produção artística do homem, um reflexo de seu momento histórico, além de evidenciar o próprio eu do compositor ou autor da obra. MENDES, Simone. A Morte em Forma de Poesia. UNB. 2016. Brasília. Disponível em: <http://periodicos.unb.br/index.php/estudos/article/view/1649>. Data de acesso: 10 de Junho de 2017. NAPOLITANO, Marcos. História & música. Autêntica. Belo Horizonte. 2002. NOGUEIRA, Renata. Quando um cemitério é patrimônio cultural. UNIRIO. Rio de Janeiro. 2013. Disponível em: <http://www.memoriasocial.pro.br/documentos/Disserta%C3%A7%C3%B5es/Diss321.pdf>. Acesso: 17 de junho de 17. Referências Discografia ALVES, Francisco das Neves. A Guerra do Paraguai na Visão de um Historiador Gaúcho. Rio Grande, 2003. BRAUN, Jayme. Acervo gaúcho. USA Discos. 2013. AMARAL, Lisandro. Canto Ancestral. Gráfica Instituto de Menores. Bagé. 2011. BRAUN, Jayme. Poemas gaúchos. USA Discos. 2017. ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. Companhia das letras. São Paulo. 2015. BRAUN, Jayme. Poesias gaúchas vol. 2. USA Discos. 2017. CABRAL, Facundo. Facundo Cabral. RCA. 1971. FRANCO, Maria da Conceição. A morte conta a vida: Os cemitérios como lugar de memória na antiga Macaé, entre 1855 e 1910. ANPUH-RIO. Rio de Janeiro. 2008. Disponível em: <http://www.encontro2008.rj.anpuh.org/resources/ content/anais/1212694327_ARQUIVO_Amortecontaavida-MariadaConceicaoVilelaFranco.pdf>.Data de acesso: 15 de Junho de 2017. YUPANQUI, Don Athualpa. La pura verdad, las perguntitas. Capitol Records. 1974. HERNÁNDEZ, José. Martín Fierro. Letra&Vida. Porto Alegre. 2012. ISMÉRIO, Clarisse. Sarau Noturno. Chiado. Lisboa. 2016. JÚNIOR, Oswaldo. A visão da morte ao longo do tempo. UNICAMP. Ribeirão Preto. 2005. Disponível em: <www.revistas.usp.br/rmrp/article/view/418/419> Data de Acesso: 15 de junho de 17. LARRUSCAIN. Edilcir. A produção do sujeito musical campeiro na vertente 70 Sarau Noturno: representações e sensibilidades sob o olhar da arte cemiterial Textos do Sarau Noturno Clarisse Ismério1 1 Historiadora, Doutora em História do Brasil, Professora, Pesquisadora,Coordenadora do Curso de História da Urcamp, Idealizadora e Coordenadora do Sarau Noturno. Coordenadora do Projeto Metodologias ativas para o ensino de História e área de humanidades. claismerio@gmail. com Textos do Sarau Noturno Mestre de cerimônias Lord Byron Boa noite! Vamos iniciar o Sarau Noturno, um evento cultural que teve sua primeira apresentação em 2008, no Cemitério da Santa Casa de Caridade de Bagé, e tem como proposta a valorização da arte cemiterial. Esta noite conhecerão homens e mulheres que fizeram diferença. Histórias que são contadas através de mausoléus, túmulos, estátuas e símbolos. São narrativas de pessoas que nasceram, cresceram, amaram, sofreram e morreram... E com o tempo foram esquecidos... Mas o que é o esquecimento? O esquecimento é o verdadeiro sudário dos mortos. Então... Convido-os a deixar de lado os velhos jargões, mitos e preconceitos. Para que a tenham um outro olhar sobre os cemitérios patrimoniais. Bem-vindos ao Sarau Noturno!2 Eutanásia Quando o tempo me houver trazido esse momento Do dormir, sem sonhar, que extremo nos invade Em meu leito de morte ondule esquecimento De teu sutil adejo, a mais langue suavidade. Não quero ver ninguém ao pé de mim carpindo Herdeiros espreitando meu supremo anseio Mulher, que por decoro a coma desparzindo Sinta ou finja a dor que lhe estará rasgando o seio. Desejo