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UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA RENATO DE LYRA LEMOS “ANTES DE SER BRASILEIRO EU SOU PRETO”: Representações de África no Imaginário da música popular brasileira RECIFE, 2013 UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA RENATO DE LYRA LEMOS “ANTES DE SER BRASILEIRO EU SOU PRETO”: Representações de África no Imaginário da música popular brasileira Monografia apresentada à Coordenação do Curso de História da Universidade Federal de Pernambuco pelo discente Renato de Lyra Lemos como parte dos requisitos para obtenção do título de Bacharel em História. Orientador: Prof. Dr. José Bento Rosa da Silva RECIFE, 2013 Dedico esta monografia à Esù, por abrir os meus caminhos, à Ayrà, por iluminar meu trajeto, e à minha amada Mariana Andrade, por ser minha força e meu motivo de seguir em frente. AGRADECIMENTOS O ato de pesquisar não precisa ser uma tarefa solitária, e acima de tudo não costuma ser. A construção do pensamento comumente é um processo desenvolvido dentro da coletividade, pois é através da ação do coletivo que o individual é possibilitado. Portanto, a realização desta pesquisa não seria possível sem a participação direta, ou mesmo indireta, de uma série de pessoas que se envolveram afetiva ou intelectualmente em seu processo. Gostaria, portanto de agradecer ao meu orientador, o Professor Dr. José Bento Rosa da Silva, por me guiar no caminho a seguir e por abrir espaço para que meu raciocínio pudesse fruir sem maiores amarras; aos professores, José Amaro dos Santos Silva, Sandro Guimarães de Salles e Isabel Cristina Martins Guillen pelos ensinamentos; à professora Virgínia Almoedo, pelo carinho que faltava na vida acadêmica; ao NEAB/UFPE, por promover espaços para o debate das temáticas etnicorraciais na academia e expandir o meu conhecimento; e a Levi Rodrigues, pela grande força nos momentos de desespero acadêmico e pelos puxões de orelha. Essa jornada não seria possível também sem o apoio de minha família. Gostaria de agradecer aos meus pais, Carlos Pery e Maria de Fátima, que foram e continuam sendo meus pilares de sustentação; ao meu irmão Carlos Pery, que sempre me apoiou, independente de minhas escolhas; aos meus tios Mauro e Rejane Falcão, que sempre deram muita força e carinho; ao meu tio Beto, pelas perturbações; à minha tia Teté, pelas palavras de incentivo; aos meus padrinhos Antônio Saulo e Andreia, pelo amor incondicional; aos meus sogros José Carlos e Maria do Carmo, que nas horas vagas também fazem papel de pais; à minha cunhada Maria Júlia pela paciência; e aos meus avós, Arnaldo Lemos e Ayrigenes Fonseca e Moacyr e Ritinha Lyra, que sei que continuam torcendo por mim de onde estiverem. Com os amigos tudo também se tornou muito menos árduo. Por isso gostaria de agradecer à galera de Sweet River e adjacências: Antônio Carlos, Paulo Sano, Rieldo Alves, Lucio Dias (Campeão), Lidiane Lima, Roberto Luiz, Aroma Bandeira e Rodrigo Galvão; aos amigos que vem acompanhando desde cedo meu trajeto: Igor Pastl, Carlos Eduardo, Felipe Cavalcante, Petra Pastl, Mariana Melo e Danielle Felinto; aos companheiros de jornada na Universidade, que tem dado aquela força: Thiago Parrolas, Jefferson Gonçalo, Frederico Neto, Caetano Bezerra, Diomedes Oliveira, Matheus Pinheiro, Bianca Alcoforado, Afonso Bezerra; Estevam Machad; aos amigos Antonio Guido e Mauro Mendes pelos bons momentos; e a todos os outros que não couberam aqui, mas que estão presentes no coração e nos pensamentos. E por último e em especial, à minha amada companheira Mariana Andrade, que me fez enxergar a força que tinha dentro de mim e externá-la, que tornou tudo isto possível, fazendo meus sonhos virarem realidade. Descobri através de você que só necessitamos de amor pra viver. “You Africans, please listen to me as Africans, And you non-Africans, listen to me with open mind” (Fela Anikulapo Kuti) RESUMO As representações imagéticas de África são constantemente abordadas na história da música popular brasileira. Seus registros a partir da criação de uma indústria fonográfica nacional vão demonstrando-se frequentes, e cada vez mais abrangentes, incluído desde uma devoção à terra ancestral deixada para trás, à exaltação dos valores construídos através das identidades afro-brasileiras. Os discursos acerca de África elaborados nos diferentes períodos de nossa música popular representam importantes materiais de pesquisa para a análise acerca dos processos de produção de um pensamento afrocêntrico, assim como para a compreensão da relevância que as culturas de matrizes africanas possuíram e ainda possuem na formação da identidade nacional. Discutiremos deste modo, como a formação do imaginário sobre África se processou a partir da década de 30 na MPB, e como ele se reflete ainda hoje na produção musical brasileira contemporânea, que aparenta desvelar novos caminhos para a criação de identidades africanizadas. A música, por ser um dos campos onde é possível perceber mais referências voltadas à construção destas representações sobre África, torna-se um campo essencial para a compreensão deste processo, do lugar que a África ocupou, e que novamente passa a ocupar no pensamento social coletivo. O presente trabalho busca, portanto, compreender o papel que as culturas de matrizes africanas exercem, através do imaginário representado na música popular brasileira, para a formação de identidades nacionais afrocêntricas. Palavras-chave: África, música, imaginário. SUMÁRIO INTRODUÇÃO.............................................................................................................07 1. IDENTIDADES NEGRO-AFRICANAS NAS DÉCADAS DE 30 A 50...............13 1.1. Os intelectuais e a política cultural do Estado Novo...........................................14 1.2. O espaço social das culturas africanas na década de 30.....................................17 1.3. O Estigma da macumba.........................................................................................20 1.4. Reconfigurações de África no Brasil.....................................................................28 1.5. Melodias de terreiro em tempos de macumba.....................................................31 2. CONFIGURAÇÕES IMAGÉTICAS DE MATRIZES AFRICANAS................34 2.1. Os ecos que vem da África.....................................................................................36 2.2. Afro-sambas............................................................................................................37 2.3. Os jovens sons africanos........................................................................................40 2.3.1. Conexão Brasil/África...........................................................................................43 2.3.2. África Brasil..........................................................................................................45 2.4. Os deuses negros da MPB.....................................................................................46 2.4.1. MPB e religiões afro-brasileiras............................................................................52 2.5. Novas perspectivas de África................................................................................53 3. AS (RE)APROPRIAÇÕES DE ÁFRICA NO SÉCULO XXI..............................56 3.1. Kiko Dinucci e a África macarrônica...................................................................60 3.1.1. Metá Metá: a tríade iorubana................................................................................64 3.2. Afrobeat / afro-brasileiro......................................................................................67 3.3. Reestruturações estéticas......................................................................................76 3.4. Afro-religiosidades................................................................................................78 3.5. A busca de uma reparação à África....................................................................85 CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................................89 REFERÊNCIAS..........................................................................................................93 INTRODUÇÃO O Brasil é um país marcado por profundas tradições culturais de origens africanas, que remontam dos tempos da escravidão e com as quais convivemos até hoje. Estes traços de africanidade estão presentes na fala, na religião, na culinária, na dança, nos traços físicos, na música, entre tantos outros. São questões que fazem parte do cenário nacional desde os tempos da colonização, devido à intensa chegada de escravos negros ao país, que só cessou após a segunda metade do século XIX. Desde então, as culturas africanas que aqui restaram, passaram por processos de ressignificações, algumas das quais mantendo traços que nem mais em África são possíveis de se encontrar, e outras passando por processo de transfiguração onde torna-se difícil identificar ali o que resta de africano. Em meio a este processo, várias identidades pautadas em África foram construídas e reconstruídas, pautadas em reminiscências culturais africanas no Brasil ou mesmo em novos valores adquiridos de conhecimentos advindos de uma modernidade africana, gerando a construção de um imaginário1 singular sobre o continente africano em nossa sociedade, que remonta às mais infinitas possibilidades. A música, devido ao seu amplo processo de trocas culturais, torna-se então um vasto campo para a compreensão destas identidades construídas a partir do imaginário que se estabeleceu sobre a África na cultura nacional, e que se amplia cada vez mais nos artistas da contemporaneidade, onde torna-se perceptível a identificação de um imaginário sobre África completamente novo. Atualmente, diversos projetos de reparação social são aplicados à população negra, editais que valorizam o resgate e a manutenção de práticas culturais de origem afro-brasileiras são lançados constantemente e o ensino da história e cultura afrobrasileira é tornado item obrigatório nas escolas e universidades. As barreiras existentes entre o continente africano e o Brasil têm sido gradualmente sobrepostas pela internet, e com isso, a identificação dos grupos sociais brasileiros com as culturas produzidas pelas etnias africanas e afrodescendentes ao redor do globo tem tornado-se visíveis. No Brasil, existe uma longa trajetória de identificação da população com as sonoridades de matrizes africanas, desde o surgimento do Samba e sua posterior 1 Utilizamos aqui a noção de Imaginário segundo a perspectiva do pesquisador francês Gilbert Durand, para quem o imaginário seria a construção da percepção do mundo segundo a ótica dos indivíduos, feita singular ou coletivamente. 7 associação como ritmo nacional durante a era Vargas na década de 30, até as recentes reapropriações das musicalidades africanas por artistas brasileiros contemporâneos. Analisar o modo como se processam estes fenômenos ligados à produção do imaginário acerca de África na produção musical da contemporaneidade é compreender qual a relevância que as diferentes culturas africanas representam hoje para a sociedade brasileira. A música se apresenta como uma importante ferramenta para a compreensão destas relações de identidade do povo brasileiro para com a África, pois segundo Nestor Garcia Canclini (2008, p. 62), “Talvez a música seja o ambiente onde mais veloz e radicalmente estão sendo reformulados os conceitos de local, nacional e global.” O pesquisador Norman C. Weinstein (1993), em seu livro A night in Tunisia: imaginings of Africa in jazz, propõe analisar o imaginário sobre África presente no repertório de 13 músicos americanos de jazz. Este tema se mostrou relevante para o autor, pois no passar de anos ele foi percebendo como um grupo de músicos de jazz não-africanos evocavam constantemente a África em suas composições sem, em muitas casos, terem tido contato real com o continente (WEINSTEIN, 1993). Ele começou então a analisar como esses músicos conseguiam através apenas do imaginário, trazer aspectos de um pensamento afrocêntrico em sua obra, fazendo com que suas composições remetessem aos ouvintes visões de uma África que a maioria deles em geral também não havia vivenciado. Weinstein (1993) sugere que a palavra “imaginações” presente no título não implica uma concepção frágil de África para estes compositores de jazz, mas sim uma energia que gera possibilidades amplas de conceber a África, sempre “novas e mutáveis”. (WEINSTEIN, 1993, p.VII). As questões abordadas por Weinstein em seu livro trazem inúmeras possibilidades de reflexão sobre como estes imaginários de África se processam também na realidade brasileira, visto que o país acabou, de certo modo, sendo um dos maiores mantenedores das tradições culturais, sociais e religiosas de matrizes africanas na Diáspora, e que conseguiu abranger um imaginário muito mais amplo sobre as relações de África com o que era conservado destas tradições no Brasil, mesmo tendo ciência da distância temporal que separava a chegada destas tradições no país. O estudo destes aspectos também se mostra relevante segundo a ótica de Fernando Augusto Albuquerque Mourão (1996), para quem: A arte africana, designação genérica de vários gêneros, é um instrumento da maior importância – enquanto método auxiliar no estudo da História -, na medida em que seja entendida em seu contexto. Embora os fundamentos da 8 arte africana sejam comuns a todo o continente, cada grupo cultural apresenta as suas especificidades. Note-se que, durante longo tempo, os estudos sobre a arte africana centram-se, em geral, ora em trabalhos em que se dava primazia a aspectos particulares, ora em outros, em que se privilegiavam os aspectos gerais, ambos permeados por conceitos em que a arte africana surge como objeto. (MOURÃO, 1996, p.7). A existência de uma série de manifestações culturais voltadas para as vertentes africanas no início do século XXI no Brasil, se deve ao fato de um crescente interesse não só nas manifestações brasileiras de origens africanas, mas também dos processos culturais surgidos a partir da diáspora africana em todo o mundo e principalmente devido a uma (re)valorização e (re)descoberta do próprio continente africano. O fluxo e refluxo entre Brasil e África sempre foi bastante intenso. As relações de “troca” não ocorreram apenas através do tráfico atlântico de escravos, mas também de forma significativa após o término deste. Após a abolição ocorreram vários casos no Brasil de pessoas de descendência africana retornarem à África ou mesmo enviarem os seus filhos para o continente africano a fim de realizarem estudos e revitalizarem os seus contatos com as tradições africanas e com as suas ancestralidades, buscando em alguns casos aprimorarem-se nos conhecimentos das religiões tradicionais, indo consultar-se diretamente na fonte de onde saíram. Muitos desses indivíduos ao retornarem para o Brasil chegavam com status de especialistas no assunto, como foi o caso do descendente de africanos Martiniano Eliseu do Bonfim, que faz viagem com seu pai à Nigéria em 1875, onde passa 11 anos, e de lá retorna à Bahia como Babalawô 2 de grande prestígio. Assim como acontecia dos negros baianos voltarem à África em busca de suas origens e informações sobre os cultos de seus orixás, também era comum o povo de santo residente no Rio de Janeiro retornar à Bahia para fazer suas obrigações com os sacerdotes de lá, assim como afirma Reginaldo Prandi (1990, p. 50-51): “O trânsito de sacerdotes e aspirantes das religiões dos orixás e encantados entre Bahia e Rio tem-se mantido constante desde esse passado até os dias de hoje”. Roberto Moura (1995) também corrobora com esse pensamento de fluxo de negros entre África-Bahia e RioBahia quando diz que: Era comum as baianas de maior peso irem à Bahia tratar de suas coisas de santo e dos negócios de nação, progressivamente centralizados nas casas de candomblé de Salvador, como os negros baianos iam eventualmente à África, voltando com informações e mercadorias. (MOURA, 1995, p.93-94). 2 Sacerdote do candomblé responsável pelo culto de Orunmilá-Ifá. 9 Esse fluxo entre Rio de Janeiro e Bahia tornou-se comum a partir do momento da abolição, pois segundo Roberto Moura (1995), uma grande quantidade de exescravos e libertos rumou para a então capital brasileira na expectativa de encontrar melhores condições de trabalho, além de que os negros da Bahia estavam encontrando uma relutância muito grande para que ocorresse sua inserção na sociedade, o que era corroborado pela política local. Foram estes grupos negros vindos da Bahia, segundo Roberto Moura (1995), que foram responsáveis por aglutinar ao seu redor a comunidade negra no Rio de Janeiro, que posteriormente ia concentrar-se ao redor da Praça Onze, numa região chamada por Heitor dos Prazeres de “Pequena África” (MOURA, 1995, p.93). É neste reduto negro carioca que irá surgir o Samba, através do auxílio das Tias Baianas, filhas de santo dos terreiros cariocas que além de venderem comidas tradicionais baianas, ainda utilizavam suas casas como reduto da boemia, das rodas de música e para as obrigações de orixá. É partindo deste ponto de junção dos valores tradicionais africanos das diferentes regiões brasileiras no Rio de Janeiro que se inicia esta pesquisa. No primeiro capítulo, analisaremos as percepções de África existentes na música brasileira a partir da década de 30, período em que a maioria dos autores que serão aqui abordados mencionam como sendo o surgimento das primeiras gravações da indústria fonográfica que permeavam estéticas e temáticas de matrizes africanas. Assim, avaliaremos a construção da identidade nacional concebida durante a era Vargas, analisando como se dava a relação do Estado com as culturas de matrizes africanas, pensada inicialmente como detentoras de um atraso, segundo as teorias raciais ainda vigentes, e a mudança para um paradigma de mestiçagem, baseado na teoria da “democracia racial”. Serão apontadas e analisadas as relações dos grupos intelectuais com o Estado, o espaço social das culturas africanas e as relações do Estado perante as religiões afro-brasileiras, tudo isto entremeado pelo avanço da indústria fonográfica e do rádio, que acabavam refletindo estes acontecimentos com as culturas negras. No segundo capítulo, iremos abordar um panorama mais abrangente, tratando das décadas de 60 e 70, com o surgimento de diversos movimentos musicais no Brasil e retratando brevemente os ecos da ditadura militar nestas produções. Para isto, utilizaremos como referência o artigo Foi conta para todo canto: as religiões afrobrasileiras nas letras do repertório musical popular brasileiro de Rita Amaral e Vagner Gonçalves da Silva (2006), onde estes analisam a presença das religiões de matrizes africanas na música popular brasileira do século XX. Na parte em que eles tratam da 10 periodização das décadas de 60 e 70, um montante de artistas são elencados para se analisar a presença das religiões afro-brasileiras em suas obras. São eles: Elis Regina, Jair Rodrigues, Vinicius de Moraes e Baden Powell, Noriel Vilela, Martinho da Vila, Clara Nunes, Luiz Américo, Ruy Mauriti, Os Tincoãs, Wando, João Bosco, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Maria Bethânia e Gal Costa. Como todos estes compositores e intérpretes são abordados no texto destes autores, por mais que, devido à sua proposta, alguns só possam ser tratados no texto de maneira superficial, às vezes apenas citados, decidimos por tratar outros aspectos de alguns destes músicos, que não sejam analisados no texto de Amaral e Silva (2006), e trazer elementos de outros músicos e compositores que não são citados no texto, e que são talvez ainda mais essenciais para a nossa compreensão acerca do imaginário de África na música popular deste período, como os grupos Tribo Massahi e Vissungo e o compositor e cantor Marku Ribas, que se propuseram a dialogar com as novas sonoridades produzidas no continente africano. No terceiro e último capítulo, no qual serão tratadas as produções fonográficas realizadas a partir do ano 2000, analisaremos o modo como as percepções construídas sobre África em períodos anteriores serão refletidas no imaginário dos autores contemporâneos; as possibilidades do uso da internet e de outras tecnologias para novas descobertas sobre o continente africano; o papel contemporâneo das religiosidades de matrizes africanas; além da construção de um discurso de reparação às culturas africanas. Dentro destas perspectivas, tentaremos compreender a relevância do pensamento afrocêntrico para a construção da identidade dos artistas aqui analisados. Nesta pesquisa investigaremos o pensamento de uma série de autores que tentam compreender os diferentes modos como a África se reprocessou e ainda se reprocessa dentro da cultura brasileira, seja na música, na religiosidade, na literatura, nas festas populares, no pensamento político ou no próprio discurso dos afrodescendentes, que acaba perpassando qualquer questão ligada meramente à “tonalidade da pele” para a relação de identificação destes indivíduos com as culturas que vem de África. Além deste projeto se destinar a analisar o modo como se processa o imaginário de África na música brasileira, pretendemos também resgatar a memória de inúmeros artistas e discos que foram excluídos da história da MPB, não apenas por não atingirem sucesso comercial e destaque nas grandes mídias da época, mas por não se encaixarem nos padrões estético-musicais estabelecidos pelos críticos historiadores da MPB, que muitas vezes só conseguem enxergar alguma presença de África na música nacional 11 através de características antropológicas folclorizantes pautadas em manifestações tradicionais de cunho “puramente” africanista. Os conceitos de África para a civilização ocidental, ainda são incutidos de uma carga homogeneizante e depreciativa. Para Helenise da Cruz Conceição e Antônio Carlos Lima da Conceição (2010): As visões mais comuns sobre a história africana ou se constituíram com base em preconceitos etnocêntricos, apresentando a África como um lugar atrasado, inculto ou na posição de dominados criando a falsa idéia de serem povos passivos, impotentes, incapazes de resistência, de atuação e intervenção na história. (CONCEIÇÃO; CONCEIÇÃO, 2010, p.3). É deste modo que o pensamento afrocêntrico acaba se configurando no Brasil. Composto por uma série de amarras sociais onde, mesmo que o “afro” seja definido como um modelo a ser seguido, ele acaba sendo inferior, segundo os moldes ocidentais, aos padrões sociais, culturais, políticos, religiosos e estéticos das tradições ocidentais brancas judaico-cristãs. O padrão vigente acaba se tornando o “negro de roupagem branca”, porém, aqui serão analisadas estruturas fora deste paradigma, segundo uma provável tendência de “africanização” da música brasileira contemporânea. Portanto, pretendemos aqui demonstrar qual o papel exercido pela África na memória fonográfica nacional, através de um panorama da produção nacional, e sua reconfiguração atual, fundamental para a compreensão do cenário musical brasileiro contemporâneo. 12 1. IDENTIDADES NEGRO-AFRICANAS NAS DÉCADAS DE 30 A 50 Durante a era Vargas o Brasil foi marcado por intensas mudanças sociais, econômicas e políticas, passando por um momento de adaptação e inserção das classes sociais menos favorecidas na sociedade brasileira. Estes grupos sociais eram em sua maioria compostos de negros ou mestiços, descendentes de africanos escravizados que mesmo com o advento do fim da escravidão e da república continuaram relegados à margem da sociedade. Ao assumir o poder a partir da revolução de 30, Vargas se deparou com um povo reticente, fechado às propostas políticas formuladas pelo Estado, pois, passados mais de 40 anos da abolição da escravatura, não tendo o governo estabelecido em todo esse tempo nenhum tipo de projeto eficaz de integração social voltado para grupos populares, estes acabaram estabelecendo seus próprios meios de inserção na sociedade. Segundo Rachel Soihet (2003), estes grupos negros do período: Rejeitaram a segregação que se lhes pretendiam impor e, a partir de suas manifestações, desenvolveram formas alternativas de organização, vinculadas ao terreno da cultura, elemento de coesão e de construção de identidade, através da qual buscaram edificar uma cidadania. (SOIHET, 2003, p.305) Getúlio Vargas identificará nas manifestações populares a oportunidade de estabelecer um maior vínculo com o povo através da elevação destas manifestações à qualidade de identidade nacional brasileira, plano estabelecido em seu governo e que terá respaldo de uma série de intelectuais da elite do país. Mas, para que isso ocorra, o Estado irá estabelecer medidas restritivas aos movimentos culturais populares, fazendo com que estes se adequem às propostas de governo de Vargas. Estas limitações impostas pelo governo farão com que os grupos tradicionais voltados às manifestações de raízes africanas continuem em parte restritos à marginalidade, e os que estiverem dispostos a obterem aceitação na nova realidade social do país terão de adequar-se aos novos tempos. A permanência das culturas de matrizes africanas como símbolo de identidade nacional durante a era Vargas tornou-se possível devido a um “branqueamento” das manifestações populares mantidas pelos grupos negros, através de tentativas de desvincular estas culturas de suas raízes africanas, moldando-as a padrões europeizados. O Estado não demonstrava interesse em fazer subsistir uma cultura nacional ligada a características “bárbaras”, como eram ainda em geral consideradas as tradições africanas no ocidente. De modo que, para poder conservar uma estética “afro” na cultura nacional, tornava-se de certo modo necessário o esvaziamento de seu conteúdo, 13 visando adquirir um semblante mais “civilizado”, ou seja, baseado em um padrão europeu, segundo o ideal ainda recorrente de muitos intelectuais no início do século XX. À medida que a identidade nacional é construída pelo Estado com o auxílio de intelectuais dos mais diversos campos do conhecimento, as características culturais balanceadas entre o “civilizado” e o “bárbaro” acabam tornando-se “exclusivamente brasileiras”. Para o Estado, só seria considerado legitimamente brasileiro o que se encaixasse em suas perspectivas. As massas eram consideradas imaturas pelas elites intelectuais, despreparadas, incapazes de governar a si próprias, portanto, o Estado seria responsável por moldar a mente e a vida social delas. 