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César Sabino Miolo Capes

2020, DROGAS DE APOLO USO RITUAL DE ESTEROIDES ANABOLIZANTES EM ACADEMIAS DE FISICULTURISMO. NOTAS DE UMA POLÍTICA DO CORPO.

Neste livro busco analisar o cotidiano das academias de fisiculturismo, vistas como organizações nas quais um sistema de relações sociais de poder apresenta-se como inerente às práticas da musculação, organizando o dia- -a-dia dos alunos, atletas e frequentadores em geral. Utilizo como referência ou modelo analítico academias dos bairros das Zona Norte e Sul da cidade do Rio de Janeiro. A partir de observações como praticante (aluno) nessas academias, destaco a importância do uso ritual de esteroides anabolizantes como elemento fundamental para construção da pessoa ou identidade do bodybuilder e, portanto, da identificação coletiva do grupo. Esteroides, remédios utilizados para ganho de massa muscular, (que denomino drogas de Apolo, e que são chamados “bombas”, “produtos” ou “aditivos” pelos usuários), têm, nesse contexto, significado oposto àqueles referidos as denominadas “drogas recreativas”, como maconha, cocaína, ecstasy etc., (as quais, denomino drogas dionisíacas), que caracterizam outros sentidos e significados para as diversas “tribos urbanas” da sociedade brasileira. Nessa direção, procuro compreender aspectos anátomo-políticos relacionados à imagem corporal a qual envolve a maior parte dos desejos, das crenças, dos comportamentos, das aspirações, dos sonhos, afetos e das subjetividades referidas ao grupo.

DROGAS DE APOLO USO RITUAL DE ESTEROIDES ANABOLIZANTES EM ACADEMIAS DE FISICULTURISMO. NOTAS DE UMA POLÍTICA DO CORPO Editora Appris Ltda. 1.ª Edição - Copyright© 2020 dos autores Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda. Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98. Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores. Foi realizado o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nos 10.994, de 14/12/2004, e 12.192, de 14/01/2010. Catalogação na Fonte Elaborado por: Josefina A. S. Guedes Bibliotecária CRB 9/870 S116d 2020 Sabino, César Drogas de Apolo : uso ritual de esteroides anabolizantes em academias de fisiculturismo; notas de uma política do corpo. / César Sabino. - 1. ed. - Curitiba : Appris, 2020. 331 p. ; 23 cm. – (Ciências sociais). Inclui bibliografia. ISBN 978-65-5820-667-5 1. Esteroides anabólicos. 2. Fisiculturismo. 3. Musculação. I. Título. II. Série. CDD – 613.71 Livro de acordo com a normalização técnica da ABNT Editora e Livraria Appris Ltda. Av. Manoel Ribas, 2265 – Mercês Curitiba/PR – CEP: 80810-002 Tel. (41) 3156 - 4731 www.editoraappris.com.br Printed in Brazil Impresso no Brasil César Sabino DROGAS DE APOLO USO RITUAL DE ESTEROIDES ANABOLIZANTES EM ACADEMIAS DE FISICULTURISMO. NOTAS DE UMA POLÍTICA DO CORPO FICHA TÉCNICA EDITORIAL Augusto V. de A. Coelho Marli Caetano Sara C. de Andrade Coelho COMITÊ EDITORIAL Andréa Barbosa Gouveia - UFPR Edmeire C. Pereira - UFPR Iraneide da Silva - UFC Jacques de Lima Ferreira - UP ASSESSORIA EDITORIAL Alana Cabral REVISÃO Cristiana Leal Januário PRODUÇÃO EDITORIAL Gabrielli Masi DIAGRAMAÇÃO Jhonny Alves dos Reis CAPA Karen Tortato COMUNICAÇÃO Carlos Eduardo Pereira Débora Nazário Karla Pipolo Olegário LIVRARIAS E EVENTOS Estevão Misael GERÊNCIA DE FINANÇAS Selma Maria Fernandes do Valle COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS SOCIAIS DIREÇÃO CIENTÍFICA Fabiano Santos (UERJ-IESP) CONSULTORES Alícia Ferreira Gonçalves (UFPB) Artur Perrusi (UFPB) Jordão Horta Nunes (UFG) José Henrique Artigas de Godoy (UFPB) Carlos Xavier de Azevedo Netto (UFPB) Josilene Pinheiro Mariz (UFCG) Charles Pessanha (UFRJ) Leticia Andrade (UEMS) Flávio Munhoz Sofiati (UFG) Luiz Gonzaga Teixeira (USP) Elisandro Pires Frigo (UFPR-Palotina) Marcelo Almeida Peloggio (UFC) Gabriel Augusto Miranda Setti (UnB) Maurício Novaes Souza (IF Sudeste-MG) Helcimara de Souza Telles (UFMG) Michelle Sato Frigo (UFPR-Palotina) Iraneide Soares da Silva (UFC-UFPI) Revalino Freitas (UFG) João Feres Junior (Uerj) Simone Wolff (UEL) Para minha mãe, Irani. AGRADECIMENTOS A escrita de um livro não se sustenta na ilusão da produção individual. Sua composição envolve uma rede de agentes atuando uns com os outros. Por isso, gostaria de agradecer à socióloga e professora Madel Therezinha Luz pela amizade, carinho e paciência assim como pela oportunidade que me foi concedida de ter participado como bolsista na sua pesquisa sobre Medicina Ocidental Contemporânea, Medicinas Alternativas e Práticas Terapêuticas em Saúde no Grupo Racionalidades Médicas do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva do Instituto de Medicina Social (PPGSC/IMS) da Uerj. Assistir às suas brilhantes aulas, participar de seus ensinamentos e admoestações foi um privilégio que desfrutei por quase uma década. Certo é que a maior parte dos questionamentos presentes neste trabalho são provenientes desse período. Nesse aprendizado, desenvolvi não apenas meu interesse pelos estudos sobre corpo, saúde e relações de poder, mas também o amor incontornável pela Sociologia. Da mesma forma, agradeço o profissionalismo, a atenção e a dedicação que encontrei no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (PPGSA/IFCS) da UFRJ e no exemplo da antropóloga e professora Mirian Goldenberg. Sou grato a sua grande paciência, exemplar disciplina, solidariedade constante e valiosa orientação, além do incentivo proporcionado nos difíceis momentos de dúvidas e incertezas. Nesse período, se consolidou outro grande amor às Ciências Sociais: a Antropologia. Agradeço ainda aos etnólogos Marco Antônio Gonçalves e Elsje Maria Lagrou pelas sugestões fundamentais, a atenção cuidadosa, as discussões teóricas repletas de questionamentos, nas quais a tessitura do pensamento formava o denso terreno pelo qual caminhávamos. Gentil e generosamente, presentearam-me com revistas de cultura física datadas do final do século XIX e início do século XX, trazidas por eles da Europa e que se tornaram documentos fundamentais, fontes primárias, para a elaboração de parte deste livro. Meus sinceros agradecimentos também para outra presença antropológica fundamental na minha trajetória: a professora Patrícia Birman, que ainda na graduação de História me aceitou em sua pesquisa sobre rituais e simbolismo desenvolvida no Departamento de Antropologia da Uerj. Aos meus amigos Washington Dener, Marcelo Peloggio, Rafael Mattos, Marcus Siani, Andréa Osório, Sônia Beatriz, Marcelo Silva Ramos, Douglas Rocha e Anderson Fraga agradeço a vivacidade crítica e criadora, o apoio e a afirmação da vida. Agradeço à Aline Mossmann pelas alegrias presentes nas últimas partes desse trajeto. Por fim, mas não menos importante, agradeço à Capes e ao CNPq pelo apoio concedido durante meu aprendizado e pesquisa, sem o qual a dedicação ao trabalho não poderia ter sido realizada com o devido aproveitamento. Nous avions conscience que la connaissance du sport est la clé de la connaissance de la societé. (Elias) Nosso corpo é apenas uma estrutura social de muitas almas. (Nietzsche) O corpo é o ponto zero do mundo [...] pequeno fulcro utópico, a partir do qual eu sonho [...], percebo as coisas em seu lugar e também as nego pelo poder [...] das utopias que imagino. (Foucault) APRESENTAÇÃO Neste livro busco analisar o cotidiano das academias de fisiculturismo, vistas como organizações nas quais um sistema de relações sociais de poder apresenta-se como inerente às práticas da musculação, organizando o dia-a-dia dos alunos, atletas e frequentadores em geral. Utilizo como referência ou modelo analítico academias dos bairros das Zona Norte e Sul da cidade do Rio de Janeiro. A partir de observações como praticante (aluno) nessas academias, destaco a importância do uso ritual de esteroides anabolizantes como elemento fundamental para construção da pessoa ou identidade do bodybuilder e, portanto, da identificação coletiva do grupo. Esteroides, remédios utilizados para ganho de massa muscular, (que denomino drogas de Apolo, e que são chamados “bombas”, “produtos” ou “aditivos” pelos usuários), têm, nesse contexto, significado oposto àqueles referidos as denominadas “drogas recreativas”, como maconha, cocaína, ecstasy etc., (as quais, denomino drogas dionisíacas), que caracterizam outros sentidos e significados para as diversas “tribos urbanas” da sociedade brasileira. Nessa direção, procuro compreender aspectos anátomo-políticos relacionados à imagem corporal a qual envolve a maior parte dos desejos, das crenças, dos comportamentos, das aspirações, dos sonhos, afetos e das subjetividades referidas ao grupo. A quase totalidade deste livro foi escrita no início dos anos 2000. Fiz algumas revisões, acrescentei partes textuais e bibliografia atualizada, além de alguns comentários de rodapé e Post Scriptum; contudo, a forma original não foi modificada, nem mesmo o estilo (ou a falta dele) e o conteúdo presentes no texto. Excertos modificados foram anteriormente publicados em revistas científicas nos últimos anos, e os relatos colhidos e observações participantes trazem resquícios do período e das relações sociais da época na qual foram realizados. Porém, os questionamentos e problemas em geral não mudaram e, pelo que tudo indica, ainda permanecerão por longo tempo. As relações sociais postas em foco sofreram, de forma superficial, pequenas variações, seguindo as tendências que já se apresentavam à época. Os propósitos e as práticas dos agentes sociais permanecem, talvez de maneira ainda mais acentuada, nas atitudes voltadas para o cultivo da forma musculosa, imagem, percebida como símbolo de saúde, beleza, autoridade, sucesso (ascensão social) e poder em uma era na qual o corpo tornou-se sua própria empresa. Com efeito, para compreender melhor o grupo é preciso esclarecer o conceito de anátomo-política, elaborado por Michel Foucault, relacionando-o a outro conceito seu, que é o de biopolítica. O primeiro refere-se aos dispositivos disciplinares encarregados de extrair dos corpos, por meio de saberes e práticas, sua capacidade de produção e otimização via controle do espaço e do tempo no interior de organizações e instituições como escolas, exército, família, hospital, fábrica, prisão, academias etc. Por sua vez, a biopolítica ocupa-se em gerir não apenas o corpo individual, mas também a vida de populações inteiras, escrutinando suas formas de existência e produzindo gerenciamento e administração de taxas de natalidade, mortalidade, epidemias, longevidade e assim por diante. Esse processo também produz uma crescente tecnologia do poder exercida sobre os corpos coletivos. Dessa forma, academias de fisiculturismo não deixam de ser centros nos quais essa dinâmica se produz. De acordo com o autor, a descoberta da existência daquilo que veio a ser denominado “população” pelos saberes políticos-administrativos do Estado Moderno está diretamente associada à invenção, ou descoberta, do indivíduo e sua identidade, como corpo maleável ou modelável, corpo a ser melhorado visando a servir aos propósitos políticos e econômicos. Em resumo, enquanto a disciplina se realiza como anátomo-política dos corpos e se aplica aos indivíduos e sujeitos, a biopolítica representa uma medicina social que é direcionada à população a fim de governar a vida enquanto elemento fundamental do campo do poder (FOUCAULT, 1997, p. 91; 1993, p. 145-152; REVEL, 2005, p. 26-28). Os dois conceitos perpassam este trabalho. Sem embargo, busco compreender as práticas e representações que constituem os elementos cooptados e rearticulados nesse processo de desdobramento da administração das vidas por intermédio das organizações e instituições (lugar privilegiado de luta política) em suas sociabilidades capitalistas (LUZ, 1986; GUATTARI; ROLNIK, 1996; FOUCAULT, 1997; DELEUZE; GUATTARI, 2012; BALCONI, 2012)1. No caso das academias de fisiculturismo, as sociabilidades têm sido produzidas pela busca estética relacionada, por sua vez, a uma ética individualista e autocentrada, próxima dos ideais neoliberais das últimas décadas presentes nas relações macropolíticas nacionais e internacionais. Processo de construção intermitente no qual tendências sociológicas gerais comuns à sociedade brasileira, como as relações patriarcais de dominação com seu androcentrismo característico são reproduzidas. Ao longo do trabalho, pode-se perceber, às vezes de forma sutil e outras nem tanto, como princípios econômicos gerais do neoliberalismo foram sendo absorvidos por parte do Ainda que pese a importância dos trabalhos de Michel Misse para os estudos relacionados à violência no Brasil, fundamentalmente no Rio de Janeiro, visto ser ele uma das maiores autoridades sociológicas no tema, compreendemos como equivocada a última crítica por ele realizada aos autores nacionais em relação a utilização que os mesmos fazem da ferramenta conceitual denominada biopolítica (MISSE, 2020). Misse aborda o conceito de forma quase escolástica, como se o mesmo fosse rígido, unívoco e sagrado, emperrando, com efeito, a ferramenta teórico-metodológica e inviabilizando seu uso em países não europeus ou norte-americanos. Para o autor o mesmo conceito está diretamente relacionado à estrutura do Estado europeu ocidental, mormente o francês. O modelo político brasileiro não teria se constituído dentro dos moldes prescritos pelas teorias e práticas político-administrativas liberais dos países centrais do sistema capitalista os quais passaram a se preocupar com a otimização da vida da sua população, administrando-a. Essa preocupação com a vida, para Misse, seria o cerne da atuação biopolítica proveniente do Estado. Desta perspectiva o conceito seria inadequado para o estudo de nossa realidade social posto que o Estado brasileiro pouco se importaria com a vida da sua população. Minha perspectiva é que todo conceito – como afirmaram os próprios Foucault, Deleuze, Guattari etc. – deve ser usado, instrumentalizado, torcido, e não seguido. São ferramentas que devem auxiliar a pensar com a realidade; isso posto, o conceito de biopolítica certamente relaciona-se à formação dos Estados na Europa ocidental, porém, também assinala a ultrapassagem da dicotomia Estado/sociedade, via uma economia política da vida, independente, de certa maneira, do Estado, já que a mesma biopolítica se apresenta, da mesma maneira, como conjunto de biopoderes significando a vida como poder de certa forma independente do Estado – essa modulação conceitual tem a ver com a influência do pensamento de Nietzsche na obra de Foucault. Nesse movimento, a biopolítica é percebida fundamentalmente na linguagem, no corpo, nos afetos, desejos, sexualidade etc., ou seja, ela além de ser transversal ao Estado é instância de produção de subjetividades as quais não apenas se adequam à ordem do mesmo, mas se apresentam como contrapoder e resistência ao sistema social, remetendo ao fato de representar a passagem da política para a ética ou do cuidado de si como prática de liberdade (FOUCAULT, 1995; DREYFUS: RABINOW,1995; REVEL, 2005, p. 26-28). Não concebo esse conjunto de relações de poder e forças como apenas representando estratégias estatais de controle populacional e potencialização da vida como saúde e força de trabalho útil, mas sugiro, em conexão com os conceitos de disciplina, anátomo-política, necropolítica e controle, uma rede intermitente e mutante de relações de dominação e contradominação que se tornam características de uma determinada época. Embora o Estado brasileiro não tenha alcançado a eficácia e a eficiência dos Estados europeus nesse aspecto da implantação do cuidado populacional, ao menos em alguns aspectos a vida dessa população é administrada, gerida ou conduzida político-administrativamente nem que seja para ser em parte exterminada como componente inútil ou prejudicial ao sistema. Misse entende biopolítica de forma apenas positiva, como necessidade de respeito à vida defendida pelo sistema jurídico, e, portanto, pelo Estado. Concebo o conceito como podendo ser desdobrado, como fazem Mbembe (2018) e Agamben (2002), ampliando-o, e no qual cabe, por exemplo, a própria destruição da vida de parte da população (matando ou deixando morrer) como estratégia para otimizar os propósitos daqueles que estão no governo – e até mesmo sustento a hipótese de que houve e há uma espécie de projeto ou conluio elitista para que a máquina pública assim funcione, em um modelo recorrente de arcaísmo como projeto de índole escravocrata e Ancièn Régime (FRAGOSO; FLORENTINO, 1993) . Sendo assim, penso que biopolítica continua sendo um conceito adequado para a análise da realidade brasileira em suas dimensões micropolíticas e não apenas macropolíticas. 1 grupo pesquisado como valores éticos e crenças morais em detrimento dos valores solidários, democráticos e de cidadania no cotidiano dessas organizações voltadas para o cultivo da forma corporal musculosa e magra (com o mínimo de adiposidade) como sinônimo de saúde. O trabalho, portanto, é uma tentativa de ressaltar de que maneira a forma física, ou corporal, é objeto crucial de preocupações e cuidados que espelham relações sociais referidas à saúde como signo direto da musculosidade estética em um grupo específico da nossa cultura. Parece, seguindo a sugestão de Foucault, que as práticas do grupo estudado (as quais refletem em parte aquelas da sociedade em geral) são desdobramentos da biopolítica e sua administração da vida, visando a maximizar suas potencialidades anatômicas em uma nova era do capital, na qual organizações tornaram-se virtuais e voláteis ampliando o controle sobre a vida e a imagem individual (DELEUZE, 1995), sendo que a mesma imagem torna-se, não raro, a vitrine de um corpo visto como empresa. Vida como objeto-mercadoria produzida e reproduzida nas organizações da forma que são as academias de musculação e fisiculturismo em uma espécie singular de construção de saberes ligados a processos de subjetivação ou construção de identidades individuais e coletivas, por intermédio de [...] técnicas [que] se incub[em] desses corpos, tenta[ndo] aumentar [su]a força útil através do exercício, do treinamento etc. [...] Técnicas de racionalização e de economia estrita de um poder que deve [...] se exercer, da maneira menos onerosa possível, mediante todo um sistema de vigilância, de hierarquias, de inspeções, de escriturações, de relatórios: toda essa tecnologia, que podemos chamar tecnologia disciplinar do trabalho [muscular] (FOUCAULT, 1999, p. 288). PREFÁCIO Considero este livro de César Sabino, fruto de seu trabalho em Antropologia e Sociologia, uma obra densa e original. Sem pretender brincar com as palavras, posso dizer que não se trata da “prima obra” do autor, mas de sua obra prima original, considerando a qualidade deste primeiro trabalho acadêmico apresentado. Ao mesmo tempo que analisa conceitualmente, interpretando os sentidos atribuídos ao corpo no amanhecer da contemporaneidade, César Sabino nos apresenta, em descrição detalhada e profunda – em escavação empírica, podemos dizer –, o processo sócio-histórico do desenhar, construir, talvez do esculpir no imaginário, a matéria corpórea estética de nosso corpo contemporâneo. Tal matéria é idealizada em músculos desenvolvidos e torneados, apreciados como fortes, belos e poderosos. Esse imaginário desenrola-se paulatinamente na cultura contemporânea, a partir da segunda metade do século XX. No processo de sua pesquisa, o autor valeu-se das várias técnicas qualitativas das ciências sociais, a começar pela observação participante, a qual aderiu inteiramente, assumindo as consequências de pertencimento a um grupo social olhado por muitos, na época, com olhar bastante crítico. Além disso, empregou as demais técnicas comumente presentes nas investigações sociais: entrevistas, observação sistemática e atenta do(s) terreno(s) onde se desenrolavam as atividades que observava e dos sujeitos da investigação, tanto nas academias quanto em seus locais de socialização. A partir do modelamento visual progressivamente desenhado e legitimado do corpo musculoso, de início limitado ao gênero masculino, expandindo-se em seguida para o gênero feminino – com bastante sucesso – em perspectiva estética, mas bem aceito também na Saúde Pública em sua versão higienista, a representação do corpo torneado em músculos trabalhados pela ginástica como força e beleza na cultura contemporânea, sobretudo no último terço do século XX e início do presente, está fortemente associada às práticas de atividades físico-musculares desenvolvidas nas academias de ginástica. E é esse o objeto de estudo de Sabino em pesquisa pioneira. Da excelência do texto o próprio leitor testemunhará. Preciso apenas, ao terminar este breve prefácio, quase miniapresentação, apresentar o César Sabino, meu aluno talentoso de mestrado e pós-doutorado, durante os anos em que desenvolveu atividades de pesquisa no Grupo Racionalidades Médicas e Práticas de Saúde no Instituto de Medicina Social da UERJ. As práticas eram então definidas no grupo como “práticas corporais” relativas à saúde. Acrescentamos como exemplos dessas práticas outras atividades, tais como a dança de salão, as práticas de ginástica e mesmo regimes alimentares. A ligação fundamental em termos conceituais e de construção de objetos de pesquisa era com a saúde dos agentes. Mas a vocação de César Sabino não está ligada de forma alguma à Saúde Coletiva ou à Medicina Social ou à saúde tout court! César Sabino é um antropólogo nato, ou se preferirmos ampliar a vocação, um sociólogo e antropólogo de grande talento. Eu tive o prazer e a honra de orientá-lo por alguns anos, além de escrever vários textos com ele – seu talento me inspirava muitas vezes, outras vezes me cumpria apenas aperfeiçoar sua escrita, em estilo e clareza, para que o texto fosse eficaz. Ao longo dos anos, uma grande amizade floresceu entre a antiga mestre e seu aluno. César é hoje um dos maiores prêmios de minha profissão de mestre: quantos terão tido esse presente da vida profissional? Prof.ª Madel Therezinha Luz Professora titular de Sociologia do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGSC/IMS/UERJ). E professora titular aposentada de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ). SUMÁRIO INTRODUÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19 O CORPO UTÓPICO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .19 CAPÍTULO I 1 O SURGIMENTO DO BODYBUILDING: UMA BREVE HISTÓRIA . . . . . . . . . .37 1.1 HERÓIS FUNDADORES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .47 1.2 A GESTA DE ARNOLD SCHWARZENEGGER . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .68 CAPÍTULO II 2 O SURGIMENTO DOS ESTEROIDES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .75 2.1 NO REINO DE DIONÍSOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .83 2.2 DROGA HIERARQUIZANTE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .88 2.3 APOLO - REI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .95 2.4 ENTRE APOLO E DIONISOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .100 CAPÍTULO III 3 ÉTICA CONSUMISTA E ESTÉTICA DO ESTEROIDE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .103 3.1 DO ASCETISMO AO HEDONISMO. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .115 3.2 DROGAS MASCULINIZANTES E INDIVIDUALISMO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .124 3.3 RITUAL E CONSTRUÇÃO DE PESSOA NO FISICULTURISMO . . . . . . . . . .128 3.4 A FORMA DA DOR. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .131 3.5 A LÓGICA DA CLASSIFICAÇÃO MUSCULAR. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .139 3.6 SÉRIES DE REPETIÇÕES: A DIVISÃO DO TRABALHO MUSCULAR . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .157 CAPÍTULO IV 4 COMENDO COMO BICHO: PUBLICIDADE, MITO E GASTRO(A) NOMIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .165 4.1 DIETA FORTE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .171 4.2 PUBLICIDADE E FORMA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .183 4.3 MITO E MÍDIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .187 4.4 MITOS DA FORMA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .191 4.5 MERCADORIAS CLASSIFICATÓRIAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .196 4.6 IMAGENS E PALAVRAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .201 4.7 RAIOS E LEÕES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .204 4.8 FÁBRICA E MECÂNICA DE CORPOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .206 CAPÍTULO V 5 TATUAGENS: A HIERARQUIA DA EPIDERME . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .213 5.1 PELE DE HOMEM. PELE DE MULHER . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .219 5.2 TATUAGEM E LÓGICA DA IDENTIDADE. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .227 5.3 MAGIA CAPILAR . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .234 5.4 O CABELO DO MALHADOR . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .236 5.5 A LOURA VIRTUAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .240 CAPÍTULO VI 6 ELOGIO À BARBÁRIE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .249 6.1 VIOLÊNCIA DIFUSA. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .252 6.2 O STATUS DA BRIGA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .255 6.3 VIOLÊNCIA ANÔMICA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .266 6.4 BÁRBAROS E CIVILIZADOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .281 CONSIDERAÇÕES FINAIS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 289 POST SCRIPTUM MOVIMENTOS CONJUNTURAIS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .295 REFERÊNCIAS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 305 INTRODUÇÃO Meu corpo é o lugar sem recurso ao qual estou condenado. Penso, afinal, que é contra ele e como que para apagá-lo que fizemos nascer todas as utopias. (Michel Foucault) O CORPO UTÓPICO O culto à forma corporal vem ganhando amplitude inédita em nossa época que elege as imagens não apenas como elemento atuante na vida das pessoas, mas também como objetivo de vida, paradigma de saúde e sucesso. Não é mais novidade: músculos definidos e inflados, tatuagens, piercings, implantes de silicone, botox, bronzeado artificial e cirurgias plásticas estão constantemente presentes no cotidiano das grandes e pequenas cidades, em toda mídia atual. Uma espécie de adoração ao corpo vem se consolidando, ao menos em parte, nas sociedades complexas hodiernas, articulando padrões de beleza perseguidos por crescente número de indivíduos insatisfeitos com seu estado físico. Esses, ao buscarem a construção de um corpo mais adequado aos ideais hegemônicos, acabam por construir também uma ética ou um conjunto de valores e crenças a interferir em seu comportamento nas práticas de cuidado de si e subjetividade. Corpo como axis mundi. Acontecimento que tem conduzido indivíduos e grupos de determinados extratos sociais a buscarem o ideal de perfeição física – obviamente inalcançável - radicado na proliferação de imagens, ideologias terapêuticas, métodos milagrosos e consumismo de produtos da indústria químico-farmacêutica como esteroides anabolizantes e suplementos alimentares, além de vitaminas e “fortificantes” dos mais variados tipos; tudo alimentado por imagens de corpos perfeitos cada vez mais presentes nas redes sociais (LUZ, 1997; DEL PRIORE, 2000; POPE, PHILLIPS; OLIVARDIA, 2000; NASCIMENTO, 2003). A preocupação não apenas com a aparência, mas com a forma física, com o entalhe muscular lapidado a ferro, suor, exercícios, dor, dietas e mesmo cirurgias, apesar de ser produzida coletivamente, torna-se carregada de investimento individual. Famosos anunciam na imprensa, nos programas de televisão e redes sociais, as transformações corporais que 19 CÉSAR SABINO decidiram realizar lançando mão de recursos tais como personal trainers, nutricionistas, nutrólogos, cirurgiões plásticos e outros profissionais do rejuvenescimento, do embelezamento e da saúde – entendida aqui como “boa forma física” ou beleza. De acordo com esse ideal, cada indivíduo é considerado responsável (ou culpado) por sua juventude, “boa aparência” e saúde: só é feio quem quer e só envelhece quem não se cuida. Cada um deve buscar em si as imperfeições que podem – e devem – ser corrigidas (GOLDENBERG, 2002; LUZ, 2000); essa é a mensagem do consumo da forma veiculada em geral. Nesse âmbito, o corpo encontra-se diante de um crescente mercado que o tem como principal produto e produtor. Estar em e manter a forma pode significar, nesse fluxo somatófilo coletivo, sucesso pessoal, autoridade, disciplina e talento para vencer, galgando os patamares da hierarquia social. A saúde torna-se um mandamento com efeito normalizador e adquire características de uma utopia, entendida como projeto que supera, por sua natureza praticamente religiosa, dado seu caráter universalista, a ideologia (SFEZ, 1995). Essa ideologia, embora pretenda universalidade, é reconhecida pelos teóricos enquanto discurso particular, ou seja, discurso originário de uma parcela específica da sociedade, sendo, portanto, discurso parcial. No caso das práticas corporais ligadas primordialmente ao paradigma estético, essa utopia está perpassada por representações de beleza ancoradas nos valores individualistas da cultura contemporânea. Assim, [...] é a estética, mais que a racionalidade médica e seus modelos (normalidade/ patologia, ou vitalidade/ energia) o critério sociocultural maior de enquadramento dos sujeitos para determinar se realmente são ‘saudáveis’, ou se precisam exercer alguma ‘atividade de saúde’, através do estabelecimento de padrões rígidos de forma física. Aqui, o comedimento, tomado como mandamento da saúde, está mais ligado à boa forma do corpo que ao modelo doença/prevenção (LUZ, 2003, p. 5). Os imperativos relacionados a estratégias sociais utópicas impelem número significativo de indivíduos a lutarem contra sua genética e o processo inexorável de envelhecimento levando alguns a cultivarem uma espécie de obsessão com a magreza, a musculatura e a juventude, tornando-se consumidores do produto saúde. Obsessão que pode ser percebida pela multiplicação de academias e métodos de exercícios novos lançados a cada verão nos grandes centros urbanos, pela expansão de dietas inovadoras de todos os tipos, pela disseminação da lipoaspiração, dos implantes de 20 DROGAS DE APOLO silicone e cirurgias estéticas de nariz, glúteos e panturrilha, pelo consumo de remédios e substâncias químicas de tipos variados visando a diminuir o percentual de adiposidade localizada, além do uso de vários subterfúgios em forma de cremes e outro produtos farmacêuticos para atenuar as marcas de expressão, rugas, fadiga e desânimo. Esse poder normalizador, disciplinar e controlador, padrão de atuação coletiva agindo nas instâncias mais cotidianas, dominando subjetividades em um espécie de micropolítica, cartografando desejos (GUATTARI; ROLNIK, 1996), leva inconscientemente milhões de pessoas a almejarem se enquadrar em um poderoso imperativo estético que paradoxalmente vai contra o ideal de liberdade individual inerente à representação do individualismo da cultura ocidental2 (LUZ, 1988; 2000; DUMONT, 1985). Esse processo somatófilo, que termina por se gerontofóbico, no caso da sociedade brasileira, apresenta características peculiares ressaltadas por diversos sociólogos, antropólogos e historiadores. Em relação ao bodybuilding3 amador, as brasileiras e os brasileiros articulam recursos técnicos universais para otimizar partes específicas do corpo valorizadas pela sua cultura. Partes como nádegas e coxas, no caso das mulheres, ou braços e peitos, nos casos masculinos, são “trabalhadas” por exercícios com pesos para alcançar forma e volume adequados ao padrão estético vigente (DA MATTA, 1996; GOLDENBERG, 2002). De acordo com Malysse (1999; Apesar de todas as discussões a respeito da legitimidade dos termos cultura ocidental, Modernidade e Ocidente (LATOUR, 2009), consideramos, da mesma forma que Duarte (1999, p. 22), viável, apenas para fins de análise sociológica, a hipótese de que participamos de um sistema específico de significações que se pode chamar, tentativamente, de “cultura ocidental moderna”, que implica uma certa maneira de perceber e compreender os fenômenos de nossa vida e, sobretudo, imaginar que podemos perceber e compreender fenômenos das outras culturas em relação às nossas. 3 O Bodybuilding, ou fisiculturismo, pode ser sumariamente definido como uso de exercícios progressivos de força e resistência com o objetivo de controlar, administrar e desenvolver musculatura hipertrofiada em todos seus aspectos. Esse desenvolvimento é conseguido por intermédio de práticas contínuas (exercícios) realizadas com pesos acoplados a barras – que podem ser curtas ou longas – e/ou em máquinas projetadas para tal. O uso de pesos é controlado em conformidade com o objetivo físico (trabalho de força ou resistência) ou estético do executante. A quantidade de pesos aumenta progressivamente com o passar do tempo de treino. Relacionado à prática, constitui-se o conjunto de saberes científicos (mas também leigos) a respeito da nutrição, fisiologia e uso de remédios e substâncias diversas que circulam nas academias de musculação. Esse saber geralmente tem por base os conhecimentos científicos ligados à ciência médica ou biomedicina. Contudo parte significativa do conhecimento articulado pelos fisiculturistas e personal trainers é prático, ou seja, aprendido e (re)produzido no cotidiano dessas instâncias de práticas da forma física, via experimentação intuitiva ou por simples imitação. Assim, uma substância (remédio, suplemento ou alimento) ou variação de exercício que algum praticante percebe ter funcionado no seu corpo é repassado para aqueles que desejam alcançar o mesmo aprimoramento e que fazem parte do grupo de relacionamento daquele que conseguiu novas formas de praticar a construção muscular – saber prático ou o que Aristóteles denominava phronésis. Esse saber, porém, torna-se um capital – e por isso não é repassado para qualquer um – a ser investido nas relações sociais e nas competições de bodybuilding. 2 21 CÉSAR SABINO 2000), a expansão das técnicas de construção do corpo no Brasil – ao menos no Rio de Janeiro onde o autor realizou sua etnografia – tende a reiterar as profundas hierarquias sociais disfarçadas pela cordialidade das interações nas quais o contato corporal se realiza sem significar, contudo, proximidade social, de fato. Diz o autor, [...] no contexto do culto [...] ao corpo, este é o portador de valores de distinção social [...] não é apenas a beleza em si que constitui o valor fundamental da distinção social, mas também a energia empregada por cada indivíduo para (re)construir sua aparência [...] essa relação de espelho com o corpo confirma de maneira visível os valores hierárquicos da sociedade carioca [...]. Insatisfeito, privado de seu corpo, o indivíduo é convidado a retomar a posse daquilo que lhe escapa socialmente. Nesse contexto, o corpo torna-se o símbolo social da pessoa. A corpolatria seria então uma ensomatose (uma queda em direção ao corpo), mas uma ensomatose controlada, dosada e esteticamente orientada por imagens-norma ou por uma iconologia desse culto corpo. (2000, p. 131). O corpo, assim, é produto e produtor das relações de poder que o formam e as quais ele simboliza. Sua estética, cor, comportamento e estilo são marcados e marcam as hierarquias sociais inerentes às relações sociais, ainda mais em uma sociedade de tradição escravocrata na qual cada item remete a uma condição estamental ou de classe. Tocar-se em quantidade maior do que outros povos em espaços públicos e privados não equivale à proximidade social efetiva, como uma análise apressada poderia concluir. Paradoxalmente, o contato físico com o outro, nesse caso, pode significar distanciamento hierárquico e instrumentalização egoísta da alteridade. Nesse processo, o problema das representações sociais relacionadas à estética do corpo brasileiro aparece ligado à concepção de que esse mesmo corpo encarnaria uma beleza inigualável, tida como produto nacional (inclusive “para exportação”, como diz o senso comum), que não estaria associada diretamente às questões de reivindicação étnico-política4. Esse aspecto alude a O trabalho de Bomfim (2002) sugere, como prática comum à cultura nacional, a manipulação circunstancial da identidade étnica denominada etnia virtual. Esse processo ocorre quando indivíduos, ou grupos, manipulam uma suposta ascendência minoritária – ciganos (no caso específico do trabalho da autora), negros etc. – com o intuito de construir um papel vantajoso em determinadas relações sociais. Esse esteticismo populista pode ser claramente percebido no caso polêmico das cotas ou reserva de vagas para negros em universidades públicas no Brasil – mais especificamente no Rio de Janeiro –, situação na qual vários indivíduos considerados brancos se declararam afrodescendentes garantindo, estrategicamente, vaga em universidade pública. (cf. Revista Época. n. 244. 20 jan. 2003, p. 36-37). Rezende e Maggie também destacam que no Brasil ser negro, branco, preto, moreno etc., torna-se atribuição que pode variar “de acordo com quem fala, como fala, e de que posição fala” (2002, p. 15). 4 22 DROGAS DE APOLO uma percepção falsa de democratização, relacionada mais a um movimento estetizante, e acima de tudo mercadológico, que de fato político (FRY, 2001; 2002). Não havendo no Brasil vínculo direto entre práticas cosméticas e contestação às formas de opressão sexual ou racial, a questão da beleza surgiria enquanto produto final da miscigenação – valorizada, nesse caso. Essa lógica opera da seguinte maneira: se o corpo da mulher brasileira, com sua “cintura fina, seu quadril largo e empinado, suas pernas grossas e seu andar malemolente”, é, supostamente, produto da “mistura de raças”, a mesma mistura tornar-se-ia (em um caso de doxa da eugenia invertida) um item indicativo da “democracia racial” brasileira, cultura supostamente capaz de sintetizar diferenças transformando-as em produto esteticamente diferenciador: “não há beleza maior do que a da mulher brasileira”, diz o senso comum nacional. Essa ode à “beleza miscigenada” da brasileira (FREYRE, 1986) – cliché turístico que esconde o fato de as percepções estéticas serem produto da socialização – é imagem dominante na representação da identidade nacional, e que pode velar um racismo estrutural (EDMONDS, 2002) como senso comum; algumas vezes contrabandeado para os estudos sociológicos. De fato, essa é uma das representações mais distantes da prática que existe no Brasil. A representação que concebe a beleza da mulher brasileira como produto da miscigenação esquece que, por enquanto, a grande maioria daquelas mulheres aqui nascidas e reconhecidas mundo afora pelo seu padrão estético, em geral, nada, ou quase nada, têm de musas mestiças, ao menos em sua aparência, ostentando nomes e aspecto que dariam ao incauto a sensação de estar diante de mulheres alemãs ou italianas: Gisele Bündchen, Daniella Cicarelli, Shirley Mallmann, Mariana Weickert, Ana Hickmann, e assim por diante. O antropólogo Alvaro Jarrin, ao pesquisar a beleza no Brasil, entrevistou cirurgiões plásticos e percebeu um discurso racial claro e institucionalizado que concebe justamente a mistura racial de forma oposta ao senso comum (douto ou não) do elogio à mistura. De fato, os médicos ligados à estética a concebem como item de inferioridade e atraso nacional, posto que para eles a forma física está relacionada à moral e, portanto, ao comportamento social; sendo a cirurgia plástica elemento corretor de construção da nação e supressão dos defeitos causados pela miscigenação: Para os cirurgiões plásticos [...], por outro lado, sua disciplina tem um objetivo maior e mais elevado [...]: melhorar a população brasileira. [...] acreditam que os padrões de beleza são universais, [...] objetivamente verificáveis e têm significado 23 CÉSAR SABINO não só para os indivíduos, mas para a nação como um todo. Imaginam sua proeza cirúrgica como capaz de corrigir os erros causados por muita mistura racial no Brasil, e exaltam mulheres com clara ascendência europeia, como a supermodelo Gisele Bündchen, como ideais de beleza para todas as mulheres brasileiras. O desejo de brancura expresso pelos cirurgiões plásticos não é acidental — a cirurgia plástica tem uma longa história no Brasil, e foi celebrada pela primeira vez como ferramenta médica por eugenistas brasileiros como Renato Kehl, que no início do século XX equiparou a embelezamento com a higiene, imaginando um futuro em que a diferença racial e a feiura seriam erradicadas da população brasileira. Foi esse legado eugênico dentro da cirurgia plástica que permitiu ao cirurgião plástico mais famoso do Brasil, Ivo Pitanguy, argumentar que os pobres também deveriam receber o dom da beleza, e ganhar apoio estatal para ampliar o acesso à cirurgia plástica dentro dos hospitais públicos. Uma cidadania mais bonita, a lógica era, se livraria de seus elementos mais feios e criminosos, e cirurgiões plásticos curariam as feridas da violência urbana através de seu trabalho. (JARRIN, 2017, p. 8, grifo meu). É justamente esse padrão eurocêntrico de beleza feminina (mas não apenas) que impera na mídia e que domina, se não na morfologia ao menos na etnia, o campo das academias de musculação. Como organizações de classe média, as academias pesquisadas expressam as idiossincrasias relativas às visões de mundo de seus frequentadores. Com efeito, essas concepções a respeito das relações étnicas estão de acordo com o que foi percebido por John Norvell em trabalho que coloca em xeque as conclusões apressadas sobre as chamadas relações raciais nas camadas médias urbanas brasileiras, mais especificamente a carioca, destacando a ambiguidade presente no discurso desse grupo que usa de eufemismos para si mesmo quando referido a sua cor: denominam-se “claros”, “alvos”, “morenos claros”, e assim por diante, quando confrontados com suas características europeias5. Como a representação do Brasil é a de uma nação miscigenada, não se fala de brancura – ao menos em discursos oficiais e “politicamente corretos” – como característica valorizada; assim os Farias (2002) ressalta que no Brasil – ao menos em sua maior parte territorial – ser bronzeado é símbolo de status. A cor bronzeada, o estar moreno, ou ser moreno, com toda ambiguidade que tal termo possui (e por isso mesmo), é sinônimo de positividade, beleza e mesmo saúde, contrastando com a cor branca vista como palidez ou o vermelho entendido como castigo do sol aos muito brancos. Contudo, como tais classificações são voláteis, esse discurso é utilizado em determinadas circunstâncias, por exemplo, quando relacionado às praias na época do verão. Em outras condições, quando convém, o moreno bronzeado vira branco e, em outros momentos deixa de ser branco. 5 24 DROGAS DE APOLO informantes evitam referir-se a si mesmos como “brancos”, mesmo quando descendentes diretos de imigrantes europeus com todas as características inerentes a tal fato. Poucos aceitam o rótulo e, quando o fazem, é com incômodo ou constrangimento. Apesar dessa constatação discursiva, o trabalho de campo do autor esclarece que há duplicidade na fala e que a prática difere, algumas vezes, daquilo que é dito: [...] os cariocas de classe média [e alta] observam que não partilham os valores culturais que constituem o núcleo da nação...em algum momento começam a falar sobre o passado de imigrantes de sua família [...] apontam, quase com melancolia, que não gostam particularmente de carnaval, festa tão brasileira e miscigenada de inversão, sexo e entrega. Muitas vezes saem da cidade nessa época, fugindo para locais elegantes de veraneio nas montanhas ou na praia. Confessam que não sabem dançar samba. Só as mulatas do morro sabem realmente sambar [, dizem]. Falam sobre o povão, as massas racializadas, e seu jeito livre, solto, sua gíria, sua irreverência. Um advogado de classe média alta me disse: “Assim como você é gringo aqui, eu também. Apontou para rua e explicou: ‘Meu nome não é da Silva. Não uso gíria o tempo todo. Não sambo. Não tenho sangue negro.” Este último ponto, relativo à ausência de sangue negro, é uma parte crucial dessa narrativa que fala de si mesmo como alguém que está de fora. Embora se descrevam como produtos de uma sociedade de raça mista, essas origens tendem a desaparecer no plano concreto. Eles preferem fazer referências a parentes [europeus] imigrantes específicos, e não a parentes negros, mulatos ou indígenas. Reconhecem que sua família de fato não é tão misturada quanto a norma brasileira, embora haja muito provavelmente um parente indígena ou negro “em algum lugar do passado”. Às vezes admitem que haveria tensão na família se eles ou seus filhos tivessem uma relação sexual pública com uma pessoa de pele escura. Embora a maioria dos homens aponte a mulata como padrão de beleza e alvo de desejo sexual no Brasil, seus contatos sexuais reais com mulatas parecem limitar-se ou a representações, como desfiles carnavalescos ou em filmes, ou a ligações ilegítimas, prostituição e casos secretos, por exemplo. (NORVELL, 2002, p. 261). Compreensível, portanto, o fato de as classes alta e média alta, e consequentemente a mídia, produzirem discursos sobre a beleza miscigenada não condizentes, ainda na prática, com a realidade que elas mesmas reproduzem. Da mesma maneira, entre os fisiculturistas e usuários das academias de 25 CÉSAR SABINO musculação em geral, ocorre processo similar. O padrão de beleza presente nas representações coletivas mostra-se ainda eminentemente europeu. Reorientações sobre o corpo não apenas ajudam a construí-lo, mas também a oprimi-lo. Sobre a tríade conceitual beleza-juventude-saúde, um número crescente de indivíduos tem sido, cada vez mais, empurrado ao consumo de práticas ligadas à denominada boa forma (DEL PRIORE, 2000). Longe de desembaraçar-se dos esquemas tradicionais de dominação, o corpo, nas sociedades complexas, pode sofrer restrições gradativas levando indivíduos e grupos a construírem suas identidades associadas à tríade conceitual citada. Os valores desses grupos tendem a impelir os indivíduos a se colocarem a serviço da forma física ou, no mínimo, a articular estratégias de relacionamento tendo em vista tal demanda coletiva pela “boa forma”. Esse controle parece se articular por intermédio da mídia, da propaganda e do marketing. A proliferação de corpos cada vez mais “perfeitos” em redes sociais, outdoors, revistas, televisão, mídia em geral, tece trama cotidiana de agenciamentos coletivos (construções de subjetividades) respaldados no discurso sobre a saúde os quais sugerem a indivíduos e grupos comportamento ritual de manutenção da forma, ela mesma concebida como signo do saudável, que pode custar a própria vida do praticante. Nesse caso, ocorre significativo investimento no aperfeiçoamento e na manutenção da aparência. A forma oblitera o conteúdo, em uma sobrecarga sensorial, como pode demonstrar Samuel Fussel escrevendo sobre a época na qual era fisiculturista: Músculos, grandes, expressivos músculos – bem, eles são algo mais. Obviamente uma rápida olhadela no meu corpo enorme já me garante imunidade mesmo contra a criminalidade mais insana. E a beleza de tudo isso é que provavelmente eu nunca serei obrigado a utilizar realmente esses músculos. Eu poderia permanecer um covarde e ninguém saberia! (FUSSEL, 199, p. 25). Ou ainda o depoimento de um fisiculturista entrevistado em uma das academias observadas: Eu gasto muito para manter esse corpo [...] em alimentação e esteroides eu gasto por mês uns dois mil reais só com isso6. Já vendi dois carros e uma moto para poder treinar, quando não tenho dinheiro arrumo de um jeito ou outro, vendo o que eu tenho, depois 6 Na época, o real valia 1 dólar. 26 DROGAS DE APOLO compro de novo [...] são fases, o que eu não deixo é de crescer, isso é a minha vida, nada vai me desviar disso, nem dinheiro, nem mulher, nem médico... sofri um acidente de moto em 96 e fiquei em estado grave, quebrei perna, costela, braço, fiquei entrevado no hospital, cortei minha cara toda [...] o médico me disse que eu não ia mais poder malhar pesado, disse que eu ia ficar aleijado; dois meses depois eu tava ‘malhando’ e seis meses depois da alta eu já estava bom, não adianta, não deixo de malhar, por nada. (Marcos, personal trainer de 28 anos). Para que seja viável a busca de entendimento de um grupo, seja ela qual for, é necessário “estudar em detalhes a estrutura e o funcionamento da organização que o sustenta” (WACQUANT, 2002, p. 31). Do mesmo modo, para que seja possível a busca de entendimento desse processo de adoração à forma presente nas sociedades complexas atuais, faz-se necessário elucidar o significado e o enraizamento das práticas corporais realizadas em academias de musculação e ginástica com todas as suas incessantes variações de práticas de exercícios que vêm se espalhando de maneira crescente pelas grandes cidades, e mesmo interior do país. Examinar a trama das relações sociais e simbólicas tecidas dentro e ao redor das salas de exercícios de hipertrofia muscular é tarefa imprescindível para que o processo de compreensão dessa realidade seja possível. A musculação tornou-se, a partir da segunda metade do século XX, não apenas uma atividade física complementar aos esportes ou de fortalecimento osteoarticular, mas uma prática em expansão conferindo à massa muscular hipertrofiada o status de novo item da moda associado à crescente indústria de suplementos, esteroides, publicações especializadas e tecnologia de máquinas para exercícios. Vasta parafernália se desenvolve ao redor do globo construindo os ditames da fibra muscular como um modo de vida (COURTINE, 1995). Se na segunda metade do século XIX, homens hipermusculosos eram símbolo do desvio – em geral apresentados (na Europa e América do Norte) em freak shows –, a partir da primeira metade do século XX, passam, cada vez mais, a representar um ideal de saúde relacionado à construção do caráter empreendedor e progressista tido como necessário para a manutenção da família e de nação, concepções caras às sociedades disciplinares (FOUCAULT, 1988; COSTA, 1989; RABINOW, 1999; JAR- 27 CÉSAR SABINO RIN, 2017; 2017a). Atualmente, ostentar massa hipertrofiada e definida7 pode significar adesão ao consumo e ao paroxismo da aparência. De meio para atingir um ideal funcional de saúde, o corpo tornou-se, para muitos, um projeto estético de vida, ressaltando a importância atual da imagem corporal e dos exercícios para a articulação do chamado marketing pessoal: corpo-empresa, corpo-vitrine, corpo-máquina, corpo-produto de consumo, corpo neoliberal. Nesse processo, o mercado da forma física amplia-se, e as academias de musculação surgem como locais nos quais uma crescente parcela da população tenta aprimorar sua forma em nome de um ideal de saúde respaldado pela dinâmica do consumo. Dessa forma, a musculação enquanto prática sociocultural, e não apenas como atividade de educação física – portanto, enquanto elemento que extrapola, e muito, a dimensão apenas biológica – é uma das instâncias principais na qual são forjados esses corpos. O local onde são elaboradas, experimentadas e sistematizadas as habilidades técnicas que permitem construir e conformar esse material feito de sangue, suor, músculos e desejos. A competência esportiva transmitida pelas academias está diretamente relacionada à estética (salvo exceções nas quais é usada como apoio e fortalecimento para a prática de outros esportes); e nisso ela possui uma função institucional que é extraesportiva, pois as interações sociais realizadas em seu interior giram em torno de rituais de construção da forma física e da imagem saudável. De fato, o bodybuilding, como expressão máxima dessas atividades corporais, termina por resumir-se a um conjunto de técnicas corporais (MAUSS, 1974) visando ao aprimoramento estético da forma como elemento de competição esportiva profissional ou amadora. O fisiculturista, amador ou não, (também conhecido popularmente no Rio de Janeiro como “Marombeiro”8), espécie de ícone do culto à forma, sintetiza tendências corpólatras, retira os pelos de seu corpo, cuida de sua Definir musculatura significa não apenas fazê-la crescer, mas também diminuir o percentual de gordura para que fibras musculares e massa se tornem visíveis sob a pele, por exemplo, o abdômen em forma de gomos, e isso, a definição muscular, apenas é possível, se o indivíduo tiver baixa camada de gordura corporal (adiposidade) e não apenas volume muscular. 8 A palavra origina-se de maromba: a vara ou barra a qual o funâmbulo usa para se equilibrar na maroma: a corda na qual caminha. Maromba pode significar também o(s) peso(s), que incide nas duas extremidades da barra, com o qual o funâmbulo se mantém em equilíbrio. Como no fisiculturismo e halterofilismo são utilizadas barras com pesos (halteres) removíveis, ou não, nas extremidades, não é difícil perceber a associação das imagens do homem que anda na corda bamba, utilizando o peso da maromba para se equilibrar, e daquele que utiliza os pesos para otimizar sua forma e força. Marombeiro, na cidade do Rio de Janeiro, tornou-se sinônimo de usuário assíduo de academias de musculação, por vezes chamado pelos próprios como “ratos de academia” (SABINO, 2002). A situação arriscada inerente às atividades do homem que anda na corda bamba para sobreviver e a condição efêmera do fisiculturista que luta utilizando meios arriscados para manter uma forma volátil que inexoravelmente desaparecerá é também sugestiva. 7 28 DROGAS DE APOLO pele, aprende a caminhar de forma dramática ressaltando os seus detalhes musculares, treina poses no espelho, faz dieta, vai ao esteticista e fica deprimido quando engorda ou perde massa muscular. Sua vida, em geral, gira em torno da forma física, e o olhar do outro é sua maior recompensa. Esse escultor de si, acredita ser o livre senhor de sua própria morfologia, embora dependa do olhar do outro para sentir sua liberdade autoconstruída. Quando tô na rua e todo mundo fica olhando espantado para mim por causa do meu tamanho é a verdadeira glória [...] não ser percebido para mim, não ser notado, visto pela maioria é [...] é bem ruim! Sabe […] Se ninguém te olha, você é qualquer um, ninguém, nada. Então, sente que seu trabalho não está bom, seus treinos não estão funcionando. (Carlos. 33 anos, advogado). Se, por intermédio da exaltação à muscularidade, o fisiculturismo acaba por inflar o paradigma de masculinidade dominante, que pode ser denominada hegemônica; por outro lado, subverte o cuidado de si, introduzindo práticas tradicionalmente femininas no cotidiano dessa masculinidade ao transformar a forma física em objeto de sedução, de atenção e admiração, articulando uma espécie de “feminização” comportamental, da masculinidade (KIMMEL, 1998; RAMOS, 2000), porém sem alterar a ética andrólatra da formação dessa mesma masculidade hipertrofiada. Talvez esses homens sejam uma pequena amostra da onda de pressão estética juvenil que a sociedade atual faz incidir sobre homens e mulheres em geral. A pressão para adquirir a forma física adequada aos ditames e representações estéticas que mulheres sofrem há séculos, agora também incide sob indivíduos do sexo masculino que utilizam recursos para construir uma forma adequada às representações sociais de beleza antes impensável: prática compulsiva de exercícios, uso de esteroides anabolizantes, produtos e remédios redutores de adiposidade, cirurgias plásticas, cuidados com pele e cabelos, porém visando, no caso, à imagem hipermasculinizada9. Toda essa construção prática da pessoa, da sua subjetividade girando em torno da estética corporal, todo o mecanismo afetivo, de apreensão da realidade com suas relações sociais, estão relacionados ao que denomino - Se há este grupo que hipervaloriza a masculinidade dominante em valores e estética construindo uma espécie de adoração ao modelo de “macho alfa”, como denominados pelo senso comum, ou masculinidade hegemônica (androlatria), existem outros grupos ou “tribos urbanas” simetricamente opostas como, por exemplo, aponta o trabalho de Osório sobre o movimento Wicca. Nas representações deste grupo o valor atribuído ao que é feminino é sempre positivo, vital e dominante ao contrário do que se observa em sociedades tradicionais. Se, nestas sociedades, o corpo da mulher surge como representação do que é perverso e impuro, na Wicca ele é fonte de pureza e criação, e, portanto, sagrado (OSÓRIO, 2002). 9 29 CÉSAR SABINO de representações sociais, representações coletivas ou representações culturais. De acordo com o primeiro a utilizar o termo, Émile Durkheim, elas se constituem como “[...] maneiras de pensar, de agir e de sentir exteriores ao indivíduo, dotadas de um poder de coerção em virtude do qual se lhe impõe” (1972, p. 4). Prosseguindo, [...] designam a camada mais antiga, e também a mais estável e a mais implícita da visão de mundo dos indivíduos. Nas representações coletivas encontram-se categorias de classificação, imagens e símbolos que organizam as relações dos indivíduos entre si e com a natureza. Essa visão de mundo apresenta-se como natural não exigindo qualquer justificativa (BOZON, 1995, p. 123- 124). Ainda: [...] são esquemas de pensamento impensados que sob forma de um conjunto de pares de oposição binária [por exemplo, forte/ fraco, alto/baixo, masculino/feminino, bom/ruim, rico/pobre, feio/bonito, etc.] funcionando como categorias de percepção, constroem as relações de poder do ponto de vista daqueles que afirmam sua dominação, fazendo-a parecer natural. (BOURDIEU, 1990, p. 34, grifo meu). Com efeito, as práticas cotidianas e os comportamentos do grupo estudado neste livro estão diretamente associados às suas representações sociais de beleza, masculinidade, excelência, sucesso, conquista e poder. Penso que, dessa maneira, pode-se dizer que não há qualquer separação entre corpo e sociedade, um se efetivando e realizando no devir do outro – dois aspectos de um mesmo fluxo. Por outro lado, a busca por uma beleza ideal, ou corpo perfeito, encaixa-se em um processo utópico que mobiliza, cada vez mais, adeptos ao redor do mundo. A busca do grupo pela excelência estética musculosa leva seus componentes a também buscarem todas as maneiras possíveis de aprimorar a produção desse item corporal. Sem embargo, transformam-se em espécies de cobaias para a indústria da forma. Assim, o corpo dos fisiculturistas serve para eles mesmos testarem em si os produtos das indústrias farmacêuticas, suplementos alimentares, aparelhos de musculação e moda esportiva. Os resultados também não deixam de ser aproveitados pelas indústrias que aprimoram seus produtos de acordo com o comportamento dos praticantes-consumidores. Os saberes e as práticas sobre o corpo são produzidos e reproduzidos nesse cotidiano repleto de anilhas, barras e aparelhos, assim como o são as 30 DROGAS DE APOLO relações sociais com suas hierarquias e práticas de poder. Com efeito, as técnicas físicas desenvolvidas nesses locais estruturam e organizam o processo de expansão do cuidado com a aparência e a força física, ordenando também as trocas simbólicas entre indivíduos e grupos no contexto de relações sociais que giram em torno da busca e ostentação da boa forma. Enquanto muitas instituições esportivas isolam seus frequentadores da rua, da violência social e da ação do crime organizado, apresentando-se, não raro, como o único caminho possível de ascensão social, como é o caso das academias de boxe nos guetos americanos (WACQUANT, 2002) e dos clubes de futebol n o Brasil, a academia de musculação, ou de bodybuilding, opera por lógica invertida. Em sua maioria, pertencentes à classe média, média-baixa urbana, é comum, entre os frequentadores desses recintos, a admiração pelo submundo do qual não fazem parte ou que presenciam eventualmente por intermédio do noticiário sobre os crimes da cidade, distantes das janelas de seus apartamentos em condomínios. Contudo, diante da gradativa expansão dessas práticas, penso que logo elas farão parte dos contextos das classes mais baixas. O trabalho também aborda aspectos culturais relacionados à alimentação, ao uso de suplementos alimentares, assim como dimensões míticas articuladas pelo marketing direcionado à venda de produtos para a construção e manutenção da saúde-boa-forma. Saúde considerada utopia da sociedade contemporânea conforme sustenta Lucien Sfez (1995). Além dos aspectos citados, busquei compreender o sistema simbólico expresso pelas tatuagens, as formas e usos do cabelo e a exaltação a um determinado tipo de virilidade relacionada à violência como imagem de excelência na estrutura dessas relações de poder. Concepção de masculinidade dominante que vem sendo cada vez mais questionada e combatida pelos estudos de gênero, coletivos e movimentos sociais; mas que continua fazendo vítimas apesar do esforço contínuo de parcelas da sociedade civil para mudar valores, crenças e sentimentos androcêntricos ainda arraigados nas práticas e representações organizacionais e institucionais. Cabe ressaltar que os fisiculturistas são entendidos não apenas como frequentadores comuns das academias de musculação e fitness, mas como indivíduos que se destacam dos outros por dedicarem grande parte de seu tempo desenvolvendo massa muscular bem acima da média das pessoas, mesmo atléticas, além de participarem (mas não necessariamente) de campeonatos 31 CÉSAR SABINO ou competições amadoras, ou profissionais, de bodybuilding.10 É preciso também não confundir fisiculturistas, ou bodybuilders, com halterofilistas. Esses últimos não estão preocupados de maneira alguma com a forma estética ou com a definição de sua massa muscular, mas têm por objetivo cultivar força. Suas competições (incluídas inclusive nas Olimpíadas) visam a ultrapassar recordes de levantamento de peso. Esse grupo, raro, forma elemento à parte nas academias junto aos fisiculturista, que são os maiores representantes de aficionados pela hipertrofia muscular, associada ao mínimo de adiposidade possível e que têm na imagem, e não na força, se não a principal, uma das principais preocupações de suas vidas. Já halterofilistas, apesar de desenvolverem massa muscular significativa para obter força, portam em geral um índice de adiposidade impensável para um fisiculturista mesmo fora de competição. Enquanto, para os primeiros, a estética é o capital principal a ser adquirido e trocado por prêmios, fama e autoridade em seu campo profissional ou amador; para os segundos, a força muscular (e de forma alguma a estética) é o capital fundamental. Permaneci, entre idas e vindas, em torno 54 meses realizando trabalho de campo em 10 academias de musculação e fisiculturismo das zonas norte e sul cariocas. Foram realizadas 310 entrevistas com homens e mulheres (200 homens e 110 mulheres) com idades entre 16 e 55 anos. Os nomes de todos os informantes foram trocados visando a proteger sua privacidade. Priorizei a abordagem baseada na observação participante – ou participação observante. Ou seja, durante a pesquisa, frequentei e participei o máximo possível do cotidiano desses centros de cultivo da forma, variando horários (manhã, tarde e noite), observando comportamentos e falas não apenas dos fisiculturistas e simpatizantes do fisiculturismo ou culturismo, mas de todos envolvidos com a musculação em seu habitat natural, como escreveu Wacquant (2001) em Notas Etnográficas de um Aprendiz de Boxeur. Retirei, porém, deste trabalho a maior parte dos relatos etnográficos por serem demasiado extensos e pouco contribuírem para as ideias gerais do livro. Preciso ressaltar que a categoria fisiculturista ou bodybuilder, (assim como os outros tipos: marombeiros, veteranos, comuns etc.), aqui neste livro, é um tipo ideal ou puro, não existindo exatamente na realidade empírica como descrito. É uma ferramenta teórico-metodológica criada pelo sociólogo alemão Max Weber visando a melhor compreensão das relações e ações sociais e seus sentidos. Consiste em um modelo abstrato construído a partir da observação e do exagero, por parte do pesquisador, de determinadas características que ele considera dominantes e as quais estão presentes nas práticas dos atores ou agentes sociais ao exercerem um papel em um determinado contexto ordenado ou situação a qual envolve relações de poder, legitimidade e dominação (WEBER, 1992; 1997). Esse aspecto será melhor desenvolvido no capítulo 2. 10 32 DROGAS DE APOLO O trabalho segue o seguinte roteiro: inicialmente apresento um breve histórico sobre o surgimento do fisiculturismo e dos esteroides anabolizantes, ou da produção sintética da testosterona. Nessa direção, mostro brevemente a consolidação do campo profissional, seus ícones e sua projeção internacional, destacando a função do mito de referência para os bodybuilders – o “herói” Arnold Schwarzenegger. Logo após a análise do “mito Arnold”, como é chamado no meio, destaco o uso ritual de esteroides os quais percebo como um novo tipo de uso de novas drogas. Consumo que não deixa de estar relacionado ao processo de crescente medicalização de parcela significativa da sociedade contemporânea cada vez mais obcecada pela saúde relacionada à juventude e à boa forma (ILLICH, 1975; 1992; LUZ, 2003). Se fosse utilizar a teoria ator-rede de Bruno Latour (1996; 2009), poderia dizer que os esteroides anabolizantes são atores ou actantes em relação com agentes sociais11 . Por outro lado, ao buscar elaborar um histórico sobre o surgimento dos mesmos esteroides, ressalto o uso da narrativa científica muitas vezes serviu como justificativa eficaz da produção estética como sinônimo de saúde para a maior parte das pessoas desse grupo estudado assim como tem se tornado para nossa sociedade em geral. O papel da publicidade relacionado à produção e manutenção dos mitos corporais modernos e sua ligação com as práticas alimentares (em contraposição à comensalidade) dos praticantes ortodoxos das academias de fisiculturismo também surgem. Enfatizo a relação do alimento, percebido como conjunto de elementos químicos ou ferramentas para a manutenção bioestética, seus aspectos de mitificação da ciência e a demonização da gordura, além das classificações alimentares, a anticonsubstancialidade animal (ligada ao uso, por parte do grupo, de vitaminas e remédios para animais), sugerindo que os significados das dietas e sua relação com o uso dos hormônios sintéticos, suplementos e fabricação da forma corporal ordenam e racionalizam o cotidiano e a vida do grupo conferindo-lhe o sentido e o significado da existência que se consolida, por sua vez, apenas por intermédio da presença paradoxal do risco de morte devido ao uso frequente destas substâncias. A clareza textual de Olívia von der Weid (2017, p. 9) nos ajuda a compreender melhor: “a teoria do ator-rede considera a sociedade, as organizações, os agentes e as máquinas [ou substâncias, drogas, remédios, etc.], todos como efeitos gerados por redes de materiais diversos, não apenas humanos. Nesta teoria qualquer agente pode ser visto como um produto ou efeito de uma rede de materiais heterogêneos. As redes são compostas não apenas por pessoas, mas também por máquinas, animais, textos, dinheiro, arquiteturas – quaisquer materiais. O princípio de simetrização implica que os dois lados devem ser explicados simultaneamente, já que ambos são (co)produzidos e são suas interações que compõem o social. Para desvendar a rede, a estratégia é voltar-se para as práticas e seguir a cadeia de mediadores que a compõem, acompanha-los em ação, deslocando a atenção para os próprios vínculos.” 11 33 CÉSAR SABINO No capítulo posterior, destaco a dimensão ritualística das competições e dos exercícios e a relação que esses têm com essa organização cotidiana. Nesse movimento aparece um simbolismo místico-religioso relacionado às crenças em maus-olhados, superstições e azares marcando uma espécie de reencantamento de um contexto no qual, paradoxalmente, o ascetismo e o ceticismo científico são presença constante. O significado, por exemplo, dos números pares na lógica classificatória das séries de exercícios é bastante sugestivo em uma cultura que parece não conviver bem com a diferença, a dissonância (seja musical ou não) e, sobretudo àquilo que foge da sua concepção de equilíbrio, primando pela sua simetria e repetição em detrimento de tudo que é diferenciante. Prosseguindo a análise simbólica, reitero as relações de hierarquia e status inscritas não apenas nos músculos, mas também na pele, por intermédio das tatuagens de homens e mulheres. Ressalto como esses desenhos e inscrições possuem uma espécie de gramática própria traduzindo relações de violência simbólica específicas do grupo e da sociedade brasileira, demarcando papéis relacionados ao gênero e à classe social em uma economia política do corpo. Dentro desse conjunto de observações, surge também a importância do cabelo louro como símbolo de distinção feminina, sendo o significado dos pelos alourados – situados em determinadas regiões do corpo feminino – relacionados à hierarquia da beleza no grupo e ao comércio da sedução relacionado aos investimentos de capital corporal. Se o conteúdo do que foi descrito já se modificou a lógica que compõem as relações sociais de poder no contexto ainda continua a mesma. Por fim, destaco o aspecto da violência simbólica e prática traduzida no cultivo e na exaltação do estilo grosseiro, arrogante, anti-intelectual e agressivo de uma masculinidade tradicional, opressora e, até mesmo, cruel, associada a uma visão de mundo neoliberal, presente no cotidiano dos que dedicam tempo significativo de suas vidas a produção diária dos músculos como marca de uma virilidade que se vê como excelência estética a ser investida não mais apenas como mercadoria em mercados de trocas simbólicas, mas também agora como corpo-empresa. Visão de mundo que oprime também o próprio opressor, fazendo-o por vezes pagar com a vida o status de sua dominação. Se é possível alguém tornar-se um fisiculturista de competição no Brasil, devido à expansão gradativa dessa prática; em sua maioria, esses 34 DROGAS DE APOLO indivíduos ainda não buscam a profissionalização12, apenas organizam seu cotidiano por intermédio do sistema simbólico e prático da educação corporal que confere sentido as suas vidas. Se a representação apregoa uma existência ilibada, independente de vícios, ligada à família e à ordem, na prática, é frequente o inverso. Esse paradoxo, como será possível perceber adiante, é parte da própria constituição do devir fisiculturista; pois, ao mesmo tempo que deseja ser aceito socialmente, estampando mediante seus músculos, sua disciplina e dedicação, cultiva um certo ar estigmatizado, de alguém que tem relação obscura com o lado marginalizado e misterioso da sociedade – o que por vezes pode comportar uma romantização do crime e do risco de morte. Obviamente, essa relação confere àquele que cultiva seus músculos sentimento de poder, já que o estigma também porta um quantum de força simbólica que não é apenas negativa (DOUGLAS, 1976; GOFFMAN, 1983; GEERTZ, 1993). Para repetir Foucault (1993, p. 8), se o poder reprime e exclui disciplinarmente, ele também produz: [...] o que faz com que o poder se mantenha e que seja aceito é simplesmente que ele não pesa só como uma força que diz não, mas que de fato ele permeia, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso. Deve-se considerá-lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir. O uso ritualizado de esteroides anabolizantes é parte integrante da existência daqueles que desejam se integrar ao grupo, embora os próprios frequentadores não assumam diante de indivíduos estranhos ao seu grupo e, por vezes, nem mesmo diante de alguns pares – espécie de segredo de polichinelo – esse uso ou consumo. Substâncias proibidas para o uso não medicinal, a construção de pessoa do fisiculturista não se faz sem esses itens, o que envolve sólido e crescente relacionamento com redes de compra e venda, não raro, ilegais, formando um sistema social suicidário que vive de flertar com a morte. Paradoxo da sedução do risco de morte sustentado pela alegria momentânea de viver a ilusão de ser gigante na eternidade de um instante. Ou, como escreveu Foucault (2013, p. 8-11, grifo meu), sobre A profissionalização efetiva do fisiculturismo é incipiente no país. Os atletas mais famosos são internacionalmente conhecidos como amadores e não recebiam, na época do estudo, prêmios em dinheiro – essa situação, porém vem mudando gradativamente, o campeonato norte-americano Mister Olympia pagou em sua última edição, 675 mil dolares ao vencedor –, porém podem receber patrocínio de redes de lojas de suplementos alimentares (o atleta citado recebe apoio de uma indústria de suplementos alimentares) e fazer propaganda dos produtos ligados ao fisiculturismo e a outros esportes. 12 35 CÉSAR SABINO as utopias que no fundo desejam mesmo apagar um corpo imperfeito que, por isso mesmo, as produz: É utopia um lugar fora de todos os lugares, mas um lugar onde eu teria um corpo sem corpo, um corpo que seria belo, límpido, transparente, luminoso, veloz, colossal na sua potência, infinito na sua duração, solto, invisível [sem defeitos], protegido, sempre transfigurado; [...] pode bem ser que a utopia primeira, a mais inextirpável no coração dos homens, consista precisamente na utopia de um corpo incorporal [...]; [utopia na qual] apagamos a triste topologia do corpo [...]. Enganara-me, [...], ao dizer que as utopias eram voltadas contra o corpo e destinadas a apagá-lo: elas nascem do próprio corpo e, em seguida, talvez, retornem contra ele. 36 CAPÍTULO I É a sociedade inteira que ensina a seus membros que, para eles, só existe oportunidade, no seio da ordem social, à custa de uma tentativa absurda de saírem dela. (Lévi-Strauss) 1 O SURGIMENTO DO BODYBUILDING: UMA BREVE HISTÓRIA O fisiculturismo, ou bodybuilding, originou-se na Europa – mais especificamente na Inglaterra Vitoriana13 do final do século XIX – e pode ser percebido como representação de um dos possíveis desdobramentos, por um lado, do processo civilizatório destacado por Elias (1990; 1993) em sua obra, e, por outro, do surgimento dos processos disciplinares e biopolíticos destacados por Foucault (1993; 1997). Seu surgimento coincidiu com o advento da fotografia e o fortalecimento da indústria cultural, a qual distribuiu gradativamente as imagens dos corpos musculosos (e as crescentes técnicas para transformá-los em tais) para uma audiência, cada vez mais, espalhada pelo mundo. Dizer que o surgimento do fisiculturismo significou um desdobramento do que Elias designou como processo civilizatório significa repetir, com o autor, que a esportificação das atividades de luta existentes na Idade Média – maneiras populares, e violentas, de resolver conflitos – assumiram, a partir de um determinado período, uma forma estilizada. É necessário destacar, ao menos brevemente, as mutações pelas quais passaram as práticas de atividades físicas para melhor compreensão da gênese dessas, no caso específico o bodybuilding, e seu lugar em alguns contextos sociais hodiernos, sem esquecer, contudo, que não é possível divorciar a análise do esporte e das práticas corporais do contexto social no Os termos vitoriano e eduardiano referem-se ao período no qual os monarcas ingleses Rainha Vitória (1837-1901) e Rei Eduardo VII (1901-1910) exerceram seus reinados. O termo vitoriano pode referir-se, além de outros aspectos, à arte e à arquitetura que grassou no último período do reinado da rainha Vitória permanecendo durante o breve reinado de Eduardo VII. O estilo foi fortemente influenciado pela austeridade e pelo interesse em torno do classicismo greco-romano que levou à promoção das grandes escavações arqueológicas na Grécia e na Itália. Apesar da inspiração classicista, o estilo vitoriano foi marcado pela busca de maior opulência e ornamentação se comparado ao prévio período “clássico” da era napoleônica (ELIAS, 1990). Nesse contexto, o fisiculturismo insurgente na Inglaterra mostrou-se como uma tentativa de retorno à estética atlética da estatuária grega. Atualmente, contudo, os corpos hipermusculosos também podem ser associados, em suas destacadas e detalhadas dobras e redobras, a uma espécie de neobarroco. 13 37 CÉSAR SABINO qual estão inseridos. Tais práticas apenas fazem sentido quando relacionadas aos sistemas simbólicos que representam e, também que as constituem com outras dimensões da sociedade. A princípio é preciso delimitar, como fizeram Elias e Dunning (1994), as singularidades entre jogo e esporte. O jogo apresentar-se-ia como universal, presente em todas as culturas, atuais ou não. Seria prática tradicional, existente em todas as sociedades ao longo do tempo e do espaço. Já o esporte é o produto de uma descontinuidade produzida no ocidente europeu, que – para usar um certo acento metodológico weberiano – racionalizou as práticas corporais, regrando-as, regulando-as, administrando-as, buscando delas extirpar a violência presente nessas atividades. O esporte é, portanto, moderno; produto da modernidade. Não se pode dizer, por isso mesmo, que sua existência tenha sido sustentada como prática universal. Ao menos em seu período inicial, ele seria a liberação controlada das emoções, tentativa de amenizar violentas disputas que, não raro, estariam presentes nos jogos guerreiros ou rituais das sociedades europeias tradicionais. A existência de regras escritas e uniformes codificando as práticas, a autonomização do jogo e, consequentemente, do espetáculo do jogo, além de severas punições contra atos violentos, seriam algumas das características constitutivas das práticas esportivas surgidas na modernidade (ELIAS; DUNNING, 1994; CHARTIER, 1994). Se existe uma disposição psicossocial relacionada às práticas de jogos presente em todas as sociedades e culturas ao longo do tempo e do espaço (HUIZINGA, 1988), a prática esportiva, embora relacionada diretamente aos jogos tradicionais, desses se destaca por sua singularidade. O esporte, produto da disciplinarização e racionalização, transformou o jogo em prática distinta, com configurações específicas, em outras palavras. Essa racionalização da competição e disciplinarização dos corpos proporcionou o surgimento campos esportivos com toda atual profissionalização que lhes é característica com seus locais (ginásios, academias, 38 DROGAS DE APOLO clubes e estádios), saberes e tempos específicos14. Ao calendário religioso e folclórico dos rituais coletivos, o esporte passou a opor, ou conjugar, um calendário próprio de competições nas quais as datas passaram a existir em consonância com os ritmos anuais de cada disciplina. A implantação e a arquitetura dos estádios, ligada também à criação de normas para gestão da intimidade dos indivíduos, relacionaram-se ao propósito insurgente de gestão populacional (FOUCAULT, 1987; COSTA, 1989) e à extração do máximo de lucro possível do espetáculo. O calendário esportivo, então, passa a depender das exigências da propaganda, do ritmo do trabalho e dos hábitos de lazer característicos do capitalismo em consolidação (ELIAS; DUNNING, 1994). Surgem regras fixas que visam a permitir a realização uniforme e potencialmente universal das práticas esportivas: A história de cada esporte é portanto, fundamentalmente, a história da constituição de um corpo de regulamentos cada vez mais detalhados e precisos, que impõem um código único às maneiras de jogar e de competir que eram, anteriormente, estritamente locais ou regionais. (CHARTIER, 1994, p. 16). A diferença entre o esporte e o jogo tradicional se manifesta, por um lado, por regras uniformes que suplantam progressivamente os usos locais e circunstanciais dos jogos tradicionais e, por outro, pela existência de especialistas que têm a função de constituir um direito específico para reger as práticas esportivas. Segundo Elias e Dunning, é a partir dessas regulamentações que dois aspectos fundamentais podem ser compreendidos: a redução do nível de violência tolerável nos enfrentamentos físicos e o desenvolvimento de uma ética da lealdade que não separa o desejo de vitória do respeito às regras e do prazer do jogo como objetivo final. Para os autores, esse longo processo de transformação social (sociogênese) demonstra a modificação das estruturas da personalidade (psicogênese), possibilitando O exemplo do futebol popular (folk football, soccer), praticado na Inglaterra antes do século XIX, é sugestivo desse processo de mutação jogo-esporte. A prática era realizada por intermédio do enfrentamento de duas identidades sociais previamente definidas como a residência em uma mesma comunidade citadina ou domínio senhorial, o exercício de uma mesma profissão, o pertencimento a um grupo de jovens – ou seja, solteiros possuindo mais ou menos a mesma idade – ou o grupo dos homens casados. O jogo reproduzia, portanto, as perspectivas que lhe eram anteriores e exteriores e que organizavam os rituais festivos. Os jogos inscreviam-se nos calendários das festas religiosas e folclóricas, contudo eram negociados conforme as partes em questão. Desprovidos de um tempo próprio, independente de outros eventos, eles se realizavam sempre aos domingos após as missas sem espaço específico, definitivo, para ser realizado. Qualquer espaço comunitário podia ser utilizado para o jogo que não apresentava regras uniformes, fixas e demarcadas. As convenções que permitiam o jogo eram rudimentares, locais e costumeiras: de uma região a outra, de um vilarejo a outro, de uma partida a outra, todos os elementos podiam tornar-se diferentes: o número de participantes, a duração do jogo, as regras aceitas, os objetos utilizados, os critérios que decidiam a vitória etc. (CHARTIER, 1994, p. 15). 