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A diplomacia do governo Lula: balanço e perspectivas Paulo Roberto de Almeida Doutor em Ciências Sociais. Diplomata. Atualmente trabalhando no Núcleo de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Passados três anos e meio de implementação efetiva da diplomacia do governo Luis Inácio Lula da Silva, inaugurado em 1º de janeiro de 2003, que balanço poderia ser feito de sua política internacional, tanto nas concepções doutrinárias e nas orientações políticas, como em seus resultados efetivos? Uma primeira observação quanto ao conteúdo ou a função que a política externa parece desempenhar no governo do Partido dos Trabalhadores (PT) pode ser feita em relação, justamente, ao papel da política externa no processo de desenvolvimento brasileiro. Para o PT, e em grande medida para os formuladores e executores da atual política externa, esta deve fazer parte de um “projeto nacional”, do qual ela constituiria uma alavanca fundamental do processo brasileiro de desenvolvimento, que deveria ser marcado pela integração soberana na economia internacional e pela mudança nas “relações de força” do mundo atual. Esta idéia está expressa em várias declarações do próprio presidente e de seus auxiliares diplomáticos e tem sido traduzida em conceitos como o de “reforço do multilateralismo” – em oposição ao que seria o unilateralismo da potência hegemônica – ou de “mudança na geografia comercial mundial”, o que evidenciaria o desejo de uma união dos países em desenvolvimento para negociar em melhores condições políticas uma alteração no padrão de troca prevalecente, hoje desigual, com base nas atuais regras de política comercial e de acesso a mercados, notadamente no que se refere ao protecionismo e ao subvencionismo agrícolas. Um balanço concreto da política externa do governo Lula deve, no entanto, deixar de lado as declarações de intenção para avaliar os resultados efetivos dessa diplomacia, tal como implementada nos últimos três anos e meio. Para essa finalidade, os seguintes temas parecem ser relevantes: Conselho de Segurança da ONU; alianças com parceiros estratégicos; situação do Mercosul; relações com a Argentina; liderança do Brasil na América do Sul e bloco político regional; OMC e negociações comerciais multilaterais e regionais; relações com China, Rússia e o papel internacional do Brasil. 1. Conselho de Segurança da ONU É um tema caro ao ministro Celso Amorim, que trabalhou durante muito tempo em assuntos multilaterais e em questões de segurança internacional e que encontrou a simpatia e o interesse do presidente e de amplos setores na própria diplomacia, nas forças armadas e nos grupos de apoio dentro e fora do PT. Trata-se de questão notoriamente difícil, em torno da qual a diplomacia brasileira engajou recursos consideráveis num vasto programa de “lobby” junto aos mais diferentes países. O próprio acolhimento do presidente Lula, por interlocutores do G-7 e pela imprensa internacional, como grande líder de estatura mundial, reforçou a idéia de que a conquista da cadeira permanente seria factível, mesmo tendo em conta a oposição de poderosos vizinhos regionais (Argentina e México, sobretudo). A iniciativa se desenvolveu em diversos formatos e em diversas frentes, envolvendo, inclusive, o perdão de dívidas bilaterais de países pobres e a constituição de um grupo especial – o G-4 – interessado na reforma da Carta da ONU e na elevação dos países integrantes (Alemanha, Brasil, Índia e Japão) ao CSNU; mas ela foi obstaculizada pela má vontade de alguns integrantes do atual Conselho – China e EUA, em especial – e por divergências de âmbito regional, entre elas a posição irrealista da União Africana. Foi em grande medida em função dessa aspiração que o Brasil tomou a iniciativa de liderar o contingente das Nações Unidas na missão de estabilização política do Haiti, tarefa que ultrapassa os limitados meios materiais do Brasil, uma vez que envolve objetivos de nation-building, mais até do que de missão de paz. O tema da reforma da Carta da ONU e da assunção do Brasil a uma cadeira permanente em seu CS continua na agenda da diplomacia brasileira como de alta prioridade, mas não parece haver chances de que ele venha a ser encaminhado, satisfatoriamente, no futuro imediato. 