1.1. Os intelectuais e a política cultural do Estado Novo A pesquisadora Mônica Pimenta Velloso (2003) ao falar do papel das políticas culturais empreendido pelos intelectuais durante o Estado Novo, diz que com o fim da 1ª Guerra e com a derrocada do mito cientificista, torna-se necessária a busca por um sentimento nacional, pela busca das raízes brasileiras, e que os intelectuais irão se eleger como o grupo que tem capacidade para constituir o ideal brasileiro. Segundo a autora: “[...] imbuídos de vocação messiânica, senso de missão ou dever social, os intelectuais se auto-elegeram sucessivamente consciência iluminada nacional.” (VELLOSO, 2003, p.148). Velloso (2003) também aponta para as diferenças existentes entre a classe intelectual em períodos antes e após o regime, confrontando seus ideais nesses momentos distintos. Para a autora, a ideologia da intelectualidade teria passado de uma mera relação observadora ao papel de agente social. É esta necessidade de ação por parte dos intelectuais, sua relação com o nacional, que será cobrada pelo Estado e que acabará sendo correspondida através de uma maior participação política. O que Velloso pontua como sendo a missão de “[...] ser o representante da consciência nacional.” (Ibidem, p.153). É com base nestes intelectuais que será criada a ideologia da “democracia racial” no Brasil, que corresponderia a um ideal buscado pelo Estado de mascarar os problemas sociais, fazendo assim com que a população se sentisse incluída nas transformações 14 promovidas por ele e apoiasse o seu projeto social. Entre os intelectuais do período que participaram dessas discussões, podemos citar o sociólogo Gilberto Freyre, um dos grandes responsáveis pela criação da teoria de “democracia racial”, discutida através do seu livro Casa Grande & Senzala, escrito em 1933. Sobre o papel formador do Estado, Lúcia Lippi Oliveira (2003) comenta: Diferentes instrumentos de educação coletiva foram criados ou desenvolvidos visando educar o povo, a promover o ensino de bons hábitos. O rádio, o cinema educativo, o esporte, a música popular participavam desse objetivo comum de integrar os indivíduos no novo Estado nacional. (OLIVEIRA, 2003, p.330) O intuito através destas práticas era o de homogeneizar a população, mascarando a realidade social brasileira através de um falso prisma de “democracia racial”, fazendo assim com que o povo se sentisse inserido nas políticas públicas estatais. Sidney Aguilar Filho (2012) questiona o uso da teoria de “democracia racial” pelo Estado a partir das práticas eugenistas empregadas por ele num momento anterior, demonstrando que a mudança no discurso por parte do governo não levou a medidas sociais concretas, permitindo assim a manutenção de práticas racistas durante a era Vargas: Um olhar sobre o Brasil de Vargas (1930-1945) revela a segregação racial como política estatal, implodindo a teoria da “democracia racial” brasileira. Antes, ao contrário, confirmam o autoritarismo extremado do Estado brasileiro e de seus detentores contra setores específicos da sociedade. Os estudos mais recentes sobre a temática mostram, superando os desconfortos, que a segregação e a desigualdade de direitos entre cidadãos foram legalizadas, teorizadas e praticadas no país. (AGUILAR FILHO, 2012) Antonio Ozaí da Silva (2002) também corrobora com este pensamento quando diz que a condição do negro na sociedade brasileira, mesmo após a revolução de 30, não sofreu grandes mudanças em comparação à República Velha (denominação dada pelos golpistas de 30 ao período da república que antecedeu o golpe): Esta situação não foi modificada com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder: manteve-se o critério de que a política é uma atividade restrita às elites. E isto foi ainda mais aprofundado durante o Estado Novo: cabia às camadas inferiores do povo, sendo a raça negra sua maioria, contentar-se com a função submissa de colaborar para a harmonia e a manutenção da ordem social, condições para o progresso e o desenvolvimento econômico brasileiro. (SILVA, 2002) Algumas características da cultura negra no Brasil, principalmente as mais ligadas às tradições africanas, irão sofrer intervenções por parte do Estado. As atividades carnavalescas serão padronizadas, afastadas de suas características “selvagens”; as religiões de matrizes africanas e seus adeptos sofrerão perseguições, e em casos como o de Recife, apenas as casas consideradas tradicionais pelo grupo de 15 intelectuais encabeçados pelo médico e psicólogo Ulysses Pernambucano terão maiores liberdades de culto; até a figura do malandro será suavizada para se encaixar com a ideologia pregada pelo regime. Foi visando assegurar estas premissas que foi criado o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Além de órgão de propaganda do governo, o DIP iria servir também como instrumento de censura, pronto a rechaçar qualquer atitude que não fosse condizente com os planos que o Estado tinha para as massas. Durante o período do Estado Novo, o governo promoveu através do DIP uma “orientação” aos compositores populares visando o enaltecimento de temas considerados importantes pelo regime, como a questão do “trabalho”, e ao mesmo tempo, o abandono de temáticas julgadas impróprias como a boemia e a malandragem. Os tipos do boêmio e do malandro enaltecidos nas composições do período eram o retrato dos negros e mestiços que não se submetiam ao sistema ou que por não se encaixarem na sociedade, que, como falado anteriormente, após a abolição não promoveu a inserção destes grupos, acabaram encontrando outros meios de subsistência. Era esta associação à figura do negro que o Estado queria “abolir”. Este foi o caso de uma canção composta em parceria entre os sambistas Wilson Batista e Ataulfo Alves. Batista foi um compositor que exaltou a figura do malandro através de composições como Lenço no Pescoço, gravada por Silvio Caldas em 1933, a qual gerou uma polêmica com o sambista Noel Rosa, que fez uma resposta à composição de Batista, intitulada Rapaz Folgado. Em um samba de 1940, Bonde São Januário, Batista e Alves contam a história de um homem que abandona a vida boêmia para se tornar trabalhador, enfatizando a importância do trabalho como responsável por prover a sua felicidade e dignidade. A letra da música diz o seguinte: Quem trabalha É quem tem razão Eu digo E não tenho medo De errar O Bonde São Januário Leva mais um operário Sou eu Que vou trabalhar Antigamente Eu não tinha juízo Mas hoje Eu penso melhor No futuro Graças a Deus Sou feliz 16 Vivo muito bem A boemia Não dá camisa A ninguém Passe bem! Nos últimos versos da composição original, porém, os autores faziam uma crítica a este “nobre” papel do trabalhador proclamado pelo Estado, dizendo: “O bonde São Januário / leva mais um grande otário3 / sou eu que vou trabalhar”, demonstrando assim ser a composição, na realidade, uma crítica ao Estado e ao intervencionismo do DIP, visto que ela passava a perpetrar em sua versão original uma visão contrária à do governo, desqualificando o papel enaltecedor do trabalho aclamado pelo regime. Porém, para evitar problemas com o DIP, os compositores acabaram modificando a composição, que na gravação de Ciro Monteiro de 1940 acabou ficando: “O bonde São Januário / leva mais um operário / sou eu que vou trabalhar.”. A pressão do Estado era tão grande que até no imaginário da música popular a figura do malandro converteu-se em trabalhador, fazendo assim com que a composição de Batista e Alves se adequasse aos ideais do governo. Rachel Soihet (2003) sintetiza bem o papel do Estado na conversão do malandro em trabalhador: “Durante o Estado Novo, tempo de industrialização, de valorização do homem que forja o progresso do país, ocorre uma mudança nessa imagem: o sambista continuará a ser exaltado, mas agora como trabalhador.” (SOIHET, 2003, 308). 1.2. O espaço social das culturas africanas na década de 30 Por mais que a malandragem tenha sido representada como um estigma associado aos grupos negros, a qual o Estado tomou o cargo de “podar as arestas”, foram provavelmente as religiões de matrizes africanas e afro-brasileiras que se destacaram entre as manifestações culturais negras mais perseguidas no período da era Vargas. As características religiosas e sociais dos cultos africanos não eram condizentes com o projeto de governo do Estado, que mesmo pregando uma desvinculação com a Igreja Católica em nome de um Estado laico, utilizava-se a todo o momento do 3 Grifo nosso. 17 imaginário cristão em seus discursos, chegando inclusive a comparar Getúlio Vargas a Jesus Cristo, devido aos “sacrifícios” que o então presidente teria feito em nome do povo brasileiro. Porém, há um fato mais importante sobre isto, as religiões de matrizes africanas e afro-brasileiras eram representativas de grupos tradicionalmente excluídos da sociedade, considerados de menor importância para o Estado, principalmente se comparadas com as religiões cristãs, portanto, não se encaixariam como símbolo de uma identidade brasileira propagada por um regime voltado para a homogeneização das massas através de um padrão ocidentalizado. Ao mesmo tempo em que pretendia fazer a inserção dos negros e mestiços na sociedade, e mesmo propunha a construção de uma identidade nacional voltada em parte para as manifestações brasileiras de matrizes africanas, o Estado promovia um “embranquecimento” dessas manifestações, padronizando-as ao seu gosto, numa adaptação da realidade brasileira aos moldes ocidentais “civilizados”. A década de 30 foi um período de crescente desenvolvimento da indústria fonográfica no país, além da radifônica, pois o rádio desempenhou um importantíssimo papel na divulgação da música feita no Brasil desde a sua inauguração na década de 20, principalmente através da promoção do samba carioca, ritmo de origem afro-brasileira que tomava as ruas através do carnaval carioca e que penetrava no dia-a-dia dos brasileiros através do rádio e dos fonogramas que aos poucos iam fazendo parte do seu cotidiano. Segundo Hermano Viana (1995): Nada mais propício para o samba carioca, mais tarde tido como brasileiro, finalmente se definir como estilo musical. Em sua própria cidade, já havia as rádios, as gravadoras e o interesse político que facilitariam (mas não determinariam – isso é outro problema) sua adoção como nova moda em qualquer cidade brasileira. O samba tem “tudo” a seu dispor para se transformar em música nacional (VIANNA, 1995, p.110). O pesquisador Hermano Vianna (1995), em seu livro O mistério do Samba, fala sobre o processo de “mediação cultural” ocorrido entre grupos intelectuais e populares no Brasil como fator importante para a formação de uma cultura nacional pautada em valores populares. Vianna (1995) utiliza como fio condutor um encontro ocorrido entre intelectuais como os sociólogos Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, o jornalista Prudente de Moraes Neto e o maestro e compositor Heitor Villa-Lobos, com músicos populares tradicionais como Pixinguinha, Donga e Patrício Teixeira, num processo de trocas já existentes em outros períodos da história brasileira, mas que entre este grupo demonstrou o processo de construção do samba como elemento formador de uma identidade nacional. Vianna (1995) enfatiza que diferentemente do que foi 18 registrado em grande parte da historiografia do samba, onde o processo que teria ocorrido entre o samba passar de ritmo marginal a nacional é atribuído apenas ao seu sucesso imediato no carnaval, a sua aceitação pela sociedade ocorreu gradualmente, e devido a uma série de outros fatores que não apenas este, demonstrando estas “mediações culturais” e o interesse do Estado em formar uma identidade nacional voltada às características populares como fatores importantes nesse processo. Entre tantos acontecimentos ocorridos na década de 30, um em particular será essencial para a disseminação e reconhecimento dos aspectos africanos na cultura nacional. A realização do I Congresso Afro-Brasileiro em Recife, no ano de 1934, e a do II Congresso Afro-Brasileiro em Salvador no ano de 1937. O fato de que as temáticas afro-brasileiras estavam inserindo-se de tal modo no campo acadêmico a ponto de incitarem a realização de congressos demonstra a importância que estas temáticas haviam adquirido nos meios intelectuais. Muitos dos mais respeitados pesquisadores brasileiros participaram dos dois congressos. Para termos uma compreensão da amplitude que o congresso atingiu, entre os presentes da primeira edição em Recife podemos citar diversos intelectuais como: Gilberto Freyre, Arthur Ramos, Edson Carneiro, Luís da Câmara Cascudo, Mário de Andrade, Solano Trindade, Melville J. Herskovits, entre muitos outros. Já na segunda edição do congresso, ocorrida em Salvador três anos após a primeira, estiveram presentes: os intelectuais Édison Carneiro, Arthur Ramos, Áydano do Couto Ferraz, Dante de Laytano e Jorge Amado; representantes dos terreiros da Bahia como Maria Escolástica Nazareth (a Mãe Menininha do Gantois), Silvino Manuel da Silva (Ogã do Gantois), Eugenia Anna Santos (Mãe Aninha do Ilê Axé Opô Afonjá) e com presidência de honra do babalaô Martiniano Eliseu do Bonfim, além também da presença de grupos como a Frente Negra de Pelotas e a All African Convention. Muitas temáticas foram debatidas, e a realização dos dois congressos contribuiu essencialmente para a dinamização dos estudos afro-brasileiros e para a quebra de alguns preconceitos, mesmo que em geral as suas pesquisas tenham ficado mais restritas aos meios acadêmicos e intelectuais. As mudanças sociais geradas com a realização do primeiro congresso já puderam ser sentidas três anos depois com a realização do segundo, pois conforme Flávio Gonçalves dos Santos (2001): Este se realiza com uma característica diferente do I Congresso de Recife. Na edição de 1937, os tributários da cultura afro-brasileira figuram lado a lado dos estudiosos nacionais e estrangeiros sobre o assunto, com um discurso de autoridade, usando os sinais diacríticos da cultura dominante, deixando de ser 19 apenas objeto do discurso de outros e passando a produtor de discursos sobre si mesmos. (GONÇALVES, 2001, p.9) As culturas de origem africanas encontravam-se em momento de destaque nos meios intelectuais, porém, de forma ainda muito folclorizante, associadas a práticas de estudo de reminiscências de povos “exóticos” aportados no Brasil. Algumas destas características são visíveis principalmente no I Congresso Afro-Brasileiro, onde os as práticas culturais dos grupos negros eram consideradas apenas como temáticas de estudo, algo a ser conservado em livros e museus. Já no II Congresso Afro-Brasileiro, estes temas passam a ter um maior destaque, como práticas sociais de um grupo, onde os negros deixam de ser apenas o objeto de estudo, e passam eles próprios a serem protagonistas dos estudos junto aos grupos de intelectuais. Porém, o tipo de interesse dos intelectuais por estes grupos e práticas sociais não é refletido através das práticas do Estado, especialmente no que diz respeito às religiões de matrizes africanas. 1.3. O Estigma da macumba As religiões de matrizes africanas no Rio de Janeiro passaram a ter uma maior prática a partir do grande fluxo de ex-escravos que para lá rumavam a partir do fim da escravidão, entre estes um grande número de baianos praticantes destas religiões, buscando melhores condições de trabalho na então Capital Federal. A mistura de práticas religiosas africanas aportadas no Rio, com ritos indígenas e católicos, acabaram sendo denominadas popularmente como Macumba, instrumento musical de origem africana, que passou a servir como designação genérica da prática urbana destas religiões no Rio de Janeiro. Reginaldo Prandi (1997) afirma que os elementos das religiões afro-brasileiras apareceram pela primeira vez nas letras dos sambas no início dos anos 30, e cita como referência um disco de 78 rotações do selo Odeon Nº 10.679, gravado por Getúlio Marinho ”Amor”, Elói Antero Dias e Conjunto Africano em outubro de 1930 onde eles cantam dois “pontos de macumba4”: Canto de Exú e Canto de Ogum. O mesmo grupo já havia gravado anteriormente, em setembro do mesmo ano, um outro disco pela 4 Macumba é a denominação genérica dada na primeira metade do século XX às religiões de matrizes africanas do Rio de Janeiro. 20 Odeon, de Nº 10.690, onde interpretavam dois outros pontos: Ponto de Inhãcã e Ponto de Ogum. Segundo o pesquisador e compositor Nei Lopes (2005): Em 1930, Mano Elói tornou-se o pioneiro do registro em disco de cânticos rituais afro-brasileiros. Nesse ano, com o Conjunto Africano, gravou um ponto de Exu, dois de Ogum e um de Iansã. [...] O pioneirismo dos sambistas Amor e Mano Elói deve-se ao fato de eles terem levado para o disco verdadeiros cânticos rituais, executados e interpretados como autênticos pontos de macumba, com atabaques etc. (LOPES, 2005, p.5) O pioneirismo atribuído por Lopes (2005) e Prandi (1997) aos fonogramas se deve ao fato de que para eles, as temáticas exploradas em composições de períodos anteriores não poderiam ser consideradas como “músicas rituais”, pois mesmo que tratassem de valores voltados ao universo religioso afro-brasileiro, acabam adquirindo ares “apenas de música popular”, portanto, sem nenhum sentido litúrgico. Segundo Caroline Moreira Vieira (2010): Além dos pontos, propriamente ditos, Getúlio Marinho gravou músicas bastante próximas de cânticos sagrados, e não sabemos se foram compostas por ele para serem cantadas também nos terreiros ou se sua inspiração veio desses espaços religiosos para serem gravadas. (VIEIRA, 2010, p.126) Flávia Camargo Toni (2003), analisando a coleção de fonogramas de Mário de Andrade diz que este classifica o primeiro disco do Conjunto Africano com os fonogramas Ponto de Exú e Ponto de Ogum como “disco africano”. Porém, outros discos de sua coleção, entre eles os fonogramas Orobô de Cícero de Almeida, Meus Orixás de Gastão Viana, Ererê de Getúlio Marinho e vários outros são classificados como “feitiçaria carioca”. No selo do disco original as composições são creditadas como domínio público, e a interpretação apenas ao Conjunto Africano, não constando os nomes de Getúlio Marinho e Elói Antero no disco. É importante verificar que no disco ambas as faixas abrem com a saudação “Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo” no que o coro responde: “Para sempre seja louvado” (assim como também no outro disco do Conjunto Africano), expressão típica das aberturas de gira em terreiros de Umbanda, religião surgida no início da década de 20 no Rio de Janeiro e que se caracterizava como uma junção de elementos espíritas, cristãos, indígenas e de religiões de matrizes africanas. Por que então Mário de Andrade caracterizaria o disco como sendo “africano”? Provavelmente, devido não só à língua iorubá cantada nos pontos, nem só à denominação do conjunto como “Africano”, mas também ao fato de que os terreiros poderiam ser vistos como o que de mais “africano” se mantinha no Brasil. De certo modo, o fato da abertura dos fonogramas acima ser feita com uma louvação a Jesus Cristo facilitava a possibilidade de gravação de musicalidades 21 pautadas numa tradição religiosa de origem africana, visto que as quatro gravações tratam de orixás do candomblé que foram absorvidos pela Umbanda, como também uma maior possibilidade de aceitação desse tipo de música no mercado. A Umbanda surgiu na década de 20 como uma espécie de “branqueamento” dessas manifestações africanas, suavizando a sua ritualística com a inserção de elementos de outras religiões, além de retirar os elementos considerados pela visão eurocentrista como “não civilizados”, a exemplo da curiação5. Segundo Livio Sansone (2003) A umbanda tem sido comumente vista pelos antropólogos (por exemplo, Bastide, 1967; Ortiz, 1988) como uma forma “poluída” e “embranquecida” de religião negra, uma vez que seu panteão inclui, além de um conjunto de divindades de origem africana, elementos do espiritismo inspirados em Alain Kardec, filósofo esotérico do fim do século XIX, diferentes tipos de magias e alguns elementos do catolicismo popular. A umbanda continua muito popular na classe baixa e na classe média baixa, mas raras vezes é tida como típica da cultura negra. Na verdade, como me disse certa vez um umbandista, “a umbanda é o Brasil, o candomblé é a África”. (SANSONE, 2003, p.105) Portanto, a Umbanda seria, em parte, útil ao Estado devido ao seu caráter “civilizador” das religiões de matrizes africanas, além de sua característica de representatividade de uma religião mais “nacional”, questão que também é apontada por José Henrique Motta de Oliveira (2009) quando este afirma que “[...] enquanto os adeptos das religiosidades mais africanizadas buscavam legitimar suas práticas exaltando a pureza das tradições nagô, os líderes do “movimento umbandista” fizeram questão de apresentá-la como uma religião brasileira.” (OLIVEIRA, 2009, p.60). Era este tipo de associação que o Estado almejava. Sobre o gradual espaço adquirido por estes tipos de composição, Rita Amaral e Vagner Gonçalves da Silva (2006) afirmam que: “Ainda que passível de polêmicas, o registro destes gêneros demonstra o reconhecimento e a importância que vinham assumindo como estilos próprios no mercado fonográfico a partir dos anos de 1930.” (AMARAL; SILVA, 2006, p.197). Outra gravação feita anteriormente a estas e que também trazia elementos das religiões afro-brasileiras é Orobô. Composta por Cícero de Almeida e gravada por Gusmão Lobo em março de 1930, a música foi catalogada pela gravadora Odeon como “ponto de macumba”. A letra da música tem como personagem central a figura de um preto-velho, designação dada a ancestrais africanos escravizados e que são cultuados na umbanda, e ressalta em sua letra elementos característicos do cotidiano das religiões afro-brasileiras. A composição diz o seguinte: 5 Processo de oferecimento de animais votivos aos orixás, chamado popularmente de sacrifício. 22 Preto véio fio do congo Fica contente quando dança o jongo Bate tamborim com a mão canhota Lá vem a negraria de canela torta Preto véio fica assanhado Chama os campônio e vai pro terreiro Oi sinhô, uma toda nesse mundo inteiro Oi sinhô, uma toda nesse mundo inteiro Mãe de samba lá de aruanda Bebe jurema e dança de banda Preto véio fica consolado Se vê a mãe de samba com os ôios virado Ê jerecum, e obí orobô Maracutemba da lei de Nagô Nesse terreno que papai chegou Preto véio diz obí odò Analisando o trecho da música que diz: “mãe de samba lá de aruanda / bebe jurema e dança de banda / preto-velho fica consolado / se vê a mãe de samba com os ôios virado”, podemos encontrar sinais de realização de culto seguido de transe. Mãe de samba é um termo que pode ser utilizado para designar as Tias Baianas do Rio de Janeiro, que ao mesmo tempo em que fazem em suas casas os rituais litúrgicos da macumba (nome genérico atribuído inicialmente às religiões de matrizes africanas no Rio de Janeiro), também são responsáveis pela parte profana destas tradições, misturando música, comida e bebida em ambiente que, segundo Roberto Moura (1995) e Hermano Vianna (1998) , teria dado origem ao samba. Quando o compositor diz: “O preto-velho fica consolado se vê a mãe de samba com os ôios virado”, significa que o fato da mãe-de-samba estar com os “ôios virado” demonstra que ela estaria realmente incorporada, e que não se tratava de fingimento. A composição também traz outros elementos relacionados às religiões afro-brasileiras como, por exemplo, a palavra “Aruanda”, porto de partida dos escravos em Angola que acabou sendo concebido no imaginário da diáspora como local mítico onde viviam os orixás; “Jurema”, planta sagrada que dá origem a uma bebida ritualística de mesmo nome, e que também é um reino místico e mítico onde vivem os encantados, segundo tradição religiosa nordestina; além de apresentar também outros elementos rituais como o uso do Obí e do Orobô, frutos dos quais as sementes são utilizadas nos rituais do candomblé. Segundo Hermano Vianna (1995, p. 111): “Foi só nos anos 30 que o samba carioca começou a colonizar o carnaval brasileiro, transformando-se em símbolo da nacionalidade. Os outros gêneros produzidos no Brasil passaram a ser considerados 23 regionais.”. Logo, dentro dos padrões de classificação musical do período, vários estilos musicais que poderiam ser classificados como samba, devido, muitas vezes, à predominância de elementos considerados “africanos”, acabaram assim recebendo outras denominações, visando uma normatização do samba moldada segundo padrões ocidentais. Já que agora o samba era considerado música nacional, teria de representar então o “verdadeiro” viés nacional, que, segundo o padrão das elites, passava longe das culturas tradicionais mantidas pelos negros. O etnomusicólogo Carlos Sandroni (2010), ao analisar alguns fonogramas da década de 30 que seriam pertencentes ao gênero samba, mas que foram catalogados na época com outras designações como macumba, batuque e jongo, diz que: Existe pois um certo número de gravações realizadas no período em exame, que tem como tema principal o universo das religiões afro-brasileiras. Não encontrei nenhuma cuja designação de gênero fosse ‘samba’. Estas gravações envolveram personagens de destaque do mundo do samba, como Pixinguinha, Donga e João da Baiana, pessoas que são geralmente classificadas no Brasil como negros ou mulatos escuros. Nestas gravações a designação de gênero escolhida é batuque, macumba, e jongo, mas não samba. Isso acontece apesar do fato de que musicalmente não parece, numa primeira abordagem, haver grande diferença em relação aos sambas gravados no mesmo período (esta questão sugere a necessidade de um aprofundamento da pesquisa). Demarca-se assim um domínio fonográfico onde a associação com o africanismo é mais intensa, como sendo diferente do domínio do samba. (SANDRONI, 2010, p.4) Sandroni (2010), fala na possibilidade de um duplo pertencimento étnico de indivíduos pertencentes ao mundo do samba, onde nos momentos em que estes faziam músicas com temáticas voltadas para as religiões afro-brasileiras estas seriam catalogadas com os rótulos citados acima, o que aproximaria estas músicas do gênero folclore, designando assim uma identidade negra destes compositores, e ao comporem sobre situações comuns do cotidiano, em temáticas que se aproximassem de um universo não litúrgico, ou ao menos não voltado para as representações culturais africanas, seriam estas composições rotuladas como samba e, portanto demonstraria uma identidade “mulata” associada a estes compositores, mais condizente com um padrão branco europeu. A música Yaou africano de Pixinguinha e seu irmão Gastão Vianna é um exemplo desse tipo de caso. Gravada em 1938 por Patricio Teixeira na RCA Victor, e catalogada como Lundu (o que é corroborado por Xavier (2007) e Sandroni (2010)), o estilo musical da canção não parece fugir muito ao padrão de outras feitas por Pixinguinha e Gastão Viana no mesmo período, como é o caso do lado B do mesmo disco, a música Mulata Baiana, também composta pela mesma dupla e gravada por 24 Patrício Teixeira, numa musicalidade relativamente próxima da outra composição, porém aqui registrada como Samba Jongo, pois mesmo sendo considerada uma musicalidade mais tradicional, por tratar de uma temática cotidiana, ela não é relacionada diretamente com religiões de matrizes africanas. É importante notar que enquanto as composições de Pixinguinha na década de 30 eram em parte catalogadas como choro e samba, sendo Yaou Africano e algumas outras composições tradicionais feitas em parceria com Donga e João da Baiana um caso à parte, a maioria das composições feitas por Gastão Viana no período foi catalogada como Samba. Fora Yaou Africano, as poucas que fogem a essa regra são exatamente as suas composições que tratam de temática religiosa afro-brasileira, como nos casos de No Terreiro de Alibibi e Mironga de Moça Branca, gravadas pelo Conjunto Tupi em 1932, e Meus Orixás, gravada por Francisco Sena em 1933, que são catalogadas como Macumba. Marcelo Xavier diz que: “[...] o compositor Gastão Viana tinha o hábito de utilizar palavras africanas em suas letras.” (XAVIER, 2007), no caos específico em yorubá, idioma africano dos grupos sudaneses, utilizado nos rituais litúrgicos dos terreiros de candomblé. Isso fica evidente na composição Yaou Africano: Akikó no terreiro oi Pelu adié Faz inveja pra gente Que não tem mulhé No jacutá de preto véio Tem uma festa de yaô Lá tem nega de Ogum de Oxalá, de Iemanjá Mucama de Oxóssi ,ê caçador Ora, viva Nanã, Nanã Buruku Yô, Yô No terreiro de preto véio, Iaiá Vamos saravá A quem meu pai? Xangô A música fala na vivência do terreiro através de uma festa de Yaô, ritual de iniciação dos neófitos no candomblé, utilizando termos yorubás como Akicó (galo), pelu adié (peru que roda entre as galinhas) e jacutá (casa). Segundo Rita Amaral e Vagner Gonçalves da Silva (2006): Percebe-se, ainda, nessa composição, valores religiosos sendo afirmados para o próprio grupo e para a sociedade mais ampla, um dos processos pelos quais parcelas de significado religioso foram, aos poucos, transmitidas para outros espaços, mais abertos, da cultura. (AMARAL; SILVA, 2006, p.196) 25 A inserção de elementos culturais africanos e das religiões afro-brasileiras ainda era em uma escala pequena nas décadas de 30 e 40, devido, provavelmente, à dificuldade de aceitação desses grupos na sociedade. As práticas modernizadoras do Estado impeliam as manifestações populares tradicionais de cunho africano cada vez mais para as periferias, promovendo uma verdadeira “limpeza” étnica nos grandes centros urbanos, como ficou evidente no Rio de Janeiro desde as reformas empreendias por Pereira Passos. Mesmo o apoio advindo de alguns grupos de intelectuais, interessados na manutenção de certas tradições populares, não foi o suficiente para conter o aumento do controle estatal sobre estes grupos. Muitas práticas culturais mantidas por grupos negros e mestiços foram marginalizadas e perseguidas pelos órgãos de repressão durante a era Vargas. Mário Ribeiro dos Santos (2011) ao discutir a perseguição aos cultos afro-brasileiros ocorridas no bairro recifense de Afogados durante as décadas de 30 e 40 demonstra como os reflexos da intentona comunista (tentativa de golpe contra o governo de Vargas ocorrida em 1935, durante a qual foram travadas batalhas no bairro) modificaram ainda mais as práticas da localidade: O acontecimento alterou significativamente o cotidiano do bairro, com a circulação diária de soldados da Polícia Militar pelas ruas e becos; uma forma de vigilância do comportamento social dos moradores, intensificando, sobretudo, as perseguições e as proibições aos momentos de lazer e outras práticas socioculturais protagonizados pela população afro-descendente. As freqüentes batidas policiais nos Xangôs, o número de prisões de religiosos do candomblé e o funcionamento clandestino de muitas casas de culto