14 39 CÉSAR SABINO o relaxamento dos controles emocionais apenas em determinadas circunstâncias, sem deixar totalmente livre os movimentos espontâneos e perigosos das pulsões e dos afetos, “descontrole controlado das emoções”, evitando ou diminuindo as manifestações violentas cotidianas. O esporte, portanto, teria uma característica civilizatória. De administração de afetos, disciplinarização dos costumes e modulação dos comportamentos violentos estilizando-os em competições regradas. Contudo é preciso ressaltar que a ideia de civilização presente no pensamento de Elias em nada se assemelha à concepção de progresso, de teleologia histórica, evolução ou superioridade europeia ou ocidental em relação às outras sociedades. Inclusive, esse processo pode ser revertido intensificando a indisciplina de afetos e o aumento da violência em todos os seus aspectos e manifestações – como foi o caso da Alemanha nazista. Com efeito, o autor assinala que “outras sociedades, localizadas em épocas distintas e continentes diversos também produziram rigorosos sistemas de autocontrole, contenção de instintos e modulação das emoções”; ou seja, seus próprios processos civilizatórios, como as sociedades ameríndias ou a japonesa, para citar apenas dois exemplos (ELIAS; DUNNING, 1994, p. 18; ELIAS, 1994a; 1996; DESCOLA, 1999; LÉVI-STRAUSS, 2012; 2012a; ALVES, 2018, p. 178-182.). O prazer da prática, ou do espetáculo esportivo, coloca em jogo corpos que disputam e pelejam, devendo realizar tal processo de maneira respeitosa para com a vida; mesmo as peripécias e demonstrações de lutas severas não devem passar de um simulacro das batalhas violentas. Essa excitação bem controlada – batalha controlada em um espaço projetado –, ligada às práticas esportivas, supõe duas condições: primeira, o aparecimento de práticas de lazer com características miméticas permitiu o relaxamento, a liberação do controle ordinariamente exercido sobre as emoções; controle diretamente equacionado ao mundo opressor do trabalho no capitalismo e da existência pública que instaura a separação entre a vida privada e essa. Nos espaços de disputas esportivas, seria permitido expressar e dar vazão às emoções que cotidianamente deveriam ser censuradas e administradas para que a manutenção da ordem social fosse possível. Dessa forma, o surgimento das tecnologias esportivas com todo seu saber que acaba por constituir a ciência do esporte pode ser visto, também, em uma ótica foucaultiana, como mais um dispositivo da insurgente sociedade disciplinar que se consolida a partir do século XVIII na Europa, ou ainda, como mais um processo de racionalização – entendido enquanto técnica e cálculo administrativo da vida – inerente às sociedades europeias, de acordo com Weber (FOUCAULT, 40 DROGAS DE APOLO 1997; 1993; 1988; WEBER, 1992;1997). Ao conceito de processo civilizatório de Elias, poderia ser somada a ideia de disciplinarização de Foucault e crescente racionalização do mundo da vida de Weber. A segunda condição sustenta que essa administração dos afetos violentos pela tecnologia esportiva só se faz viável por intermédio da interiorização dos sistemas simbólicos de constrangimento que se traduzem em mecanismos de autocontrole ligados ao surgimento de uma nova economia emocional. Os estádios e os ringues nos quais os dispositivos de autocontrole comandam, de maneira quase universal e regular, todos os comportamentos dos participantes e as liberações emocionais surgem como instâncias nas quais a sociedade pode efetuar certas atividades de expressão de disputas sem colocar em perigo um retorno da agressividade destrutiva e da violência gratuita. Do duelo sangrento às partidas esportivas, o processo de disciplinarização tem por objetivo a pacificação do espaço social, embora parcial e tendenciosa, assegurando o monopólio sobre o uso legítimo da força pelo Estado, transferindo, para o interior do indivíduo, os constrangimentos que deveriam evitar os confrontos sangrentos e abertos; dispositivo interiorizado de censura efetivado em práticas e comportamentos coletivos e individuais (habitus) que não têm mais por base a autoridade exterior dos constrangimentos punitivos15. O processo civilizatório surge, também, como um processo de esportização: mudança que transforma os passatempos e as atividades de enfrentamento tradicional, sem regras fixas nem restrições severas contra uma possível violência anômica, em práticas estilizadas e controladas por regras universais. Esse processo poderia ser definido como a tentativa de codificar normas com o objetivo de suspender o perigo contra os corpos e a vida produzindo relaxamento controlado das disposições emocionais com a exclusão definitiva da violência destrutiva do adversário. Uma prática esportiva que não condiz com tal definição estaria fugindo dos parâmetros Elias em 1939 publicou sua tese (Über den Prozess der Zivilisation. Sociogenetische und psycogenetische Untersuchungen) sobre o processo civilizatório destacando que as normas sociais definidoras dos comportamentos e das sensibilidades, mais precisamente nos altos círculos da sociedade, começaram a mudar radicalmente a partir do século XIII, consolidando-se do século XVI em diante, passando a ser mais estritas, mais diferenciadas e onipresentes, mas também mais iguais e mais moderadas, posto que elas eliminam o excesso de auto punição assim como a autocomplacência. Essa mudança é traduzida pelo termo de “civilidade”, lançado por Erasmo de Roterdã, que, em inúmeros países, simbolizará um novo refinamento que dará mais tarde nascimento ao verbo civilizar; essa mudança do código de sensibilidades e dos comportamentos está ligada ao processo de formação do Estado e de seu monopólio da violência, e, em particular, à sujeição das classes guerreiras a um controle mais estrito pela “curialização” dos nobres nos países da Europa continental. Esse processo, porém, não se deu da mesma forma e intensidade em todas as regiões europeias (1990, p. 27). 15 41 CÉSAR SABINO da estilização da violência e, possivelmente, representando um retrocesso no controle da violência anômica, ou como Elias diria, um processo de descivilização (ELIAS, 1990, p. 59.). O surgimento do sport (e do processo de esportificação) teve início na Inglaterra, durante o século XVIII, entre a aristocracia do campo e a gentry. Nessa época, o termo não estava limitado apenas aos esportes de participação, mas incluía os jogos competitivos que tinham o objetivo de conferir distração e prazer aos espectadores; o esforço físico principal era realizado mais pelos animais do que pelos competidores humanos. A criação dessas práticas coincide com a consolidação e fortalecimento do Estado moderno e a consequente tentativa de pacificação do espaço social caracterizada pelo monopólio da violência legítima por esse mesmo Estado. O esporte apresenta-se como parte de toda uma conformação social na qual a tentativa de organizar e reger o espaço público se consolida; ele torna-se possível primeiro na Inglaterra devido ao fato de a sociedade inglesa expressar tal esforço ordenatório. Sua configuração política, calcada no regime parlamentarista, apresenta já uma estilização das lutas sociais com tendência a amenizar o confronto violento16. No regime parlamentar, as lutas não violentas obedecem a regras estabelecidas representando efetivamente o nível de tolerância da tensão que caracteriza a cultura inglesa na época, seu habitus social (ELIAS, 1990; 1993). A similaridade dos jogos políticos do regime parlamentar com os jogos esportivos não é acidental. Segundo Elias, no início do século XVIII, A formação do sistema parlamentar na Inglaterra e sua capacidade de moderar as disputas pelo poder data da época do rei João Sem-Terra (1199-1216). Após ser derrotado em conflitos com a França e com o papado, João Sem-Terra foi obrigado, pela nobreza inglesa, a assinar um documento denominado Magna Carta que limitava sua autoridade. Ele não podia, por exemplo, aumentar os impostos sem a autorização dos nobres. A Magna Carta, considerada por muitos a primeira constituição, estabelecia que o rei só podia criar impostos depois de ouvir o Grande Conselho, corpo político então formado por condes barões e bispos. Essa disputa entre nobreza e realeza foi acirrada no reinado do filho de João Sem-Terra, Henrique III (1216-1272) que, além da oposição da nobreza, enfrentou forte oposição popular. Nesse período, o nobre Simon de Monfort liderou uma revolta da aristocracia e, para conseguir adesão popular, convocou um Grande Parlamento que reunia, além do clero e nobreza, representantes da burguesia insurgente. No reinado de Eduardo I (1272-1307), a existência do Parlamento foi oficializada e continuou a se fortalecer como instrumento mediador durante o reinado de seus sucessores. Em 1350, o Parlamento foi dividido em duas câmaras: a Câmara dos Lordes, formada pelo alto clero e nobreza, e a Câmara dos Comuns, formada pelos cavaleiros e burgueses. Dessa forma, desde cedo na Inglaterra o rei teve sua autoridade restringida pelo surgimento desse instrumento mediador denominado Parlamento. Para Elias (1990, p. 56), o surgimento da gentry, classe de proprietários de terra que não pertenciam à alta nobreza e que não eram representados pela Câmara dos Lordes, mas pela Câmara dos Comuns, teve consequências consideráveis para a repartição do poder político na Inglaterra a partir do século XVIII. Essa classe, ao disputar o poder com os outros extratos dominantes da época, proporcionará a articulação de estratégias políticas no Parlamento que permitirão a “pacificação das classes superiores inglesas” e, simultaneamente, a transformação dos antigos passatempos em passatempos do tipo esportivo (Idem). 16 42 DROGAS DE APOLO na Inglaterra se chamará sport as antigas assembleias de Estado – a Câmara dos Comuns, a Câmara dos Lordes, representantes das pequenas seções privilegiadas da sociedade – que constituíam o principal campo de batalha no qual se forma o Governo. A articulação do poder pelos partidos, por meio das regras do jogo político, imposta a partir do voto de assembleia, ou de uma eleição pública, representou as condições fundamentais para a constituição do regime parlamentar, tal como surge na Inglaterra do século XVIII. Essa organização não seria viável se as facções antagônicas não tivessem a mediação do instrumental político para amenizar suas hostilidades, e mesmo ódio, controlando – por meio da violência autorizada (simbólica) – seus enfrentamentos: [...] os dirigentes não abandonariam de bom grado aos seus rivais os imensos poderes que lhes conferiam as funções governamentais sem a condição assegurada de que eles mesmos –seus inimigos políticos – uma vez empossados, não se empenhariam em lhes perseguir, ameaçar, exilar, aprisionar, atacar ou matar (ELIAS, 1990, p. 36). Essa administração das práticas políticas permitiu legalmente a formação do campo político parlamentar definindo os elementos principais para a formação, a manutenção e o possível aprimoramento do jogo partidário, da mesma forma que o campo esportivo articulou regras administrativas para a produção dos espetáculos permitindo uma estilização dos enfrentamentos violentos. O esporte, a princípio, consolidar-se-á como atividade nobre ou melhor dos nobres. A alta sociedade, que dispunha de grande capital social e simbólico, empenhar-se-á em práticas, como a caça, a equitação, o tênis, o polo, mais tarde as corridas de automóvel. Além de afirmar o status social do desportista, as práticas do esporte consolidavam uma ética na qual as afirmações das disposições e dos valores de classe estavam presentes e se colocavam como exemplo a ser seguido pelas classes inferiores. O fair-play apresenta-se como o conceito que subsume a concepção de que as atividades esportivas devem ser gratuitas e desinteressadas, nas quais a maneira de ser, de aparecer e de fazer conta muito mais que a vitória. O gosto pelo risco, o culto à proeza e o desprendimento relacionado ao tempo, que deve sempre estar livre para treinos e práticas, representam uma condição aristocrática singular. Os meios (a exibição da prática) constituem os próprios fins. Ao contrário do esporte atual, reduzido a uma prática profissional e mercantil, e por isso mesmo plenamente dependente da vitória; o esporte dos séculos 43 CÉSAR SABINO XVIII e XIX dava prioridade ao savoir-vivre e ao savoir-faire, e não à busca da vitória a todo custo. Eram, como prática da nobreza, uma ritualização, estilização da existência (SAINT-MARTIN, 1989). Paralela a essa concepção, surgia outra relacionada às atividades administrativas dos Estados preocupados com a saúde de sua população e, por isso mesmo, buscando constituir uma pedagogia do corpo disseminada nas escolas por meio da Educação Física visando a gerir a vida, processo que Foucault denomina biopolítica. A prática de exercícios físicos relacionada a essa educação física terá por objetivo formar o caráter do indivíduo mais do que sua inteligência; educá-lo, mais que o instruir; incitá-lo a cultivar a coragem e a força e, sobretudo, a iniciativa mais que o saber. Enfim, formar um corpo forte com caráter obediente e dócil (FOUCAULT, 1987). É uma educação, de certa forma, relacionada às instituições militares do Estado Moderno. Nesse aspecto, há, portanto, dois tipos de ethos relacionados às práticas corporais: 1) aquele relativo à nobreza e sua ritualização da tradição; 2) aquele referente à burguesia e à manutenção de corpos institucionalizados e funcionais17. Para os nobres, o esporte não era apenas uma forma de inculcar nos jovens os valores aristocráticos que, a essa altura das práticas esportivas, estão inscritos, senão nas regras que regem explicitamente as mesmas, ao menos nos princípios codificados que definem a maneira de as praticar. O esporte permite acumular e articular o capital social que é transmitido por herança, reproduzindo a condição social no qual foi produzido. Enquanto a nobreza olha para a tradição e sua reprodução no presente18, a burguesia fita o futuro, preocupando-se com o fortalecimento do contingente humano de seus Estados. Assim, há uma relação entre as transformações de práticas e de consumo de esportes (invenção ou importação de esportes ou equipamentos novos) e as transformações da demanda social e dos estilos de vida (BOURDIEU, 1981). De acordo com Luz (1994; 2003a), essas atividades historicamente conhecidas como ginástica têm uma tradição milenar na cultura ocidental, tendo tido grande desenvolvimento na sociedade urbana durante as últimas décadas do século XIX e no século XX sob a tutela do Estado. Associada à prática do esporte, a ginástica moderna nasceu sob o signo do paradigma saúde/vitalidade, estreitamente ligada ao modelo higienista (posteriormente eugenista) do último terço do século XIX, recuperação moderna nacionalista da concepção latina do mens sana em corpore sano. 18 O “espírito” de tradição, por exemplo, é que engendrará a fundação dos clubes. Para os nobres do século XIX na Europa ocidental, a prática de esportes, como o golfe, a equitação, o polo etc., se constituirá como meio de trocas mundanas, bailes, jantares, festas, soirées, rallyes etc., conjunto de atividades “gratuitas” e “desinteressadas” que possibilitam a socialização escolhida, e, por meio dessa, o aumento do capital social. Nesse processo, serão criados os clubes organizados em torno de uma atividade esportiva. Assim, por exemplo, na França em 1834, é criado o Jockey Club com o título de Cercle de la Societé d’Encouragement pour l’amèlioration des races des cheveaux en France; em 1858 Le Yatch Club; Le Cercle des Patineurs em 1865 e assim por diante. Locais que tinham por objetivo, entre outros aspectos, constituir espaços reservados para associação de nobres e notáveis (SAINT-MARTIN, 1989). 17 44 DROGAS DE APOLO Também uma terceira corrente de práticas relacionadas ao corpo, além das destacadas anteriormente, deve ser demarcada: aquela ligada aos tradicionais exercícios circenses, provavelmente com existência anterior às práticas esportivas da nobreza e à ginástica promovida pelo Estado burguês. De fato, os espetáculos de força e destreza física faziam parte das apresentações dos saltimbancos nas feiras medievais. As apresentações se consolidaram institucionalmente nas chamadas práticas circenses – circos de lona. No século XIX, tais apresentações deram origem a outra vertente do espetáculo: os freak shows. Apresentações de extravagâncias nas quais a força de alguém, ou sua característica física fora do normal, ou, ainda, a sua incrível flexibilidade era demonstrada para um público específico. Como toda prática supõe um saber determinado, os exercícios no trapézio e as performances físicas foram constituídos pelo aperfeiçoamento repassado de geração para geração de artistas de circo. Os saberes e as práticas, distantes do processo de esportificação empreendido pelas classes dominantes, acabaram migrando para as práticas de ginástica que vieram a conformar o que veio a se tornar a Educação Física (tornada depois ensino superior) aplicada à busca de eficácia dos exércitos e depois à busca da otimização da saúde dos cidadãos empreendida pelo Estado Moderno (ARNAUD, 1991; ANDRIEU, 1992). A prática do fisiculturismo finca suas raízes nessas três correntes. Em primeiro lugar, se o esporte é a estilização dos combates, os torneios de fisiculturismo (e inevitavelmente a musculação) constituem-se como a estilização da estilização, “puras lutas de aparência” (COURTINE, 1995, p. 83), simulacro do simulacro, posto basearem-se apenas na apresentação estética, sem nenhum enfrentamento físico concreto. Em segundo lugar, seus precursores, no final do século XIX, exaltavam a funcionalidade da prática de exercícios com peso para o aperfeiçoamento da saúde populacional, dos exércitos e dos trabalhadores em um movimento disciplinar da população. Terceiro, os torneios e as apresentações de bodybuilding são produtos diretos dos freak shows já transformados em espetáculos para as massas no final do século XIX. Nesses circos de horrores, homens fortes, gigantes exóticos, apresentavam seu tamanho e força descomunais para uma plateia ávida por novidades consideradas bizarras19 (BOGDAN, 1994; O artigo de Bogdan (1994), além de apresentar a gênese social da categoria de “monstro” no século XIX – indivíduos com aparência e capacidades incomuns –, indica a organização de um comércio desses indivíduos e suas imagens relacionado à formação do campo do show business na Europa e nos EUA. De acordo com o autor, empresários construíram vários discursos – na maioria das vezes fictícios e repletos de hipérboles – sobre a origem e as capacidades dos “monstros”, não raro apelando para o imaginário pseudocientífico, radicado no evolucionismo social, que representava tais indivíduos como resquícios de trogloditas ou selvagens de terras inóspitas. 19 45 CÉSAR SABINO COURTINE, 1995). Assim, o campo do fisiculturismo originou-se de outro campo, o das artes e espetáculos circenses – esses, por sua vez, originaram-se dos saltimbancos medievais. O conceito de campo criado por Bourdieu pode ser entendido como um [...] sistema social (espaço) constituído por termos (pessoas) em relações de força e monopólios [...], lutas e estratégias, interesses e lucros. Estas características do campo podem ser consideradas como sendo invariantes revest[indo] formas específicas de conformações de campos diversos. Assim, o campo é um sistema de relações objetivas entre posições adquiridas (em lutas anteriores), é o lugar, o espaço de jogo de uma luta concorrencial. O que está em jogo nessa luta é o monopólio da autoridade [no campo determinado] definida de maneira inseparável, como capacidade técnica e poder social; ou [...] o monopólio da competência [...] compreendida enquanto capacidade de falar e de agir legitimamente (isto é de maneira autorizada e com autoridade), socialmente outorgada a um agente determinado. (BOURDIEU, 1976, p. 88-89). Associado a todos esses aspectos citados anteriormente, também é preciso destacar que, no período vitoriano, consolida-se uma nova forma de olhar os sexos. Durante praticamente dois mil anos, o Ocidente concebeu a mulher como um homem às avessas. Até o século XVIII, não era possível encontrar o modelo de sexualidade humana que temos hoje. Foucault (1990) mostra que a categoria sexualidade é uma invenção moderna. Um termo surgido no século XIX que carrega os sinais de todo um processo de transformação presente nas relações sociais das culturas europeias. A concepção hegemônica existente era a do monismo sexual; como disse, a mulher era considerada um homem invertido: o útero era o escroto feminino, os ovários eram os testículos, a vulva um prepúcio, e a vagina era um pênis. Nesse aspecto, o centro era o falo, sendo a anatomia masculina o modelo de perfeição, posto que o modelo do corpo do macho – como no mito bíblico da criação – seria a matriz do corpo feminino considerado produto inferior ou secundário. Concebida assim como homem invertido, a mulher era, de qualquer forma, tida como sujeito menos desenvolvido na escalada ontológica e teológica (LAQUEUR, 1989; GOMES DA SILVA, 2000). Com a passagem do século XVIII para o XIX, ocorre uma ruptura no modelo unitário de sexo, e surgem a dualidade e a descontinuidade em um novo regime de administração dos sexos conformado agora às diferenças morais, de comportamento e função relacionadas às necessidades da bur46 DROGAS DE APOLO guesia, que reiterou em outra esfera concepção de inferioridade feminina (BADINTER, 1986). Destarte, [...] com a chegada do século XIX o culto à masculinidade vai ser uma decorrência direta desta mudança da concepção biológica para a política, econômica e social [...] Primeiro veio a reprodução das desigualdades sociais e políticas entre homens e mulheres, justificada pela norma natural do sexo. Em seguida, o que era efeito tornou-se causa. A diferença dos sexos passou a fundar a diferença de gêneros masculino e feminino que, de fato, historicamente a antecedera. O sexo autonomizou-se e ganhou o estatuto de fato originário [...] Sob a ameaça de uma feminilidade inerente para alguns homens, decorrente do medo de se fazerem homossexuais, e diante da obrigatoriedade de por a prova o seu sexo forte, os homens tiveram que cultivar mais do que nunca a sua masculinidade e a sua virilidade, caracterizando também [uma] crise da identidade masculina (GOMES DA SILVA, 2000, p. 12). Trocando em miúdos, a partir da era vitoriana, esse modelo de masculinidade hegemônica torna-se referência necessária de comportamento, estética, honra e respeitabilidade masculina, enquanto tudo que se refere ao feminino torna-se sinônimo de delicadeza, fraqueza, sensibilidade e inferioridade. O homossexual, nessa nova narrativa, torna-se um ser patológico posto que, além, e por causa, de seu comportamento avesso, a agora concebida sexualidade natural e, por conseguinte normal, coloca-se como um invertido ou desviado. Os gestos brutos, a dureza nas relações sociais, o controle da sensibilidade e uma postura de imposição, dominação e força tornam-se, mais do que antes, sinônimo da verdade do homem, mas retrato viril do homem de verdade. É nesse momento que surge o fisiculturismo como técnica de cultivo desse homem e dessa masculinidade chancelada pelo contexto burguês. 1.1 HERÓIS FUNDADORES As publicações sobre a história da musculação e do fisiculturismo (ou culturismo como algumas apresentam) sofrem de uma tendência comum aos escritos realizados por indivíduos pouco afeitos ao trato com as ciências sociais: tendem a criar super-heróis descolados do contexto histórico-social, como se fossem verdadeiros prometeus, resolvidos a doar aos simples 47 CÉSAR SABINO mortais, por conta própria, o saber pertencente aos deuses. Esses trabalhos, eivados da ideologia individualista do self-made man, esquecem que cada vida, apesar de toda sua singularidade, deve ser vista como expressão da história social representativa de seu tempo, seu lugar, seu grupo, “síntese da tensão entre liberdade individual e o condicionamento dos contextos estruturais” (GOLDENBERG, 1997, p. 37; 1995; 2001). Cada indivíduo é o produto individualizado e ativo de uma determinada sociedade localizada no tempo e no espaço. É a reapropriação singular do universo social e histórico que o envolve (BOURDIEU, 2001; ELIAS, 1994; GEERTZ, 1991; 1993; GOLDENBERG, 1995; 1997; 2001; DENZIN, 1984; CERTEAU, 1982; MAUSS, 1974). Analisar, mesmo que brevemente, o processo de surgimento do campo do fisiculturismo é perceber as modulações entre o mito e a história, essa última pode ser utilizada como teoria-mito para justificar e reproduzir práticas sociais; isso se não for percebido o fato de que o indivíduo se faz por suas atividades e pelas condições que dispõe para realizá-las no contexto social em que existiu (ELIAS, 1994). Friedrich Wilhelm Müller, nascido na Prússia em 1867, é considerado, por todas as publicações sobre fisiculturismo e musculação, o pai do bodybuilding. Esse homem é tido, por aqueles que escrevem sobre o tema, como o primeiro fisiculturista famoso de que se tem notícia. Mais do que isso, a ele é creditada a base da organização das regras do fisiculturismo tal como é praticado hoje, tendo retirado do âmbito circense e dos freak shows a prática do espetáculo dos chamados “homens fortes”. Müller, que –para a época – era grande e musculoso desde os 16 anos devido aos exercícios realizados como artista de circo, adotou desde cedo o nome artístico de Eugen Sandow. Na década de 1880, o circo no qual trabalhava viajando pela Europa foi à falência em Bruxelas, deixando-o então desempregado e sem rumo específico. Nessa mesma cidade, Sandow conheceu um pequeno empresário de nome Oscard Attila (nascido Louis Dularcher em 1847). Como homem de negócios e atleta, Attila realizava apresentações profissionais de exibição de força também em arenas circenses e em espetáculos que ele mesmo promovia. Obcecado por exercícios físicos, havia, de forma inovadora, transformado uma sala de concertos musicais em uma espécie de academia de musculação da época. Percebendo que Sandow tinha um físico propício, já trabalhado pelos exercícios no picadeiro, para levantar pesos, resolveu treiná-lo com o objetivo de transformar seu corpo de ginasta das lonas em um corpo de levantador de pesos, dando-lhe também emprego de atendente 48 DROGAS DE APOLO em seu salão de cultura física em Bruxelas. Com o tempo, Sandow e Attila passaram a aprimorar os instrumentos de exercícios do salão, criando, entre outros itens, uma barra (barbells) com duas bolas ocas de metal nas extremidades que podiam ser preenchidas com areia ou esferas de chumbo com o objetivo de graduar o peso. Esse invento tornou-se o precursor das atuais barras longas com anilhas (pratos de ferro) descartáveis (CHAPMAN, 1994; EMERY, 2003). Após intermitente preparação no salão-academia, Sandow e Attila resolveram organizar uma espécie de empresa de espetáculos físicos e passaram a exibir-se em várias cidades europeias com números de força desafiando oponentes e vencendo-os. Talvez seja esse o marco inicial da indústria do músculo. Com isso, a situação financeira dos dois começou a melhorar. Em 1889, os dois parceiros de exibição de força se separam, mantendo, porém, contato frequente um com o outro. Em Veneza, Sandow foi convidado para posar para um artista plástico americano chamado Aubrey Hunt que o pintou em um lenço, hoje de posse do mais influente empresário do fisiculturismo Joe Weider. Porém, o que deve ser ressaltado nesse acontecimento é que Sandow, posando como modelo para o artista, percebeu que, além da apresentação da força física, a exibição estética de seus músculos – e não apenas as demonstrações de destreza e força bruta – também poderia interessar às pessoas, sendo, portanto, um possível meio de promoção econômica. Passou, então, a imaginar uma competição estética na qual a harmonia muscular, e não a força física, como era realizado até então, pudesse ser avaliada. Nesse ínterim, Sandow continuava sendo desafiado para disputas de força por aqueles que tentavam amealhar alguma fama e uns poucos proventos buscando vencê-lo. Fixou-se em Londres e acabou por aceitar um desafio de dois gigantes da época que ofereciam 500 libras esterlinas para aquele que conseguisse vencê-los em um embate. A força dos dois nunca havia sido superada por ninguém, até Sandow aparecer. Após ter vencido os concorrentes e aumentado ainda mais sua fama entre os ingleses, Sandow passou a apresentar-se em competições de força, além de exibir-se em poses estéticas para o público. Durante quatro anos, ganhou a vida e a crescente fama dessa maneira. Em 1893, Sandow viajou para os Estados Unidos para tentar ampliar sua carreira de atleta e artista, mas fracassou no empreendimento. Retornou para a Alemanha e conheceu um dos mais importantes empresários de espetáculos da época Florenz Ziegfeld. Ao perceber o sucesso das apresentações de Sandow entre o público feminino, Ziegfeld resolveu 49 CÉSAR SABINO investir em tais apresentações, promovendo turnês mundiais nas quais seu astro era exibido apenas com uma sunga ou folha de parreira fazendo poses que destacavam seus músculos. A confirmação do sucesso entre as mulheres se realizou quando o empresário resolveu levar Sandow para apresentações nos Estados Unidos por ocasião da Exposição Mundial Comemorativa do Descobrimento da América, realizada em Chicago. Ziegfeld alugou um teatro e convidou o público para assistir “The World’s Most Perfectly Developed Man”, “A Living Greek Statue”. Na época, as apresentações habituais de homens fortes nos EUA eram realizadas com homens vestidos em peles de leopardo. Ziegfeld e Sandow empreenderam outro tipo de demonstração física: Sandow invadiu o palco vestido apenas com uma sunga. O público feminino manifestou-se ruidosamente parecendo ir à loucura (CHAPMAN, 1994; EMERY, 2003; GIANOLLA, 2003)20. O êxito da apresentação foi grande, o que fez com que Sandow e Ziegfeld empreendessem uma turnê não só pelos EUA, mas também no Canadá. Em São Francisco, Sandow chegou a apresentar-se lutando contra um leão – que estaria desdentado e dopado. Após anos percorrendo os principais países do hemisfério norte ocidental, Sandow sofreu um colapso nervoso; retornou à Inglaterra, onde se casou com Blanche Brookes, e recuperou-se física e mentalmente. A partir de então, dedicou-se à expansão das atividades de fisiculturismo, inaugurando academias, elaborando métodos de exercícios, estudando nutrição e publicando dietas, livros e revistas sobre o assunto. Em 1898 publicou a primeira revista de bodybuilding – termo inventado por ele. O termo bodybuilding advém do título de um livro de Sandow: Bodybuilding, or Man in the Making, publicado em Londres em 1898 (cf. EMERY, 2003). A revista chamava-se: Sandow Magazine. A fama de Sandow tornou-se tamanha que ele foi convidado para administrar atividades físicas com pesos para os reis Eduardo VII e George V, da Inglaterra, tornando- se o primeiro personal trainer da modernidade e recebendo de George V o título de “Professor da Ciência da Cultura Física de Sua Magestade”. Passou, então, a entusiasta Necessário se faz notar que essas apresentações parecem representar um relaxamento das interdições puritanas que censuravam a exposição da nudez corporal permitindo acesso à cultura de massa do espetáculo estético. Essa ambiguidade era respaldada pelo discurso da busca de realização do ideal da estatuária grega. Discurso que servia como álibi estético para a apresentação dos corpos nus contornando as resistências puritanas. Contudo as mesmas resistências não cederam de imediato aos apelos da nudez. Mac Fadden, por exemplo, enfrentou inúmeros obstáculos e brigas com as ligas americanas de virtude e em particular com Anthony Comstock, secretário da Sociedade para a Supressão do Vício, quando quis organizar em 1904, no Maddison Square Garden, um campeonato de fisiculturismo (COURTINE, 1995). 20 50 DROGAS DE APOLO do insurgente ensino de Educação Física obrigatória nas escolas, colégios e indústrias da Inglaterra (GIANOLLA, 2003). Nesse processo, Sandow começou a estudar e aperfeiçoar métodos de musculação e criou o primeiro campeonato de fisiculturismo de que se tem notícia. Em 14 de setembro de 1901, realizou o que foi chamado “The Great Competition”, em Londres, no Royal Albert Hall, reunindo 156 atletas que apresentaram seus músculos para um júri composto pelo próprio Sandow, por um escultor de renome na Inglaterra da época, Charles Lawes, e por Arthur Conan Doyle, o famoso criador de Sherlock Holmes. O vencedor da competição foi Willian Murray, que posteriormente se tornou ator e músico, além de promotor de campeonatos de musculação na Inglaterra. Os prêmios para os três primeiros lugares foram estatuetas de ouro, prata e bronze, idealizadas pelo escultor Frederick Pomeroy em 1891, representando a figura do próprio Sandow segurando a barra com pesos nas extremidades por ele inventada. Essa estatueta – a de ouro conquistada por Murray – nunca foi encontrada, e suspeita-se que tenha sido derretida ou destruída durante a II Grande Guerra. Sandow mandou fazer várias cópias das estátuas para ofertar aos amigos ou vender para admiradores, além de expô-las em suas academias. A cópia dessa estatueta de Sandow serve hoje como troféu de um dos maiores campeonatos de fisiculturismo da atualidade: o Mr. Olympia. Segundo a versão oficial, Sandow faleceu em outubro de 1925, aos 58 anos, de uma hemorragia cerebral devido a um acidente de carro. Após derrapar com o veículo na estrada – confiando em sua enorme força – foi retirá-lo com as próprias mãos do buraco no qual havia caído. O esforço foi fatal para o primeiro organizador dos campeonatos de cultura física que, naquele momento, passava por sérios problemas pessoais ocasionados por desentendimentos conjugais. Curioso destacar que, apesar de toda a sua fama, Sandow foi enterrado como indigente no cemitério londrino de Putney Valle. Além da importância simbólica de seu corpo musculoso, Sandow também causou impacto no mundo dos empreendimentos empresariais da cultura física, inovando nesse ramo dos negócios. Seus interesses comerciais incluíram a publicação de numerosos livros de fisiculturismo, oito volumes de uma revista de bodybuilding (Sandow’s Magazine of Physical Culture), inúmeros cursos por correspondência e a fabricação de máquinas e aparelhos para musculação. O trabalho de Chapman (1994) – considerado até o momento a melhor biografia sobre o pai do fisiculturismo – apresenta a tese de que Sandow foi 51 CÉSAR SABINO enterrado em um túmulo anônimo, devido ao fato de sua mulher, Blanche Brookes, e suas duas filhas, Helen e Lorraine, terem o objetivo de apagar as lembranças deixadas pelo marido e pai. Para confirmar essa tese, Chapman escreve que, logo após a morte do pai do fisiculturismo, elas venderam todos os bens da família, mudando-se rapidamente de Londres. De acordo com o autor, não enfrentavam, à época, qualquer dificuldade financeira, ou outro tipo de pressão, que as obrigasse a vender suas propriedades. Além de se desfazerem dos bens deixados por Sandow, destruíram quase todos os documentos (correspondências e papéis em geral) pessoais do atleta, (o que causa certa dificuldade para os historiadores e pesquisadores atuais interessados em compreender melhor sua vida), isso porque o ódio que elas alimentavam por ele as acompanhou até o fim de suas vidas (CHAPMAN, 1994, p. 188). Esse ódio, segundo o autor, poderia estar ligado a dois fatores: primeiro, antes de morrer, Sandow apresentava um problema de saúde, atestado pelo seu empresário Florenz Ziegfeld, que indicava um quadro agudo de sífilis adquirida por uma vida de inúmeras parcerias sexuais; é possível ter infectado a esposa. Talvez a doença tenha sido o fator decisivo para sua morte causada pelo aneurisma. Segundo, a despeito de seu casamento e de suas duas filhas, Chapman escreve que Sandow provavelmente era bissexual, o que para época era escandaloso: certas coisas são inegáveis. A verdade é que Sandow era definitivamente um mulherengo. Porém, é verdade também que seu gosto direcionou-se para o outro lado (CHAPMAN, 1994, p. 51). Essa afirmação do autor advém do fato de que Sandow viveu, até casar-se, com o pianista Martinis Sieviking, que era seu parceiro em números nos palcos e que rompeu a relação quando soube que Sandow se casaria com Blanche Brooks. Chapman destaca ainda a insinuação de uma conhecida de Sandow – que por ele nutria interesse amoroso – a qual teria dito: “eu deveria ter entendido quando o Sr. Sandow recusou beber da minha fina champagne... ele deve ter tido momentos aborrecedores comigo antes de eu mandá-lo de volta para o jovem com o qual ele vivia” (CHAPMAN, 1994, p. 25). Verdade ou não, a hipótese ao menos ajuda a compreender o suposto ódio que a família nutria por Sandow e que repercutiu no fato de ele ter sido enterrado como indigente, embora tenha sido, à época, um dos mais famosos atletas na Inglaterra e Estados Unidos. Sandow, além de levar uma vida promíscua, não devia ser um marido e pai presente, sempre viajando e se envolvendo em casos amorosos diversos. Outros dois grandes nomes do fisiculturismo insurgente foram Bernarr Mac Fadden e Angelo Siciliano, mais conhecido como Charles Atlas. 52 DROGAS DE APOLO Mac Fadden inventou um instrumento de exercício para os músculos do peito e publicou, no mesmo ano que Sandow – 1898, uma espécie de revista, manual, para práticas de exercícios com o objetivo de divulgar sua invenção e seu método de treinamento. Como a Inglaterra era o centro das atividades físicas da época, Mac Fadden, que era norte-americano, para lá viajou com o objetivo de popularizar o invento e a revista (Physical Development) que havia criado. Retornou aos EUA com o objetivo de empreender a expansão das suas atividades, o que o levou a promover o primeiro campeonato de fisiculturismo dos Estados Unidos no Madison Square Garden em Nova York, no ano de 1903. As poses que os fisiculturistas realizam atualmente em suas competições foram desenvolvidas ao longo dos campeonatos promovidos por Mac Fadden que se tornou o grande promotor de eventos de fisiculturismo nos Estados Unidos (COURTINE, 1995). Em 1921, um jovem imigrante italiano foi o vencedor do primeiro lugar na competição que Mac Fadden promovia, ganhando o prêmio de U$ 1000. Esse jovem era Charles Atlas que, a partir de então, passou a ostentar, até a década de 1950, o título de “O Físico mais bem Desenvolvido da América”. O que deve ser destacado nesse processo empreendido por Mac Fadden é o sentido que as competições de fisiculturismo foram adquirindo a partir dessa época. Quando Eugene Sandow iniciou a promoção de suas atividades pela Europa e Estados Unidos, não buscava necessariamente a separação de força e estética. De fato, suas apresentações eram um misto de halterofilismo – pois levantava grande quantidade de pesos, demonstrando força – com fisiculturismo – exibição, em trajes sumários, de sua forma corporal para o público. Sandow seguia a tradição de apresentação dos saltimbancos conhecida desde a Idade Média e dos freak shows circenses do homem monstruosamente forte. Assim, por exemplo, Arthur Saxon, artista circense, no final do século XIX, era conhecido por conseguir levantar um peso de 203 kg acima da cabeça apenas com um braço (ARQUIVOS WEIDER apud SCHWARZENNEGER; DOBBINS, p. 8). Também a publicação bimensal parisiense La Culture Physique, exemplo de promoção de atividades físicas nesse período, em seu número 216 de primeiro de janeiro de 1914, escrevia sobre os “Acrobatas e os Jogos de Circo” na página 6: Les Rasso [grupo circense] foram célebres atletas até 1890. O primeiro representante deste grupo tinha uma extraordinária força naquela época: Henri Herzog podia levantar 100kg com uma mão e lançar 110 kg com as duas. 53 CÉSAR SABINO Também na página 25: Jean Lebedew, mais conhecido pelo pseudônimo de Tio Jean, é um professor de pesos e halteres que treinou um grande número de lutadores e homens fortes de todos os tipos. Lebedew nasceu em 1879 em S. Petersburgo. De pequena altura (1m 65) ele possui as formidáveis medidas que se anunciam a seguir: braço direito: 49 [cm], esquerdo 47, ante-braço 35 ½, peito 128, coxa 75, panturrilha 49. Nos pesos ele realizou, é atestado, valorosas apresentações à moda alemã: levantou 135 kg cinco vezes sem largar a barra. Mac Fadden, em suas publicações, começa já a apresentar uma mudança nesse aspecto. Fanático pelo conceito de saúde associado à aparência e à moral do indivíduo, ele passa a promover a ideia de que a fraqueza física era imoral e, visto que os métodos de cultura física estavam começando a tornar-se disponíveis para todas as pessoas, segundo ele, apenas não era forte e saudável aqueles que escolhiam o fracasso representado pelo desprezo aos exercícios. Fortalecia-se, assim, uma espécie de ética associada à cultura física. Suas apresentações – assim como a de todos aqueles que passaram a seguir tal prática – eram, acima de tudo, estéticas. O uso da força passou a restringir-se às apresentações de halterofilismo, enquanto o bodybuilding construiu-se gradativamente tendo por objetivo apenas as apresentações da forma muscular. Mac Fadden marca, dessa maneira, não apenas uma nova configuração de práticas de exercícios e valorização da forma musculosa, mas também o surgimento e a consolidação do campo do fisiculturismo, para usar uma categoria de Bourdieu. Um dos principais itens que contribuiu para a consolidação desse campo foi o caráter puritano anglo-saxão que muito cedo associou obstinação, ascetismo e trabalho, com aparência física e moral. As tradicionais preocupações religiosas, segundo Courtine, permearam as estratégias de desenvolvimento da forma física tentando apagar qualquer cesura entre trabalho e lazer. A antiga repreensão puritana às distrações e ao tempo ocioso encontram, na prática diária do exercício físico, a possibilidade de enquadrar o tempo individual em um modelo de atividade contínua: o exercício físico passa a ser um lazer às margens do tempo de trabalho e um trabalho instalado no coração do tempo de lazer. Ninguém ficaria mais sem fazer nada. Lutar contra o tempo morto, a vacuidade, a desocupação: esses prolongamentos da ética puritana da ‘tarefa’ marcaram profundamente o desen54 DROGAS DE APOLO volvimento de uma civilização [...] do lazer, tendendo a nela confundir o dever e o prazer, o útil e o agradável. A herança desse conjunto de práticas e desses modelo psicológico pesa ainda, com todo o peso do seus paradoxos, sobre a cultura do corpo. (COURTINE, 1995, p. 94). Trabalhar o corpo, construi-lo, moldá-lo, transformá-lo continuamente em busca de um ideal, eis a lógica da ética protestante do trabalho deslocada para o mundo do esporte e das atividades físicas. A salvação inscrevendo-se na aparência de saúde muscular conquistada pelo self-made-man, ícone do esforço ascensional burguês 21. Um dos exemplos de aplicação dessa ética do trabalho muscular foi o italiano imigrado para os Estados Unidos chamado Angelo Siciliano (Charles Atlas). Dizia ter criado um método de musculação devido a um fato ocorrido com ele, quando adolescente, em Coney Island Beach. Atlas passeava pela praia com seus exíguos 44 kg, quando um indivíduo bem maior resolveu caçoar da sua forma esquálida gritando: “Ei, magrelo, suas costelas estão aparecendo!”. Tal provocação gerou uma discussão que acabou com Atlas levando um punhado de areia na cara. O pequeno ítalo-americano então empenhou-se em desenvolver musculatura para não apenas encarar os mais ousados oponentes, mas também amedrontar aqueles que possivelmente pudessem tornar-se seus adversários. Criou o “método de tensão dinâmica”, que o permitiu mais que dobrar de tamanho em musculatura. De fato, segundo contam os biógrafos e os relatos do próprio Atlas em suas propagandas, tempos depois ele voltou à praia e deu uma surra no grandalhão que tinha atirado areia em seus olhos. Após ter vencido a competição promovida por Mac Fadden em 1921, Atlas passou a propagandear seu método e a se apresentar como “o homem mais bem desenvolvido do mundo”, ganhando fama internacional e publicando revistas em vários idiomas, nas quais apresentava a si mesmo e outros homens musculosos que diziam ter conquistado tal forma utilizando seu O aspecto ascético do trabalho muscular organizado para atingir um fim específico se contrapõe à ética da prática esportiva enquanto mera diversão. Essa apologia ao trabalho lembra aquele trecho de A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo: a aversão do puritanismo pelo esporte [como diversão] não era devido a uma questão de princípio. O esporte deveria ter como função fundamental servir a uma finalidade racional, a um objetivo específico e não ao desperdício de tempo. Com efeito, ele torna-se veículo ao estabelecimento necessário da eficiência do corpo. Mas suspeito se visto enquanto meio de expressão espontânea de impulsos indisciplinados, e servisse apenas como diversão ou para despertar o orgulho, os instintos, ou o prazer irracional do jogo. Assim posto era estritamente condenado. (WEBER, 1981, p. 120). Isso mudará com o surgimento da sociedade de consumo, a qual dependerá do hedonismo para seu funcionamento, conjugando o racionalismo destacado por Weber a uma ética romântica do consumo conspícuo como elemento identitário, mesmo que evanescente (CAMPBELL, 2001; CASTRO, 2003). 21 55 CÉSAR SABINO “método de tensão dinâmica”. Além de apresentar tais fotos de “homens desenvolvidos”, contava sua história da praia. Uma das singularidades de Charles Atlas é que se dizia contra os exercícios realizados com pesos, contra a musculação tradicional que, segundo ele, dava ao indivíduo um aspecto artificial. Seu método de exercícios baseava-se na utilização do próprio peso corporal – isometria – para o desenvolvimento muscular. Em uma de suas revistas de 1947, Saúde e Força Duráveis, Atlas anuncia na página 28 (grifos do autor): Tenha cuidado com o desenvolvimento produzido por meio de aparatos! Porque usar pesos com o fim de adquirir desenvolvimento muscular , é o mesmo que usar muletas para ajudar a caminhar, pois quando se usa muletas muito tempo, chega logo o momento que não se pode andar sem elas... o tigre, o leopardo e o leão, com suas fulminantes forças e energias, não as ganharam, por certo, por meio de pesos... só USAM O SEGREDO QUE EU DESCOBRI – o princípio da TENSÃO DINÂMICA – ou seja, um meio natural para desenvolver e manter devidamente todos os músculos de seu corpo... o esforço contínuo que se requer para manejar os vários aparelhos de um ginásio chega a ser tão excessivo quanto daninho para os órgãos vitais. Você não tem mais do que um corpo, que é sua mais preciosa possessão. Trate-o, pois, como se deve tratar! Meu sistema não faz uso de aparatos. Só utiliza a resistência do próprio corpo. O segredo deste sistema se baseia no fato de que, quanto mais forte você se torna, maior será sua resistência. Mas, os aparatos debilitam depois de algum tempo de uso e, no geral, podem romper-se e produzir feridas distenções no exercitante. Que os meus métodos de tensão dinâmica me hão dado melhor desenvolvimento físico que aqueles que se pode obter com todas as classes de aparatos se PROVOU quando me foi concedido o meu título, em competição leal, com os melhores que usaram aparatos. Atlas procurava demarcar sua autoridade no campo insurgente das práticas institucionalizadas de exercícios físicos da época; embora seu método sem pesos e aparelhos não tenha feito sucesso, seu discurso rendeu-lhe influência durante tempo significativo devido a sua projeção na mídia. A postura que mantinha é o exemplo de atitude do agente em disputa pelo poder em um campo profissional específico: demarcar sua singularidade diante da tradição consagrada, no caso os bodybuilders de então. Por intermédio da figura e da postura de Atlas, a história do fisiculturismo sugere 56 DROGAS DE APOLO que ela mesma se constitui enquanto luta entre os concorrentes no interior do campo (BOURDIEU, 1977; 2001a). Luta para conquistar e impor seu ponto de vista sobre a prática e a conduta a ser adotada no meio; luta por um lugar na tradição e na história do sistema de práticas e representações que caracterizam o grupo; luta pela dominação, autoridade e reconhecimento. Esse período da história do surgimento das práticas de musculação pode ser considerado exemplar no sentido de preconizar as intermináveis e crescentes disputas, tanto no campo das ciências do exercício dentro das universidades, por intermédio das faculdades de educação física – pela disputa dos cientistas do esporte em descobrir e inventar práticas mais eficientes –, quanto no campo das academias de musculação e fisiculturismo nas quais, a cada ano, professores e fisiculturistas tentam impor novos métodos de exercícios supostamente mais eficazes que os anteriores, ocasionando modas de verão. Por outro lado, esboçam o que Foucault definiu como a articulação do saber-poder, produto de sociedades disciplinares que, ao intervir no corpo individual, acaba por produzir uma tecnologia de agenciamento populacional em nome da saúde (1993). O criador da “tensão dinâmica” mostrou-se também, empreendedor eficaz, consolidando, durante quase 50 anos, o comércio do seu método de exercícios físicos por correspondência, propagandeado em revistas em quadrinhos e outras publicações, além de viajar pelo mundo apresentando-se em espetáculos estéticos e de demonstração de força. Na época, a indústria do exercício e da forma consolidava-se com o aparecimento de diversos métodos e cursos que prometiam a qualquer um a rápida construção de um corpo musculoso. Charles Atlas parece ter contado com a nascente indústria da propaganda e com o seu talento e capacidade para conquistar e fazer perdurar relações pessoais influentes. Além de encarnar, de certa forma, o sonho americano por ser um imigrante que na América consegue tornar-se, mediante seu esforço e mérito, rico e famoso. Talvez essas características ajudem a explicar seu longo sucesso. Um dos fatores da grande popularidade de seu método era o fato de não necessitar de frequência a qualquer organização ou compra e utilização de pesos. Contudo, apesar de ter vencido o concurso de Mac Fadden e ter um corpo relativamente forte para a média dos homens comuns da época, Atlas era um mestre da autopropaganda, pois não era, nem de longe, um gigante musculoso, e a ausência de exercícios com pesos do seu método certamente limitava o crescimento muscular. Schwarzenegger e Dobbins escrevem, em seu livro, que Atlas, apesar de 57 CÉSAR SABINO se dizer contra o uso de aparelhos de musculação e pesos, utilizava-os de forma velada (2001, p. 11). Destarte, homens bem maiores e mais musculosos que Charles Atlas, como George Jowett, por exemplo, dono do Jowett Institute of Phisical Culture de Nova York, localizado, na época – década de 40 do século XX – na 5a Avenida n. o, 23022, não conseguiram alcançar a fama e o sucesso do ítalo-americano, sendo até mesmo esquecidos nas citações sobre o tema. Após a Segunda Grande Guerra, os EUA se consolidaram como o centro do fisiculturismo no mundo. Durante os verões da década de 1940, uma praia da Califórnia, Santa Monica, começou a ser cada vez mais frequentada por fisiculturistas que, durante o verão, aglomeravam-se diante da multidão de banhistas para praticar seus exercícios com os pesos livres colocados à vista do público. Essa espécie de exibicionismo muscular ficou tão famosa que recebeu o nome de Muscle Beach. Um dos frequentadores dessa praia, aficionado por pesos e músculos, Joseph Gold, resolveu abrir uma academia de musculação na região (Venice Beach) denominada Gold’s Gym. Essa acabou tornando-se uma espécie de meca dos fisiculturistas e modelo para as outras academias que vieram a se espalhar pelo mundo. O vencedor do concurso Mr. America em 1940 e 1941, John Karl Grimek, era assíduo frequentador dessa região. Grimek foi um propagandista do treinamento com pesos em academias tentando sempre demonstrar – ao contrário do que muitos diziam (como Charles Atlas, por exemplo) – que o treinamento com peso não oferecia qualquer tipo de problemas se fosse realizado adequadamente. Na época, os detratores da musculação diziam que os treinamentos com pesos prejudicavam a coordenação motora e a flexibilidade. Grimek tentou aprimorar poses que exigiam elevado grau de flexibilidade e coordenação. A partir desse período (década de 1940 em diante), devido ao intenso treinamento com pesos em academias, o físico daqueles que praticavam o bodybuilding começou a se distinguir efetivamente da forma de outros esportistas e desportistas. A partir de John Grimek, a musculatura dos fisiculturistas tomou, cada vez mais, identidade própria, devido à baixa porcentagem de adiposidade e grande volume, ocasionado pelo aprimoramento de exercícios e dietas. Paralelo a todo esse processo, ocorria um forte desenvolvimento da indústria da forma e do espetáculo nos EUA. O cultivo da forma física tornava-se, cada vez mais, expressivo alimentado pela crescente propaganda da saúde. Se, durante o século XIX, ter força e físico musculoso estava - Conforme propaganda veiculada na revista How to Achive Nerves Like Steel Muscles Like Iron do próprio Jowett, publicada em Nova York em 1950. 22 58 DROGAS DE APOLO relacionado ao acaso e à genética – o indivíduo já nascia diferente dos outros, por isso apresentava-se como exótico (BOGDAN, 1994) –, a partir do início do século XX, cresce a concepção de que qualquer um, de posse de métodos desenvolvidos por experts, poderia transformar seu corpo para melhor. De fato, nas propagandas da época, percebe-se que a ideia é a de que só não transforma seu corpo quem não quer. Em conformidade com esse movimento, a AAU (American Athlete Union) havia fundado, em 1939, o campeonato Mr. America com suas regras definidoras das competições de bodybuilding. Porém, foi um empresário canadense, Ben Weider, que em 1946 consolidou as estruturas das competições de fisiculturismo atual, fundando a IFBB (International Federation of Body Builders). O irmão de Ben Weider, Joe Weider, também envolvido com o culto à forma física, chegou a vencer algumas competições de fisiculturismo durante a década de 1950 e passou a publicar revistas com entrevistas e fotos de fisiculturistas, dicas de treinamento com pesos e alimentação. Joe Weider, seguindo a tradição dos atletas empresários, também criou o método Weider de treinamento e boa forma, o qual, além de exercícios físicos, promovia o que denominou sua filosofia de vida. Um conjunto de princípios que lembram os principais mandamentos do Velho Testamento. Princípios escritos nos do grupo Weider. Dentre todos aqueles que investiram no mercado da musculação e fisiculturismo, nenhum conseguiu superar o êxito dos irmãos canadenses Ben e Joe Weider criadores de um império da forma física. Publicações (os principais periódicos sobre fisiculturismo do mundo atual são de propriedade de Joe e Ben Weider), fábricas de pesquisa e produção de suplementos alimentares, além de fábricas de pesos e máquinas para academias no mundo todo. Joe Weider também foi o criador, de fato, da profissão de bodybuilder, sendo, por isso, considerado o pai dos bodybuilders. Ainda em 1965, empreendeu o primeiro campeonato profissional, até hoje considerado por muitos o principal campeonato de bodybuilding do mundo, o Mr. Olympia, que desbancou, à época, as competições das organizações rivais, incluindo o Mr. Universe sustentado pela Nabba (National Amateurs Body Building Association), dominando, a partir de então, o cenário do fisiculturismo americano e internacional. As empresas Weider ainda hoje dominam grande parte do cenário mundial dos negócios de bodybuilding. A IFBB tem atualmente mais de 100 países membros filiados e é a sexta maior federação esportiva do mundo; e o Mr. Olympia continua o principal campeonato de fisiculturismo da atualidade (EMERY, 2003; SCHWARZENEGGER; DOBBINS, 2001). 59 CÉSAR SABINO Joe Weider também participou do lançamento da carreira de um jovem austríaco que se tornaria o principal expoente do fisiculturismo de todos os tempos, despontando ainda em jovem nos campeonatos do Mr. Olympia. Vencedor de sete títulos até 1980, ele era um imigrante de nome Arnold Schwarzenegger, nascido em 30 de julho de 1947, na área rural da Áustria. Schwarzenegger veio a tornar-se o maior mito do bodybuilding de todos os tempos, sendo atualmente adorado como um semideus em academias de musculação do mundo inteiro que não raro estampam suas fotos nas paredes. Dono de personalidade carismática e capaz de manter contatos pessoais com os indivíduos mais importantes e influentes do mundo artístico e político, Arnold Schwarzenegger consolidou de vez a popularidade do fisiculturismo ao levar o mundo e o corpo das academias para as telas de Hollywood. Além de toda apologia ao trabalho muscular, Schwarzenegger também tornou-se empresário de sucesso do fisiculturismo, criando em 1989 o campeonato anual denominado Arnold Classics que em 2002 pagou U$ 300.000,00 aos vencedores masculinos e femininos de suas competições. A figura de ícone-mor do fisiculturismo encarnada por Schwarzenegger não se deve apenas às suas atitudes e tamanho físico. Toda a conjuntura sócio-histórica dos anos 80 do século XX, com a política individualista neoliberal, confluiu para a consolidação do mito. A adoração do físico musculoso e sua relação com a representação de saúde se deve, dentre outros fatores, de acordo com Gontijo (2002), ao surgimento devastador da epidemia de Aids e da aparência esquálida que os doentes de então apresentavam; por isso, de acordo com o autor, o público gay rapidamente adotou a estética e o ideal musculoso dos bodybuilders como veículo de aceitação social. Esse processo (com a expansão da doença) ampliou-se para outros grupos, propiciando, a partir de então, com toda sua prescrição de exercícios físicos para a “manutenção da saúde” e a “qualidade de vida”, a crescente expansão do bodybuilding. A esse fator também pode ser somado o surgimento da era Reagan, que consolidou o poder dos Estados Unidos como império mundial da demonstração de força e da conquista bélica como amostra desse poder e a consolidação hollywoodiana da figura de heróis conservadores (Rambo, Conan o Bárbaro e, principalmente, o Exterminador do Futuro), além do surgimento da era yuppie, com jovens dedicados ao trabalho, lucro e cultivo da aparência musculosa e supostamente saudável e livre de vícios. Schwarzenegger, nesse âmbito, passou a encarnar a realização do sonho americano. Assim como Charles Atlas, foi um imigrante que chegou praticamente sem nenhum dinheiro à América e tornou-se não apenas 60 DROGAS DE APOLO milionário, mas famoso astro de Hollywood. Entrou para um dos clãs mais influentes da política norte-americana, casando-se com a sobrinha (a jornalista Maria Shriver) do ex-presidente John Fitzgerald Kennedy. Após uma vida de sucessos no esporte, no cinema e nos negócios, entrou para a política e conseguiu eleger-se duas vezes seguidas pelo Partido Republicano, em 8 de outubro de 2003, depois em 5 de janeiro de 2007, governador do estado da Califórnia, com 55% de votos contra 45% do seu adversário Gray Davis, do Partido Democrata. Arnie, como é chamado pelos estadunidenses, sustenta uma postura política conservadora, aliado, à época, às políticas de George Bush filho do qual também foi presidente do Conselho de Saúde Física e Desportos de 1990-1993. Ao ser eleito, disse aos jornalistas do Daily Telegraph: somente na América um agricultor austríaco sem um tostão pode construir uma vida tão fantástica. Fato é que a imprensa muito contribuiu para a consolidação do campo fisiculturista, ao menos nos EUA, reforçando as narrativas heroicas dos atletas com talento para se promoverem via esse dispositivo. Edgar Morin (1987) escreve que a cultura de massa sustentada pelos aparelhos midiáticos produz “olimpianos” seres que vendem a imagem de sobre-humanos, sejam campeões esportivos, astros e estrelas de cinema, políticos ou outros artistas populares célebres. A imprensa reveste essas pessoas de um caráter mitológico ao mesmo tempo que busca exaltar supostos acontecimentos de suas vidas particulares para que esses novos mitos possam ser identificados pelos consumidores de suas imagens e produtos. O caso Schwarzenegger é o exemplo maior deste procedimento no fisiculturismo. A história de vida de Arnold Alöis Schwarzenegger, nascido em Groz, Áustria em 1947, ao menos aquela que é veiculada pela imprensa, encarna mitologicamente toda a lógica inerente à ética protestante do esforço, da obstinação e do trabalho – embora fosse de origem católica. Filho de um policial que era ex-membro do Partido Nazista, aos 15 anos, começou a levantar blocos de concreto com o objetivo de trabalhar sua já avantajada massa muscular e a sonhar em ir para os Estados Unidos, mais especificamente para a Califórnia. Em 1968 chegou lá, sem ter fluência no idioma e sem dinheiro, com o objetivo de tornar-se figura de destaque no fisiculturismo, campo dos esportes que estava se consolidando. Começou, na companhia de um jovem imigrante italiano, Franco Columbo, a exercer a função de pedreiro nas mansões de Los Angeles. Percebendo que não conseguia arrumar trabalho, mesmo cobrando mais barato que os outros, partiu para outra estratégia que apontava já para a percepção de que, na sociedade 61 CÉSAR SABINO americana dos espetáculos e simulacros, mais vale a propaganda, a forma, que o conteúdo: colocou o anúncio “pedreiros europeus especializados” e passou a cobrar mais caro do que toda a concorrência. Em pouco tempo, já havia amealhado, com seu sócio, um milhão de dólares, e fundado uma empresa de construção. Os dois imigrantes, nesse ínterim, continuavam treinando e participando de campeonatos de fisiculturismo. Schwarzenegger começou a vencer os principais concursos aplicando o dinheiro que recebia como prêmio. Ao contrário da maioria que fazia fortuna na Califórnia em sua época, não comprou uma mansão Californiana, e sim um prédio de apartamentos para alugar. Dessa forma, passou a viver em um pequeno apartamento e usar o aluguel que lhe pagavam para cobrir a hipoteca do prédio. Em seu primeiro filme da série O Exterminador do Futuro, Schwarzenegger disse apenas 73 palavras. Sempre enfatizou que nunca pretendeu ser ator. Seus filmes são apenas diversão e não arte, como sempre reiterou. E foi com a imagem que se tornou um astro de fama internacional. Schwarzenegger demonstra articular um dos mais puros exemplos de ação racional com relação a fins ao modelo de análise weberiana (WEBER, 1997). Por outro lado, seu sucesso apenas foi possível pelo fato de viver em uma era em que a administração imagética faz parte das práticas e representações vigentes nas sociedades. Sempre soube escolher ou criar papéis em que sua carência dramática não faria diferença – seu principal personagem é um robô. Soube, desde sua época de atleta, calcular todos os meios possíveis para tornar-se campeão, buscando aliar-se e relacionar-se com pessoas que poderiam ajudar em sua projeção para o sucesso. Por meio de seus papéis no cinema, é possível perceber como ele diversificou atividades e maximizou lucros. Nesse processo de construção imagética, o campeão de fisiculturismo que chegou a governador demonstra que soube sempre calcular os meios para atingir seus fins fazendo política, partidária ou não. Encarna, dessa forma, o modelo de self-mademan, espécie de ás daquilo que se tornou o cerne da ação na era dos simulacros e das imagens: o marketing pessoal. A história de sua vida está diretamente relacionada ao desenvolvimento e expansão do bodybuilding pelo mundo, além de constituir um prisma pelo qual uma época pode ser analisada. O ícone-mor do fisiculturismo pode sugerir, para aqueles que tentam analisar sua carreira, a forma como os mecanismos disciplinares se instalam no corpo e o perpassam reproduzindo-se. Demonstra, em entrevistas, 62 DROGAS DE APOLO filmes, livros e manuais de exercícios, técnicas de fisiculturismo (muitas desenvolvidas ou aprimoradas por ele), que podem ser percebidas como “representando uma maquinaria de poder que esquadrinha [o corpo], o desarticula e o recompõe [em] uma anatomia-política que é também uma mecânica do poder” (FOUCAULT, 1987, p. 126), desenvolvida com o propósito de produzir o aumento das habilidades musculares submetendo o corpo à obediência e à manipulação e aprofundando sua sujeição. Contudo o processo não apenas submete o corpo, como também o torna útil, aplicável, maximizado esteticamente e submetido aos polifônicos e mesmo paradoxais discursos da saúde. Essa articulação micropolítica não deixa, como Foucault (1990) demonstrou, de se relacionar a uma dimensão macropolítica e utópica: [...] o corpo humano é o ator principal de todas as utopias. Afinal, uma das mais velhas utopias que os homens contaram para si mesmos não é o sonho de corpos imensos, desmesurados, que devorariam o espaço e dominariam o mundo? É a velha utopia dos gigantes que encontramos no coração de tantas lendas na Europa, na África, na Oceania, na Ásia, essa velha lenda que há tão longo tempo nutre a imaginação ocidental, de Prometeu a Gulliver (FOUCAULT, 2013, p. 18, grifo meu). Esses micropoderes, ao se constituírem de forma capilar ou molecular em instituições e locais específicos que são suas extensões organizacionais – no caso as academias de musculação e fitness –, administram aspectos da vida social refletidos nos registros molares da sociedade alimentando sonhos, ideologias e utopias23. A passagem de Schwarzenegger de uma dimensão micropolítica cotidiana para aquela da política partidária não deixa de ser reflexo de uma articulação possível do biopoder e da biopolítica, pois “o corpo [...] está diretamente mergulhado num campo político” (FOUCAULT, 1987, p. 27), o que representa claramente a ligação direta com a esfera micropolítica e macropolítica. Portanto, [...] ter-se-ia, por um lado, uma espécie de corpo global, molar, o corpo da população, junto com toda uma série de discursos que lhe concernem e, então, por outro lado, e abaixo, os pequenos corpos, dóceis, corpos individuais, os microcorpos da disciplina. (FOUCAULT, 1993, p. 124). Vale ressaltar que para Karl Mannheim (1976, p. 66-67), a diferença, por vezes tênue, entre a utopia a qual apresenta caráter mobilizador, transformador e mesmo revolucionário, e a ideologia que representaria aspectos de conservação dos sistemas sociais. O autor, contudo, também destaca que, em todo movimento social que prima pela transformação da realidade, tendo em vista um ideal inexistente, há uma tendência à ideologização quando principia a realizar seus objetivos. Em outras palavras: o revolucionário atual pode tornar-se o conservador de amanhã. 23 63 CÉSAR SABINO Essas duas dimensões das tecnologias de poder estão profundamente articuladas e, pode-se dizer, estão presentes na história de vida de Schwarzenegger. Sua associação com as políticas de Estado não deixa de ser um reflexo do poder micropolítico que incidiu, desde cedo, sobre seu corpo, e que ele desdobrou – sem deixar também de ser por essas forças desdobrado – em reflexos macropolíticos. Processos que o construíram como ícone daqueles que percebem na disciplina do exercício corporal levado à exaustão, na dedicação física e mental a um propósito, na abnegação e no cálculo racional o sentido mesmo da existência. Assim, a história de Schwarzenegger pode representar o desenrolar de um processo social específico analisado por Foucault. O autor, ao longo de sua obra, constrói uma teoria social que pode fornecer instrumentos para a uma melhor compreensão dos processos de desenvolvimento com o cuidado do corpo. O exemplo Schwarzenegger de trajetória social e de vida sugere a articulação de micropoderes disciplinares, uma anátomo-política, que permeiam o cotidiano dos indivíduos nas sociedades complexas. Essa disciplina pode ser definida como uma arte de distribuição espacial dos indivíduos – o que seriam, a princípio, essas instituições de bodybuilding e fitness nas quais os indivíduos constroem e hierarquizam suas potencialidades físicas e estéticas? –, exercendo seu controle não sobre o resultado de uma ação, mas sobre seu desenvolvimento. Com efeito, ela implicaria uma técnica de exercício de poder que exige uma autovigilância constante dos indivíduos rebatida em uma rede de olhares (panóptico) escrutinadores que regulariam as ações individuais e coletivas pelo controle, além de outras características, do tempo (FOUCAULT, 1987; RABINOW, 1999; MAIA, 2003). A história de Schwarzenegger é o exemplo de atualização dessa potencialidade disciplinar cotidiana: “a disciplina é de suma importância para o sucesso no fisiculturismo. Da mesma forma o é a capacidade de concentrar-se, de estabelecer uma meta e não permitir que nada se coloque no seu caminho” (SCHWARZNEGGER; DOBBINS, 2001, p. 243). Um fisiculturista de uma academia de Copacabana certa vez me disse: [...] cara, o negócio aqui é de dedicação continuada [...] eu sonho com meus exercícios, com a dieta, com o que eu devo comer e fazer para crescer, para definir, qual técnica que eu tenho que usar para expandir o quadríceps, o bíceps, o peitoral... sigo uma dieta rigorosa, quando o verão vai chegando... eu tenho uma balança para pesar alimento lá em casa, tudo que eu como, carboidrato, proteína, é pesado...também não falto ao treino, venho seis vezes por semana, sempre na mesma hora. (Mário. 35 anos. Instrutor de exercícios). 64 DROGAS DE APOLO A administração cotidiana do corpo, de sua forma, e do comportamento em contextos de relações de poder (micropolítica), da perseguição de uma estética lipofóbica (MATTOS, 2012) e de um padrão de saúde radicado em uma concepção específica de beleza e força muscular sugere a prática disciplinar de gestão dos corpos individuais ressaltada pelas análises de Foucault; mas também remete aos seus conceitos de biopoder e biopolítica visto que a disciplina não está dissociada da atuação de toda uma máquina abstrata articuladora de dispositivos coletivos de ações voltadas para a suposta manutenção de uma saúde populacional (FOUCAULT, 1990; DELEUZE, 1995). As práticas corporais parecem assumir, por intermédio dos meios institucionais e de comunicação, o caráter de dever coletivo voltado para a busca da otimização da saúde. A figura de Schwarzenegger tem sido também emblema de afirmação desse biopoder voltado para o gerenciamento populacional. Sua vida cotidiana, das academias de musculação à política na Califórnia, pode esboçar um trajeto que articula as duas dimensões da tecnologia do poder anteriormente citadas, micro e macropolíticas, molecular (microssocial) e molar (macrossocial), reiterando o ideal liberal de self-made man. Se o poder disciplinar é aquele que esquadrinha, desarticula e recompõe o corpo visando a otimizá-lo, extraindo dele sua utilidade por meio de um saber acumulado pela observação perene em instituições e organizações específicas, a trajetória de Arnold Schwarzenegger é o exemplo de um esquadrinhador que empreende seu próprio corpo como vitrine e empresa para produzir um saber colocado em circulação, por intermédio de filmes e documentários sobre fisiculturismo, filmes hollywoodianos, campeonatos, livros e enciclopédia; enfim todo um modelo de empreendedorismo do corpo em torno do corpo em expansão. Por outro lado, esse aspecto articula-se com o mecanismo molar de aplicação coletiva de saberes para a saúde, ou seja, políticas de saúde da população ou biopoder definido como função desdobrada da realidade cotidiana (mecanismos moleculares) dela não necessariamente se separando. Sua função poderia ser definida como sendo a de “gerar e controlar a vida dentro de uma multiplicidade desde que ela seja numerosa (população), e o espaço estendido ou aberto” (DELEUZE, 1995, p. 79). Com efeito, a utilização do conceito de campo de Bourdieu pode ser associada aos conceitos de disciplina, biopoder e biopolítica de Foucault, ampliando o instrumental teórico para a compreensão de determinados fenômenos relacionados à somatização na sociedade atual. O surgimento do campo do fisiculturismo, com todas as suas práticas específicas de musculação, não 65 CÉSAR SABINO está dissociado do surgimento dos mecanismos disciplinares e da constituição da biopolítica e do biopoder – que também podem ser associados ao conceito de processo civilizatório de Elias. De fato, os campos, sendo dimensões sistêmicas específicas, estariam ligados a processos de ordem macrossociais que forneceriam a base de suas articulações. Assim, por exemplo, a consolidação do fisiculturismo só foi possível de ser realizada no século XIX porque havia significativo movimento de expansão das tecnologias corporais capitaneadas pelas políticas dos Estados europeus ocidentais preocupados com a saúde populacional e com a formação de cidadãos fortes, resistentes e destemidos, ou seja: “saudáveis”. No número 216 do ano de 1914 da já citada revista La Culture Physique, o articulista Edmond De Geoff, após criticar a falta de exercícios das crianças francesas, escreve: [...] quase sempre o homem é uma cópia do que foi na infância [...] cuidemos de nossas crianças educando-as [...] tornando-as fortes pelo uso dos halteres, habilidosas, tenazes para o trabalho e para os projetos de construção que preparam os homens para a grandeza da pátria [...] todos os verdadeiros descendentes da raça gaulesa me compreenderão [...]. (DE GEOFF, 1914, p. 14). Essa preocupação com a saúde populacional e com o futuro da nação representa o espírito de agenciamento corporal voltado para as políticas públicas que se fortaleceram a partir da segunda metade do século XIX na Europa e nos Estados Unidos. Houve um aumento do controle e da busca de uma espécie de estabilidade social radicada nas potencialidades do corpo da população. De acordo com umas das teses mais radicais de Foucault, a associação entre saber e poder se constituiu devido ao processo inicial de isolamento vigiado que acabou por produzir um conhecimento sobre o homem – verdadeiro nascimento de homem enquanto conceito –, as ciências humanas: psiquiatria, psicologia, sociologia etc. (FOUCAULT, 1974). Essa articulação entre as práticas discursivas e as práticas não discursivas – relações econômicas, sociais e políticas –, postas em funcionamento no regime da biopolítica, vincula-se intrinsecamente à emergência do Estado do bem-estar social na Europa do final do século XIX. A densificação da malha de relações de poder perpassando o tecido social acompanha outro estágio de desenvolvimento da acumulação capitalista. Se, por um lado, essas modulações políticas produzem uma espécie de domesticação do capitalismo, por outro lado, implementam os mais insidiosos e sutis mecanismos de controle social (MAIA, 2003). 66 DROGAS DE APOLO O processo coletivo de preocupação crescente com o corpo, a saúde e a vida, produz também um crescente aprimoramento de tecnologias de gestão populacional e o controle das ações cotidianas individuais. Essas articulações, como citei anteriormente, entre as dimensões micro e molares, denominadas por Deleuze “máquinas abstratas” (1995), poderiam ser compreendidas como articulação entre ação e estrutura. O excesso de biopoder que marca o acirramento atual da disciplina sobre a vida passa não apenas a organizá-la, mas também a modificá-la, abrindo a possibilidade da fabricação de algo vivo. Nesse âmbito, o campo do bodybuilding não passa de uma manifestação, portanto um exemplo da manifestação desse biopoder na atualidade, com desdobramentos específicos em cada sociedade de acordo com suas características próprias. Sua eficácia sobre os corpos, a proliferação das academias e lojas de suplementos para atletas, as pesquisas voltadas para o desenvolvimento de substâncias que possam melhorar o desempenho atlético e a forma corporal, a crescente produção midiática sobre musculação e boa forma não seriam possíveis sem a nova organização econômica da saúde, sem os projetos de intervenções genéticas e aprimoramento de fármacos. A ritualização crescente do uso dessas drogas e fármacos específicos entre os praticantes de esportes com o intuito de melhorar sua condição físico-estéticas se processa também nesse movimento de dominação e biopoder atual em busca da criação de um supercompetidor. A tentativa de análise desse grupo de fisiculturistas de academias de musculação do Rio de Janeiro pode, talvez, sugerir algumas tendências sociais específicas de uma época em que a corporeidade tem grassado entre as camadas médias urbanas cariocas; mas não apenas. Até a década de 60 do século XX, o bodybuilding era visto como sinal de capacidade, disciplina moral, densidade emocional e sentimental representada na concepção de homem integral e integrado (participante dos ideais de nação, família, política e progresso), sendo o corpo exercitado o signo de lealdade e fidelidade, abnegação e tenacidade, companheirismo e sociabilidade – por mais ambíguas e obscuras que tais categorias pudessem ser. A partir da década de 80 do mesmo século, o surgimento de outro sentido ligado às práticas de musculação se fez presente. Na era do “marketing pessoal”, na qual a lógica da economia monetária do lucro (em geral, imediato) invade progressivamente os espaços que antes eram das relações solidárias; a forma física basta a si mesma e a imagem do corpo é a tradução da capacidade imediata de viver mais e intensamente, consumir ao máximo os prazeres da existência, ostentar 67 CÉSAR SABINO juventude e beleza perenes. Corpo-produto-empresa consumidor de outros corpos-produtos, vetores de novas hierarquias estéticas relacionadas a um mercado que busca se flexibilizar abolindo fronteiras para mais acumular e concentrar riquezas. 