2. Alianças com parceiros estratégicos (Argentina, China, Índia, África do Sul) A diplomacia de Lula acredita que países como Brasil, Argentina, China, África do Sul e Índia não só partilham valores e objetivos comuns no sistema internacional, como apresentam características sociais e econômicas relativamente similares a ponto de justificar um esforço de cooperação. O G-3, por exemplo, foi apresentado como uma demonstração da criatividade e da capacidade de iniciativa da diplomacia brasileira no sentido de buscar uma coordenação política com os dois últimos parceiros em temas da agenda multilateral, bem como com vista a intensificar a cooperação trilateral, nos mais diferentes campos de interesse conjunto. A Argentina deveria ser o grande parceiro na construção de um sistema sul-americano de cooperação e de integração, a partir do reforço do Mercosul, que consolidaria a região como o grande vetor de projeção dos interesses brasileiros num espaço econômico integrado. A China, por sua vez, parecia ser o parceiro por excelência na reformulação das relações econômicas internacionais, no sentido da afirmação do multilateralismo e da diminuição do unilateralismo imperial. Na prática, a despeito de alguns resultados concretos na ampliação da cooperação, poucos sucessos efetivos puderam ser registrados a partir dessas alianças previamente definidas com base em critérios pouco claros de proximidade política ou econômica. 4. Reforço do Mercosul e ampliação das oportunidades econômicas na região A “reestruturação”, o reforço institucional e a ampliação do Mercosul constavam explicitamente do “cardápio” diplomático do governo Lula, que anunciou, previamente, sua dedicação prioritária à agenda da integração regional. De fato, os “investimentos” nessa área foram consideráveis, inclusive no sentido de aceitar, parcialmente, diversas restrições ao livre-comércio bilateral ou regional que a Argentina, menos capacitada industrialmente, pretendeu – e, em grande medida, conseguiu – impor ao Brasil. Ainda assim, o Mercosul não se encontra em melhor situação do que aquela deixada pela administração anterior e algumas realizações apresentadas como avanços – como o Parlamento ou Fundo de Correção de Assimetrias – podem, na verdade, travar ainda mais o itinerário do bloco no caminho de sua unificação econômica e comercial (pelo estímulo à busca de vantagens setoriais ou uniformização de regras em áreas que seriam melhor atendidas pelo princípio da concorrência aberta). No campo da “ampliação” do Mercosul, parecia claro, desde o início, que o Chile não pretendia – nem poderia, por diferenças de estrutura tarifária – ingressar de modo pleno no bloco, mas ainda assim o anúncio de seu acordo de livre-comércio com os EUA causou insatisfação visível ao Palácio do Planalto. O “ingresso pleno” da Venezuela, decidido politicamente, mais do que com base em um cumprimento estrito dos requisitos comerciais de incorporação às normas comuns da união aduaneira, foi por sua vez apresentado como um importante reforço dos mercados sub-regionais, com um componente energético considerável, mas teme-se que a contrapartida seja a incorporação de uma agenda política venezuelana que não se coaduna com os interesses diplomáticos de seus outros membros. 5. Relações com a Argentina Relação sempre sensível, mas extremamente relevante no conjunto das relações bilaterais do Brasil, a interação com a Argentina padeceu, a despeito de um máximo de empenho e boa-vontade demonstrados desde antes da posse pelos novos responsáveis políticos brasileiros, de certa deterioração prática, em grande medida determinada pela difícil situação econômica atravessada pelo país platino nos dois primeiros anos da administração Nestor Kirchner. Cautelosas, por medo de alguma “contaminação” nos mercados financeiros e nas agências de avaliação de risco, em relação à queda de braço promovida com os credores privados e o verdadeiro enfrentamento mantido com o FMI, as autoridades econômicas brasileiras foram bem mais realistas na condução da agenda bilateral e na dos negócios com a Argentina do que seus colegas diplomatas, mais dispostos a praticar aquilo que foi chamado de “diplomacia da generosidade”, ou seja, alguma leniência com as restrições comerciais unilaterais e uma predisposição de princípio a acomodar certas perdas imediatas – como a exportação de algumas linhas de manufaturados – para garantir as boas relações no médio e no longo prazo. Essas relações também foram parcialmente afetadas pela personalidade algo particular do presidente Kirchner, cujo comportamento pessoal esteve na origem do afastamento da Argentina de algumas reuniões regionais – foi o caso, por exemplo, do encontro do Grupo do Rio, no Rio de Janeiro, e da reunião constitutiva da Comunidade Sul-Americana de Nações, no Peru – ou multilaterais – como a conferência com os países árabes em Brasília ou, ainda, de reuniões que interessavam o próprio Mercosul. A difícil aceitação, pelo Brasil, de um sistema automático de salvaguardas comerciais bilaterais, em clara contradição com o espírito e a letra dos compromissos firmados no âmbito do Mercosul, também contribuiu para certa tensão nas relações entre os dois grandes sócios do bloco, que por outro lado sofreu os efeitos de insatisfações manifestadas pelos dois sócios menores (como o conflito das “papeleiras” entre a Argentina e o Uruguai). 