constituem reflexos da atuação da imprensa e da ideologia defendida pelo Estado no período. (SANTOS, 2011, p.3) Em Pernambuco, as perseguições aos cultos de matrizes africanas e afrobrasileiras tornam-se ainda mais intensas durante o Estado Novo, especialmente no período o qual Agamenon Magalhães foi nomeado interventor. Esta política de perseguição e normatização das práticas populares será constante durante todo o Estado Novo, e em especial às religiões de matrizes africanas, visto que, como dito anteriormente, o Estado mesmo desligado diretamente da Igreja utiliza-se a todo o momento de referenciais cristãos em seus discursos, permitindo assim a criação do imaginário de uma identidade nacional afastada dos cultos afros. Sobre esta época no Recife, Francisco Mateus Carvalho Vidal (2008) diz que: [...] os maracatus e xangôs vêem-se diante de um período de grandes dificuldades para realização de suas práticas culturais com uma perseguição ainda mais profilática contrabalanceada por um discurso de participação popular no governo, de favorecimento das massas trabalhadoras. (VIDAL, 2008, p.5) 26 Deste modo, mais uma vez, é possível verificar que o discurso perpetuado pelo Estado de um governo voltado para as massas seria apenas o de legitimar-se através de pequenas concessões necessárias para fazer o povo sentir-se acolhido pelo regime. Este ideário pode ser verificado no livreto Catecismo cívico do Brasil Novo, publicado em 1937, espécie de cartilha com perguntas e respostas destinada à “formação cívica das crianças” (CAPELATO, 2003, p.124), num trecho de resposta que faz a seguinte afirmação: “Obedecendo, portanto, ao Chefe que o representa, o povo, apenas, se conforma com aquilo que ele próprio deseja e é executado pelo depositário de uma autoridade por ele conferida.” (apud CAPELATO, 2003, p.124). Ou seja, o governo sabe o que o povo “deseja” e, portanto, suas políticas públicas são voltadas para o cumprimento da “vontade” das massas, homogeneizando assim suas vontades ao redor dos próprios interesses do Estado. Mesmo assim, é importante observarmos que o Estado foi um grande apoiador do Samba e do Carnaval. Rachel Soihet (2003) afirma isto quando assinala que: Vargas, a partir de sua ascensão, percebe o potencial do quadro vigente, buscando valer-se da música popular e das agremiações carnavalescas como veículo para a integração dos populares no projeto de construção da nacionalidade. (SOIHET, 2003, p.309). Porém, ainda segundo a autora, “[...] o carnaval constituía-se na manifestação máxima dos populares, quando, de forma irreverente, utilizando-se da paródia, do deboche, da inversão, traziam à tona suas tensões e insatisfações contra a opressão e a discriminação que sofriam.” (SOIHET, 2003, p.302), tornando-se necessário deste modo uma intervenção por parte do Estado nestas práticas populares, devido ao grande poder questionador que agregavam em si. As “formas alternativas de organização” criadas pelos populares através de suas manifestações culturais não teriam espaço no governo de Vargas, visto que desta vez o povo teria no governo alguém que os representasse, “o pai dos pobres” como ficou conhecido o presidente. Apesar de todos os empecilhos criados pela máquina do Estado e à existência ainda de um entrave nas classes médias a estes tipos de manifestações negras, principalmente as religiosas, alguns compositores e intérpretes conseguiram se sobressair nesse período e abrir espaço para estas temáticas nas companhias de disco, mesmo em sua grande maioria não tendo obtido grande sucesso. Várias composições serão ainda gravadas nesse período, a exemplo de: Candomblé (Oduré-Eriuá) e Candomblé (Canto de Exú - Canto de Ogum) compostas por Felipe Neri da Conceição e 27 gravadas pelo conjunto Filhos de Nagô em 1931; Quilombô e Pisa no Toco de Getúlio Marinho “Amor”, gravadas por João Quilombô em 1932; Palavra de Caboco, Rei do Fogo, Nego de Pé Espaiado e Cadê Viramundo, compostas por J.B. de Carvalho e gravas pelo Conjunto Tupi entre os anos 1931 e 1932; Sereia e Folha por Folha, de Getúlio Marinho e João da Baiana, gravadas pelo próprio João da Baiana em 1938; Lamento Negro de Humberto Porto & Constantino Silva, pelo Trio de Ouro em 1939; Promessa de pescador de Dorival Caymmi, gravada por ele próprio em 1939 (sendo esta sua primeira gravação como intérprete solo); entre algumas outras mais compostas e gravadas no período e que abririam espaço na indústria fonográfica para um campo cada vez mais crescente de músicas voltadas para as religiosidades de matrizes africanas. É importante identificarmos que a grande maioria dos compositores desse período que abordam as religiões de matrizes africanas em suas obras são pertencentes aos grupos sociais que as praticam. Alguns foram Pais-de-santo, como Elói Antero Dias (o Mano Elói); muitos deles foram frequentadores das casas das tias baianas na Praça Onze, como Pixinguinha6 e Getúlio Marinho, ou mesmo filhos delas, como Donga e João da Baiana, criados dentro da vida social dos terreiros, participando das festas, vivenciando a religiosidade e as tradições africanas. Fiéis ou ao menos frequentadores esporádicos, convivem em seus cotidianos com estas manifestações, afinal, a música popular (diga-se de passagem, o samba e suas vertentes) deve uma parte de suas origens aos terreiros de macumba, local onde possivelmente se mantiveram mais vivas as tradições culturais africanas. 1.4. Reconfigurações de África no Brasil O início da década de 40 é marcado no Rio de Janeiro pela vinda do maestro inglês Leopold Stokowski e da gravação do disco Native Brazilian Music7. Stokowski, um entusiasta da música brasileira, veio ao Brasil à bordo do navio S.S. Uruguay com o intuito de gravar músicas “tradicionais”, incumbindo o maestro brasileiro Heitor VillaCaroline Moreira Viana (2010) diz que “Pixinguinha, por exemplo, fora ogã de terreiro de candomblé” (VIANA, 2010, p.127) 7 Traduz-se: Música nativa brasileira. 6 28 Lobos da tarefa de reunir a nata dos músicos populares brasileiros. Entre os convidados para as sessões de gravação, que ocorreram no próprio navio, estavam os músicos Pixinguinha, João da Baiana, Jararaca, Ratinho, Zé da Zilda, Janir Martins, Cartola (em sua primeira gravação como intérprete) e Zé Espinguela. As gravações foram realizadas entre os dias 7 e 8 de agosto de 1940 e lançadas em disco no ano de 1942, porém apenas no exterior. O disco traz um importante registro do sambista, jornalista e pai-de-santo Zé Espinguela, um dos fundadores da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, acompanhado pelo Grupo do Pai Alufá8. Entre as composições gravadas por Zé Espinguela, três foram lançadas no disco: os pontos de macumba Macumba de Ochóce e Macumba de Inhaçan, e o corimá9 Cantiga de festa, todas parcerias suas com Donga. O jornalista Cristiano Bastos (2012) ao falar sobre o contexto histórico em que estas sessões foram produzidas, pontua que: A iniciativa que levou à gravação desses registros foi parte da chamada “Política de Boa Vizinhança”, colocada em prática pelos Estados Unidos no período de aproximação diplomática com países da América Latina, no contexto da Segunda Guerra Mundial. (BASTOS, 2012) Por mais que o disco Native Brazilian Music não tenha sido lançado no Brasil até 1987, a gravação destas composições torna-se não só um importante registro do período (são os únicos fonogramas lançados de Zé Espinguela), como também marcam através de Stokowski o crescente interesse dos estrangeiros pela cultura dos grupos tradicionais (que já era evidente em períodos anteriores através de figuras como o maestro francês Darius Milhaud e o poeta Blaise Cendrars). Os anos 40 marcam uma abrangência da intelectualidade negra em diversos setores culturais e políticos. A formação da Orquestra Afro-Brasileira em 1942; a criação do grupo Teatro Experimental do Negro em 1944, idealizado e dirigido por Abdias do Nascimento; A ampliação das publicações da chamada Imprensa Negra, com o lançamento do célebre jornal Quilombo, também dirigido por Abdias do Nascimento; a formação de grupos antirracistas como a União dos Homens de Cor; entre vários outros episódios. Gradualmente os grupos negros iam conquistando seu espaço na sociedade, ainda que a duras cargas. A Orquestra Afro-Brasileira, fundada pelo maestro mineiro Abigail Moura em 1942, é pioneira no contexto de abertura de novos espaços para as culturas musicais 8 O termo Alufá era utilizado na Bahia para designar os líderes religiosos mulçumanos, assim como para designar os sacerdotes do culto de Ifá. Após a Revolta dos Malês na Bahia o uso desse termo passou a ser proibido, passando assim os sacerdotes yorubás a serem designados como Babalaôs. 9 Ritmo tradicional de origem afro-brasileira, associado aos pontos de terreiro. 29 negras. Em um panfleto assinado pelo maestro e criador da Orquestra, ela era assim definida: A Orquestra Afro-Brasileira é um conjunto que divulga a arte e cultura musical do negro no Brasil. Tem a sua estrutura rítmica nos instrumentos bárbaros (de percussão), e harmônica nos instrumentos civilizados - pianosaxofones-pistons e trombone. A minha música, creio, não sente a influência do Jazz. Obedece, sim, a suas escolas: primitiva e contemporânea. (MOURA, s.d.) Ao afirmar a não identificação do grupo ao Jazz, ritmo desenvolvido por comunidades afro-americanas nos Estados Unidos, o maestro conecta a sua musicalidade a uma categorização afro-brasileira, voltada para as tradições de matrizes africanas. Ao escrever sinfonias e outras peças eruditas pautadas nas tradições negras, o maestro promove uma colonização da música “branca” pela negra, impondo os instrumentos “bárbaros” sobre os “civilizados”. A proposta mais restrita do grupo em ressaltar em suas composições e récitas um repertório todo baseado nas culturas negro-africanas do Brasil levarão o grupo a ser definido por Ricardo Cravo Albin (2006), em seu Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira, como: “[...] um dos primeiros estritamente ligados à música afrobrasileira.” (ALBIN, 2006). Entre os temas populares apresentados nos espetáculos do grupo podemos encontrar: Jongos, Frevos, Maracatús, Lamentos, Batuques, motivos folclóricos e temas de rituais afro-brasileiros. A relevância do grupo devido aos seus padrões estético-musicais é apontada por Nei Lopes: Utilizando trajes e instrumentos sacralizados, a orquestra executava, antes de cada récita, rituais de purificação e propiciação, e sua proposta de trabalho foi vista por Abdias do Nascimento como uma tentativa de abrir caminho a outra etapa da música afro-brasileira, com a integração e a assimilação dos recursos sonoros fornecidos por instrumentos "até então estranhos à África, mas não ao Brasil.” (LOPES, 2004, p.124) Abigail Moura, juntamente com Abdias do Nascimento e o poeta Solano Trindade estiveram no centro de um movimento de tomada dos espaços culturais pelos grupos negros, pautados na busca por suas heranças africanas. As estreitas ligações entre estes grupos podem ser conferidas quando do lançamento da Orquestra no auditório da UNE (União Nacional dos Estudantes) por Solano Trindade em 1944, e da abertura feita por Abdias de Nascimento na apresentação do espetáculo do grupo no Teatro Municipal, em 10 de dezembro de 1946. Abdias mantinha estreita ligação com a Orquestra, chegando a utilizar os seus membros como músicos dos espetáculos desenvolvidos pelo Teatro Experimental do Negro, além das constantes menções ao grupo em seu jornal Quilombo, onde Abdias diz que a Orquestra realiza "[...] uma obra 30 das mais uteis e interessantes no setor da expressão musical do negro." (NASCIMENTO, 1948, p.6). Mesmo com a boa repercussão que a Orquestra Afro-Brasileira teve, fazendo espetáculos na Escola Nacional de Música, na UNE, na Associação Brasileira de Imprensa, no Teatro Municipal, entre outros, só terá seu primeiro registro gravado em 1957, o disco Obaluayê10, que entre os temas apresentados faz exaltações às ancestralidades, religiosidades e elementos culturais africanos, representados através da diáspora e da escravidão. Na música Saudação ao Rei Nagô, a letra inicia dizendo o seguinte: "Rei vem logo da corte imperial / Vamos saudar nosso rei Xangô / Salve o reino da linha yorubá / Salve o trono do meu rei nagô...”, evocando não só a questão da religiosidade, através do orixá Xangô, como também ao exaltar o próprio orixá como rei, rememorando a existência de reis, reinos e cortes na África, um passado que o colonizador tentou apagar dos africanos escravizados, mas que nunca foi realmente esquecido. 1.5. Melodias de terreiro em tempos de macumba Em 1955 a Companhia Brasileira de Discos, Sinter, Lançou no mercado fonográfico um disco intitulado Melodias de Terreiro – Pontos e Rituais, o qual se propunha a apresentar “pontos rituais, curimbas e danças“ de terreiros, nesse caso, os de Umbanda. O disco era composto de interpretações de quatro artistas, são eles: João da Baiana, Heitor dos Prazeres, Ataulfo Alves e Jorge Fernandes. Os três primeiros são conhecidos sambistas, enquanto o último era intérprete de músicas folclóricas. O disco faz uma representação das religiões de matrizes africanas como pertencentes à categorização de “folclore”, caracterizando assim as composições de cunho religioso como algo exótico, assim como pode ser visto no texto de apresentação contido em seu verso: Entre as músicas do nosso folclore, encontram-se as originais do chamado ritual de Umbanda, cuja prática se verifica em quase tôdas as localidades de nossa terra. [...] Eis aqui, portanto, as composições que integram este LP. Como pode se observar, trata-se de uma coletânea duplamente importante, em seu aspecto musical e folclórico. (MELODIAS DE TERREIRO, 1955) 10 Orixá iorubano relacionado à varíola e às doenças infectocontagiosas. Também conhecido como Omolú. 31 Podemos verificar que no período, as músicas rituais de origem afro-brasileira já passam a ser categorizadas como Umbanda, por mais que atreladas a uma categorização folclorizante. As composições contidas no disco caracterizam bem a Umbanda ao transitar por temáticas tão distintas como os orixás africanos, os santos católicos, deuses indígenas e entidades afro-brasileiras. Porém, o espaço atribuído a cada uma dessas características pelo texto de apresentação acaba seguindo uma visão eurocêntrica, ao afirmar que: Nesses cantos de origem litúrgica e sentimental, estão entrelaçados à poesia do europeu, em sua religiosidade católica, a súplica e o lamento dos negros africanos, sob jugo do cativeiro, e tôda a nobreza dos ameríndios, com sua índole guerreira e selvagem. Foi, nesta fonte tão rica de motivos, que foram recolhidos, selecionados e ambientados, os pontos rituais, curimbas e danças que compõem este Long-playing. Houve nesta escolha, o cuidado de agrupálos e cruzá-los dentro da mesma fôrça a que cada qual está ligado, evitando assim, o chamado "choque de fôrças". (MELODIAS DE TERREIRO, 1955) Como podemos verificar, o espaço de destaque nas influências formadoras de um caráter afro-brasileiro é atribuído ao elemento europeu, que é apresentado em primeiro lugar, ou seja, como característica primária, enquanto os outros elementos constituidores são “entrelaçados” a este. Vagner Gonçalves da Silva e Rita Amaral (2006) apontam os fonogramas lançados entre as décadas de 30 e 50 como perpetradores do modo exotizante como as religiões de matrizes africanas eram vistas no Brasil, quando pontuam que: Nesse período as músicas abordam a religiosidade afro-brasileira em termos de seu caráter exótico, instrumental e misterioso. Esse universo, quando visto nas letras das músicas, aparece ainda desorganizado e fragmentado, mas deixando-se pressentir pelas alusões, pelo ritmo, pelo tom, pelas entrelinhas. (AMARAL; SILVA, 2006, p.204) O disco Melodias de Terreiro – Pontos e Rituais acabará ganhando três anos depois uma nova edição, revisitada, composta por fonogramas adicionais e agora intitulada como Macumba. Se o caráter exótico da primeira edição era em parte amenizado pela definição das composições como pertencentes à categorização de pontos de Umbanda, este novo disco, assim como as suas reedições11 nos anos seguintes, irá perpetuar um estigma depreciativo referente às religiões de matrizes africanas, o qual ainda é presente na sociedade brasileira. 11 O disco Macumba foi lançado no ano de 1958 pela Sinter e reeditado em 1968 pelo selo Fantasia. Em 1972 foi relançado na coleção No Tempo dos Bons Tempos da Phonogram, com o título Em Tempo de Macumba. 32 Ao analisar o espaço existente na indústria para gravações com temáticas afroreligiosas, além também da receptividade dos intérpretes e da inspiração dos compositores, entre as décadas de 30 e 50, Rita Amaral e Vagner Gonçalves (2006) afirmam: Entre as décadas de 1930 e 1950 o crescimento das indústrias fonográfica e cinematográfica e da radiodifusão trouxe consigo um grande impulso na produção da música popular brasileira. Neste contexto as referências ao universo religioso afro-brasileiro cresceram e praticamente todos os grandes intérpretes gravaram alguma canção aludindo ao tema. (AMARAL; SILVA, 2006, p.203) Porém, mais do que apenas compositores populares que eventualmente gravavam alguma composição de inspiração afro-religiosa, e que em muitos casos isto era apenas mais um artífice em suas grandes discografias, muitas pessoas ligadas mais diretamente ao universo religioso dos cultos afro-brasileiros passaram também a despontar na indústria fonográfica, chegando a gravar discos inteiramente voltados para estas temáticas, como é o caso de João Alves de Torres Filho, o Joãozinho da Goméia e Uruçu Silva do Amaral, o Sussu ou Baba Okê Sussu, líderes religiosos que tornaram-se importantes intérpretes destas tradições musicais dos terreiros em discos. Fora estes, intérpretes importantes ligados ao mundo do samba, mas também de tradição de terreiro, como Heitor dos Prazeres e João da Baiana12, também fizeram uma série de gravações voltadas às temáticas afro-religiosos, mantendo deste modo os vínculos com suas ancestralidades africanas. Marília Flores Seixas de Oliveira e outros (2010), no artigo Candomblé, natureza e sociedade: reinvenção da África mítica no Brasil, apontam o papel desempenhado pelas religiosidades de matrizes africanas na preservação e ressignificação de África na cultura brasileira: A religião do candomblé atuou numa dimensão de fundamental importância para os africanos trazidos para o Brasil, constituindo-se em espaço de liberdade e recriação da vida simbólica. Como em outras formas de resistência cultural, também na religião a identidade étnica afrobrasileira permaneceu vinculando-se continuamente à ancestralidade original africana, atualizando e reinventando sentidos de pertencimento à África mítica de referência. Mitos, cantos e ritos negros atravessaram séculos de escravidão ancorados em espaços sagrados, chegando até os dias de hoje, num processo de vigorosa reelaboração da vida africana, permitindo a preservação de um ethos específico que sobreviveu a várias pressões dos grupos dominantes, como verdadeiros nichos de resistência cultural, espaços de re-organização de suas estruturas sociais e culturais. (OLIVEIRA et al, 2010, p.14) 12 João da Baiana chegou a gravar um disco em parceria com Sussu, Batuques e Pontos de Macumba, lançado pelo selo Odeon, no ano de 1957. 33 2. CONFIGURAÇÕES IMAGÉTICAS DE MATRIZES AFRICANAS As décadas de 60 e 70 foram um período muito conturbado para as culturas negras brasileiras. Havia uma cada vez maior identificação dos brasileiros enquanto negros e pardos, o que pode ser verificado através do Censo Demográfico Brasileiro e uma crescente identificação dos brasileiros com as culturas de matrizes africanas, através da música, da culinária, das religiosidades, movimento que pode ser sentido em todo o mundo neste período, e que teve grande influência através dos movimentos pelos direitos humanos nos Estados Unidos, com grande relevo para os movimentos negros e dos movimentos de independência dos países africanos. A década de 60 é um período de grande ebulição cultural no Brasil, marcado pelo surgimento de diversos movimentos artísticos, principalmente musicais, influenciados em parte, por ritmos americanos como Jazz, Blues, Rock, Soul e Funk, que ganhariam as suas próprias vertentes nacionais, além de uma maior valorização do samba e de outros ritmos brasileiros considerados regionais. Neste período surgem movimentos como a Bossa Nova, a Jovem Guarda, Tropicalismo e o Movimento Black Rio, que são auxiliados por um amplo desenvolvimento dos meios de comunicação como o rádio e a televisão, além de uma ampliação da indústria fonográfica. A redescoberta das raízes africanas nas culturas americanas acaba firmando no Brasil um processo de reafricanização das religiões de matrizes africanas, fazendo um processo contrário ao que ocorreu a partir do surgimento da Umbanda, visto que agora a referência principal para muitos religiosos voltava a ser a África. Sobre esta questão, Rosalira dos Santos Oliveira (2009) afirma: Não mais se busca o “nacional”, o “mestiço” e o “autenticamente brasileiro” – representado, no imaginário, pela umbanda. Mas, sim, o “puro”, o “autêntico”, o “exótico” e o “diferente”, apresentado agora pelo candomblé. A própria denominação de “matriz africana” parece ter como objetivo destacar essa vinculação direta entre a origem (matriz) e a contemporaneidade dessas religiões. Desse modo, elas passam a ser pensadas em função da sua contigüidade para com uma tradição específica e não mais como um “mix” de tradições culturais distintas, tal como expressa o termo “afro-brasileiro”. Enfim, não mais religiões sincréticas, mas, sim, africanas. (OLIVEIRA, 2009, p.96) O retorno à África, previsto por muitos líderes pan-africanistas, acabou ocorrendo também no Brasil, mas aqui, muito mais através de um modelo imaginário do que propriamente geográfico. 34 O movimento negro brasileiro acaba adquirindo grande respaldo em meio a estes movimentos culturais e políticos, porém, as graduais conquistas ocorridas nos campos étnico raciais acabam sendo esvaziadas a apartir do golpe militar de 1964. Segundo Petrônio Domingues (2007): O golpe militar de 1964 representou uma derrota, ainda que temporária, para a luta política dos negros. Ele desarticulou uma coalizão de forças que palmilhava no enfrentamento do “preconceito de cor” no país. Como conseqüência, o Movimento Negro organizado entrou em refluxo. Seus militantes eram estigmatizados e acusados pelos militares de criar um problema que supostamente não existia, o racismo no Brasil. (DOMINGUES, 2007, p.111). O estado passa então a mascar a questão do preconceito racial, através da tática de negação de tal acontecimento no Brasil, resgatando os valores da “democracia racial”, promovendo a exaltação da pátria e o resgate dos valores nacionais. Portanto, para o regime militar, era como se não mais houvessem negros no Brasil, ainda mais pessoas que identificassem-se com as culturas africanas. Todos agora eram brasileiros. Verena Alberti e Amilcar Araújo Pereira (2007), afirmam que: A idéia de que existe incompatibilidade entre a "afirmação como brasileiro" e o "retorno à África" aparece com frequência na discussão sobre a questão racial no Brasil [...] Muitos movimentos negros têm sido acusados, em diferentes momentos, de "importar" questões estranhas à nacionalidade brasileira, como se houvesse uma contradição entre afirmar-se como descendentesde africanos e ser brasileiro. Essa tensão torna o processo de constução da identidade de negro particularmente denso, especialmente no caso de militantes do movimento. (ALBERTI; PEREIRA, 2007, p.28) Todavia, se o movimento negro perde espaço na política, assim como iriam perder também outros movimentos no Brasil, consegue alcançar seu espaço nos campos da cultura, promovendo uma política cultural de exaltação ao negro e às ancestralidades africanas, sua forma de afirmação e imposição perante o regime imposto pelos militares. Vagner Gonçalves da Silva e Rita Amaral (2006) apontam que um dos modos de encontrados para burlar a censura do Estado no período por grupos intelectuais era justamente a utilização das músicas temáticas religiosas afro-brasileiras: A partir de 1964, com a instauração do Regime Militar, o meio artístico musical mais engajado politicamente usou os temas da religiosidade afrobrasileira como forma de falar às classes populares, seja em termos de potencial de união e mobilização dessas religiões, seja como referência para ação transformadora mais efetiva. (AMARAL; SILVA, 2006, p.205) 35 2.1. Os ecos que vem da África As diferentes possibilidades de processamento do imaginário sobre África na música brasileira demonstram como é ampla a gama de compreensões que podem ser realizadas acerca do continente africano, baseadas não só no parco conhecimento existente sobre este continente na história do país, como também na grande variedade de culturas dos povos que aqui aportaram. E a partir disto, também, em como essas musicalidades e culturas se processaram nos diferentes locais do Brasil, reprecessandose posteriormente como verdadeiras representantes das tradições de África. Segundo Livio Sansone (2003): No Brasil, em outras palavras, a “África” tem sido basicamente um produto do sistema de relações raciais, mais do que uma entidade essencial e imutável. A aceitarmos essa visão, portanto, não surpreende que essas forças sociais tenham resultado na criação de uma África singularmente brasileira, com a qual o conformismo e o protesto se identificaram, criando sua própria “África”. (SANSONE, 2003, p.91). A partir da década de 60, mesmo com um processo de Reafricanização13 nas religiões afro-brasileiras, na busca de uma pureza pautada nas raízes africanas, há um grande aumento na indústria fonográfica de discos produzidos com temáticas da Umbanda, como pudemos observar em nossas pesquisas. Discos não só voltados ao mercado afro-religioso, como também à música popular brasileira. Vagner Gonçalves da Silva e Rita Amaral (2006) ressaltam o espaço alcançado por estas temáticas dentro do amplo universo musical brasileiro deste período: Nos anos de 1960, a música popular brasileira se encontrava num ponto privilegiado de seu desenvolvimento. Absorvendo musicalidades de várias origens e gêneros (como o rock, pop, black music, baladas italianas, etc.) e diversificando seus próprios caminhos, surgem os movimentos da Jovem Guarda, Bossa Nova, Tropicalismo, a “música de protesto” e de vanguarda dos Festivais, entre outros. Os elementos das religiões afro-brasileiras aparecem nas músicas de praticamente todos esses movimentos. (AMARAL; SILVA, 2006, p.204). Na década de 60, em tempos de Bossa Nova, movimento que Nei Lopes (2005) definiu como uma tentativa de desafricanização da música negra nacional, devido a uma redução da parte rítmica em sua musicalidade, surge o disco Coisas do maestro pernambucano Moacir Santos, lançado em 1965, uma suíte afro-jazzística, dividida em 10 partes, todas chamadas de Coisas, o equivalente do maestro para o termo musical 13 Movimento de retomada das tradições religiosas consideradas de caráter mais puramente africanas. 36 Opus14. Santos foi um importante arranjador de discos de Bossa Nova, e nessa série de composições apresenta um resgate das tradições africanas na música nacional, através de uma roupagem orquestral que aproxima as peças do Jazz e da música erudita, um disco que se aproxima da musicalidade Samba-Jazz15, mas que vai além deste rótulo, chegando a lembrar em alguns momentos o disco Kenya, lançado em 1957, do jazzista cubano Machito, que foi influente no cenário do Jazz afro-cubano em Nova York. João Marcelo Zanoni Gomes (2009) em sua dissertação “Coisas” de Moacir Santos realiza uma análise histórica e musical deste disco, demonstrando em alguns momentos como as musicalidades desta obra conseguem remeter a um imaginário de África, através do depoimento de diversos especialistas. O próprio autor comenta esta atribuição do disco em relação ao montante da obra de Santos: De fato, especialmente em relação ao Coisas, muito se fala a respeito da linguagem harmônica particular do compositor, do uso da polirritmia de origens africanas em seus arranjos e da forte presença de elementos da música popular brasileira e latina em suas músicas [...]" (GOMES, 2009, p.29). As primeiras gravações da série Coisas, no entanto, foram feitas pelo violonista Baden Powell de Aquino, em seu disco Baden Powell Swings With Jimmy Pratt, lançado em 1962. Neste disco, Powell gravou as duas primeiras peças da série, Coisa No. 1 e Coisa No. 2. Powell inclusive foi aluno de Santos, e atribuiu aos exercícios musicais feitos pelo mestre a origem de seus Afro-sambas16, sobre o que João Marcelo Zanoni Gomes (2009) afirma: “É frequente também vermos ambos os discos, Coisas e Os afro-sambas, relacionados como pertencentes a um nicho de produção musical ligado à valorização da cultura negra, que marcam forte presença nas composições de ambos os discos.” (GOMES, 2009, p.42-43). 