1.2 A GESTA DE ARNOLD SCHWARZENEGGER Dando prosseguimento ao mito e à imagem paradigmática do herói, tentaremos mostrar que nossa sociedade autodenominada moderna, apresenta (como qualquer outra denominada não moderna) sua mitologia em jornais, redes sociais, filmes, shows de música, eventos esportivos etc. A presença desses ícones remete à noção de que eles são referências de ação e respaldo dos valores constitutivos desta sociedade. Mas quem é o herói? Segundo alguns estudiosos, ele é aquele que vive por sua causa, a social, intermediário entre os deuses e os homens, guardião, defensor, aquele que nasceu para servir (BRANDÃO, 1993; HELAL, 1998). Campbell (1995), por exemplo, ressalta que o herói parte do mundo cotidiano aventurando-se pelas regiões sobrenaturais onde enfrenta forças fabulosas e arrasta vitórias decisivas, regressando de seu périplo com o poder de conceder dádivas aos seus semelhantes. Ele é aquele que ultrapassa as condições medianas da existência comum, abrindo caminho para o novo e trazendo, com seus atos, a glória e a redenção de um povo ou grupo social específico. Para que a trajetória heroica seja bem sucedida, é necessário que as pessoas acreditem nas representações que os feitos do herói reiteram (HELAL, 1995). Portanto, o mito é parte de um sistema no qual as estruturas subjetivas (representações, valores, normas) e objetivas (a prática cotidiana dos grupos sociais) interagem (re)produzindo as condições de existência de uma determinada sociedade. O herói é a síntese das várias representações coletivas, ele é o emblema de um grupo e de uma época. Uma breve tentativa de análise do mito mais difundido entre os fisiculturistas, o das realizações de Arnold Schwarzenegger (Arnold como é referido por todos os fisiculturistas) será efetuada adiante. Essa narrativa, com algumas variações, é veiculada tanto em publicações especializadas quanto nas conversas dos bodybuilders das academias. Não se questiona aqui a veracidade dos fatos que compõem a narrativa, mas reitera-se o aspecto mítico da construção dela. Em uma pequena cidade dos Alpes austríacos, vivia um jovem que desde criança adorava fazer exercícios e levantar pesos. Seu pai, um poli68 DROGAS DE APOLO cial pobre, reunia os filhos, quase todos os dias, para a prática de flexões de braço, caminhadas pelas montanhas e abdominais. Ensinava-lhes que a abnegação, a disciplina e o trabalho duro eram o caminho certo para alcançar a felicidade, sendo os exercícios item fundamental nessa busca. Certo dia, o irmão mais jovem do herói morre em um acidente de carro. Muito triste, ele se dedica ainda mais aos exercícios prometendo a si e aos pais alcançar o mais rápido possível o sucesso. Nesse processo é um filho e aluno exemplar: exercita-se muito, tira notas excelentes no colégio e ajuda sua mãe a fabricar conservas. Quando se torna adolescente, Arnold percebe que o lugar onde vive é escasso em oportunidades de trabalho. Se continuar ali, não irá muito longe. Quer vencer na vida, tornar-se famoso, ajudar seus pais e não levar uma vida de dificuldades como eles levavam. Aos 15 anos, toma contato com os filmes vindos da América, fica fascinado com todo o glamour que cerca os astros norte-americanos, principalmente dos personagens que demonstram força e poder, e passa a almejar ainda mais a fama. Ainda bem jovem, viaja para a Londres para treinar melhor o fisiculturismo e melhorar sua compreensão da língua inglesa. Após um período, fica sabendo que na América existem também campeonatos de bodybuilders ainda mais aprimorados, criados por um canadense, descendente de germânicos como ele, Joe Weider, que havia se tornado empresário famoso e rico cultivando seus músculos. Arnold resolve então que deve ir para a América, atrás da fama e do sucesso. Está decidido a tornar-se campeão de fisiculturismo. Em 1968, chega aos Estados Unidos com apenas alguns trocados no bolso, uma grande massa muscular e quase nenhum conhecimento de inglês. Na Áustria não havia desafios para mim, diz Arnold, a América, ao contrário, era um grande desafio, era o futuro. (SCHWARZENEGGER; DOBBINS, 2001). Em suas primeiras competições em Miami, forças adversas atrapalham seu caminho em direção à glória. Não consegue se preparar de forma adequada, devido à falta de recursos, e acaba perdendo as disputas. Disciplinado, não desiste facilmente, tenta fazer contatos com pessoas influentes, até que, em seu auxílio, intervém o sumo sacerdote do fisiculturismo, Joe Weider, que percebe seu talento e o convida para ir com ele à Califórnia – meca americana do músculo – dispondo-se a auxiliá-lo nos treinamentos e a investir nos campeonatos e apresentações. Rapidamente, o herói passa a ganhar campeonatos e a ficar cada vez mais famoso. Torna-se o primeiro a ganhar seis vezes consecutivas o título mundial de Mister Olympia e passa a ser reconhecido no mundo inteiro pelos praticantes de musculação. Em 69 CÉSAR SABINO 1972 estreia no cinema com o documentário Pump Iron, no qual relata sua trajetória e a de outros fisiculturistas famosos, como Lou Ferrigno e Frank Columbo. Nesse filme são dadas dicas para a construção de um corpo musculoso: dedicação, trabalho intermitente, abnegação, superalimentação e fé em seus próprios objetivos. A fórmula para a construção do self-mademan dos músculos estava, ao menos supostamente, traçada. Logo em seguida faz o papel de Conan, o bárbaro, em filme homônimo, e torna-se ainda mais rico e famoso. Daí em diante, Schwarzenegger passa a ser considerado a maior autoridade em fisiculturismo do mundo, atuando em mais filmes que são sucessos de bilheteria e sendo convidado pelo presidente dos EUA (George Bush I) para ocupar o cargo de consultor de assuntos para a Educação Física. Nesse ínterim, Schwarzenegger casa-se com uma destacada aristocrata da famosa família Kennedy entrando para o high society. Apesar de tornar-se cidadão americano, o herói dos músculos retorna glorioso em visita a sua terra, alardeado como o filho pródigo dos Alpes. Além de tornar-se o maior ícone do bodybuilding, astro de Hollywood e empresário bem sucedido, Arnold Schwarzenegger conseguiu, em 8 de outubro de 2003, coroar sua carreira de sucesso tendo sido eleito governador da Califórnia, o estado mais rico dos Estados Unidos. A façanha do herói começa com alguém de quem algo foi usurpado ou que percebe que está faltando algo entre as experiências cotidianas das pessoas comuns na sociedade. O herói parte, então, para uma série de aventuras, quer para recuperar o que tinha sido perdido, quer para descobrir algum elixir doador da vida. Normalmente faz um círculo com partida e retorno glorioso. Em biografias de heróis midiáticos é comum a presença de uma perda ou dificuldade séria na infância. No caso, a pobreza, a perda do irmão, a vida difícil nos Alpes. Essa construção da narrativa, com ênfase nas dificuldades, torna-se o fio de identificação do ídolo com as pessoas comuns (fãs, seguidores, admiradores). Em sociedades capitalistas, nas quais a mídia exerce uma forte influência, a princípio, podem ser destacados dois tipos de heróis: os heróis por acaso e os heróis preparados; os primeiros são lançados heróis, defrontados com a aventura, que neles desperta uma qualidade que ignoravam possuir. O segundo tipo é o do self made man, aquele que persegue com todas as suas forças a glória. As provações, nesse processo, são concebidas para ver se o pretendente a herói pode realmente ser um herói. O passado difícil, cheio de provações, repleto de forças maléficas, é ressaltado e superdimensionado em todas as gestas (HELAL, 1998). O mito de Arnold, ampliando veiculado de 70 DROGAS DE APOLO forma intermitente nas revistas e filmes, e contado pelos fisiculturistas das academias, reflete esse processo estrutural inerente às sagas míticas. Arnold vive uma infância difícil, tendo que partir do lugar onde nasceu para iniciar sua aventura. Lévi-Strauss mostra que, nos mitos, o herói tende a se separar dos seus realizando um périplo que é seguido pela maioria daqueles que almejam o sucesso. O mito estabelece, então, uma regra, um exemplo, para aqueles que objetivam realizar o mesmo processo (LÉVI-STRAUSS, 1976). Estudando mitos ameríndios, o autor nos mostra outros dois tipos de heróis, o criador e o demiurgo, e o administrador e organizador. Por exemplo, a organização social dos Bororo está dividida em duas metades denominadas Tugare e Cera. Seus heróis são provenientes dessas metades; os heróis Tugare são demiurgos e os Cera administradores. Os Tugare [...] são em geral responsáveis pela existência das coisas: rios, lagos, chuvas, vento, peixes, vegetação, objetos manufaturados [...] os heróis Cera intervém num segundo momento, como organizadores e administradores de uma criação cujos autores foram os Tugare. (LÉVI-STRAUSS, 1976, p. 55). Comparando com o mito bodybuilder aqui analisado, é possível dizer que o papel exercido por Joe Weider24 é o do herói demiurgo, enquanto Arnold Schwarzenegger surge como organizador e divulgador maior. Weider, um rapaz de entregas, tornou-se um empresário multimilionário do fisiculturismo, criando laboratórios de pesquisas e fábricas de suplementos alimentares e de halteres e máquinas de musculação, academias e concursos de boa forma e bodybuilding que movimentava, em 2003, mais de 300 milhões de dólares. Além de ter criado inúmeras publicações sobre bodybuilding (livros e revistas mensais), institucionalizou o fisiculturismo nos EUA e já era reconhecido como uma das maiores autoridades quando ajudou Arnold em sua aventura americana. Esse último é hoje conhecido pelo seu empenho em expandir e preservar as conquistas de Weider levando “a saúde e boa forma a todos” por meio de suas próprias empresas e de seus próprios campeonatos, além dos de Weider. Arnold Schwarzenegger começou seguindo os conselhos e os métodos inventados por Weider, seu protetor, e hoje é o seu maior aliado, reproduzindo, em seus próprios métodos, tudo Weider é o fundador, ou consolidador, do fisiculturismo profissional influenciado direta ou indiretamente pela ética protestante. É o patrono do campo profissional consolidado nos EUA. No editorial de suas revistas mensais de musculação (Muscle e Fitness, por exemplo), aparece o princípio Weider de vida (principles of the Weider lifestyle): busque a excelência, exceda a si mesmo, ame seus amigos, fale a verdade, pratique a fidelidade e honre seu pai e mãe. Esses princípios o ajudarão a tornar-se mestre de si mesmo, o farão forte, darão esperança e o colocarão no caminho da grandeza. 24 71 CÉSAR SABINO o que Weider lhe ensinou e indicou. A ética produzida pelos dois heróis do bodybuilding está resumida em inúmeras publicações produzidas por eles e por seus admiradores. Essa visão de mundo consiste em uma mistura de cientificismo, conselhos bíblicos e prática capitalista, radicando-se nos itens fundamentais constitutivos do imaginário das sociedades capitalistas atuais. A seguir, um trecho do editorial da revista mensal Muscle e Fitness, presente em todas as edições: Este estilo de vida pauta-se pela educação e o desenvolvimento da pessoa em sua totalidade – corpo, mente e espírito. O desenvolvimento muscular supervisionado desempenha um importante papel na nossa sociedade e Muscle and Fitness serve como orientação. Nossos princípios estão fundados na resistência progressiva, treinamento com peso, nutrição apropriada, condicionamento aeróbico, boa forma, controle de stress e recuperação. O músculo é a marca plena da saúde e da boa forma na ética Weider – além de ser a marca da construção da imunidade, do funcionamento adequado do metabolismo, e do desaceleramento do processo de envelhecimento. O superior desenvolvimento muscular acompanhado do apelo visual representa um alto estado de saúde livre da gordura. Boa forma representa músculos em ação pautados na fisiologia do exercício que auxilia a reduzir os múltiplos fatores de risco para a saúde que prevalecem em nosso mundo moderno. Deixe o estilo de vida Weider fazê-lo forte, belo, cheio de energia, com melhor saúde e mais eficiente, dando simultaneamente a você uma autoimagem perfeita. Deixe o bodybuilding ser parte de sua vida” (1998, p. 12, grifo meu). Essas regras ditadas pelos mitos da musculação descrevem o que vem a ser boa saúde, beleza, sucesso e longevidade, prescrevendo ações que produzem e reproduzem a realidade não apenas dos fisiculturistas, pois gradativamente tais preceitos têm se tornado mandamento divino, com respaldo médico, para toda a sociedade, cada vez mais, preocupada com a saúde e a beleza. Esta héxis, ou habitus, corporal surge enquanto distinção e emblema de excelência, demarcando, nos sistemas classificatórios das sociedades complexas, o espaço social no qual dominantes e dominados encontram seus lugares específicos (BOURDIEU, 1976). Ter sucesso, ser bem sucedido economicamente, honrado, saudável, másculo e belo, está subsumido às práticas e aos estilos de vida relacionados ao cuidado do corpo e de si. Essa ética muscular protestante radica-se em um sistema simbólico no qual a muscularidade e a ausência de gordura aparecem 72 DROGAS DE APOLO como signos de perfectibilidade e status elevado. Nesse processo de busca pela excelência inscrita nos músculos e na pele – processo respaldado pela autoridade científica –, os indivíduos alimentam um sistema de produção de bens simbólicos de consumo que os atrela a um processo de reprodução de valores radicados na aparência. Nunca na história, os indivíduos estiveram, em tão grande quantidade, submetidos a uma dominação estética de tamanha proporção. Se, por um lado, a ciência médica desenvolveu técnicas e tecnologias para curar e preservar vidas; por outro, ela viabilizou a criação de uma nova dimensão da dominação construída pelas representações de juventude, beleza e saúde. Conceitos e ideais que devem ser perseguidos de forma incansável por todos aqueles que querem ser aceitos como símbolos de superioridade, sucesso e excelência. Luta inglória, já que os próprios itens constitutivos dessa estética são voláteis e efêmeros, dissolvendo-se rapidamente. Sem embargo, a saga dos herói do bodybuilding é aquela do self-mademan ou supersujeito livre e racional, arguto que sai do nada e faz, por meio de sua disciplina e força de vontade muito acima da média, do seu corpo a empresa transnacional com a qual conquista a fama e a riqueza mundial – se ele pode, qualquer um pode. Seu sucesso advém de seus méritos pessoais. Sua imagem hipermáscula, milionária, autorreferida, reflete autoridade, força, independência e dominação, como ícone conservador dos valores, das práticas e representações dos mitos neoliberais. 73 CAPÍTULO II No mundo contemporâneo em que o Ser se tornou de uma leveza insustentável, pois não impõe nenhuma autoridade que possa prescrever e na qual se possa crer, nem natureza, nem Deus, nem tradição, nem imperativo kantiano, apenas o eu pode conferir-se leis e apresentar-se como único ponto de apoio; tudo desapareceu, mas restou o eu [...] eu cara a cara com o que me nega, a morte, que não é nada se o eu decide que, para ele, não é nada. (Paul Veyne) 2 O SURGIMENTO DOS ESTEROIDES Por intermédio do avanço tecnológico e da expansão das telecomunicações, a imagem da perfeição corpórea expande-se para o cotidiano de várias culturas. A suposta imperfeição física dos indivíduos comuns passa a defrontar-se, a cada instante, com imagens de “corpos perfeitos” (musculosos, magros, bronzeados, sempre expressando felicidade) em telas de cinemas, redes sociais, computadores e outdoors. Imagens de modelos, minuciosamente selecionados, retocadas e aperfeiçoadas por técnicas de computação gráfica tendem a induzir à perseguição desse tipo de corpo sob a égide do consumo e do hedonismo autoilusivo (WEST, 2000). Essa exaltação das imagens produz culturas que investem na construção física levando milhões a consumirem cotidianamente todos os tipos de produtos materiais e simbólicos: remédios, filmes, revistas, exercícios, dietas e suplementos alimentares, movimentando a gigantesca e crescente Indústria da Saúde. As academias de musculação surgem como usinas de produção da forma, fabricando corpos para serem consumidos pela lógica do mercado. Essas formas musculosas apresentar-se-iam como espécie de totens midiáticos, visto que a publicidade exalta esses modelos contribuindo, assim, para a construção da identidade das tribos urbanas que se identificam com o paradigma apresentado. Seguindo a lógica similar a do totemismo, a publicidade, surge como um operador totêmico (ROCHA, 1995) dando sentido ao processo de produção física direcionado para o mundo do consumo. Assim como um “selvagem” saberia identificar o comportamento de uma pessoa do clã do 75 CÉSAR SABINO Urso ou da Águia, podemos identificar, por meio da aparência ou da conduta, alguém que é fisiculturista ou “marombeiro”, a partir dos signos que porta. Com efeito, “os estilos de vida atuais, hierarquias de valores e modelos de comportamento possuem na publicidade um dos mais lúcidos espaços de divulgação didática” (CANEVACCI, 2001, p. 154). Como produto do processo de aprimoramento dos saberes e práticas sobre a saúde e a fisiologia humana, os esteroides anabolizantes sintéticos apresentam-se como fármacos25 (drogas) específicos que hoje têm sido consumidos de forma crescente com o objetivo de modificar a morfologia individual. Essas substâncias surgiram de pesquisas farmacêuticas realizadas no final do século XIX e primeira metade do século XX, tornando-se itens de consumo daqueles que procuravam rejuvenescimento, vigor, ganho de força e massa muscular. No dia 1 de junho de 1889, Charles Edouard Brown-Séquard, um proeminente médico e cientista francês, anunciou à Sociedade de Biologia de Paris que estava descobrindo uma terapia rejuvenescedora do corpo e da mente. O professor de 72 anos estava experimentando, em si mesmo, injeções de líquidos tirados dos testículos de cachorros e porcos da guiné. Essas injeções, segundo seu próprio relato, haviam aumentado sua força física e sua energia intelectual, fazendo recrudescer suas constipações e “aumentando o esguicho de sua urina” (HOBERMAN; YESALIS, 1995, p. 76). Mediante suas experiências, Brown-Séquard percebeu a existência e a importância de substâncias liberadas por determinadas glândulas (no caso específico os testículos) e de sua atuação como reguladores fisiológicos. Tornou-se, portanto, um dos fundadores da moderna Endocrinologia. Após os experimentos de Brown-Séquard, uma verdadeira corrida em busca do isolamento dos hormônios (nome dado a tais substâncias em 1905) tomou conta do cenário científico. Em 1896, dois químicos austríacos, Oskar Zoth e Fritz Pregl, perceberam que as injeções de extratos testiculares de touros produziam um significativo ganho de força em seres humanos. Eles injetavam tais substâncias em si mesmos e mediam, por meio de um instrumento denominado ergógrafo de Mosso, a força de seus dedos médios. Diante de tais resultados, esses cientistas passaram a realizar palestras nas quais afirmavam que essas substâncias poderiam ser consumidas por É conhecida a ambiguidade da palavra fármaco: phamakón em grego significa, ao mesmo tempo, remédio e veneno. Droga, expressa tanto a ideia de medicamento quanto de substância entorpecente, como ainda de coisa desagradável e de pouco valor. Outro termo, tóxico, origina-se do grego toxon, que representa uma tigela ou recipiente ondese colocava veneno para banhar a ponta das flechas. Venenum, em sua origem latina, significa beberagem, tintura, corante, algo que modifica aquele que o usa (NASCIMENTO, 2003). 25 76 DROGAS DE APOLO atletas para melhorar seu desempenho em competições. Rapidamente, os extratos testiculares apresentaram-se como uma espécie de elixir da força e da juventude, e equipes de pesquisa, na Europa e nos EUA, foram formadas para aprimorar as investigações sobre como produzi-los em laboratório. Antes de se conseguir esse objetivo, várias experiências sobre o uso dos hormônios masculinos foram realizadas. Em 1913 o médico norte-americano Victor Lespinassse, de Chicago, transplantou um testículo humano para um paciente que havia perdido os seus e sofria de disfunção sexual. Quatro dias após a cirurgia, a capacidade sexual do paciente havia sido, segundo o médico, recuperada. Tais experimentos tiveram continuidade e, em 1920, outro médico, Leo Stanley, residente da prisão de S. Quentin na Califórnia, passou a transplantar testículos de animais em presos com problemas de impotência, diabetes, asma, senilidade, paranoia e gangrena, afirmando que as operações causavam considerável melhora em seus pacientes. Também, durante a década de 1920, o médico russo Serge Voronoff realizou transplantes de testículos de macacos em seres humanos. De forma paralela a tais procedimentos, que logo caíram em desuso; outros pesquisadores procuravam isolar, de forma sintética, o hormônio testicular. Em 1911 Albert Pezard descobriu que as características sexuais masculinas cresciam proporcionalmente à aplicação de substâncias testiculares em animais, percebendo os efeitos androgênicos – masculinizantes – desses extratos. Durante as duas décadas posteriores, inúmeros cientistas procuraram aprimorar os estudos sobre efeitos de substâncias androgênicas tentando isolar o componente químico presente nos testículos de animais e urina humana. Em 1931, o cientista alemão Adolf Butenandt conseguiu isolar 15 miligramas do hormônio não testicular, que ele denominou Androsterona, retirando-os de 15.000 litros de urina de homens que trabalhavam como policiais. Contudo, a Testosterona, hormônio natural masculino mais poderoso que a Androsterona, só foi isolada em laboratório por meio da ação de três grupos de pesquisadores subsidiados pelas grandes companhias farmacêuticas multinacionais. Em 27 de maio de 1935, Karoly Gyula David e Ernst Laqueur, financiados pela Organon Company da Holanda, apresentaram o artigo “Sobre o Hormônio Cristalino Masculino Proveniente dos Testículos – Testosterona”, como resultado de suas pesquisas no isolamento da Testosterona. Em 24 de agosto do mesmo ano, os pesquisadores alemães Butenandt e Hanisch, financiados pela Schering Corporation de Berlim, apresentaram os resultado de suas pesquisas denominado: “Um Método de Preparação de Testosterona a partir do Colesterol”; e em 31 de 77 CÉSAR SABINO Agosto de 1935, os pesquisadores da companhia farmacêutica Ciba, Leopold Ruizicka e Alfred Wettstein, anunciaram sua descoberta no artigo “Sobre a Preparação do hormônio Testicular Testosterona (Androsten-3one-17ol)”. A testosterona sintética estava inventada, e a patente dessas drogas em posse das indústrias que financiaram suas descobertas. Ruizicka e Butenandt receberam, em 1939, o Prêmio Nobel de Química (HOBERMAN; YESALIS, 1995). A partir de então, o mercado do uso de testosterona sintética e seus derivados cresceu tanto para usos medicinais quanto estéticos; ainda mais após 1940, ano em que Charles Kochakian descobriu as características anabólicas da testosterona, ou seja, a facilidade de crescimento muscular possibilitado pelo uso dela. Após essa descoberta, os fisiculturistas amadores e profissionais da costa oeste americana, no início dos anos 50 do século XX, passaram gradativamente a utilizar testosterona para aumentar massa muscular e força26. Esse uso espalhou-se, a partir da década de 1960, entre os atletas profissionais e amadores de outros esportes, já sendo comum, à época, a sua utilização entre alunos de colégios secundários e universidades americanas. Nos esportes olímpicos, durante o mesmo período, essas substâncias passaram a fazer sucesso entre atletas do leste europeu comunista e China, certamente auxiliando-os na conquista de muitas medalhas27. A partir de 1970, o Comitê Olímpico implementou métodos de testagem para detectar o uso das substâncias, além de outras similares, por atletas, banindo dos jogos aqueles descobertos como sendo usuários destas drogas. Contudo, desde então, um número significativo de atletas de elite e técnicos tem encontrado meios de burlar esses testes. O que deve ser ressaltado em todo esse processo é a expansão do uso dessas drogas. A princípio direNão é possível afirmar a universalidade do uso de esteroides anabolizantes por parte de todos os fisiculturistas. De fato, há um movimento do chamado “culturismo natural”, no qual atletas dizem não utilizar qualquer tipo de droga ou fármaco na construção da forma física. Inclusive, alguns afirmam-se vegetarianos ou mesmo veganos. Contudo, durante minha pesquisa, não encontrei ninguém nas academias do Rio de Janeiro que procedesse dessa maneira. 27 O uso de esteroides (Dianabol) foi detectado de fato, em 1956, nos jogos de Moscou (POPE; PHILLIPS; OLIVARDIA, 2000). Desde então, o uso ilegal dessas substâncias tem crescido entre muitos atletas, não apenas fazendo parte dos rituais de treinamento e competições, mas contribuindo também para a formação de uma espécie de indústria de subversão de testes antidoping. Essa indústria, formada por técnicos, médicos, laboratórios e pesquisadores e nutricionistas, busca subverter os testes criando substâncias esteroides que não podem ser detectadas, a princípio, em exames de sangue e urina. O último caso, divulgado em outubro de 2003 na mídia, foi a da tetrahidrogestinona, ou THG; essa nova molécula reúne os esteroides Gestrinona e Trembolona. Em seu núcleo, há quatro anéis de benzeno aos quais o methyl e o hidroxyl estão ligados. Grupos adicionais de methyl ou ethyl – átomos de três carbonos e seis de hidrogênio foram somados para criar esse novo esteroide. A combinação possibilitou que o novo esteroide sintético não fosse detectado nos exames tradicionais antidoping. O uso da substância foi descoberto devido ao fato de um técnico, não identificado, ter feito a denúncia à Agência Americana Antidoping de que atletas americanos e estrangeiros estavam utilizando uma substância que não era detectada. O técnico enviou uma seringa com resquícios da substância que foi analisada pelas autoridades que detectaram a nova droga. 26 78 DROGAS DE APOLO cionadas para a terapêutica, elas acabaram incrementando ilegalmente os esportes profissionais e amadores e, atualmente, têm se tornado objeto de consumo cotidiano de pessoas comuns que buscam otimizar sua aparência. Esse movimento de pesquisas e descobertas científicas sobre a testosterona está ligado ao desenvolvimento de saberes e práticas relacionados ao gerenciamento do corpo individualizado, do envelhecimento populacional e da saúde, concepções surgidas no século XVIII, e que construíram o sentimento da necessidade de preservação do corpo, considerado, a partir de então, pelas culturas ocidentais, local de morada da substancia individual, mônada isolada do todo social (RODRIGUES, 1999). Esse saberes e essas práticas aprimoraram-se desde então: enquanto a proposta racionalista dos religiosos dos séculos XVI e XVII era disciplinar o corpo para libertá-lo das paixões, promovendo uma estética da alma; a proposta racionalizante do saber leigo que se desenvolve – embora radicado nas premissas lógicas de origem religiosa – é a de administrar paixões (eventualmente a controlando) com o objetivo de otimizá-las. Em outras palavras, investir em paixões, poupando-as, em determinados momentos, com o objetivo de aplicá-las, em outros momentos, nos quais as mesmas paixões maximizadas poderão vir a se concretizar de forma mais ampla; multiplicando e efetivando, assim, uma espécie de lucro na satisfação dos desejos. Nova economia libidinal que potencializa as paixões e que é estabelecida pela lógica do consumo. Nesse movimento, o anabolizante apresenta-se como um meio, dentre outros, concretizador das estratégias instrumentais de manutenção desse corpo considerado veículo do prazer e da autoexpressão, corpo produzido por, e produtor de, uma sociedade individualista e racionalizante. A estética da alma tornou-se circunscrita apenas ao corpo, ressaltando a disciplina não como elemento oposto ao hedonismo, mas como auxiliar desse. Assim, a época atual não apresenta potencialmente apenas a dimensão de um paroxismo dionisíaco ou período de expansão da reflexividade e da razão comunicativa (MAFESOLLI, 1995; GIDDENS, 1991; HABERMAS,1985), mas as atuais sociedades globalizadas podem, também, encontrar-se em um processo de acirramento sutil do poder disciplinar que possivelmente vem sendo aprimorado por intermédio do exercício do controle intra e extra muros institucionais – mediante novas tecnologias da comunicação – e agenciamento dos sistemas simbólicos (valores, normas e percepções) radicados, de certa forma, na lógica da troca comercial e do consumo (GUTTARI; ROLNIK, 1996; BOURDIEU, 2001a). O novo 79 CÉSAR SABINO racionalismo e suas técnicas de criação de corpos e expansão de desejos consumistas caracterizam-se por submeter e subjugar, em determinadas circunstâncias, o corpo e suas afecções28 aos ditames do ascetismo disciplinar, porém normalizando-o com o objetivo de potencializar sua capacidade de diversão e consumo (FEATHERSTONE, 1995; COURTINE,1995). Ascetismo e hedonismo caminham, agora, de mãos dadas. Esse aspecto pode ser percebido nos supermercados de imagens em expansão em que os heróis-produtos são atores, cantores, modelos e atrizes, pessoas produzidas e que reproduzem os padrões de beleza hegemônicos e que professam a ética do consumo e de um suposto savoir vivre, conquistado, porém, com esforço ascético, segundo os discursos de tais ícones. Em tal sistema de economia imagética, indivíduos comuns são impulsionados ao consumo e à submissão calculada a dietas, exercícios, anabolizantes, clínicas estéticas e academias, enquadrando-se em uma espécie de controle disciplinar ímpar na história, com o objetivo de conquistarem a admiração e o respeito. Há o esforço de se chegar ao paraíso das imagens e formas tendo o mercado da saúde como coadjuvante no processo de busca de ascensão social. Passaporte que permite aproveitar aquilo que o mundo do consumo oferece àqueles que são considerados vencedores. Hedonismo racionalista. O saber e a prática relacionados ao uso dos esteroides anabolizantes fazem parte inerente desse processo, constituindo-se como um dos instrumentos manejados por determinados indivíduos e grupos na busca desse paraíso na terra onde os corpos e suas imagens são intercambiáveis à maneira de uma simples moeda. Simmel (1983; 1989; 1991; 1993) apontou o domínio do dinheiro como instituição fundamental do mundo moderno, ou, mais de acordo com suas palavras, o advento da economia monetária significou uma redefinição da consciência subjetiva individual. Com a troca monetária nos parâmetros modernos, as noções básicas de tempo e espaço se modificaram, e, com a modificação de tais noções, modificaram-se também as economias emocionais dos indivíduos. A vida afetiva individual e as relações sociais em geral passaram a ser regidas pela necessidade de distanciamento interno e externo Aqui é adotado o conceito de afecção elaborado por Espinosa: “Por afecções entendo as afecções do corpo, pelas quais a potência de agir desse corpo é aumentada ou diminuída, favorecida ou entravada, assim como as idéias dessas afecções”. As afecções podem ser ativas se “agimos quando se produz em nós, ou fora de nós qualquer coisa que somos causa adequada [...] mas, ao contrário, digo que somos passivos (sofremos) quando em nós se produz qualquer coisa ou qualquer coisa se segue da nossa natureza, de que não somos senão causa parcial”. Esclarecendo: “o corpo humano pode ser afetado de numerosas maneiras pelas quais a sua potência de agir é aumentada ou diminuída [...]” (ESPINOSA, 1979, p. 178). O Marketing talvez seja um dispositivo moderno para a soma, ou subtração, de determinadas afecções, administrando-as ou, de acordo com Deleuze e Guattari, pode ser um mecanismo produtor de agenciamentos de subjetivações ou de modulações de subjetividades (2010). 28 80 DROGAS DE APOLO – relacionado às exigências dos contatos interpessoais nas metrópoles – e pela instauração da calculabilidade como fenômeno da personalidade dos indivíduos. Relacionada a esse processo, a atitude “blasé” passou a afigurar-se como uma característica típica da indiferenciação qualitativa operada pelo dinheiro transformado em meio universal de troca. Assim, a crescente velocidade das trocas, nas grandes metrópoles, provocaria nos indivíduos a também crescente indiferença devido ao estímulo permanente do meio urbano (STECHER, 1995). Para Simmel, as trocas monetárias com objetivo primordial do lucro não apenas produziam indiferença nos indivíduos em relação aos seus próximos como caracterizariam um movimento de dissolução das instituições tradicionais e relações sociais produzindo, por sua vez, um grande movimento de indivíduos no espaço. Nesse contexto, a relação monetária conectaria estreitamente o indivíduo com o grupo como um todo abstrato, mas colocando-o na mesma dimensão dos objetos, dissolvendo-o como personalidade própria. O dinheiro separaria o lado econômico da personalidade integral. Em sentido parecido ao fetichismo da mercadoria trabalhado por Marx, no primeiro volume de O Capital (1983), Simmel destaca que a frieza e a impessoalidade das trocas econômicas, que visam primordialmente ao lucro, transformariam os próprios indivíduos em coisas, objetos. As associações tornar-se-iam, nas sociedades modernas, calcadas nessa economia monetária, meras associações instrumentais motivadas pelo interesse do lucro. O dinheiro criaria, entre sujeitos e objetos, uma “desconexão objetiva” e na relação intersubjetiva, uma “desconexão pessoal”. Em ambos os casos, uma nova relação estaria sendo reconstruída a partir do uso do dinheiro na modernidade (STECHER, 1995, p. 184). Essa nova relação se caracterizaria pelo fato de que a personalidade individual seria afetada pelo próprio processo social calcado na troca objetiva e objetivante fazendo o indivíduo ver o outro como meio para alcançar seus fins: [...] o importante, entretanto, é que o dinheiro é percebido em toda a parte como fim e, com isso, muitas coisas que têm o seu fim em si mesmas são rebaixadas a simples meios. Ao mesmo tempo que o dinheiro, por definição, é o meio, os conteúdos da existência se colocam num profundo contexto teleológico sem começo e sem fim. (SIMMEL, 1989, p. 593 apud STECHER, 1995, p. 185). O estudo da coisificação do outro, presente na obra de Simmel, remete e ressalta o fato do surgimento de uma ética que concebe o mundo e o pró81 CÉSAR SABINO ximo como objetos a serem consumidos. A epifania da forma realizada pela publicidade e atualizada nas instituições de práticas de exercício ressalta o fato – como sugeriu Foucault (1997) – de que, em contraposição a outros tipos de liberalismo, a marca singular do liberalismo de origem norte-americana, enquanto teoria e prática econômica, é “a busca de estender a racionalidade do mercado a domínios não exclusivamente ou não prioritariamente econômicos” (1997, p. 96). A lógica solidária das trocas simbólicas não fundadas em uma economia que visa ao lucro, a todo custo, encontra-se afrontada pela mercado-lógica midiática que tem se estendido com sucesso para a maioria das relações sociais, inscrevendo-se no corpo e na pele de cada indivíduo das sociedades de consumo. Portanto, se no início o processo de racionalização e disciplinarização corporal estava relacionado a práticas e saberes religiosos, passando, logo após, para a administração estatal; hoje são o marketing e o mercado os novos senhores dessa administração. O puritanismo traveste-se de hedonismo produzindo uma espécie de repuritanização das práticas corporais (CAMPBELL, 1995; CASTRO, 2003). A repuritanização hedonística expressa um paradoxo que é o de associar a construção da saúde ao consumo de substâncias químicas – fármacos. Lutando para alcançar um ideal inalcançável, os indivíduos, cada vez mais, consomem produtos “mágicos” lançados no mercado com o suposto aval da ciência para aprimorar a saúde e a estética. Essa medicalização da sociedade tende a eleger o fármaco como fetiche, fórmula milagrosa que pode trazer a felicidade àqueles que não se enquadram nos padrões estéticos culturalmente estabelecidos. Além de sacralizar a ciência e a tecnologia, tal processo pode criar o mito da saúde perfeita (1995) e radica, no consumo dos produtos, a busca da felicidade. O problema está no fato de que, em uma sociedade causadora de doenças – e causadora justamente porque radica apenas na dimensão da economia econômica do lucro suas relações constitutivas –, as chances de saúde individual deparam-se, cada vez mais, com possibilidades mínimas (ILLICH, 1975). A crise de valores, sustentada no individualismo hedonista, consumismo, na competição acirrada e nos mecanismos de hierarquização e exclusão social, ameaça os elos de solidariedade social, gerando isolamento e sofrimento. Portanto, a noção de que a felicidade e/ou a saúde possam ser encontradas e compradas em consultórios, drogarias ou contrabandeadas em academias de fitness ressalta o paradoxo de uma época singular que busca a felicidade na própria ameaça da sua destruição. Junto ao fato da intensificação da mercantilização da vida no neoliberalismo, ocorrendo, por isso mesmo, o desmonte crescente da saúde pública em nome de interesses 82 DROGAS DE APOLO empresariais sem compromisso com a solidariedade ou com o bem-estar coletivo (CORDEIRO, 1980; 1984; BRAGA, 2018). 2.1 NO REINO DE DIONÍSOS De forma oposta a drogas como maconha, cocaína, heroína, entre outras, consideradas substâncias causadoras da perda de autocontrole, ocasionando suposta irresponsabilidade e violação de imperativos morais básicos, responsáveis pela concepção, por parte da sociedade e das instituições em geral, de que seus usuários são pessoas com conduta sem freios beirando à marginalidade, ou a um tipo de conduta que poderíamos denominar dionisíaca, o uso de esteroides anabolizantes apresenta, a princípio, processo inverso. Seus consumidores tentam construir, por intermédio do uso ritual e associando-o a pesados exercícios físicos, uma imagem de autodomínio, disciplina e racionalidade. Imagem que podemos denominar, de forma provisória, apolínea, na conduta e na forma musculosa (considerada saudável por muitos), já que as representações de saúde nesses grupos têm sido atualmente relacionadas à ausência de adiposidade e à musculatura rígida e aparente. Vale ressaltar que consumo de drogas quase sempre foi associado à transgressão das normas e à busca de supressão de estados percebidos como opressores de indivíduos e grupos, à contracultura e à busca de potencialização do prazer e reencantamento de um mundo desencantado, além de estar também associado à expansão triunfante da realidade psíquica (VELHO, 1998; PERLONGER,1994; BIRMAN, 1993; MORGADO, 1985; BECKER, 1971). Na Antropologia, mais especificamente, o uso das drogas poderia estar associado à teoria dos ritos e rituais, relacionando-se a experiências místicas, no caso da etnologia, ou de desvio perpetradas por determinados grupos que, de uma forma ou outra, tendem a promover uma espécie de suspensão momentânea da estrutura social dominante, seja para reafirmá-la ou para antever sua modificação, além de constituírem itens que podem estar presentes em ritos de passagem nos quais um indivíduo transita de um determinado status para outro (TURNER, 1974; DA MATTA, 1983; BOURDIEU, 1996). Em geral, essas abordagens tendem a ressaltar o aspecto dionisíaco desse costume, com a tendência de os estudos se deterem sobre a dimensão eufórica acionada pelo uso de substâncias psicotrópicas, referindo-se – no caso das sociedades complexas ocidentais – ao início dos anos 60 do século XX como período no qual houve significativa transição nos hábitos 83 CÉSAR SABINO de utilização de entorpecentes, na medida em que, por intermédio do que se constituiu como o movimento da contracultura, um novo ethos29 surgiu entre os jovens principalmente, no qual as drogas ilícitas passaram a ocupar posição estratégica de subversão da cultura dominante (SALEM, 1991). Elas representariam o acesso a um “outro mundo” causado pelas transformações perceptivas provocadas. Espécie de “fuga” do Sistema, e por vezes, resistência a ele, mesmo momentânea. Diversos grupos sociais iniciam o consumo de tóxicos regularmente, utilizando-os como parte de códigos éticos e estéticos precisos, inscrevendo esse uso em uma cultura na qual se supõe que a crítica e a negação de determinados valores tradicionais se realizariam ou, no mínimo, inscrever-se-ia em um comportamento hedonista contraposto a qualquer laivo de ascetismo (VELHO, 1998). As drogas tornar-se-iam “signo emblemático de uma visão de mundo underground” (BIRMAN, 1993, p. 5). Uma imagem da rebeldia e do descontentamento. Velho (1994), ao escrever sobre esse “mundo das drogas”, indica a necessidade de ressaltar a heterogeneidade desse mundo nas sociedades complexas. Segundo ele, não há como pressupor comportamentos e atitudes homogêneos sobre a utilização substâncias ilícitas, visto que existem categorias sociais e indivíduos que as consomem de modo diferenciado havendo “n maneiras de utilizar as substâncias, em função de variáveis culturais e sociológicas” (VELHO, 1980, p. 355). Múltiplos significados são atribuídos à utilização de diferentes tipos de drogas, e, de fato, às mesmas drogas. É possível afirmar que o uso contemporâneo de esteroides anabolizantes surgiu, principalmente, a partir da década de 70 do século XX, como uma nova forma de consumo de novas drogas apresentando a configuração de um novo objetivo e sentido no ato coletivo de consumi-las, portanto significando uma nova forma de ver o mundo e as relações sociais no meio urbano. Esse “mundo”, ou campo da musculação e do bodybuilding, da cultura física e boa forma, em geral, cada vez mais se afirma criando espaços próprios, com imaginário e rituais específicos, representando também a progressiva mudança de atitude e comportamento em relação ao corpo e ao que se considera nesses grupos como saúde. Como essas drogas são produtos diretos das indústrias farmacêuticas (remédios), e seu uso associa-se a uma dimensão institucional (a área da Saúde) e organizacional (as academias e espaços de práticas de exercícios), ligada ao saber médico ocidental, ocorre a tendência do senso comum, e dos meios de comunicação em geral, à geneEthos, de acordo com Bateson, é “a padronização culturalmente sistematizada de organização de emoções e instintos dos indivíduos”. Essa padronização está inseparavelmente associada à “padronização dos aspectos cognitivos da personalidade dos indivíduos”. Essa, por sua vez, ele denomina eidos. (2006, p. 70, 89, 93, 170-173). 29 84 DROGAS DE APOLO ralização de explicações baseadas em premissas biologizantes, ignorando o aspecto cultural da utilização dessas substâncias. O surgimento do novo uso de novos produtos que assumem significado muito específico para um determinado grupo social – grupo que é construído e constrói, simultaneamente, esses significados – aponta para um processo de constante mudança que caracteriza as culturas e sociedades, ou sistemas sociais instáveis como os nossos (LEACH, 2014). Mudança, porém, que atualiza no novo a plenitude do antigo, ao concretizar, por meio das constantes estruturas socioculturais, novas configurações coletivas variáveis. Sendo assim, o consumo de esteroides anabolizantes vem se enquadrando, de forma específica, nos mesmos parâmetros que configuram o consumo e o tráfico tradicional de drogas. Com a crescente estigmatização, as substâncias anabolizantes e androgênicas, em geral, tendem a se articular a atividades ilegais misturando-se a atividades oficiais de exportação e importação, apresentando-se como negócio promissor para “aplicadores de capitais [supostamente] menos éticos” (VELHO, 1994, p. 88). Também as tradicionais premissas culturais aplicadas ao uso de drogas dionisíacas têm sido atualizadas, apresentadas e reapresentadas pelo consumo coletivo de anabolizantes. Para esclarecer esse processo, faz-se necessário examinar melhor o que se denomina aqui uso dionisíaco de drogas, ou o que aqui se denomina drogas dionisíacas. Segundo Nietzsche (1992), a exaltação dionisíaca arrasta o indivíduo, e sua subjetividade, em direção ao esquecimento de si. Em sociedades primitivas, a droga, conjugada à dança e a rituais de cunho religioso, tem sido a via para a concretização da dimensão extática na qual o indivíduo, principium individuationis, dissolve-se momentaneamente na coletividade30. Esse aspecto, presente na primeira fase da obra de Nietzsche, foi aprofundado pelos estudos de Durkheim, que postularam a hipótese de um começo efervescente-extático das religiões. Os estados modificados de consciência, causados pelos usos de drogas, relacionados ao êxtase religioso e à procura de libertação momentânea da condição individual, sempre estiveram presentes Em seu clássico Patterns of Culture, publicado em 1934, Ruth Benedict utiliza as categorias nietzscheanas de apolíneo e dionisíaco para analisar a variação dos tipos culturais. Benedict ilustrará seu método estudando de modo comparativo dois modelos culturais contrastados, o dos índios Pueblo do Novo México, sobretudo os Zuñi (conformistas, tranquilos, profundamente solidários, respeitadores, comedidos nas expressões dos sentimentos) e o modelo dos seus vizinhos, os Índios das Planícies entre os quais os Kwakiutl (ambiciosos, individualistas, agressivos e até violentos, manifestando uma tendência para o exagero afetivo). Ela chamará o primeiro tipo de “tipo apolíneo” e o segundo de “tipo dionisíaco” considerando que esses dois tipos extremos, em maior ou em menor grau, ligavam-se a outras culturas e que entre as duas existiam tipos intermediários (BENEDICT, 2013, p. 85-107; CUCHE, 1999, p. 78). 30 85 CÉSAR SABINO em sociedades simples. Porém, nessas sociedades, especificamente, o uso de drogas está inserido em contextos institucionais nos quais a tradição do uso ritual reitera a afirmação das estruturas sociais objetivas e subjetivas. Já nas sociedades complexas ocidentais e ocidentalizadas, o uso de drogas representa, não raro, a busca de ruptura com tais estruturas, invertendo-as. Enquanto nas primitivas o uso ritualizado tende a reafirmar os valores e práticas culturais, nas complexas esse uso opera como linha de fuga e de rompimento desafiando normas e valores tradicionais e configurando uso marginal destas substâncias (PERLONGER, 1994). Pode-se detectar, no caso específico das sociedades ocidentais, durante os anos 60 e 70 do século XX, a existência dessas duas vias anteriormente mencionadas. É possível perceber o surgimento, nesse período, de movimentos contraculturais libertários que exaltavam a dimensão de uma mística dionisíaca representativa de uma certa “nostalgia do infinito” (PERLONGER, 1994, p. 18) ao buscar dissolver determinados aspectos do individualismo ocidental em movimentos e aspirações de cunho coletivista. Por outro lado, no cerne desse mesmo processo, surge simultaneamente uma espécie de “individualismo psicologizante-libertário” (SALEM, 1991, p. 62) apresentando a impossibilidade da ética moderna se livrar da radical oposição indivíduo/sociedade que a caracteriza. Os dois tipos de dionisismo, portanto, encaravam as estruturas sociais tradicionais como se cerceassem a possibilidade de um horizonte melhor para a humanidade. No entanto, suas propostas se diferenciavam, já que, enquanto um propunha a formação de novas estruturas mais coletivistas em contraposição ao individualismo consumista, o outro concebia como libertação a supressão, mediante o esforço individual, das estruturas que oprimiam os desejos individuais mais profundos. Para essa corrente, o mal-estar presente na sociedade capitalista estaria representado por qualquer tipo de coerção exterior. No campo intelectual, a tendência foi representada pelas teorias de Wilhelm Reich, Alexander Sutherland Neill, Herbert Marcuse, entre outros. Percebe-se, então, que é possível destacar dois tipos de comportamentos dionisíacos que se apresentavam, naquele período da história, um dionisismo coletivista e outro de cunho individualizante. O uso das drogas que nesse momento se propaga e se concretiza assume significado relacionado a tais posturas. Para os dionisíacos coletivistas, elas representariam a busca por uma socialidade mística, psicodélica, que dissolveria os ditames individualistas na busca por uma coletividade superior (hippies). Para os dionisíacos individualistas (junkies) a droga teria o fim de abrir as 86 DROGAS DE APOLO percepções individuais ampliando a busca pela atualização dos desejos, reiterando-os, ampliando-os e otimizando-os. Nessa última concepção, acabar-se-ia por fabricar “linhas de fuga ativas [...] que se embaralham, se põem a dar voltas em buracos negros, cada viciado em seu buraco” (DELEUZE, 1992, p. 68). Ao contrário do xamanismo, por exemplo, esse uso caracteriza, mediante a busca hedonista e narcísica da ampliação do desejo, a solidão drogada. Dessa vertente individualizante, outra corrente se concretizou e tem crescido a partir do final da década de 1970 e início dos anos 1980. Com o fim das utopias coletivistas e individualistas e a consolidação do império do mercado no neoliberalismo, que principia a partir dos anos 80 do século XX, surge o uso generalizado de novas drogas – não apenas dionisíacas, como maconha, crack, e as sintéticas, como o ecstasy (metanfetaminas) e o ácido LSD –, mas drogas apolíneas (esteroides anabolizantes)31 que, em um contexto totalmente diverso, passam a simbolizar posturas, visões de mundo e práticas sociais distintas e, algumas vezes, opostas às representações coletivas presentes nas sociedades das décadas de 60 e 70 do século XX. É o princípio da consolidação do corpo-vitrine, corpo-empresa, corpo-capital a ser trocado no crescente mercado de imagens a se consolidar com a quarta revolução tecnológica ou revolução informática. O fim das utopias coletivistas dá início a um individualismo radical que vê, na instrumentalização do corpo e da forma, a via de afirmação do instante e tem na representação social da saúde a chave para uma nova utopia do agora. A concepção de saúde-mercadoria, muitas vezes reiterada pelos usos e abusos da medicina estética, acaba por corroborar com a transformação do corpo em objeto descartável, pois implantes de órgãos e próteses diversas cada vez confundirão mais a fronteira do que é mineral e máquina do que é vida biologicamente organizada (LÉVI, 1996). Também o uso do conhecimento científico, no caso específico o das ciências biológicas e médicas, traduzido, dentre outras coisas, em remédios, suplementos alimentares e vitamínicos por ele produzidos, serve à composição da poderosa e crescente indústria Também são sintéticas, posto serem na verdade remédios vendidos sob prescrição médica. Necessário se faz ressaltar que o uso das substâncias apolíneas não exclui, por parte de indivíduos e grupos, a utilização das dionisíacas. Ao que indicam as observações, competidores de fisiculturismo, ou culturismo, vêm realizando, cada vez mais, a mistura das duas. Seria preciso sugerir também uma pesquisa profunda que analisasse o uso de drogas sintéticas (dionisíacas) pelas “tribos eletrônicas”, produtoras de raves e festas (rituais), nas quais essas substâncias, de forma similar aos marombeiros, apresentar-se-iam como elemento crucial de construção de identidade volátil dessa outra tribo urbana. Entretanto, esse estudo daria outro livro. 31 87 CÉSAR SABINO da saúde32, fornecendo os itens para a construção de um sistema simbólico no qual dogmas, crenças e substâncias produzem (e são produzidas por) um crescente comércio-adoração de imagens, formas e juventude. Em uma cultura na qual o entretenimento, o consumismo e a publicidade tornam-se pilares existenciais, a espetacularização passa a constituir o cotidiano dos indivíduos preocupados com seu marketing pessoal. O corpo, além de representar a verdade deste indivíduo, é também sua vitrine. A imagem por ele exposta pode apresentar-se como suposta via para o sucesso ou fracasso. Diante do imperativo de permanecer sempre jovem, forte, magro, bonito e com aparência saudável, muitas vezes não há hesitação em consumir drogas, exercícios e produtos com o objetivo de otimizar essa vitrine-máquina que sustenta a esperança individual da vitória na guerra intermitente pela conquista da felicidade prometida pelo consumo cotidiano. 2.2 DROGA HIERARQUIZANTE A pesquisa sobre os praticantes assíduos de musculação (marombeiros, fisiculturistas ou bodybuilders) pode servir como amostra desse processo mais amplo de construção do corpo e uso de fármacos visando a construir a imagem de si como capital de troca em um mercado de bens da forma cada vez mais presente na cultura hodierna. Esse grupo, posso dizer, é a síntese desse movimento de paroxismo imagético realizando em si uma espécie de síntese das práticas relacionais de construção da forma enquanto signo de saúde. Em uma época em que a velocidade predomina entre as multidões anônimas, o corpo musculoso do fisiculturista marca presença, destacando-o do anonimato por sua forma, seu tamanho e peso, promovendo o espetáculo da suposta força e hipervirilização radicada na estética. O bodybuilder Essa indústria é composta por grandes impérios multinacionais de medicina, academias de ginástica, e musculação e indústrias farmacêuticas, formando um novo maquinário do lucro capitalista que fabrica itens não apenas concretos de consumo, mas também simbólicos, por intermédio da propaganda e do marketing, alimentando o mercado internacional da adoração à saúde, medicamentalização e domínio das instituições de saúde (SFEZ, 1995; ILLICH, 1975; 1992; LUZ, 1986). Um exemplo claro é, como já o citamos, o do grupo Weider. Fundado, no final da década de 30 do século XX, por um rapaz de entregas aficionado por músculos, Joe Weider. Empregou, em 2003, mais de 2000 funcionários, entre eles cientistas, e é atualmente a mais poderosa multinacional de bodybuilding do mundo, produzindo máquinas de musculação e pesos, produtos nutricionais, filmes, revistas especializadas (Flex, Muscle e Fitness, Shape etc.) e o maior e mais respeitado campeonato de bodybuilding do mundo, o Mister Olympia, criado pelo próprio Weider, além de ser ele também o fundador da Federação Internacional de Bodybuilding presente em 136 países (COURTINE, 1995). De certa forma, os irmãos Weider foram os principais agentes de consolidação da profissão e da formação do campo – no sentido conferido por Bourdieu – das práticas de musculação e bodybuilding. 32 88 DROGAS DE APOLO pode ser considerado a exemplificação exacerbada das representações e práticas do corpo presentes em nossas sociedades. Ele se apresenta não apenas como um laboratório ambulante para os testes de uso de esteroides e seus efeitos, como representa o paroxismo de uma cultura que tem tido obsessão pelos invólucros corporais. Mas como é produzido socialmente esse ícone da massa muscular? A construção da pessoa ou da identidade de marombeiro, ou fisiculturista, realiza-se por intermédio de um processo de aprendizagem de socialização no que denomino campo da musculação. Utilizo a categoria campo em conformidade com a teoria de Bourdieu. Para o autor, campo se refere aos espaços sociais nos quais se manifestam e se reproduzem relações de poder simbólico e material. O campo se organiza a partir da distribuição desigual de capitais, e a quantidade de capitais33 que um indivíduo detém determina sua posição (influência, status e poder), na hierarquia desse espaço de relações em geral profissionais, mas não apenas. A sociedade é formada por inúmeros campos que, por sua vez, apresentam-se como sistemas nos quais as estruturas simbólicas e práticas se coadunam produzindo e sendo produzidas pelas práticas, disputas e ambições dos agentes sociais em busca de aquisição de capitais e ascensão social ocupando os papéis de destaque e liderança. É justamente a luta produzida por essa busca que produz, por sua vez, a dinâmica do sistema, ou dos campos, (BOURDIEU, 1986). É possível afirmar que o campo da musculação se insere nos espaços das academias e é hierarquizado tendo como base determinados papéis que os indivíduos ocupam na estrutura desse campo. Esses papéis, tendo em vista a volatilidade das relações sociais contemporâneas, podem ser considerados também tipos ideais. Tipos ideais, ou tipos puros, são modelos abstratos criados pelo pesquisador a partir de elementos observados como os mais importantes e frequentes na realidade estudada. O pesquisador abstrai e exagera esses elementos, ou características, separando-os mentalmente de outros e construindo com eles um tipo puro; ou seja, um tipo que não existe com todas suas características na realidade empírica, mas serve como ferramenta teórico-metodológica auxiliar para sua compreensão. Por exemplo, no que diz respeito às relações de poder e dominação, Weber reitera que, nas sociedades complexas, pode-se, a partir da observação histórica, destacar elementos do contexto observado, criando três tipos puros ou modelos de lideranças políticas relacionadas ao exercício da autoridade: 1) o modelo da dominação tradicional, O material e monetário (bens imóveis ou móveis), o social (influência ou conhecimento pessoal), o cultural (educação), ou de competência, (capacidade de realização de algo singular em um determinado contexto ou situação) etc. 33 89 CÉSAR SABINO ou patrimonialista, no qual o líder ocupa cargo por hereditariedade e comanda por sacralidade, inexistindo “a coisa pública”, pois o aparato administrativo é percebido como pertencendo ao líder, seus familiares e pessoas próximas; 2) o modelo carismático, ou da liderança messiânica, na qual o líder devido à sua personalidade agregadora e mesmo mágica adquire autoridade acima das leis, até mesmo transformando-as. Sobre esse modelo se sustenta com frequência a esperança da redenção popular, posto que o líder apresenta a autoridade de modificar estruturas administrativas enquanto mantém o apoio popular como um “salvador” ou libertador guiando-os à uma idílica terra ou condição da redenção; 3) o modelo racional-legal, no qual o líder político é um cidadão, em geral eleito, servidor público temporário, exercendo mandato, o qual está submetido às leis de um sistema jurídico científico, portanto racionalizado. A máquina pública e a estrutura do Estado devem ser independentes dos governos, assim como em relação a todos os outros líderes, existindo por conta própria e sendo regida por leis universais que a todos submetem. Esses tipos puros ou ideais são abstrações metodológicas, não ocorrendo na história nenhum momento no qual apenas um tipo sozinho tenha existido independente dos outros, visto que na realidade os três tipos em geral estão misturados. Em alguns momentos histórico-sociológicos, um tipo demonstra destaque ou presença mais acentuada no contexto social do que outro tipo (WEBER, 1992; 1997). De forma similar, nas academias de musculação, os três tipos ideais aqui brevemente descritos (fisiculturista, veterano e comum) são tipos puros, já que constantemente variam em condição e situação nas relações sociais que podem apresentar a maior ou menor presença de um ou outro tipo. Resumo em três os tipos ideais relacionados aos papéis sociais referidos aos comportamentos e à forma física de homens e mulheres. Classifiquei-os seguindo sua ordem hierárquica, tendo em vista que, para o grupo, a autoridade está diretamente associada à forma física e a todo o saber e prática envolvidos em sua construção: 1) os fisiculturistas: senhores do campo, são atletas semiprofissionais ou profissionais que exibem musculatura exercitada ao limite máximo, durante anos, até a distorção, ou quase, para quem não pertence ao cotidiano do grupo. Possuem um conhecimento efetivo (capital de competência) de como produzir um corpo musculoso e, não raro, são os que sabem onde se adquire esteroides anabolizantes e outra substâncias importantes, além de um vasto conhecimento de dietas e exercícios. Muitas vezes disputam a legitimidade de seu discurso com aquele dos professores de Educação Física graduados universidades, não reconhecendo sua auto90 DROGAS DE APOLO ridade em relação às práticas bodybuilders. Os fisiculturistas, por sua vez, também, não costumam reconhecer a autoridade dos professores dizendo que “o conhecimento deles se resume à teoria”. Representam, em sua forma física, o modelo de masculinidade hegemônica ampliada, isto é, são os maiores em dimensão corporal nas academias. Exercitam-se pelo prazer de se exercitar. Seu objetivo é o cultivo de músculos cada vez maiores. São os que mais consomem drogas masculinizantes e constituem o menor grupo de status (WEBER, 1995) nas academias; 2) os veteranos: são indivíduos com massa muscular considerável, porém distante daquela exibida pelos anteriores. É o grupo mediano, constituído por indivíduos que já têm alguns anos de prática de musculação. Consomem esteroides esporadicamente e têm como objetivo “manter o corpo bonito”, o que indica uma espécie de instrumentalização corpórea diferente daquela comum entre os fisiculturistas que desejam, acima de tudo, crescer cada vez mais. Os veteranos seriam o exemplo mais claro da masculinidade hegemônica, pois não são homens comuns, como a maioria, nem ostentam musculatura ampliada ao máximo possível, como os fisiculturistas. Segundo as mulheres ouvidas, são os que possuem o corpo mais bonito, o que lhes confere, ao menos no mercado sexual, um considerável capital corporal; 3) os comuns: esse é o grupo maior; constituído por todas aquelas pessoas sem físico atlético. Nesse grupo podem ser enquadrados os magros, muito magros, os esbeltos, os gordos, gordinhos, muito gordos, e assim por diante. São a maioria no campo e não desfrutam de capital de competência nem capital corporal. Em geral, são novatos que entram nas academias quando o verão se aproxima ou têm pouco tempo de prática de musculação (SABINO, 2000b). Em relação aos papéis femininos, a hierarquia é parecida. Os papéis são os seguintes: 1) as fisiculturistas: seguem o mesmo processo que os homens na construção de um corpo musculoso. Chamam atenção, mesmo nas academias, pelo seu tipo físico que, em alguns aspectos, pode se aproximar da forma do fisiculturista masculino. Embora muito admiradas, consultadas e seguidas em suas proposições pelos bodybuilders – homens e outros alunos e alunas –, pode-se dizer que, fora do contexto das práticas corporais e da musculação, são estigmatizadas, fato eloquente que sugere questões relacionadas à construção de gênero e aos preconceitos relacionados a elas em nossa sociedade, que sustenta e impõe padrões estéticos que configuram a binaridade dominante. Aquelas que fogem ao modelo situam-se à margem da categorização popular representando o inclassificável, e mesmo temeroso (DOUGLAS, 1976; GRIVET, 2019). 91 CÉSAR SABINO Para conseguirem sua musculosidade, podem vir a utilizar esteroides e, não raro, têm anos a mais de musculação que os fisiculturistas masculinos. Escutei relatos nos quais diziam que por vezes eram confundidas em estabelecimentos públicos com as travestis, devido a sua aparência musculosa. Necessário se faz ressaltar que, apesar dessa aparência masculina, não percebi, durante as entrevistas ou observações participantes no contexto estudado, qualquer fisiculturista feminina alegadamente homossexual ou bissexual – talvez por já sofrerem preconceito em relação à forma física preferem não aprofundar particularidades pessoais. Aquelas com as quais travei contato eram casadas com fisiculturistas homens ou mantinham algum tipo de relacionamento com esses. Essas mulheres não desempenham, como os homens bodybuilders, um papel ativo no domínio do campo. Em número muito inferior que os fisiculturistas, limitam-se a acompanhá-los ou ajudar outras mulheres desempenhando a função de treinadoras particulares eventuais. Retirando a opinião dos fisiculturistas e outros aficionados, além de algumas mulheres, os outros homens pesquisados disseram não admirar muito o padrão estético dessas mulheres, da mesma forma que as mulheres, em sua maioria, – excetuando-se as fisiculturistas – disseram não gostar do excesso de músculos dos fisiculturistas homens; 2) as veteranas: são denominadas “gostosas” nas academias, segundo os pesquisados. São aquelas que têm “o corpo sarado”, como dizem. Deve ser ressaltado que essas mulheres são as que “mandam” no campo. Exercem o poder de dominação na economia das trocas imagéticas, já que ostentam o padrão estético tido como exemplar pela cultura dominante e veiculado por toda a indústria cultural. Seu poder, contudo, diferentemente do masculino, reside totalmente em sua estética, em sua forma corporal. São invejadas e tidas como modelo por aquelas que desejam construir forma física ao menos parecida à delas, e desejadas pelos homens das academias, que não perdem oportunidade de lhes dedicar toda atenção, quando solicitados ou não. O tipo veterana pode ser dividido em dois subtipos: a) a magra, que cultiva músculos com menor intensidade; e b) a forte, mais musculosa. As veteranas constroem o papel de mulheres ativas e independentes que desejam reconhecimento pela sua capacidade profissional, liderando empreendimentos. A beleza entra nesse processo como um item de auxílio à ascensão quando necessário e como um processo de autoconstrução de identidade. O “sentir-se bem consigo mesma, com seu corpo” é um estado mental muito valorizado que dá sensação de poder calcado na autonomia. Dentre os inúmeros relatos de veteranas, este pode indicar o que foi dito anteriormente: 92 DROGAS DE APOLO Meu namorado me deu um ultimato: ou eu, ele disse, ou a academia. Não pensei duas vezes; terminei o namoro de seis anos. Foi difícil, porque seis anos não são seis dias. Mas a minha liberdade não tem preço. Eu venho pra academia seis vezes por semana, deixo de comer uma porção de coisas pra ficar com o percentual de gordura baixo e faço isso já tem quatro anos. [...] Não vou parar por causa de homem que no fundo quer aquela mulher que ninguém olha (porque ele tem medo de perder) e que vai ter filhos e ficar engordando em casa enquanto ele tem amantes na rua. (Patrícia. 24 anos. Advogada). O terceiro tipo da hierarquia feminina nas academias de musculação é o comum que segue, mutatis mutandis, o mesmo processo masculino: são gordas, gordinhas querendo emagrecer, magras, magérrimas querendo “ganhar massa muscular” ou mesmo – e aqui já há uma diferenciação em relação aos homens – mulheres com o corpo em forma apenas querendo manter seu estado físico. Outro aspecto deve ser ressaltado em relação às fisiculturistas mais especificamente. São o exemplo mais radical de masculinização estética, posto consumirem anabolizantes androgênicos a ponto de, algumas vezes, necessitarem mesmo fazer barba ou depilação frequente dos pelos faciais. Essa busca por construir uma identidade viril provoca com frequência processo inverso, causando-lhes deterioração da identidade já que passam a ser vistas como homossexuais ou mesmo confundidas com as travestis: […] eu tava muito grande, igual um homem, tava tomando bomba direto... Hemogenin todo dia, Durateston e Testex toda semana, e malhava feito louca, ficava na academia no mínimo três horas por dia de domingo a domingo. Me enchia de clara de ovo, tomava 280 claras toda semana, 40 por dia [...] estava enlouquecendo, só queria malhar, malhar e malhar, não me preocupava mais com nada a não ser crescer. Só pensava no meu corpo... Nenhum cara queria nada comigo, e eu não sou ‘sapatão’ [...] todos me olhavam, porque eu chamava atenção, mas era porque eu tava estranha [...] parecendo um macho. A gota d’água foi quando entrei no banheiro d’um shopping e as garotas que tavam lá dentro disseram que ali não era banheiro de homem [...] acabaram chamando o segurança. Ele veio e disse que era ‘um absurdo travesti [...] querendo ir ao banheiro [feminino]’. Depois disso, entrei em depressão. Já tava percebendo que alguma coisa não tava certa nessa história. [...] Comecei a fazer terapia, análise, a me cuidar, a tentar organizar meu corpo [que] tava totalmente doido [...] não menstruava, sentia enjoo, não dormia, tive que tomar hormônio, só que agora feminino. Quase morri, porque me dei conta do como eu tava estranha 93 CÉSAR SABINO e comecei também a passar mal do fígado [...] só conseguia me relacionar com algumas pessoas da academia, meu mundo se resumia a essas paredes aqui, mais nada. (Roberta. 38 anos. Instrutora de musculação). Esse impacto, causado pelo surgimento de uma espécie de identidade dissolvida pode ser percebido no discurso de algumas fisiculturistas que, ao construírem seu corpo, subvertem os códigos de classificação da sociedade hegemônica. Apresentando-se, fora do contexto dos bodybuilders, como signo da duplicidade, da ambiguidade, do estranho, elas acabam cerceadas pela maioria das pessoas, ficando sem papel social reconhecido, ou melhor, são enquadradas em papéis sociais ambíguos. Esse processo acaba por confiná-las ao grupo de amantes dos pesos e da forma, fazendo-as, em determinadas circunstâncias, perder a identidade e, consequentemente, a aceitação social plena (GOFFMAN, 1982). Se esse papel pode se apresentar, por um lado, como uma afirmação da mudança social e da independência da mulher, por outro, ele também pode significar a afirmação do modelo hegemônico masculino como superior e único, portanto como negação da diferença e afirmação autoritária do modelo androcêntrico. Nesse aspecto, as fisiculturistas deparam-se com um paradoxo que pode levar à afirmação do Mesmo posto que a possível busca pela emancipação, nesse caso, remete a um mundo comum onde a masculinidade hegemônica é o centro dominante. Em vez de negá-la, ao menos parte desse movimento pode querê-la para si, o que acaba reproduzindo as mesmas relações de poder em termos trocados. As fisiculturistas que assim o fazem correm o risco de não se emanciparem de fato, visto que ela não pode se constituir imitando aquele que a impede. Como processo de subjetivação, ela deve ser um movimento de produção de singularidades, uma linha de fuga para fora da binaridade homem padrão/mulher padrão. Nesse caso, talvez fosse preciso desenvolver práticas de multiplicação de “identidades” que são o oposto da afirmação do modelo dominante absorvido pelo dominado como padrão ético-estético. Esse movimento desenvolver-se-ia como processos de subjetivação heterogêneos, identidades nômades que se abririam a um devir múltiplo ou atualização dos mil sexos moleculares que alma humana encobre: lésbicas, transexuais, transgêneros, gays etc. (LAZZARATO, 2006, p. 210; BALCONI, 2018; DELEUZE; GUATTARI, 2012). Sem embargo, nesse caso, [...] a constituição do sujeito político é uma ‘desidentificação’ que não pode desenvolver-se a não ser como proliferação de mundos possíveis que escapem deste ‘mundo comum e 94 DROGAS DE APOLO partilhado’ que está no fundamento da política ocidental. Para recolocar em xeque as designações identitárias, deve-se deixar de acreditar na ideia de que só há um mundo possível [e um Universal ou uma Identidade absoluta] (BALCONI, 2018, p. 142). Isso não equivale dizer que manter um corpo musculoso sendo mulher necessariamente leva à afirmação do androcentrismo ou da masculinidade hegemônica; de forma alguma. Não é a estética corporal em si mesma que afirma o Mesmo, ou a identidade dominante, mas subjetividade, ética, valores. Construir corpo musculoso mantendo a visão de mundo dominante é reproduzir as relações de dominação, porém o mesmo provavelmente não ocorre se representações sociais, ou processos de subjetivação, forem modificadas. 2.3 APOLO - REI Já foi dito que considero o consumo de esteroides anabolizantes um novo tipo de consumo de drogas. Consumo esse que aponta para um ethos ascético com profunda preocupação de integração aos valores constitutivos da cultura dominante combatidos anteriormente pelos grupos da contracultura. Nesse processo, parece ocorrer também, tanto por parte de homens quanto de mulheres, a busca reforçada de uma ética masculinizante que se rebate, não apenas nas atitudes, nas práticas, mas também no plano simbólico, inscrevendo-se em uma estética corporal que valoriza a prática do cultivo muscular e hierarquiza a realidade a partir de valores relacionados a esse cultivo. Esses valores, radicados na afirmação daquilo que Connel (1995) e Vale de Almeida (1995) denominam masculinidade hegemônica, relacionam-se frequentemente ao consumo de drogas específicas associado à prática de exercícios físicos e ao culto ao corpo, destacando o surgimento de “novas” representações sociais relacionadas às concepções de saúde, beleza, sucesso e aceitação social. O uso dessas substâncias (que no Brasil só devem ser adquiridas com a apresentação da receita médica, como mandam as autoridades legais), as quais denomino drogas apolíneas, coloca a princípio seus usuários na categoria de desviantes (BECKER, 1971). Apesar disso, o processo de utilização de tais drogas se realiza em contextos e visões de mundo diferentes daquelas comumente associadas aos usuários tradicionais de tóxicos. Os indivíduos que “tomam bombas”, como eles mesmos dizem, têm, em geral, o desejo de integração à cultura dominante. Seu “desvio” se 95 CÉSAR SABINO realiza por intermédio de um processo que se constitui como tentativa de enquadramento no sistema social dominante. Processo de construção do corpo em que a forma física apresenta-se como atitude de não desvio. A utilização dessas drogas proibidas para a construção de um corpo musculoso se faz não com o objetivo de subversão sistêmica, mas sim como tentativa de se harmonizar com os padrões estéticos vigentes na cultura dominante; sintonia que possibilite aquisição de status, não apenas no interior do grupo, mas na sociedade geral. Assim, os marombeiros fogem, ao menos momentaneamente, ao estigma, enquanto incapacidade de aceitação social. Estigma que ameaça os usuários tradicionais de drogas dionisíacas. Isso se realiza porque a estética que os usuários de drogas apolíneas constroem por intermédio do uso dessas não está associada ao desvio e à marginalidade, embora seu produto de consumo para manutenção da forma física, de certa forma, esteja. O bodybuilder então é um “desviante” peculiar, pois não é alguém “visivelmente estigmatizado que prova uma situação de interação social angustiada” (GOFFMAN, 1982, p. 27). Ele desvia para se integrar, como, de certa forma, atesta o discurso de um informante fisiculturista: [...] os marombeiros de verdade [os fisiculturistas] não vão contra a ordem, contra a natureza. A sua natureza. Eles apenas fortalecem ela, ajudam ela aumentar seu potencial para se tornarem seres maiores e mais fortes. Vencedores. E isso é natural[...]É isso que a natureza quer[...] não se sentem envergonhados com seu corpo masculino, têm orgulho dele, isso é normal! Por isso é que querem manter e aperfeiçoar esse corpo. Então, é a maior hipocrisia esse negócio de proibir anabolizante. A maconha, a cocaína, a heroína, vá lá [...] elas acabam com o cara [...] a gente só quer é manter a saúde [...] e, se o cara souber usar, ele não vai ter problema nenhum. Eu uso “bomba” há 12 anos e nunca tive nada, porque eu me cuido, sei usar... ilegal, então, deveria ser o implante de silicone, dessas porcarias que essas patricinhas e dondocas tão fazendo... também o cara que corta, que opera o pinto pra virar mulher, isso sim é ilegal porque é antinatural [...]” (Bruno. 29 anos. Atleta e segurança). Esse discurso da normalidade, negacionista dos males provocados pelos esteroides, homofóbico, heterocentrado e normativo, naturaliza o que é social, indicando que o fisiculturista – ao menos parte significativa deles – não deseja “fugir do sistema, lutar contra ele”, “viajar” para outra dimensão ou “encontrar uma verdade dentro de si”, como fazem alguns dos usuários de drogas dionisíacas. Construir um mundo igualitário e 96 DROGAS DE APOLO mais justo também não faz parte de suas concepções de relações sociais. O bodybuilder pretende tornar-se vencedor, ícone de sucesso, representante de homem tradicional, bem-sucedido, colocando-se dentro dos parâmetros estabelecidos pela ordem entendida por ele como natural ou normal. Suas representações de saúde e harmonia naturalizam a construção social que ele faz de seu corpo, de sua visão política e de relação social. Sua viagem – se é que assim pode ser chamada – é a do esforço para reforçar e conservar as normas e os valores da cultura dominante. Ele, para ser o que é, tem que estar em conformidade com os padrões estéticos dominantes e buscar otimizá-los, preservando-os, ou aprimorando-os, sistematicamente. Suas novas representações e práticas só são novas se comparadas ao ethos mais acentuadamente hedonista e desviante peculiar aos usuários das drogas dionisíacas (VELHO, 1998). O fisiculturismo, ao menos a partir de sua consolidação nas décadas de 70 e 80 do século XX, pode ser considerado uma prática esportiva eivada de valores conservadores e mesmo neoliberais. O autoempreedimento de si, o corpo como vitrine, a imagem como negócio, o consumo conspícuo da própria vida em um trabalho incessante e, muitas vezes, sem amparo, o empreendedorismo individualista, a competição acirrada, o sucesso a qualquer custo e a total despreocupação com o próximo são elementos comuns do discurso e das práticas desse grupo. Tudo isso, porém, não impede que esporadicamente, ou mesmo frequentemente, alguns dentre esses indivíduos utilizem drogas dionisíacas, embora raramente de forma recreativa, com o objetivo estético. Até o ano de 1998, as “bombas” podiam ser compradas sem qualquer tipo de impedimento em farmácias por qualquer pessoa. Com o gradativo aumento de casos de morte de usuários, além de câncer, falência hepática, entre outros problemas noticiados pela imprensa, afora distúrbios de personalidade, o governo federal proibiu a venda dessas drogas para pessoas sem autorização médica e impôs, mesmo aos médicos, um limite de prescrição aos pacientes e passou também a combater a entrada no país de anabolizantes importados (art. 28 port. 344/98), por reembolso postal e tráfego aéreo, meios utilizados pelo narcotráfico para burlar a legislação. Já que o consumo encontra-se, cada vez mais, limitado por leis que fazem da posse e do uso, ou venda, dessas drogas um delito sancionável penalmente, o consumo frequente dessas substâncias tem ficado, cada vez mais, restrito, limitando a distribuição a fontes ilícitas dificilmente acessíveis às pessoas comuns, além de promover o fortalecimento de um mercado negro que envolve desde o tráfico internacional até donos de farmácias que 97 CÉSAR SABINO vendem essas substâncias. Com efeito, para que alguém possa começar a utilizar “bombas”, deve também iniciar sua participação em um grupo que “se encontra organizado ao redor de uma série de valores e atividades” (BECKER, 1971, p. 65), compartilhando o ethos desse grupo. Fora que os esteroides não são utilizados sozinhos, mas sempre acompanhados de outros fármacos, de dietas e suplementos alimentares. Fato é que quanto mais profissionalizado o campo se torna, mais o uso de substâncias ilícitas aumenta, causando muitas vezes mortes. Em 1995, por exemplo, foi veiculada a notícia da morte do alemão Andreas Münzer, 30 anos, campeão mundial de fisiculturismo, devido à falência hepática pelo uso de anabolizantes. Em 1998, o fisiculturista brasileiro Enzo Perondini, 35 anos, foi à imprensa denunciar o tráfico de drogas nas academias dizendo que estava com câncer de fígado devido ao uso contínuo dessas substâncias. Em 1999, a imprensa anunciou a morte da tricampeã brasileira de fisiculturismo Lúcia Helena Gomes, 33 anos, também por falência hepática devido ao uso de esteroides anabolizantes. Do ano de 2003 em diante, as mortes de fisiculturistas têm aumentado – apenas os mais famosos são noticiados, em geral profissionais. No dia 2 de julho de 2005, morreu, aos 37 anos, o competidor Paul de Mayo, por uso de esteroides com heroína. Em 25 de agosto de 2017, foi a vez do bodybuilder estadunidense Rich Piana, resgatado em casa após sofrer um colapso cardíaco. Foram encontrados 20 frascos de esteroides anabolizantes em sua residência, e sua namorada relatou que ele havia sido viciado em ópio e cocaína. A fisiculturista australiana Meegan Hefford, de 25 anos, também morreu em 2017 por problemas renais relacionados não apenas ao uso de esteroides, mas também ao uso excessivo de suplementos proteicos. Em 17 de agosto de 2014, morreu Mike Matarazzo, que já havia passado por operação cardíaca devido ao uso de esteroides e outras substâncias. Em 19 de setembro de 2019, o fisiculturista inglês, Ben Harnett, 37 anos, morreu por uso contínuo de esteroides e cocaína. No Brasil, o fisiculturista Mateus Ferraz, 23 anos, campeão paulista e brasileiro, também morreu pelo mesmo motivo, em 27 de setembro de 2016. Em 22 de agosto de 2017, o estadunidense Dallas McCarver, 26 anos, morreu de ataque cardíaco enquanto se alimentava. A princípio não relacionaram sua morte ao uso de esteroides, porém sua autópsia acusou problemas renais, hepáticos, câncer de tireoide e parada cardíaca por uso excessivo de esteroides. Em 2013, morreu Nasser El Sombaty, 47 anos, conhecido mundialmente como um dos maiores fisiculturistas profissionais, por falência renal devido ao uso prolongado de esteroides. Nascido na Alemanha, filho de um egípcio, Sombaty era fluente 98 DROGAS DE APOLO em cinco idiomas e formado em História, Sociologia e Ciência Política, conhecido, por isso, como “o professor”. A lista é grande e não para de crescer, mas são noticiados, como disse, apenas os mais destacados e famosos e quase nunca os amadores. Assim, ainda há: Daniele Secarecci, 2013, 33 anos; Luke Wood, 2011, 35 anos; Art Atwood, 2011, 37 anos; Mat Duval, 2013, 40 anos; Ed Kavac, 2016, 51 anos; Ed Van Amsterdan, 2014, 40 anos. Alex Azarian, 2015, 45 anos. É preciso reiterar que esses são fisiculturistas famosos, a maioria no mundo todo; a quantidade mortes certamente é muito maior se for levado em conta os fisiculturistas amadores espalhados pelo mundo. Eu mesmo, durante o período que frequentei as academias, presenciei a morte de dois fisiculturistas do sexo masculino e uma fisiculturista. Enfim, morrer de overdose, por esteroides anabolizantes misturados com outros fármacos e drogas recreativas ou dionisíacas, coadjuvantes, é acontecimento comum que faz parte da existência do grupo. Sacrifícios humanos necessários para manter a tradição e a ordem do ritual suicidário característico dessa tribo urbana. A ética ascética dos marombeiros se configura como atitude peculiar da “geração saúde” fisicalista em que a instrumentalização de substâncias tóxicas não passa apenas pela busca efetiva do entorpecimento. A contradição é que a busca pela saúde como ideal pode levar ao adoecimento e à morte. Nem todos os praticantes de academias de fisiculturismo podem ser considerados, devido a sua idade, membros exemplares da “geração yuppie” (young urban professionals) ou “geração fim do milênio”, mas compartilham, em geral, valores radicados na construção de uma aparência muscularmente “saudável” com todas as suas consequências. Esses indivíduos sustentam um ethos no qual há ausência de utopias sociais, aceitam a sociedade “tal como ela é”, demonstrando, não raro, visões politicamente conservadoras, não objetivando construir nada de diferente do que já existe. Não se posicionam à esquerda do espectro político como o grupo dos fumantes de maconha e consumidores de cocaína, “vanguardistas-aristocratizantes”, estudados por Velho (1998, p. 186), nem hedonistas ao modo do grupo de surfistas consumidores de marijuana, também por ele estudados. São indivíduos que apenas “querem subir na vida”, ascender economicamente e conseguir sucesso no que fazem, olhando com total desconfiança atitudes que não sejam compatíveis com sua ética individualista da disciplina. São pessoas pragmáticas, que não dão muito valor à erudição e sim ao conhecimento prático que possa trazer retorno financeiro rápido. De fato, há mesmo, entre eles, um anti-intelectualismo. Em geral, são profissionais liberais (advogados, administradores, engenheiros, entre outros), estudantes universitários e 99 CÉSAR SABINO alguns secundaristas. Enfim, tais pessoas são representantes de uma classe média carioca que tem como utopia única a utopia urbana – segundo Velho (1978) – de “morar na Barra da Tijuca”34, ostentando o status de “emergente” ou novo rico; em geral apresentando propensões políticas à direita. Talvez seja possível afirmar que transitamos da chamada “geração cabeça”, da década de 60 do século XX, para a “geração saúde” do início de milênio. Geração que busca, na ostentação da forma, a demarcação das intensas diferenças sociais presentes na sociedade brasileira, inscrevendo, em seus corpos, as visões e divisões de mundo que remetem às relações de poder e dominação constitutivas da sociedade a qual pertencem. 2.4 ENTRE APOLO E DIONISOS Seria exemplo de ingenuidade acreditar na separação estrita entre os usuários de drogas dionisíacas e apolíneas incorrendo no erro de confundir o modelo da realidade com a realidade do modelo. Essas categorias são tipos ideais e não passam de uma acentuação, um exagero, de determinadas características que não estão presentes, de forma pura, na realidade social (WEBER, 1997). Portanto, se parecem expressar um binômio estático, isso é um engano. Tal ilusão é proveniente de serem categorias com limitações peculiares inerentes à linguagem científica que busca, ao menos nesse caso, uma aproximação compreensiva de uma realidade sempre dinâmica e, por vezes, fugidia. Sendo assim, é necessário ressaltar, por exemplo, que o grupo de indivíduos classificado como apolíneo não apresenta sempre a conduta aqui relatada como constituindo um tipo de socialização. Ocorre, muitas vezes, trânsito entre o consumo de drogas, o que ressalta o fato de que a divisão proposta não pode, e não deve, ser estática. Alguns bodybuilders transitam do uso do Deposteron e da Deca Durabolin, por exemplo, para a maconha, não apenas com o objetivo de inverter as estruturas, em um ritual esporádico de contestação estrutural, mas pelo fato de descobrirem que essas drogas, apesar de suas características entorpecentes, podem, em alguns casos, ter efeitos associados, segundo os usuários, aos fármacos da forma. Sendo assim, o uso excessivo de esteroides pode surtir efeitos contrários, como De acordo com Velho (1978), Copacabana foi o bairro escolhido pela classe média em ascensão na década de 1970, à época, o status ambicionado, era morar no bairo que passou a ser chamado de ‘princesinha do mar, o que provocou uma especulação imobiliária com apartamentos ínfimos em espaço e prédios colados uns aos outros – prática de construção que mais tarde foi proibida. Atualmente, o bairro da Barra da Tijuca exerce esse papel na geografia carioca, como o espaço geográfico dos novos ricos, ainda desprezados pela aristocracia carioca. Não é por acaso que nesse bairro existe o maior número de academias de musculação da cidade (JB, 16/05/99. p. 3). 34 100 DROGAS DE APOLO euforia, estado de alerta e, até mesmo, surtos psicóticos – embora eu jamais tenha visto. Esses sintomas são denominados na literatura internacional como “steroid rage” ou, de forma abreviada, “roid rage” (FUSSEL, 1991). Os relatos seguintes, colhidos durante o trabalho de campo em uma academia renomada de Copacabana, atestam tal interpretação: Eu sempre quis ter um corpo perfeito. Malho35 há muitos anos. Em 1996 conheci uns caras que me deram várias dicas sobre como tomar bombas. Fui tomando tudo que me diziam que era bom para crescer; fiz tudo quanto é ciclo, tomei todos os esteroides [...]