ir em silêncio ao fúnebre jazigo Sem luto oficial nem préstimo faustoso Receio a placidez quebrar de um peito amigo Ou furtar-lhe sequer um breve espaço ao gozo.3 Lord Byron Poucos homens viveram mais que eu, Lord Byron. Eu sou aquele que foi banido das terras britânicas, o poeta maldito e libertino. A síntese de toda a geração Ultra-Romântica. Aquele que bebeu da fonte da lascívia em uma taça feita de crânio humano. Meus versos foram a representação daquilo que eu almejava. E quando o destino me trouxe aquele momento pela qual eu tanto ansiava fui imortalizado através de minha obra. 36 invernos europeus eu vivi e após minha morte esses 36 prolongaram-se pela eternidade Foi no litoral grego onde meus dias de promiscuidade pereceram. Em meio a minha batalha pela Grécia contra os turcos-otomanos um destino ironicamente semelhante ao de Vlad Tepes, o empalador romeno quando minha hora final chegou, os versos de Eutanasia ganharam a vida, ao mesmo tempo que meu corpo padecia. Minhas últimas palavras? “É chegada a ocasião de descansar...” 4 Mestre de cerimônias: Clarisse Ismério “O Sarau Noturno convida todos para terem um outro olhar sobre os cemitérios patrimoniais.” 2 3 4 Todos os textos dessa personagem foram escritos por Clarisse Ismério. 72 Lord Byron. Tiago Alano. Sarau Noturno: representações e sensibilidades sob o olhar da arte cemiterial Anjo da Morte Casa dos Esquecidos Porque choras tão baixo Aqui na casa dos esquecidos, o silêncio é o manto da dor e do esquecimento Sufocados pela cidade dos homens, nós repousamos em perpétuo silêncio Guardados por carpideiras que eternamente lamentam, choram... No mesmo lugar pelas mesmas pessoas... O tempo já se foi e as ampulhetas já voaram, deixando para traz as cinzas do tempo. O tempo esquecido pelos vivos, Eternizado pelos mortos Em sua morada tão distante do mundo, Tão distante da vida. Lugar onde os anjos da morte Repetidamente apagam a chama da vida Com um único sopro, forte e breve... Onde os anjos batem asas, mas presos não conseguem voar, e apenas olham, oram... Rezam sem descanso... Lugar onde a saudade positivista joga repetidamente flores nos jazigos. Onde a serpente petrificada conta por si só sua história A história deste túmulo ou casa para nós, não é muito diferente dos tantos outros que guardam esculpidos sua história, e a história de uma época... Apresento-vos o senhor José Paixão Côrtes, fazendeiro, solteiro, faleceu aos 64 anos de idade no dia 20 de março de 1901 às 2 horas da tarde de uma quarta feira. Mas este túmulo tem uma história mais que o normal. A saudade, dor e perda estão aqui entalhadas, representadas. O imaginário popular conta a história de uma criança cuja inocência lhe custou à vida. Euclides Felipe teve a vida ceifada por uma serpente aqui representada, quando em um gesto de pureza e inocência ao enfiar a mão em uma toca a procura de uma coruja foi surpreendido por uma picada. Em silêncio a coruja espera, esculpida, petrificada aqui por mais uma oportunidade para sair da toca escapando da serpente.5 5 Anjo da Morte: Vinicius Ferreira “A personificação da morte para o entendimento dos vivos”. Douglas Lemos de Quadros. 