2.2. Afro-sambas No ano de 1962, o poeta e compositor Vinícius de Moraes ganhou de seu amigo, o compositor baiano Carlos Coqueijo, o disco Sambas de Roda e Candomblés da Bahia, que tinha no seu lado A, gravações de toques de candomblé feitos por Olga de Alaketu, 14 Opus vem do latim, e significa obra, termo utilizado na música erudita para definir uma série de peças conectadas umas às outras, e de numeração definida a partir de ordem cronológica das composições. 15 Gênero desenvolvido no Brasil na década de 1960, que apresenta uma síntese da Bossa Nova e dos ritmos de Samba com Jazz norte-americano, particularmente Bebop e Cool Jazz. Disponível em: <http://rateyourmusic.com/genre/Samba-Jazz/>. Acesso em: 22 jul. 2013. Tradução nossa. 16 POWELL, 2000 apud GOMES, 2009, p. 42. Baden Powell em depoimento ao jornal O Globo, Segundo caderno, de 24 de março de 2000. 37 do terreiro Ilé Axé Mariolajé, acompanhada por um coro, e no lado B, capoeiras e sambas de roda interpretados por Mestre Bimba e coro. Moraes ficou tão impressionado por aquelas musicalidades que apresentou o disco ao seu parceiro, o violonista Baden Powell, que posteriormente em excursão pela Bahia, acabou tendo a oportunidade de presenciar as manifestações culturais presentes naquele disco. O historiador da MPB, Luiz Américo Lisboa Junior (2005), fala sobre este contato de Baden Powell com a cultura negra baiana: Em 1962 Baden visita a Bahia para apresentar um show com Silvia Teles no Country Club, familiariza-se com artistas e intelectuais baianos, demonstra seu interesse pelas tradições afro baianas e acaba sendo apresentado ao capoeirista Canjiquinha que o leva a terreiros, rodas de capoeira e o mais importante interpreta para ele os cânticos e sons do candomblé. Baden fica fascinado, não propriamente pelo sentido místico do que vira, mas sim pela beleza das harmonias do que ouvira. (JUNIOR, 2005). Em seu retorno ao Rio de Janeiro, Powell acaba compondo o samba Berimbau, com letra de Moraes, e a partir deste, inicia-se uma série de composições feitas pela dupla toda com temática voltada às tradições culturais negro-brasileiras, com destaque para as religiões de matrizes africanas. Algumas das composições deste período entraram no disco Baden Powell à Vontade, de 1963, composto apenas por temas instrumentais, entre os quais figuram Berimbau e Cadomblé. Outras ainda entraram no disco Vinicius e Odette Lara, de 1963, como Labareda, Samba da Bênção e a versão com letra de Berimbau, disco que contou com os arranjos do maestro Moacir Santos. Os outros temas da série voltados a esta temática e compostos neste período, no entanto, só vieram a serem gravados pela dupla em 1966, no disco Os Afro-Sambas. Mesmo que a inspiração inicial para estas composições tenha vindo das religiosidades afro-baianas, principalmente do Candomblé, outras referências religiosas também podem ser vistas, através de composições voltadas a temáticas da Umbanda, como o Canto de Pedra Preta, que fala sobre o caboclo Pedra Preta, e de Labareda, homenagem à pombagira Labareda. O disco Os Afro-Sambas, é considerado por Vagner Gonçalves da Silva e Rita Amaral (2006) como “[...] um marco da presença das religiões afro-brasileiras na MPB.” (AMARAL; SILVA, 2006, p.207), e por Luiz Américo Lisboa Junior (2005) como “[...] definitivamente inserido como um dos mais importantes discos da música popular brasileira [...]” (JUNIOR, 2005), não só pelo tratamento das temáticas, praticamente todas voltadas às entidades afro-religiosas do Candomblé e da Umbanda, mas principalmente pela sua estética musical, trazendo os instrumentos dos rituais de 38 terreiro, tocado usualmente por ogãs17 ou alagbês, para a musicalidade da MPB. O próprio Vinícius de Moraes (1966), no texto da contra capa do disco, ressalta a importância desta musicalidade construída por Baden Powell: Essas antenas que Baden tem ligadas para a Bahia e, em última instância para a África, permitiram-lhe realizar um novo sincretismo: carioquizar dentro do espírito do samba moderno, o candomblé afro brasileiro dando-lhe ao mesmo tempo uma dimensão mais universal. Tirante algumas experiências características - como fez, por exemplo, meu querido e saudoso amigo Jayme Ovalle com os "Três Pontos de Santo" - nunca os temas negros de candomblé tinham sido tratados com tanta beleza, profundidade e riqueza rítmica como por exemplo esse "duende da floresta afro-brasileira de sons" como eu disse de Baden Powell numa frase feliz. (MORAES, 1966). O pesquisador Frank Michael Carlos Kuehn (2002), em seu artigo Estudo sobre os elementos afro-brasileiros do candomblé em letra e música de Vinícius de Moraes e Baden Powell: os “afro-sambas”, comenta sobre a associação da musicalidade do disco com os terreiros de Candomblé: Composição e arranjo do Canto de Xangô parecem recriar um ambiente de terreiro. Nos ritos do candomblé, o agogô e os atabaques – distintos tanto em tamanho e afinação quanto em sua função – são indispensáveis para a realização do culto, fato que também esclarece porque estes instrumentos participam de praticamente todas as faixas do disco. (KUEHN, 2002, p.12) A busca pelas raízes africanas da música brasileira através das religiões de matrizes africanas é algo perceptível na concepção das composições de Os AfroSambas. No documentário Saravah, de 1969, dirigido pelo músico francês Pierre Barouh, este afirma que Baden teria escrito canções de inspiração “tipicamente africanas”, citando como exemplo a música Iemanjá, presente do disco Os AfroSambas. Após ser feito este questionamento, Powell confirma: “completamente africana18” (POWELL apud BAROUH, 1969). No documentário Powell figura como fio condutor entre a geração da velha guarda, representada no filme por Pixinguinha, João da Baiana e Clementina de Jesus, e a nova geração da MPB, representada aqui por Maria Bethânia e Paulinho da Viola. O filme inicia e termina com a composição Samba de Bênção, de Powell e Moraes, cantada no filme por Barouh e Powell, e gravada originalmente por Moraes em 1963, no disco Vinicius & Odette Lara, que em sua letra, traz os seguintes versos: ...Porque o samba nasceu lá na Bahia E se hoje ele é branco na poesia Se hoje ele é branco na poesia Ele é negro demais no coração... 17 Designação genérica atribuída a diversas funções masculinas dentro dos terreiros de Candomblé, porém mais comunmente associada às funções musicais litúrgicas. Também denominado de Alagbê. 18 Entrevista com Baden Powell presente no filme Saravah (1969), dirigido por Pierre Barouh. 39 Nestes versos podemos perceber a ligação feita pelo poeta entre as manifestações negras tradicionais da Bahia e o Samba, denotando que a Bahia seria o berço das musicalidades de matrizes africanas no Brasil, especialmente do Samba. Na composição, também há a presença da saudação Saravá, típica de religiões de matrizes africanas, um pedido de bênção, que Moraes faz na composição à Iyalorixá Mãe Senhora, do terreiro baiano Ilê Axé Opô Afonjá, e a diversos sambistas tradicionais como Pixinguinha, Ismael Silva, Heitor dos Prazeres, entre outros. Da letra da canção, Barouh tirou o nome de sua gravadora e título do seu filme, Saravah, uma saudação à música brasileira de raízes africanas, representadas aqui através das musicalidades e dos artistas apresentados através de Baden Powell. O trio de sambistas tradicionais presentes no filme de Barouh, representantes da velha guarda do samba, Pixinguinha, João da Baiana e Clementina de Jesus, foi responsável um ano antes pela gravação do disco Gente da Antiga, lançado em 1968, e produzido por Hermínio Bello de Carvalho. O disco é uma tentativa de resgatar as raízes da música popular brasileira, através de suas vertentes africanas, e é composto por choros, sambas, batucadas e curimás. Clementina de Jesus, que estreou em gravações através do registro do espetáculo Rosa de Ouro, de 1965, lançou seu primeiro disco solo em 1966, pela Odeon, e segundo Hugo Sukman (2005), ela faria “[...] a ponte entre a moderna música brasileira e suas mais recônditas raízes africanas: a música dos escravos, os batuques e pontos de candomblé.” (SUKMAN, 2005 apud GOMES, 2009, p.44). Clementina pode ser vista como a reencarnação de uma África ancestral diretamente pros palcos, e daí para o mercado fonográfico. Segundo Nei Lopes (2005): Descoberta para a vida artística já sexagenária, afirmou-se como uma espécie de “elo perdido” entre a ancestralidade musical africana e o samba urbano. Seu trabalho de maior expressão fez-se através da interpretação de jongos, lundus, sambas da tradição rural e cânticos rituais recriados, como o já mencionado “Benguelê”, de Pixinguinha. (LOPES, 2005, p.6) 2.3. Os jovens sons africanos Em 1972 a companhia de discos Riversong lançou no mercado o disco Tribo Massáhi Estrelando Embaixador, um disco de produção precária, de pouca receptividade para a época, mas que num processo de redescoberta dos sons africanos a partir do ano 2000 virou um precioso item nas mãos dos colecionadores. O disco têm 40 dois grandes temas, Timolô Timodê no Lado A e Lido’s Square no Lado B, em formato de jam session, duas grandes faixas contínuas subdivididas cada uma em quatro composições. O disco da Tribo Massáhi é notável por propor tocar a ”música jovem africana”, o que o certifica certo destaque em comparação com outros discos do período, visto que enquanto a maioria dos artistas que tinham algum interesse nas culturas africanas estavam mais preocupados com a questão da ancestralidade, o grupo se identificava com o afro-funk feito no continente africano, absorvido de musicalidades modernas vindas da América do Norte, como o Funk e o Soul. Não que a Tribo Massáhi deixasse de lado a questão da ancestralidade, visto que entre seus temas são tratadas personagens míticos ancestrais da cultura negra brasileira, como os preto-velhos, mas o seu intuito de se conectar com o que estava acontecendo de novo nas sonoridades africanas já demonstra um imaginário de África bem distinto do que era concebido no período. O contato dos músicos brasileiros com a música moderna africana ainda era muito restrito. Outros grupos e artistas do período também incursionaram nessas novas sendas da música funk e soul americana, misturando com musicalidades nacionais como o samba, no movimento que ficou conhecido como Samba-rock. Porém alguns penetraram mais forte nas levadas percussivas do groove, chegando a construir sonoridades afro-funk e afro-rock, próximas aos estilos tocados por grupos jovens africanos que despontavam por toda a África, em países como Nigéria, Ghana, Benin, Costa do Marfim, Guiné, Angola, Togo e diversos outros. O grupo Free-Son foi um destes. Em 1971 eles lançaram o disco Bengulê, repleto de guitarras psicodélicas, teclados progressivos e instrumentos percussivos usuais no mundo do samba, como a cuíca. Composto todos por temas instrumentais, as faixas possuem títulos como Bahobab, Africana e Batá-Cotô, claras referências à tentativa de construir um imaginário africano em torno do grupo, assim comoo título do disco, Bengulê, corruptela de Benguela, cidade litorânea de Angola, que no Brasil também serviu para designar os escravos vindos desta região (LOPES, 2005, p.114). Benguelê também é o título de uma composição de Pixinguinha e Gastão Viana, e tem o sentido de um canto de nostalgia, de saudade da terra africana deixada para trás. Outro nome do período também foi muito importante para a percepção das musicalidades vindas do continente africano. O cantor e compositor mineiro Marku Ribas iniciou sua carreira solo lançando alguns discos durante a década de 70, utilizando-se de vocalizações onomatopaicas e percussão corporal, e viajando para o 41 Caribe e para a África a fim de estabelecer contatos com a música desses locais. O primeiro disco do cantor, Underground, lançado em 1973, tem levada Samba-Rock, ritmo que estava em voga no período, misturando Samba, Rock, Jazz e Soul, e tem entre suas músicas a canção N´biri N´biri, uma adaptação feita por Ribas para essa música tradicional angolana. Inclusive as vocalizes e os títulos das canções presentes nos discos de Ribas são bem próximas de idiomas angolanos como o Kimbundu e o Kikongo.A ligação do cantor com a África era tão forte que ele foi o único brasileiro a participar das festividades de independência da Namíbia, em 199019. Como ressalta o jornalista Diego Ponce de Leon (2013): “Será pela raiz africana que Marku Ribas será lembrado.” 20 (LEON, 2013) Outros artistas, porém, mesmo com o desejo de aproximarem-se de uma estética sonora moderna africana, devido à dificuldade de terem acesso a essas sonoridades, só puderam desenvolver algo similar posteriormente a essa época. É o caso do Grupo Vissungo. Fundado em 1975, o grupo surge inicialmente com a ideia de pesquisar a música negra feita por grupos tradicionais, e baseados na cultura angolana da qual dois de seus membros fundadores seriam descendentes, os irmãos Luiz Antônio e Antônio José do Espírito Santo, o Spirito Santo. Antônio José do Espírito Santo (2007), pesquisador e vocalista do grupo, assim caracteriza a proposta do Vissungo no período: [...] a pesquisa da cultura negra do Brasil, e a tentativa de construir, a partir desta pesquisa, um conceito de música negra brasileira moderna, coisa impensável naquela época contraditória, onde a onda vanguardista da MPB não chegava até a cozinha da tradicionalíssima música negra, espécie de ‘reserva técnica’ do folclore nacional. (SANTO, 2007) Com apoio do historiador José Maria Nunes Pereira o grupo começa a ter maior contato com as culturas africanas, percebendo após algum tempo a “grande similaridade existente entre a cultura negra tradicional do Brasil e o que, em termos musicais, ocorria na África contemporânea - notadamente Angola e Moçambique (SANTO, 2007). Após algum tempo de vivência musical e de participar ativamente do Movimento Negro, os membros do grupo acabam aproximando-se de artistas nacionais ligados às manifestações negras tradicionais como a cantora Clementina de Jesus e o partideiro 19 Retirado do clipping de Marku Ribas no site Música Minas. Disponível em: <http://musicaminas.com/uploads/listas/plusfiles/Marku_Ribas.pdf>. Acessado em: 22 de julho de 2013. 20 Matéria de Diego Ponce de Leon escrita por ocasião do falecimento de Marku Ribas no Correio Braziliense. Publicada em 7 de abril de 2013. Disponível em: <http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/brasil/2013/04/07/interna_brasil,359006/morre-emdecorrencia-de-um-cancer-o-cantor-e-compositor-marku-ribas.shtml>. Acesso em: 15 jul. 2013. 42 Aniceto do Império. O grupo ainda chega a participar da trilha sonora do filme Chico Rei, juntamente com Wagner Tiso, o único registro em disco na história do grupo. Porém, só no final da década de 80 e início de 90, e através de excursões do grupo pelo exterior é que eles conseguem se aproximar da sonoridade pop africana tão almejada pelo grupo, o que levou-os a serem considerados como precursores do Afrobeat no Brasil. 2.3.1. Conexão Brasil/África A experiência africana, para os que tiveram acesso a ela, tornou-se um elemento essencial para muitos compositores forjarem uma África diferente das concepções tradicionalmente construídas no Brasil. O continente africano na década de setenta ainda era caracterizado por um imaginário exotizante, de uma África selvagem, tribal, miserável, o que contrastava com as experiências dos que chagavam lá e acabavam enxergando uma realidade social bem próxima do Brasil. Foi o caso dos músicos Gilberto Gil e Caetano Veloso, que acostumados com a África que eles percebiam na Bahia, através das religiões de matrizes africanas e das tradições culturais negras, impressionaram-se com a música jovem que era feita no continente, através de sonoridades que envolviam o rock e o funk, através da utilização de instrumentos elétricos, que os aproximavam dos novos sons forjados pelas periferiais globais que tiveram acesso a estes instrumentos. Gil e Caetano estiveram presentes na Nigéria, no ano de 1977, por ocasião do FESTAC, Black and African Festival of Arts and Culture, realizado pelo governo nigeriano e que reunia atrações de toda a África, além das vindas de outros países fora do continente. Lá, além das atrações do festival, os músicos também tiveram contato com outras atrações locais, como no caso em que Gil assistiu a um show do músico nigeriano Fela Anikulapo Kuti, que estava boicotando o FESTAC, e que durante o evento realizou espetáculos em sua própria casa de shows, o Shrine. As experiências vividas por estes dois compositores na África refletiram-se nos discos que os artistas lançaram naquele mesmo ano. Após a experiência africana Caetano Veloso lançou Bicho, disco de 1977, que o aproximou não só das culturas africanas como também do movimento Black Rio que 43 estava acontecendo no Brasil. Sobre sua experiência africana e o disco lançado a partir desta Ana Maria Bahiana (2006) comenta: Um dos álbuns mais controvertidos de Ceatano na década de 70 começou com uma inocente e estimulante visita à África. A convite de Gilberto Gil, frequentador do evento, Caetano foi a Lagos, na Nigéria, participar, em janeiro de 1977, do Festival Mundial de Arte e Cultura Negra. Foi uma epifania - a música de raiz do continente africano não era estranha a Caetano, é claro, mas foi o contato com a moderna música pop da Nigéria que operou um verdadeiro curto-circuito criativo em sua mente inquieta. Com o rótulo genérico de juju music, a moderna música africana, ao mesmo tempo tambor e guitarra, metais e eletricidade, começava uma jornada que, dez anos depois, dominaria a chamada worl music. (BAHIANA, 2006) O disco de Caetano abre com a música Odara, palavra iorubana que significa alegria, paz. A música, assim como as demais do disco, é um chamado à celebração, à integração das etnias, repleto de um sentimento colaborativo africano que o músico encontrou durante sua estadia na África. A influência estética da experiência africana, no entanto é muito mais perceptível no disco de Gil. Em 1977, após o retorno da África, Gilberto Gil gravou o disco Refavela, uma declaração de amor às culturas africanas e afro-brasileiras, através de muitos pontos culturais e sociais em comum encontrados pelo músico entre o Brasil e a África. A ancestralidade africana é celebrada na obra pelo compositor através da composição Babá Alapalá, sobre o Egun (espírito ancestral) de mesmo nome, ligado à tradição familiar do orixá Xangô Aganjú. José Jorge de Carvalho (2003) no entanto, em seu artigo A tradição musical iorubá no Brasil, em trecho em que fala sobre a presença da influência iorubana na música popular brasileira, analisa a canção de Gil como ausente destes traços característicos: De Gilberto Gil tomemos a canção “Babá Alapalá”, do álbum Refavela , o qual reflete, até nas fotos da capa, a viagem de Gil à Nigéria em 1977, por ocasião do FESTAC, momento auge, portanto, de sua conexão com a cultura iorubá. A canção é uma homenagem ao orixá Xangô Aganju e a Babá Alapalá, nome de um egun muito conhecido na Nigéria e cujo culto continua vivo na Bahia, na Ilha de Itaparica, no templo Ilê Agboula. A letra utiliza os sons da língua iorubá. Quando escutei essa música pela primeira vez, no final do filme Tenda dos Milagres , de Nelson Pereira dos Santos, pareceu-me fortemente “africana”, como se fosse um ícone da própria presença iorubá no Brasil. Contudo, uma audição mais analítica permite constatar que sua textura rítmica é inteiramente binária, não muito distante da música pop dançante, próxima do rock nacional. Os poucos elementos de acentuação estão a cargo do contrabaixo e da guitarra, porém todos os instrumentos obedecem ao compasso binário sem sequer quebrarem os acentos em contratempos. A percussão não joga papel nenhum no arranjo da canção. A impressão de influência iorubá se restringe, de fato, às palavras Xangô Aganju e Babá Alapalá. (CARVALHO, 2003, p.14) Porém, mais do que registrar apenas a ancestralidade cultural afro-brasileira em sua obra, Gil teve o intuito de conectar-se com as novas influências culturais negras que estavam surgindo no continente africano e no Brasil, como o próprio afirma em 44 entrevista: “O disco era pra isso, para registrar os ´afrorismos´ que havia na época – como era a juju music de Balafon e os blocos afro-baianos de Ilê Ayê.” (GIL apud FRÓES, 2002). No documentário África, Mundo Novo, dirigido por Hermano Penna, que fala sobre o FESTAC 77, e que foi apresentado pela TV Cultura no mesmo ano da realização do festival, o jornalista Sérgio Chapelin narra um texto sobre a participação de Gil no festival que resume, em parte, a proposta do compositor no período: Gil e seus companheiros cantam o reconhecimento de pertencerem a este universo fascinante, África, mundo negro. No seu disco Refazenda, Gil participa do mesmo impulso que move a atualiade cultural africana: refazer suas bases e renascer. Ao mesmo tempo que afirma as origens africanas de um fenômeno de origem moderna, o rock. (CHAPELIN apud PENNA, 1977). No mesmo documentário, Gil também narra um pouco dessa sua odisseia africana durante o festival, nos permitindo deste modo compreender o quanto as experiências culturais adquiridas nesta viagem em particular, iriam refletir não só em seu disco Refavela, mas em todos os momentos posteriores da carreira deste músico, permitindo assim a constituição de um novo imaginário africano em sua obra: Eu vim aqui cantar, cantei. Vi muita coisa. Gostei muito do povo, da gente. é uma raça muito bonita, muito forte, muito íntegra. Muito monolítica. É uma coisa muito bonita aqui na África. O meu trabalho, quer dizer, outro dia tava conversando com o Perinho e ele dizia assim: a gente agora vai ter pelo menos um ano agora para digerir essa África, esse mês de FESTAC. Eu tava dizendo é mesmo, é muito pano pra manga, muita coisa a repensar, muita coisa a reconstituir, depois que a gente estiver em casa, com os quadros da integridade da nossa terra, cercados da nossa própria realidade, a gente vai ver isso aqui, vai refletir sobre isso aqui. (GIL apud PENNA, 1977) 2.3.2. África Brasil O compositor carioca Jorge Ben, ficou famoso na década de 60 pela batida característica de seu violão e seu suíngue samba-rock, conseguindo desde lançamento do seu primeiro disco em 1963 construir uma carreira sólida na MPB. Jorge Ben, no entanto, passou na metade da década de 70 a fazer álbuns mais conceituais, esotéricos, experimentais, como A Tábua de Esmeralda, de 1974; Gil & Jorge: Ogum, Xangô de 1975, em parceria com Gilberto Gil; e Solta o Pavão de 1975, todos discos sem grande sucesso comercial no período, e que já iam demonstrando uma mudança conceitual na obra deste autor. É no ano de 1976, porém, com o lançamento do disco África Brasil, que essa mudança é mais aprofundada, através da troca definitiva do seu violão pela guitarra elétrica, aproximando bastante o seu som do funk americano, que estava 45 bastante em voga também na África neste período. Luciana Xavier Oliveira (2012) fala sobre esta mudança estética na sonoridade de Ben, ao apontar que: Em relação aos temas abordados em África Brasil, mesmo que nem todas as faixas falem sobre a questão afro-brasileira diretamente, esta ligação está fortemente representada pela seleção de instrumentos e de procedimentos rítmicos usualmente presentes nas músicas de matriz africana desenvolvidas no Brasil. Assim, podemos compreender também como forma de engajamento a esta proposta a constância na utilização do atabaque, instrumento de percussão típico do candomblé brasileiro, e de congas e tumbas, oriundos da tradição afro-cubana, empregados de forma a conferir uma sonoridade mais acústica em contraposição aos outros instrumentos eletrificados. (OLIVEIRA, 2012, p.166) Este disco é marcado também pela presença de alguns músicos que seriam responsáveis por forjar os novos sons negros da década de 70, como o saxofonista Oberdan Magalhães, o baterista Wilson das Neves e o percussionista Djalma Correa. A musicalidade de Ben vai modificando-se com o tempo, à medida que lança novos trabalhos, porém, as temáticas tratadas em suas composições sempre transparecem aspectos da cultura afro-brasileira, entremeados por temáticas falando de amor e da brasilidade. Ao longo das décadas de 60 e 70 ele vai aos poucos ressaltando características culturais da negritude e personagens negros históricos em canções como: Dandara, Hei; Jeitão de Preto Velho; O Nascimento de Um Príncipe Africano; Maria Conga; Negro é Lindo; Zumbi entre outras. É em África Brasil, no entanto que estas temáticas serão mais explicitadas, em um disco que já em seu título evidencia a proposta temática a ser abordada. Embora seja marcado também por temas filosóficos e esotéricos, voltados para a orientalidade, como nas canções Hermes Trimegisto Escreveu, O Filósofo e Taj Mahal, as canções voltadas a temáticas afro-brasileiras são bem marcantes, como em Xica da Silva 21, que fala sobre Francisca da Silva de Oliveira, uma escrava brasileira que foi alforriada e casou-se com um rico contratador de diamantes, atingindo grande ascensão social; Ponta de Lança Africano (Umbabarauma), que fala sobre um jogador de futebol africano; África Brasil (Zumbi), uma regravação de sua música Zumbi, lançada originalmente em 1974, que fala sobre o líder quilombola Zumbi dos Palmares, que lutou contra a escravidão no Brasil; além de duas composições que tratam sobre o santo católico São Jorge, A História de Jorge e Cavaleiro do Cavalo Imaculado, bastante cultuado pela Umbanda e sincretizado com os orixás Ogum e Oxóssi. 21 A canção foi composta para o filme homônimo, lançado em 1976 e dirigido por Cacá Diegues. 