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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA LUCAS ANDRÉ GASPAROTTO A CIVILIZAÇÃO COMEÇA A SUBIR O MORRO: AS COMPOSIÇÕES DE NOEL ROSA NA POLÊMICA MUSICAL COM WILSON BATISTA Porto Alegre, 2011. UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA LUCAS ANDRÉ GASPAROTTO A CIVILIZAÇÃO COMEÇA A SUBIR O MORRO: AS COMPOSIÇÕES DE NOEL ROSA NA POLÊMICA MUSICAL COM WILSON BATISTA Trabalho de conclusão de curso de graduação apresentado junto ao Departamento de História do Rio Grande do Sul, como requisito parcial para a obtenção do grau de licenciado em História. Prof. Dr. José Augusto Costa Avancini Orientador Porto Alegre, 2011. A CIVILIZAÇÃO COMEÇA A SUBIR O MORRO: AS COMPOSIÇÕES DE NOEL ROSA NA POLÊMICA MUSICAL COM WILSON BATISTA BANCA EXAMINADORA ___________________________________________ Prof. Dr. José Augusto Costa Avancini ___________________________________________ Prof. Dr. Marçal de Menezes Paredes ___________________________________________ Prof. Dr. Alessander Mario Kerber Ao Professor Rigo, por ter me apresentado à História e por ter sido um Mestre. Agradecimentos Aos meus pais, Marcos e Carmen, por serem responsáveis pela formação de meu caráter, pelo apoio e por me incentivarem sempre; À querida Ju, a quem eu mais amei, por me mostrar que pode existir o amor, pelo carinho, cuidado, apoio, amizade e companheirismo durante os últimos intensos seis anos; À Carmela, ao Floriano e à Preta Rosa, pelo amor incondicional; À especialíssima amiga Magali, pelo carinho “agridoce”, por compartilhar seus conhecimentos, pelas discussões e divagações, pelas conversas divertidas – censuradas ou não –, pelas revisões e dicas; Ao Professor Marçal de Menezes Paredes, pelas idéias sem as quais este trabalho não teria sido possível; À Nanda, pela amizade verdadeira e por me mostrar que a vida pode ser um pouco mais leve; À Patrícia, pela amizade quase materna e por ser um modelo de profissional com quem aprendi muito; Ao Rodrigo, por tratar pacientemente minha loucura; À Rubia e à Carla, pela amizade com que me acolheram durante os meses difíceis que antecederam a elaboração deste trabalho, e a esta última novamente pelas revisões, dicas e principalmente pelas longas discussões e divagações; Aos meus irmãos, Manuela e João Pedro, pelo carinho e por sempre valorizarem meu conhecimento; Ao Alexandre Amaro e à Célia Regina, colegas da Uergs, ele por procurar inúmeros discos e músicas indispensáveis à realização deste trabalho, ela pelos livros que retirou na biblioteca da PUCRS; Aos colegas Jacson e “Lenon”, pela troca de idéias ao longo de todo o curso; À Professora Liliane Prestes, pelas palavras de conforto, pela confiança, compreensão e apoio; e ao pessoal da Pró-Reitoria de Ensino da Uergs, pelo coleguismo; À Professora Carla Meinerz, pela parceria e incentivo; Ao Professor René E. Gertz; Ao pessoal da Cia. de Flamenco Del Puerto – Ana, Dani, Gigio, Ju K, Ju P, Marcelo, Tati e Sonia, por me emocionarem sempre, e à Ana e à Ju P novamente, por terem levado o Flamenco à escola pública; Ao meu orientador. Resumo Buscando dar conta das transformações ocorridas no Brasil desde o final do século XIX até os primeiros anos da década de 1930, o presente trabalho tem como objeto de estudo as composições Rapaz Folgado, Feitiço da Vila e Palpite Infeliz, de Noel Rosa, produzidas por ocasião da polêmica musical travada com Wilson Batista. Partindo do conceito de equilíbrio de antagonismos, criado por Freyre (1954) em Casa-grande & Senzala, buscou-se apontar de que forma acomodaram-se os elementos que identificavam os ideais de nação presentes no final do século XIX e início do XX, período definido como Belle Époque brasileira, no qual se observa um ideal cosmopolita, até os primeiros anos da década de 1930, considerado Tempo do nacional-estatismo, durante o qual ocorre a disputa. Palavras-chave: História da Música Popular Brasileira – Noel Rosa – Brasilidade. Sumário Introdução ................................................................................................................................ 8 Capítulo 1. Da Belle Époque brasileira ao Tempo do nacional-estatismo ............................. 15 1.1 A “Regeneração”. Os ecos de modernidade escondem a dicotomia cultura erudita e cultura popular ...................................................................................................................... 15 1.2 Pelo Telefone. A expressão do samba ............................................................................... 18 1.3 O samba, a prontidão e outras bossas, São nossas coisas, são coisas nossas! Em busca de uma nacionalidade (1930 – 1936) ...................................................................................... 20 1.4 O Tangará vai para a faculdade. 26 músicas no primeiro ano. O Poeta da Vila ............ 27 CAPÍTULO 2. A música reflete a nação. Antagonismos em equilíbrio nas composições de Noel Rosa em polêmica com Wilson Batista ..................................................................... 31 2.1 Proponho ao povo civilizado, Não te chamar malandro, E sim de rapaz folgado ........... 32 2.2 A Vila tem, Um feitiço sem farofa, Sem vela e sem vintém, Que nos faz bem .................. 36 2.3 Quem é você que não sabe o que diz?Meu Deus do Céu, que palpite infeliz! .................. 39 Considerações finais ............................................................................................................... 42 Referências Bibliográficas ...................................................................................................... 44 Fontes Primárias .................................................................................................................... 48 Anexos ................................................................................................................................... 51 Introdução Discutir o caráter nacional brasileiro, para utilizar termos consagrados por Dante Moreira Leite (2007), passa, indiscriminadamente, pelos atribulados anos 1930. O contexto do entre guerras é acompanhado internamente por um profícuo debate acerca de nossa nacionalidade. Sem exageros, trata-se de ponto de inflexão de nossa História. Desde Manuel Bomfim (2005)1, expoente do início do século XX, a interpretação do Brasil desloca-se de um paradigma de natureza étnico-racial, herança do século XIX, em direção a outro de natureza sociocultural, que alcança grandes proporções na década de 1930. Buscar a identidade da nação baseado nesses novos critérios levara o país a identificar, então, elementos culturais que deveriam ser reconhecidos como coisas nossas2. Os termos são de Noel Rosa (1910-1937), cantor e compositor carioca nascido no bairro de Vila Isabel, aqui utilizados de forma a delimitar uma definição provisória do tema deste trabalho: a música popular brasileira produzida por Noel em ocasião específica nos anos 1930, como reflexo das idéias de nação em curso desde o final do século XIX. Há uma tradição na historiografia dedicada ao período em questão que considera uma clivagem entre dois conceitos de cultura então em voga: cultura erudita importada pela elite e cultura popular. Segundo esse pressuposto, os representantes de uma e outra, classificados de acordo com suas posições sociais, viveriam em embate cotidiano. No Rio de Janeiro do início do século XX, a abertura da Avenida Central pelo prefeito Pereira Passos, sob a influência das reformas de Haussmann na cidade de Paris, dá o mote para ilustrar tal clivagem. Com a destruição das construções existentes nos arredores, ocupadas por população negra remanescente de escravos e migrantes das decadentes fazendas de café do Vale do Paraíba (SEVCENKO, 2004, p. 20-21), o bulevar carioca inaugurava, por assim dizer, em 1904, a Belle Époque brasileira, nossa correspondente da versão francesa para o período que 1 Bonfim (2005) afirmava, por exemplo: é a IGNORÂNCIA, é a falta de preparo e de educação para o progresso – eis a inferioridade efetiva; mas ela é curável, facilmente curável. O remédio está indicado. Eis a conclusão última desta longa demonstração: a necessidade imprescindível de atender-se à instrução popular, se a América Latina se quer salvar (p. 360). Segundo Leite (2007, p. 335), algumas de suas [de Bonfim] teses eram tão avançadas para a época que só viriam a ser reencontradas algumas décadas depois. 2 A expressão foi retirada do refrão de São Coisas Nossas, composição de Noel Rosa: O samba, a prontidão e outras [bossas, / São nossas coisas, são coisas [nossas! (MÁXIMO & DIDIER, 1990, p. 179). 8 Sevcenko (2004) define como as duas primeiras décadas do século XX. Para Needell (1993, p. 67), as transformações da época no centro da capital, almejavam atingir a civilização por meio de mudanças concretas, de acordo com os modernos padrões europeus (ou seja, franceses). No entanto, enquanto tomavam essas medidas práticas, também compartilhavam com outros membros da elite e dos setores médios a paixão pelas mudanças simbólicas. Nesta perspectiva, a elite celebrava também aquilo que era eliminado pelas transformações em curso durante a Belle Époque. O êxito da execução do modelo francês no centro da capital carioca pressupunha, no entanto, o fim de um Brasil antigo e africano considerado bárbaro e, portanto, distante dos ideais de civilização almejados pela elite brasileira. É Velloso (1988), por sua vez, quem elucida esse Brasil antigo e africano, vítima de uma verdadeira campanha de ‘caça aos mendigos’, desalojamento das camadas populares do centro da cidade e combate cerrado às mais variadas expressões da cultura popular [...]. Candomblé, capoeira, bumba-meu-boi, romarias religiosas, maxixe, violão, serestas, cordões carnavalescos, enfim, as mais variadas expressões culturais passam a ser objeto da vigilância do poder estatal (ibidem., p. 9). Trata-se da mudança simbólica anteriormente assinalada por Needell (1993). Segundo aponta esta historiografia, modelados por um paradigma aristocrático europeu de inspiração franco-inglesa, a elite e os setores médios da sociedade condenavam as manifestações populares, fossem de matriz laica ou de religiões africanas. Para Sevcenko (2004), as elites da primeira fase republicana (1889-1930) evidenciam um pensamento cosmopolita. Espécie de Paris tropical, o autor define o Rio de Janeiro da Belle Époque como modelo de metrópole em termos modernos, como eixo de irradiação e caixa de ressonância das grandes transformações em marcha pelo mundo, assim como no palco de sua visibilidade e atuação em território brasileiro (idem, ibidem, p. 522). Nesse sentido, o modelo urbanístico francês dá novamente a tônica de tal pensamento: “Vive la France!”, cumprimentavam-se as pessoas ao cruzarem-se no grande bulevar carioca às vésperas da primeira Grande Guerra. Contudo, para este trabalho, mais relevante na visão de Sevcenko (ibidem) é a idéia de que a cidade passa a ser experimentada não mais somente como cultura visual, mas também como espaço psíquico, já que, segundo o autor, a experiência de viver nas grandes cidades modernas, planejadas em função dos novos fluxos energéticos e marcadas pela onipresença das novas técnicas, influencia e altera drasticamente a sensibilidade e os estados de disposição dos seus habitantes. Tal imaginário conformaria padrões de comportamento apropriados a esse novo espaço urbano: o passo desprendido à inglês ou à americana, a utilização de sapatos mais elaborados, como os de verniz, por exemplo, que mais tarde integrariam a indumentária do malandro, ou o paletó de lustrina preta já bastante usado, que o capadócio Firmo, personagem d’O Cortiço, de Aluísio de Azevedo, não abria mão (AZEVEDO, 2000, p. 62). A moderna cena urbana exigia, então, de seus atores nova atitude. Como tentamos demonstrar, a atmosfera da “Regeneração”, termo utilizado pela grande imprensa nacional para denominar a transformação do centro da cidade de acordo com o modelo francês, é o lugar comum da historiografia tradicional. Não é possível negar que houve certa clivagem entre cultura erudita importada pela elite e cultura popular, sobretudo nas ações do poder público; nem que a questão racial desempenhou papel importante. Contudo, a exemplo de Hermano Vianna (2010), em O Mistério do Samba, defendemos que ao lado dessa tendência re-europeizante [...], talvez até dominante no período, subsistiram [...] e foram inventadas práticas sociais que colocavam em cena outro tipo de relação com os universos populares (idem, ibidem, p. 44-45). A obra citada registra longa tradição de relações entre segmentos da elite brasileira e