73 Textos do Sarau Noturno Mestre de cerimônias Nos capítulos dos livros tumulares encontramos histórias de mulheres, como a mãe Luciana, mas com o tempo se transformam em carpideiras e alegorias da saudades (Clarisse Ismério) Hamlet Ofélia Ser ou não ser – eis a questão. Será mais nobre sofrer na alma; Pedradas e flechadas do destino feroz Ou pegar em armas contra o mar de angústia – E, combatendo-o, dar-lhe fim? Morrer, dormir: Só isso. E com o sono – dizem – extinguir Dores do coração e as mil mazelas naturais A que a carne é sujeita; eis uma consumação Ardentemente desejável. Morrer – dormir – Dormir! Talvez sonhar. Aí está o obstáculo! Os sonhos que hão de vir do sono da morte Quando tivermos escapado ao túmulo vital Nos obrigam a hesitar: e é essa reflexão Que dá à desventura uma vida tão longa.6 E ele não voltará mais? E ele não voltará mais? Não, não está morto Em leito de paz e conforto Não voltará nunca mais. Tinha a barba branca como a neve Tinha a cabeça tão leve Foi embora, foi embora, É inútil nosso pranto Que Deus o proteja, agora. E para todas as almas cristãs, eu peço a Deus Deus esteja convosco.7 Hamlet: Darlan Almeida da Rosa “Viajante em seus próprios devaneios, sempre vagante entre a luz e o nada.” 6 Ofélia: Thanise Miranda “Incompreendida. Donzela e vítima de uma desilusão amorosa.” William Shakespeare. 7 74 William Shakespeare. Sarau Noturno: representações e sensibilidades sob o olhar da arte cemiterial Mãe Luciana Carpideira Os cemitérios não são somente locais de dor... Na realidade, cada túmulo, cada lápide conta uma história... E dessas muitas histórias destaca-se a de Mãe Luciana, a mãe preta dos órfãos, a mãe da caridade Filha de mãe escrava conheceu muito cedo o sofrimento, mas isso só a fortaleceu... Luciana Lealdina de Araújo nasceu em 1870 em Porto Alegre. Mas foi na cidade de Pelotas que seu destino mudou... Nessa época estava fragilizada pela tuberculose, mas buscou suas forças na fé e prometeu a São Benedito, que se curada fosse, dedicaria sua vida para auxiliar as meninas negras abandonadas. Pois então, ela se curou e iniciou sua grande obra ao criar o Asilo de Órfãs São Benedito para acolher e educar as pequenas almas sofridas. Quiz o destino que essa grande mulher estendesse seus grandes feitos para Bagé, onde hoje descansa em sono perpétuo em modesto túmulo. Eis uma mulher que não deve ser esquecida... Deve ser lembrada, venerada e aplaudida...8 Chora mulher, Não tens mais amigos, parentes ou amores; Estás só em sua dor, Só lhe resta o pranto como consolo. Chora mulher, Tua dor vem da alma, Tuas lágrimas formam rios de tormento. Chora mulher, Busca consolo através da eternidade.9 As carpideiras são símbolos da dor. Mulheres que vendiam seu pranto, Para servir de consolo às famílias E de sudário aos mortos. Hoje encontram-se nos cemitérios do mundo, Paradas, imóveis.... como deusas de pedra. São viúvas eternas que chorando Zelam pela moral das famílias ilustres.10 Sobre Mãe Luciana: Kátia Silva “Uma mulher que foi de extrema importância para sociedade bageense, que não merece cair em esquecimento!.” 8 Carpideira: Ana Carolina Moraes “Uma mulher que usa a sua própria dor como inspiração, para chorar no túmulo alheio.” 9 10 Clarisse Ismério. 