. Comecei a tomar 1ml por semana. Alguns meses depois comecei a fazer ciclos completos porque eu queria competir, aí eu usava quatro tipos de esteroides ao mesmo tempo. Às vezes eu injetava, às vezes tomava comprimidos. Depois, como eu queria emagrecer, passei a cheirar; passei a usar [...] porque ela inibe minha fome. (Mário. 28 anos. Fisiculturista). Este outro relato é ainda mais esclarecedor: Para conquistar [esse corpo] usei muita coisa mesmo. [Sou um] um laboratório [risos]. Experimentei de tudo. Usei todos os esteroides, insulina e até pó e maconha. Como eu queria ser um grande fisiculturista achava que esse era o caminho certo para conseguir competir com o máximo possível de definição. Aprendi a tomar ‘bomba’, a fazer os ciclos, a usar todos os remédios e vitaminas para diminuir os efeitos colaterais. Tomei de tudo; tive hepatite medicamentosa e fiquei careca, [risos]. Mas o pior foi quando descobri que a cocaína fazia a fome passar... porque quando a gente está em período de pre-constest [época de preparação para as competições] a gente faz de tudo para emagrecer, come peixe cru, passa fome, usa laxante, bebe água de bateria de carro ao invés de água normal [...] Porque a água de bateria é destilada e então ela não fica retida no organismo como a água normal que tem sais minerais. Quando a água fica retida – e é por isso que a gente não come sal, porque o sal retém água no organismo – a gente fica sem definição muscular, a aparência fica meio gorda, só inchada, percebe? [...] (Daniel. 34 anos. Fisiculturista). Há, nesses casos de uso de entorpecentes por parte de fisiculturistas e usuários assíduos de academias de musculação, a ausência do aspecto específico de sociabilidade que os estudos de Velho (1998) destacaram sobre o consumo de tóxicos por camadas médias urbanas da Zona Sul carioca. O que ocorre é um individualismo que instrumentaliza as drogas – tanto 35 Significa treinar e, segundo Silva (2014), um termo cada vez menos utilizado pelos usuários das academias. 101 CÉSAR SABINO apolíneas quanto dionisíacas – como meio de otimizar a forma física, por sua vez, instrumentalizando essa última como veículo de afirmação de status, conquista de parceiros sexuais em mesmo nível estético e inserção social. Essas práticas insinuam o surgimento de uma nova dimensão comportamental fisicalista, do final dos anos 90 do século XX e início de milênio, diretamente associada à classe média em ascensão e precedida pela “geração dos yuppies” dos anos 80, os quais, assim como essa geração, desejavam a integração plena ao sistema social como bem-sucedidos e abastados profissionais liberais, como sugeri anteriormente. Não é possível descartar o aspecto de que os fisiculturistas atuais, com seu tamanho e muscularidades singulares, apresentem-se (apesar de uma primeira volição de se integrarem ao sistema dominante, uma característica física que beira à marginalidade) de forma ambígua em relação ao uso de fármacos e drogas em geral. Como Mary Douglas (1976) ressaltou, tudo o que é profano e marginal é portador de um certo quantum de poder e, portanto, de fascínio. Se as drogas dionisíacas são itens profanos para aqueles que fazem da forma física uma de suas razões de existência, elas, dependendo da situação, podem ser utilizadas. O álcool, os alimentos gordurosos e pesados, os refrigerantes e os doces de todos os tipos (comidas proibidas) podem ser considerados alimentos tabus durante a maior parte do ano para os fisiculturistas e marombeiros. Porém, durante festas (aniversários da academia, de algum instrutor ou professor etc.) que poderiam ser consideradas exemplos de rituais de inversão, tais alimentos podem ser consumidos como uma demonstração de subversão das regras e relaxamento das imposições estruturais. Contudo o que marca a singularidade em relação ao uso de novas e antigas drogas – ao menos no caso específico dos fisiculturistas – é justamente a instrumentalização das drogas dionisíacas direcionadas para a construção da forma. Se, por alguns grupos, as drogas dionisíacas são utilizadas para inverter as estruturas sociais, ou afirmar uma individualidade libertária, ou mesmo um paroxismo coletivo de contato com o sagrado (Santo Daime, p. ex.), não é esse o sentido para grupo estudado. Nesse caso, ocorre a manifestação de uma prática instrumental que radica, na forma corporal, seu objetivo para aprimorá-la, como marca de distinção social, superioridade física, estética e prática de dominação imagética. Corpo subsumido a sua imagem, ícone de uma biopolítica que agencia e comanda a vida cotidiana regida pela busca da juventude, do vigor, musculosidade e beleza, resumindo: busca pelo que é considerado saudável. 102 CAPÍTULO III Eu sou corpo e nada mais; a alma é apenas uma palavra que designa uma parte do corpo [...] o corpo é uma grande razão, uma multiplicidade unânime, um estado de guerra e de paz, um rebanho e seu pastor. (Nietzsche) 3 ÉTICA CONSUMISTA E ESTÉTICA DO ESTEROIDE Como disse anteriormente, fisiculturistas utilizam com regularidade fármacos (esteroides anabolizantes) que poderiam ser denominados drogas masculinizantes, ao menos em culturas patriarcais, já que são drogas constituídas, em geral, por hormônios masculinos sintéticos e, portanto, virilizantes (androgênicos), que proporcionam não apenas a aquisição de massa muscular acima da média, mas também aquisição das características sexuais masculinas (surgimento de pelos por todo corpo, voz grave etc.)36. Faz-se necessário compreender como o uso dessas substâncias está relacionado à própria visão de mundo desse grupo que apresenta a tendência para classificar indivíduos em função de sua relação com exercícios físicos e sua aparência. O uso dessas drogas também está relacionado diretamente à construção ritual da pessoa, além de indicar uma tendência à hipervirilização da ética e da estética (androlatria) nas instituições de cultivo à forma física, remetendo, ainda, ao surgimento de um novo tipo de consumo de novas drogas. Consumo relacionado a representações e práticas opostas, mas, por vezes, também complementares àquelas comumente associadas aos Alguns praticantes utilizam hormônios fabricados para cavalos e para uso veterinário, como o Equifort e o Androgenol, (como será tratado adiante), em geral, por acharem mais potentes que as substâncias direcionadas para humanos. Na primeira semana de agosto do ano de 2000, a imprensa brasileira noticiou a morte do estudante Jean Mendonça de Mesquita, de 23 anos, lutador de jiu-jitsu que participava de um campeonato no bairro da Tijuca no Rio de Janeiro, devido ao uso de Potenay uma substância indicada para cavalos anêmicos. O atleta teve infarto quando se preparava para lutar. Essa substância (Potenay) não é anabolizante, mas indica a tendência, entre os marombeiros, de usar remédios para cavalos pensando alcançar maior eficácia. O Potenay é uma substância vitamínica injetável com alto teor de anfetamina podendo causar arritmia cardíaca. O consumo de produtos para cavalos e animais de grande porte tem aumentado entre os frequentadores assíduos das academias de musculação e fitness. Xampus, pomadas, vitaminas, esteroides anabolizantes e, até mesmo, rações têm sido consumidos por tais pessoas devido à representação social de força que tais substâncias portam. 36 103 CÉSAR SABINO consumidores tradicionais de tóxicos37. Pretendo não apenas aprofundar a compreensão de como o uso dessas drogas pode indicar uma tendência de adesão a uma ética individualista, competitiva e masculinizante, inscrita em uma estética corporal, mas também tentar elaborar uma melhor compreensão da importância que esses fármacos têm para a construção ritual da identidade deste grupo, além de destacar as implicações teóricas que esse fato social representa para a análise das atuais sociedades de consumo. Por intermédio da observação participante, ou “participação observante” conforme Waquant (2002), foi possível compreender determinados aspectos do cotidiano do grupo, como o uso e a venda das drogas citadas, por exemplo, que seriam impossíveis de serem percebidos apenas com entrevistas, conversas ou observações etnográficas superficiais. Na observação participante, apresentou-se a nítida percepção da diferença entre o que é dito pelos informantes e o que é praticado, de fato, por eles (BECKER, 1971; 1994). Em relação ao consumo de esteroides, por exemplo, raramente os usuários, quando perguntados por alguém estranho ao contexto, admitem o uso. Sem embargo, os dados recolhidos durante o trabalho de campo sugerem haver, em relação a outros trabalhos que utilizaram surveys, uma quantidade de usuários que supera os números apresentados em tais surveys (ARAUJO; ANDREOLO; SILVA, 2002; IRIART; ANDRADE, 2002). A pesquisa de Araújo, Andreolo e Silva, por exemplo, baseou-se em entrevistas com 183 frequentadores de 14 academias de musculação da cidade de Goiânia. De acordo com o resultado, tais praticantes de musculação consomem esteroides e suplementos; a creatina é o suplemento mais utilizado (24%), e o fármaco denominado Deca Durabolin, o esteroide de maior uso (21%) vindo logo em seguida o Hemogenin (16%). O consumo maior desses produtos ocorreu em indivíduos com idade entre 18 e 26 anos (74%) e nível médio de escolaridade (66%). Mais de 70% usaram tais componentes químicos com o objetivo de ganhar massa muscular. Os consumidores de esteroides relataram euforia (81%) e aumento de cravos e espinhas (94%); e os consumidores de suplementos, aumento de sono (17%). As pesquisas, em sua maioria, apontam para a ignorância dos pesquisados sobre os efeitos dessas drogas como o principal fator propiciador do uso. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), tóxicos são substâncias que “acarretam dependência física e psicológica, tolerância e síndrome da abstinência”. Já droga é definida como “qualquer substância que, introduzida no organismo, é capaz de alterar seu metabolismo” (BARBOSA, 1986, p. 1244). Os esteroides anabolizantes acarretam dependência psicológica e tolerância, além de, obviamente, alterar o metabolismo orgânico. 37 104 DROGAS DE APOLO Em quatro anos e meio de trabalho de campo realizado em 12 academias em bairros de classe média do Rio de Janeiro – da Zona Norte à Zona Sul –, foi possível perceber que a ignorância seria, se não o último, ao menos um dos últimos elementos que poderia ser considerado causador, ou mesmo sustentáculo do uso de tais produtos químicos. Foram entrevistadas 310 pessoas (200 homens e 110 mulheres), e todas as pessoas entrevistadas demonstraram conhecer os riscos que correm os usuários de tais componentes químicos. De fato, o conhecimento de tais riscos, ao contrário do que supõem muitos pesquisadores, é um dos principais fatores que reitera o uso, posto que o risco surge, entre o grupo, como algo positivo que reforça a coragem individual e as estruturas hierárquicas do próprio grupo, já que usar esteroides é parte da ritualística contínua de construção identitária e arriscar a vida é fator crucial de valorização da experiência e reconhecimento social. Reconhecimento ligado ao status nessa “tribo urbana”. O devir suicidário38 presente no ritual é o elemento que o sustenta e o destaca. Não foram utilizados questionários na pesquisa porque, conforme dito, o pesquisador tornou-se quase parte do meio pesquisado. Como dito anteriormente, as entrevistas foram realizadas de maneira informal durante os anos de trabalho de campo. Logo após a saída do recinto, as principais questões surgidas durantes as conversas eram anotadas em um caderno de campo. Dentre os 200 homens entrevistados, 81% (162 pessoas) disseram já ter utilizado esteroides anabolizantes. Dos que disseram utilizar esteroides (muitos dos quais o uso foi observado nas academias), 70% (140 pessoas) possuíam idade entre 18 e 30 anos, 2% (4 pessoas), idade entre 15 e 18 anos e 9% (18 pessoas), idade entre 30 e 56 anos. 79% (128 pessoas) disseram utilizar com frequência aumentando as doses no verão, época de maior exposição dos corpos. Dentre os 81% que disseram utilizar tais drogas, 58% (94 pessoas) disseram estar, à época, cursando ou ter cursado universidade. Das 110 mulheres entrevistadas, 69% (76 pessoas) disseram já ter utilizado, pelo menos uma vez, esteroides anabolizantes. Dessas, 30,2% (23 pessoas) disseram utilizar com frequência, 58% (44 pessoas), apenas no verão. A idade de 90% das usuárias (99 pessoas) situa-se entre os 16 e 24 anos, e 10% (11 pessoas) entre 25 e 36 anos. Do total de usuárias, 61% (67 pessoas) disseram frequentar ou ter frequentado cursos universitários. É Trato como suicidário todo e qualquer comportamento que necessita do risco de morte ou arriscar constantemente sua existência para se manter. Todo amor ao risco intenso, toda propensão à diversão com a morte pode ser considerada suicidária. Embora, a princípio, nada tenha a ver com sociedade de risco descrita por Ulrich Beck (1996), a categoria suicidária remete a uma condição sistêmica que faz do perigo constante uma variável fundamental para a compreensão das sociedades e grupos atuais. 38 105 CÉSAR SABINO preciso ter em mente que, além de todos esses esteroides utilizados, não raro em combinações de quatro tipo ou mais, existem inúmeros outros fármacos consumidos em consonância, visando à melhoria do que consideram “boa forma”. Os principais esteroides anabolizantes – ou “bombas” como são chamados pelos consumidores – utilizados nas academias pesquisadas são apresentados a seguir, com suas funções, de acordo com os relatos – é importante ressaltar que os efeitos descritos aqui são aqueles relatados pelos fisiculturistas e não exatamente os que constam nas bulas dos medicamentos que não foram criados para os propósitos desses atletas. Também é preciso frisar uma sazonalidade no uso desses remédios nas academias. No período entre primavera e verão, aumenta significativamente o uso e toda uma intensificação das relações sociais em torno desse consumo ritual em uma variação que de longe (apenas) lembra as variações sazoneiras das sociedades esquimós estudadas por Mauss (1974a). As marcas que pude constatar no momento como as mais utilizadas foram as seguintes: Decadurabolin: (Decanoato de Nandrolona) a mais conhecida e ingerida pelos bodybuilders nas academias cariocas. É moderadamente androgênica (capacidade de produzir características masculinas), usada para ganho de músculos (massa muscular) e pré-competição. Alguns fisiculturistas disseram reter líquidos (ficam com aparência inchada o que provoca o desaparecimento da definição muscular) o uso dessa droga. O que pode ser percebido é que a Deca é utilizada como um esteroide “de base”, pois é misturada com outras drogas naquilo que os fisiculturistas denominam ciclos; ou seja: a mistura e o uso crescente ou decrescente de drogas com objetivos específicos. De todos os esteroides, é o que apresenta o menor efeito colateral, contudo pode ser detectado em exames antidoping até um ano após o uso. É encontrado em ampolas de 25 mg ou 50 mg. Produzido no Brasil pela AkzoNobel Ltda. Durateston: (Decanoato de Testosterona; Fenilpropionato de Testosterona; Isocaproato de Testosterona e Propionato de Testosterona). Esse esteroide é a soma de quatro compostos de testosterona. A intenção dessa combinação é produzir uma ação imediata após a aplicação e mantê-la por um período prolongado. É usada para ganho de massa e aumento de força e peso e quase não retém liquido. Ampolas de 250 mg. Também fabricado no Brasil, pela Organon. 106 DROGAS DE APOLO Winstrol: (Stanozolol) esteroide de pouca retenção hídrica, mas com pequenas taxas anabólicas (“faz crescer pouco”, como dizem os frequentadores das academias). Por ser considerado fraco pelos usuários, foi percebido, durante o tempo decorrido da pesquisa, grande uso por parte das mulheres, principalmente mulheres jovens querendo “definir” musculatura, ou seja, baixar o nível de adiposidade. Esta lógica, fraco = feminino, de certa forma, reitera as diferenças estruturais contidas nas classificações do grupo. Essa droga é importada da Espanha e produzida pelo laboratório Zambon. Hemogenin: (Oximetolona). Tida como a mais perigosa de todas as drogas conhecidas entre os fisiculturistas. Mesmo assim, é muito usada, pois ocasiona um rápido ganho de força e volume muscular, porém apresenta a tendência de produzir rápida toxidade hepática, hipertensão e câncer. Deposteron: (Cipionato de Testosterona) droga com alto potencial androgênico, promove ganho rápido de força e volume muscular, porém com perda rápida desses mesmos itens assim que passam os efeitos de seu uso. De acordo com os relatos, é a maior responsável pelo surgimento de ginecomastia entre os bodybuilders. Também apresenta alta retenção hídrica e provoca aumento da pressão arterial, além de atrofiar os testículos dos usuários. É produzido no Brasil pela Organon. Equipoise: (Undecilenato de Baldenona) é de uso exclusivo veterinário, porém os fisiculturistas utilizam com frequência para o aumento rápido da massa muscular e força. Em geral, os fisiculturistas utilizam essa droga misturada à Deca Durabolin, ou ao Durateston, para aumentar o efeito anabolizante. A apresentação é em caixas com seis ampolas de 2 ml cada. É uma droga produzida na Itália pela LPB Pharmaceuticals. Equifort: (Undecilenato de Baldenona) tem a mesma composição do Equipoise e é para o uso exclusivo de equinos com problemas de distrofia muscular, osteoporose, anemia aplástica, coquexia e anorexia. Dizem os usuários que tal droga apresenta baixa probabilidade de causar ginecomastia. É produzida pela Bayer. Androgenol: (Propionato de Testosterona) outro esteroide para o uso de equinos com deficiência de hormônio sexual masculino. Há, entre muitos fisiculturistas, a concepção de que tais drogas, sendo veterinárias, (para cavalos), têm uma ação “mais forte” que a das drogas para humanos; o que parece ser uma concepção equivocada, pois os hormônios são os mesmos. O uso dessas substâncias, além de causar acne, calvície, problemas cardíacos (infarto do miocárdio), hipertensão arterial, complicações hepáticas, câncer, 107 CÉSAR SABINO aumento de mamas nos homens, atrofia testicular, diminuição da produção de espermatozoides e diminuição dos hormônios sexuais – e consequentemente da libido – também provoca distúrbios psicológicos (roid rages, como denominam os pesquisadores americanos), como agressividade e paranoia. Nas mulheres, provoca também atrofia do útero e das mamas, virilização, como alteração na voz (voz grave), crescimento do clitóris, suspensão dos ciclos menstruais e crescimento excessivo de pelos. Como foi dito, a maioria dos usuários tem pleno conhecimento das consequências do uso de esteroides anabolizantes – ao contrário do que supõem muitos pesquisadores planejadores de políticas de saúde. O fato é que a maior parte dos sintomas descritos demoram alguns anos a aparecer. O que leva a maioria dos jovens a pensar que vale a pena arriscar um suposto futuro para ter um corpo socialmente aceito e símbolo de status e sucesso agora ou no presente: Ah, cara, tenho 20 anos, se quando eu tiver trinta, trinta e dois, eu tiver doente, f**** [...] isso é um risco. A vida é isso: temos que correr riscos, certo? Se quisermos conseguir as coisas [...] eu não vou é ficar feio, gordo, sem pegar ninguém, apanhando dos outros, sem conseguir emprego, sem ser respeitado agora, esperando chegar aos 30, 40 com saúde... e se eu não chegar lá, e se eu morrer de tiro na rua, com tanto assalto e briga que tem por aí [...] se eu for atropelado? Entendeu? Então eu uso bomba mesmo e que se dane o mundo!” (Pedro. 20 anos. Estudante). Ou: [...] de que adianta viver muito e ser um fracassado? Um infeliz que não pega mulher, não consegue ser respeitado, não consegue se olhar no espelho? É melhor viver pouco e feliz do que muito e desgraçado. Se o diabo aparecesse para mim e dissesse: ‘cara, vou te dar tudo que você quiser, mas vou deixar você viver só mais dez anos’ eu ia topar na hora! (Mario. 27 anos. Personal Trainer). Também: Bom, no verão eu malho muito mais e tomo uns ‘produtos’ aí... tenho que ficar gostosa! A mulher não pode se descuidar, a concorrência é muito grande. Tem que tá gostosona, sarada, com tudo em cima, sem celulite, com a barriga sequinha se quiser arrumar alguém, se quiser ficar com alguém ... homem está escasso no mercado [risos]. Se a mulher não tiver legal ela fica até deprimida, não dá nem pra botar um biquíni. Cê já foi à praia do Pepê? Só tem mulherão lá, então não dá, né? Se quiser concorrer, se quiser frequentar os locais legais com gente bonita, a mulher também tem que tá bonita, no esquema. (Angela. 18 anos. Estudante). 108 DROGAS DE APOLO Ainda: Comecei a tomar bomba quando tinha 17 anos, porque entrei na academia e um marombeiro disse que eu tinha uma estrutura excelente para o fisiculturismo, que eu ia ficar enorme e definido muito rápido e que se eu quisesse ele podia me treinar, então comecei a treinar com ele todo dia a partir das 9 da manhã, já na terceira semana ele me trouxe Deca e Durateston. Tomei e comecei a crescer, em dois meses consegui ganhar quase 10 quilos de massa seca! Logo comecei a competir, então não tem jeito. É impossível alguém ser atleta hoje sem tomar bomba, e não é só no culturismo não, isso é em tudo quanto é esporte. É impossível! Não existe um atleta profissional que não tome bomba de vez em quando. (Mário. 29 anos. Instrutor de musculação). Fussel (1998) escreveu que os bodybuilders não nascem, são fabricados. Essa fabricação demora anos. No caso de atletas, de oito a 10 anos. Quando se trata de amadores, dois ou três anos já bastam para um corpo recoberto por couraça muscular aparecer. São quatro horas diárias de exercícios, duas horas pela manhã, duas à noite; seis dias por semana – entre amadores três horas diárias já produz o efeito desejado. Nesse processo surgem lesões por esforço repetitivo levando a cirurgias nos ombros, joelhos; bursites, tendinites, artrites, hepatite medicamentosa, hipertensão, ginecomastia, dores de cabeça e outros problemas associados ao uso prolongado de drogas. No esforço de fabricação da forma, as drogas exercem papel crucial. Para melhorar o desempenho nas academias, não só as substâncias descritas são utilizadas, mas também todos outros tipos de hormônios: HGH (hormônio do crescimento humano), hormônios para a tireoide, hormônios femininos, além de anfetaminas, remédios para asma, com o objetivo de acelerar o metabolismo e fazer o indivíduo emagrecer (Clenbuterol), diuréticos e, até mesmo, cocaína e maconha. A primeira – cocaína – para conferir ânimo e “ajudar a emagrecer”, a segunda – maconha – para “relaxar após o treino”. Embora seja raríssimo acontecer. Após meses de treino pesado, quando o verão está próximo e, não raro, as competições, os fisiculturistas começam dietas radicais com o objetivo de alcançar maior definição muscular. Por meio do uso de diuréticos, esteroides, aceleradores de metabolismo (Clenbuterol e Efedrina) e consumo de água destilada, associado à suspensão da ingestão de sal, carboidratos e todo tipo de gorduras, a pele dos bodybuilders torna-se fina como o papel-bíblia, deixando transparecer cada fibra muscular rodeada pelas veias. Nesse período, 109 CÉSAR SABINO é muito comum ocorrerem desmaios nas academias. Também, durante as competições, não é raro perceber nos bastidores indivíduos com o nariz sangrando, com ânsias de vômito e desmaiando. A dimensão simbólica desse fato não pode ser desprezada. A dor e o sofrimento aparecem nesse contexto, como dito anteriormente, para reiterar as estruturas do grupo conferindo autoridade e destaque àqueles que revivem sempre o calvário da adoração muscular. Os riscos são recompensas a serem colecionadas e guardadas; representam barreiras superadas, ascensão, ao menos simbólica, no crescente mundo do fisiculturismo e das academias. Significa aquisição de respeito entre os neófitos e entre os pares. Corpo e alma são, assim, indissociáveis; produzidos pela prática e na prática social, forjados pelas ações e aspirações de uma nova época. O esteroide anabolizante está para os marombeiros e fisiculturistas como a maconha – chamada de Kaia – está para os rastafaris, ou o chá de ayuasca para os fiéis do Santo Daime39, e os hormônios femininos para as travestis. A própria construção identitária do indivíduo no grupo está associada ao uso contínuo, ou esporádico, de esteroides; e mesmo o risco de morte que eles apresentam contribui para a valorização do ritual de construção identitária. De fato, muito mais do que cultivar músculos, sobre-humanos, os fisiculturistas cultivam uma ética representativa da nossa era: o indivíduo deve estar disposto a pagar o máximo para atingir seus objetivos; o indivíduo deve ser livre para se projetar e construir seu destino; o indivíduo deve possuir autonomia para construir seu corpo, subjugando-o a sua mente; o indivíduo deve submeter e enquadrar a matéria aos ditames da razão instrumental. A liberdade individual é um valor incontestável, o crescimento econômico depende dessa liberdade, a qual permite empreender; cada um deve cuidar do seu corpo como sua primeira propriedade ou mesmo empresa – o que lembra em parte John Locke e bastante Robert Nozik. Em suma, os valores presentes no bodybuilding estão muito próximos dos valores neoliberais. Como vem indicando a mídia esportiva, esse processo tem se estendido para outros esportes, principalmente os profissionais. Assim, por exemplo, a matéria publicada na revista Carta Capital, de 18 de fevereiro de 2004, sugere (talvez de forma um pouco exagerada) que o futuro dos esportes está no interior dos tubos de ensaio e nas cobaias transgênicas. Há que se destacar que testes antidoping não são realizados, ao menos até o momento, em campeonatos de fisiculturismo, entre os jogadores de rugby nem entre os atletas do basquete norte-americano (NBA). Justamente esses esportes têm sido apontados como exemplo de mutação muscular sofrida por seus atletas nos últimos 20 anos. Segundo a matéria da revista (p. 36): “qualquer um que tenha visto alguns minutos de jogos antigos – de cerca de 20 anos atrás – do basquete profissional americano, ficaria impressionado com a evolução do físico dos jogadores. Hoje, os jogadores da NBA são mais pesados e notavelmente mais musculosos. O jogo é jogado de acordo com a estética do esteroide. O que antes era um esporte gracioso e geométrico- atletas procurando espaços abertos, pensando em termos de ângulos de passes – é agora primariamente dominado pela agressão; os jogadores gravitam no mesmo espaço e tentam passar por cima um do outro”. 39 110 DROGAS DE APOLO Além dos aspectos relacionados aos preceitos subjetivos e objetivos do campo das academias de musculação e fisiculturismo, talvez existam outros fatores sociais que contribuam para o crescente consumo de fármacos entre os frequentadores dessas instituições. Um deles está no hábito comum, em nossas sociedades, de ingerir substâncias farmacológicas como meio de resolver, ou ao menos minorar, as dificuldades da vida. Haveria, conforme Nascimento (2003), um condicionamento das pessoas aos medicamentos fazendo com que os indivíduos, ainda bebês, sejam tratados com xaropes, sedativos e gotinhas neurolépticas. As frustações experimentadas tendem a ter uma contrapartida nos fármacos consumidos. A pessoa cresceria, de acordo com esse ponto de vista, condicionada a buscar resolver seus problemas e angústias com substâncias farmacológicas, bebidas alcóolicas ou outros tipos de drogas. O modelo estaria, portanto, na própria família condicionando a vida dos indivíduos desde a sua tenra infância. De acordo com a autora: “as pessoas tendem a procurar na medicina as soluções para grande parte de seus problemas e limitações. Buscam em medicamentos e drogas mudar o seu temperamento, a sua personalidade, o seu estado de espírito” (NASCIMENTO, 2003, p. 137; também ILLICH, 1975). Essa banalização do consumo de drogas, farmacêuticas ou não, teria como argumento central o período turbulento pelo qual as sociedades globalizadas estariam passando e a correlata diminuição da resistência das pessoas em tolerar o acirramento de pressões. Haveria um mal-estar coletivo que afetaria principalmente as populações dos grandes centros urbanos Produto, em grande parte, do capitalismo globalizado, essa espécie de síndrome coletiva apresentaria também raízes culturais. Luz (1997, p. 18) argumenta que transformações recentes observadas na cultura estariam propiciando a [...] perda de valores humanos milenares nos planos da ética, da política, da convivência social e mesmo da sexualidade, em proveito da valorização do indivíduo, do consumismo, da busca de poder sobre outro e do prazer imediato a qualquer preço como fontes de consideração e status social. Radicada nos meios de comunicação de massa, essa mudança de valores se traduz em “incertezas e apreensão quanto ao como se conduzir e ao que pensar e sentir em relação a temas básicos como sexualidade, família, nação, trabalho, futuro como fruto de uma vida planejada etc.” Nessa sociedade de risco e de desencaixes (BECK, 1996; GIDDENS, 1991), 111 CÉSAR SABINO a busca por uma válvula de escape, que possa estar inserida no consumo, reproduzindo-o, toma vulto como parte significativa da existência de um número significativo de indivíduos. Assim, o uso de drogas e fármacos em geral – que Duarte (1999, p. 22), seguindo Illich, denomina “medicamentalização” – seria uma das respostas a esse mal-estar generalizado. Para os consumidores, elas agiriam como uma defesa frente às agressões impostas pelo estilo de vida contemporâneo. A decisão de consumi-las seria o resultado de uma fatalística e ilusória escolha entre droga e tensão, formando um trágico círculo vicioso. Nesse movimento de consumo, as pessoas tenderiam a procurar nas drogas as “soluções” para grande parte de seus problemas e limitações. Buscariam mudar sua inserção social, seu comportamento, sua forma física, personalidade e estado de espírito. Na esteira dessa tendência, a indústria farmacêutica – afora a das drogas efetivamente ilegais e a indústria de suplementos alimentares que funciona com a mesma lógica do lucro crescente – amplia seu mercado gradativamente, recorrendo à forte difusão de informações, com argumentos sedutores para vender a ideia de que seus produtos promovem a alegria de viver e a saúde. A cada novo lançamento de produto, estratégias de marketing são direcionadas aos profissionais da saúde e da estética que exploram a insegurança e os desejos dos consumidores. Esse fato provoca o aumento gradativo do uso dessas substâncias entre os frequentadores de academias e consultórios (NASCIMENTO, 2003). O já clássico estudo de Dupuy e Karsenty sobre o poder dos fármacos esclarece tal processo: [...] o medicamento aparece verdadeiramente como um objeto mágico. A magia consiste, na realidade, em atuar sobre alguma coisa, dominá-la, atuando sobre um sinal desta coisa. É, de fato, o que se observa com o medicamento: o sujeito que toma um produto na intenção de atuar sobre seus sintomas, sinais de sua fragilidade e de sua condição mortal, tem a ilusão de agir sobre estas últimas e de dominá-las. Pode, assim, encontrar um sentimento de segurança sempre que ameaçado. Em nossas sociedades, onde a técnica é considerada como suscetível de resolver todos os problemas, os instrumentos de dominação mágica do mundo que encontramos nas sociedades ditas ‘primitivas’ foram substituídos por objetos técnicos. O medicamento é um deles (1979, p. 191). Com efeito, a fragilidade e a condição mortal refletida, de imediato, no processo inexorável de envelhecimento abrem uma possível via de atuação dos empreendimentos consumistas exacerbados e reproduzidos 112 DROGAS DE APOLO pela publicidade que exerce papel efetivo, não apenas na construção da identidade dos frequentadores assíduos de academias de ginástica e musculação, mas também no cotidiano de milhões de pessoas que são levadas, pelos discursos especializados, a procurarem um produto que lhes garanta a saúde, entendida, não raro, como boa forma e juventude. Os meios de comunicação, ao mesmo tempo que veiculam e fazem propagandas dos últimos padrões estéticos em voga, vêm anunciando a gradativa transformação dos corpos nas últimas décadas. Periódicos não apenas estampam fotos das mulheres consideradas as atuais beldades paradigmáticas, mas trazem também matérias que acusam algumas dessas mulheres – principalmente entre as famosas formadoras de opinião: atrizes e modelos – de estarem perdendo uma das principais características do que tem sido considerado feminilidade em nossa cultura: a cintura; retratando uma tendência estética fisicalista presente na sociedade atual perpassada pelos ideais da prática diária de musculação e exercícios para emagrecer conjugados com dietas, consumo de suplementos alimentares e esteroides. Esforço individual e coletivo justificado pela propaganda da forma, realizada pelos ícones da indústria cultural que (re)produzem e são produzidos por conjuntos de representações sociais sobre estética, saúde e boa forma. Nesse aspecto, repito com Guattari e Rolnik, não se pode contrapor a produção subjetiva, produção de subjetivações, à produção econômica, pois simultaneamente a sociedade capitalista desenvolve um trabalho material e semiótico por intermédio das relações sociais constitutivas das organizações e instituições. A produção de subjetividades – valores, desejos, formas de sentir, classificações etc. – constitui mesmo a matéria-prima de toda a produção capitalista, posto que, sem esse aspecto simbólico, as relações de poder não são possíveis da forma que se realizam (GUATTARI; ROLNIK, 1996, p. 27-28). Essa “imposição” sociocultural da forma física tem levado ao surgimento de um novo tipo de consumo de novas drogas e ao fortalecimento da indústria da manutenção da aparência física. Inúmeros estudos científicos vêm apontando as influências culturais produtoras de variações morfológicas em determinados grupos sociais. McCreary e Sasse (2000) ressaltam que modelos de revistas, comerciais de TV, atrizes e personalidades em geral veiculam, implícita e explicitamente, a concepção de que as mulheres de sucesso devem ser mais magras, musculosas, exercitadas e submetidas constantemente a dietas. Ao escreverem sobre a crescente obsessão entre mulheres pela aquisição de um corpo ideal, os autores indicam que até mesmo bonecas têm reforçado a adoção de um padrão estético fora da realidade. 113 CÉSAR SABINO Ao estudarem essa influência, demonstraram que o perfil corporal da Barbie atual, sua constituição física, apresenta significativa distorção, pois, se tal modelo fosse transposto para a realidade, a probabilidade de uma mulher real apresentar tal corpo seria de 1 em 100.000. Ressaltam que o mesmo ocorre com os chamados bonecos de ação direcionados para os meninos. Esses brinquedos ostentam musculatura hipertrofiada conjugada, supostamente, a um percentual de gordura baixíssimo, impossível, ainda, de ser adquirido até mesmo pelos mais destacados campeões de fisiculturismo profissional do mundo atual, em épocas de competições (POPE; OLIVARDIA; PHILLIPS, 2000). Essa muscularidade e magreza (baixo percentual de adiposidade, alto percentual de massa muscular) acaba significando, em nossa cultura, sinais de positividade, levando número significativo de homens e mulheres adultos e adolescentes ao consumo de esteroides anabolizantes, outros hormônios e produtos em busca da forma física ideal, concebida como a chave para a aceitação e ascensão social, enfim para o sucesso (DEL PRIORI, 2000). No dia 18 de Fevereiro de 2001, um dos jornais de maior circulação do país (O Globo) veiculou matéria apontando o fato de que a modelagem das grifes nacionais está diminuindo cada vez mais, tentando obrigar mulheres mais roliças ou “com corpo violão” a se enquadrarem nos padrões morfológicos atuais que primam pela aparência magra ou musculosa da atual ditadura da beleza e da moda. Perguntados sobre essa tendência, os donos de grifes e costureiros alegam que é uma onda mundial e que “a mulher magra e longilínea fica sempre mais elegante”. Em outra matéria, no mesmo periódico, sobre o carnaval carioca e sua tradicional exposição de corpos nus na mídia, foi abordado tema parecido: algumas mulheres-ícones na mídia brasileira (consideradas padrões de beleza) estão, cada vez mais, musculosas devido ao constante uso de hormônios androgênicos e próteses de silicone: [...] [algumas] mulheres conseguiram finalmente perder a feminilidade. Estão com pernas de jogador de futebol, braços de estivadores, barrigas de tanque de lavar roupa e, de tanto tomar ‘bomba’ para secar a gordura [e aumentar a massa muscular], estão parecendo uma drags. É a vitória das travestis [...]. (O Globo. Caderno Ela. Sábado 03/03/2001. p. 4). Não se trata aqui de tomar a doxa midiática como padrão de conhecimento sociológico, mas de levar em conta o surgimento de novas tendências e posturas sociais que a mídia expressa de forma preconceituosa ou não. No caso específico, tais matérias são sugestivas, pois esboçam uma 114 DROGAS DE APOLO tendência ética (também estética) presente na atualidade que denominei anteriormente androlatria: adoração, tanto por parte de homens quanto de mulheres, dos princípios morais e éticos constitutivos da masculinidade hegemônica40, considerados símbolos de superioridade e sucesso econômico e social (SABINO, 2000a; 2000b; 2002; 2003). O esforço para transformar o corpo em uma espécie de display que ostenta a volição da eterna juventude, saúde, força e beleza – leia-se tais itens como músculos e/ou baixa porcentagem de adiposidade – pode ser o indício do surgimento de uma nova forma de dominação radicada em novos dispositivos de poder atuantes na sociedade atual. Além de representar também a efetivação de tendências racionalistas e disciplinares (LUZ, 1988; FOUCAULT, 1993; WEBER,1995; RABINOW,1999), que parecem espalhar-se pelo mundo globalizado. Nesse movimento de apologia ao músculo, o fisiculturismo representaria a síntese perfeita das tendências somatófilas vigentes. Some-se a isso, a peculiaridade sociocultural brasileira, na qual a beleza corporal condensa seculares relações de dominação calcadas na raça, gênero e classe; e a estética é a marca de excelência moral que confere ou não direito à cidadania, abrindo oportunidades que vão de empregos até ascensão social via trocas matrimoniais, reiterando o que um dos mais famosos compositores brasileiros, Vinicius de Morais, cantou: As feias que me perdoem, mas beleza é fundamental (JARRIN, 2017). Se o padrão europeu dominante tem se tornado menos intenso em relação à textura capilar e cor de pele a beleza está relacionada, ainda e agora, à simetria de traços faciais, proporcionalidade corporal, ausência de adiposidade e musculosidade ressaltada ou definida 3.1 DO ASCETISMO AO HEDONISMO A utilização de esteroides anabolizantes e androgênicos, como via de mudança corporal e construção de identidade em academias de fisiculturismo, é um exemplo de racionalização prática ligada à disciplina corporal. Segundo Foucault, o crescimento do saber organizado coincide com a ampliação da extensão das relações de poder, especialmente com a prática do controle sobre os corpos no espaço social. Desenvolvendo estudos sobre o surgimento do conhecimento criminológico e seu controle sobre o corpo do De acordo com Kimmel (1998), não existe apenas um tipo de masculinidade, mas várias e subordinadas à representação do que é ser homem bem-sucedido (portanto “homem”, de fato e verdade) nas sociedades de culturas patriarcais: vencedor, forte, competitivo, destacado, rico, resistente à dor física e emocional, viril e que jamais foge dos desafios. Aqueles homens que não se enquadram nesse modelo, que sob inspiração do conceito gramsciano, o autor diz ser o modelo hegemônico, fariam parte de masculinidades representadas como periféricas e inferiores. 40 115 CÉSAR SABINO delinquente no espaço social da penitenciária, o autor apresenta o esquema do panóptico de Bentham como o modelo ideal posteriormente adotado pelas instituições disciplinares (escolas, exércitos, hospitais e fábricas) para a elaboração funcional de “corpos dóceis”, adaptados a então nova conformação institucional das sociedades europeias. Nesse processo, o surgimento da medicina clínica e da psiquiatria científica coincidiu com o desenvolvimento da arquitetura dos hospitais, das fábricas e dos manicômios, nos quais os corpos desregrados foram submetidos a uma crescente disciplinarização. Seguindo esse raciocínio, torna-se possível perceber que a organização de determinadas disciplinas, como a demografia, a geografia, a saúde pública, a sociologia e outras, pode ter representado um possível fortalecimento do controle social dos corpos no espaço urbano (FOUCAULT, 1988; 1993; TURNER, 1990; DELEUZE, 1995; RABINOW,1999; MAIA, 2003). Os estudos de Foucault sugerem – ao contrário da tradição platônica, para a qual o conhecimento seria o caminho para a supressão da suposta condição cativa do ser humano aos ditames da natureza (PLATÃO, 1996) – que os avanços do conhecimento não levam necessariamente à libertação irremediável dos indivíduos e de seus corpos do controle e da coerção externos, mas podem significar a intensificação de novas tecnologias de regulação social (DELEUZE, 1995). Porém não se deve pensar esse saber-poder como algo nefasto e coercitivo, sempre negativo e opressor, mas também como força produtora da realidade social e individual. É possível perceber o processo de gradativa administração corporal que se afigura a partir do século XVIII e que retrata a utilização das tecnologias disciplinares (dos saberes administrativos aplicados aos corpos), como empenhadas em aprimorar tais corpos para o uso e adequação à ética religiosa. Como exemplo de trabalho sobre esse processo de racionalização, Bryan Turner (1990) escreve sobre o discurso da dieta indicando que essa era um componente básico referido tanto à medicina quanto à religião – como forma de, por um lado, evitar doenças relacionadas ao consumo de alimentos considerados prejudiciais e, por outro, evitar aqueles alimentos que também eram considerados estimuladores da libido e perturbadores do bom funcionamento espiritual geral. Medicina e ética religiosa estavam, portanto, diretamente associadas. O tratamento do corpo era uma via para o aprimoramento religioso do espírito. Assim, o ascetismo que, gradativamente, toma conta das instituições seculares, escolas, fábricas, hospital e prisão é antecipado pelo ascetismo dos monastérios, nos quais os corpos, durante séculos, foram subordinados à disciplina cotidiana. Os tratados 116 DROGAS DE APOLO sobre administração dietética combinados com a exortação religiosa tornaram-se populares nos séculos XVII e XVIII. Os “regimes” associados à dieta médica conformaram um perfil específico de administração do corpo. A dieta conjugada com exercícios ao ar livre apresenta-se no cenário das sociedades europeias como uma solução proposta pelos médicos às desordens físicas e espirituais (WEBER, 1981; SYNNOT, 1993). A sobriedade à mesa, relacionada à dietética, refletir-se-ia sobre uma vida regrada e ascética como meio de alcançar a bem-aventurança. Segundo Cornaro, um médico religioso do século XVIII, a dieta produzia benefícios, como: estabilidade mental e controle das paixões, levando à temperança e à sobriedade, visto que as paixões violentas eram consideradas as principais produtoras das doenças, tanto orgânicas como sociais. A dieta, portanto, era percebida como uma defesa contra as tentações da carne e uma arma para o aprimoramento espiritual (CORNARO, 1776 apud TURNER, 1990). Esse discurso médico, perpassado de religiosidade ascética, estenderá seus domínios para a então nascente Saúde Pública, que se consolidará no século XIX e que terá nas disciplinas Nutrição e Demografia seus pilares principais41. O adoecimento passa a ser entendido como consequência do abuso individual e do desregramento sanitário e as classes baixas, a região, par excellence, da doença. Tais classes, segundo a concepção em voga na época, seriam incapazes de compreenderem e se adequarem plenamente aos avanços do verdadeiro conhecimento científico proveniente das insurgentes instituições disciplinares e, por isso, necessitariam da intervenção efetiva do Estado em seu cotidiano. Com a passagem do capitalismo mercantil para o industrial, o corpo apresentar-se-á como corpo trabalhador; em sua forma, estará inscrita o conteúdo de uma nova administração da vida social. Os discursos dietético e dos exercícios, embora ainda com conotações morais, tomarão perfil científico, modulando o aspecto religioso direcionando-se ao laico. O corpo será chamado a expressar novas demandas surgidas em É importante notar como essa postura ascética já se encontrava presente nos monastérios medievais. O consumo de carne em grande quantidade pela nobreza guerreira é atestado pelos historiadores que ressaltam o fato desse consumo para simbolizar força, poder e proximidade com a natureza : “a carne vermelha [...] tem [...] um papel importante na alimentação dos poderosos [...] a força é identificada à carne [e] também à quantidade de alimento que se come [...] a habilidade para comer mais rápido do que os outros é um sinal de nobreza”. Pelo fato de a carne representar a secularidade, os monges buscavam, ao contrário dos nobres, comer moderadamente evitando a presença da mesma em suas refeições: “a renúncia à carne – sinal de violência e morte, símbolo da natureza física e da sexualidade – é uma constante na espiritualidade monástica desde a origem da experiência cristã” (MONTANARI, 1998, p. 294, 298). Mas também é necessário destacar que, na maioria das sociedades complexas, há tradicionalmente maior consumo de vegetais do que de carne. Segundo o historiador Henrique Carneiro (2003, p. 63), “à exceção da Europa, praticamente todas as civilizações foram essencialmente alimentadas por vegetais”. Porém o autor destaca que, mesmo nessas, ocorria maior consumo de carne vermelha restrito às elites. 41 117 CÉSAR SABINO novos contextos sociais, econômicos, políticos, culturais e eróticos. A biologia, e toda ciência em geral, fornecerá a base necessária para a construção do corpo calcado na sexualidade (LAQUEUR, 1994). A ciência da nutrição, amparada nos estudos sobre a entropia relativos à termodinâmica42, passa a elaborar a mensuração dos efeitos das perdas e aquisições de calorias aplicadas ao aprimoramento da força dos soldados e da administração carcerária. Busca-se a combinação de uma dieta mínima com a máxima produção de energia, e isso será largamente aplicado à administração da força de trabalho, provedora de força muscular para o então capitalismo industrial emergente (TURNER, 1990; FEATHERSTONE, 1990; SANT’ANNA, 1994; 1995; RODRIGUES, 1999; DEL PRIORE, 2000). O corpo, nessa sociedade industrial, passa agora a ser informado não mais pela sobriedade religiosa, mas pelas tabelas de calorias e proteínas e pelas regras dos exercícios de otimização da força. A moral passa a radicar-se empiricamente na mensuração da aquisição e perda das energias e da aplicação dessas em instituições disciplinares. Ocorre, portanto, uma espécie de domesticação física, na qual a racionalização progressiva das práticas e dos discursos passa a atuar sobre o corpo relacionando-o às necessidades sociais que se apresentam a esse mesmo corpo e à força que ele porta e suporta (ELIAS, 1990; ELIAS; DUNNING, 1994). A partir do início do século XIX, as tecnologias simbólicas utilizadas pelos religiosos passam a ser articuladas com o objetivo laico de produzir bens para o consumo. Essa insurgente sociedade de consumo preocupa-se, agora, em preservar o corpo enquanto instrumento não apenas de trabalho, mas também de lazer. O corpo passa a ser visto como uma ferramenta a ser preservada, otimizada, administrada; e o indivíduo torna-se o responsável perante essa sociedade pela manutenção dessa ferramenta. Ele deve coordenar sua saúde, aparência, higiene; e deve divertir-se. A moral individual transforma-se em reflexo desse corpo, medida pela forma como o indivíduo Os estudos da termodinâmica, iniciados no século XIX, introduziram nova abordagem na Física que até então se baseava na concepção newtoniana de que qualquer estado de um sistema mecânico poderia, ao menos teoricamente, ser bidirecionalmente reversível desde que se soubesse as trajetórias e as velocidades dos corpos constituintes do mesmo. Nesse sentido, o tempo seria reversível, pois qualquer trajetória de qualquer corpo poderia ser retraçada em uma ou em outra direção. Com a entropia, grosso modo, perda de energia no sistema, introduz-se uma diferença irreversível entre os estados desse mesmo sistema – esse passa a ter princípio e fim, que não são intercambiáveis e indiferentes entre si. Com tal irreversibilidade dos sistemas, introduz-se na ciência a noção de “flecha do tempo”; o que inviabiliza, portanto, uma série de explicações de fenômenos mediante a ótica da simples causalidade mecânica, necessitando-se da adoção de modelos probabilísticos para sua descrição científica, que passa a perceber os sistemas como instáveis. A medicina e as disciplinas ligadas à saúde vão adotar essa descoberta em sua forma de representar o corpo humano (CAMARGO JR., 1993). 42 118 DROGAS DE APOLO cuida de si, de tal instrumento que passa a retratar sua índole e que se torna, gradativamente, uma espécie de vitrine de seu ser. Longe de apresentar-se apenas como um empecilho a ser domado para o bem-estar da alma, o corpo, com a criação do lazer, torna-se veículo do prazer (SANT’ANNA, 1994; 1995; ONFRAY, 1999). E, se é necessário, ainda, e cada vez mais, administrá-lo, por vezes asceticamente, para a potencialização da produção; essa administração apresenta-se pari passu como meio de aprimoramento circunstancial das técnicas de aquisição do prazer, portanto para o direcionamento da maximização deste nas denominadas “horas de folga” do trabalho. Lazer que se torna direito e necessidade de todos, em uma ética romântica do consumo complementar à ética protestante (CAMPBELL, 2001). Cria-se, portanto, uma espécie de racionalidade administrativa para o gerenciamento do devir individual com o objetivo de direcioná-lo para potencialidades dionisíacas que devem ser liberadas em determinados dias da semana ou momentos de quebra da rotina de trabalho. A mesma racionalidade que cria o ascetismo laborioso passa também a ser utilizada para concretizar a diversão hedonista, permitindo uma espécie de folga na conjuntura do mundo da produção; mas impondo-se, ao mesmo tempo, aos indivíduos enquanto dever. Dever de se divertir. No caso da alimentação, por exemplo, conforme ressaltou Jean-Louis Flandrin (1998), vai-se da dietética – retirada dos monastérios e espalhada para a sociedade – à gastronomia (ciência do comer bem), libertando-se a gula. Apolo e Dioniso entrelaçam-se na dança das tecnologias da dominação e do agenciamento populacional. A administração da diversão e a diversão administrativa refletir-se-á na disciplinarização do corpo ao tempo do trabalho, à velocidade social e às demandas do sistema. O tempo livre de lazer deverá, segundo os requisitos dos especialistas, ser utilizado para promover a saúde; passando essa, então, a ser traduzida pela forma de um corpo jovem, belo, ágil e forte, por intermédio das técnicas dos exercícios e dietas. Aparece conjugada ao lazer, a lógica da produção do corpo exemplar. Uma lógica da produção laboriosa nos espaços de trabalho que transforma-se em uma lógica da produção do corpo saudável nos espaços de diversão: controle de funções cardíacas, enrijecimento muscular, enquadramento de peso em tabelas padronizadas, dietas, equilíbrio emocional, e assim por diante. A saúde, radicada na excelência da forma, torna-se um bem valioso a ser conquistado e, simultaneamente, um diferencial, uma valoração distintiva entre vitoriosos (bonitos, fortes e saudáveis) e fracassados (fracos, feios, portanto doentes ou propensos ao adoecimento). No entanto, apesar de todo esse processo, o mesmo sistema 119 CÉSAR SABINO que cria tal construção da saúde, por intermédio dos exercícios e dietas, tende a ameaçar a vida, poluindo, congestionando, exaurindo corpos e músculos pelo excesso de trabalho e exploração de recursos naturais. E o “lazer terapêutico” (SANT’ANNA, 1995, p. 83), que reitera a necessidade de um corpo saudável e belo (confundindo sempre um aspecto com outro), não passa de um dos efeitos do poder inerente ao sistema social, criando atividades de cunho lúdico para a otimização das forças que constituem esse corpo enquanto consumidor e objeto a ser consumido na produção de uma nova organização social. O corpo-objeto será formado com “o desejo de si”, desejo que se debruça sobre o corpo concebido como conjunto de feixes de músculos e nervos, instrumento de trabalho e de prazer, máquina que deve se apresentar limpa, com bons aromas e reluzente. Ao indivíduo se impõem o dever e a necessidade de manter as peças dessa máquina nas melhores condições possíveis, por intermédio da articulação do conjunto de saberes relacionados às, e aprimorados pelas, emergentes ciências da saúde; quais sejam: exercícios com peso, ginástica, dietas e caminhadas ao ar livre. Todo esse processo leva parte significativa da sociedade ocidental a criar uma espécie de cultivo à forma, de somatofilia, “de desejo de seu próprio corpo através de um trabalho insistente, obstinado e meticuloso que [fruto daquilo que] o poder exerceu sobre o corpo sadio” (FOUCAULT, 1993, p. 146). Todo esse discurso que fundamenta nossa atualidade é sutil por se apresentar sempre como uma liberação do corpo (LE BRETON, 1990; CAMPBELL, 2001; DEL PRIORE, 2000). Essa liberação, hoje, não é mais do que o elogio do corpo jovem, higiênico, sadio, esbelto, bronzeado e com definições musculares. Percebe-se que, por meio de todo o conjunto simbólico midiático-publicitário, impõe-se como liberação de uma espécie de obrigação de cuidado do corpo: obrigação de se manter belo que pode levar à estigmatização daqueles que não enquadram sua forma nos modelos e valores cardeais da cultura contemporânea. Autoridade difusa que, em face da concepção de indivíduo peculiar às culturas ocidentais, talvez sustente a eficácia de uma administração coletiva. Talvez essa seja uma possível forma de tentar explicar o crescente sucesso das cirurgias plásticas “reparadoras”, implantes de silicone, dietas de emagrecimento, academias de musculação e ginástica, enfim da indústria farmacêutica da estética e de complementos alimentares e cosméticos. Essa racionalização instrumental tende a elaborar, mutatis mutandis, uma cultura hedonista, consumista, respaldada na exaltação da satisfação dos anseios individuais mais profundos levados ao paroxismo; hiperexaltação de desejos, 120 DROGAS DE APOLO como aquisição de beleza, vitalidade e dominação. Esses signos acabam por se transformar em espécies de imagens-objetos, representações sociais alimentadas por intermédio das técnicas de marketing, apresentando-se como convite a uma suposta satisfação plena (felicidade) e levando os indivíduos, muitas vezes, a buscarem, a qualquer custo, a realização sempre adiada de seus desejos insuflados pela máquina da produção de bens simbólicos. Esse processo de autossatisfação suprema, que segundo Christopher Lasch (1979) fundamenta uma espécie de cultura do narcisismo, torna, por vezes, difícil a prática da reciprocidade solidária devido ao hedonismo que comporta e conforma. Desejo de si que parece ter se fortalecido, tendendo a tornar-se uma espécie de mandamento das compulsões consumistas radicadas no corpo transformado em imagem-valor, novo instrumento do lucro a ser investido não apenas em competições rituais, mas nas crescentes redes sociais. Uma economia das trocas imagéticas se consolidando e produzindo um novo tipo de mais-valia a ser extraída 24 horas por dia, sete dias da semana mediante novas tecnologias da informação (CRARY, 2016). Sobre esse processo paradoxalmente simultâneo de ascese e consumo inerente à cultura ocidental, o trabalho de Campbell apresenta enfoque singular. O autor investe contra as teorias economicistas que tentaram explicar as origens da compulsão pelo consumismo típico do capitalismo atual. Corrigindo um desvio teórico que desprezou a importância do movimento romântico na história, ele avalia suas consequências relacionando-as às mudanças provocadas pela Revolução Industrial. Campbell argumenta que o hedonismo autoilusivo43 e o binômio sentimento/intuição – em detrimento da autoridade/razão – foram determinantes para a constituição da ânsia pela novidade, típica do consumidor moderno. Assim, a burguesia além de abraçar uma ética protestante, abraçou, pari passu, uma ética do consumo; produto da corrente romântica que se queria antagônica ao ascetismo, mas que acabou por celebrar com ele núpcias, formando um sistema regulado de contenção e liberação dos desejos, consolidando “uma ética do consumidor” (CAMPBELL, 2001, p. 18). Essa ética, longe de ser apenas produto do racionalismo puro – em geral apontado pelos weberianos como fator primordial para o fortalecimento do capitalismo –, foi produto contínuo da interação desse com os fatores presentes e expressos no movimento romântico: “Anseio de experimentar na realidade os prazeres criados e desfrutados na imaginação, um anseio que resulta no incessante consumo de novidade. Tal perspectiva, em sua peculiar insatisfação com a vida real e uma avidez de novas experiências, se acha no cerne de muita conduta extremamente típica da vida moderna e reforça as bases de instituições fundamentais como a moda e o amor romântico” (CAMPBELL, 2001, p. 288). 43 121 CÉSAR SABINO A lógica cultural da modernidade não é meramente a da racionalidade, como se expressa nas atividades de cálculo e experimentação: é também a da paixão e do sonhar criativo que nasce do anseio. Todavia, mais crucial do que uma e outra é a tensão gerada entre elas, pois é disso que... depende o dinamismo do Ocidente. A fonte principal de sua inquieta energia não provém apenas da ciência e da tecnologia, nem tampouco da moda, da vanguarda e da boemia, mas da tensão entre o sonho e a realidade, o prazer e a utilidade (CAMPBELL, 2001, p. 318, grifo do autor). Longe de ser asceticamente reprimido, o desejo que impele ao consumo é administrado, sendo, por exemplo – em um processo que Foucault (1990) percebeu ocorrer com a sexualidade – incitado a se mostrar, registrar-se, fazer-se presente, tornar-se objeto de verdade. Afinal, se há poder há sempre contrapoder. Sem o consumo de mercadorias, que transforma até mesmo os corpos dos consumidores em objeto de consumo, a razão econômica do capitalismo não se sustentaria. Paradoxalmente, a jaula de ferro da burocracia extrema (com sua tendência ao desencantamento do mundo), para a qual Weber disse caminhar a vida do homem moderno, só se sustenta porque esse mesmo homem remitifica seu caminho tentando conciliar duas figuras ou tipos ideais que existem nele: o boêmio romântico com o protestante asceta. A prática do fisiculturismo pode ser considerada um exemplo dessa postura paradoxal. Luís Fernando Dias Duarte destaca ainda outros itens referentes à consolidação da cultura ocidental hodierna que são bastante úteis para a compreensão sociológica desse processo hedonista de construção da forma. Segundo o autor, a modernidade conferiu um caráter singular à sensibilidade fazendo com que essa tenha uma história e, portanto, um sentido específico, rebatendo-se na formação ideológica e institucional das práticas nas sociedades ocidentais. A ideologia e, consequentemente, a prática, nas sociedades complexas atuais, sustentar-se-iam sobre três características importantes: a perfectibilidade, a experiência e o fisicalismo. A primeira estaria radicada na concepção – presente de forma clara, desde a obra de Rousseau – de que a espécie humana tem a capacidade indefinida de se aperfeiçoar, de entrar na senda disso que nós chamamos de progresso, o desenvolvimento, a transformação ilimitada, a vanguarda, palavras essas fundamentais para a nossa cultura (DUARTE, 1999). A segunda característica, a experiência, estaria diretamente relacionada à primeira, posto que a perfectibilidade implicaria o uso sistemático da razão, considerada um “mecanismo de verdade” encon122 DROGAS DE APOLO trado impresso no interior de cada ser humano e que deveria sustentar sua responsabilidade ativa em relação à divindade, a si mesmo e a outrem. Tais perspectivas poderiam ser encontradas, mutatis mutandis, nas filosofias de Descartes e Kant e sustentariam que o uso sistemático da razão permite o avanço do ser humano em suas condições de relação com o meio. Nesse processo, a experiência seria crucial, visto que a razão só viceja por meio dela – da experiência – colocada em prática por intermédio dos sentidos. A razão, portanto, a perfectibilidade, só funciona quando os seres humanos articulam, via sentidos, sua percepção e relação com o mundo que os cerca. Nesse movimento consolida-se a concepção de que as novas formas (racionais) de relação com o mundo permitem a esses tornarem-se, eventualmente, mais aperfeiçoados, mais capazes e senhores de seu futuro. Essa exaltação da experiência, presente na cultura ocidental moderna, estaria, de acordo com Duarte, na raiz de movimentos filosóficos e artísticos tão díspares quanto o empirismo e o romantismo. O autor, inspirado na já citada obra de Campbell (2001) e em Schivelbusch (1993), escreve que o sentimentalismo inglês, movimento histórico do século XVIII, influenciou o romantismo conferindo: [...] a mediação gnosiológica, epistemológica, analítica nos ‘sentidos’ como veículo de instrução das atividades da mente e a ênfase vivencial, ‘sentimental’, nos ‘sentidos’ como veículo de articulação das relações humanas. Os sentidos estão tanto na raiz da razão como na da ‘imaginação’ ou das ‘emoções’ e ‘paixões’. O fato cognitivo da ‘experiência’ se reduplica em fato emocional (DUARTE, 1999, p. 25). Nesse processo, a terceira característica é o fisicalismo, que completa o quadro sumário de aproximação entre as formas modernas da sensibilidade. O fisicalismo “é uma revolução” visto que instaura uma “separação radical entre o corpo e o espírito (expressa, por exemplo, na filosofia de Descartes)”, permitindo a concepção da corporalidade humana como dotada de lógica própria, “que deve ser descoberta e que tem implicações imediatas sobre a condição humana”. O fisicalismo, então, “é a consideração da corporalidade em si, como dimensão autoexplicativa do humano” (1999, p. 25). Está aberta a via para a concepção do corpo como um valor e o surgimento da cultura das formas (GOLDENBERG; RAMOS, 2002). Os trabalhos referidos ao bodybuilding, em geral, ressaltam apenas a dimensão do racionalismo ligado à construção do corpo musculoso. Sem embargo, Courtine (1995), em sua análise dos fisiculturistas californianos, destaca apenas o aspecto puritano do que ele considera um 123 CÉSAR SABINO narcisismo ostentatório. Abordagem que não enfoca, ao menos de forma clara, essa outra dimensão radicada na exaltação dos sentidos presente no cotidiano daqueles que constroem a forma musculosa como um dos objetivos de sua existência. A dimensão festiva, os períodos de desregramento social, as orgias alimentares e, mesmo, os sonhos sustentados pela atuais mitologias das sociedades de consumo – repletas de heróis individualistas que buscam realizar o mito de uma vida sem doenças, viabilizadora do estrelato, ou de um suposto corpo imortal –, conforme ressaltou Lucien Sfez (1996), ao diagnosticar o surgimento da nova utopia da saúde perfeita, tendem a se contrapor à falência das grandes narrativas, mitificando os próprios avanços científicos representados, por exemplo, pelos projetos Genoma e Biosfera II. O uso de componentes químicos para construir a saúde aparente parece fazer parte desse processo de busca mítica que tende a ficcionalizar os avanços tecnológicos e científicos na busca de uma realidade ideal agora radicada no corpo e suas potencialidades. Processo cultural sustentado pela prática específica de agenciamento corporal que hoje pode significar nova modulação nas tecnologias de poder e dominação em uma sociedade de controle (DELEUZE, 1995; RABINOW, 1999), na qual não apenas os muros institucionais administram a vida dos indivíduos, mas também os dispositivos de biopoder radicados e potencializados pelas novas tecnologias cibernéticas. Dispositivos abertos e contínuos que, baseados, dentre outros aspectos, na busca do controle genético e biotecnológico, podem estar traçando o esboço de uma nova conformação social. 3.2 DROGAS MASCULINIZANTES E INDIVIDUALISMO É possível perceber, nas academias de musculação, como o indivíduo é considerado responsável pelo controle de seu corpo. Controle que é desenvolvido gradativamente em um crescendo que acaba por se tornar uma espécie de conversão por ele reconhecida mediante a análise comparativa que realiza da sua vida antes de se tornar marombeiro e depois: [...] antes de começar a malhar eu era magrelo e envergonhado. Não tinha coragem de chegar numa mulher. Ficava só na minha, desanimado... Aí, entrei pra academia, porque tinha um cara na minha rua que tinha entrado e tava ficando grande e todo mundo, as garotas, falavam:’ fulano tá ficando bonito, tá ficando com o corpo legal...’ Eu fui e entrei, comecei a malhar em um ano já tava 124 DROGAS DE APOLO pegando pesado e tinha aumentado dez quilos de massa magra [...] minha vida mudou completamente. Passei a me respeitar, a ter coragem de olhar no espelho e de olhar o mundo nos olhos e a conseguir o que eu queria na vida. Hoje eu sei que posso, eu mesmo, traçar meu próprio destino (Pedro. 23 anos. Estudante universitário). Essa concepção individualista que confere à pessoa a capacidade de fabricar seu próprio destino perpassa o discurso tanto de homens quanto de mulheres. A ela se soma o dualismo cartesiano entre corpo e mente, matéria e espírito. O corpo aparece como objeto sobre o qual atua o poder da mente; mero instrumento que deve ser aprimorado para que o espírito atinja seus objetivos44. Esse aprimoramento deve contar com o imprescindível auxílio da ciência, e é nesse ponto que as drogas apolíneas entram em cena: Quando alguém faz exercícios deve concentrar a força da mente sobre o corpo. Sobre aquele músculo que quer desenvolver. O corpo obedece ... faz aquilo que a mente manda [...] você pode construir o corpo que você quer, que você deseja; cada vez mais a ciência vai desenvolvendo instrumentos que fazem as pessoas superarem os limites genéticos. Os anabolizantes servem pra isso, né?! Agora tem o GH [hormônio do crescimento] que faz o cara crescer absurdamente e pelo que parece não tem efeito colateral [...] só não fica bonito e forte quem não quer ou quem não tem dinheiro. (João. 29 anos. Professor). Ou, [...] o corpo [é] fabricado, produzido, se o cara tem disciplina, força de vontade. É claro, tem um preço [...] sem ‘bomba’ não cresce, tem que tomar ‘bomba’. Cê vê, todo mundo tá tomando anabolizante agora, essas atrizes [...] os atletas então, nem se fala. Então tem que tomar, sem bomba não cresce. Já ouviu aquela frase dos americanos: “no pain, no gain”; “sem dor não há ganho”. É isso aí. (Carlos. 46 anos. Pequeno empresário). Os pares de oposições binárias, anteriormente mencionados – fortes/ fracos, saudáveis/doentios, bonitos/feios – estão diretamente relacionados com uma cultura, ou Weltanschauung, específica; não se deve desprezar o fato O “poder da mente”, presente no discurso dos agentes sociais, mereceria um capítulo à parte no estudo do fisiculturismo, devido às representações que permeiam a prática dos treinamentos. Em sua enciclopédia do fisiculturismo, Arnold Schwarzenegger dedica um longo capítulo ao que ele denomina “o dínamo, a fonte de energia vital” que conduz, de forma boa ou má, o corpo: “aonde a mente vai o corpo vai atrás” escreve, dando conselhos como “a chave para o sucesso nas sessões de treinamento é transpor a mente para dentro do músculo” (SCHWARZENEGGER; DOBBINS, 2001, p. 229, 232). 44 125 CÉSAR SABINO de que a maioria dos marombeiros são indivíduos pertencentes às camadas médias urbanas em busca de ascensão – radicada em disposições duradouras como gostos de classe. Esses gostos, que reiteram a distinção social, traduzem-se em signos exteriores, sendo a forma física o signo de distinção por excelência do grupo estudado. A musculatura rígida e evidente surge como sinal de distinção e poder; mas ter o corpo trabalhado, por máquinas e fármacos, é diferente de ter um corpo de trabalhador (BOLTANSKI, 1979). Destarte, o aspecto mais intrigante desse processo de construção corporal da distinção é a adesão de algumas mulheres ao culto e cultivo de uma estética, e mesmo de uma aparente ética, masculinizante. O modelo da masculinidade hegemônica – o homem forte, destemido, independente e durão – parece ser adotado por número significativo de mulheres das academias que buscam conquistar posição de respeito no campo, construindo corpo próximo ao modelo hipermusculoso. Fato presente não apenas nas academias de fisiculturismo, mas também em algumas dimensões da sociedade atual, como empresas, não no aspecto físico, mas ético – poderia ser denominado Complexo de Piegan. Para a melhor compreensão desse aspecto, será utilizado um exemplo etnográfico: entre os índios piegan do Canadá, existem mulheres denominadas “coração de homem” (LEWIS, 1941 apud HÉRRITIER, 1989). Nessa sociedade patriarcal, o comportamento feminino ideal é feito de submissão, reserva, doçura, pudor e humildade. No entanto, entre eles, existe esse tipo de mulher que se comporta sem reserva e modéstia, com agressividade, arrogância e audácia. Os piegan homens aceitam essas mulheres porque elas são poderosas. De fato, para ser uma “coração de homem”, é preciso ter uma posição social elevada e uma excelente condição econômica. Essas mulheres, todas casadas, conseguem orientar seus próprios assuntos sem o apoio dos homens e, por vezes, nem deixam que os maridos empreendam, seja o que for, sem seu consentimento. Algumas chegam a se comportar como homens urinando publicamente, cantando músicas masculinas e participando das conversas dos homens. O exemplo dessa sociedade é sugestivo. Nela, essas mulheres conseguiram impor aos homens sua aceitação. Eles, por sua vez, como indica o próprio termo que utilizam para denominá-las, classificam-nas como tendo âmago masculino; ou seja, elas estariam entre a masculinidade e a feminilidade pendendo muito mais para a primeira. Ousando seguir uma sugestão feita por uma frase de Dumont: “aquele que se volta com humildade para a particularidade mais ínfima é que man126 DROGAS DE APOLO tém aberta a rota do universal” (1993, p. 52), é possível propor uma breve comparação da sociedade piegan, nesses aspectos específicos, com a nossa ou ao menos com o grupo estudado. Entre eles, como entre nós, apenas as mulheres com respaldo socioeconômico parecem conseguir realizar alguns atos que são considerados privilégio masculino, e essa independência é possível devido a esse poder que as torna independentes dos homens – ao menos até o momento. Entre eles, também, como entre nós, essas mulheres independentes tendem a adotar o ethos masculino. Por fim, existe a questão semântica que classifica independência, empreendimento e audácia como componentes da personalidade masculina radicando esses itens na própria natureza biológica (GOLDENBERG, 1997), já que o coração de tais mulheres é de homem; isto é, sua essência – se é que essa palavra pode ser aplicada aos piegan – é masculina. Na perspectiva nativa, tudo se passa como se a masculinidade dominante trouxesse em si todos os atributos considerados necessários, tanto por homens quanto por mulheres, à gerência da vida social (MUNIZ, 1992). A positividade de qualquer dimensão parece estar, portanto, associada à tradicional condição masculina hegemônica. Promotor, imperioso e desbravador, o sexo masculino representaria o centro irradiador das virtudes humanas. Essas categorias inconscientes estão presentes tanto no pensamento de homens e mulheres piegan quanto no pensamento de nossos fisiculturistas. Talvez isso explique a crescente busca, por parte de mulheres independentes, da adoção da ética masculina e, de certa forma, do cultivo de corpos mais magros e musculosos tendendo à masculinização, já que elas são obrigadas a reutilizar, contra os dominantes, as suas próprias armas, tendo que aplicar e aceitar as próprias categorias que pretendem demolir, integrando as mesmas categorias contra a qual se revoltam (BOURDIEU, 1996b). Apesar de serem exemplos de independência feminina, inconscientemente, tais mulheres – da mesma forma que vêm fazendo os homens há milênios – semantizam a condição feminina tradicional, e tudo que a ela se relaciona, como condição incompleta que deve ser evitada por todos aqueles que querem ser bem sucedidos. Contra a violência simbólica, utilizam as próprias categorias que a constituem enquanto tal. Portanto, não seria todo esse movimento pós-revolução feminista de cultivo à forma musculosa e/ou magra – e o uso de esteroides talvez apenas um pequeno exemplo – o prenúncio, ao menos circunstancial, de uma androlatria que viria marcar uma parcela das relações de gênero neste início de milênio? 127 CÉSAR SABINO Esse processo também indica a radicalização do individualismo presente nas culturas ocidentais, levando os seres humanos a considerarem não apenas o corpo de outros seres humanos como objeto, mas também o seu próprio corpo como tal. O corpo alheio (assim como o do próprio indivíduo), e tudo aquilo que ele representa, da beleza aos órgãos transplantados, é reduzido a uma espécie de mercadoria, objeto descartável e plástico, passível de ser facilmente consumido e substituído por outro (RODRIGUES, 1987; LUZ, 1988; DUARTE, 1999). A lógica do consumo, o fetichismo da mercadoria, invade, dessa forma, dimensões significativas das relações humanas, dos negócios passando pela medicina e chegando aos relacionamentos amorosos (SIMMEL, 1993). Ainda outra questão se apresenta em relação ao consumo de esteroides anabolizantes por aquele(a)s que buscam a adesão ao modelo estético veiculado pelos meios de comunicação atuais. Ao contrário de reduzir sociologicamente o problema do uso dessas substâncias à escolha racional e livre dos indivíduos, o que tende a perfilá-los como únicos e plenos responsáveis pela sua condição ilegal de usuários de drogas, torna-se necessário encarar o processo como um fato social em toda sua complexidade, reiterando a força e a plenitude da dimensão cultural na qual tais indivíduos estão inseridos. Condição que os produz ao mesmo tempo que por eles é inconscientemente (re) produzida. 3.3 RITUAL E CONSTRUÇÃO DE PESSOA NO FISICULTURISMO Goldman (1985), em um trabalho sobre a construção de pessoa e possessão no Candomblé, descreve e esclarece como o ritual tem a capacidade de elaborar a identidade dos indivíduos no desenrolar de um processo específico de interação social. Para o autor (p. 39), a fabricação da divindade – já que o orixá ou “santo” é feito – “corresponde à gênese de um indivíduo ‘novo’”. Essa construção processa-se gradativamente por intermédio de ritos de passagem que fixam orixás na cabeça do indivíduo e simultaneamente conferem-lhe novo status no grupo – já que o orixá é também um componente da pessoa. Após 21 anos somente, quando o sétimo orixá foi assentado, é que a pessoa está “pronta”. Nesse movimento de ascensão na ordem simbólica, efetua-se também a ascensão na estrutura social do terreiro. Cada santo assentado significa um patamar ascendido na hierarquia do grupo. Quando o último assentamento se conclui, o indivíduo torna-se “senhor de si e de outros”. “Senhor de si” porque controla 128 DROGAS DE APOLO seu transe, não sofrendo mais a possessão comum aos neófitos e iniciados mais novos; “senhor de outros” porque torna-se tata, alguém que chegou ao ápice da hierarquia social no terreiro e tornou-se uma pessoa completa. A pessoa, nessa concepção, é considerada fragmentada, folheada, múltipla, e todo o esforço do sistema, realizado ritualisticamente, parece voltado para fundi-la em uma grande unidade que, enfim, nunca se realiza plenamente; já que, segundo a cosmologia do Candomblé, os únicos seres plenamente unitários são os orixás. No campo da musculação, o processo é parecido. Tal afirmação não significa que a musculação deve ser considerada uma religião, e sim que determinados processos rituais são similares em instituições diferentes. Como bem notou Bourdieu (1996a, p. 95), “o rito propriamente religioso é apenas um caso particular dentre todos os rituais sociais”. A construção da pessoa no fisiculturismo se realiza por meio da construção da forma física musculosa. Essa construção não é tão bem delimitada como ocorre no Candomblé em que o período de fabricação da pessoa já está mais ou menos estabelecido. Nas academias de musculação, o processo é menos longo, levando de dois a quatro anos – no caso de profissionais pode se estender por até 10 anos. Para que um neófito torne-se um bodybuilder, tem que adequar seu corpo à forma correspondente desse papel social; e, para que tal processo ocorra, de forma considerada eficaz, ele necessita utilizar drogas. Assim, o uso da droga constitui-se aqui como “um fato social total”, acontecimento de dimensões biopsicossociais, como escreveu Mauss (1974). Cabe ressaltar, porém, a dimensão simbólica desse uso específico. Entre os marombeiros, há um rito de passagem (TURNER, 1974) ou, como prefere Bourdieu, (1996a), um rito de instituição, no qual o uso da droga surge como item crucial na transição do indivíduo de um status para outro no campo da musculação. Esse relato, um entre muitos, é um pequeno indício do que pode significar o uso de anabolizantes: A primeira vez que tomei “bomba” foi o Paulão que me arranjou e me aplicou também... eu tinha muito medo, mas sabia que mais cedo ou mais tarde eu teria que tomar se eu quisesse chegar aonde eu queria. Naquele dia passei a me sentir outra pessoa... vi que começava a malhar de verdade, que participava de uma espécie de... acho que... segredo... Fora isso o efeito foi muito bom. Na mesma semana já tava pegando quinze quilos a mais no leg press, todo mundo tava dizendo: Aí, hein, tá com maior pernão... tá sarada. Diante disso só dá pra se sentir bem, né?! Cê se sente forte, gostosa e poderosa [risos]. (Márcia. 29 anos. Economista e Empresária). 129 CÉSAR SABINO O início do consumo de anabolizantes pode ser considerado um rito que consagra a diferença, instituindo-a. Esse rito ressalta a linha de passagem entre um status – o de indivíduo comum – para a condição de aspirante a outra posição superior. O que deve ser destacado é que a hierarquia de papéis nas academias de musculação se inscreve no corpo por meio da forma que esse gradativamente adota. Isto é, a mudança física fabricada significa mudança de status, pois essa traduz a aquisição de capital de competência – onde comprar as drogas, como utilizá-las, com quem, quais os efeitos de cada uma, para qual objetivo cada uma delas se presta –, além de capital corporal. Esse rito delimita a distribuição de autoridade no interior do campo por meio do que Lévi-Strauss (1975) denominou de eficácia simbólica; ou seja, o poder, que é próprio do rito, de agir sobre a realidade agindo sobre a representação que os indivíduos fazem dessa realidade. Portanto, nas academias, ao adquirir, pari passu, um corpo musculoso, o aspirante a marombeiro vai sendo consagrado a um novo papel em conformidade com as camadas musculares que adquire. Sua identidade fragmentada vai sendo construída pelo processo ritual até que o indivíduo se torne um fisiculturista. Para que isso ocorra, ele passará gradativamente por uma escala de papéis que vai do neófito e passa pelo veterano. Contudo, diferentemente do processo ritual estudado por Goldman no Candomblé, em que o indivíduo que se torna chefe de terreiro não necessita mais pagar seu sacrifício que é, no caso, a possessão; o marombeiro, mesmo que chegue a ser fisiculturista, terá sempre que pagar o preço do sacrifício de tomar drogas e incorrer nos riscos que o consumo dessas representa, pois sua pessoa está radicada diretamente na forma que seu corpo apresenta. Como essa forma está sempre em risco de se deteriorar – já que depende de drogas e exercícios –, sua identidade como marombeiro também está constantemente ameaçada. Esse processo de construção social da pessoa do marombeiro é similar ao processo de construção da masculinidade, já que o “homem de verdade” tem que estar constantemente provando a si e aos outros que é forte e macho o bastante. O rito de investidura entre os frequentadores das academias se realiza, primeiro, com o início do uso de esteroides e, posteriormente, por meio de diversos tipos de festas e eventos para os quais passa a ser convidado. Nesses, o indivíduo começa a desfrutar a sociabilidade exterior à academia, consolidando sua posição no campo por intermédio do reforço das relações sociais. O fato de ser convidado já significa o reconhecimento pelo grupo de um novo status atingido pelo indivíduo devido a sua forma física. Esses ritos 130 DROGAS DE APOLO vão demarcando as posições entre dominados e dominantes, entre aqueles que são “fortes, saudáveis e bonitos” e os outros que são “fracos, doentios e feios”. Nesse sentido, é possível repetir com Bourdieu (1996a, p. 100) que as instituições são “atos de magia social”, pois “criam a diferença ex nihilo”. Nesse processo, os esteroides parecem elixir, uma espécie de infusão mágica que pode modificar a forma corporal do usuário. Esses fármacos representam item fundamental nesse processo de construção estética diferencial e masculinizante. Todos (as) os(as) usuários(as) sabem que seu uso pode causar câncer, impotência sexual e até mesmo morte, por isso mesmo representa papel importante nos ritos de instituição que compõem a construção de identidade entre os marombeiros. É a utilização do sofrimento que faz com que esses ritos sejam o que são, pois os indivíduos aderem de maneira tanto mais decidida a uma instituição ou organização quanto mais severos e dolorosos tiverem sido os ritos iniciáticos a que se submeteram (BOURDIEU, 1996a; TURNER,1974; LE BRETON, 1995). 