músicos populares, nas quais a cultura afro-brasileira manifesta-se remetendo ao século XVIII, com a popularização da modinha e do lundu3. Dentre os registros coletados pelo autor, tais relações podem ser ilustradas, durante a Belle Époque brasileira, pela trajetória artística de Catulo da Paixão Cearense, maranhense que cresceu no Ceará e mudara-se para o Rio aos 17 anos. Desde então, alternava suas atividades como estivador com as apresentações como cantor em saraus realizados em residências de representantes da elite carioca, casas essas freqüentadas por personalidades da época como Silvio Romero, Rui Barbosa e Raul Villa-Lobos, pai do futuro maestro Heitor Villa-Lobos. Em 1906, após levar o público a explosão de delírio no salão de Mello de Moraes Filho, Catulo torna-se artista consagrado no cenário artístico carioca; dois anos depois, foi o senador Rui Barbosa quem não conseguiu conter as lágrimas ao ouvi-lo cantar. Daí em diante, a popularidade de Catulo levou-o a apresentar-se para nada menos de quatro presidentes da República: Nilo Peçanha (1909-1910), Hermes da Fonseca (1910-1914), Epitácio Pessoa (1919-1922) e Artur Bernardes (1922-1926) (TINHORÃO, s/d, p. 33). Esta circulação de artistas populares nos meios da elite não se limita ao período da Belle Époque. Durante os anos 1920, a primeira geração de sambistas cariocas tem em Sinhô um representante popular entre a elite carioca, conforme atesta o poeta Manuel Bandeira 3 Para informações acerca da modinha e do lundu, ver: Tinhorão, s/d. 10 (apud VIANNA, 2010, p. 118): ele era o traço mais expressivo ligando os poetas, artistas, a sociedade fina e culta às camadas profundas da ralé urbana. Daí a fascinação que despertava em toda a gente quando levado a um salão. Este grupo tem ainda em Donga e Heitor dos Prazeres boas relações com um intelectual do porte de Afonso Arinos de Mello Franco, então presidente da Academia Brasileira de Letras (idem, ibidem). Nos anos 1930, já sob a égide de Getúlio Vargas, Cabral (1975) afirma que o presidente mantinha laços de amizade com cantores populares como Mario Reis4 e Aloísio de Oliveira, oferecendo recepções no Palácio do Catete ao som de conjuntos como o Bando da Lua, que mais tarde, em 1939, acompanharia Carmen Miranda aos Estados Unidos. Em face do exposto até aqui, este trabalho tem por objetivo analisar as composições de Noel Rosa produzidas por ocasião da polêmica musical travada com Wilson Batista, outro compositor da época, buscando identificar de que forma acomodam-se os elementos que identificam os ideais de nação desde o final do século XIX e início do XX, período que definimos como Belle Époque, até os primeiros anos da década de 1930, quando ocorre a disputa com Wilson. Conforme afirmamos no início deste texto, a interpretação do Brasil, durante o período em questão, desloca-se de um paradigma de natureza étnico-racial em direção a outro, de natureza sociocultural. Nesse sentido, estão presentes na polêmica ambos os paradigmas, representados, por um lado, pelas origens étnico-raciais de seus personagens: Noel era branco; Wilson, negro; de outro, pelos elementos culturais presentes nas composições e pela educação recebida por Noel, nascido no bairro de Vila Isabel, que cresce no interior de uma família de classe média sob forte influência das idéias civilizatórias, principalmente francesas. Em 1933, ano em que tem início a referida polêmica, Gilberto Freyre (1954) publica a obra Casa-grande & Senzala. Recebida com grande entusiasmo no mundo intelectual da época5, a tese central do livro conduz aquele deslocamento de paradigmas – étnico-racial a sociocultural – que mencionamos anteriormente, na medida em que evidencia, não sem muita controversa, o caráter mestiço da nação nos diferentes âmbitos da sociedade não mais com o sentido pejorativo recorrente no século XIX. Para Freyre, a colonização portuguesa nos trópicos seguira o mesmo padrão característico de seu povo, marcado pela indecisão étnica e cultural entre a Europa e a África. Por isso, o bambo equilíbrio de antagonismos reflete-se em tudo que é seu, dando-lhe ao comportamento uma fácil e frouxa flexibilidade [...], e ao 4 5 Para uma biografa de Mario Reis, ver: Giron, 2001. O impacto da recepção da obra pode ser vista em: Vianna (2010, cap. 5). 11 caráter uma essencial riqueza de aptidões (idem, ibidem, p. 98-99). Herdeira, então, de tal colonização, afirma Freyre, a formação brasileira tem sido, na verdade [...], um processo de equilíbrio de antagonismos. Antagonismos de economia e de cultura. A cultura européia e a indígena. A européia e a africana. A africana e a indígena [...]. O bacharel e o analfabeto (idem, ibidem, p. 170-171). Araújo (2010, p. 2) utiliza-se do termo “luxo de antagonismos” para confirmar o caráter positivo da mestiçagem brasileira, destacando que os elementos antagônicos identificados em nosso caráter recusam-se a fundir-se em uma nova identidade. Tal resistência, impeditiva da efetivação de nossa brasilidade, está no centro da constatação de Freyre (1954): ao utilizar-se da locução verbal tem sido, pressupõe contemporaneidade na constatação, ou seja, ao identificar um padrão forjado na colonização do país, o considera um processo inconcluso quando da publicação da obra, em 1933. Trata-se, então, do mesmo bambo equilíbrio de antagonismos observado durante a primeira metade do século XX, período de análise do presente trabalho. São, com efeito, os antagonismos existentes entre cultura erudita importada pelas elites e cultura popular, observados nos diferentes contextos objetos desta análise: os ideários antagônicos existentes na Belle Époque brasileira; a circulação de artistas entre meios sociais distintos durante os primeiros trinta anos do século XX. Dessa forma, procuraremos analisar as composições de Noel Rosa que integram a polêmica musical travada com Wilson Batista como estuário desses antagonismos identificados. Dentre a bibliografia selecionada sobre a polêmica, encontrou-se trabalhos de cunho memorialista, teses acadêmicas, o long play Polêmica, lançado pela gravadora Odeon em 1956, e o fascículo Wilson Batista da Nova História da Música Popular Brasileira (1978), editado pela Abril Cultural e acompanhado de disco sonoro. Durante a seleção, deparamo-nos com incoerências nas informações disponíveis, principalmente quanto a datas e registros de músicas. Tornou-se necessário, então, redefinir a polêmica, adequando-a aos pressupostos deste trabalho. Sendo assim, considerando como critérios os registros oficiais de gravação das primeiras versões das composições e as letras que dialogam entre si, optamos por um recorte sincrônico que admite o início do duelo em 1933, na cidade do Rio de Janeiro, ficando assim definida: Lenço no Pescoço, de Wilson Batista, à qual revida Noel com Rapaz Folgado, ainda em 1933. Em seguida, Feitiço da Vila, de Noel, lançada em 1934 com Vadico (MÁXIMO & DIDIER, 1990, p. 502; SEVERIANO, 1999, p. 136), à qual Wilson responde com Conversa Fiada, interpretada no rádio por Luis Barbosa, Mário Morais e Léo Vilas, dos “Anjos do Inferno” (ALMIRANTE, 1963, p. 142). Noel encerra, então, a polêmica com Palpite Infeliz, 12 gravado em 1935 por Aracy de Almeida (MÁXIMO & DIDIER, ibidem, p. 508; SEVERIANO, 1999, p. 149)6. Entre os trabalhos de cunho memorialista, consta o livro de memórias de Almirante, No tempo de Noel Rosa (1963). Henrique Foréis Domingues, nome verdadeiro do autor, fora companheiro de Noel no Bando dos Tangarás, primeiro grupo de Noel. Em sua obra, a polêmica é apresentada sem uma tentativa de analisar o que estava em discussão, salvo a afirmação de que Noel teria produzido Rapaz Folgado movido por louvável interesse pela regeneração dos temas poéticos da música popular (ALMIRANTE, 1963, p.140-141). Outra obra do mesmo padrão é a minuciosa biografia escrita por João Máximo & Carlos Didier, Noel Rosa: uma biografia (1990). Nesta, a polêmica é apresentada de maneira dispersa ao longo do livro e os autores se mostram incapazes de compreender a razão do envolvimento de Noel no duelo: Não é mesmo muito fácil compreender Noel, o que pensa, o que faz, o que diz, o que silencia. O contraditório de certos gestos e o imprevisível de certas reações. Como o que, neste começo de 1934, vai aparentemente transforma-lo num inimigo feroz da malandragem. Quem pode compreendê-lo? Alguns de seus melhores amigos são malandros, jogadores, valentes, contraventores, desocupados, homens maus, gente que a polícia caça pela cidade. [...] E no entanto – quem pode compreendê-lo? – vai implicar com a filosofia contida em Lenço no Pescoço, samba lançado magistralmente por Silvio caldas em fins do ano passado (idem, ibidem, p. 291). Conforme veremos, Noel não foi inimigo da malandragem, apenas idealizou um novo modelo de malandro identificado com o contexto da época. No encarte do disco Polêmica (1956), registra-se tão somente a seqüência de composições que teriam feito parte do duelo. Idealizado, segundo Pimentel (1996), por Wilson Batista, trata-se o LP de “invenção” do próprio compositor: “a concepção de capa do disco gravado com as músicas da polêmica”, conta Nássara7, “foi inteiramente bolada por Wilson Batista. Ele exigiu que colocasse os dois naquela posição e fez questão que eu o desenhasse com a camisa do Flamengo no corpo. ‘Dá mais impacto’, dizia. Até o texto de apresentação do disco foi praticamente ditado por ele” (idem, ibidem, p. 35)8. 6 Para a realização deste trabalho, as letras de Noel foram transcritas de Noel pela primeira vez (2000), com o auxílio de Máximo & Didier (1990) para a disposição das letras e registro de datas. As letras de Wilson Batista foram retiradas de Gomes (1985) e o registro de datas contou com o auxílio de Pimentel (1996). 7 Músico, compositor e caricaturista. Para análise da vida e obra de Nássara, ver: Didier, 2010. 8 O LP traz, além das composições selecionadas para a realização deste trabalho, outras que não serão objeto de análise. A imagem da capa do disco compõe o Anexo A. 13 As discussões mais significativas figuram nas teses do musicólogo Carlos Sandroni (2010), Feitiço Decente: transformações do samba no Rio de janeiro (1917-1933), e do historiador José Adriano Fenerick (2005), Nem do morro nem da cidade: as transformações do samba e a indústria cultural (1920-1945). Na primeira, a polêmica é analisada sob a ótica da adoção da malandragem como definição identitária pela geração de sambistas que criou e desenvolveu o novo estilo (SANDRONI, ibidem, p. 169), assunto abordado no capítulo 1, do qual Noel seria um dos adeptos, e do tratamento do samba como feitiço decente. Na segunda, Fenerick (2005, pp. 242-243) defende a idéia de que a polêmica está inserida no processo de profissionalização do compositor popular, fenômeno incrementado pelo avanço dos meios de comunicação de massa do período. [...] A modernização do samba e as relações sociais derivadas daí exigiam uma nova atitude do sambista e Noel sabia que este processo era irreversível e que alteraria muitas das relações tradicionais que o sambista mantinha com o samba, relações essas quase sempre lúdicas. Quanto à bibliografia, por fim, dentre as biografias, não foi possível acessar Noel Rosa e sua época, de Jacy Pacheco9, da qual tomamos conhecimento através das obras de Máximo & Didier (1990) e de Leitão (2009). Embora fosse Pacheco tio de Noel, sua visão poderia ter lançado outro olhar sobre a vida e a obra do compositor. O presente trabalho é dividido em dois capítulos. O primeiro busca dar conta das características de dois contextos históricos presentes nas composições que selecionamos para este trabalho: a Belle Époque brasileira e os anos 1930, destacando o surgimento do samba e a vida de Noel Rosa. O segundo analisa as composições, identificando as características dos períodos em questão à luz do conceito de equilíbrio de antagonismo, tomado de Freyre (1954). 9 PACHECO, J. Noel Rosa e sua época. Rio de Janeiro: G. A. Penna, 1955. 