75 Clarisse Ismério. Clarisse Ismério. Textos do Sarau Noturno Guardiã do Cemitério Cidade dos Mortos O túmulo que vos apresento Pode ser um símbolo da história que eu quero contar. Da caminhada da cidade dos mortos. Sim, as cidades caminham, mas só quem as observa por muito tempo pode perceber seus passos. Começamos a nossa romaria no interior das igrejas. Sob benção e vigilância do clero e dos servos do Senhor. Então, gradativamente, como quem quer se libertar de um estorvo, nos expulsaram Casa do Criador, e colocaram nossa nova morada a parte da cidade dos vivos. Exilados, construímos nossas próprias igrejas, Para que pudessem nos venerar fora da matriz citadina. Colocamos anjos em nossas sepulturas, para que nos protegessem e nos levassem para perto de Deus. Erguemos bustos para que nossa imagem imponente ficasse esculpida no mármore da eternidade. E vos pergunto: alguém se lembra de nós? A cidade dos vivos cresceu e caminhou e hoje nos cerca como um abraço. Mas, no silencio, nós também crescemos, ao natural. E eis que estamos agora a retribuir o fraternal abraço aos vivos. Porque não há vida que não seja em reverência a morte E o resto... É silêncio.11 11 Guardiã do Cemitéio: Rayssa Bitencourt “A morte tudo ouve e tudo vê, vagando eternamente no tempo e no esquecimento do silencioso vale dos mortos.” Mauro Ricardo Lemos. 76 Sarau Noturno: representações e sensibilidades sob o olhar da arte cemiterial Mestre de cerimônias Mas o silêncio é rompido pela incoerência das guerras e contendas dos homens. E por ironia do destino alguns estão lado a lado em sono eterno. (Clarisse Ismério) Visconde de Cerro Alegre Antônio de Souza Netto, General Netto Já devem ter ouvido falar de minha pessoa Sou João da Silva Tavares, Visconde de Cerro Alegre Militar, servi honrosamente ao exército imperial brasileiro. Como coronel fui comandante da Guarda Nacional e da 3ª Divisão de Cavalaria. Na batalha do Seival, ao lado de meu filho Joca Tavares, fui derrotado por Antônio de Souza Netto e seu exército farroupilha. Prisão... Desonra... Mas eis que o verdadeiro guerreiro não esmorece jamais E num ímpeto consegui retomar minhas forças e escapar do inimigo, Formar uma nova brigada e voltar à batalha. Pois para um guerreiro só importa a vitória.12 Pecar, talvez seja levantar em armas por um ideal. Ambicionar, talvez seja por este ideal como meta a ser alcançada. Mas, a honra nem sempre está na vitória. Antes de se forjar o mito, resplandece o homem E o homem resume-se subitamente à sua obra. A obra do homem é o que define sua relevância. Se ele vai ter uma carpideira para chorar-lhe eternamente no leito. Ou alguma anja-guardiã para contar sua história. Mesmo que alguns edifícios tenham a audácia de transformar guerreiros em intelectuais. Temos o imaginário, edifício em vida e, talvez, em morte.13 Visconde de Cerro Alegre: Darlan Almeida da Rosa “Ódio, honra e ego ferido, por uma conjuntura não só social, mas política.” General Netto: Vinícius Rodrigues Ferreira “O grito do herói sobre a intelectualização do guerreiro.” 12 Clarisse Ismério. 13 77 Calvin Furtado. Textos do Sarau Noturno Lisístrata Se pudesse ser tão breve quanto o desejaria, diante de ouvidos tão grosseiros, eu ficaria muda. Não serei tão breve enquanto possa. O fato é que, desde o início desta última guerra - eu nunca vi uma paz completa em toda minha vida -, vimos suportando, normalmente, isto é, em silêncio e humildade, como vocês inventaram que é próprio das mulheres, a tremenda estupidez das ações masculinas. As regras patriarcais impõem que a mulher não deva abrir a boca, ou melhor, só deve fazer isso silenciosamente, boquiabrindo-se de admiração diante dos atos de valor do amante , pai, marido, irmão. Qualquer macho que esteja a seu lado, pois mais estúpido, torto, vesgo ou covarde que seja . Que aplaudíamos a maneira como conduziam os acontecimentos. Ah, quanta