3.4 A FORMA DA DOR Antes de julgar ignorância ou falta de racionalidade o fato de alguns indivíduos colocarem em risco a própria existência utilizando drogas, é necessário focalizar o aspecto social que confere significado a tal uso. Esse uso, frequentemente, está imerso em sistemas simbólicos com lógica própria. Em se tratando do sistema simbólico inerente aos grupos sociais das academias, a dor e o sacrifício aparecem como um preço a ser inevitavelmente pago pela conquista de uma vitória presumível na construção de uma identidade inerente à aceitação em um grupo restrito. A demanda de significação face à dor experimentada ultrapassa o sofrimento imediato: “Compreender o sentido de sua pena é uma outra maneira de compreender o sentido da vida” (LE BRETON, 1995, p. 107), pois todo grupo social define implicitamente a legitimidade de suas dores. No caso das academias de musculação, ela – a dor – não apenas está presente no risco causado pelo uso dos esteroides, mas no próprio cotidiano dos exercícios. O fisiculturista, por meio da sua prática, aprende a construir um vasto mapa sensorial – um saber corporal – que classifica os tipos de dor, alocando-os em mais ou menos danosos, construtivos ou destrutivos. A dor (e o risco de morte e de lesões) é vista de forma positiva, e sua constituição é ritualizada de forma a conferir àquele que a sente e cultiva um determinado papel construído por intermédio das interações sociais nas 131 CÉSAR SABINO quais o próprio sentimento da dor apresenta-se como fator fundamental da elaboração identitária. A capacidade pessoal de resistência ao sofrimento doloroso – relacionada aos gradativos exercícios com pesos que acabam causando lesões por esforço repetitivo e hérnias – é uma via de aquisição de status no grupo, visto que também a concepção de dor purificadora está presente nesse universo. Assim, o risco de morte e a intensidade da dor sofrida realizam um processo ritual de construção do papel social que se institucionaliza conferindo àquele que se submete ao processo uma aceitação crescente. O uso ritual e o sentimento da dor consagram a diferença, instituindo-a. Dor e drogas, no campo da musculação ou do fisiculturismo, fazem parte de ritos de passagem, ou de instituição, que não apenas permitem a passagem dos indivíduos de um papel a outro no grupo (BOURDIEU, 1996), mas também reiteram as características específicas de status, já que a eficácia e o poder daqueles que estão em funções de dominação devem ser constantemente provados por meio de ações que constituem as representações de poder. O rito da dor e das drogas delimita a distribuição de autoridade no interior do campo da musculação mediante o que Lévi-Strauss (1976) denominou eficácia simbólica; ou seja, o poder, que é próprio do rito, de agir sobre a realidade agindo sobre a representação que os indivíduos fazem dessa realidade. Portanto, nas academias, ao adquirir, pari passu, um corpo musculoso, o aspirante a fisiculturista consagrado (ao menos no seu grupo delimitado) vai sendo alçado a um novo papel. Sua identidade – mesmo sendo volátil, visto depender da brevidade da forma – vai se construindo continuamente, e a dor e o risco de morte inscrevem-se como emblemas em seu corpo moldando em sua carne o perfil musculoso do status diretamente radicado na fugacidade. Fugacidade que acaba tornando-se a tragédia daqueles que da forma extraem quase todo seu poder (SABINO, 2000; 2003). Por outro lado, quanto mais difíceis são as etapas pelas quais um indivíduo passa para pertencer a uma instituição, e desfrutar seu status, mais valor ele confere a essa (BOURDIEU, 1996; 2001; 2004; SEGALEN, 2002). A existência de distinção das dores45 entre os fisiculturistas demonstra um entendimento sensorial do metabolismo muscular que as organiza em Até a década de 20 do século XX, a dor apresentava papel diverso daquele que passou a apresentar posteriormente com a crescente apologia do conforto inerente à sociedade de consumo. Com o surgimento de substâncias para controlar a dor, ela foi relegada a uma dimensão exígua da realidade: “A dor física pertencia à vida cotidiana, e não era vista como uma falha da medicina. Consumia-se uma quantidade muito menor de analgésicos do que hoje em dia, e as pessoas, bem ou mal, se acostumavam a suas insônias sem recorrer a soníferos […]” (VINCENT, 1992, p. 324). 45 132 DROGAS DE APOLO boas dores, aquelas que apontam para “um funcionamento construtivo do músculo”; entenda-se tal aspecto enquanto crescimento muscular, e dores más aquelas que apontam para lesões articulares. Assim, o edema muscular pós-treinamento é o melhor sinal de que os exercícios estão fazendo efeito. Eu ‘malho’ há seis anos e já tô viciado nessa dorzinha aguda que dá dentro do músculo depois de cada treino bom... não sei viver sem isso... no carnaval, quando viajo fico maluco!!! Me penduro em árvore pra fazer flexão de braço, fico procurando bujão de gás pra levantar... agora abriram uma academia lá em Araruama, tomara que funcione nesse carnaval... não consigo ficar sem malhar... quando paro de sentir o músculo doendo depois dos treinos ou no dia seguinte, começo a ficar doente e deprimido (Gabriel. 22 anos. Estudante). Ao contrário da dor positiva, que ocorre após o que chamam “exercícios de qualidade”, acionada pelo movimento do grupo muscular treinado, dor que não produz qualquer impedimento à movimentação; há a dor negativa, que é definida como mais circunscrita a uma determinada região e com intensidade diversa diretamente associada à dificuldade de movimentação daquele grupo muscular, ou mesmo membro. Enquanto a concepção de boa dor está ligada à execução perfeita de exercícios e séries da musculação, a má dor, ao contrário, é resultado de excessos e execuções equivocadas. Assim, basta o diagnóstico de uma dor de intensidade diferente em local suspeito para que o indivíduo portador dela seja classificado pelos especialistas nas academias – professores ou fisiculturistas mais experientes – como propenso a adoecer (sofrer lesão muscular ou de articulação) devido ao fato de ter realizado de forma errônea seus exercícios. Nesse aspecto, pode-se repetir com Le Breton (1995, p. 108): Todas as sociedades definem implicitamente uma legitimidade da dor que antecipa as circunstâncias sociais, culturais ou psíquicas reputadas penalizáveis. Uma experiência acumulada do grupo conduz seus membros a uma expectativa da dor costumeira imputável a esses acontecimentos [...] a sociedade indica simbolicamente o limite do lícito, ao realizar tal processo se esforça para dissuadir os possíveis excessos. Há, entre os fisiculturistas, portanto, uma ritualização da dor que organiza os sentidos musculares e transborda em sentimentos sociais de progresso na prática ou de recesso causado pela conduta errada. Tal aspecto estende-se também à alimentação: enjoos, mal-estar, falta de disposição 133 CÉSAR SABINO são tidos como uma espécie de variação desta(s) dor(es) causada pela má conduta, consciente ou não, daquele que é o sofredor desses processos de disfunção fisiológica. Entre eles, a dor negativa e perigosa é aquela que prenuncia a impossibilidade de treinar, aquela que indica bursites, tendinites ou problemas nas articulações dos joelhos e tal impedimento de treinar é o castigo mais doloroso, visto que sua identidade está relacionada à forma física, a qual depende de intenso treinamento diário para ser mantida. Perder essa forma não apenas significa retrocesso e queda de status, mas também a perda da própria identidade pessoal e consequente exclusão do grupo; ou seja, morte social. A performance muscular radicada na percepção das modulações da dor46 é, grosso modo, o cerne da busca pela diferenciação em relação a outros grupos e identificação dentro do próprio grupo de fisiculturistas: [...] a dor, essa dor no fundo do músculo, quer dizer que a malhação tá certa, cara; e depois você sente aquela sensação de leveza depois da adrenalina do exercício [...] e se você sente isso você tá crescendo, cê tá se diferenciando dos inferiores, dos comuns, dos pangarés.(Carlos. 24 anos. Estudante). A intensidade da dor aparece também como a via de ascensão hierárquica e mesmo espiritual: […] é demais sentir cada fibra arrebentando quando você tá malhando pesado e depois aquela dorzinha aguda no dia seguinte... cada movimento que você faz ela tá lá te lembrando que você tem o dever de continuar, que você deve voltar de novo pra academia e fazer outra série mais pesada, mais dolorida, mais radical, cara, pra crescer mais e mais e mais e se tornar um campeão. É disciplina, e sem disciplina não se chega a lugar nenhum. Sem dor não se ganha nada na vida... é um vício, se eu não sinto dor no dia seguinte após malhar é porque alguma coisa tava errada, é porque a maromba não foi direita, a malhação foi fraca, sem efeito [...] no pain no gain. Essa é a diferença de quem malha sério do resto que não malha. (Pedro. 29 anos. Funcionário público). Os outros, nesse discurso, os “frangos” ou “pangarés”, são todos aqueles que não têm inscrito, em seus músculos, a marca da disciplina rígida traduDurante o tempo de trabalho de campo, percebi que o treinamento deve levar a um quantum de dor muscular residual e também uma certa dor nos músculos e tendões. Esse aspecto atesta, entre os praticantes assíduos de musculação, um treinamento eficaz. Saber diferenciar essa dor da lesão é fundamental para o fisiculturista, e tal saber só é adquirido com a prática, em geral após sofrer lesão grave. O que se pode dizer é que o início da lesão grave é atestado pela intensidade da dor que chega a limitar os movimentos. 46 134 DROGAS DE APOLO zida na dor dos exercícios pesados e repetidos durante anos de prática nas academias. Esse regozijo da dor, típico de um ascetismo singular, parece significar que, em uma era na qual a busca pelo prazer tornou-se norma, o sentido da dor é a única maneira de afirmar a vida sem se sentir igual a todo mundo. Porém esse processo esquece que seu próprio movimento reitera a reprodução pela busca incessante do gozo que a sociedade do consumo e do espetáculo engendra. Arriscar a vida tomando substâncias tóxicas, como esteroides e estimulantes, como efedrina ou mesmo insulina,47 é outro aspecto da apologia ao risco e à dor que sistematiza a identidade do grupo: Cara, eu não sei como te dizer o que sinto... posso tentar, sei lá... sabe quando tu bota um pega [corrida de carro] e a adrenalina vai a mil? Sabe quando tu tá de moto e tira um fino entre dois caminhões ou faz aquela curva no Alto da Boa Vista, é isso... esporte radical, entende? Tomar bomba, insulina é isso, é um risco, mas dá prazer […] é o risco que dá prazer, que é bom [....] tudo que é proibido é bom e o melhor é que além disso tu fica sarado, você toma produto, curte e ainda fica bonito, não é o máximo? (Mário. 32 anos. Personal trainer e fisiculturista). Essa combinação, aparentemente comum à sociedade de consumo, induz os indivíduos a desejarem extrair sempre mais prazer de seu cotidiano, combinando a ética do trabalho protestante – com sua disciplina e ascetismo – ao hedonismo e narcisismo de uma ética imediatista do consumo (CAMPBELL, 2001; VILLAÇA; GÓES, 1998). Além de saberem claramente dos riscos que correm – o que derruba a tese do Ministério da Saúde de que o uso ocorre devido à ignorância dos mesmos riscos –, os marombeiros em geral vêm a dor, e o próprio risco, nesse sistema simbólico, diretamente associada a uma espécie de purificação que poderia ser traduzida pela categoria de “perfectibilidade” (DUARTE, 1999, p. 24). A ideia, inerente ao imaginário ocidental – provavelmente surgida com o movimento iluminista – de que a espécie humana é dotada de uma capacidade de se aperfeiçoar indefinidamente, [...] de entrar na senda disso que desde então [século XVIII] chamamos de progresso, o desenvolvimento, a transformação ilimitada, a vanguarda – palavras estas fundamentais para O uso dessas novas drogas pode ser inserido em um processo típico das sociedades complexas ocidentais denominado, por Ivan Illich (1975) e Duarte, “medicamentalização”. De acordo com o autor, esse movimento, com o auxílio dos meios de comunicação de massa, exalta o uso do corpo, a construção de um corpo ótimo, a maximização da saúde etc. (DUARTE, 1999, p. 22). Paradoxalmente, essa maximização por vezes acaba matando aqueles que a empreendem por intermédio do várias iatrogenesis. 47 135 CÉSAR SABINO nossa cultura, todas elas decorrentes da ideia de que nós somos seres providos de uma capacidade de perfectibilidade constante e indefinida que nos distingue dos demais seres existentes sobre a face da Terra. (DUARTE, 1999, p. 25). Nesse caso, a dor é o elemento que passa a conferir sentido ao sofrimento. A dor é suportada e necessária apaziguando uma possível ausência de sentido para a vida que geraria o sofrimento como poder solvente da alegria. A dor, com propósito, pode conferir sentido à existência apaziguando, assim, a ausência de sentido como doença da alma. O uso dela – e até mesmo o prazer nela contido – está relacionado a uma etapa de aprimoramento e conquista da intensidade da existência e maximização do gozo subsumidos em um movimento de sensibilização crescente do corpo e excitação gradativa dos sentidos de modo geral. Contudo, a dor também tem função iniciática, está presente em todas as chamadas técnicas corporais; ela acompanha os ritos de passagem instaurando-se nos indivíduos enquanto memória inscrita na carne e signo de pertencimento a um grupo social específico. Um número significativo de grupos de jovens e adultos das sociedades complexas ocidentais imitam os ritos de passagem das chamadas sociedades simples realizando lacerações na língua, escarificações, piercings, tatuagens, escoriações, queimaduras, suspensões por ganchos cravados na pele, bungee-jump48, etc.; práticas que podem tomar sentidos diversos das originárias, mas que, da mesma forma, carregam a dor, ou ao menos o medo, em seu bojo. Destarte, tanto nessas sociedades quanto naquelas, essa experiência da dor e do medo expressa uma espécie de mutação ontológica; passagem de um universo social a outro, o que significa a entronização do indivíduo em um estado existencial diverso. A cicatriz, ou a experiência momentânea da proximidade da morte, traduz o pertencimento a um novo estatuto. Em uma época em que a virtualidade é expressão cotidiana, as relações precárias e passageiras, as imagens fugazes e o cotidiano eivado de experiências turbulentas, a necessidade de sempre atualizar uma condição radicada na reconstrução imagética se faz necessária. No caso dos fisiculturistas, em que a imagem do corpo musculoso é a própria via de afirmação de sua identidade, A suspensão por ganchos cravados na pele era parte de rituais de iniciação de tribos da América do Norte, o bungee-jump, saltar de alturas elevadas tendo os pés presos por uma corda elástica, era praticado pelos nativos da Oceania que prendiam os pés com cipós, as escarificações pertenciam aos rituais de determinadas tribos africanas, a prática do piercing está relacionada aos rituais ameríndios. Essas práticas adotadas pelos grupos das grandes cidades remetem aos estudos de Maffesoli sobre a proxemia volátil que ocorre nos grandes centros mundiais nos quais se formam tribos urbanas organizadas em torno da construção de identidades calcadas na articulação de vários símbolos e práticas específicas, em geral, absorvidas de outros contextos formando bricolagens. O processo é denominado pelo autor de neotribalismo (MAFFESOLI, 1987; 1996). 48 136 DROGAS DE APOLO os rituais constantes são necessários e sempre renovados, pois o corpo, fadado inexoravelmente à decadência, sempre foge, de uma maneira ou outra, aos padrões impostos pela sociedade49. A necessidade do uso constante de drogas e substâncias especiais e de variações de intensidade e extensão dos exercícios constrói um cotidiano identitário que necessita ser ritualmente refeito a cada dia e no qual a experiência do dor se faz necessária e inevitável. Os exercícios devem ser realizados até as últimas consequências físicas, provocando dores musculares agudas, para que os resultados sejam atingidos. De fato, se não estiverem acompanhados pela dor, não possuem qualquer eficácia, segundo os praticantes. Sem dor, não há progresso; sem dor, não há nem mesmo a manutenção do que já foi conquistado; sem dor, só há decadência. A manifestação ostensiva da dor, portanto, é motivo de orgulho e honra para os fisiculturistas. Os mais experientes relatam com constância suas lesões por esforço repetitivo ou torções nas quais distenderam músculos, arrebentaram ligamentos, obtiveram fraturas por avulsão50, com necessidade de realizar cirurgias. Como o levantamento de pesos é fundamental para a construção do fisiculturista, uma lesão representa sério risco de dissolução identitária. Portanto, desenvolver a técnica de treinar lesionado é fundamental para esses indivíduos. Esse é um saber prático que não é possível ser aprendido em livros. Essa pedagogia implícita é produto da prática em sua mais pura acepção. Não há um modo específico de aprender a treinar lesionado, e, como as dores das lesões são constantes e comuns, o aprendizado se realiza com o tempo. Tal fato pode ser aplicado também aos próprios exercícios, que, apesar de serem estruturalmente os mesmos infinitamente combinados, sua intensidade e eficácia só é apreendida individualmente na coletividade orquestrada das O estudo de Lopes (1995) sobre os rituais dolorosos e arriscados de transformação do corpo entre as travestis, demonstra que elas apresentam uma lógica simetricamente invertida àquela dos fisiculturistas; enquanto um sofre para apresentar hipermasculinidade, o outro sofre para construir hiperfeminilidade. A autora apresenta o processo de transformação corporal de um homossexual, a “bichinha-boy Alan”, segundo ela, que se transforma na travesti Elisa Star. Relata o sofrimento de seu informante diante das incontáveis aplicações e ingestões contínuas de hormônios femininos, injeções de silicone com agulhas para uso veterinário, além do desafio de carregar, durante 40 dias, um pedaço de cabo de vassoura atado ao peito com um barbante para evitar que o silicone aplicado não passasse de um lado para o outro. Apesar de todo o sofrimento, relata Lopes, é grande a satisfação de Alan-Elisa, testemunhando que Elisa Star teve “a coragem de levar esse sonho [de transformação corporal] a sério” (p. 254). Esses rituais de instituição das travestis parecem simetricamente invertidos aos rituais fisiculturistas. Contudo, é preciso ressaltar que a travesti jamais deve ser confundida com a transexual, posto que, apesar do corpo feminilizado, ela sempre mantém o pênis, não querendo ser mulher em sua totalidade ou transformar-se em mulher, pois é a diferença e a singularidade de ser travesti que lhe confere sua subjetividade, singularidade e prazer (cf. KULICK, 2008). 50 Quando, devido ao esforço, um pequeno pedaço de osso é arrancado e fica conectado a um tendão. 49 137 CÉSAR SABINO academias; ou seja, na prática. Assim, como no boxe, não é possível aprender a ser atleta “no papel” (WACQUANT, 2002, p. 121). Os manuais pouco têm a ensinar de fato àquele que deseja ser um fisiculturista. Um indivíduo pode comprar uma enciclopédia de musculação e todos os pesos e máquinas de exercícios e instalar em sua casa, mas nunca conseguirá tornar-se um fisiculturista sem frequentar, durante longos anos, as academias de musculação; pois o saber do grupo se apresenta na ação e só pode ser adquirido efetivamente de forma implícita, prática e coletiva mediante uma manipulação regulada do corpo que somatiza, concretiza um saber coletivo detido e exibido pelos membros dessa instituição a cada patamar da hierarquia tácita que a perpassa. O sentido da dor e da lesão, seu simbolismo e significado precípuo, além das formas e indicações de como tratá-la e continuar cultivando a muscularidade só são aprendidos no cotidiano das instituições dos “adoradores do ferro”. Wacquant, parafraseando Durkheim, escreveu que “o gym está para o boxe assim como a igreja está para a religião” (p. 120). A afirmação – as academias estão para o bodybuilding assim como a Igreja para religião – poderia ser aplicada às academias de musculação. A experiência da dor confere sentido à existência e ao mundo, incitando o ser humano a organizar sua realidade ao permitir-lhe vislumbrar a dimensão negativa que simultaneamente nega e afirma tal existência: a morte. Ela – a dor – é inerente à vida como contraponto que confere sua plena medida ao fervor de existir (LE BRETON, 1995). Em consonância com tal pensamento, pode-se destacar o que escreveu Montagne: [...] haverá na dor experimentada algo comparável ao prazer da repentina melhora? Muito mais bela é a saúde depois da enfermidade [...] Dizem os estóicos que os vícios são úteis pois valorizam a virtude; com maior razão pode-se dizer que a natureza nos deu o sofrimento a fim de realçar a excelência do prazer e da tranquilidade. (1980, p. 490). A lógica social presente na experiência da dor funciona de forma similar. Assim como o ritual da tragédia grega afirmava a existência humana, portanto social, exaltando o paradoxo e por vezes o absurdo (LESKY, 1976); de forma parecida, a visão do efêmero, inscrita nas superfícies dos corpos e das práticas, demonstra a profundidade desse enigma que se configura como ser humano em sua condição de esperançoso sofredor. As palavras de Nietzsche, da mesma forma que as de Montagne, podem sintetizar esse processo coletivo de modulação, controle e, portanto, aplicação da dor: 138 DROGAS DE APOLO [...] o homem, o animal mais corajoso e mais habituado ao sofrimento, não nega em si o sofrer, ele o deseja, ele o procura inclusive, desde que lhe seja mostrado um sentido, um para quê no sofrimento. A falta de sentido do sofrer, não o sofrer, era a maldição que até então se estendia sobre a humanidade – e o ideal ascético lhe ofereceu um sentido!” (1988, p. 184, grifos do autor). 3.5 A LÓGICA DA CLASSIFICAÇÃO MUSCULAR Dor e uso de esteroides são itens diretamente relacionados às competições de fisiculturismo. Tais competições anuais podem ser comparadas indiretamente a rituais religiosos (SEGALEN, 2002). Os cenários competitivos são montados, não raro, com elementos que fazem alusão à mitologia dos heróis guerreiros do cinema americano e às forças da natureza, combinando tais aspectos com músicas de ritmos marcantes que acabam induzindo um certo êxtase no público. Esse busca ver e ter contato com seus “ídolos”, montanhas de músculos cintilantes que se tornam famosas no crescente campo do fisiculturismo brasileiro pelo seu tamanho e pela originalidade de suas poses. Os apresentadores e juízes (que poderiam ser comparados a sacerdotes), a pompa decorativa e o luxo produzem a epifania da forma e a comunhão dos “iron worshipers” (FUSSEL, 1993, p. 89). O corpo, transformado em síntese viva da mercadoria estética, torna-se objeto sagrado. Um emblema de adoração, ídolo, valor supremo a ser perseguido, cultivado, cultuado e adorado. Deuses primitivos, deuses contemporâneos. Se o desencantamento do mundo está presente na modernidade (ou na alta modernidade ou mesmo pós, tal discussão não vem ao caso), os grupos sociais não se cansam de produzir objetos de adoração que conferem sentido às suas existências. Conforme Bergson escreveu, em As Duas Fontes da Moral e da Religião (1979, p. 220, 238): “homo homini deus [...] o universo é uma máquina de fazer deuses”. O Iluminismo criou valores que se tornaram pilares da cultura ocidental. Tais valores constituíram-se enquanto representações sociais que conferiram atitudes a coletividades inteiras, movendo-as em direções a golpes e revoluções políticas. Ideias, como liberdade, igualdade e democracia, entre outras, têm história e fazem parte do imaginário de milhões de pessoas no mundo inteiro, sendo para essas, muitas vezes, valores indiscutíveis. Na contemporaneidade, o corpo e sua imagem surgem como mais uma ideia e valor a ser somado ao panteão de entidades abstratas que habitam as culturas 139 CÉSAR SABINO ocidentais. A forma corporal parece ter se transformado em uma entidade perfeita, inatingível, perseguida de todas as maneiras possíveis. O culto ao que se considera beleza sagrada desse corpo tem crescido, amealhando grande número de iniciados e seguidores que diariamente se dedicam aos exercícios, halteres e espelhos. As competições parecem representar a consolidação de práticas assemelhadas a uma liturgia anual que vem mostrar ao público as últimas novidades químicas e atividades para a construção do corpo. Apresentações que se realizam por intermédio da exposição de ídolos (campeões de fisiculturismo) que conquistaram sucesso e patrocínio inflando seus músculos. É nesse momento do ciclo periódico anual que os pontífices (especialistas em saúde, donos de academias e produtores de suplementos e máquinas de musculação) do culto ao corpo têm reavivada sua importância, ao mesmo tempo que a multidão de fiéis consumidores espera impaciente o advento de uma nova forma de salvação, contra a feiura, o tempo e o anonimato, realizada por um novo messias hipermusculoso que venha apontar o caminho da terra santa onde supostamente reinará a vida eterna e gloriosa51. O sentido da existência entre tais pessoas é envolto pelo medo, não da morte exatamente, mas do envelhecimento e da possível decrepitude, vista como pior que a morte: ficar feio, depender dos outros e enfrentar a solidão é o maior temor para aqueles que se enfronham em cultivar a juventude e a beleza associada a ela. Envelhecer, assim, é tornar-se outro, é mudar toda a estrutura de uma personalidade (ELIAS, 2001); mudar para pior já que, em uma sociedade de mercadorias, subjaz a concepção de que o idoso está A transformação do discurso científico, que ocorre com frequência em alguns segmentos do imaginário popular, (mais especificamente aquele relacionado à bioquímica e genética), tende a produzir espécies de sistemas religiosos que prometem vida eterna (por intermédio de clones) e aperfeiçoamento estético e biológico (por intermédio da engenharia genética) aqui mesmo na Terra - o principal é a seita ou o autodenominado grupo, Movimento Raeliano possuidor de uma espécie de “braço científico”, liderado pela empresária bioquímica Brigite Boisselier, diretora da empresa Clonaid, e Claude Vorilhon, cognominado Sua Santidade Raël, líder dos raelianos - demonstra o poder de sacralização do profano e a capacidade de (re)produção incessante de mitos que os sistemas simbólicos possuem tão bem demonstrada pelos clássicos trabalhos de Lévi-Strauss e seus conceitos de transformação e bricolage (1964; 1973; 1975; 1991). O discurso religioso tem se reproduzido absorvendo e ressignificando as categorias elaboradas pela narrativa científica em narrativas reencantadoras do mundo. Com efeito, nesse caso, aplicar-se-iam as palavras do autor de O Pensamento Salvagem: “estruturas lógicas análogas podem construir-se por meio de recursos de léxico diferentes. Os elementos não são constantes só o são as relações” (1991, p. 85-86). O sistema mitológico raeliano, por exemplo, concebe que os primeiros humanos foram criados em laboratório por deuses alienígenas chamados Elohim. O grupo diz já ter clonado um ser humano (a menina Eva) pretendendo ainda gerar um clone adulto da mesma maneira como acreditam que os deuses astronautas Elohim geraram os humanos. Dizem que, após terem clonado tal adulto, objetivam transferir a memória do modelo original para o clone, fazendo o “download” da mesma permitindo, dessa maneira, a vida eterna. O grupo é considerado uma das religiões ufológicas. 51 140 DROGAS DE APOLO ultrapassado e deve ser descartado de determinadas relações sociais. Conforme escreveu Eliade (1979, p. 160) sobre o processo mítico: “é sempre a mesma luta contra o Tempo, a mesma esperança de se libertar do peso do Tempo morto, do Tempo que esmaga e que mata”. Como o real é relacional (BOURDIEU, 1998), é preciso destacar que os tipos de frequentadores das academias descritos (fisiculturistas, veteranos e comuns) variam em conformidade com o contexto nos quais estão enquadrados. Nas academias são encontrados indivíduos que, em determinado momento ou período, aproximam-se mais de um tipo ideal que de outro, e a variedade beira o infinito, como atesta o caso do tipo comum. Apenas esse tipo, se alguém quiser deter-se mais especificamente sobre a realidade que ele abstrai, demandaria uma construção bem mais detalhada, devido à ampla variedade de indivíduos que essa mesma realidade comporta. Por outro lado, vale ressaltar que o fisiculturista é sempre aquele que tende a cultivar o maior volume de músculos possível. O tamanho e a forma dos que se enquadram nessa classificação variam em conformidade com o tamanho e a forma dos outros dois tipos em determinada academia. Sendo assim, como vimos, três tipos ideais de academias podem também ser esboçados de acordo com o tipo dos seus frequentadores ou a predominância de um determinado tipo em um contexto específico. Obviamente, uma academia de fisiculturistas seria aquela que apresentaria o maior número, ou uma quantidade considerável, de indivíduos que se enquadram nesse modelo. Academia que – em função de seus frequentadores – teria suas especificidades estéticas, funcionais e técnicas diferindo dos outros tipos frequentados por maior número de indivíduos veteranos e/ou comuns. As academias – centros de produção da denominada boa forma e da muscularidade – são instituições carregadas de representações e funções que não são apreensíveis de imediato por aqueles que não se familiarizaram com o seu cotidiano. Apesar da crescente busca pela forma que produz em muitas pessoas uma sensação ilusória de que basta ler um manual ou uma revista de fitness para compreender o processo de fabricação do corpo; tais instituições – como escreveu Wacquant a respeito das academias de boxe – são complexas e polissêmicas. Em primeiro lugar, porque suas conformações e variações decorativas variam significativamente em conformidade com a proposta de corpo que se deve construir naquele espaço e em conformidade com a classe social – o poder aquisitivo – dos frequentadores do local. Uma academia de musculação – seja em um bairro de classe média ou não – pode apresentar-se como um enorme galpão lúgubre com regiões pouco ilumi141 CÉSAR SABINO nadas expondo tubulações e fios elétricos, aspecto que lembraria oficinas mecânicas ou fábricas clandestinas de algum produto proibido ou galpões de carga e hangares – os quais no verão chegam a 42 graus centígrados ou mais. Nesses locais é possível observar homens que mais parecem personagens saídos de revistas em quadrinhos devido à quantidade de músculos que cultivam e ao tipo de roupa que usam. Com enormes cinturões de couro, botinas, tatuagens e, por vezes, calças e camisas de infantaria rasgadas estrategicamente para mostrar musculatura, dão a impressão, àqueles que entram em tais salões, de estarem em um mundo de ficção no qual a trilha sonora de heavy metal, rap, hip hop e techno é entrecortada pelos ruídos da colisão dos ferros provocada pelos exercícios intermitentes acompanhados, por sua vez, dos gritos de dor e esforço emitidos no movimento de levantar e abaixar anilhas e barras de ferro realizado pelos aficionados por halteres em suas séries (repetições contínuas de movimentos para esculpir a musculatura de determinada parte do corpo) compostas e recompostas. Não raro se veem pesos enferrujados e aparelhos de exercícios com graxa. Por outro lado, existem academias que dão a impressão de se ter chegado a um shopping center ou a um centro cosmetológico, ou de cuidado com a estética: ar condicionado central, mulheres com roupas coloridas e justas que ostentam marcas esportivas, como Adidas, Nike, Reebok etc., fragrância de perfume francês, pinturas de parede límpidas e impecáveis, aparelhos de exercícios computadorizados, faxineiros (sempre negros ou nordestinos) limpando as máquinas de musculação e colchonetes para exercícios de solo, plantas artificiais e vários aparelhos de TV conectados aos canais a cabo, além de bares para venda de sanduíches naturais, bebidas energéticas e vitaminas, lojas de suplementos alimentares e roupas esportivas, serviço eventual de nutricionista, som ambiente com dance, música pop e MPB. Há também aquelas academias que buscam uma confluência entre os dois tipos descritos anteriormente. Necessário se faz ressaltar que dificilmente um frequentador assíduo de uma academia “rústica” aceitaria fazer parte de uma instituição supostamente mais “refinada” e vice-versa. Os primeiros se definem como mais profissionais, sérios e dedicados e definem os frequentadores de academias geralmente mais caras (chamadas por eles de “perfumarias”) como amadores. Esses últimos, por sua vez, acusam os anteriores de “trogloditas”. Dessa maneira, como são três os tipos puros de frequentadores, é possível dizer que são também três os tipos de academias: 1) academias de fisiculturistas; 2) academias de veteranos; e 3) academias de comuns. 142 DROGAS DE APOLO Procurarei aqui destacar o cotidiano das atuais academias consideradas como sendo de fisiculturistas ou bodybuilders. Suas interações sociais, suas técnicas de construção do corpo, sua visão e divisão de mundo, o sistema simbólico que organiza suas vidas nessas instituições e que por elas é organizado. Tal grupo, como foi sugerido anteriormente, representa uma síntese efetiva das tendências de representações e práticas vigentes na atual sociedade urbana carioca. Devido a esse fato seu estudo se mostra relevante e pode contribuir para a melhor compreensão do crescente processo somatófilo e de consumo de novas drogas (SABINO, 2002). Vale destacar que o grupo dos veteranos se assemelha ao de fisiculturistas; a diferença está no fato de os primeiros não competirem, portanto se dedicarem menos às atividades de musculação. Os veteranos são quase fisiculturistas, sendo difícil, em determinados momentos, distinguir um do outro. Assim, dependendo da concorrência, um veterano pode ser considerado fisiculturista em uma academia na qual não exista ninguém maior que ele. Devido a tal fato, procuramos utilizar como parâmetro não apenas a massa muscular, mas o fato de o indivíduo competir em campeonatos. Os bodybuilders configurar-se-iam como líderes no campo da musculação, os mais admirados por ostentarem musculatura hipertrofiada, conseguida por meio de um contínuo saber prático sintetizado em invenções de exercícios, uso de drogas específicas, uso de suplementos alimentares e dietas. Devido a tais fatores, entre outros, esse grupo constitui a elite das academias de musculação. No Rio de Janeiro, existem, em contraste com a maioria das organizações voltadas para a prática de exercícios em geral, determinadas academias onde grande parte dos frequentadores é constituída por fisiculturistas. Essas academias concentram-se em alguns bairros das zonas norte e sul da cidade. Nos quatro anos e meio de pesquisa, sempre me deparei com o grupo dos fisiculturistas, contudo apenas em algumas instituições esses existem em significativa quantidade, conferindo-as aspecto diverso das outras. Nessas, os corpos hiperinflados, em geral pouco vestidos, pavoneiam diante das paredes espelhadas de ponta a ponta, cercados pelas toneladas de pesos e aparelhos sempre conservados para parecerem mal conservados em seu aspecto rústico. O espetáculo somático realiza seu propósito invocando a epifania da forma arquitetada por uma razão instrumental aplicada ao que parece ser o grande valor e conceito (GOLDENBERG; RAMOS, 2002) ou ao menos a mercadoria final da alta modernidade: o corpo. 143 CÉSAR SABINO Apesar de algumas reações – principalmente por parte dos estilistas de moda alternativa que expõem corpos de modelos mais magros (DUTRA, 2002) –, formas físicas que, há algumas décadas, poderiam ser consideradas aberrações são, atualmente, eleitas por parte da indústria cultural como ícones de sucesso e beleza. A aparência musculosa, embora convivendo no cenário social com muitas outras formas corporais, tem estado presente na mídia atual, deixando de ser privilégio de um sexo para se tornar propriedade de todos. Um número considerável de mulheres exibe atualmente anatomia muscularmente hipertrofiada. De acordo com Courtine (1995, p. 85), “não há mais sexo frágil”, ao menos entre os praticantes do fisiculturismo. Em uma época de apologia ao livre mercado, esculpir o corpo – utilizando todo tipo de técnicas possíveis – vem se tornando, para alguns, um imperativo levando, com maior ou menor intensidade, ao crescimento das práticas de bodybuilding e do número de academias de musculação com a potencialização da anatomia inflada configurando-se como espetáculo cotidiano. A publicidade, o espetáculo esportivo na mídia, os filmes, as revistas voltadas para a boa forma, os cadernos de saúde dos jornais, os brinquedos de ação e as bonecas das meninas, os heróis de quadrinhos e os filmes de Hollywood e muitos sites e páginas da internet têm reiterado o mito da muscularidade. Para se ter ideia da mutação ocorrida no cenário mundial do bodybuilding da década de oitenta do século XX em diante – e que vem influenciando gradativamente a estética popular em algumas parcelas das sociedades no mundo globalizado –, basta comparar os corpos que Arnold Schwarzenegger e Sylvester Stallone ostentavam no auge de suas carreiras com os atuais heróis do fisiculturismo. São vários os tipos de festas bodybuilders, anuais ou não, que vêm se popularizando e sendo reproduzidas ao redor do planeta. Esses rituais são constituídos por competições baseadas na forma nas quais os indivíduos apresentam seus corpos inflados, depilados e artificialmente bronzeados, perfilados à moda dos concursos femininos de beleza. Os músculos não servem para efetivação da força, ou para a execução de atividades que possam imprimir esforço sobre objetos de disputa física. Eles são apenas ornamentos. Basta apenas a aparência. A competição consiste em mostrá-los e demonstrá-los, apresentando-os – mediante toda uma técnica de poses aprendidas durante anos – da forma mais definida e hipertrofiada possível. Como em um teatro no qual apenas os músculos exercem papéis, os (as) participantes desfilam orgulhosamente em cima de um palco seus corpos esculpidos, cobertos de óleo, autobronzeadores e vestidos com micro 144 DROGAS DE APOLO sungas ou biquínis, assistidos por juízes e uma plateia de admiradores. Os músculos são ostentados enquanto massas decorativas, não servindo para demonstração efetiva de força ou para a luta, apenas para dar vida à competição da aparência. No ano de 2001, essas festividades da forma seguiram a seguinte organização da Federação de Culturismo e Fitness no Rio de Janeiro52: Campeonato Carioca –1ª etapa - Fitness, Master e Juvenil Campeonato Estreantes; Campeonato Carioca – 2ª etapa- Senior’s (masculino e feminino) Campeonato Mundial Feminino de Fisiculturismo e Fitness. A seguir, a ordem de classificação final de um campeonato nacional no mesmo ano: Juvenil Masculino até 80 kg; Juvenil Masculino acima de 80 kg; Master II acima de 50 anos; Master Masculino até 80 kg; Master Masculino acima de 80 kg; Miss Fitness até 1,60 m; Miss Fitness até 1,67 m; Miss Fitness acima de 1,67 m; No ano de 2002, o calendário das competições foi o seguinte: Calendário de Competição Nacional e Internacional – Amador 2002 Confederação Brasileira de Culturismo e Musculação/ International Federation of Body-Builders – CBC-M/IFBB: • Abril – de 26 a 28 Copa Sul-Sudeste. Suzano/SP - Categ.: 70, 75,85, +90 e 100kg Categ. Miss Fitness, 1,60 e 1, 67 cm; Única: Body Fitness, Culturismo feminino, Master Masculino e Juvenil. Apesar de o Rio de Janeiro apresentar “geografia excepcional [...] inúmeros parques, jardins e praias, ou seja zonas de ‘malhação’ e de exposição de corpos” (MALYSSE, 1998, p. 13), que supostamente levariam sua população a utilizar o corpo como vetor de interação social na cidade; é, ironicamente, a cidade de São Paulo – com toda a mística que a constrói como avessa à malemolência estética do carioca e do baiano – que apresenta os maiores e mais influentes campeonatos, meios de treinamento e campeões de fisiculturismo do Brasil, provavelmente por motivos econômicos. 52 145 CÉSAR SABINO • Junho – de 28 a 30 Copa Centro Oeste – Cuiabá/ MT Categ. 70, 75, 85, +90 e 100 kg; Categ. Miss Fitness, Cult Fem., Master Masc. E Juvenil. • Julho – de 19 a 21 Copa Norte- Nordeste- Fortaleza- CE Categ. Body Fitness; Categ. Juvenil até 80 kg e +80 kg Categ. Master masc. 80 kg e +80 kg Categ. 70, 75, 85, +90 e 100kg. Setembro – 01 a 07 Grand Prix Neo- Nutri /SP Categ. 70, 80, +90 kg Sênior masculino. • Setembro - 11 a 15 Campeonato Brasileiro – SP Categ.52, 57 kg e +57 kg Sênior feminino Categ. Miss Fitness 1.60, 1.67, e +1.67 cm Categ. Body Fitness 1.60, 1.65, e +1.65 cm Categ. Juvenil. Masc. 70, 80, e +80 kg Categ. Master Masc. 80, +80 kg e +50 anos; Seletiva para Mundial de Fitness Sênior e Feminino, Master/Juvenil Íbero – Americano; • Setembro - 27 a 29 Copa Brasil Welness Sport – Ribeirão Preto/ SP Categ. 70, 80, 90, + 100kg. Categ. Miss Fitness 1.60, 1.67, e + 1.67 cm; Seletiva para Mundial Sênior Masculino; • Outubro - 04 a 07 Copa Mundial de Fitness- Brno/ Rep. Checa Categ. Fitness até 1.60, 1.67, + 1.67 cm; Categ. Feminino Sênior 52, 57 e 57 kg; A classificação internacional, de acordo com a Confederação Brasileira de Fisiculturismo, segue as seguintes definições: Sênior Masculina: Bantam: até 65 Kg Peso leve: até 70 kg; Peso meio médio: 75 kg Peso médio: até 80 kg; 146 DROGAS DE APOLO Peso meio pesado: até 90 kg Peso pesado: acima de 90 kg. Existem três categorias nas competições sênior femininas internacionais, que são: Peso leve: até 52 kg Peso médio até 57 kg; Peso pesado: acima de 57 kg. Nas competições juniores masculinas internacionais, existem mais três classificações: Peso leve: até 70 kg Peso médio: até 80 kg; Peso pesado: acima de 80 kg; Na júnior feminina, são mais três: Peso leve: até 52 kg; Peso médio: até 57 kg; Peso pesado: acima de 57 kg; Existem três categorias nas competições master masculinas: De 40 a 49 anos de idade: Peso leve: até 80 kg; Peso pesado: acima de 80 kg; De 50 anos de idade e acima: Categoria aberta. Em relação às mulheres da categoria master, existe apenas uma categoria nas competições femininas internacionais. Se seguirmos a maior parte dos estudos antropológicos, podemos dizer que toda essa organização ritual é fruto de classificações da realidade podendo ser considerada um sistema de classificação “nativo” que forma um modelo consciente (LÉVI-STRAUSS, 1976) ordenando, ao menos, parte da realidade do grupo. Diante da imensa variação muscular presente nesses rituais, ocorre a necessidade de classificar os corpos; essa classificação é realizada de acordo com a morfologia que esses apresentam. Assim, Fitness, em geral, significa uma competição ou apresentação-ritual da qual participam mulheres com considerável massa e definição muscular e extrema elasticidade. Nesse aspecto, é importante reiterar que a flexibilidade é um item mais importante para as fisiculturistas do que para os fisiculturistas. Elas devem ser musculosas, porém ágeis, enquanto tal elasticidade nem sempre é exigida, da mesma forma, por parte dos homens. Interessante ressaltar que, ao menos nesse caso específico, a classificação das mulheres, de forma diferente da classificação masculina, realiza-se por intermédio 147 CÉSAR SABINO da altura. Já as categorias master, juvenil ou júnior, estreantes e sênior são elaboradas com base no peso e idade dos participantes. Esses concursos e festivais colocam em disputa os corpos maiores e com menor porcentagem de gordura, além de, no caso feminino, ser acrescentada a flexibilidade demonstrada por meio de exercícios específicos nos quais elas dão piruetas e saltos mortais executando coreografias similares àquelas da ginástica olímpica, embora sendo musculosas – ao contrário das ginastas. A apresentação masculina também requer certos gestos estilizados (poses) e passos específicos, similares para serem repetidos por cada competidor em toda e qualquer competição, que devem, segundo os participantes, demonstrar virilidade e harmonia simultaneamente. Há também as poses livres que cada fisiculturista deve fazer. Esse sistema classificatório, além de premiar os corpos considerados melhores entre todos os concorrentes, confere prêmios para os mais destacados em diferentes categorias. Nesse processo há sempre uma grande preocupação com a ordem não apenas do espaço, da organização dos eventos e das classes e grupos, mas fundamentalmente com a ordem da estética muscular que será um dos principais itens avaliados pelo júri. É a simetria, a harmonia entre os músculos do corpo, o equilíbrio representado em seus gestos e movimentos. É a relação com a medida dos corpos que deve estabelecer com o contexto uma sucessão de movimentos ordenados em seu conjunto equilibrado de fibras musculares sempre expostas ao máximo. Com efeito, há toda uma taxinomia voltada para ordenar as classes, ou melhor, para classificar a realidade muscular fornecendo um sentido para as formas em contraposição umas às outras. Formas que, para os membros do grupo, remetem a uma suposta continuidade biológica que traz em si a verdade de sua condição cultural, necessitando que se estabeleça um quadro de classes, gêneros e espécies em uma taxinomia específica (FOUCAULT, 2007, p. 222), que cria a hierarquia do grupo ex nihilo. Segundo Mary Douglas (1976), todo sistema classificatório se depara com elementos, de certa forma, inclassificáveis sendo esses elementos considerados anômalos ou ambíguos. A riqueza dessas categorias está justamente no fato de elas apresentarem dificuldades para serem enquadradas nos sistemas cognitivos53. A rigor, o ambíguo seria o elemento que poderia ser Mauss, ao analisar as dificuldades classificatórias que a sociologia insurgente enfrentava, aponta para o mesmo problema: “Há sempre um momento em que, não estando ainda a ciência de certos fatos reduzida a conceitos [...] implanta-se sobre essas massas de fatos a baliza da ignorância: ‘diversos’” (1974, p. 211). Latour (1996, p. 44), porém, realiza crítica a determinadas abordagens antropológicas – principalmente a estruturalista - que tendem a tratar a ciência apenas como sistema classificatório, obnubilando outras características que a constituem, como o método. 53 148 DROGAS DE APOLO alocado em mais de um conjunto, ou série, e o anômalo aquele que não se enquadra em nenhum conjunto ou série. No caso específico desse sistema, a distinção entre ambíguo e anômalo é significativa na medida em que “se o primeiro se caracteriza como acidental no sistema, o segundo é por ele previsto” (ROCHA, 1995, p. 85). Dessa maneira, os corpos ambíguos (muitos poderiam ser enquadrados em mais de uma categoria) o são porque algumas das categorias abrangem diferentes tipos de morfologia com fronteiras pouco definidas. Devido a tal fato, os coordenadores dos festivais sempre reformularem os sistemas classificatórios visando a impedir a manipulação da ambiguidade por parte dos concorrentes (peso, altura e idade). Por exemplo, se a classificação fosse apenas por faixa etária, alguém com 18 anos e pesando 100 Kg – algo raro para a idade no fisiculturismo – poderia concorrer em vantagem com outros com menor massa muscular e idade equivalente. Casos anômalos – idade e peso não compatíveis com os parâmetros estabelecidos – tendem a surgir com frequência, e para tais casos uma categoria à parte é criada no sistema com o rótulo de Campeonato Aberto. As características mais enfatizadas atualmente nas competições são: definição muscular, desenvolvimento muscular e simetria muscular; tal aspecto leva os jurados a centrarem seus julgamentos não apenas no tamanho e altura dos concorrentes. Para reiterar tal fato, nas finais de campeonatos, todas as categorias são apresentadas em conjunto, ao mesmo tempo, no palco e, não raro, competidores não muito altos ou mesmo pouco “massudos” vencem outros muito maiores. Esse relato de um peso-pesado é significativo: Estava competindo no Estadual e me deparei com um cara pequeno mas muito bem preparado [...] quando ele começou a fazer as poses eu logo percebi que ele havia ensaiado muita coreografia... acho que ele pagou um bom coreógrafo pra ensaiar aquilo tudo. O cara era maleável, fluido, não posava só, dançava... quando ele começou a se apresentar, o público explodiu, fazendo o maior barulho. Eu e ele éramos os finalistas, só que eu tinha uma vantagem: era muito maior. Percebi que a parada ia ser dura; porque minhas poses tinham sido menos soltas que as dele, tava mais duro [...] Aí fomos para a apresentação final, eu, o peso pesado leve, que tinha pouco músculo, o peso leve que não tinha nenhum, e o meu oponente principal, esse cara, peso médio, o único que podia me desafiar, mesmo. Ele era todo simétrico e muito definido, o abdômen do cara parecia uma grande forma de cubo de gelo. Fomos para o palco, para a apresentação, mas o meu tamanho me dava uma certa segurança, entende? Eu era muito maior que todos eles. Quando a música começou a tocar eu me posicionei em frente 149 CÉSAR SABINO ao meu oponente, ‘puxei’ o dorsal e tampei o cara com o meu tamanho... toda a visão que o público tinha dele sumiu, foi um eclipse! Mas, ele logo saiu do buraco que eu tinha preparado pra ele e fez uma pose de pernas com toda aquela definição e simetria para me humilhar, eu logo ‘puxei’ uma pose de tríceps seguida por outra de braços estendidos, o público aplaudiu, aí ele fez uma série de poses de abdômen, com aquela maldita superdefinição que impressionou a plateia que começou a aplaudir e gritar, na hora. Pronto, ali eu perdi! Fiquei em segundo lugar [...] perdi p’rum cara que tinha trinta quilos a menos do que eu. (Carlos. 28 anos. Fisiculturista e estudante de fisioterapia). Além de remeterem a um processo classificatório específico, esses rituais, em um momento de imensa vivência emocional e cognitiva, servem para reforçar os laços sociais e a “adoração” aos ídolos já existentes (SEGALEN, 2002). Heróis que apresentam todo esplendor e “magia” do seu corpo (re)vestido da couraça de músculos reverenciada por todos. Os festivais servem, também, para (re)criar novos mitos que conquistam seu lugar no panteão dos heróis da musculação. Essas festividades seguem o padrão daquelas realizadas nos EUA e que são consideradas o modelo mais adequado a ser seguido pelos bodybuilders. Obviamente, são as festividades internacionais (Mr. Olympia, Arnold Classics, Mr. Universe, Super Body Natural, entre outras) as mais admiradas; e seus vencedores, considerados, pelos fisiculturistas nas academias, verdadeiros semideuses. Esses rituais mobilizam uma indústria crescente dos músculos direcionada para o consumo de bens e serviços destinados à construção e manutenção do corpo. Suplementos alimentares, vitaminas, pesos, anabolizantes, cursos de musculação e máquinas de última geração baseadas no aperfeiçoamento da microeletrônica e informática são produzidas a cada dia para alimentar a busca da forma perfeita. Busca mítica e ritualística que transforma o músculo em um modo de vida. Tais ritos somatófilos seriam formas de acesso à consciência coletiva desse grupo, uma maneira – mediatizada pelos símbolos da força e virilidade – de ele tomar consciência de si reiterando suas estruturas (DURKHEIM, 1996; MAUSS, 1974; 1974a). A classificação internacional para eventos amadores, elaborada pela International Federation of Bodybuilders (IFBB), que influencia as competições de fisiculturismo no mundo inteiro, é a seguinte: peso galo, peso leve, peso médio, peso pesado leve, peso pesado, peso superpesado. Já nos concursos profissionais filiados à IFBB, todos os competidores são colocados 150 DROGAS DE APOLO em uma mesma categoria, e a decisão, o julgamento, é feita por meio das poses realizadas pelos fisiculturistas no palco54. A demonstração de poses divide a competição em duas partes de quatro rodadas. A primeira parte é a do pré-julgamento. Esse, por sua vez, está dividido em duas outras fases: pose relaxada e poses compulsórias. Na primeira, os fisiculturistas ficam de pé, no palco, em frente aos juízes, mãos ao lado do corpo, de frente, de costas e de ambos os lados. Embora seja chamada de pose relaxada, esse tipo de pose leva os bodybuilders a contraírem seus músculos de forma intensa. Nessa fase, os juízes avaliam o tom de pele, expressão facial, corte de cabelo, se o competidor está bronzeado ou não, se a sunga veste bem, se a cor é adequada e não apenas a simetria e os músculos do participante. A segunda rodada do pré-julgamento é a das poses compulsórias. Como o próprio nome diz, são obrigatórias para todos, pois têm o objetivo de permitir o julgamento de cada região muscular específica do corpo de cada competidor. As poses são: bíceps duplo frontal, abertura lateral frontal (ou dorsal), tórax lateral, bíceps duplo de costas, abertura lateral de costas, tríceps de lado, abdominais e coxas com mãos sobre a cabeça. As mulheres também fazem as mesmas poses, exceto a abertura lateral. A terceira parte da apresentação é a da pose livre. O competidor, nessa fase, pode utilizar toda sua criatividade para impressionar os juízes. Ele procurará elaborar poses que melhor exibam as partes que ele considera mais apresentáveis de seu corpo e escondam, ou disfarcem, aquelas partes que ele considera deficientes. Nesse momento, o competidor escolhe uma música e elabora uma coreografia própria, em geral uma mistura de dança com poses que ressaltam seus músculos. A quarta e última rodada é a da sequência de poses que é realizada pelos finalistas (aqueles que passaram com sucesso pelas sequências anteriores) em conjunto no palco, cada um apresentando livremente suas poses para que o melhor – o campeão – seja escolhido. Essas poses de comparação feitas em conjunto parecem causar um certo stress nos competidores que disputam cada segundo e milímetro no palco para serem notados pelos juízes, o que pode ocasionar cotoveladas e empurrões entre eles. Na realidade, esse é o ápice do jogo, ou melhor, quando a competição vira de fato um jogo porque, a cada pose do adversário, o fisiculturista deve demonstrar outra ainda melhor e mais impressionante. No Brasil, ao menos até 2003, apenas a CBC-M (Confederação Brasileira de Culturismo e Musculação) é reconhecida pela International Federation of Body Builders (IFBB) e pelo Comitê Olímpico Brasileiro (COB). As regras das competições em geral estão relacionadas às regras internacionais da IFBB, com pouca variação. 54 151 CÉSAR SABINO Destarte, conhecendo suas “qualidades” e “defeitos” corporais, o competidor deverá tentar esconder seus defeitos e apresentar, obviamente, suas melhores qualidades. Portanto, quando um deles apresenta, por exemplo, uma musculatura dorsal definida e volumosa, o outro, se não considerar sua mesma musculatura melhor que a do seu adversário, procurará realizar uma pose que destaque outro grupamento muscular que ele considere melhor que o do seu oponente. O jogo articula uma verdadeira troca de poses, em uma lógica que lembra um potlach da forma física no qual cada um procura, por intermédio da troca de imagens em um grande festival, ostentar a maior riqueza muscular diante de seu adversário, juízes e público em geral, muitas vezes – ao menos no caso do Brasil – gastando muito mais bens materiais do que recebendo para sustentar seu status. A realização das poses é uma das partes mais difíceis da competição no fisiculturismo, pois ela é o outro lado da moeda da apresentação do bodybuilder. Talvez 50% de sua apresentação em um palco dependa da eficácia com as poses. Espécie de jogo que mistura a coreografia da dança com o ato de posar para pintores, realizar poses de fisiculturismo demanda uma técnica corporal, no sentido maussiano, ou habitus, de acordo com Bourdieu, que só é adquirida por meio de contínuo esforço ao longo dos muitos anos de prática a ponto de sua apresentação tornar-se praticamente inconsciente. De acordo com o relato de Schwarzenegger e Dobbins (2001, p. 589): Devido a sua enorme importância no fisiculturismo competitivo, nunca é muito cedo para começar a posar. Você deve começar desde o primeiro dia em que entra na academia. Estude fotografias de outros fisiculturistas, vá a concursos e observe como os competidores posam e tente imitá-los. Comece fazendo suas poses em frente ao espelho até que você ache que pegou o jeito de executá-las. Depois tente fazê-las sem o espelho, com um amigo observando. Entre as séries contraia os músculos que você está treinando, faça algumas poses e estude-se no espelho. Isso irá condicioná-lo a fazer contrações firmes, sustentadas e também ajudar a analisar o estado de seu desenvolvimento. Lembre-se da necessidade de resistência! Os juízes frequentemente irão mandar você posar por vários minutos cada vez; você pode precisar ficar contraído por horas durante um pré-julgamento cansativo. Então, no seu treinamento de poses, não apenas execute as poses por alguns segundos e relaxe. Sustente-as até que doa, depois sustente um pouco mais – este é o momento da falência, de ter cãibras musculares, de sofrer de modo que 152 DROGAS DE APOLO as suas poses na competição sejam suaves, competentes e poderosas. Mantenha-a por pelo menos uma hora a cada dia. Posar é de extrema importância para o fisiculturista não apenas pelo fato de fazer parte do jogo, mas, acima de tudo, porque as poses destacam as partes do corpo que devem ser mostradas, expostas, apresentadas ao público em um processo constante de elaboração de técnicas específicas. Se um fisiculturista jamais está nu – pois está vestido com sua armadura muscular –, ele também não deve estar apenas grande. A simetria e a forma são tão ou mais importantes que o tamanho. Essa estética particular está calcada na necessidade de mostrar o máximo possível das entranhas musculares. A presença efetiva dessas (a chamada definição) significa, para eles, a simetria e forma. Músculos “definidos” representam fibras musculares à mostra a ponto de a pele estar tão fina que cada tira, ligamento e fibra, apareça em uma exposição sui generis na qual a intimidade mais profunda da carne possa ser salientada. Nesse movimento, o fisiculturismo e a atual pornografia massificada, mudando o que deve ser mudado, parecem compartilhar a mesma avidez por mostrar as entranhas e o privado. Essa avidez talvez esteja radicada naquele processo que Foucault (1990) denominou a vontade de saber (e, no caso, de ver) que acaba apresentando a tendência a controlar os movimentos e aspirações mais profundos dos indivíduos preocupados com a exposição de cada fibra muscular de seu corpo. O mesmo processo aplicado à invenção da sexualidade pode ser aplicado para a explicação desse árduo trabalho de esculpir a carne e os músculos, mostrando-os e demonstrando-os em público como o troféu da suposta vitória sobre o tempo. Segundo Foucault, assim como nos fizeram “amar o sexo”, tornando-o “desejável [...] conhecê-lo e precioso [em relação a] tudo o que se diz a seu respeito; pelos quais, também, incitaram-nos a desenvolver todas as nossas habilidades para surpreendê-lo e nos vincularam ao dever de extrair dele a verdade” (FOUCAULT, 1990, p. 49), fazendo-nos acreditar que nisso está nossa liberação; esse dispositivo social nos faz acreditar que devemos escrutinar e extrair das entranhas musculares uma possível liberdade que poderá nos levar à realização da utopia da saúde. Nesse âmbito, a adiposidade surge como o maior inimigo da forma, já que ela se sobrepõe às fibras musculares obliterando sua visão; daí a necessidade intermitente de produzir um conhecimento, cada vez mais, efetivo sobre como aumentar os músculos e eliminar gorduras. Conhecer o corpo e colocá-lo em discurso, mesmo que esse discurso seja o iconográfico; esse parece ser, ao menos em parte, 153 CÉSAR SABINO o dever da época. Dever que pode ser percebido no grupo que representa o paroxismo desse movimento sociocultural somatófilo. A tarefa de posar exige o domínio de uma técnica de esforço corporal aprendida durante anos de socialização diária nas academias de musculação (MAUSS, 1974b). Ser capaz de tensionar tecnicamente a musculatura corporal durante uma competição, flexionando os músculos, mantendo poses de até uma hora ou mais – com controle pleno do corpo inteiro e domínio de câimbras – é uma tarefa atlética comparada a de um pugilista enfrentando 12 assaltos em um ringue de boxe. Existem dois tipos básicos de esporte: os julgados por medidas (distância, rapidez, altura, etc.) e aqueles julgados pela forma (nado sincronizado, ginástica olímpica, mergulho, patinação no gelo). O fisiculturismo é um esporte da forma; com a diferença de essa não estar diretamente relacionada ao movimento e sim à conformação do corpo. A forma envolvida é a do próprio corpo-tamanho, proporção, definição, simetria e “qualidade estética” desenvolvida nas academias por meio de exercícios e dietas (SCHWARZNEGGER; DOBBINS, 2001). As poses são o veículo de apresentação de todos esses itens. Outra classificação específica utilizada no cotidiano das academias de musculação é aquela reapropriada da somatotipologia (produzida pela cineantropometria) pelo senso comum do campo. De acordo com os frequentadores, existem três tipos de corpos, espécie de tipos ideais, que podem ser combinados produzindo, ao final, uma tipologia dividida em um total de oitenta e oito subcategorias. Esses três tipos seriam assim definidos: O ectomorfo: tronco curto, braços e pernas compridos, pés e mãos compridos e estreitos e muito pouca reserva de gordura (dificuldade para engordar); estreiteza no peito e nos ombros, com músculos em geral longos e finos. Em geral, esse é o indivíduo magro que possui dificuldade para adquirir peso. O mesomorfo: peito largo, tronco longo, estrutura muscular sólida e grande força. Para os frequentadores das academias, o indivíduo que possui esse tipo de corpo é um “verdadeiro abençoado pela genética”, como ouvi inúmeras vezes durante o trabalho de campo, porque é aquele que tem maior facilidade em adquirir massa muscular. O endomorfo: musculatura frágil, rosto redondo, pescoço curto, quadril largo e grande reserva de gordura. Esse é o gordo. 154 DROGAS DE APOLO Aqui é preciso destacar que, nas relações sociais das academias, a pessoa gorda é a mais desprezada: “Odeio gente gorda! Quem é gordo é preguiçoso, desleixado, descuidado, molenga, perdedor e fedorento!” (Carla, 18 anos, estudante de Marketing). Sobreposta à classificação científica, subjaz outra que, utilizando as categorias da primeira, forma um sistema classificatório nativo que não raro acaba por radicar supostamente na genética a hierarquia da realidade social do grupo: “Negros, italianos e alemães são mesomorfos [...] pode ver: todos os ganhadores do Mister Universo, Mister Olympia e daí por diante são descendentes de italianos, alemães ou negros, é genético, eles têm mais massa muscular que os outros povos” (Paulo, 22 anos, estudante de Educação Física). Contestando essa afirmação, digo: “Mas o Arnold [Schwarzenegger] não era mesomorfo [...]”. A resposta, em tom eugênico, vem: “Mas ele é austríaco, tem sangue germânico, e, por isso, mais facilidade para ganhar corpo”. Essa concepção equivocada não condiz nem mesmo com as classificações dos campeonatos que admitem competidores de diversos tamanhos e estaturas. Já em relação aos indivíduos gordos, Rafael Mattos (2012), em seu livro Sobrevivendo ao Estigma da Gordura, destaca a condição social deles, seus constrangimentos, sua administração de identidade e a tentativa de superar o preconceito e o desprezo de uma sociedade, cada vez mais, obcecada pela baixa adiposidade. Nesse aspecto, as representações sociais positivas de saúde como sinônimo de beleza e essa, por sua vez, como corpo modelado – “sarado” – magro e musculoso, contrapõe-se à representação oposta, negativa, do corpo gordo representado como doentio e desprezível No contexto pesquisado, esses indivíduos são considerados fora da normalidade ponderal, não raro, sendo isolados de convívio social entre os que ostentam o padrão estético dominante (LUZ; SABINO, 2017). Como disse, a combinação desses três tipos chega a constituir outros 88; assim temos, em uma espécie de combinatória: o ectomesomorfo, o ectoendomorfo, o mesoecto, o mesoendo, o endoecto, o endomeso etc. A análise acurada dos tipos e a definição mais exata só é possível com o auxílio de indivíduos entendidos em cineantropometria que utilizam instrumentos adequados (adipômetros, por exemplo) para avaliar a morfologia medindo certas regiões corporais. Grosso modo, tais avaliadores utilizam uma escala pontuada que vai do grau 1 ao 7 (máxima ectomorfia à máxima endomorfia). Dessa forma, se uma pessoa possui nessa escala o grau 2 (ectomórfico), o grau 6 (meso) e o grau 5 (endo), ela pode ser considerada uma pessoa endomesomorfa. Ou seja, um tipo bastante musculoso, mas com tendência a apresentar muita gordura ou grande facilidade de engordar. 155 CÉSAR SABINO A partir dessa avaliação, todo o treino e, consequentemente, o enquadramento nas práticas de musculação nas academias se estabelecerão para o avaliado. Classificado, suas práticas terão que ser condizentes com o modelo que a ele foi imposto a partir das medidas de seu próprio corpo em consonância com o sistema classificatório do campo. Assim, a própria avaliação – realizada por um professor de educação física ou um personal trainer (em geral um fisiculturista de longa data) – já se afigura a uma espécie de pré-ritual que instituirá o papel, durante um longo tempo, do praticante na estrutura objetiva das academias de musculação. A ordem classificatória, modelo presente na consciência dos indivíduos do grupo, atua também como articulador ritualístico das práticas das diferentes instâncias desse mesmo grupo. Junto com o rótulo que recebe, o indivíduo aceita também seu programa de treinamento diário, que obviamente estará associado ao seu papel, ao menos temporário, no sistema ou, para usar um termo de Bourdieu, no campo. Sem embargo, o tipo ectomorfo terá um treinamento voltado para a aquisição de peso, massa muscular. Portanto seus exercícios, segundo os fisiculturistas, deverão ser extenuantes, pois ele terá que desenvolver força e resistência, o que o obrigará a buscar levantar o máximo de peso possível em uma série (grupamento de exercícios) de repetições baixas (entre seis e oito repetições), deverá descansar bastante entre um exercício e outro e comer em grande quantidade, deve também fazer pouco esforço aeróbico, ou seja, não deve correr, nadar ou pedalar em quantidade, já que seu objetivo deve ser guardar energia para transformá-la em músculo. O mesomorfo, considerado o tipo biológico privilegiado, deve trabalhar volume e definição simultaneamente. Como, de acordo com os fisiculturistas, esse tipo tem geneticamente facilidade para aquisição de músculos, ele não deve se preocupar com supertreinamentos ou com conservação de energia, o que significa que ele pode fazer exercícios aeróbicos e séries de repetições regulares de oito a 10. Sua dieta também é a mais fácil, pode ser equilibrada sem muitas restrições e cortes drásticos de determinados alimentos. Já o endomorfo, por ser gordo, deverá se manter sempre de dieta, com restrições calóricas radicais, realizando muitos exercícios aeróbicos junto com séries de musculação de 12 repetições em diante sem muito descanso entre um e outro exercício. Se o mesomorfo é o privilegiado, o endomorfo é o mais prejudicado pela genética, de acordo com o sistema classificatório dos fisiculturistas. A gordura, muito menos que o osso – a magreza – pode ser considerada uma espécie de anátema que denigre toda a existência do 156 DROGAS DE APOLO indivíduo, adiando sua aceitação no grupo social da muscularidade. Sua aceitação deverá ser conquistada por meio da mudança diligente de sua forma física por intermédio de todo o processo de domesticação do corpo e da forma pelo ferro das anilhas, o ascetismo das dietas e o suor das corridas e pedaladas. Ao final, porém, o que conta é a concepção liberal de que qualquer indivíduo, com força de vontade e dedicação, poderá transformar seu corpo e sua vida como um self made man. Basta, para tanto, o exercício da vontade livre para transformar as coisas. 3.6 SÉRIES DE REPETIÇÕES: A DIVISÃO DO TRABALHO MUSCULAR Para que se torne viável um melhor entendimento da lógica estrutural que compõe o sistema simbólico de construção de um corpo musculoso entre os fisiculturistas – e mesmo entre as pessoas comuns que frequentam as academias, visto que os sistemas de treinamento são decalcados das experiências e simplificações dos primeiros –; necessário se faz esclarecer o significado prático das séries de exercícios e sua composição. As séries são grupos de exercícios com carga (pesos) repetidos que objetivam desenvolver determinada região do corpo. Contudo não basta apenas levantar pesos para se tornar um fisiculturista. Há um sistema técnico complexo que organiza todo o processo de modelagem muscular e estética e ética dos frequentadores de halteres. Os exercícios estão baseados na força e no autodiagnóstico da dor. Um Exemplo de Divisão de Treinamento (fisiculturista) Dia Grupos Musculares 1 Peitorais, Tríceps, Abdômen, Exercícios Aeróbicos 2 Costas, Bíceps, Panturrilha 3 Ombros, Trapézio, Abdômen, Exercícios Aeróbicos 4 Coxa Anterior e Posterior 5 Repete o Ciclo, Exercícios Aeróbicos 6 Repete o Ciclo Exemplo de Divisão de Treinamento (fisiculturista) 157 CÉSAR SABINO Segunda-feira - peito, bíceps e tríceps Supino Reto 4x6 (quatro séries de seis repetições)55 Crucifixo Reto 4x6/12 Supino Inclinado com Halteres 4x6/12 Supino Canadense com Barra 4x12 Cross Over 4x12 Rosca Direta 4x10/12 Tríceps Testa 4x10/12 Rosca Concentrada 4x10/12 Tríceps no Pulley 4x10/12 Terça-feira - perna, panturrilha Extensão Perna 4x12/15 Leg Press 45O 4x12 Hack Machine 4x10/12 Flexão Horizontal 4x15 Gêmeos Máquina 5x20 (cada angulação dos pés; o seja: reto, com as pontas dos pés para dentro e para fora) Quarta-feira - Costas e Ombro Barra Fixa pela Frente 4x15 Puxador Frente com Triângulo 4x10 Remada Unilateral 4x8/12 Remada Curvado com Barra 4x6/10 Puxador Costas 4x12 “Bom Dia” 4x10/12 Elevação Lateral 4x12 Desenvolvimento Costas 3x8 Séries e repetições são termos fundamentais na musculação e representam a quantidade de exercícios que o indivíduo realizará nas barras com halteres e nas máquinas, portanto que tipo de corpo ele construirá por intermédio desses mesmos exercícios com pesos. Assim, por exemplo, uma série 4 X 6 significa que ele repetirá um bloco de seis exercícios idênticos quatro vezes descansando de 40 segundos a um minuto entre cada bloco. 55 158 DROGAS DE APOLO Desenvolvimento Frontal 4x10 Encolhimento com Halteres 3x12 Elevação Posterior 4x12 Abdômen no Puxador 4x30 (3x por semana) Quinta-feira, Sexta-feira e Sábado Repete o treino. A organização dos exercícios divididos em séries e repetições combinadas e recombinadas ao infinito e com gradativo grau de intensidade é também a base organizacional das práticas nas academias de fisiculturistas. Tais grupamentos abstratos devem ser concretizados na prática mediante exercícios específicos que encarnam a domesticação corporal e a manipulação das fibras musculares. As classificações subjetivas estruturam as classificações objetivas e vice-versa (LÉVI-STRAUSS, 1975). Como o espaço social é definido pela exclusão mútua, ou pela distinção, das posições que o constituem, ou seja, pela estrutura de justaposições e de posições sociais – demarcadas pelos termos na estrutura de distribuição das diferentes espécies de capital corporal (BOURDIEU, 2001); as séries e repetições organizam e são organizadas pelas práticas de modelagem muscular hierarquizando a realidade das academias de musculação. O enquadramento em uma categoria funciona simultaneamente como enquadramento na prática ou papel a ser ocupado pelo indivíduo na estrutura objetiva do grupo: Quadro 1 – Tipos Corporais Tipo Corporal -Somatotipologia Organização físicos dos tipos Endomorfo Mesomorfo (88 variações) Ectomorfo Série - Programa de treinamento Organização exercícios e físicas dos atividades 3X10/ 4x8/ 4x12/ 3x6 etc. Peito, costas, braços, ombros, pernas Estrutura objetiva relações organizacionais Organização academias Social das Fisiculturistas, veteranos, Comuns Fonte: o autor 159 CÉSAR SABINO É necessário destacar a quase inexistência de números ímpares nas séries de exercícios – nas séries anteriormente apresentadas aparece apenas o número 15, no caso das repetições, e 3 no caso das séries; o que significa que quase ninguém realiza exercícios com repetições ímpares. Tais organizações da prática de exercícios enquanto modelos conscientes nítidos apresentam uma certa dificuldade de interpretação por parte do antropólogo. Desde que a consciência esquece os fundamentos inconscientes que a codificam, ela torna-se fonte de erro e deve ser vista com muita cautela (RODRIGUES, 1980). Conforme escreveu Lévi-Strauss (1976a, p. 15): “quanto mais nítida a estrutura aparente, tanto mais difícil se torna apreender a estrutura profunda, por causa dos modelos conscientes e deformados que se interpõem como obstáculo entre o observador e seu objeto”. Existem dois fatores que devem ser destacados na tentativa de análise desses sistemas de classificação: 1) eles têm, no discurso científico, a matriz que organiza o seu próprio discurso, visto reinterpretarem os termos e as relações dos discursos doutos elaborando a partir daí os seus; 2) apesar de proclamarem a cientificidade dos próprios sistemas, e mesmo o fato de essa ordem fazer parte das articulações cotidianas desses discursos e práticas, a presença de elementos míticos inconscientes está presente nesses mesmos discursos e práticas. Isso ocorre, por exemplo, no caso da quase ausência de números ímpares nas séries de exercícios. Essas séries são respaldadas pelas e tidas como produto das faculdades de Educação Física, Fisioterapia e das chamadas ciências dos esportes; porém, nos discursos leigos do cotidiano das academias de musculação e fisiculturismo um certo quantum de sentimento mágico não deixa de estar presente em suas montagens e organizações. O número 160 DROGAS DE APOLO ímpar, assim como a mão esquerda, ou mesmo a dissonância musical56, pode representar, nas sociedades complexas de matriz europeias, o intersticial, a exceção, ameaça de desordem, região obscura, o mistério, o obscuro, o errôneo que pode colocar em risco a própria organização do sistema, visto poder quebrar a suposta concepção de harmonia e equilíbrio inerente às combinações pares. Essas, por sua vez, estão relacionadas inconscientemente à ordem do universo nas representações nativas. Pela natureza de seu espírito ou mente, o ser humano não pode lidar com o caos – ao menos a maioria das pessoas –; o absurdo apresenta-se como algo inaceitável e perigoso, daí todo o pavor ligado à ausência de sentido e a eterna tentativa das culturas em dar um significado seguro ao mundo (LÉVI-STRAUSS, O problema da ordem do universo representada pela harmonia musical está presente em todo o pensamento ocidental desde pelo menos Pitágoras de Samos. Para os pitagóricos, a harmonia universal seria expressa pelos números inteiros - já que para eles, os números seriam as almas das coisas e, portanto, indivisíveis. O maior problema dessa concepção diz respeito aos números irracionais. Tanto na relação entre certos valores musicais, expressos matematicamente, quanto na base mesma da matemática, surgem grandezas inexprimíveis naquela concepção de número (que supõe a “harmonia” do número inteiro). Segundo Pessanha (1996, p. 19): “a relação entre o lado e a diagonal do quadrado (que é o da hipotenusa do triângulo retângulo isósceles com o cateto) tornava-se ‘irracional’: aquelas linhas não apresentam razão comum, o que se evidencia pelo aparecimento, na tradução aritmética da relação entre elas, de valores sem possibilidade de determinação exaustiva, como o 2. Ou então, quando se pressupunha que os valores correspondentes à hipotenusa e aos catetos eram números primos entre si, acabava-se por se concluir pelo absurdo de que um deles não era nem par nem ímpar”. O problema da suposta falta de ordem, medida e proporção dos números denominados “irracionais” e das dissonâncias musicais atravessa toda a metafísica preocupada com a Identidade. Mesmo Schopenhauer, considerado um dos pais do antirracionalismo moderno, e, para quem a música era o universo e a vontade corporificada, em outras palavras, “a essência interna do mundo” (1986, p. 79). Parece não ter percebido que não são imperfeitos os sons, mas sim nossas apreensões sensíveis que assim os denominam, classificando-os de acordo com os elementos pré-existentes em nossas mentes. Como quaisquer outras coisas, sons são apenas sons, visto que a perfeição é uma representação cultural caudatária de um processo lógico que hierarquiza a realidade sem, contudo, apreendê-la na sua totalidade ou plenitude. O filósofo do pessimismo escreveu: “os próprios números, pelos quais os tons permitem expressão, ostentam irracionalidades insolúveis; não é possível calcular uma escala, em cujo interior toda quinta se relaciona com o tom fundamental, na proporção de 2 para 3, toda terça maior, como 4 para 5, toda terça menor como 5 para 6, etc., pois se os tons estão corretos em relação ao tom fundamental, não o são entre si, na medida em que por exemplo, a quinta deveria ser a terça menor da terça, etc., [...] por isso uma música perfeitamente correta não pode sequer ser pensada, quanto mais ser executada; e por isso toda música possível se desvia da pureza perfeita: ela consegue apenas ocultar as dissonâncias que lhe são essenciais [...]” (Idem, p. 81). De acordo com um texto de Weber, “Os Fundamentos Racionais e Sociológicos da Música”, incluído em Economia e Sociedade (1997), essa preocupação metafísica com a Identidade equacionada à ordem e à harmonia será um dos fatores que levará à extrema racionalização da música ocidental devido à incessante busca de equacionar o que a sociedade ocidental concebeu como irracionalidade musical. A preocupação com os intervalos – a música no Ocidente vai ter por base harmônica a quinta e a terça levando à construção do chamado “acorde perfeito” e à distinção entre boas e más medidas - levou ao desenvolvimento dos estudos sobre a tonalidade a polifonia e o contraponto, culminando com a constituição de uma arte autônoma, praticada por motivos puramente estéticos por profissionais especializados. A música ocidental tradicional é, ao menos até o século XX, o exemplo da tentativa metafísica dos sistemas classificatórios do chamado pensamento domesticado de absorver a diferença na Identidade, ou o devir no Mesmo (DELEUZE, 1988) supondo que a primeira (a diferença) constitui-se como o erro e a imperfeição do mundo material. Talvez, a quase ausência de séries ímpares nos exercícios dos fisiculturistas seja também expressão de tal espírito obcecado por aquilo que considera perfeição lógica. 