14 Capítulo 1. Da Belle Époque brasileira ao Tempo do nacional-estatismo 1.1 A “Regeneração”. Os ecos de modernidade escondem a dicotomia cultura erudita e cultura popular A obra de Jeffrey D. Needell, Belle Époque tropical (1993) tem por objetivo identificar os reflexos da cultura de origem européia na estrutura social e econômica do Rio de Janeiro de fins do século XIX e início do XX. Através de análise das ações da elite carioca, aponta o desejo daquele grupo social em adaptar paradigmas culturais derivados da aristocracia européia. Para o autor, a Belle Époque carioca inicia-se com a subida de Campos Sales ao poder em 1898 e a recuperação da tranqüilidade sob a égide das elites regionais. Neste ano registrouse uma mudança sensível no clima político, que logo afetou o meio cultural e social. As jornadas revolucionárias haviam passado. As condições para a estabilidade e para uma vida urbana elegante estavam de novo ao alcance da mão (idem, ibidem, p. 39). Ao afirmar a necessidade da penetração européia, Campos Sales (1898-1902) assinala não só um novo começo, mas também o ressurgimento das forças tradicionais representadas pelas elites agrárias e seus aliados. No entanto, é durante o governo de seu sucessor, Rodrigues Alves (1902-1906), que o prefeito Pereira Passos inicia, influenciado pelas reformas realizadas por Haussmann na cidade de Paris, a execução do modelo francês na capital brasileira (idem, ibidem). Conforme já mencionamos na introdução, através da construção da Avenida Central buscava-se implementar os ideais de modernização mundiais no país. O bulevar transformase, então, não só em palco da vida social e cultural da capital, mas no principal modelo de imaginário modernizador da República (idem, ibidem). Durante o surto capitalista que antecede a eclosão da I Guerra Mundial, o país vive um momento de estabilidade e prosperidade econômica. A imprensa carioca celebrava a “Regeneração” como o correspondente brasileiro desse surto amplo de entusiasmo capitalista e da sensação entre as elites de que o país havia se posto em harmonia com as forças inexoráveis da civilização e do progresso. Esse crepúsculo promissor ao mesmo tempo do século e do novo regime, patenteava que a República viera para ficar e com ela o país romperia com a letargia de seu passado, alcançando-se novas alturas no concerto das nações modernas (idem, ibidem, p. 34). 15 Sob a bandeira da ordem e [do] progresso, formava-se, então, uma elite republicana cosmopolita e mediadora da nova ordem capitalista internacional, praticante de um esforço modernizador que buscava reduzir a complexa realidade brasileira (idem, ibidem). Com efeito, esse comportamento reducionista almejava a destruição de um passado representado materialmente pelos espaços do centro da cidade, e arredores, ocupados por aquela população negra remanescente de escravos e migrante das decadentes fazendas de café do Vale do Paraíba. Segundo Sevcenko (ibidem, p. 554), a urbanização, conseqüência da modernidade, pôs em contato gentes estranhas entre si, vindas de diferentes partes do país ou de diferentes regiões do mundo. A passagem do século, por conta dos reajustamentos populacionais forçados pela revolução Científico-Tecnológica, assinalou “o maior movimento migratório da história”. A elite não está sozinha e terá, portanto, que aprender a conviver com as classes populares, representadas, sobretudo, pela população negra de origem africana. Esse contato entre gentes estranhas entre si esconde, em realidade, a dicotomia cultura erudita importada pelas elites e cultura popular, ou “culturas populares”, como constatamos da leitura de Moraes (2000). Tinhorão (1998, pp. 9-10) utiliza-se da visão marxista da história ao afirmar que em países capitalistas o modo de produção determina a hierarquização da sociedade em diferentes classes e a cultura constitui, em última análise, uma cultura de classes. Segundo esta perspectiva, divide a cultura em apenas dois planos: o da cultura das elites detentoras de poder político-econômico e das diretrizes para os meios de comunicação – que é a cultura do dominador – e a cultura das camadas baixas do povo urbano e das áreas rurais, sem poder de decisão política – que é a cultura do dominado (ibidem, p. 10). Mais do que essa divisão, o autor estabelece uma relação de dupla dominação da cultura dominante sobre a dominada: Acontece que nas nações em que a capacidade de decisão econômica não pertence inteiramente aos detentores políticos do Poder, como é o caso de países de economia capitalista dependente – e entre eles o Brasil em estudo –, a própria cultura dominante revela-se uma cultura dominada (ibidem, p. 10). Em sua História Social da Música Popular Brasileira, o país foi, ao longo dos anos, vítima do que chama de colonialismo cultural, revelado sob a forma de dominação econômica (ibidem, p, 11). Por outro lado, Moraes (2000, p. 214) considera a cultura popular como pluralidade, isto é, deve-se falar em culturas populares que ao mesmo tempo se transformam e/ou 16 permanecem em espaços e tempos definidos, e não em uma cultura popular pura e secularizada. Sendo assim, as “culturas populares”, ao estabelecerem relações entre si e em relação à cultura de elite, constituem-se a partir de trocas contínuas e permanentes, utilizandose das diferentes manifestações culturais existentes num determinado momento histórico. O conceito de apropriação, tomado de Chartier (2002), ilustra de que forma ocorrem tais trocas, ao introduzir as interpretações e os usos inscritos nas práticas específicas daqueles que os produzem. Segundo o autor (idem, 1995), a partir dessa idéia é possível desvincular as manifestações culturais, quaisquer que sejam, das hierarquias do mundo social, invertendo a perspectiva e delineando, primeiramente, a área social (freqüentemente compósita) onde circulam um corpus de textos, uma classe de impressos, uma produção ou uma norma cultural. Partir assim dos objetos, das formas, dos códigos, e não dos grupos, leva a considerar que a história sociocultural viveu por tempo demais sobre uma concepção mutilada do social (idem, 2002, p. 68-69). Dessa forma, mais importante que o lócus social onde tem espaço as manifestações culturais, é a forma como os personagens se apropriam dos e reivindicam para si os elementos nacionais que os identificam como seus. A partir dessa leitura, portanto, pretendemos sustentar o ponto de vista de Vianna (2010) e também justificar a utilização do conceito de equilíbrio de antagonismos tomado de Freyre (1954), ambos mencionados na introdução. Dada a complexidade da sociedade brasileira, não era possível eleger um ou outro modelo cultural como representativo de nossa nacionalidade. O autor demonstra inúmeros casos da penetração da música popular em salões da elite carioca, a exemplo de Catulo da paixão Cearense, fato ainda corroborado por Cabral (1975) ao narrar as relações de personalidades políticas do país com músicos populares, as quais serão demonstradas em seguida. De acordo com Vianna (2010, p. 41), a cultura brasileira é uma cultura heterogênea, em que podemos notar a “coexistência, harmoniosa ou não, de uma pluralidade de tradições cujas bases podem ser ocupacionais, étnicas, religiosas etc.” (Velho, 1981: 16). A heterogeneidade cultural é uma das principais características das sociedades complexas, que podem ser vistas como “produto não acabado de interação e negociação da realidade efetivadas por grupos e mesmo indivíduos cujos interesses são, em princípio, potencialmente divergentes” (Velho, 1980: 17). A heterogeneidade cultural do país equilibra, então, os antagonismos da nação, na medida em que se identificam manifestações culturais populares em espaços distintos e por indivíduos de diferentes posições sociais. A despeito dos anseios da elite republicana em instaurar um modelo cultural de matriz européia, o outro elemento que compõe tal 17 heterogeneidade cultural é identificado nas estratégias de resistência postas em prática pelas manifestações cultuais em dissonância aos desejos da elite. 1.2 Pelo Telefone. A expressão do samba Segundo Velloso (1988, p. 14-15), um exemplo dessa resistência cultural é a casa da Tia Ciata. Agregando elementos marginalizados pelas propostas modernizadoras – normalmente ex-escravos -, a Tia Ciata, através do candomblé, consegue criar uma verdadeira comunidade popular. Liderada pelos elementos negros oriundos da Bahia, essa comunidade vai oferecer alternativas de organização fora dos modelos da rotina fabril. Rejeitando os padrões vigentes – fornecidos pelos sindicatos anarquistas – essa comunidade se estrutura a partir de centros religiosos e festas. A Casa da Tia Ciata é fundamental para a questão do samba. José Ramos Tinhorão (1998), em sua História Social da Música Popular Brasileira, traz uma descrição sóciocultural existente naquela e em outras residências que se prestavam aos mesmos feitos: na sala ficavam os mais velhos e bem-sucedidos, que constituíam o partido-alto da comunidade, cultivavam seus versos improvisados entre ponteados de violão, lembrando os sambas sertanejos de roda à viola; os mais novos, já urbanizados, tiravam seu samba corrido cantado em coro na sala de jantar, aos fundos, e no quintal os brabos amantes da capoeira e da pernada, divertiam-se em rodas de batucada ao ritmo de estribilhos marcados por palmas e percussão (idem, ibidem, p. 276). É lugar comum na bibliografia acerca da música popular brasileira, que Pelo Telefone, a primeira canção batizada com o nome de samba, tenha surgido na casa da Tia Ciata. Para Tinhorão (ibidem, p. 277), a iniciativa do registro da música na Seção de Direitos Autorais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (requerimento de 6 de novembro, concedido a 20 e registrado a 27 do mesmo mês) vinha revelar o início do processo de profissionalização dos músicos com talento criador nascidos das camadas populares. Segundo Velloso (1988, p. 16), é dessa comunidade negra que nasce o embrião da cultura popular carioca. Sandroni (2001, p. 110) vai além, ao afirmar que a casa da Tia Ciata [...] cumpria a mesma função de válvula comunicante entre um “inconsciente negro-africano” e a “civilização branca”. 18 Contudo a música produzida na referida casa ainda não era o samba propriamente dito que viria a ser produzido por Noel e sua geração. Conta Fenerick (2005) que nem mesmo os sambistas freqüentadores da casa da Tia Ciata entravam em acordo quando o assunto era a definição de samba. Sérgio Cabral teria proposto a “clássica” pergunta: qual é o verdadeiro samba?, e os sambistas assim responderam: DONGA – Ué, o samba é isso há muito tempo: ‘O chefe da polícia/pelo telefone/mandou me avisar/que na Carioca tem uma roleta para se brincar’. ISMAEL SILVA – Isto é maxixe. DONGA – Então o que é samba? ISMAEL SILVA – ‘Se você jurar/que me tem amor/eu posso me regenerar/Mas se é/para fingir mulher/A orgia assim não vou deixar’: DONGA – Isso não é samba, é marcha (idem, ibidem, p. 225). Sandroni (ibidem, p. 179) afirma que o acompanhamento rítmico mais comum do samba folclórico até o início do século XX, aquele produzido na casa da Tia Ciata, parece ter sido pandeiro, prato-e-efaca e palmas, em clara aproximação com o partido alto, espécie de “trova”, que ocorria em forma de desafio e era dançado por apenas uma pessoa. O autor coleta entrevista concedida por Noel Rosa no início dos anos 1930, na qual ele elenca a utilização de instrumentos responsáveis por dar nova cadência ao ritmo: “aparecem agora, não se achando ainda popularizados. A cuíca que ronca. O tamborim repicando em torno do centro que faz a barrica...”. Sandroni (ibidem) explica que “Barrica” é uma maneira antiga de denominar o tambor grave hoje conhecido como surdo” e que, no início do século XX, não há sombra de menção a cuíca e surdo, e raras a tamborim (ibidem, p. 179). A meu ver, destaca ainda Sandroni (ibidem, p. 180), esta negação deliberada do pandeiro etc. como instrumento do samba está ligada, ao menos no caso de Noel, à afirmação do novo paradigma que surgia – o pandeiro de fato ainda era usado, como é até hoje; mas um samba sem pelo menos um instrumento da série cuíca, surdo e tamborim simplesmente já não era mais samba. Por novo paradigma, o autor refere-se ao paradigma do Estácio10, um tipo de samba que surgia nos anos 1920 e que, segundo Fenerick (2005, p. 230), era praticamente um sinônimo do samba feito e gravado com acompanhamento dos instrumentos de percussão fabricados pelos sambistas do morro, como os surdos e tamborins, o que teria conferido ao gênero uma modificação rítmica e timbrística. Assim, penso ser legítimo atribuir a estes três instrumentos o papel de signos identitários, dando a cuíca, surdo e tamborim o lugar de equivalentes 10 A tese de Sandroni (2001) procura identificar como se deu a mudança de paradigma, com a utilização dos novos instrumentos. 19 sintáticos de farofa, vela e vintém e de chapéu, tamanco e lenço (SANDRONI, ibidem, p. 181), objetos que daremos conta no capítulo 2. Surgia, dessa forma, um novo ritmo, que mais tarde seria considerado genuinamente carioca e brasileiro e capaz de acompanhar os desfiles carnavalescos. O equilíbrio de antagonismos manifesta-se, então, no interior das manifestações culturais que ocorriam no espaço de um mesmo círculo social. É nos anos 1930 que devemos procurar os elementos que definiram o novo estilo musical em consonância ao novo modelo de nação defendido pelos representantes do estado que nascia após a Revolução de 1930, capitaneada por Getúlio Vargas. 