46 2.4. Os deuses negros da MPB As religiões afro-brasileiras são os elementos de africanidade que são mais facilmente observáveis nos registros fonográficos do período aqui analisado. Constantemente exaltadas nas temáticas das composições do período, acabam firmandose como nicho mercadológico, e obtendo, o que a princípio nos aparenta, bons resultados, devido ao montante de LP’s e Compactos lançados na época os quais nós tivemos acesso. O pesquisador de música negra Antônio José do Espírito Santo (2007), nos dá um indicação do espaço existente no mercado fonográfico do período para estes tipos de manifestações, ao assinalar que: [...] apesar de se estar vivendo uma época (1978) de grande efervescência cultural, musical principalmente, havia muita restrição - e até um certo desprezo - por parte do meio musical em geral (e do mercado fonográfico em particular), por abordagens artísticas voltadas, diretamente e de forma mais aprofundada, para a cultura negra. Tolerava-se o Samba convencional e algumas poucas propostas de forma genérica denominadas ‘Música Afro’, geralmente adaptações de pontos religiosos tradicionais, extraídos do Candomblé e da Umbanda. (SANTO, 2007) O pesquisador Jorge Luiz Ribeiro de Vasconcelos (2009) em artigo As Fontes Fonográficas na Pesquisa da Música Tradicional, aponta a possibilidade de análise da musicalidade das religiões de matrizes africanas através de seus registros fonográficos, demonstrando como este tipo de material é escasso, algumas vezes mal registrado, e como os acervos são muitas vezes sucateados, demonstrando porém algumas iniciativas de preservação destes materiais, muitas vezes por pessoas ligadas a essas religiões. Em meio à sua análise, Vasconcelos pontua o papel que a música popular brasileira exerce sobre a divulgação destas religiões ao asseverar que: Constatando uma certa precedência dos estudos literários e temáticos desses diversos elementos presentes como referências nas canções populares, isto é, das análises de sua contribuição na construção das letras dessa forma artística muito peculiar, considero importante enfatizar a contribuição realmente musical dos elementos afro-religiosos dentre os muitos que plasmaram essa variada paleta de estilos que é a música popular do Brasil. Assim destacar os elementos sonoros da música dos candomblés e religiões afro-brasileiras em geral que podem ser detectados nas produções de música popular e entender como se apresentam. Produções que tiveram e continuam a ter um elevado grau de penetração em vários segmentos da sociedade brasileira e consequentemente uma forte colaboração na construção de símbolos e sentidos daquilo que possamos chamar de “imaginário popular”. E que, dessa forma, fizeram com que muitos ouvintes desse gênero musical - ou poderíamos até dizer “desses gêneros musicais”, considerando que a abrangência do conjunto de seu repertório é muito ampla - tivessem os primeiros conhecimentos sobre elementos da religiosidade afro-brasileira ou 47 a curiosidade aguçada sobre os mesmos a partir da fruição de suas obras. (VASCONCELOS, 2009, p.14). As citações às religiões afro-brasileiras na música popular brasileira são constituídas de uma série de referências que vão desde a interpretação ou adaptação de cantos, toques e pontos tradicionais de orixás, caboclos e mestres a pequenas inserções dos elementos afro-religiosos em composições que versam sobre questões do cotidiano, como “feitiços” e “despachos”, comunmente atribuídos a grupos religiosos de matrizes africanas. Esse período da história brasileira começa a destacar-se como um período de legitimação destes grupos religiosos, questão que ganha destaque através do Samba e da MPB. Vagner Gonçalves da Silva e Rita Amaral (2006) percebem a presença destes universos afro-religiosos na música do período ao constatar que: No final da década de 1960, o considerável aumento do número de músicas que usavam de alguma forma termos do universo religioso afro-brasileiro constituiu um amplo repertório que, visto em conjunto, pode ser entendido como uma forma de “pedagogia” das religiões afrobrasileiras. (AMARAL; SILVA, 2006, p.209). Mesmo com havendo ligação de muitos compositores com terreiros de Candomblé, os elementos da Umbanda em geral são os mais presentes na música deste período, devido a uma série de motivos como: mais fácil assimilação pela parte leiga da população, provavelmente devido à grande quantidade de elementos de outras religiões utilizados nela; do grande número de adeptos da Umbanda; e pelo fato de que em geral as casas de Umbanda são mais comunmente procuradas para atendimento à população sobre questões tanto espirituais como físicas. É muito comum verificarmos a presença de características sincréticas nas composições deste período. O compositor Wando, por exemplo, lançou em 1976 uma composição chamada Jesus (Negro Bonito Dos Olhos Azuis), na qual afirma que Jesus é Oxalá, sincretismo que é usualmente feito na Umbanda, e que é simbolizado através da festa do Senhor do Bonfim. A dupla Gilberto Gil e Caetano Veloso, também promoveram o discurso sincrético através da composição São João, Xangô Menino, lançada em compacto em 1976 pelo conjunto Doces Bárbaros, do qual Gil e Caetano participaram junto com Maria Bethânia e Gal Costa. Bethânia também teve esta característica do sincretismo presente em sua obra. Bethânia foi iniciada no Candomblé em 1981, como filha de Iansã, porém, sempre teve uma forte ligação com a Igreja Católica, conseguindo cultuar igualmente santos e orixás. Em 1971, no disco A Tua Presença, Bethânia gravou a composição Dia 4 de 48 Dezembro, do compositor soteropolitano Tião Motorista, a qual fala sobre a festa realizada no dia 4 de Dezembro em Salvador, em homenagem à santa católica Santa Bárbara, quando também e celebrado o orixá Iansã, num momento em que as liturgias católicas, candomblecistas e umbandistas se misturam: No dia 4 de dezembro Vou no mercado levar Na baixa do sapateiro Flores pra santa de lá Bárbara santa guerreira Quero a você exaltar É Iansã verdadeira A padroeira de lá... Marlon de Souza Silva (2008), em artigo A religiosidade popular na obra de Maria Bethânia, atribui entre outros, ao grupo de artistas baianos composto por Bethânia e Caetano, a proliferação dos elementos das religiões afro-brasileiras na música popular da década de 60, juntamente com Baden Powell e Vinícius de Moraes, porém, as composições gravadas ou compostas por estes artistas com temáticas afroreligiosas, tirando algumas exceções, não tiveram tanta repercussão no meio popular quanto as composições de outros autores e intérpretes, mais voltados às temáticas populares, como os pertencentes aos gêneros samba e brega. Martinho da Vila e Clara Nunes estão entre os grandes disseminadores destas temáticas. Pertencentes ao universo do samba, ambos possuem em suas obras discográficas constantes referências ao universo afro-religioso brasileiro e ao continente africano. Em seu disco Canta Canta, Minha Gente, de 1974, Martinho canta Festa de Umbanda, uma seleção de toques de Umbanda onde são saudadas diversas entidades, como Exu Tranca Rua, em O Sino da Igrejinha, e o Caboclo Sete Flechas, em Ponto de Oxóssi, ou Ponto de Sete Flechas. Os temas afro-religiosos são constantes em sua obra, como na música Jubiabá (1972), que fala sobre o Babalorixá baiano Severiano Manoel de Abreu, e Camafeu (1971) sobre o capoeirista e filho de santo Camaféu de Oxóssi. Matinho da Vila também tinha grande ligação com a música africana, principalmente com os sons vindos de Angola, tendo gravado em 1973, Som Africano, música do folclore angolano, e em 1977 Muadiakime, composição dos angolanos Bonga e Landa. A cantora Clara Nunes, que no início de sua carreira transitou entre o bolero, a música romântica e a jovem guarda, só conseguiu obter algum êxito em sua carreira após ingressar no gênero samba e estabelecer relações com o universo das religiões afro-brasileiras. Segundo Silvia Brügger (2008), essa mudança em sua carreira teria sido iniciada após a viagem que a cantora realizou à África em 1971: 49 No início de 1971 fez sua primeira viagem à África, visitando Moçambique, África do Sul e Angola, onde apresentou seu canto no primeiro concurso de miss do país e conheceu danças populares. De volta, trouxe na bagagem roupas, colares, peças de artesanato e muita inspiração para dar à África lugar de destaque em sua carreira. (BRUGGER, 2008) A influência dessa viagem torna-se perceptível na carreira da cantora através da busca de uma identidade pautada na ancestralidade africana, período durante o qual ela conta com o auxílio do radialista Adelzon Alves para a formulação desta nova identidade em sua carreira, o que pode ser verificado principalmente a partir do disco Clara Nunes, lançado em 1971, que entre outras, continha a música Misticismo da África ao Brasil, composta por João Galvão, Vilmar Costa e Mário Pereira, a qual diz o seguinte: Eu venho de Angola Sou rei da magia Minha terra é muito longe Meu gongá é na Bahia Agô ô ô ô Lua alta Som constante Ressoam os atabaques Lembrando a África distante... Através desta composição podemos perceber a perpetuação do discurso da cantora pautado na busca de uma África ancestral, berço da cultura brasileira com a qual a cantora passa cada vez mais a se identificar, que é associada por ela constantemente às questões religiosas, sendo representada principalmente através dos orixás. Clara Nunes passa nesse período a apresentar-se em seus shows vestida de branco, como é costumeiro nas celebrações de terreiros de Umbanda e Candomblé e a ressaltar constantemente as temáticas do Candomblé e da Umbanda em sua obra, além de assumir um discurso público de divulgadora das religiosidades afro-brasileiras. Segundo Rachel Rua Baptista Bakke (2007) “O “retorno à África”, como fonte de tradição e de legitimidade, foi tão significativo para a carreira de Clara Nunes, como foi, e ainda é, para as religiões afro-brasileiras, em especial o candomblé.” (BAKKE, 2008, p.88). Foi realmente através dessa jornada à África que a cantora conseguiu estabelecer seu lugar no mercado fonográfico, recorrendo constantemente aos temas afro-religiosos em sua obra, o que levou Clara Nunes a receber o epíteto de "cantora de macumba" (BAKKE, 2008, p. 87), por mais que esta fosse apenas uma das características de seu amplo repertório. Outro que se destacou na divulgação das religiosidades ancestrais africanas foi o trio vocal baiano Os Tincoãs. Surgido na década de 60, o trio era formado por Erivaldo, Heraldo e Dadinho, todos da cidade de Cachoeira, e era voltado principalmente à 50 interpretação de boleros. Em 1962, com a saída de Erivaldo e a entrada de Mateus Aleluia, o grupo passa a assumir uma identidade voltada à interpretação de cantos sacros católicos e do Candomblé, e de tradições típicas baianas como o samba de roda e a capoeira. Com o lançamento do seu primeiro disco, em 1973, o grupo assume definitivamente a sua associação com a música afro-religiosa e afro-baiana, auxiliados pela produção de Adelzon Alves, o mesmo que produzia Clara Nunes. Esta ligação do trio com os aspectos do cotidiano baiano, associado aqui especificamente às tradições culturais negras de origem afro-brasileira, é que permite a integração do grupo em um espaço de evidência, como representantes de uma identidade afro-baiana que tinha significativo destaque no período, por ser considerada como detentora mais fiel das tradições africanas no Brasil. Segundo Livio Sansone (2003) O estado da Bahia sempre desempenhou um papel central na construção da “África” no Brasil. No passado, esse estado e a região que circunda sua capital, Salvador (o Recôncavo), nem que fosse pelo simples tamanho de sua população negra, despertou a atenção de viajantes, que a retrataram em seus relatos como a “Roma Negra” — o maior conglomerado do que era considerado como traços e tradições culturais africanos fora da África. (SANSONE, 2003, p.93) O trio chegou a gravar ainda mais 3 LP’s: O Africanto dos Tincoãs, de 1975, Os Tincoãs, de 1977 e Afro Canto Coral Barroco, de 1983, este último ficando inédito por 20 anos, e a passar uma temporada em Angola, participando de projetos desenvolvidos pela Secretaria de Estado da Cultura de Angola, e onde estabeleceram estreitas ligações com as religiões tradicionais africanas (JUNIOR, 2005). O percussionista pernambucano Naná Vasconcelos é outro legítimo representante das tradições culturais de origem africana. Em 1971, início da consolidação de sua carreira internacional, Vasconcelos gravou o disco Africadeus, pelo selo francês Saravah, de propriedade do músico Pierre Barouh. O disco, basicamente todo construído à base do berimbau, tem em seu lado A a composição Africadeus (Concerto para Mãe Bio), na qual o percussionista presta homenagem a Severina Paraíso da Silva, a Mãe Biu, Iyalorixá do Terreiro Santa Bárbara - Ilê Axé Oyá Meguê, da Nação Xambá, comunidade que é categorizada como quilombo urbano, na cidade de Olinda, Pernambuco, e da qual o músico foi ogã. A composição reassalta a tradição ancestral afro-religiosa do músico, vivenciada no terreiro da Nação Xambá, através do berimbau, instrumento africano de origem angolana. O próprio Naná Vasconcelos (1971), em nota de apresentação, assim define o disco: “Africadeus marca uma etapa de 51 meu trabalho com o “Berimbau”, instrumento que é uma das bases musicais da mitológica afro-brasileira.22” (VASCONCELOS, 1971). 2.4.1. MPB e religiões afro-brasileiras A quantidade de composições com temáticas afro-religiosas do período é tão intensa que mesmo alguns trabalhos acadêmicos voltados ao mapeamento destas obras não conseguiram abranger amplamente o grosso da desta produção. Rita Amaral e Vagner Gonçalves da Silva (2006), em seu texto Foi conta para todo canto: As religiões afro-brasileiras nas letras do repertório musical popular brasileiro, fazem um breve panorama destas relações, mas a proposição do formato de artigo apenas nos permite um vislumbre desta produção. Reginaldo Prandi (2005) também propõe estabelecer um panorama das composições do período em sua pesquisa Orixás na música popular brasileira, diretório de 761 letras da MPB com referências a orixás e outros elementos das religiões afro-brasileiras, que abrange o recorte temporal de 1902 a 2000, porém, a dificuldade de acesso a muitos fonogramas, além do fato de que muitos acervos fonográficos ainda não foram digitalizados, dificultam a realização de uma pesquisa ainda mais ampla, necessitando muitas vezes da transcrição de letras de composições que se encontram em péssimo estado de conservação, ou que tiveram condições inferiores de registro. Ainda segundo Jorge Luiz Ribeiro de Vasconcelos (2009), falando sobre os acervos fonográficos dedicados à música afro-religiosa: Tendo uma distribuição bastante irregular e restrita, são muitos vezes oferecidos no mercado de produtos religiosos como itens de suporte ao aprendizado de cantigas e toques, frequentemente em forma de cópias irregulares, pirateadas e, conseqüentemente, com a escassez de referências e informações confiáveis, já citadas acima, num grau extremo. Todavia podemos dizer que esta também é uma característica semelhante às de muitos segmentos de menor interesse comercial, em que se incluem os acervos de música chamada “folclórica” ou “world music” ou outros termos como são rotulados os registros sonoros de música tradicional em geral. (VASCONCELOS, 2009, p.2). Além de uma série de outros artistas que abordavam estas temáticas em seus LP’s, os quais não pudemos abordar aqui, como João Donato, Candeia, Ruy Mauriti, Sérgio Mendes, Cláudia, Zezé Motta, Noriel Vilela, Antonio Carlos & Jocafi, Osvaldo Nunes, Bezerra da Silva, MPB-4, entre outros, boa parte desta produção afro-religiosa das décadas de 60 e 70 foi lançado no formato de Compacto, através de artistas que muitas vezes não conseguiram nem ao menos chegar a gravar no formato LP. Entre “Africadeus marque une étape de mon travail avec le "Berimbau", instrument qui est une des bases musicales de la mythologie afro-brésilienne.” (VASCONCELOS, 1971). Tradução nossa. 22 52 alguns destes fonogramas menos conhecidos do grande público, podemos citar: Maria Creuza - Padê (1968), Osvaldo Nunes - Segura este Samba Ogunhê (1968), José Ventura - Filho de Umbanda (1969), Matheus - Yemanjá (1971), Elymar - Prece a Oxalá (1972), Barbosa - Seára de Oxalá (1973), Vanja Orico - Janaina (1974), Almir Ricardi - Lá vem vovó (1975), Dora Lopes - Pai Edu (1976), Biga - Cao Cao Oba (1977), Sosó da Bahia - A deusa das águas (1977), Raimundo José - Tá na hora do meu santo baixar (1977), Amaro Jose - Obatala (1977), Dinalva - Reza do Congo (1977), Carlos Jair - Berekete (1978), Vera de Ogum - O cantico de Nanã (1978), Fernando Santos - As Iabás (1979), Ibejy - Ogun Yê segurou (197?), entre uma série de diversos outros fonogramas, dos quais muitas vezes não é possível obter informações muito precisas, quanto à data de lançamento e fichas técnicas das gravações, além da evidente ausência de dados biográficos acessíveis sobre estes artistas. 2.5. Novas perspectivas de África O final da década de 70 e início de 80 trazem novas perspectivas para o campo das artes negras. O governo militar começar a arrefecer suas intervenções na sociedade e os diferentes movimentos sociais, políticos e culturais começam a ganhar força novamente. Segundo Lívio Sansone (2003): A redemocratização do Brasil, a partir do início dos anos oitenta, trouxe uma nova onda étnica e preparou o terreno para o surgimento de políticas de identidade numa sociedade que, até esse momento, vivenciara uma poderosa tradição universal. Essa nova “política da identidade” chega a receber apoio dos aparelhos de Estado, mas também celebrada na arte e na cultura popular através de inúmeras reinterpretações do “mito das três raças”. (SANSONE, 2003, p.98) O ritmo Reggae, originário da Jamaica, ganhava força no país, ao mesmo tempo em que surgiam em Salvador os primeiros blocos Afro, voltados à absorção das musicalidades e de valores estéticos africanos, além da celebração da “Mãe África”. A religião deixava de ser o principal meio de absorção de valores africanos no Brasil, buscando-se agora outras referências externas para a compreensão deste fenômeno, entre as quais várias vindas da própria África. Rachel Rua Baptista Bakke (2007) analisa a mudança desses paradigmas no período ao constatar que: Nos anos de 1970 e 1980 o candomblé ganhou as ruas, tornou-se enredo de escola de samba, alegoria de blocos carnavalescos em Salvador, elemento de trama de “novela das oito”, tema de música interpretadas por cantores populares da MPB etc. O “retorno à África”, nesse contexto, ganhou outros 53 contornos que extrapolaram os limites da religião. Nesse período, muitos artistas, assim como os sacerdotes de outrora, dirigiram-se à África, uma África muitas vezes mítica e idealizada, no afã de redescobrir uma essência de brasilidade, sobretudo negra, que passou a ser cantada nas rádios e TVs. (BAKKE, 2007, p.88) De fato, a construção de novas identidades africanizadas estava em voga, e podia ser identificada através de cabelos, roupas, adereços, música, dança, pintura e tudo o mais que pudesse remeter o imaginário dos indivíduos ao continente africano, pois, segundo Livio Sansone (2003), no Brasil, “’Parecer africano’ ou ‘soar como africano’ são, na verdade, o que torna as coisas ‘africanas’.” (SANSONE, 2003, p.100). A Bahia mais uma vez vira referencial nesse movimento de retorno a uma estética africana, que ao mesmo tempo que busca a valorização dos antepassados negros, procura vincular-se a uma África moderna, de grandes certos urbanos. Nesse foco, além dos referenciais caribenhos de negritude, como o que fez surgir o Samba Reggae, busca-se adquirir as referências diretamente da experiência africana. É o caso do episódio citado por Goli Guerreiro (2000) no livro A trama dos tambores: a música afro-pop de Salvador, em que Vera Lacerda, então presidente do bloco afro Ara Ketu, teria sido enviada para o Senegal, e presenciado ao vivo uma apresentação do cantor senegalês Yossou N’Dour, com uma banda formada por 30 percussionistas que atuavam junto a instrumentos elétricos, como guitarra e contrabaixo, e que utilizava modernos equipamentos eletrônicos (GUERREIRO, 2000, p.105). Guerreiro (2006) também afirma a importância das viagens ao continente africano feito por dirigentes dos blocos afro para a formação do imaginário construído pelos grupos de Samba Reggae: O intercâmbio com os países africanos foi fundamental não somente para ampliar a informação musical dos grupos negros, que conceberam o gênero, mas também para o delineamento das diversas áfricas que alimentam o imaginário dos blocos afro. Porém, a informação vinda das musicalidades modernas feitas no continente africano ainda era muito escassas, produto de uma indústria fonográfica nacional pouco aberta a sonoridades consideradas como “não-convencionais” e que estivessem distante dos largos padrões de consumo do abrangente mercado norte-americano. Lívio Sansone (2003), ao abordar a questão do acesso a essas sonoridades no Brasil, afirma que: A música pop africana moderna fez algumas incursões no mercado musical brasileiro e, na verdade, quase não se encontra à venda, com a exceção ocasional de algumas adaptações estilísticas adequadamente comercializadas, como o disco Music for the Saints, compilado por Paul Simon. Em outras palavras, os sons africanos — fonte importante de inspiração para a maioria dos músicos brasileiros — são mais imaginados do que ouvidos. Os músicos brasileiros só têm acesso à música africana quando viajam ao exterior, onde, 54 em muitos casos, residem e produzem seus discos. (SANSONE, 2003, p.120121). Mesmo em uma época em que as barreiras internacionais começavam a serem quebradas pela globalização, as musicalidades produzidas em um continente como o africano, de onde foram retiradas muitas de nossas raízes musicais, ainda não eram acessíveis no mercado brasileiro, restando aos músicos que ansiavam em conhecer estas sonoridades, apelar ao mercado internacional, ou então construir os seus próprios imaginários de África, com o que dispusessem ao seu redor. Com o final dos anos 80, será a vez dos rappers assumirem esses discursos de louvores à África, espelhados no movimento americano, e promovidos da através da cultura de rua propagada nas periferias. As letras dos grupos passaram logo a deflagrar uma consciência social das camadas mais pobres, falando sobre as condições inumanas em que os negros vivam nas favelas, da discriminação, da violência, do racismo e da possibilidade de conscientização dos negros, através da vivência da cultura Black. O movimento Hip-hop, assim como o Reggae, estão entre os grande exaltadores da África nas décadas de 80e 90, em um movimento mundial que vai adquirir um repercussão de menor nível no Brasil, mas mesmo assim de abrangência considerável. É partindo destes movimentos da década de 80, e com percepções voltadas para os movimentos musicais de décadas anteriores, que nos anos 90 ocorre o surgimento de uma série de grupos musicais voltados à junção das mais diversas referências sonoras, capazes de misturar numa mesma proporção ritmos como: samba, funk, rock, jazz, maracatu, rap, baião, punk, metal e reggae. Diversos movimentos musicais de períodos anteriores a exemplo da Tropicália, da Jovem Guarda e do Movimento Black Rio foram revisitados. Referências globais eram buscadas a todo o tempo, porém, mantendo ênfase nas tradições locais. Foi esta mistura de referências que possibilitou a artistas da década de 90 como Chico Science & Nação Zumbi, Planet Hemp, O Rappa, Mundo Livre S/A, Mestre Ambrósio, Pedro Luís e a Parede, entre muitos outros, abrirem o caminho para novas possibilidades de utilização das musicalidades de matrizes africanas, além de possibilitarem a compreensão de novos meios de se chegar à África através da música. O grupo pernambucano Chico Science & Nação Zumbi, surgido na década de 90, na cidade de Olinda, Pernambuco, era integrado por músicos vindos em sua maioria da periferia. Promovendo uma mistura de estilos tradicionais como o maracatu, a ciranda e o coco, todos de origens afro-brasileiras, como ritmos elétricos como o rock, o funk e o rap, de origem afro-americana, o grupo foi um dos grandes disseminadores das 55 tradições culturais de matrizes africanas na década de 90. As músicas do grupo falam em geral de situações do cotidiano, abordando o cotidiano da Região Metropolitana do Recife e com um forte teor de crítica social. Chico Science & Nação Zumbi foram responsáveis, junto a outros grupos surgidos no movimento cultural Manguebeat, por resgatar tradições locais negras e dar-lhes uma roupagem global. Diferente do proposto por Nei Lopes (2005), para quem o Manguebeat teria sido responsável por uma modernização dos ritmos afro-nordestinos com o intuito de tornálos menos “boçais” (LOPES, 2005, p.8), a proposta coletiva do movimento segue um rumo distinto, não apenas de modernização do tradicional, mas também de tradicionalização do moderno. Ao montar a Nação Zumbi, Chico Science, um grande admirador da música negra norte-americana, tentou adaptar os arranjos de metais do grupo do cantor James Brown, o JB’s, para as alfaias. Não seria este um modo de adaptação do moderno, os metais funk do JB’S, para o tradicional, as alfaias tocadas pelos centenários maracatus? Portanto, longe da “Intenção desafricanizadora” proposta por Lopes (LOPES, 2005, p.8), este movimento, assim como outros subsequentes, percebem muitas vezes uma África moderna, composta de culturas de uma complexidade ainda distante de ser compreendida pela lógica ocidental. 56 3. AS (RE)APROPRIAÇÕES DE ÁFRICA NO SÉCULO XXI A existência de uma série de manifestações culturais voltadas para as vertentes africanas no início do século XXI se deve ao fato de um crescente interesse não só nas tradições brasileiras de origens africanas, mas também dos processos culturais surgidos a partir da diáspora africana em todo o mundo e principalmente devido a uma (re)valorização e (re)descoberta do próprio continente africano. Segundo o etnomusicólogo Paulo Dias (2009), foram as práticas de origem africanas mantidas desde o fim do tráfico de escravos que foram responsáveis por recriar esse interesse nas tradições e culturas africanas. Para ele: A africanidade na música brasileira se deu sempre a partir da presença de africanos no Brasil, e não de uma ligação direta com África. [...] Hoje praticamente não há mais netos de africanos escravizados no Brasil. A distância geracional da África se acentua. O que permanece de africano nas musicalidades brasileiras vem sendo mantido pela memória, pelos pés e gargantas, no que pode ser chamado de tradição viva afro-brasileira – congadas, batuques de terreiro, religiões de matriz africana, sambas, bois, quilombos etc. Trata-se de um universo vastíssimo, que tem corrido desde sempre paralelo à cultura dominante, oficial ou dita “de mercado”, e só muito recentemente, e a partir da década de 90 sobretudo, tem aparecido nas mídias23. (DIAS, 2009) Além destas tradições mantidas pelos folguedos populares, as religiosidades de matrizes africanas também constituem elementos muito importantes nesse processo de reconhecimento dos valores e estéticas africanos. A estrutura das manifestações tradicionais existentes a partir dos terreiros é compreendia por Rita Amaral e Vagner Gonçalves Silva (2006) como elemento aglutinador das culturas afro-brasileiras: Sendo a música e a dança eixos centrais nas religiões afro-brasileiras, as expressões culturais que lhes são afins, ainda que aparentemente entendidas como não-religiosas, permanecem reconhecíveis também por essas vias. Capoeira, carnaval, afoxé, maracatu, jongo, congada, etc. são algumas destas expressões que, vistas de perto e em profundidade, podem revelar-se como variações de uma estrutura que se repete em diferentes contextos e espaços. Desse modo, a religião é capaz de aglutinar essas expressões ao seu redor, constituindo um conjunto mais ou menos orgânico de referências passíveis de serem entendidas e utilizadas como definidoras de uma “cultura afrobrasileira”. A música popular brasileira, ao buscar os elementos mais significativos dessa cultura, reafirma o papel da religiosidade como fundante de um modo de ser brasileiro no qual sagrado e profano — expressos na dança, na música, na magia, na festa, na comida, na luta etc. — não se apartam. (AMARAL; SILVA, 2006, p.234) 23 Depoimento concedido por Paulo Dias para o Jornalista Jean-Yves de Neufville por ocasião de matéria publicada no Le Monde Diplomatique Brasil, intitulada "Africanidade musical brasileira". Publicada em: maio de 2009. Disponível em: <http://www.cachuera.org.br/cachuerav02/index.php?option=com_content&view=article&id=258:african idademusicabrasileira&catid=80:escritos&Itemid=89>. 57 Como podemos verificar, esse processo de busca dos elementos culturais de origem africana no Brasil abarca não só os folguedos populares, como também as religiões tradicionais, atingindo ainda outras áreas do conhecimento e de interação social dos indivíduos, através de publicações especializadas no assunto e de revistas e blogs na internet. A internet, aliás, torna-se uma ferramenta essencial para a disseminação de conhecimentos sobre África na contemporaneidade. Mesmo que esta presença de elementos africanos esteja tornando-se nesse período algo, para nós, cada vez mais característico da produção musical brasileira, alguns especialistas, como é o caso de Nei Lopes (2005) consideram exatamente o contrário, que está ocorrendo um processo de desafricanização na música popular brasileira: A presença africana na música brasileira, pelo menos em referências expressas, vai se tornando cada vez mais rarefeita. Aparece, via Jamaica, no carnaval dos blocos afro baianos e nos sambas enredo das escolas cariocas e paulistanas – especialmente nas homenagens a divindades. Mas nada de modo tão intenso como ocorre na música que se faz em Cuba e em outros países do Caribe. [...] Acreditamos que a música popular brasileira, de raízes tão acentuadamente africanas, seja vítima de um processo de desafricanização ainda em curso. (LOPES, 2005, p.8). O contraste apontado por alguns autores e músicos, sobre as representações de africanidade na nova produção musical brasileira tem rendido uma série de discussões que garantem uma renovação nas pesquisas da área. Numa época em que projetos de reparação social são aplicados à população negra, editais que valorizam o resgate e a manutenção de práticas culturais de origem afro-brasileiras são lançados constantemente, em que o ensino da história e cultura afro-brasileira é tornado item obrigatório nas escolas e universidades e em que as barreiras entre o continente africano e o Brasil são gradualmente sobrepostas pela internet, a identificação dos diferentes grupos sociais com as culturas produzidas pelas diversas etnias africanas e afrodescendentes ao redor do globo tornam-se visíveis. Para Nestor Garcia Canclini “Talvez a música seja o ambiente onde mais veloz e radicalmente estão sendo reformulados os conceitos de local, nacional e global.” (GARCIA CANCLINNI, 2008, p.62) O etnomusicólogo Paulo Dias (2009), ao falar sobre as presenças de africanidades na produção musical brasileira contemporânea, em paralelo com os “grandes compositores” da MPB, afirma que: A era dos grandes compositores parece que terminou. Não acho que, por isso, “perdemos” o veio seminal da africanidade. Talvez estejamos atravessando um interregno. De fato não há artistas do porte de Tom, Chico e Paulinho. 