6. Liderança do Brasil na América do Sul e formação de um bloco político regional O conceito de “liderança regional” sempre foi uma espécie de tabu na história das relações com os demais vizinhos geográficos, daí porque a diplomacia profissional jamais inscreveu essa palavra em qualquer texto que tivesse a ver com nossas relações regionais. A nova liderança política, aparentemente, acreditou que estava na hora de o Brasil assumir uma postura mais afirmativa, inclusive num sentido positivo, de estender financiamentos oficiais para certos projetos de interesse integracionista e, também, em um sentido certamente mais controverso, o de unificar as posições negociadoras dos países da região em determinados foros comerciais – era o caso da Alca, por exemplo, mas o mesmo poderia ser aplicado à Rodada Doha, da OMC – para reforçar as demandas próprias e obter melhores condições de “barganha”. Tratava-se, igualmente, de superar a fase puramente técnica de concepção e implementação de grandes projetos de integração física em escala sul-americana – que eram conduzidos com a assessoria do INTAL-BID no quadro da IIRSA, iniciativa de integração regional sul-americana – para inaugurar um projeto considerado como prioritário pela atual diplomacia brasileira: a criação da chamada Casa, ou Comunidade Sul-Americana de Nações, que deveria administrar, politicamente, a rede de acordos de liberalização comercial próprios à região e os novos projetos de integração física regional. O fato é que a “liderança brasileira” enfrentou resistências ou indiferença, inclusive por uma questão de escassez de meios efetivos à disposição para o seu exercício. Aliás, um dos vetores políticos para a coordenação de posições negociadoras, a recusa da Alca tal como proposta nos moldes americanos, não encontrou consenso mesmo entre associados ou membros do Mercosul, já que alguns deles concretizaram ou esperam conseguir acordos de acesso ao mercado dos EUA em bases puramente bilaterais, mas num padrão que não difere muito das condições de acesso oferecidas pelos EUA no âmbito da Alca. No que se refere a esta última, Brasil e EUA compartilham responsabilidades pelo bloqueio do processo negociador, ambos por dificuldades internas ligadas a setores temerosos de uma abertura indiscriminada a concorrentes mais competitivos no outro país. Era evidente, por outro lado, que a oposição essencialmente política à Alca, nas bases sociais e nos grupos de apoio ao governo brasileiro, conduziria o projeto de interesse preeminente dos EUA à implosão, como ocorreu efetivamente na cúpula hemisférica de Mar del Plata – novembro de 2005 –, para alegria desses setores e a satisfação de alguns dirigentes da região (entre eles, os presidentes Hugo Chávez, da Venezuela, e o anfitrião Kirchner). Esse mesmo movimento, no entanto, reforçou a caminhada dos países, individualmente, em direção de acordos bilaterais com os EUA, retirando, potencialmente, mercados do Brasil, direta ou indiretamente. 7. OMC, Rodada Doha e as negociações comerciais multilaterais e regionais A conquista de acesso a novos mercados externos e a preferência pelos foros multilaterais de negociações comerciais são duas áreas nas quais o Itamaraty, por reconhecida competência e presença física, sempre exerceu uma espécie de “liderança hegemônica” ao seio da administração brasileira, determinando posições e conduzindo, efetivamente, o processo negociador, segundo uma visão própria do chamado interesse nacional. No governo Lula, a ação da diplomacia, nesses vetores, correspondeu bastante bem à visão que o partido dominante político mantinha sobre as relações econômicas internacionais, com a defesa de uma função estratégica de suporte da diplomacia ao projeto nacional de desenvolvimento, garantindo a liberdade de serem preservados espaços normativos para o estabelecimento de políticas setoriais nacionais, não limitadas, portanto, por regras multilaterais mais intrusivas do que as atualmente já existentes para investimentos, propriedade intelectual ou serviços. Nesse sentido, a formação do G-20, na reunião ministerial de Cancún (setembro de 2003), da OMC, e sua atuação visivelmente ativa em reuniões posteriores da Rodada Doha, foram apresentados como um sucesso político em termos de organização “alternativa” – e criativa – para as difíceis negociações agrícolas. Entretanto, uma das limitações do G-20 é que ele pode tornar as posições do Brasil tão defensivas quanto são as de China e da Índia, em matéria de subsídios e protecionismo setorial, e muito restritivas, em algumas áreas da indústria (NAMA) e dos serviços. No plano interno, por outro