1.3 O samba, a prontidão e outras bossas, São nossas coisas, são coisas nossas! Em busca de uma nacionalidade (1930 – 1936) A transição de um ideário cosmopolita, típico do contexto da Belle Époque, a outro nacionalista e populista tem início com a derrocada do regime liberal da primeira fase Republicana (1889-1930). A ascensão de Getúlio Vargas ao poder, sustentado pela Aliança Liberal, representa o alijamento da velha elite republicana e faz nascer, assim, uma nova maneira de enxergar a nação, que tem na música popular a maior expressão de nossa nacionalidade. Embora adquira contornos mais definidos durante o período do Estado Novo (19371945), a política cultural varguista começa a ser gestada já nos primeiros anos após o golpe de outubro de 193011. Esta guarda, no entanto, íntimas relações com o contexto dos anos 1920, quando uma novidade tecnológica se instala no país: o rádio. Tratar da política cultural em 11 Neste aspecto, torna-se imprescindível a visão do período, segundo a qual o Estado Novo não significaria uma ruptura em relação à experiência liberal da fase precedente, na medida em que a centralização políticoadministrativa, bem como os alicerces do corporativismo imposto às estruturas de articulação e representação de interesse já estavam contidos no regime híbrido implantado após a vitória da Revolução de 30 (...). Dessa forma, o Estado Novo não pode ser analisado como um momento à parte, dissociado do conjunto das mudanças ocorridas ao longo do período 1930-1945. Entre as várias fases em que se pode dividir a chamada Era Vargas – O Governo Provisório de 1930 a 1934, o Governo Constitucional de 1934 a 1937 e o Autoritarismo Corporativista de 1937 a 1945 -, existe uma continuidade básica, na medida em que esses três momentos representam o desdobramento de um processo político que se inicia com a ascensão ao poder da coligação representada pela Aliança Liberal (FAUSTO, 2007a, p. 104). 20 questão significa, então, segundo os pressupostos do presente trabalho, tratar da relação da história do rádio no Brasil com a música popular brasileira, no caso específico, o samba. Rio de Janeiro. 7 de setembro de 1922. Exposição do Centenário da Independência do Brasil. O discurso do presidente Epitácio Pessoa e a ópera O Guarany, de Carlos Gomes, são transmitidos aos visitantes do evento e aos cidadãos que puderam acessar um dos 80 receptores instalados pela cidade. O episódio marcaria, então, a introdução do rádio no Brasil (CABRAL, 1996; OLIVEIRA, 2007). Ao longo da década de 1920, empresas de radiodifusão instalaram-se no país ainda sem qualidade técnica adequada e com características de associações particulares, veiculando programação elaborada pelos sócios que pagavam mensalidade. Sem função comercial, o rádio não transmitia anúncios de propagandas. A transição deste padrão a um modelo comercial, que modificaria radicalmente a organização do rádio no país, atribui-se ao ainda discricionário governo de Getúlio Vargas. Conforme Oliveira (2007), os Decretos nº 20.047, de 27/5/1931 e nº 21.111 de 1/3/1932 regulamentaram o funcionamento das emissoras, profissionalizando o rádio brasileiro. O primeiro criava uma Comissão Técnica de Rádio, com membros nomeados pelo presidente da República, garantindo ao governo a exclusividade na concessão de canais de rádio. No entanto, o elemento central para a mudança de características do modelo de radiodifusão, e que tem relação com a música popular, foi a autorização oficial para veiculação de anúncios, exarada através do Decreto-lei 21.111. Segundo Fenerick (2005), a partir deste momento, ao adotar o modelo de radiodifusão norte-americano de distribuição de concessões de canais a particulares, o país introduzia o pagamento de cachês pelas apresentações de músicos, cantores e humoristas em sua programação. Já no início da década de 1930, a música popular ganha, então, espaço na programação do rádio e é projetada a todo o país e também ao exterior. Segundo Cabral (1996), nesta época, parcela significativa da classe média que compõe a embrionária sociedade de massas brasileira tem acesso ao aparelho de rádio devido à venda a crédito. Ainda que o Decreto nº 21.111 de 1932 seja considerado um marco na relação da história do rádio com a música popular, o envolvimento de Getúlio Vargas com a questão é ainda anterior. Não seria exagero afirmar que sua política cultural inicia-se antes mesmo de assumir a cadeira presidencial. Quando ainda deputado federal pelo Rio Grande do Sul, foi autor do Decreto Legislativo 5.492, de 16 de julho de 1928, que viria a se transformar na chamada Lei Getúlio Vargas, nº 18.527, de 10 de dezembro do mesmo ano, estabelecendo o 21 pagamento de direitos autorais aos compositores sempre que as músicas fossem veiculadas comercialmente. Segundo Cabral (1996; 1975), a questão dos direitos autorais era ainda nebulosa nos anos 1920, caracterizados pela falta de noção comercial da música enquanto composição. O compositor Cartola – Angenor de Oliveira (1908-1980), em entrevista ao autor, teria respondido a uma proposta: “Comprar um samba meu? Pra quê?” (...) comprar um samba, acrescenta o autor, era como comprar o vento, a chuva, qualquer coisa, enfim, que jamais seria comercializada (idem, 1996, p. 30). É somente a partir dos primeiros anos da década de 1930, que um processo de conscientização profissional dos compositores entra em curso. Esta ausência de percepção comercial relativa aos direitos de composição era suprida, em grande parte, pela possibilidade de trabalho oferecida pelo cinema mudo, lógica segundo a qual grupos musicais tocavam nas salas de espera e acompanhavam a projeção do filme. No entanto, em 1929 chegava ao Brasil o cinema falado12 e, juntamente, instaurava-se uma crise no mercado de trabalho dos músicos. Já nos últimos meses de 1930, o presidente Getúlio Vargas recebia uma comissão representando a classe musical, formada por personalidades brasileiras como Pixinguinha, Donga e Napoleão Tavares, chamando atenção ao problema daquele momento. O documento13 entregue pessoalmente a Getúlio delineava, em verdade, uma política cultural ausente até aquele momento, na medida em que exigia a obrigatoriedade da inclusão de dois terços de música brasileira em todo e qualquer programa das casas de diversões, com uma cabal execução da grande Lei número 18.527, de 10 de dezembro de 1928, chamada Lei Getúlio Vargas, impelindo ao pagamento de direitos todas as sociedades de rádio, cafés e outros estabelecimentos que possuam vitrola, os quais se têm furtado até hoje a esse pagamento por mera condescendência das autoridades incumbidas de zelar pelo fiel cumprimento dos dispositivos legais (...). Regulamentar a questão importante dos filmes sincronizados (...), quer pela obrigatoriedade de conservação de orquestras típicas nacionais nos salões de espera ou nos salões de exibição (...), quer lançando impostos pesado para esse gênero de filme. Obrigatoriedade das casas editoras de fazerem confeccionar convenientemente nas edições de papel as músicas brasileiras (...) (apud CABRAL, 1996, p. 32-33). Em fevereiro de 1932, Getúlio receberia novo documento, desta vez das mãos do já consagrado compositor e maestro Heitor Vila-Lobos, solicitando a adoção de uma política 12 As transformações introduzidas pelo cinema falado, balizado segundo o modelo norte-americano, foram registradas por Noel Rosa, sempre atento às questões de seu tempo, no samba Não tem tradução, de 1933: O cinema falado / É o grande culpado / Da transformação / Dessa gente que sente / Que um barracão / Prende mais que um xadrez. / Lá no morro, se eu fizer uma falseta, / A Risoleta / desiste logo do francês e do inglês (...). Amor, lá no morro, é amor pra [chuchu, / As rimas do samba não são “I Love [you”. / E esse negócio de “alô”, “alô, boy”, / “Alô, Johnny” / Só pode ser conversa de telefone (MÁXIMO & DIDIER, 1990, p. 243). 13 A carta na íntegra poder ser lida em Cabral (1996), p. 32-33. 22 cultural que resolvesse o problema do desemprego de músicos no país, que já somavam 34 mil. A essa altura já estava criada, através do decreto nº 20.047 de 1931, a Comissão Técnica de Rádio e, graças ao decreto nº 21.111, de 1932, o Programa Casé14, apresentado por Ademar Casé na Rádio Philips do Rio de Janeiro, pôde introduzir a novidade da contratação de cantores com exclusividade (CABRAL, 1996, p. 34), viabilizada pelo pagamento de cachê. A programação contava com o quadro Curiosidades musicais, apresentado por Almirante, programa idealizador do primeiro Concurso de Palavras Cruzadas, no qual Nássara, sob o prisma publicitário, criou ali o primeiro anúncio cantado, com melodia própria para fado (ALMIRANTE, 1967, p. 93-94; CABRAL, 1996; DIDIER, 2010). A letra dizia: Ó Padeiro desta rua, / Tenha sempre na lembrança: / Não me traga outro pão / Que não seja o pão Bragança (DIDIER, 2010, p. 56). Dessa forma, uma política cultural incipiente oferecia às emissoras de rádio a possibilidade de diversificação da programação. Conforme mencionamos anteriormente, a política cultural varguista, mais delineada durante o período do Estado Novo, já ganhava corpo nos primeiros anos após o golpe de 1930. Em julho de 1932, quando explode, em São Paulo, a Revolução Constitucionalista15, características do regime autoritário que seria instaurado em 1937 tornam-se mais evidentes. Referimo-nos à censura oficial ao rádio que se instalou naquele momento. Segundo Oliveira (2007, p. 339), tal revolução fora a primeira grande mobilização política que usou o rádio (...), com as emissoras comandando os campos de luta. Neste contexto, o governo tentou impedir que as rádios do país divulgassem qualquer notícia sobre a insurreição paulista (CABRAL, 1996, p. 37), principalmente a Rádio Record, que assumiu papel de porta-voz dos rebeldes paulistas. À Rádio Philips, onde improvisavam Noel Rosa e a cantora Marília Batista (1918-1990), conta Cabral (ibidem), baseado em entrevista concedida por Ademar Casé, foi enviado um agente a fim de vigiar os artistas: Naqueles dias em que ocorria a Revolução Constitucionalista, o policial da censura decidiu ficar dentro do estúdio para saber se os artistas cariocas faziam algum sinal para os revoltosos de São Paulo (idem, ibidem, p. 38). A máquina estatal responsável pelo controle das informações existia, no entanto, desde 1931, 14 O Programa Casé contava com uma equipe composta, em bom português, pela “nata” dos músicos e compositores da época: Noel Rosa, Haroldo Barbosa, Orestes Barbosa, Luís Peixoto, Antônio Nássara, Almirante, entre outros (CABRAL, 1996). 15 Sob múltiplos aspectos, a Revolução de 1932 constitui um marco para o movimento revolucionário do pós-30. Simbolicamente, podemos situá-la como o acontecimento que inaugura o processo de reconstitucionalização do país e que pôs fim ao regime de força característico dos primeiros anos da década. Apesar de derrotada militarmente, essa revolução consegue impor o objetivo político a que se propunha: a imediata e completa reconstitucionalização através da convocação da Constituinte (FAUSTO, 2007a, p. 25). 