56 161 CÉSAR SABINO 1976; NIETZSCHE, 1978a; EVANS-PRITCHARD, 1978a; SCHÖEPKE, 2004; 2009; CAMUS, 2017). Durante o trabalho de campo, foi possível detectar alguns aspectos discursivos que permitem a tentativa de elaboração de uma explicação para a quase inexistência de números ímpares no sistema de exercícios do grupo pesquisado. Perguntados sobre a causa desse fato, alguns responderam que “ora, é porque o número par arredonda o esquema todo [...]” (Josias, 25 anos. Funcionário público), ainda: “assim a série fica redonda, perfeita” (Carlos, 18 anos. Estudante) e “o grupamento de exercício fica completo, certinho, fechado, redondo” (Paulo, 27 anos. Advogado). Além desse aspecto, foi dito o seguinte: “uma série ímpar é quebrada, não é boa [...]” (Mário, 54 anos. Funcionário público) ainda: “[...] eu acho que a ordem é harmônica [...] a gente tem dois braços, duas pernas, dois ouvidos, dois olhos, dez dedos, então as séries têm que ser par, ora!” (Rafael, 23 anos. Professor). Podemos aqui destacar as concepções de perfeição, completude, circularidade e mesmo ordem no discurso nativo sobre as séries de exercícios. Além também da identificação indireta do número par como algo naturalmente construído, por isso correto, visto que “naturais” são as paridades de membros e orifícios do corpo humano; o número ímpar seria uma exceção no sistema, uma anomalia aceita em determinados momentos com o objetivo de reiterar a ordem e a harmonia representada pela paridade (DOUGLAS, 1976). Outro aspecto aludido pelos informantes a respeito dos números pares e ímpares é o do medo do azar: “ah, número ímpar demais dá azar... vê só o número 7, ninguém gosta dele, é coisa de macumba.” (Rafael, 23 anos. Professor). Ainda: “o número 13, por exemplo, é um número estranho, né? Tem gente que acha que dá sorte, tem gente que acha que dá azar [...] não sei, é estranho” (Mariana, 22 anos. Comerciária). Em Medo do Feitiço (1992), Yvonne Maggie buscou compreender, mediante a pesquisa de processos judiciais sobre feitiçaria, a característica pervasiva dessa na sociedade brasileira. A autora destaca o fato de que não apenas os denunciantes e acusados da classe baixa, mas também os letrados (juízes e advogados) acreditavam na magia e consideravam um dever coibir o seu abuso. Esses guardiões do Direito acreditavam simultaneamente na ciência e na feitiçaria, articulando uma lógica ou outra quando lhes convinha: “se os colonizadores ingleses visaram suprimir a crença na feitiçaria, a elite brasileira, nela emaranhada, procurava administrá-la satisfatoriamente” (2001, p. 63). Nas academias de fisiculturismo, não é diferente. A crença na ciência do esporte, na ciência da nutrição, nos resultados de equações cineantropométricas convive tranquilamente com a crença no feitiço, no 162 DROGAS DE APOLO mau-olhado, na magia, como atestam os relatos sobre os números ímpares. Se representam, num primeiro momento, ambiguidade e imponderabilidade; num segundo instante, são equacionados rapidamente a forças mágicas que suprimem desse pensamento o acaso e a falha. Não apenas o número ímpar é motivo de alusão ao feitiço, mas a gripe, o exercício que não dá resultado, o acidente etc. Se um peso cai no pé de alguém que está com o corpo em forma, isso pode ser motivo de burburinho a respeito de “trabalho feito”, “macumba” ou “olho-grande”. Da mesma maneira, se um fisiculturista fica gripado e perde massa muscular ou, por outro lado, se, apesar de toda a técnica e ciência utilizada, ele continua “sem crescer”, ou seja, sem aumentar sua massa muscular; isso pode ser resultado da inveja. Essa tem o poder mágico de fazer mal por si mesma. Nada precisa ser feito a não ser o invejoso olhar com inveja para o invejado e assim prejudicá-lo. Esse processo Zande de crença está de forma similar presente no cotidiano das academias. Um dos relatos do meu caderno de campo reitera tal afirmação: Janeiro de 2001. [Chego à academia e vejo Micharia coberto com casacos [...] fazendo um agachamento com quase 250 quilos e sendo auxiliado por Jair. A princípio penso que ele acredita – como muitos - que fazendo esforço agasalhado pode perder mais peso e definir musculatura. Mas logo percebo que não pode ser isso, posto já estar com baixo percentual de adiposidade. Me aproximo vagarosamente buscando usar a máquina para exercícios das pernas chamada Leg press (exercita o músculo chamado de vasto medial) e após perceber que Micharia terminou sua série de agachamento, começo a conversar com ele]: -E aí Micharia ?! Como tão as coisas? -Tudo certo. -Esse agachamento aí tá meio pesado, né? -Mais ou menos... -Hum, mais ou menos... mais ou menos, se eu fosse fazer um agachamento desses eu morria esmagado na primeira repetição. -Nada... [demonstrando pouco interesse por conversa]. -Cê não tá com calor não, cara? Tá todo agasalhado... -Tô morrendo de calor, mas agora eu só vou malhar de casaco. Essa academia só tem olho-grande. Ano passado perdi a competição porque era tanto olho-grande que eu fiquei gripado na semana 163 CÉSAR SABINO de competir... os caras chegavam pra mim [com voz melosa e em falsete]: Nossa, como você tá grande! Puxa como você tá definido! E ficavam me secando com aquele olhar de seca pimenteira enquanto eu malhava. Agora não, cara. Não vão secar p**** nenhuma, porque eles não vão ver nada! Para meu informante, assim como para os Azande estudados por Evans-Pritchard (1978a), o absurdo, ou o acaso, não teria lugar no pensamento; seria necessária uma racionalização, a explicação causal precisa, para ser resignadamente aceito. Com efeito, para Micharia não fazia qualquer sentido estar em um processo de construção da forma seguindo à risca todas as normas e regras e, repentinamente adoecer, perdendo uma competição. Nenhum outro fator poderia explicar melhor seu adoecimento, perda de parte da excelência estética e a derrota, apenas o “mau-olhado”. Le Breton (2009, p. 235), em seu estudo sobre o olhar em culturas diversas, aponta para uma espécie de lugar comum em todas elas no qual o olhar de um pretenso bruxo, ou suposta pessoa com energias negativas, emite uma força que faz esvaecer as energias do seu alvo. Essa é uma das formas de explicar o que no fundo não tem explicação. Destarte, como todo absurdo ou catástrofe, entre os Zande, era visto como produzido pelo feitiço; da mesma forma, para alguns fisiculturistas e marombeiros, o mau-olhado é a causa eficiente de perderem a forma, adoecerem, ou serem desclassificados ou em lugares secundários em uma competição. 164 CAPÍTULO IV La cuisine d’une société est un langage dans lequel elle traduit inconsciemment sa struture. (Lévi-Strauss) 4 COMENDO COMO BICHO: PUBLICIDADE, MITO E GASTRO(A) NOMIA As práticas alimentares não devem ser apenas vistas como hábitos inadequados ou não como muitas vezes reiteram as ciências da saúde, mas como acontecimentos culturais, com racionalidades diversas. A princípio, para a medicina e a nutrição, o ser humano é nutrido por lipídios, glicídios e protídeos, todavia, também é certo que os alimentos além de nutrir, significam e comunicam estando envolvidos e envolvendo uma vasta teia de simbolismos, rituais e práticas diferentes daquelas relacionadas às análises biomédicas (CONTRERAS; GRACIA, 2011). Perseguindo o padrão estético dominante, número significativo de pessoas não mede esforços para se adequar aos parâmetros sugeridos pelas imagens midiáticas. Dietas e plásticas, de todos os tipos, implantes de próteses de silicone e exercícios variados são realizados com o intuito de aprimorar a forma física. Os heróis do fisiculturismo aparecem em publicidades de dietas, de máquinas de musculação, de roupas para esporte e de métodos de exercícios que, a cada ano, surgem de maneira diversificada no mercado da boa forma. Como o músculo, nesse sistema simbólico específico, é o signo e a síntese do sucesso, a busca incessante pela sua expansão remete a uma dimensão classificatória também peculiar. No sistema classificatório dos bodybuilders, algumas imagens ordenam e reiteram a diferença inerente às relações sociais; assim, suplementos alimentares, dietas, tatuagens e emblemas de academias não apenas buscam sustentar ideias de força, destemor, bravura, imponência, mas também organizar grupos reiterando suas especificidades identitárias (LÉVI-STRAUSS, 1975; 1976b). Assim, por exemplo, alimentos para tornarem-se comida são primeiro “pensados”, classificados, comparados, justapostos e opostos para depois serem consumidos, posto que as sociedades ou as culturas ordenam 165 CÉSAR SABINO os mesmos como próprios ou impróprios. Nesse movimento, a culinária ou a cozinha representam ou traduzem, como uma linguagem, as relações sociais com todas as suas peculiaridades, sendo um objeto de análise não apenas nutricional, mas antropológica e sociológica (LÉVI-STRAUSS, 1975; 1976b; 2004). O mesmo processo ocorre para as outras dimensões citadas . Leach (1983, p. 186), em seu estudo sobre categorias animais, elabora uma breve classificação que indica o sentido da distância e da proximidade de determinados animais em relação aos indivíduos de algumas culturas. Demonstrando que os animais, em algumas sociedades, situados a distância intermediária do homem podem servir de alimento, se forem seguidas determinadas regras, enquanto os animais remotos não são comestíveis; o autor destaca a ambiguidade classificatória como viés de compreensão da realidade que não deve ser vista totalmente dicotomizada em perto/ longe, eu/isto, nós/eles, mas também como escala graduada, modulada e moduladora que atua articulando sentidos e aspectos como “mais como eu, menos como eu” (1983, p. 198).Esse caráter ambíguo afeta, por exemplo, cães e cavalos, animais que, segundo Leach, devido a sua proximidade com os seres humanos nas sociedades complexas ocidentais, em geral, não lhes servem de alimento, salvo exceções, como a do cavalo na Bélgica. Marshall Sahlins (1979, p. 191), de maneira similar, destaca que “a América é a terra do cão sagrado”, ressaltando o tabu que ronda esse animal doméstico no imaginário norte-americano. Longe de ter respaldo biológico, ecológico ou genético, a proibição do consumo de carne de cachorro e cavalo por ocidentais estaria, de acordo com o autor, radicada no sistema simbólico que classifica tais animais como “sagrados”, impróprios para alimentação, salvo raríssimas exceções, como a que ocorreu durante uma crise da alimentação de 1973, na qual Sahlins diz que a carne de cavalo foi colocada à venda em substituição à bovina, causando, porém, protesto. Seguindo esquema parecido ao de Leach, Sahlins alude ao fato de que animais próximos ao ser humano são objeto tabu; em geral, seu consumo é impedido por motivos culturais. Não sei se essas interpretações anglo-americanas procedem ou se apenas tentam utilizar lógica similar ao do parentesco para compreender o motivo de alguns animais servirem de alimento e outros não. De qualquer forma, tecem uma compreensão sobre as classificações e proibições alimentares e comensais. Mary Douglas (1976; 1979), um pouco na esteira dos autores estruturalistas, busca traduzir a gramática das comidas como se fossem textos codificados, ou seja, sistemas passíveis de serem interpretados em consonância com os sentidos, significados e principalmente 166 DROGAS DE APOLO práticas circunstanciais. Com efeito, sua singularidade reside no fato de destacar diversas formas ritualísticas de comer, que vão das mais densas àquelas mais relaxadas, ressaltando que a época contemporânea tende a produzir um crescente afrouxamento das situações alimentares estruturadas (com locais, rituais e relações sociais específicas), como as refeições em família ou entre convivas, a favor do consumo de aperitivos (snacks), lanches e fast-foods sem as características anteriores. Essa leitura do sistema culinário, sob meu ponto de vista, enfatiza o crescente distanciamento da comensalidade (a forma estruturada na qual é necessária a reciprocidade e a troca solidárias) em relação à alimentação, o ato solitário, desgarrado, veloz ou desestruturado de simplesmente “matar a fome”. Todavia parece que também, nas classificações alimentares dos fisiculturistas, alguns animais surgem semanticamente como ambíguos. De maneira alguma queremos dizer que a mesma lógica do perspectivismo ameríndio encontra-se de forma integral ou em partes no pensamento ocidental racionalista, mecanicista, transcendente e depredatório – e não predatório como entre ameríndios. Contudo, por aproximação, podemos demarcar a oposição entre essas duas formas de apreender a realidade. Com efeito, na classificação dos fisiculturistas, cavalos, podem significar grosseria, estupidez e burrice, por um lado, ou garbo, força e imponência, por outro, dependendo da circunstância. Em geral, entre bodybuilders pesquisados, esse animal é emblema de força e resistência – assim como o cão pitbull é da mesma forma sinônimo de força, bravura e destemor. Ocorre, então, um processo de identificação com a força representada pela figura desses animais, assim como outros. Tal aspecto remete indiretamente à questão da consubstancialidade presente na comensalidade de alguns povos ameríndios, mas de forma oposta. Entre os Pakaa-Nova, por exemplo, autodenominados Wari, estudados por Vilaça (1992, p. 68), “a devoração produz uma consubstancialidade entre os termos”; ou seja, “todos aqueles que são devorados por um jaguar tornam-se jaguar por terem seus jam incorporados a esta espécie”. Jam poderia ser provisoriamente aqui traduzido como essência, mas não no sentido da metafísica ocidental. Ele “é um traço, marca, representação ou imagem de um corpo. A sombra de um objeto ou pessoa projetada pela luz é o jam do objeto ou da pessoa” (VILAÇA, 1992, p. 55, grifos da autora). Assim, se um Wari sonha que comeu um animal, ele sabe, ao acordar, que não comeu o corpo do animal, mas o jam do animal. Entre eles, os animais com jam são considerados pessoas e não devem ser devorados. Se isso acontecer, aquele que comeu o animal adoece. Entre os 167 CÉSAR SABINO Tupinambá, comer um guerreiro inimigo, por sua vez, fazia parte de um ritual expiatório (GIRARD, 1997; VIVEIROS DE CASTRO, 2002f), no qual a força e o poder por aquele representados eram incorporados por aqueles que o devoravam. Nessa forma de olhar o universo, os ameríndios conferem agência e humanidade aos animais, colocando-os na mesma dimensão ou horizontalidade de condição de pessoas em sociedades. Simplificando de forma muito canhestra: para eles não existiria uma dimensão singularmente humana representada pela sociedade e cultura, separadas de uma instância objetificada denominada natureza, objeto sistêmico e mecânico, com leis imutáveis (CAMARGO JR., 1993), mas todos os seres apresentariam humanidade potencial vivendo em suas sociedades e culturas. Assim, por exemplo, ser morto e devorado por um jaguar é ter seu jam misturado ao dos jaguares “renascendo” na sociedade e cultura dos jaguares, passando a conviver naquela sociedade como agente e pessoa. Enquanto essa forma de pensamento humaniza os seres e aquilo que chamamos de natureza – animais, vegetais e mesmo fenômenos –, a forma ocidental desumaniza e coisifica todos os outros seres colocando-os como objetos descartáveis ou de comércio e exaltando o ser humano como único agente legítimo (de) predador do seu entorno. Assim, a efêmera consubstancialidade do fisiculturista se resume ao fetichismo da mercadoria transformando em coisa elementos físicos (moléculas) considerados predicados universais (naturais) a serem utilizados e absorvidos. Se não consomem cães e cavalos, animais próximos e mais “sagrados” e “proibidos”, quase subparentes, às vezes consomem substâncias das indústrias farmacêuticas e cosmética produzidas para maximizar a saúde desses animais, mas apenas por analogia. Ocorreria, por um lado, uma espécie de identificação “totêmica” com esses animais e, por outro, uma espécie de anticonsubstancialidade posto que o animal, ao contrário das sociedades citadas, é visto, em geral pelo grupo, como coisa, mercadoria, objeto a ser decomposto para que seus elementos químicos passem a compor com a fisiologia do usuário uma condição de força biomecânica melhor para esse último. O uso de elementos direcionados para alimentação de animais que, por sua vez, servem de alimento aos seres humanos, transfere algumas características químicas positivas, mesmo que temporariamente, para os corpos daqueles que consomem estas substâncias. Processo que coincide com o uso de produtos veterinários, por parte de alguns, destinados a equinos, por exemplo. Assim, se não comem diretamente cavalos para adquirir sua força, parece que associam o uso de vitaminas, anabolizantes, pomadas e 168 DROGAS DE APOLO mesmo xampus para tais animais como um meio de conquistar um pouco da força inerente a eles devido a intensidade química desses produtos: “Eu tomo aminoácido pra cavalo... já tomei também Equifort [anabolizante para equinos] e fez efeito [...] é muito mais forte que o de gente, te dá muito mais força [...]” (Carlos, 24 anos. Fisiculturista). Com efeito, a natureza selvagem com sua força incontornável e constante, representada por alguns animais considerados fortes, resistentes e impetuosos, supostamente poderia ser capturada, mercantilizada, comprada e absorvida, não pela consubstancialidade, mas pela transferência dos elementos químicos, ao menos em parcelas e partes, via cápsulas farmacêuticas, ou mesmo injeções em uma transposição de características consideradas positivas para o consumidor. De vez em quando eu arranjo Androgenol com um cara lá do Jockey, é pra cavalo, né?! Tu usa o efeito é violento... também tomei vitamina pra cavalo o Potenay, dá o maior gás, porque tem anfetamina também [...] Então, não é psicológico, é porrada, é pra valer, porque é mais forte, a quantidade é mais concentrada, entende? (João. 27 anos. Fisiculturista e lutador de jiu-jitsu). [...] o remédio pra cavalo [...] é muito mais forte, pô tu toma uma ampola de Equifort nem se compara... porque vem mais que as de gente... as vitaminas, os aminoácidos também...são muito mais fortes que os comuns, cê fica com uma força de animal, cara. É isso por isso muita gente toma essas coisas [...] o que a gente não faz pra melhorar, né? (Pedro. 22 anos. Fisiculturista e lutador de jiu-jitsu). Eu uso produtos veterinários às vezes, mas faço isso porque acho que são mais fortes e funcionam melhor, mas não uso apenas eles. Também tomo os normais [...] e alguns remédios para emagrecer quando eu preciso [...] pra ficar cortado [com baixo percentual de adiposidade] sibutramina e suplemento pra acelerar o meu metabolismo, porque eu tenho facilidade pra engordar[...] não fio com corpo bom só treinando, fora que curto comer, então...é uma luta. (Fábio. 32 anos. Advogado). Cara, eu já tomei tudo. Clembuterol, efedrina, tudo que é bomba, Ritalina pra ficar agitado e treinar mais, Sibutramina [...], mas tem mesmo o lance do cavalo [...] Potenay, Equifort , se der mole a gente toma até querosene, [risos] tudo maluco. Se você não for doido não faz [...] tem que amar muito isso aqui [...] agora, a gente toma coisa de bicho porque é mais forte. Então o efeito é melhor. É o que eu acho. (Tiago. 22 anos. Estudante). 169 CÉSAR SABINO [...] eu fico com mais disposição. Agitado, é bom não só pra treinar, mas pra se sentir bem. Fico com muito gás [disposição], muito animal [...] treino peitoral, perna, bíceps, tríceps... tudo pesado, porque fico muito bem disposto quando injeto essas paradas todas. E como é mais forte a gente consegue ficar sarado mais rápido, a massa cresce logo [...]. (Pedro. 23 anos. Estudante). Nas academias, além de ser comum o uso desses produtos para equinos57, ainda ocorre o uso de outros por parte das mulheres e dos homens, como xampus e pomadas para dor, pois dizem que o efeito é mais rápido, forte e faz a dor, conforme o relato de uma praticante de musculação: “passar logo e o cabelo ficar mais forte e brilhante como a crina de um cavalo”. A diferença entre esses produtos e aqueles direcionados para seres humanos é, como dizem, dosagem maior e menor cuidado higiênico relacionado à produção e às embalagens, o que ressalta o aspecto simbólico da utilização desses medicamentos e produtos. Há, sem dúvida, uma dimensão representacional atuando nesse consumo. O que faz lembrar o texto de Dupuy e Karsenty (1979, p. 191-192): Os medicamentos [ou fármacos] asseguram [...] certo conforto oral, diminuem o sentimento de insegurança, acalmam a angústia, preenchem os vazios [...] em resumo, ajudam a viver. Mas se o medicamento torna possível o acesso aos benefícios da doença é também, e sobretudo, o seu artesão principal. O consumo de medicamentos [...] é um meio de encobrir determinadas faltas. A variedade de posologias, que instituem uma parte do universo temporal do doente [...] preenche o vazio e a angústia das horas cinzentas que se escoam em direção a uma morte cuja própria existência dos sintomas recorda a vida inexorável. Ao tomar o medicamento o sujeito supera um sentimento de impotência em relação a sua fragilidade constitucional. Como os fisiculturistas costumam usar uma quantidade significativa de esteroides anabolizantes, os produtos voltados para equinos trazem maiores porções provocando certeza de maior eficácia, devido a dosagens literalmente cavalares. Em relação aos aminoácidos e vitaminas para animais, algumas vezes, compram substâncias para quadrúpedes em lojas veterinárias, alegando o mesmo motivo: são mais potentes do que as voltadas para seres Em 9 de agosto de 2000, a imprensa carioca noticiou a morte, em um campeonato, de um atleta de 23 anos, Jean Mendonça de Mesquita, lutador de jiu-jitsu, devido à parada cardíaca por causa do uso da vitamina para cavalos denominada Potenay, além de anabolizantes. 57 170 DROGAS DE APOLO humanos, conferindo mais força àqueles que as utilizam. Se não comem diretamente cavalos ou cães pitbull, esses indivíduos parecem ter uma relação de anticonsubstancialidade mercantilizada com esses animais via consumo de produtos a eles direcionados. É justamente porque, nessa cosmologia, os animais são radicalmente não humanos que se torna necessário decompô-los em coisas, como em geral são tratados, para que seus elementos químicos possam auxiliar humanos em seu crescimento. Nessa visão, oposta àquela do perspectivismo ameríndio, animais são objetos moventes, similares aos próprios produtos para eles direcionados, que podem ser usados, consumidos, decompostos e exterminados (depredados e não apenas predados) para a suposta perfectibilidade ou progresso do “ser superior” humano. 4.1 DIETA FORTE A alimentação, além de ser necessidade biológica, é um complexo sistema de significados sociais, sexuais, políticos, religiosos, éticos, estéticos etc. Pode-se dizer que nenhum aspecto do comportamento humano, à exceção talvez do sexo, é tão sobrecarregado de ideias. Conforme Carneiro (2003), a fome biológica distingue-se dos apetites, esses seriam expressões dos variáveis desejos humanos e cuja satisfação não obedece apenas ao curto trajeto que vai do prato à boca, mas se materializa em hábitos, costumes, rituais, etiquetas. Esses hábitos possuem uma intrínseca relação com o poder. A distinção social pelo gosto, a construção dos papéis sexuais, as restrições e imposições dietéticas religiosas, as identidades étnicas, nacionais e regionais são todas perpassadas por regulamentações alimentares (BOURDIEU, 1979; FRY, 1982; 2001). Sem embargo, a cozinha ou culinária de um grupo ou cultura constitui uma forma de linguagem sendo item universal, o que equivale dizer: presente em todas as sociedades. Assim sendo, a comensalidade é configurada por um conjunto de elementos culinários contrastantes e relacionados entre si, formando, uma lógica sistêmica de normas e convenções que organizam os modos como e quando os alimentos são preparados, ordenados, combinados e consumidos, o que, por sua vez, reflete nas relações classificatórias (e, portanto, a lógica inconsciente) do grupo ou cultura, visto ser a organização culinária um tipo de classificação e, portanto, de hierarquia relacionada a parte da realidade coletiva. Esse processo tem por base formas mentais e, portanto, a priori de percepção de sabores: forte/suave; marcado/não marcado; endógeno/exógeno; exótico/local; 171 CÉSAR SABINO central/periférico; prato principal/acompanhamento, ou seja, no sistema classificatório constituem aquilo que Lévi-Strauss denominou “gustemas”, elementos similares aos fonemas que são os itens estruturais na linguística (LÉVI-STRAUSS, 2004; CONTRERAS; GRACIA, 2011). Esse sistema reflete uma lógica que não é, contudo, simétrica em seus movimentos, mas assimétrica – assim como as relações sociais. Ao hierarquizar os agentes sociais formam-se papéis, lugares e status de quem come, onde come, quando come, o que come ou o que pode ou não comer. Por intermédio desse processo, o sistema social reproduz as relações de poder que o constituem via ações e comportamento individuais, ocorre que mesmo neste aspecto existe toda a ritualização de produção de reciprocidade que envolve a preparação e o compartilhar da comida como símbolo de troca, mesmo que assimétrica. O que eu gostaria de destacar neste capítulo é justamente a diminuição no contexto das academias desta dimensão de reciprocidade solidária alimentar, posto que a ciência da nutrição, (e não a gastronomia), com suas cápsulas, shakes e suplementos em geral, além de dietas customizadas e solitárias, termina por enfraquecer as trocas estruturais que permitem a existência da comensalidade. Um pequeno exemplo desse processo se apresenta no seguinte relato: No primeiro dia de aula em uma das academias do bairro de Copacabana, após ser apresentado ao professor e ter enfrentado uma bateria de perguntas a respeito das minhas práticas nas academias anteriores, meus objetivos com relação à forma física e exercícios que havia realizado até então, foi me indicada uma dieta, feita ali na hora, escrita à mão pelo próprio professor que consistia nos seguintes itens: Café da manhã (desjejum): 10 claras de ovos cruas, 10 colheres de aveia (flocos finos), 2 bananas, ½ copo de leite desnatado c/ 10 gotas de adoçante. Lanche: 100 g de batata cozida na água e sal (pouco). Almoço: 150 g de macarrão na água e sal, 150 g de peito de frango (grelhado). Lanche: gelatina diet (à vontade). Jantar: salada de brócolis, agrião, cebola, tomate e alface, 1 lata de atum na água e sal. Lanche: gelatina diet (à vontade). A seguir o professor indicou as seguintes substâncias ou “pirâmide” (ou ciclo): 172 DROGAS DE APOLO Quadro 2 – Pirâmide ou ciclo de esteroides anabolizantes seg ter qua qui sex 1ª semana 1 ampola Dura58 2ª semana 1 ampola Dura 1 ampola Deca59 3ª semana 1 ampola Dura 1 ampola Deca 1 ampola Dura 4ª semana 1 ampola Dura 1 ampola Deca 1 ampola Dura 5ª semana 1 ampola Dura 1 ampola Deca 6ª semana 1 ampola Dura sab Dom Fonte: o autor Além desses esteroides, foram indicadas as seguintes vitaminas: Supradin, Cewin, complexo B. Um comprimido de cada, após o desjejum e um comprimido após o jantar. O “professor” me entregou o papel com a dieta e o ciclo de “bombas” dizendo que, se eu seguisse suas instruções, ficaria com o corpo do Schwarzenegger – um óbvio exagero. Peguei a “receita” e, um pouco assustado, tentei dizer-lhe que não era meu objetivo virar um fisiculturista, mas apenas fazer exercícios e pesquisar, pois era antropólogo e queria entender aquele grupo. Demonstrando um pouco de decepção, mandou-me, então, guardar a dieta porque eu poderia “mudar de ideia”. Disse que, se eu não queria usar os anabolizantes – que ele vendia –, podia ao menos fazer a dieta que era para “secar”, e começou a me indicar os exercícios dizendo que não era costume na academia escrever séries desse tipo para “não viciar o aluno”, já que cada dia seria um exercício novo que ele passaria na hora. Essa indicação de dieta e esteroides anabolizantes para iniciantes é um breve indício das regras alimentares que regem o cotidiano dos bodybuilders, em rituais de autossacrifício e autoimolação que exaltam a sacralidade da 58 59 Durateston. Decadurabolin. 173 CÉSAR SABINO forma (MAUSS; HUBERT, 2005). Interessante se faz observar o papel dos alimentos “brancos” considerados muito ricos em proteínas e carboidratos: peito de frango, peixe, macarrão, batata, banana, clara de ovo. Esses alimentos são consumidos em grande quantidade pelos fisiculturistas. São “sagrados”, e sua presença é indispensável já que, conforme dizem, as proteínas, presentes em carnes junto aos carboidratos, retirados de massas, banana e batata, “são fundamentais para fazer crescer o músculo”. Como essa dieta era para um iniciante, e tinha o objetivo de emagrecer rapidamente o usuário, a carne vermelha estava ausente. Porém, em dietas de crescimento muscular, as quais denominam off season, o consumo de carnes e massas de todos os tipos é incentivado levando alguns a comerem alguns quilos de carne e macarrão por dia, além das dúzias de claras de ovo. Sabendo disso, a indústria dos suplementos alimentares criou substitutos em pó – praticamente sem gosto – para substituir quimicamente tais alimentos. Entre os mais usados, estão suplementos denominados Creatina e a Albumina, nomes científicos, vendidos com nome fantasia por várias marcas da indústria nutricional. Quando se trata de perder gordura, quase todo carboidrato é retirado da alimentação, fazendo o corpo do bodybuilder fica com muitos detalhes musculares à vista, pois a ausência da adiposidade permite que músculos sejam ressaltados sob a pele diretamente sem nenhum intermediário que impeça sua visualização. Para a antropologia, a comida , e, por conseguinte, a comensalidade, tem caráter social, de agregação, é coletiva, solidária e supõe, em geral, rituais nos quais pessoas se comunicam, conhecem-se e reconhecem e reiteram tradições socioculturais por intermédio da culinária. Sendo assim, a comida seria o oposto do alimento, o qual não passa de um conjunto de elementos necessários para a manutenção do corpo e que dispensa qualquer ritual ou elaboração rebuscada (CONTRERAS; GRACIA, 2011). O alimento por ele mesmo não representa nenhuma coesão social, mas o contrário, em sociedades aceleradas nas quais o gosto se embrutece pela rapidez em deglutir como ato solitário, ele pode significar mesmo uma distorção das relações sociais. A quase substituição de comida por alimentos e suplementos realizadas por fisiculturistas, ao menos em grande parte de suas vidas cotidianas, pode representar esse aspecto anômico de uma sociedade, ou grupo, com tendências, cada vez menos, solidárias e mais individualistas. Se olhada da perspectiva de Lévi-Strauss (2004), para quem a fundação e a separação da cultura em relação à natureza são representadas pelo cozimento da carne e, então, toda a socialização que passa a envolver a organização da 174 DROGAS DE APOLO comensalidade; posso dizer que há um retrocesso na percepção da comida, percebida como algo a ser superado – ao menos momentaneamente – em prol dos elementos químicos do alimento. Ato que faz cessar as alianças, a reciprocidade e a solidariedade envolvida na culinária e tudo que ela mobiliza. Certamente Norbert Elias (1993) sugeriria que essa solidão alimentar envolta em contagens de calorias, pesagens intermitentes, em quantidades de carboidratos e proteínas, insinua, ou mesmo já demonstra, um processo descivilizatório. Contudo não posso deixar de lado a observação de que, em momentos raros, esses atletas renunciam sua obsessão pelo alimento em troca de verdadeiras orgias comensais quando, após campeonatos ou em comemorações festivas, reúnem-se em restaurantes para longas horas de associação à mesa sem preocupação com os resultado químicos que possam prejudicar sua forma corporal. Percebi, durante os anos de trabalho de campo, que a solitária e tecnológica dieta fisiculturista tem importância fundamental em seu sistema simbólico, portanto ocupa um lugar ímpar no dia-a-dia não apenas extensivamente (durante o tempo que ele adota), mas intensivamente (a radicalidade). O fisiculturista convive com dietas radicais que comporta a ingestão de inúmeros suplementos – cada vez mais “aprimorados” pela indústria alimentar – e proteínas em grande quantidade. Chegam a consumir até 9000 calorias por dia – três a quatro vezes mais que uma pessoa comum, quando em fase de construção da muscularidade. Por outro lado, reduzem drasticamente a alimentação quando necessitam emagrecer – principalmente carboidratos. Em “fase de crescimento”, realizam, de três em três horas, refeições que chegam a somar uma dúzia de clara de ovos (ou albumina, clara de ovo em pó desenvolvida pelos laboratórios de suplementação) e um quilo de carne ao dia (em geral peito de frango), além dos carboidratos – macarrão na água e sal. Alguns dias antes dos campeonatos, deixam de comer sal e tomam laxantes e diuréticos com o objetivo de reduzir a quantidade de água no tecido subcutâneo para que a musculatura seja ainda mais ressaltada. Não raro, sofrem vertigens e desmaiam devido à falta de água e sais minerais que produz quedas na pressão arterial e arritmia cardíaca. Para reforçar o cardápio, utilizam, como foi dito, vários produtos para suplementação, como farelos e comprimidos – em geral maiores do que o tamanho de um comprimido comum – derivados de alimentos, que geralmente são batidos com leite desnatado ou adicionados à água. Esse tipo de dieta, além de produzir uma grande massa muscular, reduz sensivelmente a porcentagem de gordura corporal. As taxas chegam 175 CÉSAR SABINO a se estabilizar entre 2% e 5%, contra 18% de um indivíduo comum do sexo masculino. Entretanto, para que isso aconteça, a dedicação total aos exercícios deve ser praticada; esses envolvem séries de musculação com aeróbica que implicam levantamentos contínuos de pesos de até meia tonelada, exercícios para as pernas. Para trabalhar essa parte do corpo, os fisiculturistas chegam a fazer agachamentos – exercícios de abaixar e levantar com pesos nos ombros – com até 300 quilos. Com um braço, chegam a fazer 40 repetições com pesos de 45 quilos. Tudo isso, aliado ao consumo frequente de esteroides, permite a esses homens adquirirem até sete quilos de músculos ao fim de um mês. Esses excessos levam alguns à morte. No ano de 2003, a Confederação Nacional de Culturismo registrou cinco casos graves envolvendo usos de drogas. Dois desses culminaram em morte60. Referindo-se à dimensão cultural dos hábitos alimentares, Sahlins (1979) aponta para a centralidade das carnes na dieta norte-americana e seu aspecto simbólico relacionado à força e à virilidade. Segundo o autor, utilizando as pesquisas de Benveniste, a associação simbólica entre a carne e a força indica a ampla difusão social que tem tido esse código da comida, que parece originar-se da identificação indo-europeia do boi com a virilidade. Fischler (1979) denomina esse processo, presente em diversas culturas, “contaminação analógica”. Ou seja, a concepção de que a ingestão de determinados alimentos transpõe as propriedades e virtudes desses alimentos para aqueles que os ingerem. Essa apologia da carne remete, em contraste, aos seguidores da alimentação natural, os chamados, pelos bodybuilders, de “naturebas” que não ingerem carne e buscam uma dieta da leveza, com a presença de muito verde e frutas61. A análise dessa dicotomia tem levado alguns a associarem a alimentação natural à série natural-feminino-leveza, em contraposição à série carne-masculinidade-força-virilidade, opondo o corpo feminino à força e associando a alimentação natural estritamente à apresentação do corpo como objeto de gozo para o outro, sujeito de sedução, e não como produtor de energia (LIFSCHITZ, 1997). Se essa classificação, a princípio, faz sentido, não resiste, porém, quando confrontada com a realidade dos fisiculturistas; pois, se a feminilidade está também entre eles Revista Veja. 22 de outubro, 2003, p. 103. Vale ressaltar que os gregos, considerados, não raro, modelos maiores de perfeição física e criadores das competições olímpicas, quase não consumiam carne vermelha, centrando, assim como os romanos, mais tarde, sua alimentação na tríade: pão, azeite de oliva, vinho. A carne consumida era a de peixe. O elevado consumo de carne vermelha era visto, pela cultura greco-romana, como um hábito dos chamados povos bárbaros – em Roma, germânicos e eslavos eram os que mais se alimentavam de fato da carne suína e bovina e em quantidade significativa (FLANDRIN; MONTANARI, 1998; CARNEIRO, 2003). 60 61 176 DROGAS DE APOLO associada à fraqueza – da mesma forma que o alimento muito leve –, não é apenas ela que se apresenta como sujeito de sedução. Ao contrário, toda a construção da força, da virilidade e da muscularidade está centrada nesse processo, antes julgado como pertencente ao mundo da feminilidade que dava muita importância à aparência do corpo em contraposição à força inerente ao mundo masculino. Se isso foi verdade antes, atualmente a aparência deve estar revestida de músculos para fazer o corpo atuar como objeto de sedução. Se a carne, e tudo que dela é derivado, é vista como uma espécie de alimento sagrado na dieta dos bodybuilders, a gordura é tida como a maior vilã, símbolo máximo do mal e do profano. Carnes são bem-vindas, mas carnes pesadas e viscosas, não. A carne de porco – e todos os derivados de suínos – é, portanto, evitada ao máximo, como símbolo maior de impureza. Em seguida vem o álcool. Se não adotam a extrema leveza dos “naturebas”, por sua vez, não absorvem, de forma alguma, qualquer tipo de alimento junkie – ao menos não durante grande parte do tempo. As carnes não devem ser gordurosas, nem fritas. A fritura deve ser banida do cardápio. Peso e leveza devem estar equilibrados referindo-se a uma racionalidade na qual impera tabelas nutricionais. Nesse critério classificatório, a tradicional compreensão antropológica elaborada por Mary Douglas (1976) – que ressalta a proibição do consumo de carne de porco entre os hebreus porque no sistema classificatório desse povo o porco, apesar de ter patas fendidas, não é ruminante – deve ser acrescentada à “descoberta” pela medicina dos supostos problemas de saúde causados pelo consumo de gordura, fato que produziu uma demonização da adiposidade. É preciso, todavia, ressaltar que todas as regras apresentam exceções; é o caso de alguns atletas que fazem dietas chamadas cetônicas, nas quais ficam um tempo comendo apenas carnes, inclusive de porco, para perderem adiposidade. Além do aspecto considerado “sujo” da carne suína, para os nativos, é preciso também ressaltar que a teoria dos micróbios presente na ciência contemporânea classifica claramente o que é limpo e sujo, dando feição à higiene das sociedades de matriz ocidental e ao higienismo, por conseguinte. Ocorre, nesse movimento tipicamente ocidental, uma verdadeira revolução classificatória e dos sentidos que vai relacionar a sujeira às classes baixas. A partir do século XVIII, a palavra “limpo” começa a adquirir conotações morais, passando a significar também distinção, nobreza, elegância e ordem. A limpeza das coisas passa a indicar limpeza de alma. A partir dessas novas representações sociais, as autoridades resolvem empreender uma 177 CÉSAR SABINO espécie de cruzada de desodorização e de limpeza com o objetivo de banir as imundícies que uma sociedade cada vez mais hierarquizada tolerava cada vez menos62. A alimentação não vai escapar a essa fúria higienizante que surge na época moderna conformando uma nova Weltanschauung dietética (RODRIGUES, 1980; 1995; 1999). A carne de porco passará a ser vista com suspeita devido ao habitat no qual se cria, em geral, o animal. Soma-se a isso o desenvolvimento dos estudos nutricionais e de fisiologia que condenarão a ingestão excessiva de gordura – ao menos durante certos períodos históricos. As culturas ocidentais, no século XX, passaram a demonizar a gordura, e assim o status do gordo muda: Há um século, nos países ocidentais [...] os gordos eram amados; hoje, nos mesmo países, amam-se os magros. No tempo em que os ricos eram gordos, uma rotundidade razoável era muito bem vista. Ela era associada à saúde, a prosperidade, à respeitabilidade plausível, mas também ao capricho satisfeito... a magreza não sugeria mais do que a doença (o definhamento), a maldade ou a ambição desenfreada” (FISCHELER, 1995, p. 78). Se, no passado, o gordo era símbolo de positividade no sistema classificatório das culturas ocidentais, desnecessário dizer que atualmente “as silhuetas obesas atraem apreciações bem negativas” como as de “preguiçoso, trapaceiro, sujo, mau, feio, besta, etc.” (FISCHLER, 1995, p. 70). O repertório discursivo médico, mutatis mutandis, dá sua contribuição para a manutenção dessa condição simbólica lipofóbica. Nesse processo, como indicou o trabalho de Boltanski (1979) sobre o discurso dos operários a respeito da doença e do corpo; o discurso dos fisiculturistas e frequentadores assíduos das academias de musculação é construído a partir de categorias advindas dos discursos médico-científicos. Esses discursos de especialistas não são, na maioria das De acordo com o trabalho de Jacques Attali, a percepção dos odores e da limpeza, até o século XVIII, diferia muito do que a cultura atual considera saudável (1979 apud RODRIGUES, 1999, p. 112): “o ambiente urbano do século XVIII ainda era predominantemente o da cultura medieval: o da carniça, do estrume de animais que circulavam dentro do perímetro urbano, dos restos de alimentos, do sangue que escorria pelos cantos ou que permanecia estagnado nas poças, dos cadáveres de grandes e pequenos animais, dos fedores dos sebos sendo derretidos, dos matadouros dentro das cidades, provocando febres pútridas, dos hospitais desencadeando gangrenas úmidas cujas feridas não cicatrizavam, dos cemitérios empilhando dejetos e corpos, dos açougues, dos costumes, das cozinhas coladas umas às outras, dos excrementos lançados às vias públicas [...]” Ainda, citando a obra literária O Perfume, de Patrick Süsskind, sobre a população urbana no Século das Luzes (Idem): “reinava nas cidades um fedor dificilmente concebível por nós, hoje [...] os homens [e mulheres] fediam a suor e a roupas não lavadas; sua boca fedia a dentes estragados, seu estômago fedia a cebola e, o corpo, quando já não era mais bem novo, a queijo velho, a leite azedo e a doenças infecciosas [...] fediam o camponês e o padre, o aprendiz e a mulher do mestre, fedia a nobreza toda [...] pois à ação das bactérias, no século XVIII, não havia sido colocado ainda nenhum limite”. 62 178 DROGAS DE APOLO vezes, claramente compreendidos pelos praticantes de atividades físicas das instituições de bodybuilding que articulam seu próprio discurso à maneira de uma bricolage, com conceitos e categorias médico-nutricionais. Confrontados sobre a clareza dos significados dos discursos científicos, muitos demonstraram ter uma interpretação bem própria das categorias científicas: Bom, eu sei que a proteína ‘tá mais na carne branca e faz a gente crescer massa muscular, é limpa, não engorda... o carboidrato tá na massa do macarrão e do pão, que tem que ser integral... tudo isso faz crescer massa... já a carne vermelha é mais pesada, não é muito legal. Comer carne vermelha de vez em quando até vai, mas não é legal comer sempre, porque ela tem gordura e, por isso, não é tão limpa quanto a carne de peixe. (Carina. 18 anos. Estudante). Também: [...] a carne de porco é suja, tem gordura, porco é [...] sujo, come [...] sujeira, é um urubu sem asa... vive na lama, na sujeira, tá cheio de coisa impura. Já a carne branca, não, é mais leve. [...] frango é limpo, não tem sujeira, o bicho é tratado só com milho e ração, é limpinho, que nem o peixe que vive na água, não tem gordura, não come porcaria, é pura proteína, sem impureza. Já a carne de vaca não é tão suja que nem a carne de porco, dá pra comer se você selecionar as partes, tirar as partes gordas, a vaca não é muito suja, nem é muito limpa, né?! De vez em quando não tem problema comer um bife grelhado. (Paulo. 27 anos. Fisiculturista) Ainda: [...] a proteína é seca, forte, pura e faz crescer... a carne branca tá cheia de proteína e não faz mal, não engorda [...] a gordura é a pior coisa que tem. Mata. E além de matar é feio, sacou? Tu vê aquele cara barrigudo com aquelas banhas moles [...] é horrível! E aquela mulher cheia de pneu e culote, banha pura [...] é o retrato da morte! [risos] O cara assim só come porcaria, lixo! Bacon, hambúrguer, fritura, tudo que é dejeto alimentar... Olha, vou te dizer uma coisa, cara, não adianta malhar que nem um maluco, o dia inteirinho e comer gordura, porcaria, sujeira... a maior parte dos resultados está na alimentação. A gente é o que a gente come. (Edson. 30 anos. Advogado). Nas classificações alimentares dos bodybuilders, o aspecto gorduroso dos alimentos toma forma, por vezes, de mal supremo, que deve ser combatido e evitado por aquele que quer ser considerado belo e saudável. Nessa concepção, os animais que comem coisas consideradas impuras tendem a 179 CÉSAR SABINO transmitir essa impureza em forma de gordura para aqueles que os comem. O porco é, sem dúvida, o maior vilão, tendo ao seu lado todo tipo de fritura. Já a carne bovina aparece como meio termo, nem muito impura, nem muito limpa, dependendo da parte do animal que é consumida. O frango, ou a galinha, também, apenas o peito é apreciado por ser considerado “seco”, branco e sem gordura, outras partes sem ser o peito não são muito apreciadas. Já o peixe é símbolo de pureza e limpeza, por viver na água e, de acordo com os informantes, “não comer porcaria”. Dessa forma, é possível perceber que, paralela à toda categorização científica presente no discurso sobre a alimentação, existe outra categorização que retira da primeira determinados termos para organizar um sistema discursivo com uma lógica que associa a sujeira e a impureza da carne à umidade, ao peso no estômago e à lama (o porco), sendo a gordura e sua “moleza” ligada diretamente aos estados e condições execráveis de saúde expressos nessa lógica pela própria sujeira. Já a condição de pureza do animal, que serve para o alimento excelente, é aquela, segundo os informantes, relacionada à água, à leveza e às cores claras (carnes brancas) e à ausência de gordura (peixe), sendo o meio termo representado pela carne do frango e da vaca (algumas partes do corpo), animais que vivem em terra seca, um mediador nesses dois polos.63 Quadro 3 – Alimentos e impureza Porco (-) Vaca e frango Peixe (+) Impuro Partes puras/impuras Puro Gordo Carne “pesada” Nem gordo/nem magro Magro Carne “leve” Lama Carne de peso médio (dependendo das partes) Água Profano Terra seca Sagrado Partes sagradas e partes profanas Fonte: o autor Embora a Nutrição se veja como uma ciência “dura”, é bastante sugestivo para o olhar socioantropológico a forma como suas “verdades” rapidamente mudam ao longo de alguns anos. Essas dietas do início dos anos 10 do século atual já foram modificadas e mesmo a carne de porco e a gordura passaram a fazer parte positiva de muitas dietas de atletas do fisiculturismo, perdendo todo seu aspecto negativo. 63 180 DROGAS DE APOLO Camporesi (1996), ao escrever sobre as mudanças culinárias na Europa, mostra que quanto mais a cultura se racionalizou no Ocidente, mais horror a “carnes viscosas e pesadas” ela passou a ter. A culinária leve, frugal, com legumes, verduras e carnes brancas tomou o lugar dos pratos assados e dos banquetes pantagruélicos que passaram a representar os vícios da alma. A leveza à mesa e a ausência da gordura passaram a ser sinal de bom gosto e inteligência entre as classes superiores. Talvez processo parecido ocorra entre os bodybuilders que buscam a amplitude da forma e a limpidez da imagem como símbolo de excelência e status social. Contudo, como foi visto, a tese da ascese não basta para explicar a formação da cultura ocidental capitalista, já que essa convive com significativo e crescente consumismo que leva à obesidade grande parte das populações de diversas regiões do mundo atual. A tese da ética romântica do consumismo, muito bem sustentada por Campbell, parece de fato estar presente naqueles momentos festivos em que os bodybuilders, após meses de dietas rígidas, entregam-se a verdadeiras orgias alimentares, consumindo, em um dia ou uma noite, a maior quantidade possível dos alimentos que lhes é proibido durante a maior parte de seu tempo. No entanto, o que deve ser destacado, na alimentação bodybuilder, é sua estrutura simbólica que pode sugerir alguns aspectos sobre a época que estamos vivendo. Se a dietética medieval tornou-se, por um lado, com o gradativo processo de racionalização que a cultura ocidental produziu, gastronomia, uma ciência do gosto e do preparo dos alimentos na qual estaria imbricada as relações de status e gostos de classe, por outro lado, o aspecto hedonístico da ética romântica levou à oficialização da gula (FLANDRIN, 1998). Porém, o simplismo não deve ser aceito: a organização das chamadas boas maneiras à mesa na Europa (que está relacionada à gastronomia, mas não necessariamente) representou, por outro lado, a tentativa de consolidar o processo civilizatório (ELIAS, 1990), ou seja, um processo que envolveu ética e etiqueta “valor interno, moral, aspecto externo, formal, da conduta do homem em suas relações com seus semelhantes” (ROMAGNOLI, 1998, p. 496). A comensalidade é, par excellence, o lugar da sociabilidade; assim como o espaço, no qual se encontram o corpo e a alma, a matéria e o espírito, a exterioridade da etiqueta e a interioridade da ética. Em várias culturas, o comportamento comensal é regido por uma dupla preocupação; trata-se de controlar e conter os gestos, os movimentos do corpo e de zelar pelos movimentos do espírito e guiá-los, com o objetivo ético e social que as circunstâncias exigem para que a solidariedade seja mantida (LIMA, 1986; 181 CÉSAR SABINO 1996; LÉVI-STRAUSS, 1991). Tal perspectiva, no Ocidente do século XX, mais especificamente depois da Segunda Grande Guerra, sofre uma mudança radical relacionada ao sistema culinário e às chamadas maneiras à mesa, consolidadas a partir do século XVII. A industrialização da alimentação e sua massificação consumista produziram o que Fischler (1998) denominou MacDonaldização dos costumes alimentares; o surgimento dos fast-foods que inovaram, dentre outras coisas, pela aplicação do taylorismo à alimentação. Esse processo, que não se limitou apenas à produção de sanduíches, mas se estendeu para as pizzas e comidas orientais, caracteriza-se pela produção mundializada e o consumo em série, homogeneizante e padronizante que não apenas retira a arte da culinária como também enfraquece o aspecto solidário dos ritos comensais. A partir da década de 80, a esse processo, marcadamente no Brasil, associa-se o surgimento dos restaurante a quilo seguidores do mesmo processo e que têm como característica justamente a descaracterização dos pratos e das identidades culinárias pela mistura rápida e sem cerimônia de alimentos por vezes considerados tradicionalmente antagônicos formando uma espécie de “pastiche culinário” (CARNEIRO, 2003, p. 109). A haute cuisine não se furta, também, ao processo de expansão do atual capitalismo globalizado padronizando, por meio da propaganda e do marketing, as marcas dos chefs mais conhecidos que caracterizam a distinção social mediante a prática artística da produção de suas cozinhas empresas. Esse processo específico, presente na atual conformação alimentar das sociedades globalizadas, foi denominado por Fischler, (inspirado em Émile Durkheim), de “gastro-anomia” (FISCHLER, 1995, p. 851). Embora os fisiculturistas não sejam adeptos de cozinhas, ou fast- foods, devido ao regime alimentar que seguem na maior parte do ano; ocorre entre esse grupo social algo similar, que talvez represente o agravamento dessa anomia culinária, posto que, como escrevi acima, sua preocupação fundamental é com as moléculas do alimento e suas características químicas e não com a comida e suas dimensões de compartilhamento e socialização. Se a industrialização dos alimentos e sua produção em série representa um processo de racionalização do gosto e descaracterização da comensalidade, o surgimento dos suplementos alimentares – quase alimentos –remédios – representa o acirramento desse processo. Pílulas e variedades de pó de todos os tipos, creatina, albumina, L-carnitina, BCCA, representam mais que o taylorismo aplicado à alimentação. Representam o desmembramento científico das cadeias de proteínas e a ultrapassagem do gosto, e do seu cultivo, pela sua mecanização industrial, além da diminuição da socialização à 182 DROGAS DE APOLO mesa. Assim, está estabelecida a aceleração radical do consumo alimentar que não passa mais nem mesmo pela mastigação. É o reforço da falta de tempo, do louvor à rapidez e ao individualismo que descarta qualquer sociabilidade para comer. De fato, são os olhos que comem, pois, se tais “alimentos” nem mesmo gosto possuem, é a propaganda e o marketing que sustentam a crescente venda de tais substâncias produzidas em laboratórios visando ao emagrecimento e o crescimento muscular. Sustentam tal expansão mercadológica por intermédio de poderosas fotos e linguagem tecnicamente convincente. Discurso publicitário mitológico-científico que promete milagres da forma física àqueles que se alimentam com produtos da indústria de suplementos sugerindo que a busca pela otimização da forma associada a exaltação da saúde talvez represente uma espécie de reforço do alimento em contraposição à comida, reforço, portanto, da anomia gastronômica ou a desordem alimentar referida como gastro-anomia. 4.2 PUBLICIDADE E FORMA A publicidade tem exercido importante papel na configuração das práticas corporais presentes nas academias de fisiculturismo. Ela deve ser compreendida aqui enquanto sistema de ideias que circulam, de forma intermitente, no interior de um outro sistema: um grupo social específico. Seu estudo pode ser o caminho para o entendimento de modelos de relações e comportamentos, além de expressão ideológica referida a determinadas práticas coletivas. Tal estudo, do consumo e da “indústria cultural”, pode apresentar certas características fundamentais inerentes às sociedades industriais modernas e capitalistas, servindo também para levantar algumas formas pelas quais um determinado grupo social retrata, ao menos em parte, a si próprio por intermédio dos anúncios. Estudada enquanto sistema simbólico que pode produzir e reproduzir determinado grupo e é por ele produzida e reproduzida, a publicidade, ou a propaganda, pode ser analisada antropologicamente enquanto mito. As valiosas referências construídas e organizadas no trabalho de Rocha (1995), inspirado em Sahlins (1979), podem servir de demarcações teóricas para a elaboração de novas análises sobre o papel da propaganda e do marketing na construção do corpo entre os frequentadores assíduos de academias de ginástica e musculação. Espelhando uma série de representações sociais por intermédio dos símbolos que articula, a publicidade, ao realizar tal processo, produz uma espécie de sacralização de determinadas dimensões 183 CÉSAR SABINO do cotidiano, introduzindo “magia” em um dia a dia burocratizado. Parece ser quase impossível escapar da força que ela exerce sobre o mundo atual. Não seria incomum a cena de um indivíduo fatigado, após uma longa rotina de trabalho desgastante (muitas vezes retido em um trânsito lento de uma grande metrópole), deparando-se com estampas reluzentes de corpos perfeitos e produtos que prometem, nos outdoors, a realização de seus sonhos e desejos mais profundos de lazer, liberdade e sucesso pessoal. Nessa situação corriqueira, que se realiza a cada instante da vida nos grandes centros urbanos, configura-se uma espécie de reencantamento do mundo, em que os sonhos podem ser realizados, de acordo com os anúncios, por meio da simples utilização do cartão de crédito (ROCHA,1995). Paradoxalmente, essa espécie de pensamento mágico64 (LÉVI-STRAUSS, 1975a) concretiza-se em um contexto social específico no qual o raciocínio científico supostamente é soberano. Como ressalta Rocha, “nesse jogo de representações o cotidiano se faz vivo, se faz sensação, emoção, mágica” (ROCHA, 1995, p. 26). Longe de ser uma instância afastada do pensamento peculiar às sociedades complexas, tal pensamento mágico parece estar presente até mesmo nas instâncias mais particulares delas. Enquanto sistema simbólico que (re)introduz a dimensão mágica no contexto burocratizado do capitalismo, a publicidade passa a organizar essa realidade, classificando-a por meio dos valores presentes nos produtos que vende, hierarquizando os grupos sociais, dividindo-os em consumidores de vários tipos e níveis. Consumir torna-se, não raro, projeto de vida, e o status adquirido pelo indivíduo apresenta-se como proporcional a sua capacidade de comprar produtos e tudo aquilo que a eles estiver equacionado. Esse apelo do consumo, envolto nas brumas mágicas do marketing, dimensão fabulatória burguesa, forma um sistema no qual a própria dimensão de desencantamento do mundo – a qual Weber tão bem conceituou – compactua, permitindo o reencantar do mundo desencantado naquele processo destacado por Campbell (2001) sobre a importância do surgimento da ética O uso vulgar, por parte de alguns, desse conceito clássico elaborado por Lévi-Strauss mereceria um estudo mais aprofundado. É comum sua utilização indiscriminada sem que se destaque, ou discuta, o que filosoficamente é considerado pensamento e raciocínio. Nesse contexto específico, utilizo o conceito do autor como sinônimo de raciocínio e não como pensamento no sentido tradicional filosófico do termo que confere a esse uma forte carga crítica ou criadora de conceitos, constituindo-o como visão ontológica, ética, estética, metafísica e antropológica e não apenas como raciocínio ou funcionamento lógico do espírito humano, já que o pensamento subsume a lógica, mas a lógica não subsume o pensamento. Porém, estamos falando de um grupo pertencente à sociedade brasileira complexa, portanto não significa que sociedades de matrizes ameríndias, asiáticas e africanas não tenham suas formas de pensamento filosófico (JULLIEN, 1996; 1997; APPIAH, 2007; LÉVI-STRAUSS, 2012; 2012a; VIVEIROS DE CASTRO, 2018; MBEMBE, 2017). 64 184 DROGAS DE APOLO romântica para a consolidação do capitalismo. Estes dois polos – ascetismo e hedonismo –, longe de se excluírem na conformação social capitalista, complementam-se. A via do rencantamento está associada diretamente ao consumo, à promesse de bonnheur equacionada à capacidade de compra e à maximização material (SAHLINS, 1979). A lógica do lucro e da expansão consumista, retratada no apelo dos produtos, configura ética pragmática e utilitarista que perpassa o cotidiano e as relações sociais transformando em produtos os próprios seres humanos e seus sentimentos, e vice-versa. Tudo é passível de ser vendido e comprado num processo de imersão em desejos, sonhos e mitos que reencantam o que seriam relações frias de troca comercial, conferindo ao processo de venda e compra um estatuto ilibado de avanço nas práticas sociais. Essa mercado-lógica presente na cultura ocidental tende a criar uma “mediana e comum sabedoria sociológica” (SAHLINS, 1979, p. 187), que toma como pressupostos verdadeiros de análise categorias que são mais produtos de ficções coletivas do que de crítica científica. A concepção de busca pela maximização material transborda das práticas cotidianas para o fazer sociológico que adquire categorias do senso comum como instrumento de análise social. A economia e as relações sociais em geral apresentam-se nessas análises como uma arena de ação pragmática na qual as necessidades biológicas dos indivíduos se digladiam em um processo de produção material da sobrevivência dos melhores. A sociedade, sob esse ponto de vista, seria o resultado formal desses embates. O indivíduo, tomado como autônomo em seus julgamentos e escolhas racionais, visaria sempre à maximização dos lucros e de seus interesses pessoais (ELSTER, 1994). Tais abordagens dificilmente se detêm na gênese e, consequentemente, na imposição cultural do que é considerado necessário por tais indivíduos; ou seja, na produção social das sensibilidades, necessidades e sentidos individuais, pois “nenhum objeto, nenhuma coisa é ou tem movimento na sociedade humana, exceto pela significação que os homens lhe atribuem” (SAHLINS, 1979, p. 189). Essa significação, tida como lucro em última instância, é produto de um contexto que a constrói como tal e que, ao construí-la, reproduz a sua dimensão social na própria prática dos indivíduos que a articulam. A ação se realiza, portanto, dentro de um determinado contexto cultural, mediante sistemas simbólicos que viabilizam os itens com os quais o indivíduo confere o sentido a tais ações. Sentido que é (re)produzido de forma inconsciente por tais indivíduos, já que os itens constitutivos da cultura são apreendidos também de forma inconsciente por meio da socialização (BOURDIEU, 185 CÉSAR SABINO 1989). Dizer que todos os indivíduos possuem reflexividade em seus atos (GIDDENS, 1991), ou escolha racional, é uma espécie de meia verdade, pois a existência desta escolha sempre se realiza dentro de uma margem de liberdade conferida estruturalmente, sendo realizada com itens desse sistema simbólico (estrutura), portanto coletivo. Itens que se apresentam como inconscientes e atuam produzindo desejos e agenciamentos individuais e coletivos. Essa escolha racional e reflexiva é sempre circunstancial e variável e, na maioria das vezes, superficial, já que de fato se baseia na lógica da maximização dos processos imposta pela estrutura, mas não se detém na gênese desta lógica. Utilizar apenas a lógica da panreflexividade e da escolha racional para explicar a realidade social é aplicar um raciocínio escolástico a ela (BOURDIEU, 2001). Esse pensamento escolástico, inspirado nas tentativas de Aristóteles explicar a existência do movimento no Universo, pode ser exemplificado, grosso modo, da seguinte forma: buscando compreender o que faz uma folha ficar amarela, diz-se que essa tem a capacidade de amarelecer, ou a potencialidade de tal ato; ou seja, esse ato (tornar-se amarela) já existe em potência (formalmente) na própria folha verde. Nota-se que esse raciocínio não se detém na explicação da produção, na gênese do processo de organização das propriedades e substâncias que compõem uma folha. Da mesma forma, explicar a sociedade apenas pelas superficiais intenções dos indivíduos sem perceber a gênese, a construção social dessas intenções (que, por sua vez, produzem as próprias individuações), é conceber uma explicação assintótica que, portanto, quase nada explica. Por outro lado, conceber todos os indivíduos, indiscriminadamente, como autômatos, títeres de articulações formais que existem fora deles e os produzem em sua plenitude é recair no mesmo erro escolástico por não explicar, dessa vez, a gênese dessas estruturas formais que passam a ser concebidas como substâncias que pairam acima da ações sociais. O estudo da publicidade, como foi dito, concebida como um sistema simbólico, além de contribuir para a compreensão do grupo social específico dos fisiculturistas, mediante a tentativa de esclarecimento dos vetores culturais que incidem sobre esse grupo ao mesmo tempo que por eles é produzido, pode contribuir também para o aprofundamento de algumas outras questões referentes à teoria social. 186 DROGAS DE APOLO 4.3 MITO E MÍDIA Pelo avanço das pesquisas antropológicas, o mito deixou de ser tratado como a dimensão exótica, atrasada, fabulação do “outro” que viveria fantasiando o mundo por não ter o raciocínio elaborado. Com a antropologia, o mito passou a ser compreendido, não apenas como característica das sociedades ditas “primitivas”, mas também como parte integrante do tecido das sociedades contemporâneas industrializadas e, como tal, meio para o entendimento de suas dinâmicas. O método de análise estrutural aplicado aos mitos permitiria extrair deles a forma lógica invariante, a estrutura permanente relacionada simultaneamente ao presente, ao passado e ao futuro (LÉVI-STRAUSS, 1975; BARTHES, 1993; CARVALHO, 1995). A chamada, por Adorno e Horkheimer, “indústria cultural”, surgida no século XX, vem intermediando o acesso dos seres humanos a um universo sem limites de acontecimentos e plasticidade mítica, esmaecendo as fronteiras que demarcam o real e a fantasia. Por vias singulares, a percepção de Marx (1983) sobre o reencantamento do mundo, por meio do caráter fetichista da mercadoria, parece se efetivar. Imagens, sonhos e desejos povoam os interstícios da coisificação da vida cotidiana conferindo a essa produção um caráter metafísico que encobre essa própria coisificação. “[Os] produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, figuras autônomas, que mantêm relações entre si e com os homens. Assim, no mundo das mercadorias, acontece com os produtos da mão humana.” (MARX, 1983, p. 71). Os objetos materiais no capitalismo possuem certas características, obviamente conferidas pelas relações sociais, que parecem lhes pertencer naturalmente. Nesse processo, as próprias relações sociais passam a ser vivenciadas sob a forma de relações entre mercadorias ou coisas. Sem embargo, parece que, na atual conformação capitalista hegemônica, poucas barreiras se contrapõem à venalidade que invadiu as próprias fronteiras do corpo humano. Se atualmente há uma espécie de sacralidade na manutenção desse corpo em instituições da forma, corpo envolto e tocado pela utopia da beleza e da saúde, há, simultaneamente, a dessacralização de suas partes entendidas como peças de um sistema mecânico, mercadoria ou mesmo moeda de troca. Se, em inúmeras sociedades “primitivas” – e mesmo no passado das sociedades complexas de modelo europeu –, o comércio dos corpos inexistia devido ao fato de esses serem identificados à pessoa e, portanto, excluídos da circulação mercantil, situados na economia dos bens simbólicos, que supõe ou produz as relações duráveis e totais entre as pessoas 187 CÉSAR SABINO (portanto totalmente opostas àquelas relações temporárias e estritamente técnicas entre os agentes indiferentes e intercambiáveis que são constituídos pela lógica do mercado); nas atuais sociedades de mercado, tal sacralidade, em geral, apresenta a tendência à diluição devido ao próprio processo de busca da maximização do lucro (SIMMEL, 1983; 1989). Nessas, o corpo é tratado como coisa intercambiável à maneira de uma moeda (BOURDIEU, 1994), proporcionando mais que o comércio de suas partes, ou de sua imagem, ou estética. Sem embargo, a linguagem do marketing articula narrativas míticas reencantando a realidade com o objetivo de dela extrair a maior possibilidade de lucro. Tais narrativas possuem caráter estrutural que lhes confere uma espécie de atemporalidade relacionada à especificidade de acontecimentos na narrativa. Constituindo-se como metalinguagem, as unidades elementares do sistema mítico não se identificam plenamente com as unidades do sistema que forma a língua – os fonemas –; no caso da narrativa mítica, tais unidades – os mitemas – definem-se como frases, que traduzem a sucessão de acontecimentos da narrativa. O jogo das relações entre os mitemas constrói o sentido destas narrativas. Múltiplas versões possibilitadas pela combinação infinita de unidades determinadas e formais. O papel do analista é fazer emergir tal estrutura coletiva – enigma simbólico inconsciente para aqueles que a vivenciam (LEAL, 1996). Barthes (1993) analisou as expressões míticas contemporâneas presentes em capas de revistas, anúncios e reportagens, ressaltando a importância do entendimento de tais narrativas para a compreensão da produção simbólica das sociedades capitalistas. De acordo com o autor, tudo pode se constituir como um mito desde que suscetível de ser julgado como discurso. Tanto o discurso escrito, como a fotografia, o cinema, a TV, a publicidade e o esporte podem servir de suporte para a narrativa mítica, portanto como objeto de análise do imaginário pelo antropólogo ou filósofo. O imaginário, no caso, teria a capacidade de semantizar o mundo, simbolizando-o e atuando tanto como arquivo quanto usina (GIRARDET, 1987; CARVALHO, 1995). Enquanto arquivo poderia ser uma espécie de depositário das imagens, espécie de herança cultural “perene” e profunda, e como usina atuaria como produtor de significados, semantizador do mundo utilizando as imagens invariantes e finitas do arquivo, reciclando-as e produzindo narrativas variantes, ajustadas a contextos e conjunturas históricas específicas. 188 DROGAS DE APOLO O mito, segundo Carvalho e Girardet, poderia, provisória e sumariamente, ser caracterizado como: 1) narrativa sagrada que se refere ao passado e tem valor explicativo; 2) ilusão, mistificação; 3) conjunto de imagens motrizes que acionam energias de excepcional potência. Essa última característica é a que deve aqui ser ressaltada. Segundo Deleuze e Guattari (1995, p. 17-18): [...] um enunciado realiza um ato [...] e o ato se realiza no enunciado, as palavras de ordem produzem a, e são produzidas pela coletividade; neste movimento, os interstícios de todas as informações veiculam ‘palavras de ordem’ que organizam a objetividade e a subjetividade social reiterando o caráter eminentemente social da enunciação. A mídia, neste contexto teórico, assume um caráter singular histórico de expansão da efetividade destas palavras de ordem, constituindo-se como veículo dos ‘agenciamentos coletivos de enunciação. Não existe, portanto, nesse processo, um sujeito da enunciação ou enunciação individual, mas o efeito-indivíduo é dado pela própria articulação dos enunciados coletivos – as palavras de ordem – que modulam, fazem variar as intensidades desejantes das pessoas constituindo-as enquanto indivíduos que se percebem como tal. Os atos efetuam os enunciados e vice-versa. É o sistema simbólico, com suas imposições e incitações aos desejos e prazeres individuais e coletivos, que administra o socius, constituindo-o e sendo por ele constituído. Ações e paixões afetam corpos constituindo-os enquanto singularidades – efeito-indivíduo. As forças que constituem a sociedade, ou a sociabilização, Vergesellschaftung65, segundo Simmel, têm sempre caráter ambíguo e tenso, pois efetuam-se enquanto incitações às paixões e suas intensidades. As palavras de ordem, os sistemas simbólicos, enfim, os enunciados realizam-se enquanto forças dinâmicas atuantes nas subjetividades individuadas e coletivas. A produção do prazer e da alegria pode, dessa maneira, estar, paradoxalmente, repleta de possibilidades de dor Esse conceito que, em uma tradução forçada para o português, ficaria sociabilização, ou sociação, tem a vantagem de indicar o caráter dinâmico da sociedade, composta pelas relações entre indivíduos e grupos e pelos sistemas simbólicos (subjetivos) que os constituem e por eles são constituídos, compondo-os como tal. Simmel (1983), dessa forma, indica o aspecto abstrato e estático que a palavra sociedade carrega e que lhe confere a impressão de entidade metafísica existente fora das relações objetivas. Para o autor, conteúdo e forma social seriam duas dimensões de uma mesma condição relacionando-se de maneira dinâmica. A tradução de Vergesellschaftung, feita por Bendix (1986, p. 363), talvez contribua ainda mais para esclarecer o caráter dinâmico do conceito: “tendências societárias de ação”. Também a questão da mudança, dinâmica, transformação ou manutenção dos sistemas sociais, tidos como retratos da realidade ou ilusões do observador é discutida nas obras de Gluckman (1987), Leach (1996) e Tarde (2002). 65 189 CÉSAR SABINO e tristeza. As regras, normas, os valores e costumes são forças que atuam e constituem, em um feedback incessante, o contexto coletivo. A capacidade repressora dessas forças – caráter necessário delas – não se apresenta como tal, mas como aquilo que deve ser feito “por que é bom e traz felicidade”. Os desejos e as paixões não são apenas julgados e condenados, mas também são administrados, modulados, incitados (FOUCAULT, 1990). Justamente aí se constitui a singularidade dessas forças enunciadoras. Não há, como se pode supor, por parte dessas representações coletivas, um caráter de contínua repressão à expressão, ao prazer ou à alegria. Ao contrário, os enunciados produzidos pela sociedade capitalista obrigam, forçam a falar, a realizar gozos, obrigam a apresentação do indivíduo como alegre e eterno consumidor. Um consumo, obviamente, que nunca é alcançado na plenitude. Há o imperativo de se mostrar realizado e feliz. A mídia, que poderia se constituir como forte instrumento de reflexividade e democratização, com a publicidade e o marketing, tem, não raro, se apresentado como instrumento de propagação desse processo, produzindo os agenciamentos coletivos que constituem o perfil de nossa época. A definição de Girardet e Carvalho, de que o sistema mítico acionaria forças de excepcional potência, coaduna-se com a concepção anteriormente descrita que percebe a narrativa mítica, veiculada pelos instrumentos midiáticos, como agenciadora de (dis)posições coletivas, articulando um processo não apenas macro, mas também micropolítico. Naturalmente não se pode conceber a mídia como uma máquina que cria a realidade social unilateralmente. Mídia e sociedade não podem ser percebidas como instâncias autônomas. A sociedade moderna é uma sociedade midiatizada, portanto há uma interdependência entre as duas instâncias. Essa mídia, ao dirigir-se para uma massa de consumidores, apresenta-lhes imagens que sintetizam anseios e desejos em uma interatividade constante, traduzida em intenções de consumo (CARVALHO, 1995). Dessa forma, ela atua como máquina de enunciação que aponta o que deve ser objeto do “olhar” – ou como se deve olhar esse objeto – dando o tom da hierarquização, por meio de uma linguagem espetáculo, a uma dimensão significativa da realidade por intermédio de matérias e anúncios. Muitas vezes, a mídia oculta, sob a capa de neutralidade axiológica da linguagem pseudocientífica e da objetividade informativa, a intenção agenciadora, “recortando” a realidade de forma descritiva de uma maneira que consiga prescrevê-la (BOURDIEU, 1998). Por outro lado, ocorre atualmente a tendência de substituir a descrição objetiva dos fatos e acontecimentos por uma narrativa mais emocional, na 190 DROGAS DE APOLO qual a opinião do veículo (mídia) fica claramente expressa. Essa tendência gradativa de espetacularização do jornalismo não passa do transbordamento da fabulação que sempre constituiu novelas, filmes e publicidade em geral, em que o despertar de emoções, interesses e avaliações é fundamental para o funcionamento do processo de mitificação. Se a tecnologia apresenta a viabilização da novidade, ela, muitas vezes, não veicula o novo. Se uma análise mais detida desse processo de fabulação do mundo realizado pela mídia atual for posta em voga, será possível perceber que, estruturalmente, o tráfico de imagens e símbolos sempre se articulou enquanto efetivação do poder (GEERTZ, 1991; BURKE, 1994). O que há de singular é que a contemporaneidade, por intermédio da mídia, exacerba o tráfico dos indivíduos e coletividades com o simbólico, potencializando tal poder (CARVALHO, 1995). Por meio da técnica e da tecnologia publicitária, os instrumentos de agenciamento se aprimoram em uma gerência científica das afecções coletivas. As pesquisas qualitativas e quantitativas sondam o imaginário coletivo recolhendo desse arquivo os elementos simbólicos mais efetivos, investindo-os em seus propósitos de consumo específicos. Esse processo opera uma modulação da subjetividade que se singulariza pela eficaz velocidade dos instrumentos de agenciamento da época atual. 4.4 MITOS DA FORMA O objetivo aqui é enfocar o consumo de mensagens midiáticas referentes ao universo das academias de musculação, mais especificamente dos fisiculturistas. A maioria daqueles com os quais convivi consome revistas nacionais e importadas sobre musculação e boa forma (Muscle and Fitness, Muscle Form, Musclemag, Flex, Health and Fitness, entre outras). Há também disseminação de vídeos sobre a história de vida e os métodos de treinamento dos maiores ídolos do bodybuilder, como Arnold Schwarzenegger, Dorian Yates, Nasser El Sombaty e Ronie Coleman, além de outros bodybuilders. Analisei conteúdo brasileiro e internacional; em geral presente nas academias para que os usuários e alunos, enquanto se exercitam em esteiras ou bicicletas ergométricas, possam assistir ou ler. Em algumas academias, elas (as revistas) podem ser emprestadas para o aluno. Foram analisados seis números da publicação brasileira (Muscle in Form) e seis números da americana Muscle and Fitness. Seguindo a via aberta pelo trabalho de Rocha (1995), foram confrontados anúncios das revistas e as histórias de vida dos 191 CÉSAR SABINO ídolos nelas veiculadas com a opinião dos receptores, tentando analisar como funciona a mito-lógica presente no pensamento marombeiro e bodybuilder. Com frequência o que menos se consome em um anúncio é o produto. Nele são vendidos estilos de vida, sensações, emoções, relações humanas, visões de mundo, hierarquia e sistemas de classificação. O consumo constitui um mundo ou universo de significação que modela as práticas cotidianas, fazendo pessoas se reconhecerem construindo identidades por intermédio das imagens trocadas e reconfirmadas nas relações sociais (ORTIZ, 2000; CASTRO, 2003). Um exemplo desse aspecto é o seguinte discurso colhido em uma propaganda de suplementos alimentares na revista brasileira Muscle in Form n.º 25, de 2001 e outro retirado da revista americana Muscle and Fitness, de setembro de 1998, respectivamente: Deseja Aumentar Seus Músculos? A Perfeição através dos Aminos. Experimente as Fórmulas da SATURN. Maior crescimento exige maior provisão de aminoácidos. Antes e depois dos exercícios, e durante o dia, seu corpo precisa estar abastecido com aminoácidos de alta qualidade. Pode ser difícil obter as proteínas necessárias somente pela ingestão de alimento regular. É por isso que a SATURN criou várias fórmulas para sua conveniência de forma fácil de digerir, para você escolher. Campeões de Musculação usam e confiam nas fórmulas dos Aminoácidos da SATURN mais do que qualquer outra marca. Ainda: PROTEIN PLUS. MET-Rx. Engenharia de Nutrição. 46 gramas da proteína metamiosina e apenas 3 gramas de carboidratos por porção! 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Para a Melhor Forma de Sua Vida! Experiência Mundial em Engenharia de Nutrição. Visite-nos. www. met-rx.com. O primeiro anúncio parece apresentar o seguinte raciocínio: ser musculoso é ser perfeito; para ser perfeito, é necessário realizar um ritual de consumo de determinados produtos criados cientificamente e respaldados na pesquisa de laboratório empreendida por uma determinada empresa. A manipulação das narrativas de caráter científico aparece como solução para os problemas e via para a realização dos desejos; o processo de consumo da substância-mercadoria é realizado, respaldado, por campeões (ídolos) que se tornaram famosos e vencedores supostamente devido ao fato de utilizarem os produtos propagandeados. O anúncio tem a foto de um torso hipertrofiado de fisiculturista, com os braços contraídos, com as primeiras duas frases escritas em amarelo destoando do resto do texto em letras menores, ressaltando alguns aspectos constitutivos do imaginário e da mentalidade dos praticantes das academias de musculação. Dois itens são ressaltados e estão sempre presentes em seus discursos: crescer (aumentar músculos) e ter respaldo científico nesse processo. Como o motivo central da existência do grupo está radicado, obviamente, no culto à, e no cultivo da, musculatura, quanto maior e mais definido são os grupamentos musculares mais próximo do corpo perfeito está o indivíduo no imaginário nativo. Nesse processo de busca e de transformação da massa corporal, o discurso científico, sempre utilizado nos anúncios para reiterar a idoneidade das empresas que produzem e vendem a substância “mágica”, surge como o vetor que confere autoridade, não apenas aos produtos, mas também às práticas relacionadas ao seu consumo. Esse discurso busca convencer o consumidor da eficácia das substâncias (“aminoácido”, “metamiosina proteica” e o que mais for possível) a serem utilizadas, referindo-se sempre àqueles que são campeões e habitam o panteão dos heróis. E a contradição que parece também surgir daí é que o discurso radicado em categorias científicas, discurso que é produto do racionalismo ocidental, apresenta-se como o meio no qual o reencantamento do mundo se reintroduz no cotidiano, oferecendo, mediante a articulação de temas sobre experimentos e descobertas, a possibilidade da realização dos sonhos do consumidor. Essa eficácia simbólica tem grande parte de seu respaldo no aspecto discursivo hermético que proporciona à atuação de tais 193 CÉSAR SABINO discursos um caráter de sistema de encantamento conferindo àqueles que os proferem uma espécie de “mana ou carisma inefável”. Magia subsumida na marca e na potência discursiva relacionada à suposta autoridade de especialistas (iniciados) em uma profissão; perfil quase xamânico (BOURDIEU, 2004, p. 29) já que a maioria dos praticantes das academias desconhece os meandros obscuros dessa linguagem específica. Justamente esse hermetismo, repleto de categorias advindas da química orgânica e da biologia, confere a esse discurso autoridade e eficácia. É possível perceber essa característica nos seguintes depoimentos: Eu não entendi nada, nem quero, do que tá escrito aí... só sei que proteína tem na carne e faz o cara crescer [...] aminoácido também [...] mas os caras entendem do que fazem! São formados[...] em química, em educação física [...] sei lá, numa porção de coisa [...] são cientistas [...] estas empresas têm laboratórios de pesquisa, não iam colocar esses anúncios se o que tá escrito aí não fosse verdade [...] eu já usei esse produto e acho que funcionou [...] agora é claro que você não vai crescer usando só isso de vez em quando[...] Eles botam as fotos desses caras grandões aí, mas esses fisiculturistas profissionais que posam aí pra propaganda não tomam só isso, e só de vez em quando. (Thales. 28 anos. Estudante). Repara só no braço desse sujeito aí [da foto do primeiro anúncio] é um campeão... deve ser o Dorian Yeats, um vencedor! Um atleta desses só consegue chegar ao auge com muita tecnologia, muita ciência do esporte [...] é suplemento, é anabolizante de todo tipo [...] Mas é diferente dos caras que são “duros” [...] esses caras aí tomam de tudo que é produto, mas com acompanhamento médico, exame [...] tem dinheiro pra gastar não é que nem a gente não, que sai tomando as coisas sem saber no que vai dar [...] eles têm todo um conhecimento que tá relacionado à qualidade mesmo do que eles fazem. (João. 27 anos. Instrutor de academia). O segundo anúncio, destacando a foto colorida em vermelho e amarelo de um grande pote de suplemento alimentar, apresenta forma mais nítida de articulação de categorias científicas (nano filtragem, troca de íon, metamiosina proteica e assim por diante) reiterando que a empresa que fabrica o produto é de engenharia de nutrição e que “os melhores bodybuilders usam”. Para arrematar em grande estilo, em linguagem dúbia peculiar ao marketing e à propaganda, ressalta que as substâncias apresentadas são para “a melhor forma de sua vida”. 194 DROGAS DE APOLO Relacionado ao aspecto de exaltação do desenvolvimento científico e tecnológico entre os marombeiros, esses discursos são indícios da existência de “tribos alimentares” detentoras de classificações peculiares da realidade. Enquanto a tribo dos “naturebas”, como denominam os marombeiros, seguidores do consumo dos alimentos naturais, tratados e desenvolvidos sem aditivos químicos e não industrializados, sacraliza tudo que é considerado “natural”, conferindo maior eficácia e poder a tudo que não foi “maculado” pelas mãos do homem e pela sociedade de consumo (LIFSCHITZ, 1997); a tribo dos fisiculturistas, ou bodybuilders, opera processo classificatório inverso. Entre esses, a industrialização, a tecnologia e o desenvolvimento científico conferem poder e eficácia aos alimentos consumidos e àqueles que os consomem. Mais um modelo simetricamente invertido de olhar a realidade. Enquanto um sacraliza o não industrial e mais próximo possível do natural, distante de quaisquer aditivos que “maculam” a pureza alimentar, o outro faz o oposto: quanto mais cientificizado, industrializado, tecnicizado, melhor, mais puro, verdadeiro e eficaz. Em todos os níveis de socialização dentro das academias, a representação de ciência aparece com sensível eficácia. Produtos tecnológicos de última geração e importados dos EUA, Japão ou Europa são amplamente ambicionados. Das máquinas de fazer exercícios aos tênis Nike e Reebok importados, passando pelos métodos de treinamento surgidos no último verão da Califórnia e pelas últimas novidades em suplementos alimentares e anabolizantes saídos dos laboratórios de pesquisa das multinacionais de nutrição e farmácia; a tecnologia é exaltada, e o discurso das ciências biomédicas extremamente respeitado, sendo considerado palavra final na decisão, ou resolução, sobre qualquer problema ou dúvida. Da mesma forma, ocorre exaltação dos termos em língua inglesa que são utilizados como nomes de academias, rótulos de suplementos e nomes de exercícios de musculação e ginástica (leg press, body pump, pulley). Esses últimos, que poderiam ser traduzidos para o português, não o são. Os portadores, tanto de objetos tecnológicos de última geração, quanto de capital cultural e de competência no campo do fisiculturismo, carregam, simultaneamente, uma espécie de poder mágico que faz com que suas descrições da realidade também sejam seguidas como prescrições da mesma (BOURDIEU, 1996a). O discurso da autoridade não precisa ser compreendido para executar seu poder (socialmente conferido). Ao contrário, o mistério que encerra sua incompreensão pode ser o vetor que mais eficácia lhe proporciona. 