lado, as posições negociadoras mais rígidas do Itamaraty produziram vários choques com os ministérios da Fazenda, o MDIC e a Agricultura, embora resolvidos com ganhos pelo primeiro, a partir do aval do presidente a essas posições. Já no âmbito das negociações comerciais birregionais, entre o Mercosul e a União Européia, houve, no começo, certa ilusão de que um acordo mais limitado poderia trazer maiores vantagens ao Brasil e ao Mercosul, ademais da idéia, também equivocada, de que a UE, por ser um espaço de integração com “preocupações sociais” e políticas de “correção de assimetrias regionais”, seria bem mais generosa com o Mercosul do que uma Alca “imperial”. Na verdade, os europeus se mostraram muito mais protecionistas do que os EUA em matéria de agricultura, ainda que menos ambiciosos em outras vertentes negociadoras, além do fato de que, uma vez a Alca emperrada, diminuiriam os incentivos para se obter um acordo equilibrado. Por fim, a noção de que o Brasil, ao diversificar mercados e buscar novos parceiros comerciais no eixo Sul-Sul, estaria operando, literalmente, uma “mudança na geografia comercial do mundo”, parece ignorar o fato de que essa “nova geografia” do comércio internacional já existe há muito tempo e ela se traduz em exportações maciças das economias dinâmicas dos países asiáticos para os mercados do Norte desenvolvido. 8. Relações com China, Rússia e presença política mundial A China tinha sido designada como “aliada” ou “parceiro estratégico” preventivamente, antes mesmo da assunção do novo governo, e de forma unilateral; uma vez constituída a nova administração, apostas foram feitas, sobre compras ampliadas a fornecedores brasileiros, sobre cooperação tecnológica e na atração de investimentos chineses em infra-estrutura no Brasil. Considerou-se, inclusive, que a China atuaria no sentido de mudar as “relações de força” existentes no mundo e de diminuir o grau de “hegemonismo” presente no cenário internacional. Por um momento também foi considerada a hipótese de um acordo comercial entre o Mercosul e a China, tema posteriormente colocado de lado, à medida que as reais dimensões da relação econômico-comercial, necessariamente mais modestas, eram postas em evidência. Da mesma forma, mas com objetivos mais políticos do que econômicos, houve uma aproximação “estratégica” com a Rússia, sempre com a intenção de contribuir para a redução dos espaços abertos ao “arbítrio unilateralista”, assim como com a França e a Alemanha, por ocasião dos debates em torno de uma resolução do CSNU sobre o Iraque. A conferência entre países árabes e da América do Sul foi organizada tanto visando objetivos econômico-comerciais como com a finalidade de realçar a presença política do Brasil na região, agenda confirmada pela decisão de instalar uma representação diplomática brasileira junto à Autoridade Nacional Palestina, em Ramalah. As várias viagens presidenciais à África responderam tanto ao desejo internamente motivado de reforçar os elementos afro-brasileiros na arena diplomática do Brasil, quanto à busca de apoios para o pleito ao CSNU e de novos mercados para produtos brasileiros. De fato, o Brasil tornou-se um interlocutor mundial em várias instâncias e foros, como o G-8, por exemplo, ou a comunidade do Fórum Econômico Mundial, em Davos, ainda que essa agenda não contasse com pleno apoio em determinados setores da comunidade de sustentação política do governo. Ocorreu, por outro lado, uma maior interferência de ONGs claramente identificadas com posições ditas alternativas em matéria de meio ambiente ou de negociações agrícolas na formulação de posições externas do Brasil ou, até mesmo, na orientação da agenda diplomática, o que de certa forma reflete as posições de componentes do governo em relação aos temas da globalização e as relações desses líderes políticos com o temário do Fórum Social Mundial. No plano conceitual, se assistiu, inclusive, à tentativa de oferecer uma alternativa ao chamado “Consenso de Washington”, mediante a elaboração, com a Argentina, e seu posterior oferecimento ao resto do continente, de um “Consenso de Buenos Aires”, documento analítico e propositivo colocando grande ênfase nos temas sociais, por oposição ao que seria o conjunto de regras puramente econômicas e ditas “neoliberais” do primeiro “Consenso”. Como repetido diversas vezes pelo próprio presidente Lula, o Brasil não mais pediria “licença a ninguém para ocupar seu lugar no mundo”, confirmando a vocação eminentemente participativa da nova diplomacia. Ela foi traduzida em várias iniciativas de caráter multilateral, nas quais o Brasil sempre explicitou sua posição em favor de maior democracia nas relações internacionais e de uma mudança fundamental no tratamento concedido aos países mais pobres. Um