23 com a criação do Departamento Oficial de Propaganda, com objetivos de observar os meios de difusão (FENERICK, 2005, p. 66), já sob a direção de Lourival Fontes. Em 1934, é transformado em Departamento Nacional de Propaganda e Difusão Cultural (DPDC), órgão que, em 1939, já sob o Estado Novo, viria a se tornar o poderoso Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), responsável por promover o regime, mas também por fazer censura do teatro, do cinema, de funções recreativas e esportivas, da radiodifusão, da literatura, da imprensa (CABRAL, 1996, p. 56). Lourival Fontes, desde 1931, foi sempre o homem que esteve à frente dos órgãos responsáveis pela imagem e promoção do governo Vargas. Cabral (1996) colheu entrevistas concedidas por Fontes à imprensa local em 1936, nas quais ele reflete as diretrizes da política estatal. Em uma delas, para o Diário da Noite, ao comentar uma transmissão à Itália fascista, teria afirmado: E, assim, pelo rádio, pela imprensa e pelo cinema estamos realizando uma obra duradoura, patriótica e sincera, cuja finalidade superior consiste justamente no ideal que todos devemos cultuar de tornar o Brasil conhecido no mundo inteiro (apud idem, ibidem, p. 56). Em outra ocasião, em entrevista publicada na revista A Voz do Rádio, ao receber a sugestão de que o governo estabelecesse a censura prévia das letras de música popular, objetivando um saneamento das mesmas, o diretor respondeu: A sugestão d’A Voz do Brasil se reveste de ineludível cunho patriótico e se me afigura de inadiável execução (...). Para acentuar o relevo da sugestão que acaba de fazer, bastaria citar o caso do México, onde a música popular não é apenas censurada. Foi padronizada por forma a evitar que, com o tempo, fatores estranhos ao país ou os próprios compositores possam deturpar o que, nos moldes da padronização, foi fixado como ‘música popular mexicana’ (apud idem, ibidem, p. 57). Ante à insistência do repórter em tornar a medida efetiva o quanto antes, comprometeu-se Fontes: (...) apreciando devidamente a sugestão d’A Voz do Brasil, vou pleitear para o Departamento – e certamente obterei – seja incluída na regulamentação a ser decretada a função de censor da letra da música popular brasileira (apud idem, ibidem, p. 57). Mas voltemos a 1933, para expor mais um episódio que se atribui à construção da política cultural varguista e ao comprometimento pessoal de Getúlio com a classe musical. Em 11 de junho, as emissoras de rádio do país entraram em greve contra a decisão da Sociedade Brasileira de Direitos Autorais Teatrais, a SBAT, de aumentar de 90 mil-réis mensais para 500 mil-réis o pagamento de direitos autorais pelo uso de música em suas programações (CABRAL, 1996, p. 41). Este acontecimento retoma a crise no mercado de 24 trabalho dos músicos relatada anteriormente e expõe, dessa forma, a ainda frágil política cultural varguista. O compositor Freire Júnior, da diretoria da SBAT, justificava a decisão recorrendo ao cumprimento da Lei Getúlio Vargas, instrumento que havia fixado o valor para pagamento dos direitos em questão (idem, 1975). Graças à iniciativa de Getúlio, chegou-se a um acordo: 300 mil-réis por mês de cada estação de rádio, como pagamento dos direitos autorais dos compositores (idem, ibidem, p. 42). O relato exposto até aqui tentou dar conta do cenário político e cultural dos primeiros anos da chamada Era Vargas, entre os anos de 1930 e 1936. Ao longo do texto, buscamos elencar não só as ações governamentais através da criação de órgãos públicos, mas também o interesse do novo governo em atender e aproximar-se das classes artísticas. Cabral (1975) traz, inclusive, uma aproximação pessoal do presidente. Segundo ele, Getúlio mantinha laços de amizade com cantores populares como Mario Reis e Aloísio de Oliveira e oferecia recepções no Palácio do Catete ao som de conjuntos como o Bando da Lua. Conforme o mesmo autor, em 1933, Mário Reis compareceu ao Catete para expor a sugestão de Orestes Barbosa da criação de uma Orquestra Típica Brasileira. O governo não só aceitou como promoveu a apresentação, sob a regência de Pixinguinha na Rádio Clube. O então ministro da Fazenda Oswaldo Aranha, presente na ocasião, declarou: Só posso ter palavras de elogio para o que acabo de ver e ouvir: gente do meu país, música do meu país. Sou dos que sempre acreditaram na verdadeira música nacional. Não creio na influência estrangeira sobre a nossa melodia. Nós somos um povo novo. E a praxe é que os povos novos vençam os antigos. O Brasil, com a sua música, há de vencer (...) (apud idem, ibidem, p. 38). De cunho pessoal ou não, a íntima relação entre a música popular e o governo Vargas é facilmente detectada. O discurso do ministro evidencia uma última questão a ser abordada: a identidade nacional associada ao samba como coisa nossa, vinculação consolidada durante o Estado Novo16. De acordo com Velloso (1997, p. 108), a partir da Revolução de 1930, o governo já esboçava uma política para estabelecer elos com as manifestações culturais populares, antes tão estigmatizadas. Seguindo esta lógica, tentava emplacar o discurso do país novo, ou do povo novo, como declarou o ministro Oswaldo Aranha em discurso citado anteriormente. Esta tentativa de inovação esbarrava, no entanto, na falta de unidade em relação às cores da nação. 16 Neste ponto, uma vez mais, se faz necessário a observação de que o Estado Novo “não pode ser analisado como um momento à parte, dissociado do conjunto das mudanças ocorridas ao longo do período 1930-1945” (FAUSTO, 2007a, p. 104). 25 Os trechos das entrevistas concedidas por Lourival Fontes, diretor do DPDC, em 1936, os quais reproduzimos anteriormente, dão uma dimensão das questões que estavam em pauta na sociedade daquele momento. No cerne do problema está a necessidade de regeneração da música popular, devido ao incômodo que o sucesso do samba gerava em alguns setores da sociedade. Artigos veiculados na imprensa da época chegaram a tratar o gênero musical como sinal de decadência cultural e até moral. Geralmente, os autores dos textos sequer disfarçavam uma postura racista classificando o samba como “coisa de negros” (ibidem, p. 54). Nesse sentido, Noel, que era branco, ajudava, mesmo que não intencionalmente, a elencar os elementos da nação, aproximando-os do povo novo: Em 1932, compôs São Coisas Nossas, na qual afirmava: O samba, a prontidão e outras [bossas, / São nossas coisas, são coisas [nossas! (Noel, 2000, v. 3). O rádio desempenharia, neste contexto, um papel central. Segundo Fenerick (2005), para a classe dominante da sociedade brasileira o problema racial se impunha de forma premente e era uma questão não resolvida no samba (...). Juntamente com as questões raciais, e sem poder estar desvinculado destas, um outro debate que se fazia no período dizia respeito a “aparência do samba”, especialmente quando ele era pensado como um possível representante da música brasileira, como um possível representante do Brasil no exterior. Em outras palavras, o negro, a pobreza, a malandragem – e tudo mais que estivesse relacionado com os morros cariocas (ou com a miséria geral) – na visão das elites e dos setores médios da sociedade, não poderiam de forma alguma ser os representantes brasileiros no mundo moderno (...). Desse ponto de vista, o samba poderia ser aceito pela sociedade, porém, um samba limpo, higiênico, civilizado, enfim, um samba vinculado com a imagem dos brancos. E, de acordo com esse tipo de pensamento, o agente civilizador do samba já existia no Brasil: era o rádio (ibidem, pp. 70-71). O samba como elemento nacional estava, então, tentando ocupar seu espaço. Mas não se trata de qualquer samba. O processo de educação e de limpeza do gênero musical, que se estende até os anos 1940, com a contribuição de importantes artistas oriundos dos setores médios – o próprio Noel, Carmen Miranda, Francisco Alves, Ari Barroso, entre outros –, somente vai tomar a forma e a cara do país que queria Vargas, sob o rígido controle do DIP, durante o Estado Novo. Contudo, para os limites deste trabalho, fiquemos com a interpretação de Vianna (2010), de que o samba foi elevado a status de elemento da cultura nacional pelos Revolucionários de 1930. Conforme o autor, o fim da hegemonia oligárquica teve início com as “as reivindicações de vários grupos desvinculados da economia cafeeira” (Fausto, 1975: 239), formados principalmente pelas “facções burguesas não vinculadas ao café, as classes médias e o setor militar tenentista” (Fausto, 1975: 246), que desembocaram na formação da Aliança liberal, agrupamento responsável pela ascensão do gaúcho Getúlio Vargas à presidência da república em 1930. Essa heterogeneidade da Aliança Liberal, inclusive regional (com acordos entre lideranças de vários estados, como o Rio 26 Grande do Sul e Paraíba, que não participavam na economia cafeeira) acabava necessitando de princípios organizadores nacionais para sustentar suas estratégias políticas. Nunca a “unidade”, já que a Aliança Liberal não tinha “ideologia própria no plano nacional” (Lauerhass Jr., 1986, 95), foi tão necessária para o regime político brasileiro (ibidem, p. 60). Neste contexto, a cultura popular regional e urbana do Rio de Janeiro, por diversos motivos, predominou no novo “todo” (ibidem, p. 62). De acordo com sua análise, esse fato guarda relação com os debates sobre as raízes da identidade brasileira: durante as primeiras décadas do século XX, os mulatos e o urbano passam a ocupar, cada vez mais, o centro das atenções [...]. No campo da música, o samba vira símbolo nacional, ao passo que as canções “caipiras” paulistas e os ritmos nordestinos começam a ser vistos como fenômenos regionais (ibidem, p. 70). Exploremos, por fim, a vida de Noel Rosa, a fim de aproximá-la dos pressupostos da política estatal e de elucidar, uma vez mais, o equilíbrio de antagonismos que permeia sua existência como indivíduo que cresce no contexto da Belle Époque brasileira e atinge maturidade durante os anos 1930. 1.4 O Tangará vai para a faculdade. 26 músicas no primeiro ano. O Poeta da Vila Noel de Medeiros Rosa (1910-1937), que, segundo Máximo & Didier (1990, p. 25), recebe este nome por ter nascido às vésperas do Natal e pelo amor do pai às coisas de França, o idioma, a cultura, a história do país de Bonaparte, cresce e compõe suas músicas influenciado tanto pelo contexto da Belle Époque brasileira, quanto pelo dos anos 1930. Máximo & Didier (1990) ilustram o microcosmo em que está inserido. Pelas ruas de Vila Isabel, bairro de classe média emergente, localizado entre o morro e a cidade, ele vê a população sonhar com uma vida mais confortável e luxuosa, endividando-se através da figura do imigrante prestamista que alimentava os desejos de ascensão social. Conforme os autores (ibidem, p. 42), Noel jamais se livrará inteiramente dos preconceitos que desde menino guarda em relação a todo imigrante; verdade ou não, a temática existe em Cordiais Saudações, samba de 1931: Vinte mil réis, vinte e um e quinhentos, cinqüenta mil réis!/ Quem arremata o lote é um judeu/ quem garante sou eu/ Pra vendê-lo pelo dobro no museu (Noel, 2000, v. 2). No ambiente doméstico, vivencia os saraus familiares, cuja essência é a mesma daqueles existentes nas mansões da elite, tocando bandolim e aprendendo as primeiras 27 posições no violão. Vila Isabel e os bairros de classe média ficam no meio do caminho entre a simplicidade [dos subúrbios] e o esnobismo das mansões da elite (Máximo & Didier, 1990, p. 50). A educação que recebera Noel segue o padrão da classe média. Em 1923 é matriculado no Ginásio São Bento, escola mantida por monges beneditinos e, portanto, de forte orientação cristã. Porém Noel não tinha vocação para os estudos. Em 1928 sua turma formava-se bacharel em ciências e letras; ele, no entanto, seria jubilado, em 1930, por ocasião da Revolução de 1930. No musical bairro de Vila Isabel, Noel preferia o botequim, este novo locus do samba, de onde se ouvia música romântica e serestas. No ano seguinte, influenciado pela família, que acumulava gerações de médicos, Noel entra na Faculdade de Medicina. O fascículo Noel Rosa da Coleção História da Música Popular Brasileira (1970, p. 4) ilustra bem a falta de talento para a profissão que, em verdade, lhe escolhera a família: O Tangará vai para a faculdade. 26 músicas no primeiro ano. Desde 1929, Noel compunha o Bando dos Tangarás, grupo liderado por Almirante. Num primeiro momento, influenciado pelo sucesso de grupos de música regionalista, compõe canções sertanejas, como a toada Festa no Céu e a embolada Minha Viola, ambas em 1929; contudo, conforme Máximo & Didier (1990, p. 115), Noel Rosa é do Rio de Janeiro. Carioca impertinente, acaba concluindo que é mesmo o samba o idioma em que melhor poderá expressar suas idéias e sentimentos, seu cotidiano, sua realidade. O próprio Noel sustenta o argumento dos autores em O X do Problema, de 1936: Nasci no Estácio Eu fui educada na roda de bamba Eu fui diplomada na escola de samba Sou independente, conforme se vê (Noel, 2000, v. 10). Se aceitarmos o argumento de Fenerick (2007), Noel foi responsável por deslocar o samba de seu locus original privado, as casas das tias baianas, para o espaço público delimitado pelo botequim, seja no morro ou na cidade. Desprovido de suas significações que causavam medo em parte da elite carioca e brasileira (o malandro/marginal e o feitiço da macumba), o samba/música pode se associar a um outro universo simbólico, externo à concepção estritamente musical: a cidade do Rio de Janeiro (FENERICK, 2005, p. 250), o que é facilmente observado em inúmeras de suas composições que “viajam” pelos bairros cariocas, uma delas, Palpite Infeliz, analisada no capítulo 2. 