195 CÉSAR SABINO 4.5 MERCADORIAS CLASSIFICATÓRIAS Lévi-Strauss destacou dois tipos de sistemas de pensamento constitutivos de qualquer grupo social em qualquer época da história. De acordo com o autor, o espírito humano operaria sobre o mundo por meio de duas espécies de abordagens classificatórias; uma realizaria suas operações por “intermédio de signos”, e a outra “por meio de conceitos” (1975a, p. 40), tendo, porém, os dois sistemas, o mesmo substrato lógico e a mesma função de ordenar o mundo em classes, gêneros, números, graus, hierarquizando o universo e introduzindo, na homogeneidade caótica, a heterogeneidade da diferença. Eixo articulador de relações, o pensamento que mais operaria por signos seria o pensamento selvagem ou mágico. Nesse, os signos estariam como que “colados” à realidade sem ter a pretensão de serem transparentes a ela, como quer o conceito, relativo ao chamado pensamento científico. O pensamento mágico seria inaprisionável nas mesmas regras do pensamento científico surgido nas sociedades complexas ocidentais. Exemplificando a posição, o autor considera o totemismo um exemplo clássico de pensamento mágico. Longe de ser uma forma atrasada e inferior de organizar o mundo, ele seria apenas um sistema singular de classificação, paralelo ao sistema científico, conferindo, da mesma forma que esse, sentido ao universo e à existência. Por não deixar transparecer, de forma racionalista, suas operações lógicas, o pensamento mágico procuraria manter uma complementaridade entre cultura e natureza. Portanto, nos sistemas tribais, por exemplo, a sociedade seria organizada por uma lógica que diferenciaria os seres humanos, identificando-os com determinados elementos da natureza. No sistema científico, ao contrário, haveria a busca de classificar a realidade segregando a natureza nessa classificação. Nos sistemas mágicos ou totêmicos, ao contrário, existiria uma junção entre a natureza e a cultura; pois, quando um determinado grupo social, um clã, é identificado a uma planta, animal ou fenômeno natural, mantém com eles relações metafóricas de identidade ao mesmo tempo que se distingue de outros grupos sociais que mantém as mesmas relações com outros animais, plantas e fenômenos. Como cada grupo é equacionado a uma espécie, ou fenômeno natural distinto, há a possibilidade de se obter, em um conjunto no qual todos são a princípio indistintamente seres humanos, uma distinção social nítida (ROCHA, 1995; LÉVI-STRAUSS, 1976). Segundo um exemplo de Da Matta (1986), se A= ao clã peixe; B= ao clã da onça e C= ao clã do buriti; sendo o peixe animal 196 DROGAS DE APOLO aquático, a onça terrestre e o buriti um vegetal, então, é pela identificação com esses elementos distintos na natureza que se pode estabelecer a diferenciação dos clãs A, B e C, ou seja, distingui-los socialmente. “A diferença entre os clãs é obtida graças à sua identificação totêmica (metafórica) com elementos que estão muito diferenciados no mundo da natureza.” (DA MATTA, 1986, p. 1242). Foi esse processo lógico que acabou por ser denominado totemismo. Porém, longe de existir apenas em sociedades simples, tal pensamento selvagem coexiste com o pensamento científico nas sociedades complexas. Quando se diz que fulano é um burro e ciclano é uma cobra em matemática, tal lógica totêmica está sendo articulada. Rocha ressalta que Lévi-Strauss, ao elucidar o problema do totemismo, delimita-o como um sistema pouco comum às sociedades de pensamento científico, fazendo-se pouco presente nelas. Ao ressaltar, de certa forma, que o natural é também uma construção social e que, em nossa sociedade, ele toma uma dimensão anti-humana ou anticultural, par excellence; Rocha indica que o pensamento mágico, ou totêmico, está bastante presente no cotidiano das sociedades complexas industrializadas, e isso por meio da publicidade que introduz a dimensão mágica e fabulatória nesse cotidiano supostamente dessacralizado. Equacionando produção à natureza e consumo à cultura, o autor constrói a concepção da publicidade enquanto “operador totêmico”. Ou seja, assim como o totemismo classificaria o mundo social no pensamento selvagem, hierarquizando-o, a publicidade faria o mesmo com o mundo da produção no que Sahlins denominou pensamento burguês66. Aquilo que seria indistintamente produto sem valor específico no mundo da produção se transformaria em valor específico, no mundo do consumo, por meio do operador totêmico publicitário que classificaria simultaneamente os indivíduos que consomem tais produtos em hierarquias específicas dentro do mundo capitalista. Consumir, por exemplo, um caro uísque escocês conferiria um determinado status ao indivíduo, associando-o a uma posição de prestígio na hierarquia social, Lévi-Strauss demonstrou como o totemismo na verdade é uma ilusão criada pelos antropólogos fazendo-os não atingir o cerne do problema classificatório que é transversal aos dois tipos de pensamento, o científico e o selvagem. Vemos como a mídia articula esse pensamento selvagem “mitificando” elementos científicos em uma bricolagem marketeira. Com efeito, “enquanto o pensamento científico raciocina formulando e encadeando conceitos, o pensamento mítico funciona com o auxílio de imagens emprestadas ao mundo sensível [...] elabora assim, uma lógica das qualidades sensíveis: cores, texturas, sabores, odores, ruídos e sons. Combina ou opõe essas qualidades para transmitir uma mensagem de certa forma codificada” (LÉVI-STRAUSS, 2012a, p. 63). O marketing utiliza, como descrito, essa lógica que contrapõe homens e mulheres, fortes e fracos, belos e feios etc., investindo nos sentidos e sentimentos mais recônditos e míticos visando a mobilizar o consumidor afetado em sua subjetividade e desejo, reproduzindo, assim, as desigualdades sociais inerentes à estrutura social. 66 197 CÉSAR SABINO enquanto consumir uma aguardente barata operaria processo inverso. Da mesma forma, por exemplo, usar uma bolsa Louis Vuitton, um terno ou tailleur Armani ou Versace conferiria, por intermédio da “magia” contida na etiqueta, uma espécie de mana (MAUSS, 1974) ao usuário, distinguindo-o e singularizando-o como alguém pertencente às camadas “superiores” da sociedade. Nessa ordenação, seria possível comparar a relação natureza/ cultura no pensamento selvagem com produção/consumo no pensamento burguês: O que possibilita a transição entre natureza e cultura nesse raciocínio é o “totemismo” (processo lógico), que se apresenta como “operador” do mesmo processo. Esse operador articula os termos enquanto diferença interna a cada um, o que produz a complementaridade do sistema. Portanto, todo raciocínio e pensamento classificam, ordenam e hierarquizam, conferindo status às pessoas e às coisas no mundo, a elementos simbólicos que tem seu poder ligados diretamente às práticas de autoridade econômicas e institucionais cotidianas, perpetrando dominação, exploração e poder. Nenhum sistema social – uns mais outros menos – escapa a essa micropolítica constitutiva das relações sociais perpassadas por valorações e distinções entre seres humanos e o que consideram as coisas. Com efeito, essa é uma microfísica do poder do qual ninguém escapa, nem mesmo pela atuação da macropolítica do Estado. Estudando o reencantamento do mundo mediante a publicidade, Rocha (1995) analisa os anúncios de bebida nas sociedades industrializadas atuais utilizando o esquema totêmico para compreender melhor a lógica do capitalismo. Essa análise poderia ser aplicada a qualquer outro tipo de anúncio publicitário. A lógica desse pensamento mágico se apresentaria da seguinte forma: Quadro 4 – Raciocínio burguês e marcas ou grifes Produção (não humano) (natureza) vodka vinho uísque etc. Publicidade [operador totêmico] Fonte: adaptado de Rocha (1995) 198 Consumo (humano) (cultura) o mundo dos anúncios: Smirnoff Ice O mundo dos anúncios: Liebfraumilch O mundo dos anúncios Bell’s etc. DROGAS DE APOLO A publicidade, atuando enquanto operador totêmico, conferiria, dentro dos anúncios, a distinção aos produtos, antes indiferenciados e generalizados, tornando-os singulares, portanto singularizando também seus consumidores. A dimensão mágica que tais produtos porta seria transmitida àquelas pessoas capazes de os consumirem e de perpetuarem essa magia (BOURDIEU, 1976; ROCHA, 1995; SAHLINS, 1979). O que era bebida em geral, portanto mais próximo ao âmbito da natureza, e vodka em particular, vai tornando-se, por meio da publicidade, uma substância específica, mais próxima da cultura, Smirnoff, por exemplo, marca que confere distinção aos seus usuários, o mesmo ocorrendo com outras bebidas67. Processo similar efetiva-se com o repertório simbólico dos frequentadores das academias de musculação. Sua construção de corpo está relacionada à organização da realidade mediante mitos veiculados pela publicidade e a mídia em geral. Tais mitos reiteram o sentido e a eficácia dos sistemas simbólicos daqueles que primam pela adoração da forma e que, ao adorarem-na, construindo na prática seus corpos, fazem sobreviver tais sistemas e seu encantamento. Há que se ressaltar, mais uma vez, o tom científico que os itens discursivos desse sistema mágico articula, ressacralizando o dessacralizado e criando o que se poderia denominar discurso de magia cientificizada que, por sua vez, se sustentaria por meio do discurso de otimização da saúde. O Ocidente ainda alimenta mitos e lendas sobre sua superioridade utilizando a capa do raciocínio científico para esconder seus preconceitos contra culturas e povos que, por não se enquadrarem nos parâmetros de sua racionalidade, considera irracionais. A análise antropológica das sociedades complexas ocidentais vem reiterando o aspecto falacioso de tal premissa. Com a abordagem estrutural, a antropologia percebeu que todos, primitivos e civilizados, com ou sem escrita, com mais ou menos tecnologia, são todos racionais, psiquicamente unos em um raciocínio que se opera em termos binários e que perpassa igualmente a magia, a ciência e a religião que todas as sociedades, complexas ou não, possuem. Magia, arte e ciência são formas paralelas de conhecimento. Se os chamados primitivos, por um lado, têm a magia; por outro, possuem uma ciência do concreto que lhes é peculiar, e os “modernos”, por sua vez, se têm a ciência do abstrato, vivem também sua magia e seu totemismo. Dessa forma, “primitivos” e modernos estão lado a lado (LÉVI-STRAUSS, 1975a, 1985; PEIRANO, 2000). No atual estágio do capitalismo, necessário se faz destacar que a marca, a etiqueta, tornou-se mais significativa que o produto (BOURDIEU, 2004). 67 199 CÉSAR SABINO A análise dos anúncios de suplementos alimentares pode ser um dos aspectos que exemplifica tal aspecto. Quadro 5 – Raciocínio burguês-fisiculturista e marcas de produtos de boa forma Produção (natureza) Consumo (cultura) Suplementos para aumentar músculos Mundo dos anúncios: Myoplex Máquinas para exercício Publicidade (operador totêmico) Mundo dos anúncios: Aparelhos Vitally Mundo dos anúncios: Levocarnin. L-Carnitinina Suplementos para emagrecer Fonte: o autor O processo também poderia ser equacionado da seguinte forma seguindo o mesmo raciocínio: Quadro 6 – Raciocínio burguês-fisiculturista e publicidade Publicidade do corpo e da boa forma Suplementos e exercícios (em máquinas e halteres) Corpos (natureza) Gordos Magros Comuns ou “normais” (não saudáveis) O mundo dos anúncios: Levocarnin (emagrecer) O mundo dos anúncios: Myoplex (aumentar músculos) O mundo dos anúncios: Aparelhos Vitally (Máquinas de Musculação) Fonte: o autor 200 Formas (cultura) Fisiculturistas e veteranos (saudáveis) DROGAS DE APOLO 4.6 IMAGENS E PALAVRAS Para que possa ser aprofundada a análise estrutural da publicidade, faz-se necessário escolher uma espécie de anúncio que atue como mito de referência; ou seja, um anúncio que apresente uma espécie de síntese de significados presentes em outros anúncios da mesma categoria. Eleger tal item como ponto de partida para a análise é uma atitude arbitrária. Qualquer outro anúncio poderia ser utilizado e nada mudaria no processo. A rigor qualquer anúncio sobre suplementos serviria como ponto de partida (LÉVI-STRAUSS, 1984; ROCHA, 1995). Foi escolhido o anúncio do suplemento para aumento da massa muscular, o Myoplex. Esse suplemento é bastante utilizado pelos fisiculturistas, faz parte das suas dietas. O anúncio que serve de referência faz parte de uma campanha empreendida pela multinacional de suplementos alimentares denominada EAS (Experimental and Applied Scienses) e, antes de aparecer em revistas brasileiras de fisiculturismo, havia surgido em revistas americanas, com a diferença de nessas últimas ocupar duas páginas em vez de apenas uma. Esse anúncio leva ao paroxismo a concepção cientificista presente no imaginário bodybuilder. Nele, alude-se à ideia de progresso – retirada da interpretação empobrecedora que o senso comum faz da teoria da evolução (INGOLD, 2003) – por meio da montagem de fotografias, sobrepostas lado a lado, de um mesmo homem de bermudas que, de portador de um considerável nível de gordura corporal, passa a ostentar musculatura hipertrofiada e um baixo índice de gordura. Ele transforma-se de homem comum em fisiculturista em apenas 12 semanas (como diz o anúncio) usando o produto (Myoplex) anunciado. A foto é completada por uma frase que serve como uma espécie de título: “Teoria da Evolução”. Ao lado, o emblema da empresa – a imagem de uma espiral de código genético e as letras EAS tendo abaixo a legenda: “Construindo corpos melhores através da ciência”. Também abaixo do título da foto, em inglês, está escrito: “The Word’s Leading Supplier of Sports Nutritional Suplements for the Envolving Man”. O quadro se completa com a foto de três caixas de suplemento Myoplex tendo à frente uma tulipa cheia da substância e rodeada de morangos – o que alude ao fato de que, apesar de toda ciência aplicada ao desenvolvimento do produto, o sabor natural não foi esquecido. Ao fundo do quadro, apenas a sombra do homem. Essa base inteiramente branca e asséptica – que remete às representações sobre os laboratórios científicos – circunda toda a exposição publicitária. 201 CÉSAR SABINO A mudança da imagem do homem parece relacionar-se ao processo de conquista da plenitude individual inscrita na forma. Ele parece caminhar em direção ao progresso, e a sua sombra projetada no chão, com ligeira inclinação para a horizontal, indica que a sua frente está a presença do brilho e da claridade, da luz do sucesso e da felicidade, que ele persegue mediante seu esforço e com respaldo da razão científica. Como se tivesse saído da escuridão primitiva da caverna – para utilizar a metáfora platônica – para a luz da ciência e da evolução. Afinal, no mundo dos mitos publicitários, só há felicidade e satisfação. Como se todos os problemas pudessem ser resolvidos magicamente – mesmo sendo utilizada linguagem científica – pelo produto exposto. A figura desse homem, antes tristonha, vai se tornando reluzente e alegre, sua postura cabisbaixa passa a erguer-se, e suas mãos frouxas e pendentes crispam-se gradativamente demonstrando a força e a determinação conquistadas. Sua pele, ao fim do processo, está mais corada e brilhante de suor, reluzente; pois, como escreve Barthes (1993), o suor pode ser também um signo de moralidade do trabalho sacralizado. Quem transpira trava uma luta interior, um trabalho fisiológico que pode operar o que é considerado virtude por determinado grupo em uma determinada época. Nos parâmetros desse raciocínio, quem não sua representa a moleza e a falta de movimento para a sociedade burguesa. Exercício e suor, esforço e conquista, empreendimento e realização, são faces de uma mesma moeda que circula na sociedade do self made man. Confrontados com a propaganda frequentadores disseram: Esse anúncio do Myoplex [...] de todos os que tô acostumado a ver é o mais legal, porque mostra o cara antes e depois... a gente vê a diferença... é claro que não foi só tomando isso que o cara ficou assim, eu já tomei myoplex e sei como é [...] mas, olha só, o cara tá definidão, sequinho e sarado [...]se eu conseguir ficar assim nesse verão vou ficar feliz! Tô investindo... já comprei doze ampolas de Winstrol e comecei a malhar pesado[...] quero pegar muita mulher nesse verão (Carlos. 32 anos. Comerciante). Bom, eu acho que o Myoplex ajuda a secar se a pessoa fizer dieta, ele sozinho não adianta, como o nome diz é um complemento. Se o cara tiver a fim de ficar [...] como esse cara da foto aí, ele vai ter que tomar uns produtos [...], um winstrol, um durateston... fechar a boca e malhar pesado [...] tem que ter um pouco de dinheiro e tempo [...] você vê pelo abdômen do cara, sequinho, todo cortado, tanque. (João. 23 anos. Estagiário de educação física). Pô, esse anúncio é o máximo, é uma parada muito maneira [...] Porque parece que o sujeito tava na pior, tava na m**** e olha só 202 DROGAS DE APOLO como ele ficou [...] perfeito [...] saradaço, cortadão [...] é claro que um cara duro, ferrado [...]não consegue [...] pra ficar assim, ele tem que ter uma grana pra investir na ‘carcaça’. Tem que ter tempo pra malhar, dinheiro pra suplemento e bomba, dieta [...] pra manter essa barriga assim, igual a um tobogã tem que ter muita dieta, eu que de vez em quando trabalho como modelo sei como é difícil, mas é investimento [...] (Paulo. 23 anos. Estudante e modelo). O sistema publicitário, assim como o mítico, opera classificações da realidade social. Esse sistema, quando se direciona para o corpo, apresenta um certo paroxismo classificatório, já que suas estruturas, em geral, fazem homologia com as estruturas sociais, como é o caso da sociedade hindu na qual cada casta faz analogia a partes do corpo de Bhrama, e partes superiores (estratos sociais) e puras não devem misturar-se a inferiores e impuras (DOUGLAS, 1976). Embora o fisiculturismo não seja uma prática esportiva de classe alta, mediante as entrevistas e o trabalho de campo, foi possível perceber que, no Brasil, ele fica nos liames da classe média. Para “malhar”, é preciso ter tempo e uma quantia razoável de dinheiro a ser investido na aparência. Essa surge como uma espécie de vitrine na qual as supostas virtudes individuais são apresentadas para um “público consumidor” eventual que possa trazer lucro tanto econômico quanto simbólico. A lógica de gerenciamento empresarial toma conta do cotidiano individual, gerenciando suas vidas em um processo de marketing pessoal que acaba por coisificar a existência em uma nova forma de tratar o corpo e a vida. Corpo-objeto, corpo-espetáculo, corpo-capital a ser investido, “corpo-brasão, símbolo de um pertencimento, efígie feita signo” (VIGARELLO, 1995, p. 33) de uma classe, de um estilo de vida, de um ethos. Esse processo, que consiste na tentativa de transformação do mundo em uma grande classe média, um grande meio termo, é o corolário de americanização – ou ao menos da interpretação local da cultura e dos símbolos postos sob a égide norte-americana do modus vivendi de grande parte do Ocidente atual e peculiar à classe média em ascensão do litoral brasileiro que sonha em transformar-se em réplica de Miami ou Los Angeles. Em uma época em que classes, ou “sociedades superavitárias” (RODRIGUES, 1998, p. 44), tendem a apresentar um número considerável de indivíduos com abundante tecido adiposo, devido ao consumo e ao sedentarismo; paradoxalmente, a imagem do gordo barrigudo passa a ser abominada. A pessoa gorda passa, não raro, a ser tolhida do convívio social pleno, sendo considerada doente, portadora de distúrbios psíquicos e fisiológicos. A 203 CÉSAR SABINO silhueta gorda atrai apreciações bastante negativas (FISCHLER, 1995). Entre os fisiculturistas, é a barriga, o abdômen – além do diâmetro muscular –, o ponto de prova da excelência individual; é como se toda areté estivesse concentrada no centro do corpo, na região do umbigo. Uma “barriga tobogã” ou “tanque de lavar roupa”, repleta de ondulações, dobras e redobras musculosas, devido à ausência de gordura e presença constante de exercícios, é o símbolo supremo da saúde, da excelência e da beleza. Quanto mais barroca ou mesmo rococó for a arquitetura abdominal, mais virtuoso será o indivíduo. 4.7 RAIOS E LEÕES Outro anúncio escolhido para a análise é o do suplemento que auxilia o emagrecimento e a suposta transformação da gordura em músculos, apresentado a seguir. Nesse anúncio o corpo de um fisiculturista aparece recebendo uma descarga de raios como se a energia deles servisse para recompor e aumentar sua força. Se o discurso científico, acompanhado pela concepção sempre positiva de progresso nesse imaginário, algumas vezes, é articulado em contraposição a tudo que é natural; outras vezes sugere que é a força dos elementos naturais, em composição com o trabalho da ciência, que confere potência à construção do corpo, pensado como objeto natural que deve ser aprimorado pelo trabalho da técnica. No anúncio aparece, abaixo do logotipo do produto (Levocarnin), apresentado com letras em gradações da cor abóbora, a frase “mais fôlego para os seus músculos” e, ainda um pouco mais abaixo à direita da figura, também as frases: “facilita a utilização das gorduras na geração da força muscular” e “máximo desempenho energético muscular”. Esse anúncio lembra aspectos míticos, como aqueles relacionados à força concedida pelos deuses a um determinado herói, pois o raio direcionado ao fisiculturista parece ser uma carga renovadora que lhe unge para uma tarefa hercúlea. Confrontados com tal quadro alguns informantes disseram: Parece que o cara recebe força do raio, que o Levocarnin produz uma força igual ao raio... não sei...pode ser também que eles queiram dizer que o cara ficou ‘cortado’ usando o produto como se um raio tivesse queimado a gordura dele. (Carlos. 28 anos. Professor de Educação Física). Ah, esse anúncio me lembra os desenhos do Thor, lembra? Aquele super-herói do martelo, deus do trovão. Eu acho que eles querem 204 DROGAS DE APOLO dizer que o produto é tão bom que deixa o cara que usa com corpo de super-herói, que nem o Thor [...] seco, definidão e grande. (Mário. 32 anos. Professor de Educação Física) A alusão do informante ao deus nórdico Thor, filho de Wotan (Odin), que se tornou super-herói dos quadrinhos e dos desenhos animados na TV, foi sugestiva, remetendo diretamente ao pensamento mágico e mítico presente na publicidade. Thor retirava seus poderes do martelo sagrado que carregava. Martelo que as forças do mal sempre cobiçavam com o intuito de enfraquecê-lo. Como o mito “modelo exemplar de todas as atividades humanas significativas” (ELIADE, 1979, p. 13), apresenta estruturas que podem ser encontradas em diversas dimensões da sociedade, inclusive nos anúncios publicitários. Por exemplo, se o herói é aquele que recebe sua força de algum objeto que lhe é conferido ou conquistado, como o martelo de Thor ou o cabelo de Sansão, esse anúncio sugere a venda de um objeto (produto) que pode conferir poderes heroicos àqueles que o utilizam. Ele parece prometer a transformação do mal (a gordura) em bem (músculos), por meio do uso dos poderes “divinizados” contidos na L-carnitina, a substância “mágica” criada em laboratórios farmacêuticos. Ao classificar seu usuário como um herói, o anúncio reitera a distinção entre melhores, superiores (musculosos, vencedores, bonitos e divinizados) e piores, inferiores (gordos, sedentários, acomodados e feios) reiterando a dimensão totêmica da publicidade nas sociedades capitalistas (SAHLINS, 1979). Outro anúncio do mesmo teor é aquele do suplemento para aquisição de massa muscular denominado Mighty One 3000. Por trás da foto do produto, em relevo e com rótulo em inglês, aparece a figura de um leão e a frase em amarelo escrita com letras que lembram raios: “atleta por instinto”. Ao lado da figura do produto, os tradicionais termos científicos (fórmula anticatabólica, complexos de carboidratos, Whey protein, aminoácidos de cadeia ramificada), que quase nenhum frequentador de academia conhece em seu funcionamento prático – a não ser alguns professores de educação física – conferindo a eficácia simbólica ao objeto anunciado e que, aparentemente, tem seu consumo associado à doação de um poder e força leoninos àqueles que o adquirirem. O próprio nome do produto Mighty (forte, poderoso, importante) remete a uma dimensão mágica na qual os poderes nele contidos passariam para o sujeito que o consumisse. O suplemento não seria apenas forte, poderoso e importante, mas passaria tais qualidades àqueles que o utilizam. Essas qualidades, no sistema 205 CÉSAR SABINO classificatório dos fisiculturistas, estão relacionadas a certos animais. O leão, além do tubarão e mais especificamente o cão pitbull, serve, muitas vezes, como símbolo de fisiculturistas e lutadores em tatuagens e logotipos de academias. Tais animais, considerados feras perigosas, servem como sinônimos de bons atletas e homens destemidos. Dizer que alguém “é fera” significa conferir a ele a excelência naquilo que faz. Equivale dizer que está entre os melhores fisiculturistas daquela região ou contexto. Leach (1983), em seu trabalho sobre categorias animais e insulto verbal, diz que não xingamos alguém de “filho de uma cadela” ou de “porco” por que assim está estabelecido por convenções arbitrárias, mas sim porque existe algo no comportamento daquela pessoa e do animal a ela relacionado, tal como o vemos e classificamos, que permite a relação entre um e outro. Provavelmente o mesmo ocorre com esses fisiculturistas que não têm as mesmas características dos animais que escolhem como “totens” e que, portanto, têm um lugar privilegiado no seu sistema classificatório, gostariam de ter. 4.8 FÁBRICA E MECÂNICA DE CORPOS O processo de produção do corpo saudável pode ser classificado em uma gradação que vai da matéria-prima, o corpo em seu estado natural, passando pelo investimento de produtos químicos e adaptações às máquinas de exercícios, até o produto final, um corpo reluzente, musculoso e “saudável”, investido de magia e poder conferido pelas classificações totêmicas do mundo bodybuilder. Um corpo de fisiculturista. As academias, com suas indicações de substâncias químicas – suplementos alimentares e esteroides anabolizantes –, seu conjunto de máquinas, cada vez mais, desenvolvidas e informatizadas, opera como uma espécie de fábrica do corpo. Há nessas instituições disciplinares uma verdadeira linha de montagem da forma, na qual o indivíduo é acoplado às máquinas e levado a experimentar todo tipo de inovações químicas para moldar sua massa muscular. O termo massa, muito usado pelos fisiculturistas, remete diretamente a essa dimensão reificante do mundo do trabalho. Algo informe sobre o qual a razão científica se debruça executando seus objetivos de conformação estética, massa é categoria recorrente no cotidiano dos fisiculturistas. Sua aquisição equivale à aquisição de um bem, de um capital biológico que deve ser investido, revestido de significado por intermédio de um processo classificatório que confere valor e sentido àquele conteúdo muscular ini206 DROGAS DE APOLO cialmente indistinto. Esse sentido é produzido por meio da articulação de um sistema de representações coletivas que pode ser compreendido pela análise da publicidade voltada para este público específico. O corpo não saudável, na concepção dos fisiculturistas, seria aquele que, de certa maneira, estaria mais próximo do estado natural, o corpo menos trabalhado, o corpo que não consumiu produtos químicos (suplementos alimentares e drogas) e exercícios específicos elaborados por especialistas com o auxílio constante de técnicas científicas e máquinas adequadas, além de pesos. Ao contrário dos consumidores de produtos naturais, o sentido de natureza entre marombeiros apresenta-se como algo que deve ser aprimorado, aperfeiçoado, ou espécie de estoque no qual o cientista e o fisiculturista vai buscar matérias-primas para elaborar suas fórmulas. Estoque de forças que deve ser gradativamente domesticado pela razão. Nesse sistema subjetivo e objetivo é possível perceber que a mesma lógica capitalista da produção de bens de consumo aplica-se à produção da forma física. Portanto, a categoria natureza, para esse grupo, não está carregada com o significado de excelência como para os chamados pelos fisiculturistas de “naturebas”; mas, ao contrário, porta o sentido de atraso no processo evolutivo ou na condição humana perfectível. O corpo deixado “ao natural” tende a se degradar (quando já não é degradado), já que não pode contar com os avanços da evolução da ciência da beleza e da arquitetura da forma. Os suplementos criados em laboratórios, produtos de intensas pesquisas científicas, representam a síntese dos avanços científicos para a elaboração do corpo saudável e forte. Corpo que, se não contar com a tecnologia aplicada aos exercícios, à nutrição, e avanços da indústria farmacêutica, não pode tornar-se o portador do sentido de saúde relacionado à ausência de gordura e presença de músculos. Para eles antinatural, contrariando o processo natural de evolução, é deixar o corpo apartado das máquinas de exercícios e das químicas da ciência da nutrição. Nesse raciocínio, os corpos humanos seriam iguais em sua indistinção geral, principiando a distinção por intermédio da sua relação com a muscularidade. Gordos, magros e comuns, posicionar-se-iam do lado oposto dos musculosos, e a publicidade da forma seria o eixo articulador da transição (operador totêmico), organizando, por intermédio dos produtos (suplementos alimentares e máquinas de musculação), a realidade e instaurando a diferença. Apresentando-se como fábricas de corpos, as academias de musculação podem ser encaradas como locais onde se encena o drama da montagem física. O corpo chega a essas instituições 207 CÉSAR SABINO como uma espécie de matéria-prima, passando por todo um movimento de produção e recauchutagem, e saindo, no final de um processo fordista de somato-produção, como mercadoria específica para ser apresentado e consumido na economia de bens simbólicos. Ao chegar, enquanto matéria-prima, esse corpo é conteúdo indiferenciado (pertence ainda ao mundo indistinto da natureza). Essa matéria é trabalhada durante meses e anos, durante horas diárias de exercícios intensos, direcionados e realizados em máquinas, halteres, esteiras e ergométricas em consonância com o consumo de fármacos e substâncias químicas diversas. Toda a lógica mecanicista de grande parte da racionalidade ocidental dominante e que funda o pensamento capitalista ocidental concretiza-se nessas instituições de preparação da forma. O corpo humano, nessa fábrica repleta de espelhos, carrega, a princípio, certo sentido de mecanização objetificada. Acoplado às máquinas, ele é apenas uma peça em um sistema de polias, molas, pedais e alavancas. O ritmo, a ordem, o caráter e o movimento do processo de trabalho muscular é dado pelo conjunto de maquinarias e não pelo trabalhador que o serve. A fábrica de corpos retira a marca vital do produto (o corpo) e transforma o trabalhador em força motriz que é dobrada sobre si mesma. Esse processo reificante volta-se diretamente para o próprio corpo e para a forma daquele que trabalha sobre si mesmo transformando-se, de maneira consentida, grosso modo, em uma mercadoria de carne-forma; peça no vasto mundo de imagens das economias globalizadas e microinformatizadas. Porém, se no mundo da produção os produtos estão naturalizados para se constituírem como objeto estético (isso no pensamento do grupo estudado); no mundo do consumo, eles devem ser culturalizados, revestidos de características singulares que estabeleçam sua inserção num sistema de significação que deve lhes conferir face, nome e identidade. Dessa forma, o corpo trabalhado, musculoso e bem enquadrado nos parâmetros estéticos dominantes “humaniza-se” para o fisiculturista por tornar-se bodybuilder na prática, na forma e na maneira de pensar. Essa humanização está dire- 208 DROGAS DE APOLO tamente radicada na separação natureza/sociedade, animal/humano típica do pensamento dominante de nossa cultura68. Para construir essa pessoa, é necessário um instrumental técnico específico que tem sua história demarcada no campo da biomedicina, ou do chamado sistema de medicina ocidental. Esse sistema é composto por uma classificação peculiar composta por cinco itens: doutrina médica, morfologia, dinâmica vital, diagnose e terapêutica. Essas, por sua vez, dividem o corpo humano em nove sistemas: sistema nervoso (cérebro, tronco cerebral, medula espinhal, nervos periféricos); sistema cardiovascular (coração, artérias e veias); sistema respiratório (pulmões, traqueia, laringe); sistema digestivo (esôfago, estômago, intestinos delgado e grosso, pâncreas exócrino e fígado); sistema endócrino (glândulas hipófise, pineal, tireoide, paratireoides, suprarrenais, pâncreas endócrino, ovários, testículos); sistema reticuloendotelial (baço, medula óssea); sistema imunológico (linfonodos, timo); sistema gênito urinário (rins, bexiga, uretra, aparelho reprodutor masculino e feminino) e sistema musculoesquelético (ossos, músculos, tendões e articulações)69. A prática da musculação está diretamente radicada na concepção sistêmica da biomedicina, principalmente no sistema musculoesquelético. Por trás de toda concepção de universo, inclusive a científica, existe uma Para uma discussão aprofundada e crítica sobre esse tema, há a incontornável obra de Tim Ingold (1990; 1994; 2002; 2004). O autor busca superar as dicotomias presentes na teoria por intermédio de uma obra que reitera o engajamento simétrico entre todos os seres que habitam o mundo. Nesse aspecto, produz também grande impacto na tradição humanista e cientificista ocidental, posto que sua visão da realidade impossibilita a separação entre sujeito/objeto. Para Ingold, a ideologia antropocêntrica cientificista nega o devir ou fluxo da vida, negando o respeito à diferença pertencente a todos os seres que habitam o mundo como ambiente no qual o ser humano é apenas mais um dos elementos. O autor estabelece uma equivalência entre todas as formas materiais de vida que habitam, interagem, interconectam-se e se modificam constantemente na atmosfera, independentemente de sua forma ou qualidade de consciência. Ingold faz uma antropologia que aproxima seres humanos não apenas de animais, mas também de marés, rochas, mares, céu, vento etc.; tudo que está no mundo e compartilha (interagindo na atmosfera) o ambiente e que é vida, de acordo com seu pensamento. Contudo, não é possível esquecer que a cultura do grupo aqui discutida é ocidental, cartesiana e mecanicista. O que torna um contrassenso buscar nela elementos de racionalidades nada aparentadas a ela. 69 Outros sistemas médicos, diversos do ocidental, como o desenvolvido na Índia há mais ou menos sete mil anos, o sistema médico ayurveda, ou medicina Ayurvédica, por exemplo, organizam a realidade do corpo como uma totalidade única sem separação entre espiritual e material. Essa realidade estaria demarcada por gradações que iriam da substância densa (o corpo, no Ocidente) à substância sutil (espírito). Para esse sistema médico, assim como para o chinês, o adoecimento é um acontecimento singular pertencente a cada pessoa e ocorre devido a desequilíbrios nos fluxos de energia e humores individuais combinados com toda a realidade que o cerca, não havendo uma ontologização da doença. Nessa visão, portanto, o corpo não é percebido separado do universo e muito menos da dimensão espiritual-mental que influi diretamente no adoecimento. O ser humano é concebido como parte de uma ordem cósmica com a qual deve estar em harmonia; a saúde é a relação equilibrada do microcosmo (ser humano) como o macrocosmo. Essa harmonia seria realizada por meio do balanceamento de três humores (tridosha) vatta, pitta, kapa, simbolizados pelos elementos fogo, vento e água estruturantes do ser humano (MARQUES, 1993). 68 209 CÉSAR SABINO cosmologia implícita ou explícita. No caso das concepções do senso comum e daquelas científicas surgidas no Ocidente, essa cosmologia é marcadamente mecanicista. A base dessa visão está presente nas hegemônicas concepções filosóficas de Descartes e físicas de Newton. Essas concepções mecanicistas representam o universo e o corpo humano como um relógio; máquinas que funcionariam segundo leis matemáticas e que seriam compostas por peças específicas. O cosmos, então, estaria apartado do poder e da pessoa divina, sendo uma espécie de máquina-palco, da mesma forma que o corpo humano seria um mecanismo com leis estabelecidas pelo grande relojoeiro (Deus) e do qual o espírito – esse sim a verdadeira personalidade do homem – faria uso. Durante três séculos, esse raciocínio expandiu-se, e até hoje faz parte das representações coletivas das sociedades complexas ocidentais. Apesar de a física quântica ter sugerido o equívoco desse raciocínio, ele continua presente tanto em práticas e representações eruditas (senso comum douto) quanto populares (senso comum). Esse é o caso da medicina e da fisioterapia e, consequentemente, da educação física e de parte dela dedicada à musculação. Segundo essa concepção, que transforma o corpo em uma máquina sobre a qual o espírito pode atuar, os exercícios devem obedecer às leis da mecânica newtoniana atuando especificamente nas “peças” que compõem a máquina humana. Basta observar o cenário das academias de musculação para perceber a força dessas ideias e práticas. Os recintos utilizados para os exercícios estão repletos de máquinas elaboradas para a prática da musculação e, quando as academias estão repletas de indivíduos realizando seus trabalhos de escultura muscular, todo o cenário parece uma grande máquina ritmada na qual cada um surge como peça ou engrenagem. Enquanto alguns fazem exercícios ritmados para determinadas partes das pernas, outros o fazem para os braços, costas e ainda outros para ombros e peitos; cada um movimentando-se segundo uma quantidade determinada de repetições acopladas às máquinas. O corpo não é nada mais que uma máquina entre tantas máquinas (DUARTE, 1999). O anúncio que visualizei na revista da época era eloquente a esse respeito. Além de aludir ao tradicional espírito evolucionista presente no ponto de vista do senso comum, o qual confunde evolução e progresso (concebendo a primeira como inexorável e linear) ao trazer como chamada a frase: “A evolução não para [...]”, evoca o progresso no próprio nome da linha: “Millenium 2001”. Porém o que deve ser destacado nesse anúncio é a postura das modelos. Elas não possuem a forma física comum entre as 210 DROGAS DE APOLO fisiculturistas, e isso indica que tais aparelhos não são direcionados apenas para tais pessoas. O sorriso que elas estampam também não condiz com a prática dos exercícios nessas máquinas. Em geral, quem se exercita faz caretas e não dá sorrisos. Sem embargo, as imagens indicam a plena integração, sem sofrimento, do ser humano à máquina, o que não ficaria tão claro se elas estivessem fazendo expressões de esforço em uma alusão à luta para conseguir um corpo em forma. Nesse quadro parece que isso já foi conquistado e que apenas a felicidade como produto do uso das máquinas existe. Exercícios pesados e rostos sorridentes são contraditórios. Porém, no mundo dos anúncios, não existe o trágico nem a contradição, apenas a promesse de bonheur capitalista. Evolucionismo, crença no progresso e mecanicismo desaguam na concepção do ser humano como produto industrial, assim como as máquinas com as quais interage – não se quer dizer com isso que qualquer e toda interação com máquinas produza tais representações. Essa concepção de homem-máquina é parte de uma compreensão mecanicista de universo, como foi dito. Weltanschauung, que produz a ilusão do poder aos seus portadores, pois se a realidade – seja ela o corpo humano ou o universo – é uma máquina, basta saber apertar os botões certos ou articular as engrenagens adequadas para se obter os resultados desejados. Esse mito científico decalcado da física newtoniana está na base de todo o paroxismo reducionista que imperou nas grandes teorias sociais e impera, de forma mais sutil, em várias ciências do corpo e da saúde até o presente momento; pois máquinas podem ser recauchutadas com produtos para crescer, silicones e silícios, implantes e plásticas com o objetivo de “aprimorar”, fazer progredir, tornar perfectível, aquilo que a natureza concebeu. Não se percebe que esse “melhorar” é um juízo de valor condicionado por todo sistema simbólico de uma determinada época e cultura, não representando superioridade em relação aos outros sistemas que concebem corpo e estética de forma diversa. A estabilidade milenar de tantas culturas primitivas, que não apresentavam como sustentáculo cultural o pensamento racionalista, realizou-se, devido à adequação entre seus esquemas imaginativos e a realidade. Envoltos em mitos e lendas específicos, esses “selvagens” podiam nada saber a respeito de refração ótica ou mecânica quântica, porém pressentiam com grande precisão o lugar da existência humana no cosmos. Muitas vezes parece ao antropólogo que é menos absurdo falar com os animais e as plantas, como faziam e fazem os primitivos (VIVEIROS DE CASTRO, 2002d), do que se imaginar como uma engrenagem de relógio. Nesse raciocínio, se o ser 211 CÉSAR SABINO humano não passa de um produto industrial, portanto descartável, não é um erro se desfazer ou jogar fora aqueles que não têm mais utilidade, ou não passam no controle estético de qualidade, profissional, enfim, social. São perdedores, feios, fracos, inúteis e fracassados, que devem ser descartados pelo processo evolutivo “natural” do mercado na “luta pela sobrevivência do mais apto.” Essa é a lógica presente no imaginário e representações do cotidiano das academias de musculação aqui estudadas, assim como nos anúncios brevemente analisados. 212 CAPÍTULO V Ser homem significa, para cada um de nós, pertencer a uma classe, a uma sociedade, a um país, a um continente e a uma civilização. (Lévi-Strauss) 5 TATUAGENS: A HIERARQUIA DA EPIDERME Alguns trabalhos da chamada antropologia urbana e da psicologia social têm se dedicado quase que exclusivamente a análises de entrevistas e depoimentos, não raro, desprezando a importância da observação participante prolongada e minuciosa que constitui o tradicional trabalho de campo. Essa monomania de cátedra (BOURDIEU, 1989) tem levado à construção de abordagens que se, por um lado, podem ser formalmente belas, por outro, chegam a conclusões que vão contra a própria tradição disciplinar. Assim, por exemplo, sobre a prática de tatuagens entre determinados grupos cariocas, Almeida (2000, p. 103) afirma - após uma pesquisa ampla sobre o imaginário do universo jovem da classe média brasileira, [pesquisa com] jovens ligados ao universo da tatuagem – que o discurso dos tatuados apresenta [...] uma fusão desordenada e heteróclita de elementos da imaginação [...] imensa constelação de imagens e simbolismos [que] não parece[m] estruturar-se de modo contínuo, coeso e duradouro na fala dos informantes. Os sujeitos acionam ao bel-prazer de seus ímpetos momentâneos, suas contingências [...] paroxismo da performance (VALE DE ALMEIDA, 2000, p. 104). A autora, apesar de falar sobre uma “gramática subjetiva” (ALMEIDA, 2000, p. 104), contraditoriamente sustenta a hipótese da não existência de nenhum sistema ou racionalidade que organize a visão subjetiva do grupo estudado. A tatuagem representaria uma prática fugaz e paroxista reduzida à efemeridade do instante (sem qualquer organização de fato) ao modo de algumas interpretações pós-modernas em antropologia. Detendo-se apenas na fala dos informantes, chega a essa conclusão dizendo que os tatuados dizem que “não pensam nas suas tatuagens” (p. 213 CÉSAR SABINO 105), portanto (no que se refere aos desenhos presentes na epiderme a tais jovens pertencentes aos grupos urbanos) nada existiria além da pele a não ser a volição imediata e neorromântica que, segundo a própria autora, pulverizaria os sentidos dos conteúdos simbólicos. A afirmação parece desprezar o fato de que a ordem social se inscreve no inconsciente – e não na dimensão consciente presente nas palavras dos nativos apenas – e que é nesse inconsciente que o antropólogo deve buscar entender as estruturas subjetivas que organizam as estruturas objetivas da vida em sociedade (BOURDIEU, 1983). Devido a essa espécie de esquecimento da tradição teórico-metodológica da antropologia, a autora conclui que as ciências sociais e humanas encontram-se (ao encararem o que ela constata como ausência de estruturação do seu objeto), diante de “uma imensa perplexidade tanto analítica quanto empírica” (ALMEIDA, 2000, p, 121). Bom, encontra-se para quem assim o deseja. A tentativa de analisar o uso de tatuagens entre os marombeiros ou fisiculturistas do Rio de Janeiro – já que essa prática é muito comum entre eles e vem crescendo nas academias e também fora delas – sugere que não apenas há uma sentido inconsciente que estrutura a organização social, mas que também essa organização estrutura o sistema simbólico daqueles que dela fazem parte e a constituem. Embora fisiculturistas de competição não as exibam em profusão (pois se os desenhos forem grandes demais poderão atrapalhar a visão de seus músculos ou desviar deles a atenção), as tatuagens estão presentes em inúmeros corpos nas academias de bodybuilders70. Nessa pequena amostra da sociedade da performance e da aparência que constitui as academias, a superfície da pele realça o que ela reveste e que constitui o objeto e propósito de todo o trabalho nessas instituições: o músculo. As tatuagens surgem como acabamento artístico de um contínuo processo de busca pelo ideal estético envolvendo a encenação pública e a encar- Entre os 310 indivíduos com os quais foram estabelecidos diálogos e convivência no trabalho de campo nas academias as quais frequentei, 101 possuíam tatuagens. 70 214 DROGAS DE APOLO nação dos papéis inerentes à dinâmica social71. Se corpos musculosos “pavoneiam” (FOUCAULT, 1990, p. 9) pelos cenários repletos de espelhos, halteres e máquinas de exercícios, as tatuagens conferem a esses corpos o paroxismo de visibilidade que lhes são inerentes. Ela mobiliza olhares, reflete sentimentos, classifica, hierarquiza e ordena subjetivamente o fluxo intermitente de indivíduos que lhe servem de tela e que nela buscam distinção. Formando uma espécie de linguagem bodybuilder, os desenhos da epiderme apresentam uma gramática que possibilita organizar o regime da visibilidade institucional. Portanto, a tatuagem, do ponto de vista sociológico, é uma linguagem que “está intimamente ligada à organização social: [apresentando] motivos e temas [que] servem para exprimir diferenças de posição, privilégios de nobreza e graus de prestígio [...]” (LÉVI-STRAUSS, 1975, p. 292, grifo meu). Ou, para lembrar a incontornável obra Arte e Agência de Alfred Gell – na qual ele estuda, além da arte acadêmica ocidental, as tatuagens dos nativos do pacífico –, “é preciso perceber que as imagens artísticas têm a capacidade de ativar relações sociais que são marcadas por posições assimétricas, ou seja, diferenças de classe e poder” (GELL, 1998, p. 321-372, grifo meu). Vale, portanto, frisar que imagens sejam de quadros, fotografias ou tatuagens, não apenas atuam sobre os seres humanos que as produzem, mas representam as relações de poder e dominação que os constituem via classificação e hierarquização social. Essa “gramática” epidérmica apresenta-se por intermédio de uma contradição. A maioria dos(as) tatuados(as) das academias pesquisadas A possível análise da escritura, seja ela qual for, realizada pela tatuagem, remete ao aspecto ordenador que a gramática social instaura mediante a lei inscrita na pele, conforme escreveu Michel De Certeau: “não há direito que não se escreva sobre corpos [...] sempre é verdade que a lei se inscreve sobre os corpos. Ela se grava nos pergaminhos feitos com a pele de seus súditos [assim] os seres vivos são ‘postos num texto’ transformados em significantes das regras (é uma contextualização) e, por outro lado, a razão ou o Logos de uma sociedade se ‘faz carne’ (trata-se de uma encarnação). Todo poder se traça em cima das costas de seus sujeitos [...] os livros são apenas as metáforas do corpo. Mas nos tempos de crise, o papel não basta para a lei, e ela se escreve de novo nos corpos. O texto [...] remete a tudo aquilo que se imprime sobre nosso corpo, marca-o [....] enfim, com dor e/ou prazer para fazer dele um símbolo do Outro, um dito, um chamado, um nomeado” (CERTEAU, 2002, p. 231-232, grifos do autor). Feitas para representar por toda vida uma ordem estética, essa prática, em uma sociedade em que a moda passageira e o impulso momentâneo do consumo está cada vez mais presente, por vezes engendra um paradoxo epidérmico naqueles que, após um certo tempo, “se cansam” ou simplesmente “enjoam” de seus desenhos. Essas pessoas, por terem realizado as tatuagens apenas incitados pela moda ou pela influência circunstancial, chegam a despender 20 vezes mais o valor gasto com a elaboração do desenho, para eliminá-lo da pele, além da dor de cada sessão. De acordo com a revista Época (n.º 264. 9 junho 2003, p. 90-91), o Hospital Albert Einstein, de São Paulo, desde 2000, vem duplicando, ano a ano, o número de pacientes que desejam remover suas tatuagens. No Leblon Laser Center, no Rio de Janeiro, uma das principais clínicas do país, há fila de espera para retirar tatuagens. O fato nos lembra a conhecida frase de Marx sobre uma época em que tudo que é sólido desmancha no ar. Contudo, os tatuadores têm dito que tatuagens podem ser “cobertas” por outras, escondendo-as quando perdem seu sentido. 71 215 CÉSAR SABINO escolheram seus desenhos após uma decisão pessoal que expressa a vontade de distinção. Ao se tatuarem, buscam singularizar suas figuras, sempre conferindo- lhes uma característica diferencial, um detalhe específico; alguns até mesmo “inventam” seus desenhos ou carregam no estilo deles ao se dirigirem ao tatuador. Toda essa atitude é engendrada na busca de uma individualidade relacionada à concepção de livre arbítrio e da distinção daquele que faz suas escolhas e que por elas é plenamente responsável. Destarte, de acordo com Sanders (1989), a tatuagem é um meio de individuação que tem a tarefa de demarcar a diferença em relação ao outro, tatuado ou não. Essa demarcação é sempre uma divisória e, como tal, hierarquiza impondo relações de poder. Também pode constituir delimitação de inconformismo expressando uma estética totalmente pessoal. Por outro lado, a grafia epidérmica permite reivindicar o pertencimento a uma categoria social, servindo como uma espécie de “etiqueta coletiva” (DURKHEIM, 1996, p. 113) simbolizando a filiação privilegiada a um grupo social específico que busca demarcar sua identidade coletiva em um processo de emblematismo. A prática da tatuagem, portanto, é a expressão da superação do paradoxo teórico existente entre agência e estrutura. Assim, podemos pensar na teoria de Bourdieu indicando que há uma margem de liberdade para o agente; porém suas escolhas ocorrem sempre dentro dos sistemas simbólicos e sociais dos quais ele retira os recursos para suas ações (BOURDIEU, 1989). Associada, no Ocidente, à marginalidade até a década de 60 do século XX, quando, em geral, estigmatizados como presidiários, motoqueiros dos Hell’s Angels e marinheiros sem nenhuma patente desenhavam, por vezes de forma canhestra, imagens, palavras ou frases em seus corpos; as tatuagens atualmente se tornaram gradativamente parte do cotidiano das classes mais altas decorando o corpo de indivíduos de idades variadas e demonstrando a existência de um processo de circularidade cultural no qual o poder de 216 DROGAS DE APOLO um item estigmatizado torna-se emblema de status e domínio, invertendo o jogo social pela disputa de hegemonia simbólica das classes72. Como os costumes de um povo, grupo social ou classe formam um sistema que apresenta um estilo, ocorre, por vezes, uma espécie de transposição cultural – reinterpretação de significados que fazem parte da própria dinâmica coletiva. Esse movimento se realiza porque, dentre outros aspectos, os sistemas não formam um número ilimitado, sugerindo que “as sociedades humanas, assim como os indivíduos – em seus jogos, seus sonhos e seus delírios -, jamais criam de modo absoluto, mas se limitam a escolher certas combinações num repertório ideal” (LÉVI-STRAUSS, 2000, p. 167). Nos locais estudados, foi possível perceber a produção coletiva – e inconsciente – de uma gramática imagética composta por inúmeros itens retirados e reinterpretados de outras culturas e/ou classes sociais. Assim, tatuagens inspiradas em figuras sagradas e mitológicas pertencentes às culturas da polinésia francesa, celtas, japonesas, chinesas, hindus, balinesas, medieval, nórdicas, além de ideogramas e personagens de quadrinhos e de desenhos animados que vão de super heróis a anti-heróis, (além de toda uma classificação “totêmica” inspirada em animais e fenômenos naturais como cães, tigres, panteras, beija-flores, raios, estrelas), decoram os corpos dos praticantes, não necessariamente fisiculturistas. Há também o que é bem mais raro, uma formação simbólica organizada em torno de objetos pertencentes à atual cultura que sacraliza o mercado, a cyberculture, com a inexorável presença da informática, como marcas famosas de roupas e tênis (Nike, Adidas, Mizuno) e símbolos da computação tais como @, além de códigos de barra – esses mais comuns que os anteriores –, em geral estampados em locais estratégicos do corpo como nuca, pulso ou cóccix. Há, portanto, uma ligação entre indivíduo, seus desejos, o agenciamento ou constrangimento social inconsciente e sagrado e as imagens da pele como sugeriu Foucault: Sobre a tatuagem (assim como sobre o músculo cultivado e hiperinflado), parafraseando Lévi-Strauss, em seus estudos sobre pinturas corporais ameríndias (1975), pode-se dizer que é feita para o corpo, mas num outro sentido; o corpo, nesse caso específico, é predestinado à decoração por figuras e músculos, posto que é somente por meio da decoração que ele recebe sua dignidade social e sua significação. A decoração é concebida para o corpo, mas o próprio corpo não existe senão por ela. A dualidade é, em definitivo, a do ator e de seu papel, e é a noção de máscara que nos traz sua chave. A alusão à máscara é significativa posto que pessoa em latim tem esse mesmo sentido: “é clássica a noção de persona latina: máscara, máscara trágica, máscara ritual, máscara de antepassados” (MAUSS, 1974, p. 225). Essa etimologia evoca o quanto o indivíduo é composto pelos itens e forças sociais que são inscritos no seu corpo conferindo-lhe identidade; mas também sugere que há uma margem de liberdade na qual ele transita escolhendo dentre o conjunto social que se lhe apresenta os itens que melhor se conformam a seus objetivos e propósitos. A persona, enquanto produção social, vive e repete os instintos criadores coletivos. Enquanto máscara, ela coloca em cena ou participa da encenação dos tipos sociais, assim como a máscara pode vir a ser articulada, agenciada, administrada e manipulada por aquele que a usa. 72 217 CÉSAR SABINO [...] tatuar-se não é, exatamente, como se poderia imaginar, adquirir outro corpo, simplesmente um pouco mais belo, melhor decorado, mais facilmente reconhecível: tatuar-se [...] é sem dúvida algo muito diferente, fazer com que o corpo entre em comunicação com poderes secretos e forças invisíveis. [...] [O] signo tatuado, [a] pintura, deposita [...] no corpo toda uma linguagem [...] enigmática, toda uma linguagem cifrada, secreta, sagrada, que evoca para este mesmo corpo a violência do deus, a potência surda do sagrado ou a vivacidade do desejo (FOUCAULT, 2013, p. 12). Canevacci (1993) ressalta que, nas grandes megalópoles, a linguagem visual assume um papel efetivo pela sua instantaneidade. Propõe que o antropólogo das sociedades complexas preste detida atenção à linguagem dos signos visuais, pois essa linguagem ressalta o hibridismo, ou sincretismo cultural, que vem imperando nos centros urbanos. Esse hibridismo consolida o corpo como mapa social expressando narrativas individuais e coletivas simultaneamente. Essas narrativas – da mesma forma que a bricolage – são (re)construídas por diversos itens, termos ou elementos, pertencentes a culturas diversas tanto no tempo quanto no espaço. Dessa maneira, por exemplo, uma mulher de ascendência germânica pode estampar tatuagem “tribal”, marca ancestral de homens taitianos com um entrelaçado celta recriando da mitologia à concepção de forças do infinito. Tudo isso com o objetivo, consciente, de não apenas tornar-se singular, mas de se identificar – muitas vezes inconscientemente – com um determinado grupo que frequenta locais (os, por eles chamados, “points”), organizações e instituições consumindo produtos específicos, ouvindo determinados tipos de música, e assim por diante. Essa construção identitária, ao mesmo tempo concêntrica e excêntrica, está diretamente relacionada à dimensão visual das interações sociais. Nesse aspecto, há a necessidade de expor signos, sejam eles músculos ou desenhos, corte e cor de cabelo, roupas ou ideogramas inscritos na pele. Esse apelo visual das sociedades complexas se faz presente delimitando espaços, demarcando diferenças fazendo com que – no caso específico - os componentes das academias entrem no cenário iluminado da vida urbana com sua mise-en-scène singular inerente aos fluxos culturais preponderantes na cultura globalizada (HANNERZ, 1997; DIÓGENES, 1998), superexpondo-se em um jogo que pode ser exemplificado pela produção do corpo-imagem nos campeonatos de fisiculturismo, nos quais cada fibra muscular deve ser mostrada e demonstrada em uma espécie de 218 DROGAS DE APOLO dissecação em vida do competidor73. Mostrar, expor as entranhas, exibir, alardear, ser notado; não apenas ostentando os adereços que compõem a sociedade de consumo, mas sendo o próprio adereço: “o corpo humano se torna um corpo panoramático que reflete, retroage e projeta infinitas combinações de sinais ventríloquos” (CANEVACCI, 1993, p. 23). 5.1 PELE DE HOMEM. PELE DE MULHER A princípio, as tatuagens nas academias de musculação, apesar de todo o atual debate de gênero, dividem-se entre femininas, masculinas e unissex. Mulheres tendem a tatuar determinado grupo de figuras, tais como rosas e flores em geral, estrelas, borboletas, lua, sol, personagens femininas de HQ’S e mangás, beija-flores, gatos e fadas. Já ideogramas, figuras tribais, palavras e frases em letra gótica, símbolos da computação, códigos de barra, corações, duendes, deuses ou deusas mitológicos são símbolos inscritos tanto na pele de homens quanto de mulheres. Em geral (para tudo isso existem sempre exceções), águias, cruzes, panteras, tigres, dragões, demônios, caveiras, armas, arame farpado, sereias, mulheres nuas, tubarões, figura da morte com foice e capuz e cães de guarda são tatuagens eminentemente masculinas. Os locais do corpo também definem o gênero: mulheres tatuam na nuca, no cóccix (principalmente as chamadas tribais), nos seios, nas nádegas e nas virilhas, às vezes na omoplata, nos pés e calcanhares. Já entre os homens, os desenhos situam-se principalmente no bíceps (em geral na parte exterior, mas também há na interior), nas costas, nas panturrilhas e no antebraço, mais raramente, embora de forma crescente, na barriga e peito. Essas divisões estabelecidas pelos desenhos inscritos na pele dos indivíduos que pertencem ao grupo estudado configuram a manutenção, diga-se a reprodução, da gramática das diferenças inerentes às relações de gênero – mas não só –, já que a própria escolha do desenho está inserida em um sistema (adquirido pelo indivíduo Esse movimento de estetização de exibição das entranhas tem seu maior expoente artístico atual no médico alemão Gunther von Haggens criador da escola chamada body work. O médico-artista inventou um processo de plastificar cadáveres chamado plastination. Essa técnica conserva os corpos mortos como se fossem seres vivos, transformando-os em uma espécie de bonecos hiperealistas que são expostos em galerias de arte. Em 2002 von Haggens realizou uma exposição na Atlantis Gallery de vários cadáveres recolhidos em países diversos. Havia, por exemplo, entre eles, uma mulher grávida de oito meses, com o útero aberto mostrando o feto. O trabalho do médico parece estar alcançando notoriedade, pois a televisão inglesa, apresentou um programa denominado “Autópsia ao Vivo”, em que ele apareceu para milhões de espectadores dissecando um cadáver. Enquanto retirava o fígado e o pulmão de um indigente, com o auxílio de seus assistentes, comentava para o público o péssimo estado dos órgãos. Para uma melhor visualização, erguiam a massa encefálica e a vesícula do defunto diante do público presente e das câmeras. A audiência foi alta. (Jornal O Globo. Sábado, 12 de abril de 2003. Caderno Prosa e Verso. p. 2). 73 219 CÉSAR SABINO mediante sua socialização) classificatório que expressa um gosto, a estrutura lógica de uma organização, percepção e apreensão (valoração) da realidade. Pensando escolher seu desenho, seja ele um beija-flor, uma carpa japonesa ou uma caveira, o indivíduo é escolhido por todo um conjunto de representações e práticas, estruturas subjetivas e objetivas reproduzidas pelo estilo de vida que ele articula e imita naquele momento de suposto livre arbítrio (EDMONDS, 2002). Esse sistema inconsciente aparta, organiza, distingue e constitui as (dis)posições sociais alocando o indivíduo em uma, e exprimindo a sua, condição de gênero e classe – ou seja, como o estruturalismo já mostrou e demonstrou, ele apresenta uma lógica Inconsciente que ordena pensamento e mundo. A tatuagem – surgida, como dito anteriormente, entre aqueles anteriormente considerados escória social – tornou-se emblema, ao menos nos casos das academias cariocas de musculação, de um ethos de classe média que confere à exposição estética uma hipervalorização. Ela apresenta-se como o adorno e o acabamento distintivo daqueles que buscam, no cultivo do corpo, dos músculos e da ausência de adiposidade, o sinal de destaque e superioridade sensitiva característicos de determinada parcela das camadas médias urbanas atuais. Esses extratos engendram uma cultura das sensações – portanto imediatista – relacionada ao consumo enquanto distintivo de cidadania e poder hierárquico (CANCLINI, 1995). Cultura diretamente ligada à imagem – boa forma, sensualidade e juventude. Essas estruturas subjetivas e objetivas são inscritas nos corpos que as produzem e são por eles reproduzidas, em um duplo processo de “interiorização da exterioridade e exteriorização da interioridade” (BOURDIEU, 1983, p. 47). O aspecto volátil dessa ética estética pertencente às parcelas da sociedade de consumo é reiterado pelo fato de que, tendo sido a princípio inscrições feitas na pele para o resto da vida, ou seja, supostamente inalteráveis, hoje os grupos de tatuados adotam, por vezes, a estratégia de realizar outro desenho por cima da figura que já não mais satisfaça seu usuário; o que chamam de “cobrir a tatuagem”. A tatuagem também nesse aspecto torna-se um objeto de consumo74. É necessário não confundir a lógica consumista com a lógica da diferença presente na filosofia de Deleuze ou de Nietzsche. Alguns sociólogos que teorizam sobre o que entendem ser a pós-modernidade – a época atual – tendem a ver, no pensamento e nas práticas da sociedade de consumo, a evocação coletiva das filosofias de Nietzsche ou Deleuze, como se, repentinamente, o que compreendemos como o ocidente capitalista tivesse produzido uma ruptura com sua milenar tradição metafísica e instaurado inconscientemente filosofias imanentistas enquanto práticas coletivas, o que obviamente não ocorreu e que não passa de uma confusão dos eruditos entre coisas da lógica e lógica das coisas como escreveu Marx. 74 220 DROGAS DE APOLO Quadro 7 – Tatuagens e classificação de gênero (+) Agressivo/ Forte Homens Unissex Mulheres Pitbull Tribal Borboleta Tigre Duende Beija-flor Águia Marca (Nike, Adidas Estrela Pantera Coração Lua Tubarão Deuses(as) Rosa Caveira Ideogramas Mantras Armas Frases etc. Fada Morte (-) Delicado/ Fraco Anjos etc. Sol etc. Corpo Masculino Ambos Bíceps Regiões que demarcam a sensualidade masculina (força, poder, domínio) Deltoides Antebraço Costas Corpo Feminino Nuca Regiões Corporais relativas ao sexo são mantidas Ombros (trapézio) Nádegas Cóccix Panturrilha Seios Peito Coxas Regioes que demarcam a sensualidade feminina. Fonte: o autor Mas o que querem dizer as tatuagens? Qual sua função no contexto estudado? Qual o sentido do ato de tatuar-se? Para adiantar uma possível via interpretativa, podemos repetir, a respeito das pinturas corporais ameríndias, que elas, de uma forma ou outra, [...] conferem ao indivíduo sua dignidade de ser humano; operam a passagem da natureza à cultura, do animal ‘estúpido’ 221 CÉSAR SABINO ao homem civilizado. Em seguida, diferentes quanto ao estilo e à composição [...] expressam, numa sociedade complexa, a hierarquia dos status. Possuem, assim, uma função sociológica. (LÉVI- STRAUSS, 2000, p. 183) O desenho pode significar, para aquele que o tem em seu corpo, uma iniciação, o pertencimento, a identificação e a aceitação em um grupo determinado: [...] mandei esse dragão porque todo o pessoal que conheço tem tatuagem na academia, e no tatame, os caras mais ‘feras’ têm as mais ‘iradas’, as mais ‘maneras’... aí mandei esse dragão no braço... agora quero fazer um pitbull aqui nas costas (Carlos. 23 anos. Estudante, fisiculturista amador e lutador de jiu- jitsu). Também: [...] ah, fiz a borboleta na nuca ano passado... a galera toda lá do curso tinha, aqui na academia as garotas todas têm tattoo e piercing, cê sabe, né? É moda, sei lá... aí eu mandei essa aí na nuca e depois botei o piercing no umbigo... minha mãe reclamou muito, não me deu o dinheiro pra fazer, aí eu comecei a vender uns colares e pulseiras que eu mesma fazia e juntei dinheiro e fiz. (Tatiana. 18 anos. Estudante). Ainda: Eu tava a fim de fazer porque sempre achei bacana; aí, minhas amigas todas fizeram e os namorados acharam ‘maneiro’; aí juntei dinheiro e fui no Banzai [loja de tatuagem situada no bairro da Tijuca] e fiz essa flor aqui na virilha [vira abaixando um pouco a bermuda de lycra e mostrando a tatuagem]. Doeu muito, cara, uma dor horrível, mas valeu a pena (Carol. 24 anos. Advogada). A figura estampada na pele permite a distinção como signo que liga a outros signos de consumo representantes de ideologias processadas pela mídia, delimitando as fronteiras identitárias. Assim, o [...] sofrimento de ser escrito pela lei do grupo [a dor] vem estranhamente acompanhado por um prazer, o de ser reconhecido, de se tornar uma espécie de palavra identificável e legível numa língua social, de ser mudado em fragmento de um texto anônimo, de ser inscrito em uma simbólica sem dono e sem autor (CERTEAU, 2002, p. 232). 222 DROGAS DE APOLO Essas mensagens, não raro, estão relacionadas a uma suposta rebeldia presente nos movimentos estético-musicais de massa: [...] eu tenho o Bob Marley nas costas, ainda não acabei de fazer, vai demorar um tempo porque tem que colorir toda e é grande, pega toda as costas como cê tá vendo, né? Mandei essa tattoo por que gosto de reggae, me identifico com a mensagem do Bob, desde moleque eu gosto... de vez em quando aperto um, claro, né?, Pra acalmar... então a tattoo tem tudo a ver...é um lance cabeça e pele, sei lá. (Filipe. 24 anos. Estudante, fisiculturista e skatista amador). [...] esse duende no meu braço direito tá ‘carburando’ [fumando maconha], tá vendo? E aqui no esquerdo eu tenho a planta [vira mostrando um desenho de uma folha de cannabis], fiz as duas quando tinha dezoito anos porque desde moleque eu gosto de punk e rock pesado, tenho uma banda e todo mundo lá da banda fuma de vez em quando, eu não podia ser diferente. (Rafael. 28 anos. Economista). Perguntados se o uso de maconha não era uma contradição com a prática esportiva, todos aludiram ao uso de esteroides anabolizantes como pior do que a “erva” como sugere este relato, um entre muitos: [...] todo mundo se droga aqui... chega o verão e até a ninfetinhas tomam bomba pra ficar saradas [...] por que eu não vou fumar um baseado de vez em quando pra relaxar? A erva é natural, não faz mal, já bomba é sintética, dá câncer e o c***** a quatro. (Fábio. 30 anos. Funcionário público). Representações e práticas, portanto, podem ser sugeridas pelos símbolos que os integrantes desse grupo urbano inscrevem na pele. As tatuagens mais comuns entre os fisiculturistas e frequentadores assíduos das academias são aquelas que, para eles, expressam força, autoridade e poder; esse último se relaciona diretamente à virilidade. Pode-se dizer que, junto a esses símbolos epidérmicos por nós destacados, também aparecem aqueles ligados ao uso das drogas: ratos com corpo de fisiculturista e duendes musculosos fumando maconha, além de cogumelos de todos os tamanhos em alusão ao alucinógeno chá de cogumelo e o próprio desenho da planta cannabis sativa. Essas alusões ao mundo das drogas merecem uma hipótese. O rito de iniciação de um marombeiro – aquele que vem a se tornar um usuário, praticante ou frequentador assíduo das academias (os professores de educação física sempre chamam de aluno), futuro fisiculturista – está 223 CÉSAR SABINO relacionado ao uso coletivo, e por vezes compartilhado, dos esteroides. A maioria dos fisiculturistas utiliza essas substâncias para melhorar sua performance. A convivência com esse mundo repleto de substâncias químicas é, portanto, fato cotidiano e praticamente inevitável para os atuais frequentadores assíduos das academias de musculação, visto que o próprio uso coletivo desses “elixires da força” e da saúde, compreendida enquanto boa forma, constitui-se em um dos principais fatores de aceitação e construção de identidade do grupo. A droga, portanto, como já disse, faz parte do processo ritual de iniciação, rito de instituição, estando presente, de forma duradoura, no cotidiano dessas pessoas. Tatuar sobre os músculos símbolos relacionados ao consumo de drogas reitera e afirma o pertencimento do tatuado àquelas estruturas objetivas e subjetivas que o perpassam e o constituem. Quando a tatuagem fala sobre a iniciação às drogas, ela articula um processo que permite ao tatuado se fazer e se perceber como parte de um grupo. A tatuagem, no caso dos fisiculturistas, pode representar uma extensão e complemento do significado dos músculos e de tudo aquilo que está envolvido no seu cultivo. Figuras de cães ferozes, caveiras e cruzes, morte, e símbolos de super-heróis, tigres, panteras e dragões, motivos indígenas ou das sociedades do pacífico, enfim animais ou emblemas considerados perigosos, desafiadores ou misteriosos podem dizer, de acordo com Diógenes (1998): cuidado sou perigoso! O cão pitbull, por exemplo, tido por eles como um dos mais ferozes e de temperamento explosivo, surge na fala dos marombeiros como símbolo de força e daquilo que consideram qualidades: agressividade, destemor, ferocidade e potência: “esse pitbull aqui [aponta para a panturrilha] é o meu mascote... ele me dá força” (Pedro. 25 anos. Estudante). Ou: A tattoo dessa fera aqui, no braço [...], nesse braço aqui, é do meu pitbull [...] eu me identifico com essa raça de cachorro, tem um movimento aí que quer acabar com eles, já ouviu falar, né? Dizem que o bicho é violento e coisa e tal, mas não vão conseguir, a gente que luta, que malha que gosta de esporte radical, a gente se amarra nesse bicho, vamos continuar criando. Ele é meio que nosso símbolo... forte. A mordida dele tem mais de uma tonelada de pressão, é isso aí, quero que meu soco também fique com uma tonelada de pressão [...] (João. 28 anos. Comerciante). No caso feminino, as figuras remetem à delicadeza, sensualidade, proteção e submissão. Desenhos que parecem acentuar esteticamente a feminilidade – os encantos, particularmente, para os olhos de determina224 DROGAS DE APOLO dos homens, ou de um tipo de masculinidade, do que para eles é a mulher (FREYRE, 1986). Figuras que, como mostra o quadro anterior, são inscritas, geralmente, em regiões específicas do corpo: quadris, ventre, nádegas, seios, virilhas, coxas, nuca. Se no caso masculino os desenhos ressaltam a muscularidade e a masculinidade de regiões do corpo que representam a virilidade e a força, portanto a honra de ser homem, no caso feminino, os desenhos muitas vezes parecem destacar o inverso, ligando o poder feminino diretamente à sedução e à sexualidade. Para os marombeiros, a tatuagem torna-se um adorno para as qualidades físicas diretamente ligadas ao gênero e às hierarquias de poder e relações de força e dominação a ele inerentes. Mesmo aquelas figuras unissex, que poderiam dar a impressão de mudança de condição disfarçada pela mudança de posição, são inscritas nas regiões específicas do corpo nas quais ficam demarcadas as peculiaridades do poder feminino radicado na dependência da dominação masculina. O desenho aí surge como adorno das qualidades sensuais e sedutoras da mulher – mesmo quando suposto sinal de “liberação” – sugerindo que o uso do corpo e da estética feminina continua subordinado e radicado no ponto de vista masculino: [...] o corpo feminino, ao mesmo tempo oferecido e recusado, [nos jogos de sedução], manifesta a disponibilidade simbólica que [...] convém à mulher, e que combina um poder de atração e de sedução...adequado a honrar os homens de quem ela depende ou aos quais está ligada, com um dever de recusa seletiva que acrescenta ao efeito de ‘consumo ostentatório’ o preço da exclusividade (BOURDIEU, 1999, p. 40-41). Demarcar regiões corporais que parecem ser o alvo da cobiça sexual masculina funciona como uma potencialização da sedução: [...] a gente faz tatuagem na nuca, na virilha, perto do bumbum... é claro, né? São lugares de mulher fazer tattoo [...] por quê? Porque dá um tchan, destaque naquela parte que você acha que você tem de legal, que atrai os caras e deixa as mulheres com inveja, que te dá [...] charme... Se a mulher tem uma cintura bonita, fininha, um quadril largo, ela manda logo uma tribal no cóccix ou na cintura uma inscrição. Se ela tem um peitão bacana manda uma no peito, e aí vai [...] sacou? Muita mina diz que faz na nuca, no cóccix que é pra não enjoar da tattoo, porque ali ela não fica vendo o [...] tempo todo, tudo bem, pode até ser, mas é muito mais pra dar um destaque naquela parte do corpo que ela acha legal. (Juliana. 20 anos. Estudante). 225 CÉSAR SABINO Contudo nem todas criam um argumento a respeito da função da tatuagem: “fiz tattoo porque gosto, não tem por que [...] achei legal e mandei no tornozelo e panturrilha, depois esse ideograma na nuca que quer dizer vida e amor; é isso fiz porque fiz, e pronto” (Mariana. 25 anos. Jornalista). Desse modo, ao se servir do seu próprio corpo a mulher tatuada, ao menos nesse caso específico, parece naturalizar uma ética estruturada culturalmente que a constrói como ser-para-o-outro. A tatuagem surge como uma espécie de adorno que realça e sensualiza determinados dotes físicos conferindo à portadora o poder (ou o contrapoder75) e o quantum da sua feminilidade construída como complemento e contraposição da masculinidade que a define e a qual ela deve seduzir. No entanto, não é esse aspecto de similitude entre supostas qualidades animais e humanas que organiza, de maneira efetiva, a realidade das pessoas em suas relações sociais por intermédio da arte epidérmica; mas esse é apenas o sentido que essas pessoas conferem à realidade de suas relações. É preciso compreender a lógica inconsciente que sustenta o processo. Confusão similar fez a antropologia conceber, por exemplo, o totemismo como a relação direta entre qualidades animais e qualidades sociais. Na verdade, segundo Lévi-Strauss (1975a, p. 102): “não são as semelhanças, mas as diferenças que se assemelham”. O que interessa mais ao pesquisador é entender o funcionamento da lógica classificatória que utiliza animais, plantas e fenômenos diversos como elementos relacionais diversos (o pensamento elaborando oposições, contraposições, associações, disjunções etc.) para ordenar o mundo, e não repetir que existe uma relação direta de homologia ou similaridade entre os termos76. A lógica inconsciente presente nas tatuagens ordena a diferença e a singularidade daqueles que utilizam os signos marcando suas distinções e articulando nesse processo relações de poder constitutivas das hierarquizações do pensamento e das práticas sociais e individuais. Não é porque pareço um pitbull que adoto sua imagem como signo, mas é porque o pitbull faz oposição à fada que o adoto como operador de minha distinção social em relação àquelas pessoas que usam Bourdieu escreve: “simbolicamente votadas à resignação e à discrição, as mulheres só podem exercer algum poder voltando contra o forte sua própria força, ou aceitando se apagar, ou, pelo menos, negar um poder que elas só podem exercer por procuração (como eminências pardas)” (1999, p. 43). 