58 Porém, do lado de fora da música estritamente mercadológica, pipocam na internet, no My Space, uma pequena multidão de artistas que bebem diretamente do tradicional. Branquinhos classe média com formação na Berklee (é assim que se escreve?) lado a lado com jovens oriundos de comunidades negras, dos pontos de cultura que o Gil sabiamente ideou. O acesso ao digital multiplica por mil os compositores, os cineastas, os poetas (veja-se os saraus poéticos da periferia paulistana como o da Cooperifa e do Panelafro). A rede é dos peixes miudos; foi-se o tempo em que reinavam só os graúdos. Quem tem voz ativa hoje nas periferias superpopulosas de São Paulo são os rappers, que se voltam cada vez mais para a África, ainda que espiritual e ideologicamente em princípio – nem todos eles têm acesso aos ancestrais saberes da África no Brasil, pois nas metrópoles, a tradição mercantilizada já se torna conhecimento privativo dos acadêmicos e da juventude bem-nascida e bem-informada da Vila Madalena e de Santa Tereza24. (DIAS, 2009) O número de artistas contemporâneos que se encaixam em um perfil de disseminadores das culturas africanas é extenso. Provenientes de diversas classes sociais e tendo variados níveis de formação, todos acabam em geral compactuando de um interesse em comum: descobrir novas percepções de África. As línguas, as religiosidades, as questões políticas, as tradições, os costumes, as musicalidades e mais diferentes expressões artísticas servem de mote para a compreensão de um continente tão amplo e tão complexo, cujas barreiras geográficas se estendem para além do atlântico, desaguando através da diáspora nos mais diversos pontos do globo. Neste capítulo discutiremos os sentidos de África atribuídos pelos artistas contemporâneos através de suas obras fonográficas, e com base principalmente em seus discursos, no intuito de que através destes possamos identificar aspectos contundentes de um anseio em redescobrir as diversas Áfricas disseminadas pelo imaginário coletivo. Entre os diversos artistas e grupos que iremos abordar aqui, podemos citar: Kiko Dinucci, Juçara Marçal, Sambanzo, Rodrigo Campos, Criolo, Metá Metá, Afroelectro, Nação Zumbi, Otto, Monjolo, Junio Barreto, Letieres Leite & Orquestra Rumpillez, Digitaldubs, Anelis Assumpção, Abaymoy Afrobeat Orquestra, Bixiga 70, Iara Rennó, Iconili, Pipo Pegoraro, Tibless, Tiganá Santana, entre alguns outros. 24 Depoimento concedido por Paulo Dias para o Jornalista Jean-Yves de Neufville por ocasião de matéria publicada no Le Monde Diplomatique Brasil, intitulada "Africanidade musical brasileira". Publicada em: maio de 2009. Disponível em: <http://www.cachuera.org.br/cachuerav02/index.php?option=com_content&view=article&id=258:african idademusicabrasileira&catid=80:escritos&Itemid=89>. 59 3.1. Kiko Dinucci e a África macarrônica Em idos de 2004 surge em São Paulo o Bando Afromacarrônico, projeto de um grupo de músicos paulistas que pretendiam fazer o “genuíno samba paulista”. Com o andar dos shows e a gradual mudança de alguns integrantes, o Bando passou aos poucos a incluir outras referências musicais em seu repertório: jongo, caxambú, cumbia, jazz, macumba... moldando um som próprio, universal, mas sem nunca deixar de ser paulista. O líder do grupo, o músico, compositor, artista plástico e cineasta, Kiko Dinucci, nasceu em São Paulo em 1977 e foi criado em Guarulhos. Durante a infância ouvia os sons que eram tocados pelos seus pais: música caipira, Samba, MPB... passou a ouvir rock nacional por influência da irmã. Em sua adolescência cresceu ouvindo Rock e Punk. Tocou guitarra em diversas bandas do bairro, e ainda jovem veio a se deparar com o tradicional samba paulista, através de uma coleção de discos lançada pela Editora Abril e distribuída em bancas de jornal, que entre os seus números tinha um dedicado aos compositores Adoniran Barbosa e Paulo Vanzolini. Autênticos representantes do samba paulista, tanto Adoniran como Vanzolini eram tradicionais cronistas urbanos, que compunham sobre coisas do cotidiano de São Paulo. Aos poucos, Dinucci foi moldando o seu som, trocando a guitarra pelo violão e moldando um jeito próprio de tocar. Abandonou o meio do rock por achá-lo “limitado e repetitivo25”, e acabou abraçando o samba, “Achava que punk mesmo era o Noel Rosa26”. Porém, nunca abandonou completamente o rock, incorporando o seu estilo de tocar guitarra, através de riffs, para o violão. Passou a ver no samba tocado pelos jovens paulistas uma reprodução do modelo carioca: no repertório, no jeito de tocar, no visual. Passou então a exaltar o samba tipicamente paulista, aquele feito por Paulo Vanzolini, Adoniran Barbosa, Geraldo Filme, Germano Mathias... Juntamente a estas influências, Dinucci vai somando à lista outros compositores paulistas, como Eduardo Gudin, Itamar Assumpção, Arrigo Barnabé, o grupo Premeditando o Breque, entre outros, todos responsáveis por moldar um som tipicamente paulista, e que segundo Dinucci “cantaram São Paulo de um jeito espontâneo, natural e que além da crônica, também 25 Entrevista de Kiko Dinucci cedida Adriana Alves da Revista Rolling Stone por ocasião da matéria Samba urbano sem caricatura , na Edição 12. Publicada em: setembro de 2007. Disponível em: <http://rollingstone.com.br/edicao/12/kiko-dinucci>. 26 Idem. 60 narraram a cidade através dos sons, ou seja, a parte instrumental de suas canções também traduziam sampa.27” Junto a esse jeito paulista, do samba e da crônica urbana, da influência italiana típica de bairros como o Bixiga, Kiko Dinucci foi criando interesse pelas influências mais tradicionais, dos sons negros que ecoavam nas plantações de café paulistas. Segundo Julio de Paula (2011): A prática de ouvir sambas antigos, “de rádio”, como Donga e João da Baiana, o levou a perceber uma forte aproximação dessas músicas com a tradição dos terreiros. Antes, já acompanhava as danças negras de São Paulo, como jongo e congada. Foi além. Passou a visitar as festas em casas religiosas, escutando com atenção as batidas dos tambores e “tendo algumas ideias”. (PAULA, 2011) Em suas andanças por terreiros de candomblé e umbanda em São Paulo, procurando referenciais musicais nestes universos, acabou se deparando bastante e ficando extasiado com a figura de Exu28. Em 2002, estava muito desanimado com a música, porque é uma arte onde tudo é muito demorado, tudo é muito penoso. Nessa mesma época comecei a ter interesse pelo candomblé, que é onde está grande parte do que usamos na música brasileira. Ouvia muita música do candomblé e aí descobri que era Exu de verdade. Porque todo mundo pensa que Exu é diabo, e na verdade significa o movimento do mundo, é a energia vital, o que faz o mundo girar. Então resolvi fazer o documentário sobre isso. Exu é o meu super-heroi, tem todo um elemento transformador, está em todos os extremos. Botei na cabeça que minha trajetória tem que ser que nem a dele, ter que ter dinâmica, conversar com tudo!29 (DINUCCI, 2011) De suas pesquisas sobre Exu, resolveu fazer um documentário, pois segundo ele: “Me incomodava a falta de conhecimento e esclarecimento sobre Exu em todos os sentidos. Sabemos que no imaginário brasileiro Exu é comparado ao Diabo do mundo cristão, tudo isso apoiado numa grande falta de informação.30” Em dezembro de 2005 ele iniciou as filmagens do documentário Dança das Cabaças – Exu no Brasil, no qual se propôs a fazer “[...] uma investigação poética sobre a divindade africana Exu no imaginário brasileiro.31” A ideia inicial de Dinucci era fazer algo referente a isso na esfera musical, ou mesmo textual, mas segundo o autor : 27 Entrevista de Kiko Dinucci concedida ao blog EuOvo. Publicada em: 28 de feverereiro de 2010. Disponível em: <http://euovo.blogspot.com.br/2009/04/o-samba-manco-de-kiki-dinucci-e-o-bando.html>. 28 Orixá mensageiro, protetor dos caminhos, aquele que guarda as encruzilhadas. Além de ser cultuado como orixá no Candomblé, Exú também é cultuado como entidade em outras religiões, como Umbanda, Quimabanda, Jurema, etc... 29 Entrevista cedida a Larissa Saram do Colherada Cultural - 21 de julho de 2011. 30 Trecho do texto Por Que Exu? de Kiko Dinucci, postado no blog do documentário Dança das Cabaças – Exu no Brasil. Publicado em: Setembro de 2006. Disponível em: <http://dancadascabacas.blogspot.com.br/2006/09/idia-inicial-de-realizar-o-documentrio.html>. 31 Trecho do release do documentário de 2006. Disponível em: <http://vimeo.com/1436330>. 61 [...] optei pelo formato audiovisual, já que existiam bons textos escritos por sociólogos, antropólogos e etnologos, à exemplo de Roger Bastide, Pierre Fatumbi Verger, Arthur Ramos, Nina Rodrigues, , Sergio Ferretti, Reginaldo Prandi, Juana Elbein dos Santos entre outros. 32(DINUCCI, 2006) Da vivência nos terreiros durante as filmagens foram surgindo uma série de inspirações para as suas composições. Foi segundo o compositor nesse período que foram surgindo suas ligações mais profundas com as questões “afro”: [...] na época que eu tava fazendo o filme eu fiquei acho que, uns dez meses sem compor nada né, depois começou a vir coisas relacionadas ao candomblé, meu samba não tinha ligação nenhuma com o candomblé assim, ele era muito na linha do Vanzolini, do Adoniran, né, era de certa maneira muito branco assim, muito italianado mesmo né, o afro do afromacarrônico veio depois assim, ele chegou depois33. (DINUCCI, 2008) Entre as composições surgidas no período, algumas eram consideradas pelo autor como “vinhetas”, as quais ele acreditava que não renderiam num disco. Porém, ainda em 2006 ele inicia o processo de gravação de um disco, junto com a cantora Juçara Marçal, surgido de um projeto que havia sido iniciado em 2005 com o espetáculo "A toda hora rola uma história", composto de clássicos da música brasileira e composições de Dinucci. O disco reunia algumas das composições criadas por Kiko Dinucci a partir da experiência do documentário, e foi intitulado Padê34. O Padê é a comida votiva de Exu, o qual segundo a tradição tem de comer sempre antes dos outros orixás. Exu é o responsável por abrir os caminhos, por isso se oferece primeiro o seu alimento para em seguida dar início a qualquer atividade ou trabalho religioso. E é seguindo essa lógica que Juçara e Kiko abrem o disco: Abre o caminho Sentinela está na porta Abre o caminho Pro mensageiro passar Laroyê As temáticas compostas por Dinucci para este trabalho transitam entre o Candomblé e a Umbanda, através do sincretismo presente nas letras das canções que misturam orixás e santos católicos, juntando São Jorge com Ogum e Xangô com São 32 Trecho do texto Por Que Exu? de Kiko Dinucci, postado no blog do documentário Dança das Cabaças – Exu no Brasil. Publicado em: setembro de 2006. Disponível em: <http://dancadascabacas.blogspot.com.br/2006/09/idia-inicial-de-realizar-o-documentrio.html>. 33 Entrevista cedida ao programa Radiola Urbana 62, com André Maleronka, Filipe Luna e Ramiro Zwetsch. 2008. Disponível em: <http://blog.revistaurbana.com.br/?p=959>. 34 Comida votiva de Exu. Segundo a tradição, Exu é o Orixá que come primeiro, pois ele é o responsável por abrir os caminhos. Só depois que lhe for oferecido o Padê (farofa feita com dendê) é que os trabalhos podem ter início. 62 João Batista na canção Machado de Xangô,35 e mesmo tratando de outras entidades como os caboclos, em Cabocla Jurema 36, características presentes nos cultos paulistas da Umbanda; ou mesmo na louvação às formas de culto dos orixás yorubanos como em Atotô, música em homenagem ao orixá Omolu. Após a gravação de Padê, Kiko Dinucci dará continuidade ao Bando Afromacarrônico gravando o primeiro registro do grupo, o Afro – EP – Macarrônico, com uma pegada forte nos ritmos afro-brasileiros tradicionais do sudeste, tendo o samba como fio condutor. As influências africanas ficam mais visíveis aos poucos como na composição Santa Bamba, parceria de Dinucci com Fabiano Ramos Torres, inspirada nos candomblés de tradição Angola-Congo e composta em Kimbundo37. Lançado de forma independente, o EP38 abrirá espaço para o lançamento do primeiro disco do grupo, Pastiche Nagô, sob o nome de Kiko Dinucci e Bando Afromacarrônico. O disco é composto de seis músicas inéditas, mais as 4 músicas do EP como bônus. O nome do disco faz uma brincadeira de mistura que está incutida no próprio nome do grupo. O termo Afromacarrônico é uma miscelânea de africano com o macarrônico (língua mal falada, misturada, assim como o macarrão), uma espécie de mistura entre as tradições negras brasileiras de origens africanas com o paulistano de ascedência italiana. Já o nagô traria incluso em si a mesma lógica, de mistura, assim como o gênero literário e fílmico Pastiche, uma colagem composta de diversas referências, o nagô africano como parte dessa mistura heterogênea, onde torna-se difícil discernir o que é africano e o que é brasileiro. Kiko Dinucci define o disco da seguinte forma: O CD Pastiche Nagô é voltado à sonoridade paulistana, no qual os ritmos são nitidamente influenciados pela música africana e se manifestam de maneira cosmopolita, trafegando pelo samba, maxixe, música caribenha e principalmente por heranças da cultura bantu e yoruba oriunda dos cultos afro-religiosos difundidos no Brasil39. (DINUCCI, junho de 2008) Os africanismos ficam mais presentes na obra de Kiko Dinucci a partir deste disco, principalmente devido às parcerias com o compositor Douglas Germano. Rainha 35 No final da canção Machado De Xangô é cantado um tradicional ponto de Umbanda, Meu Pai São João Batista é Xangô. 36 A Jurema é uma planta sagrada da qual é feita uma bebida ritualística de origem indígena, além de ser uma religião sincrética nordestina que mistura características religiosas negras, europeias e indígenas, e também o reino sagrado onde habitam os encantados, caboclos e mestres com os quais a Jurema trabalha. A chegada desta tradição no sudeste acabou antropomorfizando a Jurema na figura de uma cabocla. 37 Idioma pretencente ao grupo lingústico bantu, falado no noroeste de Angola. 38 Sigla de Extended-Play, formato de disco que fica entre o Single (ou Compacto) e o Álbum. 39 Release do disco Pastiche Nagô escrito por Kiko Dinucci em seu blog Afromacarrônico. Publicado em: junho de 2008. Disponível em: <http://afromacarronico.blogspot.com.br/2008/06/pastiche-nag.html>. 63 das Cabaças, parceria entre Dinucci e Germano, fala sobre o orixá Yemanjá, rainha de todas as cabeças (ori), exaltando uma qualidade específica do orixá, Awoió, qualidade mais antiga do orixá. Outro orixá exaltado no disco é mais uma vez Exu, dessa vez numa composição escrita por Douglas Germano, Padê Onã, na qual diz: Laroyê Bará Abra o caminho dos passos Abra o caminho do olhar Abra caminho seguro para eu passar Laroyê Eleguá Tomba o mal de joelhos Só levantando o Ogó Dobra a força dos braços que eu vou só Laroyê Legbá Guarda Ilê, Onã, Orum Coba xirê deste funfum Cuida de mim que eu vou pra te saudar! No início de cada estrofe da música é feita a saudação a Exu, Laroyê, seguida da qualidade do Exu a que se saúda: Bará, Eleguá, Legbá. De cada Exu que se fala vão sendo feitos os pedidos respectivos: pede-se a Bará que abra os caminhos; a Eleguá que tombe o mal de joelho levantando o Ogó (ferramenta ritual de Exú, representando o falo, símbolo da virilidade masculina) e que dê forças; a Legbá que guarde o Ilê (casa), o Onã (caminho) e o Orum (plano supremo, onde vivem os orixás). É estabelecida uma relação de troca, onde o filho cuida do Orixá, o saúda, faz suas obrigações, em troca de que este o ajude. O título da composição estabelece bem essa relação de troca: Padê Onã, ou seja, a comida votiva que é oferecida para Exu, a cerimônia feita em sua celebração, o Padê, em troca de que este abra os caminhos (Onã). 3.1.1. Metá Metá: a tríade iorubana Após o Pastiche Nagô Dinucci montou e participou de outros projetos, como o Duo Moviola, com o parceiro Douglas Germano, e o Na Boca dos Outros, disco de composições suas interpretadas por outras pessoas, porém ambos projetos são voltados mais para o lado de cronista urbano do compositor. Porém, a continuidade da parceria nos palcos com Juçara Marçal acabou rendendo um projeto que iria fincar as matrizes africanas na carreira de ambos, quando após uma série de shows do Padê em que tocaram apenas os dois juntos, decidiram chamar o saxofonista Thiago França (que fez 64 os arranjos de sopro do Na Boca dos Outros) para fazer participação em um show, daí surgiu o mote para o Metá Metá. O termo metá-metá vem do iorubá, e tem o significado de tríade. O orixá iorubano Logunedé é considerado um orixá metá-metá, pois este possui características do seu pai Oxóssi e de sua mãe Oxum, que são acrescidas às características do próprio Logunedé, formando uma espécie de três em um. Assim é a tríade do grupo Metá Metá, reunindo a voz de Juçara Marçal, o violão de Kiko Dinucci e o sax e flauta de Thiago França. Os shows iniciais do projeto serviram como uma continuidade do Padê, explorando as temáticas africanas a partir dos orixás iorubanos, com referências à umbanda e ainda às crônicas urbanas. O Metá-Metá tem dois discos lançados: Metá Metá (2011) e MetaL MetaL (2012). O primeiro disco do grupo praticamente define uma linha divisória entre a crônica e o imaginário religioso afro-brasileiro, como dois lados de um mesmo disco. Na segunda parte, a louvação aos orixás é acrescida de ritmo, bateria e percussão (tocadas por Sergio Machado e Samba Sam respectivamente), evocando a ancestralidade africana através de Oranian, Xangô, Oxum e Obatalá. Porém, não apenas a parte rítmica caracteriza o universo africano presente no disco, mas também a melódica, através da polifonia presente na musicalidade dos povos bantus. Segundo o próprio Dinucci falando sobre o primeiro disco do Metá Metá: É engraçado, mas se for prestar atenção, o lado A é mais africano que o B, porque trabalhamos com uma polifonia mais intensa e sem nenhum auxílio de percussão. Aqui no Brasil, a tradição oral deve ser encarada de um jeito menos romântico. Se soubermos escrever, vamos escrever, anotar, cantar yoruba correto nos templos, isso é possível hoje. Na Nigéria, o pessoal já escreve em yoruba nas universidades, vamos levar isso pra frente40. (DINUCCI, 2011) O segundo disco do grupo, batizado de MetaL MetaL, além de ser tocado agora pela banda completa (Marcelo Cabral no baixo, Sérgio Machado na bateria e Samba Sam na percussão), traz em todas as suas músicas, exceto uma (Tristeza Não, de Itamar Assumpção), a presença do universo religioso afro-brasileiro. O disco abre com Exu, canção composta em iorubá por Kiko Dinucci, evocando o mensageiro dos orixás. Assim como nas cerimônias do candomblé, o orixá aqui é evocado solicitando a abertura dos caminhos, a continuidade dos trabalhos, evocando o respeito à tradição da hierarquia presente nos terreiros de candomblé. O universo da mitologia ancestral 40 Entrevista cedida por Kiko Dinucci a Júlio Rennó para a revista Outros Críticos. Publicada em 26 de outubro de 2011. Disponível em: <http://outroscriticos.blogspot.com.br/2011/10/entrevista-kiko-dinuccimeta-meta.html>. 65 africana é representado no disco através elementos característicos de cada orixá representado, como pode ser visto na composição Orunmila, parceria de Kiko Dinucci e Douglas Germano: O destino desenhou Traço de odu Adivinhação Dança circular Voz oracular Onda vai e vem Futuro também Se o presente já morreu Um segundo atrás Quem matou fui eu Chão, pegada, rastro De quem já passou Um enredo a mais Em 16 finais Palavra de Ifá Ikin e opelê Ou erindilogun No pó de ierosun Palavra de Ifá Jogada no opon Direto do orun O destino desvendou Quantos eu serei Do mais pobre ao rei Com o olho avante Que enxerga atrás E que compreende Todos os sinais Se o presente renasceu Um segundo a frente Quem gerou fui eu E o tempo reluta Como um embrião Perseguindo a vida Solto na amplidão Palavra de Ifá Ikin e opelê Ou erindilogun No pó de ierosun Palavra de Ifá Jogada no opon Direto do orun Orunmila é o orixá da sabedoria, do conhecimento e do destino. É ele que através do oráculo de Ifá desvenda os destinos dos homens, e de como fazer para mudálos. O sistema de adivinhação é feito pelo Babalawo, e consiste em sua base num jogo com 16 conchas ou nozes. Cada caída de conchas abertas ou fechadas representa um 66 odu (destino), dum total de 16 odus maiores, que se desmembram em 256 possíveis situações baseadas nas histórias dos orixás, que é de onde o Babalawo tira a resposta para encontrar uma solução para o consulente. Ou seja, o caminho e vivência dos orixás se repetem em seus filhos, e de suas experiências são retirados os exemplos que devem ser seguidos por estes. Além das temáticas afro-religiosas abordadas no disco do Metá Metá, outra questão importante é a musicalidade. O disco apresenta polirritmias que são presentes nas tradições musicais africanas, além de uma influência forte do Afrobeat, em faixas como Oyá e Orunmila. O Afrobeat acaba se demonstrando como uma importante conexão entre diversos grupos desta cena, que mesmo não sendo caracterizada exclusivamente por este estilo musical, tem nele um fio condutor que permeia a obra da grande maioria, e acaba sendo muitas vezes o elemento que faz com que estes artistas criem um vínculo maior com a África, uma sensação de pertencimento, e daí partam para desvendá-la, assim como aconteceu com e elo que se estabeleceu através das religiões afro-brasileiras com os compositores e músicos de períodos anteriores. 3.2. Afrobeat / afro-brasileiro O Afrobeat é um gênero musical desenvolvido pelo nigeriano Fela Anikulapo Kuti, durante a década de 70, um misto de Funk e Soul norte-americanos com música tradicional africana. Mais do que apenas um gênero musical, o Afrobeat possui uma gênese politizada, de contestação, levando o pesquisador Albert Oikelome (2010) a considerá-lo como uma “[...] arma de luta e emancipação política.” (OIKELOME, 2010, p.5). Um dos motivos para tantas influências do Afrobeat no Brasil a partir desta nova geração de músicos, visto que já se passaram 16 desde a morte de Fela Kuti, pode ser identificado através de um revival global do gênero, iniciado a partir de Nova York no final de década de 90. Discos são relançados, livros e matérias são escritos, documentários são produzidos e até um musical foi feito na Broadway com a pretensão de ser lançado um filme. Cada vez mais grupos são influenciados pelo gênero criado por Kuti em escala global, porém, com o tempo, chegando a desenvolver características próprias que levam o gênero a outros caminhos, no que concerne não só a seus padrões 67 musicais mas também do conteúdo de suas letras, o que levou o pesquisador Albert Oikelome (2010), em seu artigo Stylistic Analysis of Afrobeat Music of Fela Anikulapo Kuti, a constatar que: With the benefit of hindsight, there will be much development in Afrobeat music in the near future. Since we have exponents springing up from all over the world, there is no doubt that the fusion of the music will include materials from other countries where the genre is being performed. The lyrical content of Afrobeat will receive a deviation from the massive political messages typical of Felá’s Afrobeat. At present, there is the down-playing of political songs in favour of love songs. An example is the Antibalas Afrobeat group in New York. They started with oppositional music but met with brick walls with their listening audience who wanted music for relaxation instead of war.41 (OIKELOME, 2010, p.16) No Brasil o crescimento do estilo é bastante visível. O espaço que a mídia vem dando a Fela Kuti e ao Afrobeat nos últimos anos chama atenção. Soma-se a isso o fato da abrangência da internet no acesso a novas descobertas sonoras e as possibilidades de reelaboração do gênero segundo padrões brasileiros. O produtor americano Victor Rice, em entrevista ao jornalista José Flávio Júnior (2012), faz um paralelo entre os acontecimentos políticos em Nova York e São Paulo quando do surgimento de uma cena musical Afrobeat nestas cidades: Produtor do álbum da Bixiga 70 e baixista da Antibalas em algumas ocasiões, o norte-americano Victor Rice lembra que a febre afrobeat em Nova York começou durante a gestão do prefeito linha-dura Rudolph Giuliani e traça um paralelo com a capital paulista: “Faz sentido que o afrobeat esteja forte em São Paulo agora, pois a cidade passa por um momento conservador, sob o governo de Gilberto Kassab. Na tentativa de compensar o clima pesado, os artistas produzem coisas mais vibrantes. Dançar é necessário para aliviar a tensão – uma resposta natural”42. (JÚNIOR, 2012, p.2) Um dos projetos da cena paulista que bebe nessa fonte do Afrobeat é o Sambanzo. Capitaneado pelo saxofonista Thiago França, e tendo Kiko Dinucci nas guitarras, o grupo mistura gafieira, jazz, afrobeat, latinidades e pontos de terreiro, fazendo referências às matrizes africanas de muitas das sonoridades pelas quais ele percorre seu repertório. Sambanzo pode ser interpretado como um samba nostálgico, 41 Com o benefício da retrospectiva, haverá grande desenvolvimento na música Afrobeat num futuro próximo. Uma vez que temos expoentes surgindo de todo o mundo, não há dúvida de que a fusão da música incluirá elementos provenientes de outros países em que o género está tocado.O conteúdo lírico do Afrobeat receberá um desvio do conteúdo político das mensagens típicas do Afrobeat de Fela. No momento, está havendo uma diminuição do significado das canções políticas em favor de canções de amor. Um exemplo é o grupo Antibalas Afrobeat de Nova York. Eles começaram fazendo música de oposição, mas depararam-se com uma barreira diante de seus ouvintes que preferiam música para relaxar ao invés de guerra. (Tradução nossa) 42 Entrevista de Victor Rice concedida a José Flávio Júnior por ocasião da matéria Bandas revivem o afrobeat de Fela Kuti. Publicada em 9 de março de 2012. Disponível em: <http://exame.abril.com.br/estilo-de-vida/entretenimento/noticias/bandas-revivem-o-afrobeat-de-felakuti?page=3>. 68 que louva as suas origens africanas e afro-brasileiras, assim como faz a incorporação de outros ritmos que tem suas origens na diáspora, como o Afrobeat, que foi criado em África, mas que partiu de referências diaspóricas como o Funk, o Soul e o Jazz. Ao mesmo tempo em que o Afrobeat é apresentado como uma inspiração musical, como quando Thiago França diz que “O afrobeat no Sambanzo não é estudado. É deixar tocar.43” (FRANÇA, 2011), ele também é concebido apenas enquanto representação estética, como pode ser visto na fala de França sobre o Metá Metá: [...] nosso afrobeat é o avesso do afrobeat. O que é isso? Acho que a única coisa que a gente pegou do afrobeat foi assim: ‘Putz, a música tem 15 minutos! A gente pode fazer uma música de 15 minutos também.’ O Afrobeat tem os elementos muito definidos, a levada de batera, as dinâmicas. O Fela [Kuti] é muito performático, a composição dos arranjos é muita coisa de performance. Faz muito sentido você assistindo. É meio cênico e tal. E a gente não tem isso, é uma coisa mais orgânica. É muito mais misturadão, é mais orgia, é meio selvagem44. (FRANÇA, 2012) Através de duas falas distintas deste músico, podemos perceber a amplitude de sentidos que são possíveis de atribuir ao Afrobeat, de uma função musical a estética, passando pela sua função política, dependendo do que o interlocutor almeja através de sua utilização. Uma das marcas características do Afrobeat é exatamente a musicalidade. A junção de ritmos tradicionais africanos com os da diáspora, a exemplo do Funk, é o que moldam a marca da sonoridade criada por Fela Kuti. E é exatamente na parte rítmica que se destaca o seu referencial, e que acaba servindo de molde para a apropriação e ressignificação por muitos artistas brasileiros. A gênese rítmica deste estilo é concentrada justamente no baterista de Fela, Tony Allen, que é quem vai moldar o ritmo do Afrobeat. E essa influência do baterista será sentida em diversos artistas que rodeiam o gênero, como é possível identificar na fala do rapper Bernardo Santos, o Bnegão, membro do Planet Hemp e líder do grupo Seletores de Frequência: O impressionante é o RG da batida dele. Sinceramente, acho que o afrobeat não seria como conhecemos hoje se Fela tivesse outro baterista ao seu lado. O Tony Allen era o cara do ritmo e os dois estavam juntos nos Estados Unidos quando pensaram no conceito do afrobeat45. (SANTOS, 2012) 43 Entrevista de Thiago França concedida a Douglas Vieira por ocasião da matéria A África de cada um, publicada no caderno Divirta-se do jornal Estado de São Paulo. Publicada em 13 de outubro de 2011. Disponível em: <http://blogs.estadao.com.br/divirta-se/africa-brasil/>. 