28 Trata-se novamente do equilíbrio de antagonismos, agora identificado também em sua vida. Neste aspecto, os próprios instrumentos que caíram nas graças do compositor evidenciam as contradições que viemos pontuando. O violão era instrumento considerado pejorativo na sociedade da época. Em Triste fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto (2011), publicado em forma de folhetim durante dois meses em 1911, a vizinhança do Major Quaresma, ao ver entrar em sua casa um senhor portando violão, teria afirmado: Um violão em casa tão respeitável! Que seria? [...] Mas que coisa? Um homem tão sério metido nessas malandragens (idem, ibidem, p. 73)! E não era só a vizinhança que tripudiava o instrumento. A irmã também teria afirmado: - Policarpo, você precisa tomar juízo. Um homem de idade, com posição, respeitável, como você é, andar metido com esse seresteiro, um quase capadócio – não é bonito (idem, ibidem, p. 75). Também Cabral (1996) faz alusão ao aspecto negativo do violão. Ao narrar a execução d’O corta-jaca, uma das músicas mais famosas de Chiquinha Gonzaga e já bastante conhecida do público através do teatro, por Nair de Teffé, esposa do então presidente Hermes da Fonseca (1910-1914), conta a reação dos conservadores ante o acontecimento: um duplo pecado: música popular numa recepção presidencial e tocada por violão! Logo um violão, um “instrumento de capadócios” (ibidem, p. 13). Os fatos denunciam uma espécie de brasilidade que se manifesta quase inconscientemente no compositor. Para decifrarmos esse enigma é preciso não esquecer da longa tradição de relações entre vários segmentos da elite brasileira [...] com as várias manifestações da musicalidade afro-brasileira (Vianna, 2010, p. 37), mencionada na introdução e ilustradas pelas figuras de Catulo da Paixão cearense para o período da Belle Époque e pelas boas relações que mantinha com intelectuais a primeira geração de sambistas representada por Donga durante os anos 1920. Da mesma forma, já nos anos 1930, até mesmo o presidente Getúlio Vargas oferecia recepções no Palácio do Catete ao som de conjuntos populares, como o internacional Bando da Lua. O entendimento de tal equilíbrio de antagonismos identificado na vida de Noel pode ser justificado pela visão exposta por Henry Raynor (1981, p. 9) em sua História Social da Música: A música só pode existir na sociedade; não pode existir, como também não pode uma peça, meramente como página imprensa, pois ambas pressupõem executantes e ouvintes. Está, pois aberta a todas as influências que a sociedade pode exercer, bem como às mudanças nas crenças, hábitos e costumes sociais. 29 Mais do que isso, a música não pode existir isoladamente do curso normal da história e da evolução da vida social, pois a arte em parte surge [...] da vida que o seu criador leva e dos pensamentos que tem (ibidem, 1981, p. 23). O argumento do autor sustenta, então, a influência do contexto histórico na obra e na própria vida de Noel. 30 CAPÍTULO 2. A música revela a nação. Antagonismos em equilíbrio nas composições de Noel Rosa em polêmica com Wilson Batista Conforme mencionamos na introdução, dentre a bibliografia encontramos o long play Polêmica (1956) idealizado por Wilson Batista, conforme Pimentel (1996). O disco, por configurar-se como o único registro do duelo entre Noel e Wilson, torna necessário, então, redefinir a polêmica. As incoerências levantadas nas informações, principalmente quanto a datas, acabaram conduzindo a seleção das composições objeto de análise deste trabalho. Há quem questione, inclusive, a existência do duelo. No encarte do LP Polêmica, Wilson garante que ele ocorreu. No entanto, o fascículo Wilson Batista da Nova História da Música Popular Brasileira (1978) contém matéria intitulada Esta polêmica existiu mesmo? Lê-se no início do texto da página 7: Noel Rosa teve mesmo o propósito de sustentar polêmica com Wilson Batista? Um dos parceiros de Wilson, Henrique de Almeida, afirma que não: - Noel era Noel, não criaria polêmica com um compositor sem expressão. Assim, conforme afirmamos na introdução, considerando como critérios os registros oficiais de gravação das primeiras versões das composições e as letras que dialogam entre si, selecionamos Lenço no Pescoço, Rapaz Folgado, Feitiço da Vila, Conversa Fiada e Palpite Infeliz, que são analisadas neste capítulo. Além dessas, o long play contém Mocinho da Vila, de Wilson – que, de acordo com Máximo & Didier (1990, p. 296), sequer seria lançado no rádio, Wilson Baptista limitando-se a cantá-lo aqui e ali, apenas para o pessoal do meio artístico. Só em 1956, interpretado por Roberto Paiva, teria sua primeira gravação, na Odeon –. Há ainda Frankstein da Vila, interpretada pelos “4 Diabos” (ALMIRANTE, 1963, p. 144; PIMENTEL, 1996, p. 33), e Terra de Cego, ambas compostas por Wilson em 1936 (GOMES, 1985), e João Ninguém, de Noel. Quanto às duas últimas canções de Wilson, optamos por não serem objeto de análise, considerando que a primeira trata-se de um ataque pessoal ao defeito físico que Noel carregava na mandíbula e que a segunda só fora gravada por ocasião do Polêmica, em 1956 (Pimentel, 1996, p. 134). Quanto a Terra de Cego, afirmam Máximo & Didier (1990) e Almirante (1963) que Noel, utilizando a mesma melodia, teria composto nova letra, desta vez fazendo alusão a uma mulher, supostamente Ceci, a dama 31 do cabaré com quem Noel teria se envolvido17. Por fim, João Ninguém não figura nem mesmo na obra de Almirante (1963) e, tampouco, parece ter relação com o duelo. 2.1 Proponho ao povo civilizado, Não te chamar malandro, E sim de rapaz folgado De acordo com a delimitação da polêmica definida para o presente trabalho, a primeira canção de Noel no duelo, em resposta a Lenço no Pescoço de Wilson Batista, foi Rapaz Folgado, em 1933. Segundo Almirante (1963), era moda nos meios musicais da época o tema da malandragem, ainda que a imprensa apontasse-o como inconveniente, ligado à delícia do não trabalhar, às atrações dos desocupados (idem, ibidem, p. 140). Os jornais atacavam o malandro que Wilson exaltava em Lenço no Pescoço (1985, pp. 54-55): Meu chapéu de lado tamanco arrastando lenço no pescoço navalha no bolso, eu passo gingando provoco e desafio, eu tenho orgulho em ser tão vadio. Sei que eles falam deste meu proceder eu vejo quem trabalha andar no miserê Eu sou vadio porque tive inclinação, eu lembro era criança tirava samba-canção (GOMES, 1985, p. 55). A figura cantada por Wilson reflete aqueles padrões de comportamento assinalados por Sevcenko (2004), para o início do século XX. Naquele contexto, a figura popular do “malandro” compensa suas carências realçando atributos pessoais como o porte, a atitude, a extravagância, os maneirismos, a gestualidade, o humor, a malícia, a audácia, o ritmo e a linguagem arredia, por meio dos quais congrega e passa a irradiar muitos dos valores mais representativos dos comportamentos e vivências estimuladas pela cidade moderna (idem, ibidem, p. 44). Para Sandroni (2001, p. 169), o malandro de Wilson é visto em sua indumentária e atitude corporal típicas [...] e corresponde fielmente à descrição do capadócio Firmo, em O Cortiço, 17 No filme Noel, Poeta da Vila (1996), o romance entre Noel e Ceci é tratado, pelo diretor, com destaque. 32 de Aluísio de Azevedo, publicado em 1890. No entanto, ainda assim, o personagem literário não é caracterizado como malandro18. Para Vianna (1998), Wilson Batista, renomado sambista negro, situa-se na fronteira entre a arte e o crime e seu malandro, não obstante ter na música um meio de vida na fronteira entre o trabalho e o lazer, prescinde da arma branca para o ataque e a defesa, no sentido de se afirmar e sobreviver (idem, ibidem, p.110). A resposta de Noel ao malandro de Wilson, em Rapaz Folgado, permite esmiuçar a comparação do musicólogo: Deixa de arrastar o teu tamanco Pois tamanco nunca foi sandália E tira do pescoço o lenço branco Compra sapato e gravata Joga fora essa navalha Que te atrapalha. Com chapéu do lado deste rata Da polícia quero que escapes Fazendo samba-canção Já te dei papel e lápis Arranja um amor e um violão Malandro é palavra derrotista Que só serve pra tirar Todo o valor do sambista Proponho ao povo civilizado Não te chamar malandro E sim de rapaz folgado (Noel, 2000, v. 11). Segundo Fenerick (2005, p. 245), Rapaz Folgado deve ser entendida num contexto em que se vislumbrava a possibilidade de viver do samba: Noel, que sempre optou por uma estratégia diferente para abordar o malandro, “desmonta” a personagem de Wilson Batista, tanto no seu aspecto físico (da indumentária) como no seu modo de se relacionar com o samba, e a recoloca, por meio de “propostas”, num plano regido por novas possibilidades de atuação. Ao oferecer papel e lápis, a arma branca evidenciada por Vianna (ibidem) quer valorizar o sambista ante o povo civilizado. Esta última afirmação justifica o comentário de Almirante, anteriormente citado, de que Noel teria produzido Rapaz Folgado movido por louvável interesse pela regeneração dos temas poéticos da música popular (ALMIRANTE, 1963, pp.140-141). Noel é homem do seu tempo e, ao lançar mão de uma aproximação do malandro 18 Para o autor, talvez o único traço que faltava para caracterizar o capadócio como malandro fosse efetivamente o emblema sonoro irrecusavelmente carioca que lhe será dado com a mudança estilística [...]. Assim, a qualificação do malandro como personagem distinto na cultura carioca vai passar por uma nova qualificação do próprio samba: a criação do novo estilo, identificado num primeiro momento no bairro do Estácio de Sá (SANDRONI, 2001, p. 170). 33 com o músico profissional, malandro regenerado, o insere no contexto nacional dos anos 1930, o da valorização do mundo do trabalho, desejando que o malandro de Wilson escape da polícia, trabalhando com samba-canção. Para Vianna (1998), Noel critica a identificação do sambista com a malandragem, entendida como limiar com o mundo marginal/criminoso. Noel sugere ao sambista permanecer na fronteira entre trabalho e lazer, mas abandonar a proximidade com o crime, viver de maneira menos bárbara e mais integrada à civilidade burguesa, de modo a não ser perseguido e sim prestigiado (idem, ibidem, p.111). Ambas as representações do malandro afirmam, portanto, a fronteira entre o trabalho e o lazer, mas uma aproxima o malandro sambista do mundo da contravenção e do crime, valorizando sua valentia, outra afasta-se deste mundo, mantendo-o na boemia e valorizando sua inteligência (idem, ibidem, p. 112). Segundo Fausto (2007b), a intensificação da vida urbana no Brasil, em curso desde o final do século XIX, atinge certa flexibilidade social nos anos 1930. Recorre o autor a um texto clássico de Antônio Cândido, Dialética da Malandragem, no qual analisa o folhetim Memórias de um Sargento de Milícias, publicado por Manuel Antônio de Almeida em meados do século XIX, a fim trazer à cena a personagem que melhor representa aquela flexibilidade social. Obra considerada introdutora da temática da malandragem na literatura nacional, nela é apresentada a personagem picaresca de Leonardinho, gênese do malandro, destacando-a como figura do intermediário entre a dialética da ordem e da desordem: a primeira típica do sistema escravista, caracterizada pelo mando; a segunda, representada por uma sociedade na qual uns poucos livres trabalhavam e os outros flauteavam ao deus-dará, colhendo as sobras do parasitismo, dos expedientes, das munificências, da sorte e do roubo miúdo (CÂNDIDO apud FAUSTO, 2007b, p. 615). A dialética da ordem e da desordem possibilitara, assim, o surgimento de novos tipos sociais, entre os quais, especificamente para este trabalho, a figura do malandro. O que está em discussão na letra de Noel é a transformação deste intermediário, desde um papel de malandro-aproveitador em direção ao que definimos aqui como o malandrosambista profissional, apropriando-se de novas formas de trabalho oferecidas pela flexibilidade do cenário urbano. Contudo, forjado no locus urbano entre o morro e o asfalto, esse novo indivíduo “trabalhador”, embora cantado por um compositor branco, não poderia prescindir dos valores da cultura popular que, ao longo das primeiras décadas do século XX, estão amalgamados com elementos africanos. Tal fato é ilustrado pelo registro de Pelo 34 Telefone, por Donga, freqüentador da casa da Tia Ciata, na Cidade Baixa, locus da população negra oriunda da Bahia. Assim, o florescimento do ambiente urbano permitiu o ponto de mistura criativa entre os sons cindidos pela Casa Grande e a Senzala, criando o espaço de uma síntese original entre influências musicais africanas, européias e, em menor grau, do índio da terra (FAUSTO, ibidem, p. 613). Ao despir o malandro tradicional que procurava diferenciar-se ao circular gingando pelo bulevar, vestido com tamanco, lenço branco, chapéu de lado e navalha, Noel introduz o malandro “bem apresentável”, de sapato e gravata, que, no início dos anos 1930 aproxima o malandro-sambista, encontrado