insensatez, quanta cegueira! Muitas vezes ouvíamos vocês discutindo, decidindo a vida e a morte do povo, sorte e felicidade dos cidadãos. E os argumentos nos pareciam vistos pelo avesso e de cabeça para baixo. Arriscávamos então uma pergunta temerosa. Com o coração pesado, mas mantendo um sorriso indagávamos: “Querido, na Assembléia, hoje, você falou alguma coisa pela paz? “Pra que? A resposta vinha como um trovão, pois vocês sabem tudo. “Que é que você tem com isso? Isso é da sua conta? Onde é que se viu mulher imiscuir em interesses públicos? Cala a boca!” E adivinha o que fazíamos nós? Calávamos a boca.14 14 Lisístrata: Ana Carolina Moraes da Silva “Uma forte voz feminina, entre tantas masculinas, que decide gritar e dar um basta no machismo.” Aristófanes. 78 Sarau Noturno: representações e sensibilidades sob o olhar da arte cemiterial Rainha Elizabeth I Quem expressa este desejo? Se estamos destinadas a morrer, nosso país não tem necessidade de perder mais mulheres do que nós temos aqui; e , se devemos viver, quanto menor é o nosso número, maior será para cada uma de nós a parte da honra. Pela vontade de Deus! Não desejeis nenhuma mulher a mais, te rogo! Por Diana! Não, por fé, não desejeis nenhuma mulher mais da Inglaterra. Paz de Deus! Não quereria, pela melhor das esperanças, expor-me a perder uma honra tão grande, que uma mulher a mais poderia quiçá compartir comigo. Não ansieis por nenhuma mulher a mais! Proclama antes, através do meu exército que aquela que não for com coração à luta poderá se retirar: darei-lhe um passaporte e mandarei por na sua mochila uns escudos para a viagem; afinal, não queremos morrer na companhia de uma mulher que teme morrer como companheira nossa. Aquela que verter hoje seu sangue comigo, por muito vil que seja, será minha irmã, esta jornada enobrecerá sua condição, e as cavaleiras que permanecem agora no leito da Inglaterra irão se considerar como malditas por não estarem aqui. Se ambicionar a honra é pecado, sou a alma mais pecadora que existe!15 15 Rainha Elizabeth I: Alana Portella “Predestinada a coroa e subordinada ao poder, ainda enfrentou obstáculos que não poderiam ser vencidos sem a ajuda de suas guerreiras.” Guardiã da Memória Adaptação do discurso do dia de São Crispim, “Henrique V”, de William Shakespeare. 79 Textos do Sarau Noturno O céu Por onde quer que vá, sobre o mar, sobre a terra, Morador da cidade ou do campo distante, No côncavo de um vale ou no alto de uma serra, Sob um clima de gelo ou sob um sol flamante, Mendigo tenebroso ou Creso rutilante, Quer se conserve em paz, quer se destrua em guerra, - O Homem cai a tremer, em qualquer parte, diante Do mistério que o céu, - trágico abismo, - encerra... Sempre o céu! sempre o céu! - teto que se ilumina, No teatro do mundo em que o Homem representa - Mascarado histrião! - a comédia divina; Em que o Homem, - pobre ator, cheio de desenganos, Das paixões arrostando a terrível tormenta, Chora, blasfema e ri - há mais de dez mil anos... (Charles Baudelaire) Francisco Ilarregui A vida e a morte criam metáforas e símbolos... Apresento-lhes o imigrante espanhol Francisco Ilarregui, Que veio para Bagé e, com o passar do tempo Tornou-se um próspero comerciante E um cidadão preocupado com as causas sociais. Mas não se fez representar como comerciante em seu leito de morte. Buscou ser eternizado como um herói letrado, um intelectual entre as colunas. Representado através de um busto celebrativo, Que descansa em sua Acrópole particular. Em seu mausoléu nos deixa uma mensagem: A ampulheta alada mostra que o tempo se esvai muito rápido... E as tochas que se apagam, a certeza da morte. Portanto, respeitem a morte... Mas aproveitem e celebrem a vida.16 16 Guardiã da Memória: Camila Barcellos Clarisse Ismério. 