44 Entrevista do Metá Metá concedida a Renan Simão do blog e-colab. Publicada em 13 de maio de 2012. Disponível em: <http://e-colab.blogspot.com.br/2012/05/entrevista-meta-meta.html>. 45 Depoimento de Bnegão cedido ao jornalista e DJ Ramiro Zwetsch, por ocasião da matéria Tony Allen: o RG do Afrobeat, publicada no Estadão em 28 de abril de 2012. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,tony-allen-o-rg-do-afrobeat,866477,0.htm>. 69 O baterista Pupillo, da banda pernambucana Nação Zumbi, também se declarou fã do trabalho de Tony Allen, do qual é possível perceber alguma influência na sonoridade desenvolvida por ele. Em entrevista feita em 2003, ao ser perguntado sobre as suas influências sonoras mais recentes ele afirmou: Pupillo: Eu tenho pirado muito em afrobeat. Tenho escutado muito Fela Kuti, muito Tony Allen (o baterista de Fela Kuti). Eles fizeram um som maneiro pra caramba, uma mistura de jazz com afrofunk. Eu tenho pirado muito nisso. Sem falar no dub que é uma parada que a banda inteira ouve pra caramba. Ska, música jamaicana, basicamente música negra. Onde a música negra estiver espalhada tenho pirado muito porque é muito forte ritmicamente 46. (PUPILLO, 2003) Estas influências também são visíveis em seu próprio grupo, a Nação Zumbi, que chegou a fazer no palco referência direta a Fela Kuti, tocando um trecho da música de Kuti, Mr. Follow Follow, em show com o projeto paralelo Orquestra Manguefônica, em 2005, no SESC Pompéia. Pupillo chegou ainda a participar com Allen do evento Brasilintime: Batucada com Discos, ocorrido no ano de 2006, em São Paulo, projeto que juntava em suas apresentações renomados bateristas com um time de DJ’s especialistas na arte dos toca-discos. Outro músico que ressalta a influência do ritmo em sua obra é o maestro baiano Letieres Leite. Famoso por fazer arranjos para artistas de Axé Music, Leite teria tido contato com o som de Fela ainda na década de 70 em Salvador, mas em seus discos o que fica mais latente são as sonoridades afro-baianas e o afro-jazz, por mais que o maestro ainda pretenda montar um grupo mais voltado ao Afrobeat47. Sobre a proximidade sonora e afetiva de Letieres com Fela Kuti e com o Afrobeat, ele afirma: Não é necessariamente na estética musical que pode estar a coincidência, mas na intenção subjetiva. É aí que acontecem as semelhanças. A nossa preocupação de mostrar a nossa música afro-cêntrica dentro de uma visão de rigor, organização e elaboração é uma atitude de missão. Não tocamos com a influência da música pop do momento, como o Fela tinha com o soul music ou o groove. Mas eu percebo na música da Rumpilezz muito de linhas repetitivas de baixo, que é uma característica do afrobeat.48 (LEITE, 2012, p.2) Ao ser indagado sobre a repercussão do Afrobeat nos últimos anos no Brasil, Leite faz um questionamento sobre como se dá o acesso e a identificação dos diferentes grupos sociais com o estilo, quando diz que: 46 Entrevista realizada com Pupillo em 2003, retirada do site Nordesteweb. Disponível em: <http://www.nordesteweb.com/not10_1203/ne_not_20031228a.htm>. 47 Entrevista de Letieres Leite concedida a Vinicius Gorgulho da Revista Raça Brasil Ed. 168, por ocasião da matéria Modernizando a ancestralidade afro-baiana. Publicada em junho de 2012. Disponível em: <http://racabrasil.uol.com.br/cultura-gente/168/artigo262454-2.asp>. 48 Idem 70 Negros longe do afrobeat é um fato, isso merece uma boa discussão, um entendimento. Acontece no Rio e em São Paulo, aqui em Salvador menos. O pessoal que produz o afrobeat de Salvador está na periferia, vem do final da década de 70, num bairro da Liberdade, em Salvador, onde tiveram alguns músicos. É ao contrário de São Paulo onde só a classe média teve acesso à música afro, porque as informações estão circulando dentro desse ambiente virtual, então as pessoas privilegiadas no acesso à internet conhecem primeiro49. (LEITE, 2012) As referências do Afrobeat em geral no Brasil acabam sendo mais visíveis através de seu caráter estético do que político. A abordagem da questão política de Fela Kuti através dos músicos brasileiros acaba então tomando outro viés, não mais de um discurso panfletário contra o poder vigente, mas mesmo assim não deixa de ser política. Ela é política na medida em que busca a afirmação de uma estética africana, das tradições negras tão renegadas pela sociedade ocidental, elevando as culturalidades africanas ao status de um saber primordial. É esta escolha pela afirmação das identidades africanas, um engajamento pela valorização da cultura, que caracteriza em geral o fazer político do discurso brasileiro acerca do Afrobeat. Stuart Hall aborda a questão da quebra do paradigma dessas identidades tradicionais no mundo moderno quando diz que: [...] as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o individuo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado. A assim chamada “crise de identidade” é vista como parte de um processo mais amplo de mudança, que está deslocando as estruturas e processos centrais das sociedades modernas e abalando os quadros de referência que davam aos indivíduos uma ancoragem estável no mundo social. (HALL, 2005, p.7) A internet, assim como identificamos na fala de Letieres Leite, torna-se um veículo privilegiado no acesso à informação. Ela torna-se um fator elementar no auxílio a essa quebra de paradigmas da sociedade moderna, nutrindo no mundo digital uma gama de possibilidades de formação de identidades múltiplas, heterogêneas, caracterizadoras de uma modernidade onde é possível assumir uma determinada identidade mesmo sem possuir vínculos físicos com os elementos que a caracterizam. A formação identitária de muitos desses músicos brasileiros com a África, portanto, acaba surgindo deste modo, além de em uma natural vivência com as manifestações culturais afro-brasileiras, através também de uma afetividade via meios digitais. 49 Entrevista de Letieres Leite concedida a Guileherme Ribeiro do Portal MTV. Publicada em 06 de janeiro de 2012. Disponível em: <http://mtv.uol.com.br/musica/letieres-leite-negros-estao-longe-desseafrobeat>. 71 Néstor García Canclini (2008), em seu livro sobre os Leitores, espectadores e internautas na contemporaneidade, ao citar o sociólogo Manuel Castells sobre novas formas de interatividade na era digital, assinala que: A observação da “tecnosociabilidade” mostra que os recursos de comunicação sem fio não são apenas ferramentas, mas, sim, “contextos, condições ambientais, que tornam possíveis novas maneiras de ser, novas cadeias de valores e novas sensibilidades sobre o tempo, o espaço e os acontecimentos culturais. (CASTELLS et all, 2007 apud GARCIA CANCLINI, 2008, p.53) Este discurso de interação social através dos meios digitais corrobora com um pensamento acerca da construção identitária musical de novos audiófilos com a África. A percepção dos artistas brasileiros acerca da heterogeneidade musical do universo que os cerca pode ser representada através da fala de Kiko Dinucci, quando este afirma que: A maioria dos músicos da nossa geração têm algum namoro com a África. Seja no ritmo, na linha melódica... Não acho que existem grupos de música africana e nem tem que ter. Está bom assim. Cada um fazendo seu some a gente vai parar na África ou no Japão. Ou em qualquer lugar que a gente queira, porque a gente tem internet e pode ouvir músicas do mundo inteiro. 50 (DINUCCI, 2011) O músico Thiago França deixa entrever uma ideia coletivizada de uma África vivenciada através da internet, segundo o panorama musical de uma cena paulista constituída por um conjunto de amigos integrantes de grupos como o Metá Metá, o Sambanzo, da banda do rapper Criolo, entre outros dos quais ele participa, ao afirmar sua vivência sobre a África: “A gente nunca foi lá. É YouTube, Wikipédia... Foi a internet. A gente foi sacar Fela Kuti vendo essas coisas, vídeos de shows... Foi o YouTube51.” (FRANÇA, 2011). Muitos destes músicos também captam estas transmissões de africanidades através das interferências de outros artistas brasileiros, os quais segundo eles seriam detentores desta vertente africanista. As percepções de África, por conseguinte podem perpassar uma gama múltipla de referências musicais à medida que possibilitem aos ouvintes a identificação de seus elementos como constituintes de uma noção de África, através de um referencial que estes já possuam ou mesmo que sejam construídos imageticamente através dos elementos sonoros presentes nas composições. Para o guitarrista Cris Scabello, do grupo Bixiga 70, por exemplo, “o afrobeat veio mais 50 Entrevista de Kiko Dinucci concedida a Douglas Vieira por ocasião da matéria A África de cada um, publicada no caderno Divirta-se do jornal Estado de São Paulo. Publicada em 13 de outubro de 2011. Disponível em: <http://blogs.estadao.com.br/divirta-se/africa-brasil/>. 51 Entrevista de Thiago França concedida a Douglas Vieira por ocasião da matéria A África de cada um, publicada no caderno Divirta-se do jornal Estado de São Paulo. Publicada em 13 de outubro de 2011. Disponível em: <http://blogs.estadao.com.br/divirta-se/africa-brasil/>. 72 travestido pelo Gilberto Gil, pelo Chico Science, pelos ‘Afro-Sambas’, mesmo sendo anterior ao Fela.52” (SCABELLO, 2011). Outras percepções de proximidade musical podem ser também sentidas no diálogo de Maurício Fleury do Bixiga 70 com Kiko Dinucci, quando falam sobre a possível presença de uma musicalidade afro-brasileira próxima ao Afrobeat: Kiko: Tem coincidências no Brasil. Mauricio: Tem a música ‘Saudação a Toco Preto’, do Candeia. Kiko: Essa música é um ponto de terreiro. Mauricio: Mas tem arranjo de afrobeat, com metais.53 (DINUCCI; FLEURY, 2011, p.4) O grupo paulistano Bixiga 70 é um dos que fez referências diretas ao Afrobeat e à Fela Kuti. A ideia do grupo surgiu durante as sessões de gravação do disco Táxi Imã, do compositor Pipo Pegoraro, que traz na musicalidade do disco várias referências ao Afrobeat e a uma estética lírica africana, o que levou o jornalista Marcos Xi a considerálo como “[...] uma verdadeira volta às origens africanas que existem em nós, tanto em letra quanto em arranjo [...] 54 “ (XI, 2012). O nome Bixiga 70 é uma homenagem à banda Afrika 70 de Fela Kuti, e foi retirado do endereço do local onde eles tocaram: Bairro do Bexiga, número 7055. A primeira apresentação do grupo foi em 2010, ainda sob o nome de Grupo Malaika, durante a Festa Fela, realizada dentro da programação do Fela Day, evento realizado mundialmente no dia 15 de Outubro em comemoração ao nascimento do músico Fela Kuti. Porém, depois desta ligação inicial com o Afrobeat em seu surgimento, o grupo acabou fazendo a inserção de outros ritmos em seu repertório, abrangendo a sonoridade da banda à influência dos outros projetos compostos por seus integrantes. Maurício Fleury, tecladista do grupo, fala sobre as influências no som do grupo: Nosso interesse não é tocar só afrobeat, menos ainda de maneira "tradicional". O que fazemos é seguir o hibridismo inerente ao afrobeat, a fusão de ritmos tradicionais com instrumentos elétricos e a linguagem ocidental do jazz, da música latina etc. A polirritmia africana é muito 52 Entrevista de Cris Scabello concedida a Douglas Vieira por ocasião da matéria A África de cada um, publicada no caderno Divirta-se do jornal Estado de São Paulo. Publicada em 13 de outubro de 2011. Disponível em: <http://blogs.estadao.com.br/divirta-se/africa-brasil/>. 53 Trecho da Entrevista com Kiko Dinucci e Maurício Fleury concedida a Douglas Vieira por ocasião da matéria A África de cada um, publicada no caderno Divirta-se do jornal Estado de São Paulo. Publicada em 13 de outubro de 2011. Disponível em: <http://blogs.estadao.com.br/divirta-se/africa-brasil/>. 54 Matéria de Marcos Xi sobre o disco Táxi Imã de Pipo Pegoraro para o site RockinPres. Publicada em 9 de maio de 2012. Disponível em: <http://www.rockinpress.com.br/2012/05/09/o-disco-solo-da-bandapipo-pegoraro-taxi-ima/>. 55 Entrevista do Bexiga 70 concedida a Mariana Caldas do Portal MTV. Publicada em 25 de agosto de 2011. Disponível em: < http://mtv.uol.com.br/musica/bixiga-70-faz-show-no-studio-sp-nesta-quinta>. 73 presente no Brasil, acaba sendo natural para os artistas aliar essas influências às que temos.56 (FLEURY, 2011) A gente começou com sonoridades afro. Mas quando a banda começou a andar, e a gente sempre buscou um trabalho autoral, a galera foi voltando para o que já tinha. É sempre falar da gente. Não é ficar tentando reproduzir o Fela. Isso não passa nem perto da gente. São 10 caras, cada um com um background diferente. Todos procuravam esse suingue e todo mundo está feliz de colocar isso no Bixiga.57 (FLEURY, 2011) Como podemos perceber, o discurso construído por alguns artistas quanto às referências do Afrobeat em seus trabalhos demonstra algumas vezes certo receio quanto à sua identificação com o estilo. Outros grupos porém fazem questão de frisar sua relação com o gênero, chegando a intitularem-se como legítimos representantes do gênero no país, como o grupo carioca Abayomy Afrobeat Orquestra, intitulado como” a primeira orquestra de afrobeat do Brasil58”, e que assim como o Bixiga 70, também surgiu a partir do Fela Day, na realização da 1ª edição carioca do evento. Além de executar diversas versões de Fela Kuti em seus espetáculos, a banda chegou a gravar uma música com o lendário baterista Tony Allen, que o levou a dizer que “fora os filhos do Fela ninguém faz Afrobeat assim, nem na Nigéria.59”. O primeiro show de Tony Allen no Brasil inclusive, realizado em 26 de junho de 2004, no SESC Pompéia, foi um dos motivos pelo crescente interesse dos brasileiros sobre o gênero, trazendo a possibilidade de ver de perto um dos criadores do Afrobeat. Nesta mesma data, nove anos depois, em 2013, Tony Allen voltou a tocar em São Paulo depois de algumas outras vindas à cidade, como no evento Brasilintime e na Virada Cultural, só que desta vez para fazer um show com o grupo Metá Metá na Serralheria. A formação atual do Metá Metá inclusive, com a adição de baixo, bateria e percussão, passou a ser integrada ao grupo quando da abertura que Kiko Dinucci fez do show de Femi Kuti, filho de Fela Kuti, no evento Batuque - Conexão África-Brasil, em dezembro de 2010, no SESC Santo André. Allen também estabeleceu relação com outros grupos brasileiros como o Mamelo Sound System, grupo paulista de Rap que 56 Entrevista de Maurício Fleury concedida a Bruno Natal de O Globo, por ocasião da matéria Transcultura: As múltiplas influências de Pipo Pegoraro. Publicada em 25 denovembro de 2011. Disponível em: <http://oglobo.globo.com/cultura/transcultura-as-multiplas-influencias-de-pipo-pegoraro3315277>. 57 Entrevista de Maurício Fleury concedida a Douglas Vieira por ocasião da matéria A África de cada um, publicada no caderno Divirta-se do jornal Estado de São Paulo. Publicada em 13 de outubro de 2011. Disponível em: <http://blogs.estadao.com.br/divirta-se/africa-brasil/>. 58 Retirado do release escrito por Lucio Branco e presente no site oficial do grupo. Disponível em: < http://abayomy.com/site/index.php/banda>. 59 Citação de Tony Allen presente em release do grupo. Disponível em: <http://www.pqpproducoes.com/Abayomy_Release.pdf>. 74 teve participação de Allen na faixa Bença, Balanço & Chumbo Grosso do disco VelhaGuarda 22, lançado em 2006, que rende homenagem a Fela Kuti e aos Afro-Sambas e que conta com a participação dos integrantes da Nação Zumbi. O cantor pernambucano Otto também possui influência do Afrobeat em seu trabalho. O último disco do cantor, The Moon 1111, é referenciado por ele como uma mistura entre Fela Kuti, ao que ele atribui ser devido à pegada do baterista e produtor Pupillo, e o disco The Wall do grupo de rock progressivo inglês Pink Floyd60. Otto inclusive chegou a fazer uma dobradinha no palco com a banda Abayomy Afrobeat Orquestra na festa África, na ladeira do Vidigal no Rio de Janeiro, que em sua primeira edição recebeu o guitarrista nigeriano Oghene Kologbo, que tocou no grupo Afrika 70 de Fela Kuti, acompanhado no show pela Abayomy, e que também desenvolve trabalhos com outros grupos brasileiros como o Iconili e o Amplexos. No meio do revival a Fela Kuti, a organização internacional Red Hot, dedicada à luta contra a AIDS, e que lança constantemente coletâneas musicais temáticas visando angariar fundo à sua causa, lançou em 2002 o disco Red Hot + Riot - The Music and Spirit of Fela Kuti, que entre diversos artistas internacionais renomados, contava com a participação dos brasileiros Jorge Ben Jor, Lenine, Monaural e o produtor Mario Caldato Jr. Outros grupos ainda pertencentes a vários cenários da música brasileira contemporânea também se identificam com o Afrobeat ou ao menos trazem alguma influência estética ou sonora em seus trabalhos, entre eles: Otto, Monjolo, Afroelectro, Iconili, Tibless, Anelis Assumpção, Seu Jorge & Almaz, Iara Rennó, Coletivo Instituto, Lucas Santtana, Bruno Morais, Afrobombas, A Roda, Rael da Rima, Afrika Gumbe, André Abujamra, Guardaloop, Orquestra Contemporânea de Olinda, André Sampaio & os Afromandinga, Mariana Aydar, Burro Morto, Aláfia, Zebrabeat Orquestra, Abeokuta, entre tantos outros. 60 Depoimento de Otto no teaser de lançamento do disco The Moon 1111. Disponível em: <http://vimeo.com/31933801>. Acesso em: 18 ago. 2013. 75 3.3. Reestruturações estéticas Devido a um processo colaborativo existente entre artistas dessa geração de músicos brasileiros, o ideário de África presente na obra de alguns autores acaba reverberando na de outros, que somados às suas próprias vivências e concepções anteriores de África acabam possibilitando a criação de novas identidades africanizadas, que devido ao montante de obras coletadas por nós que se encaixam nestes referenciais, nos permite visar à existência de um panorama musical contemporâneo pautado em matrizes africanas. Um dos processos de busca destas matrizes africanas é aplicado através da percepção da presença destas influências na própria música brasileira. O projeto GomaLaca61, desenvolvido pela radialista Biancamaria Binazzi e pelo jornalista Ronaldo Evangeslita, é responsável por fazer um resgate de músicas brasileiras registradas em discos de 78 RPM do início do século XX. Além de desenvolver um programa radiofônico voltado à divulgação das descobertas feitas pelo projeto, que foram realizadas na Discoteca Pública Municipal Oneyda Alvarenga, criada em 1934, pelo pesquisador Mário de Andrade, e a exposição de discos originais em 78 RPM, foi realizado em dezembro de 2011 um show no Centro Cultural São Paulo onde uma série de cantores, acompanhados pelo grupo Sambanzo, fizeram releituras das canções encontradas no acervo. Entre os cantores convidados estavam Luisa Maita, Bruno Morais, Juçara Marçal, Marcelo Pretto, Emicida e Rodrigo Brandão. Podemos utilizar este projeto como um ponto de partida para nossas elucubrações acerca do processo de identificação do grupo de compositores contemporâneos o qual estamos tratando, com o universo fonográfico de temáticas afrobrasileiras, além de um processo de releituras destas canções com base em outros universos musicais africanos, fazendo a ponte contrária na diáspora. Ronaldo Evangelista fala sobre o processo de escolha dos músicos e do repertório para o espetáculo, demonstrando o processo de aproximação entre estes dois universos musicais tão distante temporalmente: Quando resolvemos fazer esse Volume I, de saída decidimos que um primeiro foco de interesse era a variedade rítmica e a riqueza daquele repertório além de sambas e marchinhas. Claro que ouvimos todas as Aracys de Almeida e Almirantes que pudemos encontrar, mas nos concentramos especialmente em caçar pontos de macumba estilizados, cantos de trabalho 61 Mais informações em: <http://www.goma-laca.com/>. 76 adaptados, citações africanas na música pop das primeiras décadas do século XX. Também logo percebemos que uma das possibilidades mais interessantes era investigar a contemporaneidade das músicas: não um trabalho meramente de tributo museológico, mas sim de recontextos. Nomes como Thiago França e Kiko Dinucci eram perfeitos para essa abordagem, e o Sambanzo em si tem desenvolvido um trabalho impressionante entre jazz, afrobeat, música brasileira, latina, criação espontânea e coletiva. Tudo fez sentido.62 (EVANGELISTA, 2011) O grupo Metá Metá, por exemplo, retirou do repertório do show especial do Goma-Laca a composição Man Feri Man, gravada originalmente em 1956, pelo grupo Jorge da Silva e Seu Terreiro, e interpretada no espetáculo por Juçara Marçal, para integrar ao seu repertório, chegando a gravá-la em seu segundo disco. A música é derivada de um toque de Candomblé ao orixá Oxum, porém em um andamento rítmico diferente dos tocados em terreiros, e foi a partir deste arranjo que o grupo desenvolveu o seu próprio. Já o grupo Sambanzo, que é formado por membros do Metá Metá, fez o processo contrário, incorporou ao show uma composição de seu repertório. O grupo fazia a abertura de seus shows com a música O sino da igrejinha, um tradicional ponto de umbanda de Exu Tranca-Rua, e que durante as pesquisas do Goma-Laca foi encontrado sob o título Tranca-Rua, num fonograma de 1954, gravado por J.B. de Carvalho. Outro fonograma adaptado para o espetáculo foi Ogum-Yára, gravada originalmente por Jorge Fernandez em 1956, composição que trata sobre uma falange do orixá Ogum cultuada na Umbanda, com qualidades do orixá Iemanjá, aqui denominada de Yara (ou Iara), fazendo um sincretismo com esta entidade indígena que assume a forma de sereia, visto que em alguns locais do Brasil este orixá também é cultuado nesta forma antropozoomórfica, metade peixe, metade humano. No show, o arranjo da composição que foi originalmente catalogada como pontos-cruzados, virou um groove com levada Afrobeat, promovendo uma renovação estilística de uma sonoridade afro-religiosa produzida na diáspora, com base em sonoridades vindas do continente africano, através de outra sonoridade que sofreu processo inverso, que é o caso do afrobeat, que originado na África, sofreu influência contrária, a partir de ritmos diaspóricos trazidos de volta à matriz africana. Uma série de outras referências sonoras de outros períodos também são visíveis nas obras destes artistas, explícitas ou implícitas. Juçara Marçal e Kiko Dinucci gravaram no disco Padê, de 2007, uma versão da música Cabocla Jurema, lançada 62 Entrevista com Ronaldo Evangelista concedida a Ramiro Zwetsch do blog Radiola Urbanda. Publicado em: 2 de dezembro de 2011. Disponível em:<http://blog.revistaurbana.com.br/?p=762>. Acesso em: 17 set. 2012. 77 originalmente em 1977 pelo sambista Candeia, importante representante das tradições de matrizes africanas no mundo do samba, um constante em sua obra, e também responsável pela gravação da música Saudação a Toco Preto, considerada por muitos como uma das precursoras do afrobeat no Brasil, como citado anteriormente. Diversas composições da década de 70, de artistas que tinham em trabalhos uma forte ligação com a África, também foram incluídas no repertório de artistas contemporâneos. Entre elas estão a regravação da música Pai João, gravada originalmente em 1972 pelo grupo Tribo Massáhi, e regravada em 2010 pelo cantor Seu Jorge e o grupo Almaz, formado pelos músicos Lucio Maia e Pupillo da Nação Zumbi e multi-instrumentista Lincoln Antonio; a música Cordeiro de Nanã, gravada originalmente pelo trio Os Tincoãs em 1977 e regravada pela cantora Thalma de Freitas em 2004; Meus Filhos, gravada originalmente por Jorge Ben em 1976, no disco África Brasil, e regravada pela Abayomy Afrobeat Orquestra em 2013, com participações do rapper Bnegão e do baterista nigeriano Tony Allen; os Afro-sambas de Baden Powell e Vinícius de Moraes, que renderam discos completos como Mares Profundos, da cantora Virgínia Rodrigues; além de uma série de outras regravações que nos ajudam a corroborar a importância que estes artistas atribuem às presenças de África na música popular brasileira. 3.4. Afro-religiosidades Provavelmente a temática mais abordada entre os artistas que aqui analisamos, concernente às concepções de África construídas por estes, seja a das relações afroreligiosas. O imaginário mítico das religiões de matrizes africanas e afro-brasileiras é em si muito complexo e diversificado, e as possibilidades de acesso a essas informações têm sido ampliadas devido a uma cada vez maior abrangência que estas religiões tem tido nos últimos anos na sociedade brasileira. Percebemos aqui um interesse cada vez mais crescente e constante dos artistas aqui analisados com estas temáticas, como vai sendo perceptível ao longo deste texto, chegando a conceber projetos ou mesmo discos inteiros voltados aos universos afroreligiosos. A invocação às divindades africanas e afro-brasileiras é recorrente em suas composições, demonstrando em geral certa afinidade com este meio, não se restringindo 78 apenas ao processo de observação participante, mas também uma participação observativa, integrando músicos criados dentro dos terreiros com outros que devido às suas pesquisas acabam se integrando às comunidades religiosas. Esse é o caso de uma série de grupos que tem em geral, entre os seus percussionistas, ogãs de terreiros tradicionais, com inserção desde jovem no cotidiano dos terreiros, muitas vezes por tradição familiar. O papel do ogã é essencial nos terreiros, pois através dele é feita a invocação às entidades, através do toque específico de cada uma. O papel do ogã e dos instrumentos no ritual do Candomblé é assinalado por Rita Amaral e Vagner Gonçalves da Silva (1992) ao afirmarem que: No candomblé, os atabaques ou "couros" (tambores) com os quais se invocam as divindades são tidos como seres vivos e sua utilização reservada apenas aos ogãs alabês (instrumentistas iniciados). Cabe a eles a execução do repertório apropriado a cada divindade, que compreende um conjunto de cantigas diferenciadas, com ritmos próprios. (AMARAL; SILVA, 1992,163) Podemos perceber, portanto, através desta afirmação a importância central que os ogãs representam na parte litúrgica do Candomblé. O papel da música e da cerimônia nas religiões de matrizes africanas também é descrito por Amaral e Silva (1992): "Toque" é o nome que se dá, genericamente, à cerimônia pública de candomblé. Como o próprio nome revela, "toque", esta é uma cerimônia essencialmente musical. Seu objetivo principal é a presença dos orixás entre os mortais. Sendo a música uma linguagem privilegiada no diálogo dos orixás, o toque pode ser entendido como um chamado, ou uma prece, pedindo aos deuses que venham estar junto a seus filhos, seja por motivo de alegria ou de necessidade destes. (AMARAL; SILVA, 1992, p.162) A presença do toque portanto, mesmo que aqui aplicada a um ato profano, do espetáculo, ou à música não-sacra, têm também papel essencial na invocação às entidades, através de um meio singular de se louvar ou se comunicar com elas. Isso é garantido em alguns grupos pela presença de ogãs em suas formações, ou quando não, no estudo dos toques de terreiro, chegando em algumas propostas a incorporar aqueles ritmos ancestrais em outras instrumentações, que não apenas os instrumentos percussivos tradicionais dos terreiros, como Ilú, Atabaque, Abê, Agogô, etc. O músico pernambucano Otto é um exemplo da presença da religiosidade no palco. Sua banda é composta por dois percussionistas, André Malê e Marcos Axé, que são ogãs de terreiro em Recife, de tradição Jeje Nagô, e por vezes também tem a participação de Valter Pessoa de Melo, percussionista da Nação Zumbi e ogã com tradição no Candomblé Angola, que utiliza o nome artístico Toca Ogan. Essa presença de percussionistas com formação na música sacra dos terreiros acaba transparecendo na sonoridade da banda, tanto nos shows quanto nos discos, chegando a incorporar alguns 79 toques tradicionais de orixás e de caboclos em suas músicas. Em alguns momentos, a percussão parece invocar o início do xirê63, ou da gira64, como na música Anjos do Asfalto, do disco Condom Black de 2001, na qual Otto invoca o orixá Exu: Ah, Exu mandou avisar Que os anjos do asfalto Tão em todo lugar A letra surgiu de uma ida do compositor ao carnaval de Salvador, onde ele vivenciou experiências em terreiros de Candomblé. Na rua, Otto viu os bombeiros utilizando vermelho e preto, cores que representam o orixá Exu, daí surgiu a ideia da composição, onde Exu avisa que os “anjos do asfalto”, os bombeiros, estão em todo lugar65, como que anunciando uma jornada segura. Outros orixás vão sendo invocados ainda ao longo do disco, como Xangô e Iemanjá em Cuba, e Oxalá em Retratista. O próprio nome do disco é bem imagético, Condom Black, um trocadilho entre Candomblé e camisinha preta (black condom), sobre o que o cantor diz: É camisinha preta, é vestir a camisa. Não é a preta que gosta de mim, sou eu que gosto da preta. Precisava de uma coisa diferente, não sabia mais o que fazer. Pintei de preto. A única coisa interessante que via no país era esse cisma dos 80%: na favela, na cadeia e no Brasil, 80% das pessoas são pardas ou pretas. [...] Condom Black não é black music, é um ser humano cantando música popular brasileira, que é 80% preta.66 (MAXIMILIANO, 2001) No intuito de fazer essa representação imagética, o cantor se pintou de preto para a sessão de fotos do Condom Black, representando a estética negra, que é a inspiração do seu disco67. Esta estética negra voltada às raízes afro-brasileiras é presente em todos os discos de Otto, um legado do movimento Manguebeat, que propunha a fusão de ritmos locais tradicionais, como o Maracatu, Coco e Ciranda, ritmos de origens negrobrasileiras, profundamente conectados com as tradições africanas, juntamente com o Funk, Rock e Hip hop, ritmos negros da América do Norte, que modernizam as tradições culturais africanas. 