nos meios populares, do burguês. No entanto, se retornarmos ao personagem Firmo, mencionado anteriormente, o encontraremos negro e de paletó de lustrina preta. Observa-se, então, uma identidade não acabada do sambista que, indiscutivelmente, gesta-se entre meados do século XIX, com elementos da Belle Époque brasileira, e os anos 1930, aglomerando elementos culturais e também raciais. Esta constatação retoma aquele conceito de equilíbrio de antagonismos, criado por Freyre (1954). Segundo Souza (2004, p. 41), o Estado que surge a partir de 1930 (...) implicou também, no plano ideológico, uma definição da “nação como um espaço unitário e avesso à diferenciação. A política de “brasilianização” forçada das diversas etnias existentes no Brasil é um testemunho expressivo. Conforme já afirmamos na introdução, desde Manuel Bonfim (2005) a interpretação do Brasil desloca-se de um paradigma de natureza étnico-racial, herança do século XIX, em direção a outro de natureza sociocultural, que alcança grandes proporções na década de 1930. Enquanto buscava-se, durante o século XIX, definir o brasileiro através dos elementos étnicos que compunham a nação, as análises da década de 1930 convergem para a ênfase na unidade e a fuga da diferença (SOUZA, ibidem p. 42). Para este trabalho, nos interessa mais especificamente o conceito de mestiçagem, igualmente tomado de Freyre (1954) em Casagrande e Senzala. Segundo o antropólogo pernambucano, a mestiçagem, entendida como síntese sócio-étno-racial, seria a garantia de nossa especificidade. Para Souza (2004), essa noção de brasilidade encontra o melhor exemplo na música popular, considerando que o malandro (...) passa a ser uma espécie de materialização transfigurada dessa brasilidade exótica, indiferenciada e autocomplacente na dimensão da vida cotidiana e da cultura popular (...). Na falta de uma efetiva compreensão da especificidade das classes subalternas no Brasil e processo de modernização, a figura do malandro, a fantasia do malandro passa a povoar e aos poucos dominar o imaginário social e artístico acerca do brasileiro que supostamente transitaria entre as classes sociais (idem, ibidem, p. 45). 35 Dado o equilíbrio de antagonismos que forja nossa identidade e, de quebra, a figura do malandro como detentor da brasilidade, ou a malandragem como uma modalidade mestiça, assim definida por Schwarcz (1995), é possível situar o malandro-sambista de Noel a meio caminho entre o pícaro Leonardinho, passando por Macunaíma e Zé Carioca19 e chegando ao malandro imortalizado por Chico Buarque (2010) em Homenagem ao malandro, composição de 1978: Eu fui fazer um samba / em homenagem / À nata da malandragem / Que conheço de outros carnavais / Eu fui à Lapa e perdi a viagem / Que aquela tal malandragem / Não existe mais (idem, ibidem, pp. 36-37) Chama atenção na letra a relação com os elementos presentes nas composições de Wilson Batista, Lenço no Pescoço, e de Noel Rosa, Rapaz Folgado. Ao afirmar que o malandro pra valer não existe mais e inclusive abandonou a navalha, parece referir-se ao modelo tradicional cantado por Wilson. Contudo, se aquele modelo tradicional não existe mais, o seu malandro não é, tampouco, o de Noel, já que se assemelha mais ao trabalhador comum. Segundo a psicanalista Maria Rita Khel (2011), referindo-se ao regime civil-militar imposto no país entre 1964 e 1985, o malandro, depois da “modernização” do país imposta pela ditadura militar (uma contradição em termos) enfiou a viola no saco e tornou-se trabalhador: “dizem as más línguas que ele até trabalha/ mora lá longe, chacoalha/ num trem da central”. Quem tomou seu lugar foi a elite dos aproveitadores que se beneficiaram de todos os esquemas de apadrinhamento e corrupção do governo militar, aproveitando a falta de liberdade que impedia que seus esquemas viessem a público: “Agora, já não é normal/ o que dá de malandro regular, profissional/ malandro candidato a malandro federal/ malandro com retrato na coluna social/malandro com contrato, com gravata, e tralha, e tal/ que nunca se dá mal”. O malandro transforma-se, então, equilibrando antagonismos, sem perder, contudo, a mestiçagem construída em longa trajetória que inicia em meados do século XIX, com o pícaro Leonardinho, de Memórias de um Sargento de Milícias, e atravessa o século XX até encontrar o malandro de Chico Buarque chacoalhando num trem da Central ou ainda no Congresso Nacional e nos órgãos do Estado. 2.2 A Vila tem, Um feitiço sem farofa, Sem vela e sem vintém, Que nos faz bem 19 Schwarcz (1995) define sua malandragem mestiça, salientando elementos de duas personagens clássicas. O primeiro vem da literatura; é a figura preguiçosa de Macunaíma, livro homônimo de Mario de Andrade publicado em 1928, no qual o herói sem nenhum caráter, um preto retinto que vira branco, um de seus irmãos vira índio, e outro negro (branco na palma da mão e na sola do pé) (idem, ibidem, p. 55). O segundo é a personagem Zé Carioca, criado por Walt Disney em 1942 para o filme Alô; amigos. Nessa ocasião, Zé Carioca introduzia Pato Donald nas terras brasileiras, bebendo cachaça e dançando samba (idem, ibidem, p. 51). 36 Voltemos a Noel e à polêmica. Seguida de Rapaz Folgado, temos Feitiço da Vila, de 1934: Quem nasce lá na Vila Nem sequer vacila Ao abraçar o samba Que faz dançar os galhos Do arvoredo E faz a lua nascer mais cedo. Lá em Vila Isabel Quem é bacharel Não tem medo de bamba. São Paulo dá café Minas dá leite E a Vila Isabel dá samba. A Vila tem Um feitiço sem farofa Sem vela e sem vintém Que nos faz bem. Tendo nome de princesa Transformou o samba Num feitiço decente Que prende a gente. O sol da Vila é triste Samba não assiste Porque a gente implora: Sol, pelo amor de Deus, não vem agora que as morenas vão logo embora. Sei por onde passo, Eu sei tudo o que faço, Paixão não me aniquila. Mas, tenho que dizer: Modéstia à parte, Meus senhores, eu sou da Vila!20 (Noel, 2000, v. 8). Para Fenerick (2007, p. 21), Noel diz que em Vila Isabel o samba tem certo feitiço que enebria a quem o ouve, tal como o samba era entendido anteriormente, devido a sua relação inicial com a cultura negra, particularmente o candomblé. Porém, é um feitiço diferente, é um feitiço decente, o que de antemão já denota uma preocupação com a aceitação social (e comercial) do samba. 20 De acordo com Almirante (1968, p. 142), o samba recebeu, anteriormente, o nome de “Feitiço Sem farofa” e, nas emissoras, além dos versos já editados nos jornais de modinhas, Noel apresentava outra estrofe ,assim: A zona mais tranqüila/ é a nossa Vila/ O berço dos folgados;/ Não há um cadeado no portão/ Porque na Vila na há ladrão. 37 Sandroni (2001, p. 171), por sua vez, afirma que se trata o feitiço decente de Noel, do próprio samba. Explica que a palavra é usada no Brasil também para designar as oferendas deixadas nas encruzilhadas com finalidades mágicas, geralmente no quadro das religiões afrobrasileiras. Essas oferendas constavam muitas vezes de comida (“farofa”), velas e modas (“vintém”). Segundo o autor, tendo nome de princesa, a Vila transformou o samba num feitiço decente. Assim, a chancela da Princesa [Isabel] nos informa que não há nada de errado em gostar de samba. [...] essas observações apontam para o problema mais amplo das relações entre a chamada “cultura negra” e a cultura dominante brasileira (SANDRONI, ibidem, p. 171), questão discutida no capítulo 1. Há também nessa composição, segundo o mesmo autor, uma exigência de destruição das fronteiras que tem relação com a dicotomia cultura erudita e cultura popular e com as transformações do mercado cultural da época: O bacharel – no Brasil, um símbolo da cultura letrada, branca, européia. O bamba – seu equivalente na cultura mestiça carioca. A Vila aparece como o espaço utópico de confraternização dos dois, espaço que é logo projetado para o conjunto do país: o samba é apenas um “produto” a mais, mais uma riqueza que se soma ao leite, ao café, principais produções dos estados de Minas e São Paulo. Ele defende seu direito de participar do mercado, de entrar nas prateleiras do patrimônio nacional (idem, ibidem, p. 172). Da mesma forma, Fenerick (2005, p 249) afirma que Noel propõe que o samba atue como um aglutinador da cultura brasileira [...]. Além disso, o samba aparece como produto (um gênero musical) genuinamente carioca (de Vila Isabel). A Vila surge, então, como lócus urbano intermediário entre o morro e o asfalto, sem esquecer de como se ufana o compositor do seu espaço geográfico – Modéstia à parte,/ Meus senhores, eu sou da Vila –, aglutinando em torno do samba não só elementos notadamente africanos – o feitiço, a farofa, a vela e o vintém –, como as figuras do bacharel e do bamba. Uma vez mais, equilibrando antagonismos, traça um painel do Brasil da época. Nem mesmo o cenário político passa despercebido ao Poeta da Vila. Atento à realidade de um país cujo projeto de governo, capitaneado por Getúlio Vargas, consolida um modelo de centralização política e administrativa, com a racionalização e modernização econômica e social, Noel, ao fazer alusão à política do café com leite, reivindica e consolida, assim, lugar a um novo produto nacional, o samba, produzido na intermediária Vila Isabel. O bairro corresponde, então, à personagem Firmo, d’O Cortiço, e ao malandro-sambista de Noel; todos acomodando elementos nacionais em discussão desde o final do século XIX: a Vila reunindo a 38 heterogeneidade da nação em um espaço “novo” e propício a consagrar o samba como elemento genuinamente nacional; as personagens sintetizando a tentativa de atribuir modernidade a representantes das classes baixas: o primeiro com paletó de lustrina preta, gestualidade extravagante e linguagem arredia; o segundo reivindicando para si o reconhecimento da música como instrumento do mundo do trabalho. 2.3 Quem é você que não sabe o que diz?Meu Deus do Céu, que palpite infeliz! Em 1935, de acordo com a delimitação que estabelecemos, Noel encerra a Polêmica. Wilson Batista contrapôs Conversa Fiada ao Feitiço da Vila, atacando a ambos: É conversa fiada/ dizerem que o samba na Vila/ tem feitiço./ Eu fui ver pra crer,/ e não vi nada disso... (GOMES, 1985, p. 56). Foi, então, que Noel compôs Palpite Infeliz, em 1935: Quem é você que não sabe o que diz? Meu Deus do Céu, que palpite infeliz! Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira, Oswaldo Cruz e Matriz Que sempre souberam muito bem Que a Vila Não quer abafar ninguém, Só quer mostrar que faz samba também. Fazer poema lá na Vila é um brinquedo, Ao som do samba dança até o [arvoredo. Eu já chamei você pra ver, Você não viu porque não quis Quem é você que não sabe o que diz? A Vila é uma cidade independente Que tira samba mas não quer tirar [patente. Pra que ligar a quem não sabe Aonde tem o seu nariz? Quem é você que não sabe o que diz? (Noel, 2000, v. 9). Na composição, desta vez extrapolando o lócus intermediário de Vila Isabel a um espaço mais amplo, percebe-se a associação do samba com outro universo simbólico: a cidade do Rio de Janeiro. [...] pelas condições que a Capital Federal possuía no tocante à divulgação de música pelos modernos meios de comunicação, como pelo status de cartão-postal da “civilização brasileira”, os sambistas passaram a utilizar o samba (moderno) para representar a cidade no contexto brasileiro e no exterior [...]. Esse entrelaçamento entre o samba e o Rio de Janeiro ocorre, precisamos lembrar, na esteira de um projeto que visava levar a 39 “civilização carioca”, entendida com a mais avançada do país, para o resto (atrasado) do Brasil. A música popular, no caso o samba moderno, cumpriria uma função bem definida: ele deveria civilizar o país e após isso, mostrar a civilização brasileira aos outros povos civilizados do mundo. O ser carioca nada mais é que um preâmbulo para algo de maior vulto: o ser brasileiro. Sendo assim, em 1934, Carmen Miranda já cantava abertamente aquilo que em Noel só apareceu de forma 21 velada (Fenerick, 2005, p. 250-252) . Conforme destacamos na introdução, para Sevcenko (2004), o Rio de Janeiro da Belle Époque funcionava como modelo de metrópole em termos modernos, irradiando transformações que alteravam o comportamento dos cariocas para o restante do país. Na composição, o universo simbólico a que se refere Fenerick (2005) é ilustrado pela “viagem” do compositor pelos bairros cariocas. Ao ampliar a dimensão espacial do bairro de Vila Isabel, Noel promove a confraternização do mundo do samba, defende Vila Isabel com elegância, sem situá-la acima do Estácio de Sá, Salgueiro, Mangueira, Oswaldo Cruz, Matriz (MÁXIMO & DIDIER, 1990, p. 372), colocando em discussão a expansão e a urbanização do Rio de Janeiro de sua época, a década de 1930. No fascículo Noel Rosa da História da Música Popular Brasileira (1970, p. 9), está publicada entrevista do compositor ao jornal O Globo de 31 de dezembro de 1932, na qual faz alusão à expansão, desta vez da música, em relação àquela dimensão espacial de Vila Isabel: O samba está na cidade. Já esteve, é verdade, no morro, isso no tempo em que não havia aqui em baixo samba. Quando a bossa nasceu, a cidade derrotou o morro. O samba lá de cima perdeu o espírito, o seu sabor inédito [...]