bom exemplo dessa atitude foi a proposição de uma “iniciativa mundial contra a fome e a pobreza”, concebida como um novo programa de trabalho das Nações Unidas. De fato, o que seria um prolongamento universal do programa “Fome Zero” do governo Lula, converteu-se, pela capacidade de mobilização da diplomacia brasileira, em tema da agenda internacional, tendo recebido o apoio explícito de vários países – França, Chile, Espanha, entre outros – mas não se traduziu na grande campanha mundial que talvez fosse esperada pelo presidente brasileiro. Em lugar da canalização de grandes receitas financeiras com uma taxa mundial sobre movimentação de capitais, como era a proposta de muitas ONGs envolvidas com o projeto, os patrocinadores exploraram diversas fontes alternativas de recursos, entre elas um tributo adicional, de aplicação nacional e em caráter voluntário, sobre passagens aéreas internacionais. Esses recursos devem financiar uma central de compras de medicamentos anti-Aids para países pobres. Entre outros problemas, a iniciativa duplica esforços já existentes em outros programas multilaterais sobre alimentos ou combate a doenças contagiosas, mas não deixa dúvida quanto ao novo espírito de solidariedade universal que passou a animar a diplomacia brasileira. Como explicitado várias vezes pelo chanceler Amorim, o Brasil escolheu não ser indiferente à sorte de vários países ainda mais pobres do que o próprio país. Não faltaram críticas às novas orientações da diplomacia brasileira, geralmente por parte de veículos da imprensa, enfatizando, eles, um suposto caráter ideológico ou “terceiro-mundista” da atual política externa, o que foi rebatido por seus formuladores e executores. Os meios empresariais, por sua vez, alertaram para o perigo de isolamento econômico e a perda de espaços comerciais na própria região, em vista da ausência de acordos mais consistentes de acesso a novos mercados ou a ampliação dos existentes. Decepções com atitudes políticas de alguns parceiros ditos “estratégicos”, assim como preocupações com o equilíbrio militar na própria região, além de alguns dissabores com vizinhos e aliados no imediato entorno regional – como podem ser os problemas criados a propósito da exploração dos recursos energéticos da Bolívia e da retórica mais agressiva da Venezuela em relação aos EUA –, podem determinar algumas mudanças de ênfase numa segunda fase da atual diplomacia (em caso de reeleição do presidente Lula em outubro de 2006, por exemplo). No cômputo global, contudo, o presidente Lula demonstra estar bastante satisfeito com os rumos, as orientações e, sobretudo, com as realizações de sua política externa, que ele vê como a mais adequada para a afirmação soberana do Brasil no mundo. Depois de ter criticado o seu antecessor pelo excesso de viagens, ele também parece ter sucumbido a uma “diplomacia presidencial” – embora o conceito não seja utilizado, justamente para evitar aproximações com os métodos utilizados anteriormente – e, de fato, a agenda de viagens ao exterior, bem como as visitas de alto nível recebidas em Brasília, jamais foram tão intensas, em qualquer época da diplomacia brasileira, como nos últimos três anos e meio de governo Lula. Aparentemente, pela primeira vez nos registros históricos, o Brasil encontra-se adimplente em suas contribuições para a maior parte dos organismos internacionais, o que também demonstra o alto apreço do presidente pelo trabalho do Itamaraty e, obviamente, um cálculo político novamente vinculado à candidatura do Brasil a uma cadeira permanente no CSNU. De forma geral, a atual política externa parece gozar de amplo apoio nos meios acadêmicos e nos setores já adquiridos a uma visão política de esquerda, sendo vista, em contrapartida, com algumas reservas nos meios empresariais e nos grandes veículos de comunicações. De toda forma, os temas diplomáticos nunca estiveram tão presentes nos debates internos, e não apenas nos meios políticos, sendo previsível que eles se situem em posição de destaque no decorrer da campanha eleitoral presidencial que foi aberta em meados de 2006. A diplomacia brasileira parece, paradoxalmente, ter deixado de gozar o antigo consenso favorável de que desfrutava em épocas anteriores, mesmo no período militar, passando agora a contar com adesões indiscutidas, entre os aliados naturais, e oposições também declaradas por parte dos setores já apontados, que a acusam de ser uma “diplomacia partidária”. Trata-se de um elemento novo no cenário político brasileiro e nos anais da própria diplomacia, uma realidade inédita que talvez se prolongue nos embates políticos dos próximos anos, dentro e fora da Casa de Rio Branco. Paulo Roberto de Almeida (pralmeida@mac.com; www.pralmeida.org) Brasília, 15 de julho de 2006 PAGE 1