63 Cerimônia ritual do Candomblé em homenagem aos orixás, composta de música, dança e canto. Termo designativo das sessões de Umbanda 65 Saiba mais na matéria Otto perde a cor, de Pedro Alexandre Sanche, publicada na Folha de São Paulo em 22 de outubro de 2001. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2210200106.htm>. 66 Entrevista com o cantor Otto Maximiliano concedida a Pedro Alexandre Sanches da Folha de São Paulo, por ocasião da matéria Otto perde a cor. Publicada em 22 de outubro de 2001. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2210200106.htm>. 67 Saiba mais em: http://www.terra.com.br/musica/entrevista_otto.htm 64 80 É interessante notar em como esse vasto universo afro-religioso se conecta ao repertório destes artistas, e no caso específico dos que são ogãs, em como esta vivência se mantém em seus repertórios. Os três percussionistas de Otto, por exemplo, sem encontram em processo de gravação de discos solo, e em todos os projetos estas referências religiosas fazem parte do processo de composição, ou mesmo ditam a temática do disco, como é o caso de Toca Ogan, que está em processo de gravação do seu trabalho Desatando o Laço, voltado à instrumentação do berimbau, e de profundas raízes com o Candomblé. Sobre o nome do trabalho, o músico diz: “Isso vem do candomblé do qual eu faço parte, o Nação Angola. Nele, tudo é feito na base do laço. Quando alguém está com algum problema e consegue resolver, a gente diz que ele conseguiu desatar o laço, desatar o problema.68” (OGAN, 2012). O músico André Malé, está em produção do disco com o seu Coco de Malê, voltado às tradições do coco de roda, aprendido em sua vivência nos terreiros de Candomblé. Já Marcos Axé, a princípio não segue uma referência específica, mas utiliza ritmos como o samba, o Reggae e o Afrobeat. Ogan, Axé e Malê já participaram de outros projetos voltados às musicalidades negras como o Coco de Mazuca, “[...] totalmente inspirado nos trabalhos realizados pela ex-mãe-de-santo Maruca e pelos pais-de-santo Seu Marinho e Seu Humberto [...]”69 (MYSPACE, 2006), e que segue a cartilha do mestre João da Ciência, tradicional ogã que foi mestre de Toca Ogan, e do grupo Pra Mateuz Poder Dançar, que além de ritmos tradicionais afro-brasileiros, toca ritmos caribenhos e africanos. No grupo Nação Zumbi, Toca Ogan demonstra através de suas composições uma ligação muito forte com a Jurema, religião de tradição afro-indígena, exaltado a semente da jurema, essencial nos rituais da religião, como na música Vai Buscar: “Não fale dessa Jurema se você não a conhece”; e exaltando as entidades afro-indígenas dos caboclos, na canção Remédios. Toca Ogan é citado na composição de Otto, Único Sino, lançada no disco Condom Black em 2001, que demonstra esta relação existente entre o ogã e a religião: Único sino tocava Anjo vermelho cuida de mim Vem combater Eu combatia 68 Entrevista com Toca Ogan concedida a AD Luna do Jornal do Commercio. Publicada em: 30 de setembro de 2012. Disponível em: <http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/cultura/musica/noticia/2012/09/30/toca-ogan-da-nacao-zumbigrava-album-solo-58011.php?utm_source=twitterfeed&utm_medium=twitter>. Acesso em: 8 de julho de 2013. 69 Release do grupo Coco de Mazuca no Myspace. Disponível em: <http://www.myspace.com/cocodemazuca>. Acesso em: 26 de fevereiro de 2007. 81 Meu pai dizia Vou proteger E o tambor tocava Bonitas melodias Como é lindo Ver o Toca Ogan tocar Único Sino pode nos remeter ao Adjá, sineta de metal utilizada no ritual de Candomblé com intuito de provocar o transe. O anjo vermelho pode corresponder ao orixá Exú, sendo assim uma representação de transe no rito, através da invocação do orixá com o uso da percussão e do adjá. Ou ainda, numa leitura de Otto: “Único sino é a última chance de sermos um país, o anjo vermelho remonta ao nosso presidente, Lula. Isto seria um dos caminhos por onde esta música vai. Enfim justiça, xangô!” (MAXIMILIANO apud LIMA, 2008, p.111). Portanto, a música concebe também um caráter político, representada pela primeira eleição de Luís Inácio Lula da Silva como presidente, no período em que a composição foi feita, representando a justiça social contida neste ato através da eleição de um homem que veio do povo, sendo o vermelho a cor do partido representante do presidente, o PT, ao mesmo tempo em que representa também o orixá Xangô, que tem como uma de suas principais características ser o orixá ligado à justiça. Xangô é um orixá de culto muito tradicional no Brasil, chegando a ter seu nome como denominador do culto dos orixás no Nordeste. Esta tradição afro-religiosa do orixá acaba se estendendo para a música, sendo talvez o orixá mais mencionado na música popular brasileira. A música Afoxoque, do compositor paulista Curumin, lançada no disco Arrocha de 2012, é um exemplo deste culto a xangô na MPB, descrevendo na composição o uso de elementos característicos deste orixá, como o Oxé, martelo que possui lâminas nos dois lados, que corta em duas direções opostas, símbolo da justiça, demonstrando a sua imparcialidade, pois qualquer lado pode sair perdendo ou ganhando; o choque, dado pelo raio, pois Xangô é senhor dos raios; e a pimenta, elemento sempre presente em suas comidas votivas: Se me andam a falar na liberdade Isso cheira bem, cheira a pimenta Palavra que me arde dentro da boca Língua que faísca como um machado Machado de dois gumes que é igual pros dois lados Bate o machado que é igual pros dois lados Afoxoque ê Afoxoque ê... 82 Outra composição que fala sobre este orixá, mas composta de elementos que deixam ainda menos aparente esta menção do que a música anterior é Raio Negro, gravada pelo grupo pernambucano Monjolo em 2006. A letra fala sobre a invocação e chegada do orixá, misturando elementos litúrgicos do orixá com linguagem musical, como o delay do space eco, que é um efeito musical produzido por um pedal, no caso aqui representado através da energia do raio de Xangô: Alguém mandou chamar, eu vim Alguém mandou chamar Trago chuva de raios pra saudar a multidão Vim de longe voando no espaço Trago vida, esperança e a saudade das flores Pra curar todos os males, aliviar todas adores Alguém mandou chamar, eu vim Alguém mandou chamar Trago o delay do space eco Sou a voz do trovão Surfando ondas sônicas Harmonia atômica No beat acelerado um coração Descompassado até o fim dessa canção Eu trago a paz Outra parte importante nestas religiões afro-brasileiras é a festa, a celebração, momento máximo de aproximação dos homens com os orixás. Rita Amaral (2005) afirma que: “É na festa que os orixás vem à terra, no corpo de suas filhas, com a finalidade de dançar, de brincar no xirê, termo que em Ioruba significa exatamente isto: brincar, dançar, divertir-se.” (AMARAL, 2005, P.48) A música Janaína, composta por Otto e lançada no disco Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos, de 2009, feita em homenagem ao orixá Iemanjá, a Rainha do Mar, como também é conhecida, fala sobre a tradicional festa realizada na Praia do Rio Vermelho, bairro da cidade de Salvador na Bahia, no dia dois de fevereiro de cada ano, onde uma série de oferendas são entregues no mar por milhares de pessoas, tendo à frente uma colônia de pescadores da localidade. Disse um velho orixá pra oxalá Pra acreditar Pra não temer, temer, temer Desses tempos verdadeiros Tempos maus Dia 2 de fevereiro Dia de Iemanjá Vá pra perto do mar Leve mimos pra sereia Janaína Iemanjá Pra perto do mar Leve mimos pra sereia 83 Janaína Iemanjá Havia rosas no mar Havia ondas na areia Lá em Rio Vermelho Em Salvador Vamos dançar Dia 2 de fevereiro Dia de Iemanjá Leve mimos pra sereia Janaína Iemanjá Disse um velho orixá pra oxalá Pra não temer Pra não temer Dia 2 de fevereiro Festa lá no Rio Vermelho Em Salvador vamos dançar Leve mimos pra sereia Janaína Iemanjá Havia rosas no mar Havia ondas na areia Vá brincar no Rio Vermelho A festa de Iemanjá Salvador está em festa Vou cantar Vou cantar Pra saudar sereia Vai brincar na areia Para acreditar Pra saudar sereia Vista azul e branco Dia de lua cheia A letra da composição começa falando um conselho de Iemanjá ao orixá Oxalá, seu esposo segundos algumas tradições iorubanas, para não temer, que tudo vai dar certo. Em seguida ela fala sobre a realização da festa, em como o orixá deve ser saudado, aqui no caso também representado pela sereia, uma simbologia mais comunmente utilizada pela Umbanda. Presentes são ofertados ao orixá, para que tudo dê certo. Jogar rosas, vestir azul e branco, são alguns “mimos” para saudar o orixá. Em certo momento a composição anuncia: “Vai brincar na areia, para acreditar”, falando sobre a possibilidade de percepção da fé através da participação da festa, de ver para crer, de sentir a energia pulsante causada pelo êxtase coletivo. Como podemos ver, a música e a festa tem papéis importantes no rito de incorporação dos orixás, que é o momento em que os homens tem a possibilidade de conviver em meio a eles novamente. É o momento em que os orixás saem de sua morada mítica em uma África ancestral, e vem ensinar os homens através da dança, da 84 música, do rito. Mais do que elemento meramente “cenográfico”, portanto, a música tem papel essencial na ritualística do terreiro, o que é corroborado por Rita Amaral e Vagner Gonçalves da Silva (1992), quando dizem que: A música, no candomblé, tem um papel mais significativo que o mero fornecimento de estímulos sonoros aos diversos rituais. Ela pode ser entendida como elemento constitutivo do culto, dando forma a conteúdos inexprimíveis em outras linguagens, termo aqui entendido como articulação de signos e símbolos. Todos os rituais do culto estão apoiados também na música, que mostra um caráter estruturante das diversas experiências religiosas vividas por seus membros. Do paó (seqüência rítmica de palmas usada para reverência) ao toque (xirê), a música continua sendo parte de cada cerimônia, constituindo-a, delimitando situações e ordenando o conjunto das práticas extremamente detalhadas. (AMARAL; SILVA, 1992, p.162). 3.5. A busca de uma reparação à África As reflexões acerca do continente africano e de suas influências para a cultura nacional também são representadas neste novo cenário da música nacional. As relações destes compositores com a diáspora africana chegam a causar opiniões um tanto controversas. Se por um lado, em parte, eles reclamam que as mazelas causadas às etnias negras se devem ao tráfico de escravos, retirando seus antepassados à força de “mãe África” e impondo toda série de maus tratos e restrições ao seu povo, também são observados aspectos positivos da diáspora, através do vigor demonstrado pelo povo negro em não deixar-se escravizar passivamente, e pela força de suas culturas, que se sobrepuseram às tradições europeias que lhes eram impostas, garantido deste modo a perpetuação de seus saberes ancestrais. A composição Diáspora, do cantor carioca Mc Bigulí, presente no disco Brasil Riddims Vol. 1 de 2006, do grupo Digitaldubs Soundsystem, fala sobre o sentimento de pertencimento dos negros com a África, modificado a partir de suas relações com o continente americano através da diáspora: Estou aqui por um acaso, mas não é o caso de reclamar Sou preto e por isso podia estar em qualquer lugar Faço parte da diáspora negra, fui tirado do outro lado do mar E de uma forma ou de outra eu podia estar em qualquer parte da América Sou preto e por isso me sinto preto e livre pra fazer música de gueto Seja em Kingston, Nova York ou no Rio de Janeiro Música de preto, Samba, Hip-hop, Reggae, Dub de qualquer espécie Música de gueto, Samba, Hip-hop, Funk, o groove está no sangue Música de preto, música de preto 85 Antes de ser preto eu sou brasileiro Antes de ser brasileiro eu sou preto Meu canto vem do lamento, mas é alimento pra mente Porque só é constantemente sorridente quem é consciente Do seu sofrimento, do seu sofrimento Pode soar antagônico no seu aparelho estereofônico Mas não há dualidade na realidade Ela é única está dentro de você Só você pode ver Só você pode ver Podemos identificar aqui uma gama de pertencimentos, ligando as tradições musicais negras americanas através de uma procedência única, vinda a partir do continente africano. Stuart Hall afirma que, “Na situação da diáspora, as identidades se tornam múltiplas.” (HALL, 2011, p. 26), possibilitando assim uma identificação dos indivíduos não só com as culturas afro-brasileiras, mas afro-americanas em geral, pois no processo diaspórico, os negros escravizados podiam acabar tomando diversos rumos diferentes em seus desembarques nos portos atlânticos. Este processo possibilitou a formação de uma ampla série de gêneros musicais, entre os quais alguns são citados na composição, como o Reggae e o Dub, surgidos em Kingston, na Jamaica; o Funk e o Hip-hop, surgidos em Nova York, nos Estados Unidos; e o Samba, surgido no Rio de Janeiro, no Brasil, todos associados a tradições negras desenvolvidas nas Américas a partir do processo de diáspora, e que são de grande identificação com os jovens negros destes grandes centros urbanos. Sobre o papel da música na diáspora, Paul Gilroy (2001) enfatiza: Examinar o lugar da música no mundo do Atlântico negro significa observar a autocompreensão articulada pelos músicos que a têm produzido, o uso simbólico que lhe é dado por outros artistas e escritores negros e as relações sociais que têm produzido e reproduzido a cultura expressiva única, na qual a música constitui um elemento central e mesmo fundamental. (GILROY, 2001, p.161) O papel da música nesse processo de diáspora e da formação de uma identidade cultural partindo de matrizes africanas é bem particularizado por esta nova geração de compositores brasileiros, como na composição Zumbi/Zulu de 2006, do grupo de Rap paulistano Mamelo Sound System, que menciona o processo de formação da música ancestral africana e suas influências culturais para a formação das musicalidades da diáspora, aqui especificamente na cultura Hip hop: A história se inicia num momento bem distante Do tempo atuante, num cenário em que elefantes Mamutes e mutantes, eram coadjuvantes Mas pra ser preciso, preciso citar o exato instante: 86 Foi na primeira vez que um africano tocou tambor Lançou o ritmo da batida ancestral Que tal? Tamo ai até hoje o orador e mais o produtor da percussão digital Pois em algum ponto além do mar azul entre o sul do Bronx e a África do Sul foi forjada a fundação da Nação Zulu... A Nação Zulu aqui mencionada se refere ao coletivo de Hip hop do Bronx, Zulu Nation, formado pelo DJ americano Kevin Donovan, mais conhecido pelo seu nome artístico, Afrika Bambaataa, retirado de um chefe da etnia Zulu sul-africana chamado Bambatha kaMancinza, que no ano de 1906 liderou uma revolta armada contra as tropas coloniais sul-africanas devido a uma política econômica recém implantada e considerada injusta por seu povo. Este imaginário africano é constantemente representado no universo do Hip hop, e no Brasil se processa de modo semelhante, aproximando as barreiras que separam as culturas africanas tradicionais das concebidas na diáspora. A música Nossa África, do músico e produtor Alfredo Bello, também conhecido como DJ Tudo, lançada em 2008 no disco Garrafada, traz um discurso panfletário sobre o espaço social do negro no Brasil, um espaço minimizado devido aos esforços das elites brancas em solapar do negro qualquer possibilidade de crescimento social, intelectual ou econômico, no intuito de utilizá-los como mão de obra barata após o fim da escravidão, apontando índices que demonstram a situação de inferioridade social em que vivem os negros no país até hoje: Nossa África! Nossa África! O Brasil foi o último país a abolir a escravidão negra O Brasil é o segundo é o segundo país no mundo em população africana, somente a Nigéria tem mais negros Foi também o país que mais importou africanos para serem escravizados, 4 milhões 80% dos negros moram em favelas ou locais insalubres 87% das crianças fora das escolas são negras Somente 47% dos negros concluíram o ensino médio Somente 8% dos negros completa a faculdade A renda de uma família negra é duas vezes inferior à de uma família branca 40% dos homens negros são analfabetos, contra 18,5% dos brancos Nossa África! Nossa África! Mesmo com o racismo histórico, somos o país onde mais tradições africanas se recriaram Pois o tráfico trouxe também as suas culturas Temos a oportunidade de fazer essas culturas se perpetuarem pois várias áfricas existem em nossas almas A nossa música popular tem uma grande dívida com a cultura negra Todo brasileiro tem a proteção de um deus africano Quase todas as cidades do país existem festas públicas pra estes deuses 87 Todo o preconceito contra as religiões de origem africana reside na ignorância, na total falta de conhecimento Somos mais negros e índios do que pensamos E negamos esta essência Até quando, até quando? Laroyê Exú! A composição também aborda o papel das culturas negras africanas na formação da cultura brasileira, em como estes elementos estão presentes em nosso cotidiano, e que mesmo assim há uma grande dificuldade de aceitação do brasileiro enquanto negro ou mesmo descendente de africanos. Helenise da Cruz Conceição e Antônio Carlos Lima da Conceição (2010) ao discutirem A construção da identidade afrodescendente, afirmam que: Ser negro, muitas vezes está relacionado com a escravidão e a cor da pele, razão porque há uma série de expressão que disfarçam a condição de origem étnicoracial da população negra, a saber: marrons bombons, morenos claros, morenos escuros, pardos, café com leite, escurinho, canela, café, dentre outros que fazem parte de uma certa formalidade das relações sociais. É como se fosse deselegante se referira alguém como negro ou preto, a tentativa é de criar um certo eufemismo quanto a origem e de branquear o conteúdo identificatório. (CONCEIÇÃO; CONCEIÇÃO, 2010, p.3) Este processo identificação com as cultuas de origens africanas transcende aqui o lugar comum da auto-aceitação do indivíduo enquanto negro, procurando legitimar-se através da busca de suas origens, cedendo lugar à necessidade de uma conscientização geral sobre a importância do continente africano para a humanidade, do papel que suas etnias e culturas exerceram desde o berço da civilização e que possibilitaram novamente no processo de diáspora, do legado que estas civilizações forneceram e sobre o qual temos grande dívida, assim como aponta a composição Rainha, da cantora paulista Céu, presente em seu disco homônimo de 2005: Dê água pra Ela beber Dê roupa pra Ela vestir Saúde pra dar e vender Dê paz pra Ela descansar Adubo pra Ela crescer Dê rosas pra Ela enfeitar África, Cadê? Seu trono de Rainha Cadê? Dona da Realeza Cadê? Mãe da matéria-prima Cadê? Vai levar a vida inteira pra lhe agradecer 88 CONSIDERAÇÕES FINAIS O ato de apagar a África da memória de seus indivíduos foi algo constante dentro do processo de diáspora negra. Os traficantes de escravos faziam com que os negros cativos dessem voltas ao redor do Baobá, árvore considerada sagrada para muitas etnias africanas, antes destes embarcarem nos navios negreiros, gesto ritual que simbolizava que a partir dali suas histórias e seu passado deveriam ser esquecidos. Isso faria com que eles ressurgissem então como indivíduos cristãos, prontos a redimirem suas almas “pecaminosas” através de trabalhos pesados do outro lado do Atlântico. Porém, mesmo com a incessante imposição de valores culturais judaico-cristãos sobre os escravos africanos, suas memórias de África nunca foram esquecidas, sendo mantidas da maneira que fosse possível, muitas vezes chegando a serem adaptadas devido à nova realidade social em que se encontravam, e mesmo sendo ressignificadas através do processo de repasse oral destas tradições, mas sem permitir que sua essência fosse completamente perdida. O ato de rememoração de África constitui um processo reflexivo de identificação dos sujeitos sociais através de sua conexão com a ancestralidade, gerando a difusão de um pensamento afrocêntrico e permitindo a reconstrução de identidades anteriormente pautadas em valores culturais e sociais ocidentalizados. Perceber o continente africano e suas diversas culturas como caracterizadores de valor e importante apreensão demonstra-se um passo à diante no processo de reparação e reafirmação das identidades étnicas afro-brasileiras. As percepções de África existentes hoje na música popular brasileira estabelecem novos padrões de concepções acerca do continente africano, que nos permitem a revisão de grande parte dos estereótipos e preconceitos firmados na história da sociedade brasileira acerca das etnias e culturas de matrizes africanas aqui estabelecidas. A mudança nessas percepções tem demonstrado-se muito mais visíveis a partir dos últimos anos, como constata Livio Sansone (2003) ao afirmar que: No último século, verificaram-se grandes mudanças nos usos da “África” no Brasil. Os aspectos “primitivos” da cultura africana, que antes eram algo a exorcizar, adquiriram status na cultura popular e da elite. “África” passou a significar cultura e tradição dentro da cultura negra. “Afro” é um termo que representa um estilo de vida, que incorpora elementos da “África” ou da cultura africana na formação da identidade negra e na vida cotidiana — o acréscimo de um toque africano à experiência da modernidade. (SANSONE, 2003, p.133-134). 89 Como pudemos perceber ao longo do texto, os imaginários sobre África são temas constantes na música brasileira, presentes nos diversos períodos aqui abordados, mas que apresentam características sócio-culturais distintas de acordo com a época em são explorados. Assim como Norman Weinstein (1993) afirma sobre as representações imagéticas de África no jazz em A Night in Tunia: Não é uma questão de decidir qual estilo de Jazz não é verdadeiramente “africano”, tanto quanto reconhecer que todos estes estilos musicais representam movimentos de um imaginário afrocentrista. Eles foram experimentos musicais tentando conceber a África através de praias distantes.70 (WEINSTEIN, 1993, p.182). Do mesmo modo que Weinstein, não pretendemos aqui também perceber qual período na música popular brasileira seria responsável por trazer representações mais substanciais acerca de África, mas sim compreender que em todos estes períodos existiram tentativas concretas de representação de África através do imaginário da obra destes artistas, baseados em um pensamento afrocêntrico. Porém, se para alguns pesquisadores quanto mais distantes ficamos temporalmente das últimas levas de africanos que chegaram ao Brasil antes da proibição do tráfico de escravos e da abolição da escravatura, ou seja, dos últimos negros africanos que aportaram aqui na condição de cativos, teríamos portanto menos traços de África em nossas culturas, novas gerações de artistas brasileiros demonstram um caminho contrário a esse pensamento através de suas obras, num sentido de manter acesa a chama da verve africanista no país, celebrando aqueles descendentes de africanos que foram responsáveis por sustentar a tradição de seus antepassados no Brasil, assim como buscando novos meios de deter conhecimentos sobre a África, seja ela mítica, ancestral ou mesmo contemporânea. Mesmo que estas representações dos artistas contemporâneos se encontrem distantes do ideal africanista propagado por alguns historiadores da música popular brasileira -- ainda muito calcados em um pensamento tradicionalista -- não quer dizer por isso que elas sejam menos importantes, ou mesmo menos africanas, podendo ser na realidade talvez até mais representativas de África do que outros nichos “africanistas” da MPB. Conservar as tradições musicais de origens africanas não significa apenas manter preservadas estas tradições do modo em que foram concebidas ou mesmo da maneira em que foram trazidas para o Brasil, mas também recriá-las através de suas “It is not a question of deciding which jazz style is not truly “African” as much as recognizing that all of these musical styles have represented movements of afrocentric imagination. They were musical experiments in conceiving of Africa from distant shores.” (Tradução nossa). 70 90 capacidades de re-adequação e re-incorporação na sociedade. Habitualmente, as tradições que tentam ser sustentadas pelas comunidades da maneira em que foram geradas, se não são modificadas para adequarem-se às novas regras sociais de vivência dos grupos, acabam sendo extintas. Manter em atividade ou mesmo tentar recuperar uma tradição que não possua mais significado ou uso social para determinado grupo étnico demonstra-se apenas um ato de conservação museológica. A conservação destas práticas não delimita a compreensão que podemos construir sobre práticas africanas. A própria carga mítica africana impregnada em nosso cotidiano, mesmo quando de maneira subjetiva, nos permite tecer imaginários acerca de África que são capazes de constituir por si só a manutenção de práticas africanistas. Tornar a África como referencial de identificação é objetivar a construção de um modelo não conformista perante os padrões anglo-saxões. É eleger o que antes era margem como centro. Os caminhos percorridos em nossa pesquisa demonstraram que ao longo do recorte temporal por nós analisado, foram constantes as elaborações acerca de África evocadas pelo imaginário da música popular brasileira. A recorrência a esta temática é algo constante no trajeto de nossa música popular, estabelecendo conexões contemporâneas e ancestrais com a África, e usualmente propondo uma continuidade nesse longo processo de trocas culturais. Em alguns momentos da historiografia da música popular brasileira, é possível vislumbrar através das análises de alguns pesquisadores uma espécie de processo de quebra temporal dessas trocas culturais, como se após a escravidão os laços de conexão com o continente africano tivessem sido extintos. Partindo desta premissa podemos construir então uma teoria onde seriam considerados dois momentos de influência africana na música popular brasileira: um nacional, composto pelos valores culturais trazidos pelos cativos africanos anteriormente ao fim da escravidão; e um estrangeiro, marcado pelas influências culturais africanas ocorridas após a abolição. As influências nacionais, portanto seriam mais autênticas, visto que são afro-brasileiras, tendo sido construídas em solo nacional, e mais adaptadas assim ao conteúdo pregado pelo ideal ufanista brasileiro. Já as influências africanas seriam estrangeiras, à medida que não se adequariam à realidade nacional, e que devido às distâncias temporais e geográficas não mais corresponderiam a uma compreensão de África constituída no Brasil, e deste modo, seriam menos importantes à compreensão de uma identidade nacional. Porém, ao longo de nossa 91 pesquisa, pudemos verificar o quanto as influencias construídas a partir de referenciais colhidos diretamente da matriz africana foram importantes para a construção de uma formação identitária com a África, e em alguns casos, tomando como ponto de referência a África, até para uma maior apreciação das próprias culturas afro-brasileiras. A representatividade que a África exerce nas obras dos artistas aqui analisados nos permite visualizar o quão é importante o seu papel no processo de valorização das culturas de matrizes africanas. Estes artistas auxiliam, através de suas composições, a preencher as diversas lacunas existentes na história da formação da sociedade brasileira, dando o devido crédito ao papel exercido pelo continente africano na construção de nossas culturas, e deste modo contribuindo para a compreensão de que a África vai muito além do alcance da nossa imaginação. 92 REFERÊNCIAS ALBERTI, Verena; PEREIRA, Amilcar Araújo. Qual África? 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