. A civilização começa a subir o morro, levando as suas coisas boas e suas coisas péssimas. Noel referia-se à introdução dos novos temas da modernidade existentes no contexto: o dinheiro e a crise: Antes a palavra samba tinha um único sinônimo: mulher. Agora já não é assim. Há também o dinheiro e a crise (idem, ibidem). No momento em que concedeu a entrevista, o país ainda vivia os reflexos da crise econômica de 1929 e da recente Revolução Constitucionalista de 1932. Estamos novamente ante o equilíbrio de antagonismo que permeia nossa análise. No bairro de Vila Isabel, bem como em outros mencionados na composição, o samba era composto e cantado no espaço urbano do botequim22 e não mais exclusivamente naqueles 21 Em O samba é carioca, Carmen Miranda cantava: o samba pra ser brasileiro, meu bem tem que ser feito no Rio de Janeiro (FENERICK, 2005, p. 252). A cantora consolidaria o samba, nos anos 1940, como elemento nacional reconhecido no exterior. Carmen Miranda é assunto que extrapola o recorte têmporo-espacial deste trabalho, contudo sua repercussão no exterior pode ser vista em: Sandroni (2010, cap. 8). 22 No filme Noel, Poeta da Vila (1996), o diretor Ricardo Van Steen recriou diversas cenas nas quais se pode ter uma idéia da forma como as músicas eram executadas e do comportamento dos músicos no Café Nice – lugar de intensa freqüência de músicos nos anos 30-40 (VIANNA, 1998, p. 110). 40 representados pela casa da Tia Ciata, característicos do contexto da Belle Époque. Segundo Fenerick (2005, p. 10), o que se observa, no entanto, é que a visão sobre o morro que o sambista tem não é exclusivamente geográfica, mas sim de postura diante do samba, é uma “visão de mundo”, ou mesmo uma visão mítica. Tal constatação pode ser observada em Feitio de Oração, de 1933: O samba na realidade Não vem do morro nem lá da cidade E quem suportar uma paixão Sentirá que o samba então Nasce do coração (Noel, 2000, v. 7). Ainda, o equilíbrio de antagonismos faz-se presente, na composição, através da questão da profissionalização do músico, através da afirmação de Noel de que a Vila é uma cidade independente/ Que tira samba mas não quer tirar/ [patente. Para Fenerick (2005, p 7), tirar a “patente” de um samba, neste caso, significa o ato de registrar nos órgãos competentes a autoria de um samba, tal como Donga havia feito com o Pelo Telefone, em 1916. O sambista do morro não tira patente, pois, como era sabido na época, ele vendia seus sambas por quaisquer trocados, que mal davam às vezes para garantir uma noitada. Contudo, no início dos anos 1930, a possibilidade de “viver do samba”, incentivada pelo registro de Pelo Telefone, já era praticamente uma realidade. Conforme afirmamos no Capítulo 1, é a partir daquele momento que um processo de conscientização profissional dos compositores se desenvolve, impulsionado sobretudo pelas mudanças no modelo de radiodifusão idealizado pelo ainda discricionário governo Vargas. Sempre atento ao contexto de sua época, Noel expressa, então, a transição deste estado de coisas. 41 Considerações finais Concluído o presente trabalho, equilibramos sensações de incompletude com os de satisfação mediante os resultados alcançados, ainda que parciais e transitórios. A primeira porque a pesquisa não esgota, nem de longe, a temática, oferecendo possibilidades de aprofundamento das questões levantadas; a segunda porque atingimos o objetivo, diante do tempo limitado para a investigação e do desafio que se impôs, desde o começo do trabalho, a um historiador em formação, incapaz de entender questões mais técnicas relativas à disciplina da música. Quanto a este último aspecto, tentamos suprir tal dificuldade abordando a introdução dos novos instrumentos musicais imprescindíveis à consolidação do samba como ritmo nacional. Ao idealizarmos o projeto de pesquisa que originou este trabalho, sustentado a partir da análise das composições Rapaz Folgado, Feitiço da Vila e Palpite Infeliz, de Noel Rosa, estávamos envoltos em suposições um tanto nebulosas em relação àquilo que almejávamos encontrar. Contudo, durante o desenrolar do trabalho, as questões foram elucidando-se de maneira surpreendente. A utilização do conceito de equilíbrio de antagonismos, tomado de Freyre (1954), não só se mostrou apropriado ao desenvolvimento do tema, como facilitou o entendimento da problemática relativa ao caráter nacional brasileiro, somente passível de compreensão na medida em que se acomodavam elementos identitários, aparentemente antagônicos, de nossa nacionalidade, encontrados nos contextos da Belle Époque, dos anos da década de 1920 e da de 1930, todos mapeados no capítulo 1. As manifestações artísticas, concluímos agora, estão sempre em posição de vanguarda quando o assunto é retratar o contexto histórico. Por esse motivo, encontram resistência e são produzidas por seus contemporâneos segundo interpretações pessoais antagônicas. Quando Marcel Duchamp enviou um urinol de bar como obra de arte ao Salão da Sociedade dos Independentes, em 1917, causou espanto e furor na crítica especializada, habituada a interpretar pinturas (GULLAR, 2005, p. 24). Contudo, imerso no contexto da primeira Grande Guerra, o artista buscava expressar de forma concreta a modernidade, ou a contemporaneidade, por mais redundante que seja o termo, da arte do seu tempo. O mesmo aplica-se à música, como tentamos demonstrar através do diálogo identificado nas composições que desencadearam a polêmica musical de Noel Rosa com Wilson Batista. 42 Recorrendo à visão segundo a qual a música seria reflexo da vida que levava seu criador (RAYNOR, 1981), mostraram-se as composições analisadas, cada uma a sua maneira, território profícuo de disputa dos elementos que melhor caracterizaram nossa nacionalidade ao longo dos primeiros trinta anos do século XX. O resultado encontrado foi uma identidade em franca construção, que resistia a fundir-se em um caráter homogêneo. Assim, identificados os elementos nacionais característicos dos contextos históricos objetos deste trabalho, nos dedicamos, no capítulo 2, a analisar as composições selecionadas. Quanto à temática da malandragem, desenvolvida através das composições Lenço no Pescoço, de Wilson Batista, e Rapaz Folgado, de Noel Rosa, e analisadas a partir de personagens da literatura brasileira, do cinema de Walt Disney e da música de Chico Buarque, mapeamos idealizações de malandros que, isoladas no contexto histórico de sua criação, não poderiam dar conta da imagem do brasileiro. Forjada desde meados do século XIX, tal imagem chega aos anos 1960, equilibrando antagonismos, ainda pendente de efetiva definição. Em Feitiço da Vila, ao identificar o bairro de Vila Isabel como lócus intermediário entre o morro e a cidade, buscou-se equilibrar os antagônicos, desta vez representados pela própria música, dividida entre os elementos africanos – o feitiço, a farofa, a vela e o vintém – e aqueles oriundos do cenário político do país. Assim, em contraposição aos produtos genuinamente brasileiros, o café e o leite, em clara alusão à Política dos Governadores idealizada pelo então presidente Campos Sales (1898-1902), a Vila oferece à nação o samba, outro produto que se pretendia genuinamente nacional. Em Palpite Infeliz, por fim, Noel amplia a dimensão espacial de Vila Isabel a outros bairros da cidade do Rio de Janeiro. Como modelo de metrópole em termos modernos, a capital tem, então, condições de ressoar sua música ao restante do país a partir de um novo espaço urbano: o botequim. Contudo o faz, não sem equilibrar novamente os antagonismos oriundos do ato de tirar patente do samba-canção, comercializado, ou não, segundo o contexto de profissionalização dos compositores, no seio da indústria cultural capitalista dos anos 1930. Para finalizar estas considerações, e este trabalho, parafraseio Gilberto Freyre, quem melhor (in)definiu nosso caráter: na música, tanto quanto na cultura em geral, na sociedade e na “cor”, o bambo equilíbrio de antagonismos reflete-se em tudo que é brasileiro. 43 Referências Bibliográficas ALMIRANTE. No tempo de Noel Rosa: a verdade definitiva sobre Noel e a música popular. Rio de Janeiro: F. Alves, 1963 (Contrastes e Confrontos; 9). ARAUJO, R. B. de. Chuvas de Verão: “Antagonismos em Equilíbrio” em Casa-Grande & Senzala de Gilberto Freyre. Mal-estar na cultura, UFRGS. Porto Alegre, Abril-Novembro, 2010. Disponível em: < http://www.difusaocultural.ufrgs.br/adminmalestar/documentos/arquivo/Benzaquen%20Chuv a%20de%20verao.pdf >. Acesso em: 15 jul. 2011. AZEVEDO, A. O Cortiço. Rio de Janeiro: Ática, 2000. BARRETO, L. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Penguin, 2011. BOMFIM, M. América Latina: males de origem. Rio de Janeiro: Topbooks, 2005. CABRAL, S. A MPB na era do rádio. 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São Paulo: Abril Cultural, 1978. 1 disco sonoro. FILME NOEL, Poeta da Vila. Direção: Ricardo Van Steen. Produção: Paulo Dantas. São Paulo: Movi&art; Zohar Cinema, 1996. 1 DVD (96 min), widescreen, color. FONTES FONOGRÁFICAS Noel Rosa: Cordiais Saudações, 1931 46 São Coisas Nossas, 1932 Feitio de Oração, 1933 (com Vadico) Não tem Tradução, 1933 Rapaz Folgado, 1933 Feitiço da Vila, 1934 (com Vadico) João Ninguém, 1935 Palpite Infeliz, 1935 O X do Problema, 1936 Wilson Batista: Conversa Fiada, s/d Lenço no Pescoço, 1933 Frankstein da Vila, 1936 47 Fontes Primárias Rapaz Folgado (Noel Rosa). Gravação de Aracy de Almeida. Noel pela primeira vez. São Paulo: Funarte/Velas/Universal, 2000. v. 11. Deixa de arrastar o teu tamanco Pois tamanco nunca foi sandália E tira do pescoço o lenço branco Compra sapato e gravata Joga fora essa navalha Que te atrapalha. Com chapéu do lado deste rata Da polícia quero que escapes Fazendo samba-canção Já te dei papel e lápis Arranja um amor e um violão Malandro é palavra derrotista Que só serve pra tirar Todo o valor do sambista Proponho ao povo civilizado Não te chamar malandro E sim de rapaz folgado 48 Feitiço da Vila (Noel Rosa). Gravação de João Petra de Barros. Noel pela primeira vez. São Paulo: Funarte/Velas/Universal, 2000. v. 8. Quem nasce lá na Vila Nem sequer vacila Ao abraçar o samba Que faz dançar os galhos Do arvoredo E faz a lua nascer mais cedo. Lá em Vila Isabel Quem é bacharel Não tem medo de bamba. São Paulo dá café Minas dá leite E a Vila Isabel dá samba. A Vila tem Um feitiço sem farofa Sem vela e sem vintém Que nos faz bem. Tendo nome de princesa Transformou o samba Num feitiço decente Que prende a gente. O sol da Vila é triste Samba não assiste Porque a gente implora: Sol, pelo amor de Deus, não vem agora que as morenas vão logo embora. Sei por onde passo, Eu sei tudo o que faço, Paixão não me aniquila. Mas, tenho que dizer: Modéstia à parte, Meus senhores, eu sou da Vila! 49 Palpite Infeliz (Noel Rosa). Gravação de Aracy de Almeida. Noel pela primeira vez. São Paulo: Funarte/Velas/Universal, 2000. v. 9. Quem é você que não sabe o que diz? Meu Deus do Céu, que palpite infeliz! Salve Estácio, Salgueiro, Mangueira, Oswaldo Cruz e Matriz Que sempre souberam muito bem Que a Vila Não quer abafar ninguém, Só quer mostrar que faz samba também. Fazer poema lá na Vila é um brinquedo, Ao som do samba dança até o [arvoredo. Eu já chamei você pra ver, Você não viu porque não quis Quem é você que não sabe o que diz? A Vila é uma cidade independente Que tira samba mas não quer tirar [patente. Pra que ligar a quem não sabe Aonde tem o seu nariz? Quem é você que não sabe o que diz? 50 Anexos Anexo A: DISCO POLÊMICA, 1956. Imagem disponível em: <http://www.discosdobrasil.com.br/discosdobrasil/consulta/detalhe.php?Id_Disco=DI04160>. Acesso em: 11 nov. 2011. 51 Anexo B: FASCÍCULO NOEL ROSA. HISTÓRIA DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA (1970). Imagem disponível em: <http://www.discosdobrasil.com.br/discosdobrasil/capas/DI03300.JPG>. Acesso em: 11 nov. 2011. 52 Anexo C: FASCÍCULO WILSON BATISTA. NOVA HISTÓRIA DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA (1978). Imagem disponível em: <http://discosdobrasil.com.br/discosdobrasil/capas/DI03372.JPG>. Acesso em: 11 nov. 2011. 53