80 Sarau Noturno: representações e sensibilidades sob o olhar da arte cemiterial Rainha do Lar/Feminista Instintos são estes de obediência Porque amar é obedecer É preferir a vontade própria à vontade alheia É gozar da felicidade de ver os outros satisfeitos Ela obedece espontaneamente Porque obedece por amor e não por servilismo Nenhuma mulher pode ser desviada para exercer qualquer função fora do lar Sem prejuízo de seus deveres de filha, esposa e mãe Na sociedade organizada, o lugar da mulher é no lar Zelando sobre a saúde de seus entes queridos que a humanidade confiou a sua solicitude.17 Anjo na vida. Anjo na morte Ele: o dono do mundo. Ela: escrava do lar. Afinal, por que Deus criou a mulher? Para que todos nós nascêssemos e fôssemos educados por ela. Com este pensamento, durante muitos e muitos anos, a mulher se manteve sob o domínio conservador de uma sociedade predominantemente machista. Considerada a rainha do lar e o anjo tutelar, a mulher nascia com o destino predeterminado. Sua função era servir ao pai e aos irmãos e, mais tarde, ao marido. Educada nas melhores escolas de prendas domésticas, ela não precisava compreender política ou economia, e sim, saber lavar, engomar e cozinhar, e o mais importante: ensinar as filhas o segredo de serem excelentes esposas e mães, e os filhos a sabedoria de grandes homens. Nada mais justo que elas fossem eternizadas em túmulos de cemitérios de todo o mundo. Na vida, zelavam pela moral e pelos bons costumes, e na morte, resguardavam a honra da família.18 Rainha do Lar/Feminista: Amanda Atunes do Couto “Rainha em servidão ou crítica rebelde. Duas faces de uma mesma figura, a mulher.” 17 Trechos extraídos de autores positivistas, da obra de Clarisse Ismério, ``Mulher: A moral e o imaginário”, 1995, por Ana Graciela de Freitas Silva. 18 Ana Graciela de Freitas Silva. 81 Textos do Sarau Noturno Mestre de Cerimônias E assim encerra o Sarau Noturno Mas esperamos que tenham agora outro olhar sobre os cemitérios, pois são muito mais que a morada dos mortos... Os cemitérios patrimoniais são na realidade uma celebração da história, da memória e da arte cemiterial. Somos o Sarau Noturno! 82 Sarau Noturno: representações e sensibilidades sob o olhar da arte cemiterial EXTRAS Sarau Noturno (2018) sob o olhar de Glauber Pereir a Sarau Notu rno em Mo ntevidéu (2 017) 10 anos de Sarau Noturno (2018) sob o olhar de Filipe Tor res Pérez b o no (2018) so Sarau Notur a uber Pereir a l G e d r a h ol 008) turno (2 o N u a r a tação S Apresen o oturn N u a Sa r a çã o t n e s Apre Aprese n tação S arau N oturno (2008) ) (2009 Apresenta ç (2009) turno o N u a Sa r ntação Aprese ão Sarau N oturno (20 09) Sarau No turno (20 18) sob o olhar de Diogo Lameira ira Fronte a d a m Cine a ival de Antônio Roch t s e F o n r o o n p r otu 2012 Sarau N Novembro de m e Sarau N oturno no Atel ier Col etivo Apresent a ção Sara u Noturn o (2019) (2021) no Virtual r u t o N u a r Ensaio Sa Missão Produzir e socializar o conhecimento para a formação de sujeitos socialmente responsáveis que contribuam para o desenvolvimento global.