76 É o que difere em cada série que é significativo. As séries de diferenças percebidas no mundo natural, entre animais, plantas, fenômenos etc. servem de código para instituir e designar as diferenças no mundo sociocultural. As semelhanças são entre dois sistemas de diferença, portanto. Assim se pode significar as diferenças relativas à sociedade, ou suscitá-las, se necessário for, por intermédio das diferenças repertoriadas do mundo natural. (HÉNAFF, 2000, p. 407) 75 226 DROGAS DE APOLO o signo da fada ou algo similar. Nesse movimento, as imagens também agem, não apenas são agidas, induzindo pessoas a se relacionarem posto que as classificam de uma forma ou outra em estilos estéticos inerentes a uma época, um grupo, uma classe, etnia ou cultura, movimentando-as em relações hierárquicas de reciprocidade (MAUSS, 1974c; LÉVI-STRAUSS, 1975a; 1976b; GELL, 1998; BOURDIEU; DARBEL, 2007). Preciso frisar que a tatuagem (assim como o piercing do qual não trato aqui), ao mesmo tempo que fornece um sentimento de singularidade ou individualização ao ator social, classifica-o em um grupo; o que sugere que a ação social, ou a liberdade de ação, sempre se realiza dentro e a partir de uma margem estruturada na qual o capitalismo, em um processo de adequação, adapta-se a toda forma de vanguarda e rebeldia que contra ele pode se posicionar, transformando-a em mercadoria ou bem de consumo. Com efeito, constituiu-se um grande mercado de tatuagens no qual se pode comprar sua “liberdade” estética customizada e alimentar seu sentimento de diferença sem perceber que ele já está perpassado pela axiomática capitalista do lucro. Essa “ética da dissidência”, que busca um espaço alternativo no mundo (FERREIRA, 2007, p. 321), sugere que todo e qualquer movimento de desconstrução ou contrapoder não pode se pautar por fórmulas ou modelos definitivos de ação; como se a mudança social, ou mesmo revolucionária apresentasse um esquema definitivo de transformação social. O capitalismo apresenta um devir constante de adequação a tudo que se coloca nele e contra ele. Uma espécie de cismogênese (BATESON, 2006, p. 219; DELEUZE; GUATTARI, 2010) na qual, para cada movimento do oponente, é realizado um contramovimento de adequação e absorção mercadológica por aquele que é atacado. Ser tatuado era uma forma de marcar sua exclusão, marginalidade e discordância em relação ao sistema. Atualmente virou uma moda que em nada choca ou abala as estruturas de poder simbólico, porém o contrário: pode representar uma adequação ao atual vasto e caro mercado da rebeldia de butique. A rebeldia de fato, ao menos em seus primórdios, jamais pode ser institucionalizada e continuar como tal. 5.2 TATUAGEM E LÓGICA DA IDENTIDADE A classificação triádica (tatuagem de homem, tatuagem de mulher e unissex), representada pelas figuras desenhadas na pele, tanto de homens quanto de mulheres, talvez faça alusão a uma maleabilidade classificatória relacionada à conquista feminina da igualdade entre os sexos. Essa 227 CÉSAR SABINO ambiguidade ilusória apenas reitera que a mulher mudou de posição, mas não mudou de condição, pois a disciplina que tradicionalmente se impõe ao seu corpo, delimitando sua situação em contraposição à condição masculina, ressalta a significação moral inscrita não apenas na sua aparência mas também em seus atos: costas a serem mantidas retas, andar requebrado e malemolente, quadril empinado, ausência de barriga, pernas fechadas ao sentar, seios propositadamente enfatuados, olhares de soslaio etc., como se a feminilidade se medisse pela arte de se fazer delicada ou pequena (BOURDIEU, 1999; SIMMEL, 1993). Essas técnicas do corpo feminino têm por efeito paradoxal, por meio da demonstração de disciplina e contenção, da oferta e da negação da oferta, da suposta dissimulação, concretizar e reiterar a ordem da sedução e da beleza socialmente construída, mostrando e demonstrando, mesmo que circunstancial e sorrateiramente, os atrativos do corpo relacionados diretamente a sua sexualidade, como se toda mulher fosse seu sexo. Tem sido comum à sociologia, e por vezes à antropologia (principalmente a denominada antropologia urbana, mas não apenas), a abordagem teórica que generaliza, ou universaliza, a dominação masculina típica de sociedades complexas. Assim, grosso modo, procede as abordagens de Lévi-Strauss, (embora tenha dito que inverter os termos de gênero em nada mudaria a lógica do parentesco), e Bourdieu. Porém, novos estudos direcionados às sociedades tribais não estratificadas da Amazônia e Nova Guiné não aceitam plenamente tal proposição de universalidade, reiterando que nessas sociedades, em geral, as relações entre os gêneros são permeáveis e mais equilibradas (OVERING, 1984; LAGROU, 1998; VIVEIROS DE CASTRO, 2002e; GONÇALVES, 2001). De acordo com os autores, esse aspecto pode ser percebido, por exemplo, nas práticas do “couvade”, quando, após o parto, o homem também fica de resguardo; essa prática seria inerente às sociedades nas quais as tarefas sexuais são relativamente flexíveis e o poder e o status feminino, altos. A couvade talvez sirva para estabelecer as tarefas do pai na vida da criança e para equilibrar as funções masculinas e femininas na criação dela. Outro comportamento ritual que demonstra a imitação masculina do poder reprodutivo feminino é o “saignade”, ritual de sangramento que imita a menstruação. Embora o sangue menstrual seja universalmente temido em geral, em muitas culturas acredita-se que ele carrega grande poder, como fonte e causa da saúde superior das mulheres e também causa do seu rápido crescimento. Assim, entre os Menihaku da Amazônia, existem 228 DROGAS DE APOLO inúmeras ocasiões nas quais os homens menstruam simbolicamente, sendo a mais significante o ritual de perfuração das orelhas. Entre os Sambia das terras altas da Nova Guiné, o sangue menstrual também é identificado com a vitalidade e a longevidade das mulheres. Para garantir saúde similar e longevidade, os homens Sambia produzem um ritual doloroso e brutal de imitação da menstruação; nesse, provoca-se o sangramento do nariz nos jovens durante cerimônias de iniciação (COUNIGHAN, 1996). Essa mesma sacralidade do sangue menstrual, e exaltação do poder feminino, foi percebida por Osório (2002) em relação ao grupo de praticantes da bruxaria moderna no Rio de Janeiro, denominado Wicca. Contudo, se as relações são maleáveis e mais igualitárias, há sempre uma espécie de negociação de práticas em um estado instável de poder. A tatuagem unissex pode conferir ilusão igualitária a quem apressadamente a observa, posto haver nela uma suposta maleabilidade simbólica. Porém, o problema da lógica triádica, nas classificações dos desenhos da epiderme, remete diretamente às classificações ternárias destacadas no pensamento selvagem estudado por Lévi-Strauss (1975a; 1975b), que sugeriu o caráter contínuo (ou de continuidade dinâmica do mundo) do raciocínio selvagem: “as sociedades que denominamos primitivas não concebem que possa existir uma fossa entre os diversos níveis de classificação; representam [estes níveis] como as etapas ou os momentos de uma transição contínua” (1975a, p. 202). De acordo com o autor, na classificação primitiva, não há a concepção estática da realidade, o contrário das classificações bodybuilders – mas essa é percebida como processo dinâmico, devir, com ausência de elementos formais estanques, como poderia sugerir uma análise apressada do binarismo presente nas temáticas estruturalistas. A binaridade lógica, ou as partições ontológicas, apresentaria uma solução original no pensamento selvagem: sendo relação entre contínuo e descontínuo, o universo estaria “representado em forma de um continuum composto de oposições sucessivas” (1975a, p. 205). As oposições binárias estáticas não estariam presentes nessa onto-lógica na qual a identidade não seria nada mais do que um caso momentâneo do devir, fluxo ou diferença. É certo que uma antropologia das sociedades complexas, ou urbanas, não deveria se preocupar apenas em encontrar, nas culturas e sociedades nacionais de tradição cultural europeias ou eurasiáticas, a mesma lógica, ou sentido, constatada entre os “primitivos”, mas, ao contrário, buscar as diferenças entre tais sociedades. Uma concepção nublada do estruturalismo, apontada por Viveiros de Castro, levou inúmeros pesquisadores 229 CÉSAR SABINO de sociedades complexas, de modelos europeus ou asiáticos, a fazerem projeções de termos de uma cultura para outra. Esse equívoco apenas demonstra que uma projeção efetiva deveria ser a do tipo geométrico em que as relações fossem preservadas e não os termos: [...] o ‘equivalente’ do xamanismo ameríndio não é o neo-xamanismo californiano, ou mesmo o candomblé baiano. O equivalente funcional do xamanismo indígena é a ciência. É o cientista, é o laboratório de física de altas energias, é o acelerador de partículas. O chocalho do xamã é o acelerador de partículas de lá. (VIVEIROS DE CASTRO, 2002c, p. 489). Provavelmente, a tradicional busca das culturas ocidentais pelo imutável, característica da metafísica e da cultura ocidental, possa ser expressa pelas tatuagens circunstanciais – é o nome dado às tatuagens em frases. Essas buscam eternizar um instante da vida (circunstâncias), um momento, uma data, uma relação por meio da fixação na pele de um nome, ou mesmo um texto, às vezes com supostos poderes mágico-protetores. Apresentar-se-iam sempre em forma de dizeres e dísticos que podem vir a compor ou não textos, ao contrário dos outros modelos de inscrição epidérmica. Um fisiculturista e instrutor de musculação de uma academia no bairro do subúrbio exibe, além de outras tatuagens espalhadas pelo corpo, uma escrita circunstancial com letras góticas com a palavra culturismo no antebraço: Mandei escrever culturismo no antebraço para todas as pessoas verem que a musculação e o fisiculturismo são a minha vida, a razão do meu viver; tudo que tenho consegui por intermédio do que faço... então mandei escrever isso aí, pra todo mundo ver... ainda quero mandar escrever o nome da minha mãe nas costas, ela pra mim é mulher mais importante da minha vida (Pedro. 35 anos. Instrutor de musculação). Ainda uma aluna assídua das salas de musculação da mesma academia: Eu tatuei na minha pele o que tenho na minha mente: palavra Deus em inglês... tatuei porque acho que tenho que lembrar a todo instante dele, agradecer o que tenho, saúde pra correr atrás do que preciso, por isso tatuei no pulso... também pra todo mundo ver que me protejo, sei lá, é meio amuleto também... um poder superior que você carrega no seu corpo. (Carol. 18 anos. Estudante). Se, a respeito das tatuagens e pinturas entre tribos “primitivas” e neotribos urbanas, uma projeção apressada fosse feita, provavelmente se concluiria que a classificação triádica das tatuagens remeteria a uma 230 DROGAS DE APOLO concepção dinâmica de universo, na qual a diferença se apresentaria como constitutiva da realidade. Porém não é isso que ocorre. Se os termos forem deixados de lado e as relações transpostas, perceberemos que, apesar de possíveis semelhanças nas classificações entre fisiculturistas e ameríndios, a lógica relacional de um e de outro é simetricamente invertida. O aspecto triádico ameríndio está relacionado ao continuum da realidade compreendida como processo e instabilidade; esse, por sua vez, manifesta-se, tanto em um grupo quanto em outro, pela ampla variedade de desenhos que, se algumas vezes possuem os mesmos conteúdos (tema), variam amplamente na forma (estilo). Por exemplo, entre os índios do grupo Pano na Amazônia, as imagens corporais permitem a identificação imediata do grupo ao qual pertence o indivíduo: [...] particularmente elaboradas são as tatuagens dos diversos grupos da área Juruá-Purus, caracterizadas por motivos angulares [...] cuja composição varia de grupo para grupo, tornando possível a imediata identificação” (SIGNORINI, 1968, p. 179 apud ERIKSON, 1986, p. 192). Similarmente, as tatuagens entre os praticantes frequentes das academias de fisiculturismo cariocas classificam indivíduos pertencentes a subgrupos específicos em uma lógica de “assimilação do mais longínquo conjuntamente a uma diferenciação máxima vis-à-vis do próximo” (ERIKSON, 1982, p. 192). Os mesmos desenhos, com suas variantes, podem ser encontrados entre subgrupos diferentes da mesma forma que no seio de um mesmo subgrupo podem coexistir motivos bastante diferentes. Uma águia pode ser representada de inúmeras maneiras, aludindo a significados distintos para seções distintas, ou ter o mesmo significado para um grupo específico, porém representada por estilos diferentes; formas que tendem a demarcar a singularidade daquele que porta o desenho. Essa diversidade entre os ameríndios faz alusão à lógica da diferença presente entre eles e na qual o mundo é visto e compreendido como fluxo, e o que para nós é considerado natureza, para eles existe enquanto totalidade em devir; “um todo interconectado de seres não-humanos com intencionalidade e agência semelhantes à nossa, capazes de adotar um ponto de vista” (LAGROU, 1998, p. 164). Philippe Descola sugere a existência de modelos diversos de “ecologia simbólica”: a naturalista (ocidental) na qual vigora uma relação metonímica e natural entre natureza e sociedade; sendo a realidade, em última análise, 231 CÉSAR SABINO radicada na Natureza: os seres humanos teriam sua “essência” biológica como animais, diferenciando-se deles apenas pela Cultura. A abordagem “totêmica”, na qual a relação é puramente diferencial e metafórica, sendo uma série comparada por analogia a outra série e, por último, o modo “anímico” (vigentes nas cosmologias amazônicas) em que a relação Natureza/Cultura é metonímica e social, ou seja, inversamente às cosmologias ocidentais, essas últimas compreendem o cosmos como Cultura e não Natureza. Objetos e animais teriam sociedades e se veriam como coletividade social; o animismo seria, portanto, um sociocentrismo (DESCOLA, 1992; 1996; VIVEIROS DE CASTRO, 2002e). O processo é conhecido como perspectivismo ameríndio e poderia ser resumido da seguinte forma: O estímulo inicial para esta reflexão foram as numerosas referências, na etnografia amazônica, a uma concepção indígena segundo a qual o modo como os seres humanos vêem os animais e outras subjetividades que povoam o universo – deuses, espíritos, mortos, habitantes de outros níveis cósmicos, plantas, fenômenos meteorológicos, acidentes geográficos, objetos e artefatos -, é profundamente diferente do modo como estes seres vêem os humanos e a si mesmos. Tipicamente, os humanos, em condições normais, vêem os humanos como humanos e os animais como animais; quanto aos espíritos, ver estes seres usualmente invisíveis é um signo seguro de que ‘condições’ não são normais. Os animais predadores e os espíritos, entretanto, vêem os humanos como espíritos ou como animais predadores: o ser humano vê a si mesmo como tal. A lua, a serpente, o jaguar e a mãe da varíola o vêem, contudo, como um tapir ou um pecari que eles matam, anota Baer sobre os Machiguenga. Vendo-nos como não-humanos, é a si mesmos que os animais e espíritos vêem como humanos. Eles se apreendem como, ou se tornam, antropomorfos quando estão em suas próprias casas ou aldeias, e experimentam seus próprios hábitos e características sob a espécie da cultura: vêem seu alimento como alimento humano (os jaguares vêem o sangue como cauim, os mortos vêem os grilos como peixes, os urubus vêem os vermes de carne podre como peixe assado, etc.), seus atributos corporais (pelagem, plumas, garras, bicos, etc.) como adornos ou instrumentos culturais, seu sistema social como organizado identicamente às instituições humanas (com chefes, xamãs, ritos, regras de casamentos, etc.). Esse ‘ver como’ refere-se literalmente a perceptos, e não analogicamente a conceitos, ainda que, em alguns casos, a ênfase 232 DROGAS DE APOLO seja mais no aspecto categorial que sensorial do fenômeno; de qualquer modo, os xamãs, mestre do esquematismo cósmico dedicados a comunicar e administrar as perspectivas cruzadas, estão sempre aí para tornar sensíveis os conceitos ou inteligíveis as intuições. Em suma, os animais são gente, ou se vêem como pessoas. Esta concepção está quase sempre associada à ideia de que a forma manifesta de cada espécie é um envoltório (uma roupa) a esconder uma forma interna humana, normalmente visível apenas aos olhos da própria espécie ou de certos seres transespecíficos, como os xamãs. Quando estão reunidos em suas aldeias na mata, p. ex., os animais despem as roupas e assumem sua figura humana. Em outros casos a roupa seria como que transparente aos olhos da própria espécie e dos xamãs humanos. (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 350-351). Essa lógica diverge daquela presente na tradição principal da filosofia ocidental e no seu senso comum. Praticantes de fisiculturismo, como quaisquer outros, prezam por um paradigma classificatório identitário, entendido (de forma avessa à dos ameríndios) enquanto negação da diferença, da instabilidade, da mudança e do devir; busca constante da essência imutável do cosmos e de todas as coisas, essência que, em último caso, remete a um Deus ou Ser imutável. Enquanto, para um grupo, o movimento expresso pela variação infinita de formas com o mesmo tema significa o ser da diferença; para outro, o mesmo movimento busca demarcar a identidade do Ser contra a diferença, compreendida como um erro em relação ao imutável ou Mesmo. A tatuagem expressaria a concepção inconsciente de que o cosmos não é um devir, um tornar-se imanente, e sim parte volátil de uma realidade metafísica essencialmente imutável. Se, no pensamento domesticado ou dito ocidental, a identidade é ausência de diferença, o que leva à busca da essência estática do cosmos, no pensamento ameríndio a identidade é um caso particular, circunstancial e delimitado da diferença, o que o faz perceber os seres humanos, animais e todas as coisas como fluxos interconectados, intercambiáveis e intermitentes (VIVEIROS DE CASTRO, 2000a). Sem embargo, repetimos a mesma variabilidade, praticamente infinita, das figuras tatuadas, existente entre as culturas expressando, em última análise, sentidos opostos. No caso dos fisiculturistas (e frequentadores em geral), essa variabilidade é representada pelo fato de o mesmo desenho ser realizado em estilos diversos (tradicional, oriental, new school, tribal etc.). 233 CÉSAR SABINO Há, por exemplo, o estilo tribal que pode ser visto em variações, tais como a celta, a samoana ou taitiana; há o estilo biomecânico que representa figuras com formas cibernéticas; há o oriental com desenhos inspirados na arte chinesa e japonesa mormente da Yakusa (no caso japonês), e assim por diante. Esse movimento – de variação da forma e do estilo – é compreendido pelo fisiculturista como busca pela demarcação identitária que delimita a singularidade da sua pessoa vista como essência eterna e marca desejante da estabilidade e não como demonstração da diferença e do devir imanentes ao mundo – processo que ocorre no caso ameríndio no qual “a distância intensiva e extrínseca entre as partes converte-se em diferença intensiva, imanente a uma singularidade dividida” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002f, p. 293). Enquanto a variabilidade e a continuidade para um significam o próprio movimento cosmológico, o movimento incontornável do universo; para outro constituem-se como busca pela singularidade identitária, marca de uma “essência” imutável da natureza- algo inexistente no pensamento indígena. Se a singularidade é, e afirma, o processo, em um aspecto; em outro, o processo deve ser negado pela própria busca da singularidade identitária do Mesmo. 5.3 MAGIA CAPILAR O corpo está no social e o social está no corpo. O agente se sente em casa no mundo – em seu grupo, classe, sociedade etc. – porque esse mundo está nele sob forma de ação, classificação e percepção deste próprio mundo. Assim, “as injunções sociais mais sérias se dirigem ao corpo e não ao intelecto” (BOURDIEU, 2001, p. 172). A percepção que o indivíduo tem da realidade (inclusive a percepção estética) está diretamente relacionada às estruturas classificatórias apreendidas mediante a socialização; as estruturas materializam-se na prática por meio dos, e nos, corpos. É na ação pedagógica cotidiana – na concretude das práticas sociais – que o corpo e o espírito do agente são moldados. Sem embargo, determinados itens, artigos de consumo, ou mesmo condutas características de parcelas dominantes constitutivas das sociedades complexas, são adquiridos e imitados pelas camadas mais baixas com o objetivo de acionar a distinção característica das relações cotidianas de poder. A moda se produz quando um grupo ao qual são conferidos o conhecimento e o reconhecimento de elegância e bom gosto tem seu estilo de vida imitado. Contudo, como ela é basicamente distinção social, ao ser 234 DROGAS DE APOLO imitada pelos grupos considerados socialmente inferiores, o grupo que dita e autoriza a moda abandona o item anterior transmitindo autoridade de distinção a outros modos de expressão social, desautorizando, assim, o modo anterior. A magia social de itens temporários, mas de significados constantes, confere àquele que utiliza determinado artigo, ou atitude distintiva, um suposto poder por extensão. A marca, a etiqueta – em seu duplo sentido de comportamento e de símbolo de consumo –, ou a atitude corporal, confere ao usuário que domina o saber de utilizá-las o poder que elas representam (BOURDIEU, 1983; RODRIGES, 1980). Essa distinção relacionada porta o paradoxo de inscrever o indivíduo em um grupo social determinado, diluindo-o em uma coletividade, ao mesmo tempo individualizando-o e distinguindo-o do grupo: [...] cada forma essencial da vida na história de nossa espécie há suposto, em seu próprio âmbito, uma maneira peculiar de conjugar o interesse pela permanência, a unidade e a igualdade com o interesse pela variação, a particularidade e a singularidade” (SIMMEL, 1991, p. 27). Assim, a moda relaciona-se com os sistemas de valores, as dimensões afetivas e cognitivas da realidade social, expressando o paradoxo da busca pela individualização, pela singularidade, ao mesmo tempo representando o pertencimento a uma tendência coletiva. De acordo com Leach, a dimensão simbólica não só “diz” alguma coisa, como também desperta emoções e, consequentemente, “faz” alguma coisa, faz acontecer coisas. Para o autor, “a essência do comportamento simbólico público é que ele é um meio de comunicação; o ator e sua plateia compartilham uma linguagem comum, uma linguagem simbólica” (LEACH, 1983, p. 141). Leach aponta para o fato de que o cabelo é um símbolo universal; e o penteado, uma característica bastante difundida do comportamento ritual. Em sociedades tradicionais, mudanças marcadas por penteados acompanham, em geral, mudanças de status sexual que ocorre na puberdade e no casamento; contudo o padrão varia. No adulto, a idade é marcada pelo cabelo cortado ou amarrado, mas algumas vezes são as crianças que usam cabelos curtos, enquanto adultos deixam os cabelos caírem soltos sobre o pescoço. Lévi-Strauss (1975a), por outro lado, sugere, mediante a análise dos cortes de cabelo das crianças osago e omahas, que a forma desses cortes servem para destacar o pertencimento do indivíduo às seções das aldeias; ou seja, sob a forma dos cortes e a estética, há uma lógica universal que permite a classificação característica das sociedades humanas. Além disso, da mesma forma que a tatuagem e a moda, 235 CÉSAR SABINO o corte de cabelo, em um processo paradoxal, serviria para singularizar e coletivizar simultaneamente. O cabelo é um dos mais poderosos símbolos de identidade individual e social. Poderoso, primeiro, porque é físico e extremamente pessoal; segundo porque, apesar de pessoal, é também público, muito mais do que privado. As efetivas hierarquias sociais são simbolizadas por intermédio da capilaridade. Gênero, ocupação, idade, fé, etnia, status socioeconômico e até mesmo orientação política, além de disposições e gostos pessoais – que não deixam de remeter às classes sociais – significam posições na gramática social, radicando-se nas relações de poder e força constitutivas das relações entre as pessoas, organizações e instituições. Existe mesmo a possibilidade de elaboração de uma teoria do cabelo que sugeriria uma tríade de oposições sintetizadas da seguinte forma: 1) sexos opostos tendem a ostentar formas opostas de organização capilar; 2) o cabelo da cabeça e o cabelo do corpo tendem a ter significados opostos; 3) concepções de mundo opostas tendem a ostentar formas opostas de cabelo (SYNNOT, 1993; LEACH, 1983). De acordo com Synnot, a complexidade do simbolismo capilar é possível por duas razões distintas: primeiro, embora cabelo cresça na maior parte do corpo, em termos simbólicos, ele pode ser dividido em três macrorregiões de significado social, que podem ser subdivididas em outras: o cabelo da cabeça, o cabelo da face (barba, sobrancelha, bigodes, costeletas, buços, cavanhaques, cílios etc.) e o cabelo das regiões distintas do resto do corpo (peito, coxa, canela, braço, axilas, costas). Cada uma dessas três regiões possui significado ideológico e de gênero. Segundo, o cabelo pode ser modificado de várias maneiras: comprimento, da máquina zero (careca) até os quadris ou mais; cores, formas e estilos podem ser modificados, e até mesmo a quantidade do cabelo pode variar ao ser transformada pela utilização de cabelos artificiais, de outros e apliques. Essa variabilidade possibilita a enorme riqueza simbólica desse instrumento de comunicação que é o cabelo. 5.4 O CABELO DO MALHADOR Nas academias de musculação de fisiculturistas, o cabelo possui um grande poder de comunicação e de consagração de hierarquias. Os homens, em geral, usam os cabelos muito curtos e, não raro, é comum vê-los de cabeça raspada ou com cabelo cortado à máquina, (frequentemente máquina dois ou mesmo um). Essa disciplina capilar pode estar relacionada à forte exigência de disciplina cotidiana para aqueles que desejam construir musculatura 236 DROGAS DE APOLO hipertrofiada. Excessos de gordura e de cabelo são execrados pelos fisiculturistas, como se fossem itens profanos de sua cosmologia. Já em relação às mulheres, um certo excesso em relação à capilaridade é interpretado de forma diversa; elas usam cabelos longos que em geral prendem em rabos de cavalo ou deixam soltos. Há, também entre elas, uma espécie de fixação por cabelos longos, lisos e claros, de forma que tinturas e alisamentos de todos os tipos são muito comuns – há que se reiterar que essa era a moda daquele momento. Se há, por parte de muitas delas, a tendência de preferir cabelos claros, entre eles ocorre o contrário. Os cabelos são escuros ou grisalhos, salvo raríssimas exceções, descoloridos propositalmente, quase brancos. Há que ser ressaltado o fato de que aqueles indivíduos (tanto homens quanto mulheres) de maior destaque entre os frequentadores assíduos das academias são justamente os que lançam e seguem essas modas capilares. Em geral, copiam e adaptam o estilo e a moda de algum fisiculturista internacional visto em revistas ou campeonato internacional transmitido por canais de televisão a cabo ou internet. Assim, um processo de difusão estética realiza-se do mais destacado para o menos destacado, do centro para a periferia, em um movimento de consagração de instâncias identitárias que tendem a ser tornar globalizadas articulando, por intermédio da magia social, aquele ato que “traz a existência a coisa nomeada” (BOURDIEU, 1989, p. 116). Essa coisa nomeada só existe socialmente devido ao fato de que aquele que a nomeou tem o reconhecimento e, portanto, a autoridade, conferida por aqueles que acreditam em suas palavras e ações de nomear e fazer existir coisas e comportamentos mediante o poder de suas palavras. Ato de magia social, no qual o contexto é fundamental para conferir poder e autoridade àquele que é autorizado (LÉVI-STRAUSS, 1976a). Synnot destaca que, nos EUA e na Inglaterra, a divisão capilar de gênero é manifestada no fato de que as mulheres buscam manter seu corpo com total ausência de pelos, enquanto homens cultivam cabelos nos peitos pernas e costas, significando virilidade e sensualidade. Se mulheres usam muito cabelo na cabeça e procuram não usar quase nenhum no corpo; homens, por sua vez, buscam tê-los em pouca quantidade na cabeça e muita quantidade no corpo. No caso das academias estudadas, o processo toma aspecto diverso desse destacado pelo autor. Os fisiculturistas depilam ou raspam os pelos do corpo procurando não deixar qualquer fiapo despontando em sua epiderme – Segundo eles, isso auxilia na percepção e destaque dos músculos. Porém, entre as mulheres, é muito comum cultivo de alguns pelos – que são constantemente alourados e descoloridos – do joelho para cima, no 237 CÉSAR SABINO ventre, (próximo ao umbigo) e na região do cóccix. Essa pelugem, entre elas, não raro pode assumir características relacionadas à sensualidade, posto constituir-se como item simbólico ligado à beleza feminina. Sem embargo, enquanto homens tornam-se depilados e lisos por todo o corpo, as mulheres deixam determinadas regiões, que representam e destacam simbolicamente sua sexualidade (ventre, coxa e ancas), recobertas com pequenos pelos em geral alourados – mesmo que artificialmente. Longe de representarem virilidade, como poderia supor um analista apressado, os pelos corporais, nesse caso, representam o contrário, a feminilidade. Já a ausência de pelos entre os homens não desvaloriza sua masculinidade, mas, inversamente, é buscada por todos aqueles que cultivam o corpo musculoso. Vale ressaltar que vem surgindo a moda do uso de barba, embora entre fisiculturistas não tenhamos visto. Contudo canelas e axilas femininas devem estar sempre lisas, sem nenhum pelo, enquanto nenhum homem deve raspar ou depilar suas axilas, exceto em épocas de competição. Há que se ressaltar que o uso de esteroides anabolizantes à base de testosterona provoca aumento de pelos por todo o corpo – embora, com muita frequência, provoque calvície ou alopecia androgênica – tornando o usuário em excesso quase inevitavelmente peludo; o fato dificulta o processo de depilação e raspagem corporal por parte desses homens. Não é incomum, quando o movimento de alunos é grande, perceber homens totalmente lisos com pequenos cortes em braços, ombros, peitos e pernas provocados pelo uso excessivo de aparelhos de escanhoar utilizados por todo o corpo. Se, em alguns grupos sociais, o excesso de pelo masculino faz alusão direta à masculinidade, esse não é necessariamente o caso entre os fisiculturistas. Também as mulheres dizem apreciar homens sem pelos corporais, falam que não gostam de bigodes e barbas e têm nojo daqueles que possuem pelos nas costas: “Detesto homem peludo demais, parece macaco, urso, sei lá. Argh, esse estilo Tony Ramos, me dá um nojo [...] hummm. Bigode? Piorou!!! Parece que cê tá beijando vassoura!!!” (Cássia. 19 anos. Estudante). Outra disse: Me dá nojo [...] aquele cabelo nas costas e no peito, saindo pela camisa, nossa! É horrível, eu detesto homem peludo, eu detesto. Gosto de homem lisinho, por isso que gosto de marombeiro, eles têm o maior corpaço e não têm pelos, o único problema é que quando os pelos estão crescendo começam a espetar. (Ana. 25 anos. Jornalista). Com efeito, é preciso situar historicamente essas preferências estéticas relacionadas à moda. Durante a década de 70 do século XX, o gosto deve ter sido oposto ao desses anos 90 e início de 2000. Cada época tem seu belo 238 DROGAS DE APOLO e feio, seu objeto cobiçado e asqueroso, sendo que isso muda a ponto de um tornar-se outro com o tempo. Sobre as coisas consideradas nojentas, é sempre necessário perguntar quando, como e por que elas são nojentas e como e quando deixam de ser nojentas (DOUGLAS, 1976). As práticas corporais são comportamentos rituais sustentados por crenças míticas. A sociedade asseptizada é automaticamente uma sociedade hierarquizada. A luta contra a poluição, diz Rodrigues (1980; 1995), está sempre associada ao estabelecimento de um poder (religioso, econômico, administrativo), ao advento de figuras poderosas (xamãs, heróis, líderes, chefes, visitas) e ao crescimento e à reprodução de uma determinada ordem social. Assim, depilar o corpo não deixa de constituir-se rito cotidiano de purificação dos fisiculturistas. Eles necessitam estar lisos para que seus músculos apareçam com mais definição e clareza. Sua muscularidade é ostentatória, portanto pública; toda sua construção física é uma construção para o espetáculo da forma, da estética construída pelos pesos das anilhas e aparelhos. Músculos e pelos são itens antagônicos nesse sistema classificatório, contrapõem-se como o público e o privado, o positivo e o negativo. Embora o cabelo da cabeça seja símbolo para o coletivo; na lógica dos frequentadores de academias, os pelos corporais masculinos podem representar a dimensão da interioridade, da privacidade, da intimidade e do particular. Como extensão da interioridade, portanto daquilo que não deve ser dado a público, o excesso de pelo corporal masculino pode causar asco àqueles que com eles se deparam nas salas de musculação. Depilar-se, raspar-se, para esses homens, é um ato de higiene, de despoluição corporal. Da mesma forma, o pelo das canelas femininas e axilas representam, para o grupo em geral, algo impuro que não deve ser apresentado publicamente. Por outro lado, “o que é puro em relação a uma coisa pode ser impuro em relação a outra e vice-versa” (DOUGLAS, 1976, p. 21). Se o cabelo da canela e das axilas é impuro, remetendo muitas vezes, entre os informantes, ao nojo, o do ventre é quase sacralizado. Durante o verão, em uma espécie de variação sazoneira (MAUSS, 1974), tornam-se mais perceptíveis quando as mulheres estão com a pele mais escura e com roupas menores do que em outras épocas do ano. Para ressaltar a considerada sensualidade do ventre, existem ainda piercings de umbigo que são utilizados por quase todas as frequentadoras assíduas das academias. Dessa forma, pelos alourados e piercings sacralizam uma das regiões consideradas símbolos da feminilidade: o ventre. Ocorre o mesmo processo com coxas e quadris (cóccix) e, com frequência, antebraços, femininos em que a pelugem dourada recobre a forma, destacando as 239 CÉSAR SABINO regiões ligadas à sexualidade, portanto cobiçadas por aqueles que produzem e reproduzem esses sistemas objetivos e subjetivos de classificações higiênicas capilares. Junto aos – e além dos – pelos estrategicamente alourados e posicionados, os homens das academias tendem a exaltar o cabelo longo, liso e, algo muito comum, louro das mulheres, visto como sinônimo de feminilidade, de “capricho”, cuidado de si, limpeza e sensualidade: “Cabelo comprido é demais, lisinho, macio cheiroso, é muito lindo... mulher pra ter cabelo curto tem que ser muito bonita senão fica muito sem graça...” (Fábio. 30 anos. Funcionário público). Outro fisiculturista falou: [...] eu sou muito louco por mulher de cabelo comprido e louro, é muito sensual, sei lá, mais feminino [...] quando eu saio na night, e vejo um cabelão louro já ligo logo o radar... fico ligado na mulher... só filmando [olhando] se for bonita dou logo o bote, chego junto, tento aproximação...desfilar com um mulherão louro do lado dá a maior presença, abala geral. (João. 28 anos. Comerciante). 5.5 A LOURA VIRTUAL O cabelo louro e comprido, não necessariamente liso – embora toda uma parafernália de alisamento capilar seja articulado constantemente –, exerce grande fascínio sobre homens e mulheres dedicados ao cultivo da forma e da muscularidade. Porém, longe de ser apenas uma manifestação da preferência estética atual das academias, o cabelo louro, desde o final do século XIX, tem sido no Brasil, em geral, principalmente entre as mulheres, um item de consumo e busca de distinção entre as classes em ascensão. Nas salas de musculação, spinning e ginástica, contudo, uma quantidade significativa de mulheres tinge e alisa o cabelo e transita por tais instituições ostentando douradas madeixas raramente legítimas. Certa vez, por exemplo, em uma tarde de agosto de 2002, contei, em uma dessas salas, 21 mulheres, 17 dentre elas com cabelo tingido de louro; dentre as 17, oito poderiam ser consideradas afrodescendentes, que, além de tingidos, tinham os cabelos alisados. Mas como compreender o motivo pelo qual as pessoas de um país que tradicionalmente diz se orgulhar de suas morenas, mulatas e negras tenderem a cultivar, na prática, essa espécie de obsessão pelo modelo de cabeleira lisa escandinava? O que simboliza o cultivo das claras madeixas por mulheres ligadas à transformação da forma física padronizada pelas academias de musculação e fisiculturismo? 240 DROGAS DE APOLO No final do Império, o Brasil foi invadido por uma série de inovações técnicas que visavam à melhoria da condição industrial. Nessa época, quase tudo era importado da Europa; desde sapatos, descascadores, ventiladores para produtos agrícolas até o gosto pela cerveja. Armarinhos elojasimportavam as novidades das estações, o que era chic em Paris era importado e consumido pelas elites nacionais. A máquina de costura Singer permitia às costureiras copiarem todos os francesismos utilizados pelas damas da corte (DEL PRIORE, 2000). Gilberto Freyre sugeriu que, nesse processo de consumo das coisas que vêm de fora, chegaram as bonecas louras, francesas e de porcelana e olhos azuis que passaram a povoar o cotidiano e o imaginário das meninas abastadas. De acordo com o autor, o culto “das bonecas sempre louras e sempre de olhos azuis” (FREYRE, 1986, p. 98) deve ter concorrido para contaminar algumas dessas garotas com certo arianismo para desenvolver no espírito dessas meninas e futuras mães a idealização de crianças que nascessem louras e crescessem parecidas com suas “bonecas francesas louras e róseas” (FREYRE, 1986. p. 33; 1990 apud DEL PRIORE, 2000, p. 102). Deslumbradas com o possível desenvolvimento e progresso” da sociedade brasileira, a elite paulista e carioca via, nos modelos de consumo europeus, o paradigma a ser seguido. As teses racistas de branqueamento populacional (eugenismo) disseminaram-se entre a intelectualidade que associava o atraso do país à presença efetiva de negros e índios. Oliveira Vianna foi um dos expoentes tardios desse pensamento; sua antropologia do tipo lombrosiano relacionava tipos físicos com comportamentos sociais. Para ele o componente europeu pode ser caracterizado do ponto de vista antropológico em dois grupos: os homens altos, dolicoides e louros que “devem preponderar na classe aristocrática: na nobreza militar e feudal da península e os homens brunos, dolicóides ou braquicóides que formam a base das classes médias e populares” (VIANNA, [1922] 1956, p. 126-127 apud LARAIA, 1997, p. 30). Oliveira Vianna, expressando o eurocentrismo das elites do início do século XX, demonstrava, como era comum, predileção especial pelos povos germânicos, porque, mesmo admitindo que a população portuguesa teve uma formação étnica complexa, fruto de um intenso caldeamento de raças, o autor afirmava que, na fidalguia peninsular da era dos descobrimentos, dominavam os descendentes dos velhos conquistadores germânicos: godos, suevos, normandos e borguinhões (VIANNA, 1956 apud LARAIA, 1997, p. 28). Após ligar (pode-se dizer de forma quase alucinada sem qualquer comprovação documental) a conquista dos sertões à ancestralidade germânica dos primeiros colonizadores, Vianna destaca 241 CÉSAR SABINO que os “dolicóides louros [são] capazes de grandes façanhas, suficientemente heroicos para vencer os grandes desafios [...]”. De acordo com ele, “a presença nas suas veias [dos primeiros colonizadores] de glóbulos de sangue germânico bem lhes poderia explicar a sua combatividade, o seu nomadismo [...]”. Os caucasoides de pele e cabelo mais escuros seriam menos nobres; enquanto os primeiros constituiriam naturalmente a aristocracia, os segundos se deteriam em ocupações menos nobres como o comércio e os ofícios manuais (VIANNA, 1956 apud LARAIA, 1997, p. 34). Dada, de acordo com sua perspectiva, a suposta superioridade dos louros germânicos sobre o resto da humanidade, Vianna é pouco simpático com índios e negros culpados de conferir ao Brasil “caos [...] confusão e discordância [já que] sua capacidade de civilização [principalmente a dos negros, destaca], sua civilizabilidade, não vai além da imitação, mais ou menos perfeita, dos hábitos e costumes do homem branco” (VIANNA, 1956 apud LARAIA, 1997, p. 31-32). Diante dessa ideologia racista que, desde o século XIX, reinava nas percepções sociais da elite nacional, a obsessão pela modernidade e civilização sempre ligada ao que de mais branco poderia existir em cultura, etnia e sociedade, levou essa mesma elite a propor imigração de colonos europeus para o país com o objetivo de transformar a nacionalidade brasileira em “branca, civilizada e superior”, como sugeria Joaquim Nabuco (DOS SANTOS, 1997, p. 46; SANT’ANNA, 1995). Incomodada com a miscigenação e africanização da população e preocupada em construir uma nacionalidade que supunha superior, portanto branca, a elite propõe a vinda massiva de imigrantes, sobretudo alemães, considerados modelos exemplares de eugenia – não por acaso as regiões do Sul do Brasil repletas de terras devolutas tornaram-se destino de grande número de colonos de origem germânica (SEYFERTH, 1999; 2012; NICOCELLI, 2012). Para arrematar o processo de embranquecimento, ou clareamento populacional, em conformidade com os objetivos e o imaginário eurocêntrico das elites brasileiras, promove-se, nesse mesmo período, a vinda de prostitutas francesas, alemãs, russas e polonesas. Começa assim a surgir e se consolidar a moda da loura (DEL PRIORE, 2000), símbolo máximo de superioridade étnica para as concepções de cunho positivista da época, signo do sucesso civilizacional, das nações consideradas superiores, poderosas e desenvolvidas, representantes do poder europeu e da supremacia germânica. Louras passaram a povoar o desejo mais íntimo dos homens brasileiros morenos e invejadas pelas brasileiras das classes altas que desejavam ser brancas, refinadas e platinadas. Os jovens rapazes da elite paulista, por 242 DROGAS DE APOLO exemplo, sonhavam iniciar-se no mundo sexual pelas mãos de europeias experientes e viajadas, embora também jovens, que poderiam trazer-lhes, além dos prazeres do amor, o vislumbre da cultura civilizada supostamente concretizada nos bordéis pela presença dessas valquírias hetairas, de carnes brancas, cabelos claros e sotaque carregado, consideradas símbolos da modernidade77 (RAGO, 1991). Era como se brancura, progresso e superioridade pudessem ser adquiridos por osmose paga ou comprada. Processo similar ocorria no Rio de Janeiro. Modernização para a elite carioca significava romper com o que julgavam ser os imobilismos afro-indígenas e caminhar no sentido do progresso, em busca do estabelecimento de uma sociedade de moldes europeus. Nesse aspecto, o mito da superioridade europeia reproduziu-se nas fantasias sexuais das camadas mais altas da sociedade carioca (MENEZES, 1990). A partir de 1867, começaram a chegar, ao porto do Rio de Janeiro, as chamadas, à época, “polacas”, jovens do leste europeu, frequentemente judias (muitas louras e ruivas) e que constituíram a maioria das mulheres vendidas no tráfico de escravas brancas para a América do Sul. A vida profissional dessas mulheres era gerida, na maioria das vezes, por empresários também judeus78 que prometiam marido e vida nova na América – não especificavam qual, se a do Norte ou do Sul – para meninas pobres dos territórios judeus da Rússia ou Polônia para depois violentá-las e mandá-las para bordéis do Rio de Janeiro ou Buenos Aires. Mas, como em tudo que se relaciona ao social, havia hierarquia no consumo da carne das mulheres europeias. O paradigma de “Civilização” era a França, e deitar-se com uma francesa custava caro. Destarte, a alta prostituição, o meretrício de luxo, estava repleto de francesas, mulheres caras. Já as mulheres da Europa A historiadora Margareth Rago mostra o “poder” dessas prostitutas estrangeiras: “quando a loira parisiense Marcelle d’Avreux descia as escadas da Pensão Milano, propriedade de Mme. Serafian, em direção ao carro que a esperava na porta, na Rua São João, n. 30, escandalizava os provincianos de São Paulo dos inícios do século [XX]. Todos os olhares se voltavam para suas roupas coloridas e extravagantes e para seu enorme chapéu enfeitado com longas penas de avestruz – as pleureuses –, cuidadosamente encrespadas e emendadas para parecerem mais longas e caras. Ao lado de outras cocotes de fama internacional, como se acreditava, a cançonetista Jeanne Peltier, Mimi Turris, Maria Cabaret, Hèléne Chauvin, recém-chegada de Paris, costumada desfilar pela cidade [...] Quem sorria eram os ‘coronéis’ recém-chegados do interior, deslumbrados com o visual moderno que coloria seus olhos [...] e a jeunesse dorée, esperançosa de encontrar alguns flertes e fugazes aventuras românticas” (RAGO, 1991, p. 33). Aspecto um pouco diverso destaca a historiadora Lená Medeiros de Menezes sobre a prostituição de estrangeiras no Rio: “Cissi Gutridge, menor de idade, havia fugido de sua casa no interior da Inglaterra, indo para Londres, onde foi deflorada por indivíduo que depois a vendeu, por 2 libras, a Laura Scunkler, austríaca, meretriz residente no Rio de Janeiro. Esta a seduziu com promessas de muito dinheiro e jóias, trazendo-a para o Rio e estabelecendo-a em sua casa, onde passou a explorá-la e a viver do produto de seu corpo [...] Laura ia a europa, de vez em quando, buscar mulheres” (MENEZES, 1990, p. 137). 78 O termo popular carioca para gigolô, cáften, ou cafetão, advém de caftan, traje tradicional usado pelos judeus do leste europeu (NEEDELL, 1993, p. 323). 77 243 CÉSAR SABINO Central eram usufruídas por homens das camadas médias. Da mesma forma, as brasileiras ricas procuravam parecer o máximo com francesas. Segundo Jeffrey Needell (1993), as mulheres da elite carioca eram fac-símiles, mais ou menos bem-sucedidos das parisienses, tentando imitá-las de todas as formas possíveis, comprando as modas provenientes da França e adotando os modos “civilizados” de sua aristocracia. Assim, as prostitutas dos locais frequentados pelos homens dessa elite eram, em geral, de origem francesa. Claras amostras humanas daquilo que era considerado o “berço da Civilização”. Com efeito, de acordo com o historiador, as prostitutas gálicas poderiam, supostamente, ensinar os cobiçados refinamentos civilizados aos seus clientes. A paixão por essas mulheres, seus cabelos claros, sua brancura, idioma e comportamento, revelava o fetichismo da elite brasileira pelos valores eurófilos. Esses homens do paroxismo eugênico imaginavam absorver a suposta superioridade étnica e sociocultural por intermédio do sexo que louras europeias lhes vendiam. A partir da década de 30 do século XX em diante, com o crescimento da hegemonia cultural americana, o poder capilar das platinum blondes torna-se ainda mais intenso, embora com modulações de sentido e significado de acordo com a mudança do polo de poder mundial para os EUA. As faces rosadas das estrelas de Hollywood e da indústria musical passam, uma após outra, a dominar o imaginário de homens e mulheres nacionais: Jean Harlow, Marlene Dietrich, Anita Eckberg, Jane Mansfield, Doris Day, Marylin Monroe, Ursula Andress, Jane Fonda, Madonna, passando por Cameron Diaz, Britney Spears, Reese Whitherspoon, Nicole Kidman e daí vai, talvez mudando um pouco nos últimos tempos. Simultaneamente ao sucesso das louras na mídia, aprimoram-se os produtos químicos que permitem àquelas que não o são converterem-se ao brilho do blonde power. Nesse processo, o cabelo louro, e preferencialmente liso ou ondulado, foi tornando-se cada vez mais, símbolo de status e sedução. No Brasil, apesar do tão propalado ideal multicultural de igualdade entre tipos étnicos diferentes, há uma hierarquia estético-capilar claramente admitida. Basta assistir às produções cênicas brasileira durante algumas horas para perceber que a pele branca e, principalmente, a “lourice”, são valorizadas (EDMONDS, 2002; JARRIN, 2017a). Essa hierarquia radicada na germanidade e capilaridade dourada pode ser notada no fato de que os dois atuais modelos femininos mais incensados de beleza, das décadas de 90 do século XX e inícios dos 2000, têm pele branquíssima, cabelos louros e olhos azuis: Gisele Bündchen e Xuxa Meneghel. No patamar subsequente, estão as mulheres brancas de cabelos 244 DROGAS DE APOLO escuros e olhos claros, como Adriana Lima, Ana Paula Arósio e Daniela Cicarelli; logo em seguida, vêm as morenas e, abaixo de todas, as mulatas. Segundo Burdick, “estão excluídas da classificação as mulheres de cabelo duro, crespo, pele muito escura e traços faciais africanos, como nariz largo e achatado” (2002, p. 196). A incensada “beleza negra”, em geral, é representada por mulatas com traços faciais próximos aos caucasoides. Ela, a mulata, está presente com mais frequência na mídia em geral, no período do carnaval e, após a onda da folia momesca, retorna para a lanterna da hierarquia estética midiática da qual as negras estão excluídas. Em geral, é apenas nesse período ritualístico de inversão da estrutura social (DA MATTA, 1991) que brasileiros de tons mais claros exaltam a negritude e sua mistura étnica como positiva, para logo depois retornarem à estrutura neoescravocrata que constitui as relações sociais do Brasil que negativam o ser negro. Alguns relatos dos informantes são sugestivos a respeito deste índice étnico que pode ser acessado ou não, quando convém à manipulação da identidade do agente social que assim resgata a imagem que lhe apraz em um determinado momento das relações sociais. A louridade, assim como a negritude, parece ser um coringa no jogo brasileiro da legitimidade nacional. Assim, parece que, dependendo da situação, ter antepassados negros ou brancos pode ser muito positivo ou muito negativo. Esses elementos que povoam o imaginário da maioria podem ser considerados uma espécie de excelência que não está diretamente relacionada à legitimidade direta da cor do cabelo ou da pele. Perguntadas por que clareiam o cabelo algumas entrevistadas disseram: Não sei! Tá na moda.... Acho que ser loura é legal porque eu fico bem, me sinto bem assim. Quando eu nasci eu era loura, tinha cabelo lourinho, aí foi escurecendo, então no fundo eu acho que sou loura, [risos], mas não sei, me sinto bem e isso é o que importa, porque depois que eu clareei o cabelo muito mais caras passaram a olhar pra mim, pode ser que seja porque eu me sinto bem ou porque eles gostam de louras [risos]. (Carina. 26 anos. Advogada). Ainda: Eu clareio meu cabelo porque eu me sinto loura [...] não consigo mais me conceber morena [...] meu cabelo é castanho escuro, mas eu me sinto loura [...] acho que ser loura é um estado de espírito. Não adianta a mulher pintar o cabelo de louro se ela não se sente loura, se não tem alma loura, ser loura é [...], como poderia dizer, é [...] ter charme, seduzir, chamar atenção. Entende? A loura chama mais 245 CÉSAR SABINO atenção. Se você tá superloura, com o cabelo bem claro, bronzeadona, coloca um vestido justinho, um salto [...], chega num lugar, numa festa, num barzinho, pronto! Todo mundo fica te olhando, você chama a maior atenção (Sandra. 21 anos. Estudante). Eu tenho o cabelo claro já, só que clareio mais, me sinto legal... mas acho que não é qualquer uma que pode sair botando o cabelo louro, tem que ter alguns requisitos... uma pessoa muito morena por exemplo, não fica legal loura, não fica bem, é meio caricatura, né? Se bem que agora até preta tá pintando o cabelo de louro, né? Acho que pra ser loura o resto tem que combinar, senão, não dá mesmo. Tem que ser clara ou ter um olho claro pra combinar; se não fica esquisito. Outro dia li não sei onde, acho que foi numa revista, que pra clarear o cabelo a mulher nem precisa ser loura, mas tem que ter alma loura, é isso: pra pintar o cabelo de louro tem que ter alma loura, senão não adianta” (Patrícia. 29 anos. Economista) Os relatos masculinos ressaltam aspectos diversos desse imaginário e mentalidade: Eu adoro loura! [...] não sei por quê [...] acho que é por causa daquele jeitinho [...] que elas têm [...] não sei. Mistura de ingenuidade com sensualidade.... é isso. A loura parece ingênua, mas não é. Tem aquele ar desprotegido e insinuante, isso me atrai, fico doido quando vejo uma lourinha com esse jeitinho de ‘me protege, me leva pra casa, cuida de mim [risos] (Pedro. 33 anos. Fisiculturista amador e administrador de empresas). Sou doido por uma loura... cabelo dourado me deixa louco [...] ainda mais se for daqueles compridos, ah meu Deus, fico doido! Não sei por que, acho que todo mundo gosta de loura, por mais que diga que não; cê vê só, observa só, esses jogadores de futebol, ainda mais se for preto, o cara fica rico arranja logo uma loura. Um carro importado e uma loura pra namorar... não é? Acho que ter uma loura do lado é símbolo de riqueza, de poder, sei lá, meu irmão [...] vai ver que é isso, só sei que eu gosto muito [...] (Carlos. 41 anos. Fisiculturista amador e proprietário de academia de musculação). Se não é mais, de forma explícita, o ideal eugênico que move os homens e mulheres a gostarem e se identificarem com louras, permanece, no imaginário das camadas médias urbanas, a mística da louridade, com toda a hierarquia capilar e, por conseguinte, toda a relação de poder estético que ela estabelece. Tendo se tornado símbolo do sucesso, o cabelo louro ainda chega a ser separado da etnia, tornando-se por si só, um sinal de distinção da mulher: 246 DROGAS DE APOLO [...] eu sei que não sou branca, meu pai é negro, eu sou mulata [...] sou criloura! [risos]. Eu pinto meu cabelo de louro não é porque quero ser branca, eu amo minha cor. Se tivesse na moda pintar de azul, eu pintaria, se fosse verde, eu pintaria [...] o louro pra mim é só uma cor que tá na moda, nada mais [...] Já pintei de vermelho, mas não deu certo. Gosto como tá agora [...] é mais um acessório, como usar uma pulseira, um vestido, é isso. Eu me sinto mais bonita loura do que com outras cores. Eu sou mais vista assim [...] com cabelo louro chamo atenção e me sinto mais sexy (Josiane. 24 anos. Estudante). O cabelo louro, nas sociedades de consumo que as academias de fisiculturismo, de certa forma, representam, é mais uma marca, uma espécie de etiqueta capilar identitária a ser consumida. Na lógica das relações de poder e distinção delimitada por esse símbolo (e pela qual é delimitado), não é qualquer mulher que pode ostentá-lo com eficácia, segundo as informantes, mas apenas aquelas que trazem a “magia” da chamada “essência loura”. Em outras palavras, a legitimidade do cabelo louro não se resume exclusivamente a sua originalidade ou autenticidade étnica, mas a um habitus cultivado e apreendido representado pela postura corporal que constrói a mulher sensual e reduzida ao seu sexo como portadora dos fios dourados, mesmo se sua sensualidade estiver associada nessas representações à negritude suposta do brasileiro miscigenado. Esse fetiche humano, objeto de prazer, tem, nas suas técnicas corporais de sedução que o constituem, o simbolismo imanente de uma suposta louridade (“alma loura” ou uma virtualidade loura, diria) que transcende a raça, e a própria cor natural dos cabelos, para encarnar-se em gestos que, no caso aqui estudado, dependem do status masculino para fiador de sua condição power blonde. Todo esse processo de exaltação da branquitude, quando conveniente, e por consequência da lourice como signo estético positivo, parece remeter a um dos elementos imaginários da cultura brasileira que, influenciada por um lado pelo positivismo, e, por outro, pela longa escravidão que perpassou a maior parte de nossa história, manteve representações raciais de longa duração que vivem ainda nas mentes e corpos, nos costumes e práticas nacionais, pautando as relações de dominação em suas mínimas instâncias institucionais e organizacionais, capturando as subjetividades de dominantes e dominados em uma hierarquização micropolítica que termina por reproduzir nos mínimos detalhes comportamentais e no raciocínio cotidiano a estrutura social de uma das mais desiguais sociedades do mundo. 247 CAPÍTULO VI Adoto, portanto, o ponto de vista de que a inclinação para a agressão constitui, [...] o maior impedimento à civilização. (Sigmund Freud) 6 ELOGIO À BARBÁRIE Se bárbaro é, em primeiro lugar, o homem que crê na barbárie (LÉVISTRAUSS, 1976), a princípio os bodybuilders poderiam, e gostariam, de serem chamados de bárbaros por pertencerem a uma cultura que, ao mesmo tempo, faz apologia e despreza – dependendo das circunstâncias – aquilo que entende como tal. Os grupos sociais que integram as chamadas sociedades complexas de origem europeia veneram concepções de progresso e evolução linear. Nesse contexto, essas concepções estão relacionadas às ideias de prosperidade, perfectibilidade e felicidade. Civilização e progresso parecem constituir categorias mestras do jargão do senso comum. Palavras mágicas que sugerem o advento do reino da felicidade (ARENDT, 1990). Ser chamado de “progressista”, “evoluído”, passa a ser um dos maiores elogios; estando o “bárbaro” e o “selvagem”, situados em uma dimensão oposta, e mesmo ameaçadora, à ordem e ao progresso do sistema social. Entre os fisiculturistas, essa ideologia está sempre presente por intermédio do constante elogio aos produtos desenvolvidos pela ciência, os quais têm por função otimizar a construção do corpo e da forma. Por outro lado, há a peculiaridade relacionada ao simbolismo da força, da virilidade e da conquista do sucesso presente em todo o imaginário fabricado pela indústria da propaganda que articula imagens de corpos fortes e saudáveis. Ser bárbaro, nesse caso, pode significar estar mais próximo da força e do vigor animal, ser audaz, grosso, rústico e temido, portanto, em determinados momentos, representar a positividade. Símbolos são fluidos, maleáveis, voláteis e ambíguos. Se o sistema cultural comum às sociedades complexas ocidentais é marcado – uns mais outros menos – pelo racionalismo e formalismo contrapondo-se teoricamente à contradição – sendo o fisiculturismo uma expressão particular desse processo civilizatório –; no caso específico dos bodybuilders ou marombeiros, esse aspecto surge portando um paradoxo. 249 CÉSAR SABINO Segundo Elias e Dunning (1990; 1994; s/d), as sociedades complexas ocidentais passaram por uma esportificação que, por um lado, serviu como uma espécie de antídoto catártico para o excesso de autocontrole exigido pelo cotidiano burocratizado e opressor e, por outro, como interiorização de regras de diversão que passaram a circunscrever a violência em um determinado espaço (ringues, estádios, clubes etc.) promovendo a moderação e impedindo o amplo uso da mesma violência publicamente. Contudo, os autores também apontam uma regressão desse processo civilizatório; regressão manifesta não apenas, por exemplo, pelo surgimento do nazismo, mas pela aparição, por exemplo, dos hooligans nos estádios de futebol ou das torcidas organizadas que travam verdadeiras batalhas. Os sintomas dessa regressão, em escala microssociológica, talvez possam ser percebidos nos temas a serem tratados a seguir. Quando, em agosto de 2000, efetuei matrícula em uma das academias de fisiculturistas pesquisadas percebi que, apesar de ela ter o mesmo aspecto das outras – muitos pesos (anilhas), quase todas as paredes espelhadas, muitas máquinas de musculação e fachada de cores vibrantes –, algo diferente concretizava-se nas atitudes e posturas daqueles que permaneciam em seu interior. Mulheres, quase não havia; e aquelas que lá estavam ostentavam musculosidade muito acima do que as praticantes de academias de musculação em geral portavam. O ambiente rústico, um grande galpão construído no interior do que havia sido uma ampla casa, apresentava uma ar mais denso (como se uma briga pudesse acontecer a qualquer momento) do que o dos outros lugares79; desde o tipo de música popular despejada dos autofalantes nos cantos das paredes (heavy metal, techno, rap, hip-hop e funk80, contrapondo-se ao pop, à música baiana e à dance das outras academias), à aparência do professor (na realidade, um instrutor, também fisiculturista, que nunca havia colocado os pés em uma faculdade de educação física como orgulhosamente gostava de falar): uma massa de músculos com cabelos em estilo militar descoloridos, quase brancos e arrepiados com gel, tênis Nike de cor roxa e de cano longo, similar a uma botina, camiseta amarela apertada e rasgada estrategicamente para realçar os músculos denominados de trapézio e dorsal, bermuda colante de ciclista e várias tatuagens espalhadas Os praticantes dessas academias denominam, em tom de deboche, “perfumarias” as academias que não são voltadas diretamente, ou em parte, para o fisiculturismo. Dizem que tais academias são caras, limpas e cheirosas, mas não dão resultado nenhum. Chamam os frequentadores de tais academias de “churriados”, “pangarés” e “frangos”. 80 Alguns grupos de música popular que pude identificar: AC/DC, Iron Maiden, Prodigy, dentre outros, além dos chamados MCs de funk do momento. Funks e Raps produzidos nas favelas com letras explícitas de sexo e violência, são apreciadas. 79 250 DROGAS DE APOLO pelo corpo: um tubarão com a boca aberta com se fosse morder a presa no braço direito, o símbolo do super-homem no braço esquerdo, o símbolo dos X-men tomando quase toda a parte de trás da nuca e a figura de um cão pitbull babando na panturrilha da perna esquerda. A pele desse homem, no momento em que o avistei, pareceu uma síntese do imaginário adolescente presente nos filmes de Hollywood e revistas em quadrinhos. Seu corpo era um estandarte musculoso da indústria cultural. Mas ele não era o único. Com o passar do tempo, as diferenças entre os tipos de academias pesquisadas foram sendo ressaltadas. Por exemplo, as máquinas de fazer exercícios – chamadas geralmente de “aparelhos” pelos usuários – estão sempre com alguma parte suja de graxa, pois os praticantes limpam nelas suas mãos quando encostam, ao se exercitarem, em alguma junção do mecanismo. Jogar pesos no chão produzindo grande estardalhaço e berrar na hora de levantá-los, ou berrar palavrões após os exercícios mais difíceis, aplicar injeções de esteroides em público – certa vez um fisiculturista saiu, de propósito e com ar de troça, do banheiro com uma injeção de decadurabolin espetada no ombro esquerdo e gritou para todos: “Bomba!”81 –, arrotar e soltar flatulências são atitudes comuns quando apenas o grupo de fisiculturistas se reúne às tardes para treinar. Como manda o bom figurino relativista, o antropólogo jamais julgaria essas atitudes como sendo de bárbaros, embora aqueles que as pratiquem pudessem se sentir extremamente lisonjeados de assim serem chamados nessas circunstâncias82. Ser comparado a Conan, O Bárbaro, personagem interpretado por aquele que é considerado por eles o maior ícone de todos os tempos, Arnold Schwarzenegger, ou demonstrar a frieza e a atitude rude e, por vezes grosseira, de um Exterminador do Futuro, Um dos principais fatores de distinção desse tipo de academia para outros mais comuns é o uso público de esteroides anabolizantes, o que não ocorre em outros tipos de academias. Pessoas aplicando umas nas outras, nos banheiros, vestiários, ou mesmo nas próprias salas de musculação, injeções intramusculares de testosterona sintética contrabandeadas, algumas vezes de origem veterinária. Mais comum ainda é a presença de esparadrapo nos ombros indicando recém aplicação. Ao contrário do que acontece em outras organizações voltadas para as atividades físicas, a maioria dos praticantes não esconde o uso indiscriminado de substâncias para adequar sua performance e forma aos altos padrões sociais exigidos. Ocorre intercâmbio de informações a respeito das inúmeras maneiras de utilizá-las e de seus resultados, engendrando um vasto saber marginal sobre seus efeitos. Usuários de longa data, os bodybuilders tornam-se especialistas, testando – como foi dito anteriormente – neles mesmos os poderes químicos dos diversos produtos. 82 Não cabe neste espaço discutir o conceito de relativismo com sua gama de debates nas ciências humanas e filosofia, essa questão já seria tema para outro livro. Apenas ressalto que utilizo o relativismo apenas como método e de forma alguma como imperativo ético. O relativismo tomado dessa perspectiva leva a um pântano de antinomias niilistas que nada contribuem para uma crítica antropológica consistente. Compreender o outro em sua sociedade e cultura não significa necessariamente aceitar e adotar seus valores e crenças ou considerá-los válidos como universais, o que seria apenas uma inversão lógica de termos. Para um debate mais aprofundado, consultar: Nietzsche (1978a), Velho (1995), Geertz (2001), Sobrinho (2003) e Wolff (2004). 81 251 CÉSAR SABINO filme protagonizado pelo mesmo ator, é uma lisonja para esses homens. Imbuídos dessa força que julgam “selvagem”, esses indivíduos não hesitam também em utilizá-la quando contrariados, de forma que presenciei inúmeros confrontos com empurrões e xingamentos que acabavam em expulsão das academias, ou mesmo com a presença da polícia no recinto. Tatuagens de animais ferozes e super-heróis recriados pela nova mitologia capitalista, além de piercings, roupas rasgadas mostrando músculos e tudo o mais que possa remeter a um sentido de força rústica e peso aludindo ao que por eles é considerado selvagem ou bárbaro, portanto valorizado. No entanto, isso não basta para que se possa compreender esse comportamento. 6.1 VIOLÊNCIA DIFUSA Indivíduos manipulam códigos, fazem coisas diversas, ou as mesmas coisas de modo diferente, segundo a presença ou ausência de determinadas pessoas em determinados ambientes e recintos, escreve Rodrigues (1995). Esse processo indica a existência de ambiguidades semânticas ou de alternativas sintáticas pertinentes aos sistemas simbólicos. O fato de haver um grande número de semelhantes, fisiculturistas, nessas academias faz com que o formalismo se afrouxe. Sabe-se que, em ambientes, ou grupos sociais, extremamente hierarquizados, são requeridos elevado grau de autocontrole por parte dos indivíduos que tendem, então, a se expressarem com rígida aplicação de regras de pureza e separação. A vigilância sobre os processos orgânicos e os comportamentos menos formais torna-se alta (MAUSS, 1974; DOUGLAS, 1976; DUMONT, 1993; RODRIGUES, 1995). O comportamento dos fisiculturistas não é “informal” em academias nas quais constituem minoria ou mesmo são rejeitados pelos proprietários. Por outro lado, esses homens (e mulheres) encarnam as regras da construção corporal calcada naquilo que consideram a muscularidade única e verdadeira, infringindo sobre seus corpos uma forte disciplina. Sendo símbolos de excelência física para os frequentadores em geral, têm inscritos em suas peles as estruturas objetivas e subjetivas da sociedade que buscam afirmar, mesmo eventualmente cultivando atitudes algumas vezes por ela marginalizadas. Seguem códigos, com rígidas aplicações de regras alimentares, de comportamento e exercícios, e a espontaneidade é um luxo raro devido ao supremo objetivo que se colocam de encarnarem a forma perfeita das fibras musculares. Quando em ambiente no qual não necessitam representar o drama das hierarquias sociais, deixam o corpo livre das regras e códigos rígidos. 252 DROGAS DE APOLO A pureza reluzente, ascética e asséptica que necessitam apresentar como imagem do poder corporal é, nesses momentos, abandonada em favor da lassidão natural que iguala todos os seres. Porém, tal lassidão igualitária logo é abandonada se algum ato venha a sugerir o esquecimento de que aquela autoridade, embora suspensa, existe. Assim, a violência (agressões físicas e verbais) aparece com a ultima ratio diante da ordem hierárquica ameaçada. Victor Turner (1974, p. 133) escreveu que “em quase toda parte se atribuem às situações e papéis liminares propriedades mágico-religiosas [...] frequentemente consideradas perigosas [...] contaminadoras”. Há, portanto, uma correlação entre a marginalidade social e um certo tipo de poder que difere do utilizado nas estruturais formais de controle (FRY, 1982). O estereótipo atual do bárbaro, anti-intelectual, distante da racionalidade, grosseiro e violento, nem totalmente humano, nem totalmente animal, em certos momentos, surge paradoxalmente no imaginário como ícone positivo de marginalidade. Imagem de alguém ou grupo que foge às estruturas formais de controle. No entanto, a tentativa de fuga dessas estruturas pode constituir-se como movimento deletério, perigoso, profano. Ser denominado ou visto como um bárbaro pode ser estigma em determinadas circunstâncias e sinal de status em outras, justamente devido ao fato de apresentar esse caráter deletério no sistema classificatório de uma cultura que crê ser a única ou estar dentre as únicas civilizadas. Esse aspecto pode justificar a busca, por parte dos fisiculturistas, pela aquisição dessa imagem. Aliás, o problema do estigma tão bem analisado por Goffman (1982) alude ainda ao caráter dúbio que o estigmatizado carrega: sagrado e profano como elementos complementares. Da Matta (1987) chama atenção para a positividade do ambíguo presente na cultura brasileira. No triângulo amoroso representado no romance de Jorge Amado, Dona Flor e seus Dois Maridos, essa ambivalência é lida pelo antropólogo como complementar, sendo capaz de reunir desejo e lei, liberdade e controle, trabalho e malandragem, sexo e casamento, descoberta e rotina, excesso e restrição. O ambíguo é assumido e até desejável, já que o ser humano é, ele mesmo, percebido como um ser repleto de contradições. A palavra civilizado é entendida, por parte da intelectualidade influenciada pelo positivismo ou pelo hegelianismo, e grande parte do senso comum pesquisado, como se associada às ideias de progresso e evolução linear, de superioridade moral, educação erudita e razão avançada. Apesar de todo o esforço da antropologia, essa concepção ainda reina soberana, tanto em parte significativa do senso comum douto (universidades) como nas academias de 253 CÉSAR SABINO musculação que são parte do senso comum. Segundo Cuche (1999), civilização (palavra surgida na Europa iluminista do séc. XVIII) designa o afinamento dos costumes e significa o suposto processo – instaurado pela primeira vez pelos “esclarecidos” – que tende a arrancar a humanidade da ignorância e irracionalidade. Diante dessa acepção, reitera-se que toda forma de governo e organização social deve pautar-se na “Razão” e nos conhecimentos da ciência. Civilização é, então, definida como um processo de melhoria das instituições, da legislação e da educação. Ela deve começar no Estado, o qual deve liberar-se de tudo que é ainda “irracional” em seu funcionamento. Finalmente, essa perspectiva [...] afirma que a civilização deve estender-se a todos os povos que compõem a humanidade. Se alguns povos estão mais avançados do que outros neste movimento, se alguns [...] estão tão avançados que já podem ser considerados ‘civilizados’, todos os povos mesmo os mais ‘selvagens’, têm vocação para entrar no mesmo movimento de civilização, e os mais avançados têm o dever de ajudar os mais atrasados a diminuir esta defasagem (CUCHE, 1999, p. 22). Contudo, veremos mais adiante como Norbert Elias reconceitua civilização modificando todo esse aspecto preconceituoso do termo, passando a utilizá-lo como ferramenta analítica eficaz para a compreensão das sociedades contemporâneas ou quaisquer outras. Outro aspecto a ser destacado é o da violência presente no cotidiano desses construtores específicos da forma musculosa. Em geral, nas academias de musculação pesquisadas, é comum a prática de artes marciais, sendo o jiu-jitsu e o boxe tailandês as lutas da moda nessas instituições. A busca em adquirir e ostentar um ethos belicoso é uma das atitudes principais da construção de pessoa nesses grupos de adoradores da força e da forma agigantada. A masculinidade, entendida como uma exacerbação da virilidade, deve ser constantemente afirmada por meio não apenas das posturas corporais, mas também de atos. E esses atos resumem-se às lutas em torneios e brigas de ruas empreendidas pelas “galeras” de marombeiros que saem nos finais de semana para, como eles mesmos dizem: “pegar mulher e brigar”, não necessariamente nessa ordem. Indivíduos que, ainda jovens, travam verdadeiras batalhas com outros do mesmo tipo, de outros bairros e academias. Embates que podem terminar em morte. Nessa academia mais específica, por sua relação com a violência, quase toda segunda-feira, aparece alguém com hematomas ou curativos em um dos braços ou pernas relatando aventuras de final de semana na saída 254 DROGAS DE APOLO de alguma boate da Barra da Tijuca ou baile funk83. Esses indivíduos, praticantes de musculação e, em geral, artes marciais, não são necessariamente fisiculturistas, mas se autodenominam pitboys em alusão ao cão ilegalmente explorado em rinhas, em geral até a morte. A violência difusa aqui tem o sentido de transversalidade, o que significa que está presente de forma constante no cotidiano e pode atingir ou partir de qualquer direção, indivíduo ou grupo. Os estudos em bioquímica e nas áreas biomédicas, em geral, tendem a referir o comportamento masculino violento, e mesmo feminino, à quantidade de testosterona presente no metabolismo dos indivíduos. Seria fácil explicar a violência desses homens a partir dessa perspectiva por motivos óbvios. Não partimos de forma alguma dessa concepção, posto que ela não leva em conta as dimensões socioculturais que interferem de forma significativa nesses mesmos comportamentos. 6.2 O STATUS DA BRIGA Comportamentos relacionados com frequência a determinados bailes funk e boates do mesmo gênero e à articulação de certo tipo de violência existente nesses locais, que até recentemente eram típicos das classes baixas (DIÓGENES, 1998; ABRAMOVAY, WAISELFISZ et al., 1999; ALVIM; GOUVEIA, 2000), estão sendo imitados como sinal de distinção e status, ao menos momentâneo, entre número significativo de jovens da classe média e média alta carioca. Os bailes funk, e toda a indústria cultural que acompanha esse movimento e o expande, têm tido como consumidores, cada vez mais, frequentes os jovens dos chamados bairros abastados do Rio de Janeiro (Leblon, Ipanema, Barra da Tijuca etc.) que, por vezes, travam contato com traficantes e passam a admirar o seu modus vivendi, tido como símbolo de autoridade e poder. Esses jovens organizam-se em “galeras”, “gangues” No momento, além dos já tradicionais locais frequentados por jovens de classe média e média alta, como as boates e bares Cozumel na Lagoa, Guapo Loco no Leblon, Nuth na Barra da Tijuca e Baronetti em Ipanema, que tocam música funk ou apresentam sessões de funk, os jovens da classe média carioca também buscam os chamados bailes de clube. Nas boates da Zona Sul da cidade, as festas são, como dizem, “para curtir”, ou seja, não são locais para brigar. Contudo muitos lutadores e marombeiros com esse objetivo, a briga, deslocam-se de bairros, como Tijuca, Grajaú ou Copacabana, para clubes de Jacarepaguá e outros, visto que esses bailes são locais que as “galeras” ou gangues se enfrentam. Como dizem: “a pancadaria come solta” tanto dentro como fora dos clubes. Dentro desses espaços, a multidão chega a se dividir em lado A e lado B, enfrentando-se em blocos de pancadaria ao som do ritmo funk – similar às brigas de torcidas no futebol. É comum a territorialidade definir o pertencimento do grupo em uma espécie de afirmação geopolítica. Já os bailes de comunidade ou favelas, Porto das Pedras, Morro do Cantagalo, Chapéu Mangueira, são bailes onde dificilmente ocorrem conflitos de galeras por serem dominados pelo tráfico ou milícia, mas esses bailes não são frequentados pelas classes mais altas ou por pessoas estranhas ao contexto comunitário. 83 255 CÉSAR SABINO ou “bondes”, grupos de um mesmo bairro que têm por objetivo construir identidade por intermédio de atividades ilícitas ou brigas com outras galeras ou bondes, além de “fazer pegas” (corridas de carro) nas ruas mais largas dos bairros durante a madrugada e arruaça. Há valorização de roupas de marca, tatuagens e lutas. Essas últimas marcam as divisões territoriais entre os bairros (ZALUAR, 1997). Até pouco tempo, essas atividades eram tidas pelos analistas como peculiares aos jovens das chamadas classes inferiores, em geral habitantes das favelas e comunidades carentes (VIANNA, 1997). Com a cultura funk expandindo-se a partir de meados da década de 90 do século XX, o ethos dos dominados que dominam outros dominados – os traficantes e bandidos – adquiriu impulso positivo e sedutor entre parcela significativa de jovens abastados e entediados, alguns frequentadores das academias de musculação. Esse processo, talvez se deva a uma possível falta de perspectiva em relação ao futuro, ao tédio de uma vida regrada e sem dificuldades financeiras, ao extremo individualismo consumista que vem se fortalecendo e, principalmente, à cultura de uma sociedade de caráter patrimonialista e índole autoritária que vê, no uso da violência, a solução de suas mazelas, conferindo papel de herói a todo aquele que articula de maneira bem sucedida os instrumentos da morte: as armas. Por outro lado, como reação à crescente mudança no mercado de trabalho e ao possível enfraquecimento da ética relacionada a esse, pode estar ocorrendo, por parte de alguns grupos, a busca de construção de uma identidade coletiva calcada em uma postura de resistência às regras dominantes. Este relato de um informante é significativo: [...] às vezes preciso descarregar [...] a gente se cansa de tudo, estudar, estudar e treinar semana toda. Mãe enchendo. Tudo! Então, preciso de adrenalina [...] nos finais de semana pego o carro e vou pros bailes. A melhor forma de desestressar é lá [...] a pancadaria [...] depois dela a gente fica mais leve até [...] sempre há o perigo de quebrar um braço, um dedo, nariz, mas aí que tá a graça [...] porque você também bate. Também quebra o vacilão do outro lado (Ricardo. 23 anos. Estudante). Gangues, galeras ou bondes são termos que necessitam ser esclarecidos para que se faça possível um melhor entendimento do universo de algumas academias de musculação. No Brasil, quando um estudo se refere a gangues, ele não está descrevendo organizações criminosas com características empresariais de modelo norte-americano – pelo menos por enquanto. Ou seja, não são organizações calcadas em uma racionalidade 256 DROGAS DE APOLO instrumental que possibilitaria a mobilidade social dos jovens conforme referida no trabalho de Sanchez-Jankowski (1991), que retirou o estudo das gangues da esfera do criminologia e do desvio, alocando-o no âmbito da sociologia das organizações e dos modos de estruturação dos meios proletários aproximando-se um pouco das teorias sociológicas de Robert King Merton (2004). Os critérios de definição de uma gangue em pesquisas americanas, tais como estrutura formal de organização, hierarquia, liderança definida, identificação com um território, interação recorrente, longevidade e engajamento em comportamento violento, não são necessariamente transponíveis para a realidade brasileira; a não ser o tráfico de entorpecentes que apresenta estrutura similar a descrita. Já o uso da categoria galera pode estar relacionado à “galère”, noção utilizada por Dubet (1987) em seus estudos sobre a juventude francesa. O autor pesquisou os jovens de periferia descendentes de imigrantes que se organizam em grupos relacionados a situações de violência. A “galère”é, a princípio, uma forma de sociabilidade solta, uma forma de deixar a existência à deriva, repleta de niilismo, autodestrutividade, desafio, risco e raiva. Esse tipo de sociabilidade pode estar perpassada por criminalidades intermitentes ou por marginalidades difusas (ABRAMOVAY et al., 1999). O uso do termo pelo autor está diretamente referido aos jovens de bairros operários envolvidos com conflitos e tensões decorrentes da imigração, com o desmantelamento de uma possível consciência de classe e com a falta de perspectiva relativa ao fim da política de esquerda e a falta de perspectiva profissional. Tais características parecem, ao menos no caso da falta de perspectiva de alguns grupos de jovens, adequar-se mais à análise do caso brasileiro. Contudo, a aplicação do termo aqui não está diretamente relacionada a grupos de jovens de classe baixa, como foi dito. No caso específico deste estudo, o termo galera, eventualmente gangue, ou bonde (termo nativo ligado aos comboios de ônibus fretados pelos funkeiros para irem aos bailes), será utilizado de uma forma mais genérica para designar o grupo de classe média ou média alta, mais ou menos estruturado de fisiculturistas ou marombeiros veteranos, que desenvolvem, fora das academias, desde atividades lúdicas até atos de delinquência – nesse caso não deixando de serem lúdicos para eles – brigas e agressões, eventualmente pequenos furtos ou estelionatos. Os membros desse grupo mantêm relações de solidariedade à base de uma identidade incipiente compartilhada que busca (em um arremedo), no modelo das organizações criminosas do tráfico de entorpecentes, o paradigma de suas atividades e mesmo eventual consumo de bens simbólicos. 257 CÉSAR SABINO Essas galeras ou bondes são compostas por pessoas de classe média que, sem necessidade econômica premente ou aparente, cometem delitos procurando imitar as práticas e representações dos grupos delinquentes de classe baixa. Esse grupo pode ser considerado uma extensão eventual do grupo dos marombeiros que, por sua vez, se encaixaria na definição de tribos urbanas dos trabalhos de Maffesoli (1987; 1995). Essas “tribos” apresentariam um caráter volátil relacionado às suas formações identitárias. Se significam volatilidade, o bonde ou a “galera da maromba” (como por vezes se definem), no caso específico deste estudo, o é mais ainda, visto não passar de uma manifestação eventual – de final de semana ou noites de farra – do grupo de praticantes assíduos de musculação e artes marciais. Nesse aspecto, fica marcada a diferença brasileira em relação às dimensões organizacionais das galeras francesas ou europeias e as gangues ou máfias estadunidenses. Os primeiros apresentam comportamento menos estruturado e diretamente calcado no prazer e amor pelo risco e delinquência, tidos como diversão e afirmação de autoridade e masculinidade hegemônica. Outro possível aspecto inerente a essa dinâmica das culturas de classe é aquele proposto por Carlo Ginzburg (1986) sob o título de circularidade cultural. Pensando os diferentes enfrentamentos entre cultura dominante e subalterna, e afastando a possibilidade de uma assimilação direta dessa cultura dominante pelos populares, e vice-versa, Ginzburg, ao analisar o trabalho de Bakhtin (1987), destaca que o autor exemplifica um processo de absorção de parte da cultura popular por um homem erudito, literato e médico, frequentador da corte – François Rabelais. Em sua obra, aparecem termos chulos, grosseiros e obscenos, estranhos para um homem em sua posição em sua época. A presença desses termos estava relacionada à convivência de Rabelais com o mundo da praça pública renascentista. Essa proximidade, segundo Bakhtin, permitiu a absorção, por parte de Rabelais, de itens culturais que não pertenciam a sua classe. A partir da análise desse aspecto, Ginzburg busca compreender o movimento recíproco e contínuo que influencia os diferentes níveis culturais e que definirá as linhas mestras do seu trabalho sobre Menocchio, apelido de Domenico Sacandella, o moleiro friulano, crítico da Igreja e que, convocado pela Inquisição, apresenta um sistema cosmológico claro construído por vários itens reapropriados e reinterpretados da cultura erudita da época terminando queimado na fogueira por ter adaptado abstrações filosóficas e teológicas a uma realidade refratária e fortemente marcada pela vivência concreta e materializada dos fenômenos religiosos. Menocchio serviu-se de algo que lhe era familiar, cotidiano, 258 DROGAS DE APOLO conhecido: comparou a criação do mundo (Gênesis) com o processo de produção de queijos relacionando os vermes à criação dos anjos84, sendo por isso considerado herege (HERMANN, 1998; GINZBURG, 1989). Enquanto Rabelais havia sido influenciado pela cultura das classes baixas, Menocchio o foi pela cultura letrada das classes altas ou alta cultura. Ginzburg escreve que, apesar de essa análise ser micro-histórica, destacando o indivíduo, ela não prescinde, de maneira nenhuma, da análise conjuntural que fornece aos agentes sua condição estrutura ou histórico-social. A criatividade de Menocchio, por exemplo, só foi possível devido à Reforma e à criação da imprensa, que expandiu a capacidade de leitura e as transformações da Época Moderna. Com efeito, se indivíduos de classes inferiores por vezes constroem sistemas culturais reapropriando-se dos itens pertencentes às altas culturas, o contrário também ocorre. A apropriação do funk por grupos da classe média e média alta segue um processo comum dos embates entre culturas distintas e não significa, necessariamente, que aqueles grupos que frequentam os bailes e compartilham algumas representações e práticas com os moradores das comunidades, morros e favelas, deixarão de fato o habitus que os constitui como elementos da classe dominante à qual pertencem. Norbert Elias, estudando a sociedade de corte, também nos fornece instrumentos eficazes para a compreensão dessa circulação dos modelos de comportamento. Se o processo civilizatório se caracteriza, a princípio, pela difusão a toda a sociedade das proibições, censuras e controles em termos distintivos da maneira de ser dos homens de um determinado grupo social, a generalização de comportamentos e condicionamentos próprios em primeiro lugar dos dominantes (no caso do estudo de Elias, os nobres da sociedade de corte) não deve ser entendida como uma difusão unidirecional, atingindo todo o grupo social a partir do grupo que a domina. Ela é antes o resultado de uma luta concorrencial que leva certos grupos dominados (no caso específico do autor, os burgueses) a imitarem as maneiras de ser aristocráticas e que, por sua vez, obriga os dominantes a aumentarem as exigências de distinção (civilidade, para Elias) no intuito de A cosmogonia de Menocchio pode ser resumida da seguinte maneira: no início tudo seria caos, isto é, terra, ar, água e fogo em conjunto lado a lado. Em determinado momento, esse caos produz um volume pela mistura desses elementos, como o queijo é feito do leite. Nessa massa nascem os vermes que se tornam os anjos, sendo Deus o superior e por isso torna-se senhor entre eles em uma hierarquia que principia com quatro capitães: Lúcifer, Miguel, Gabriel e Rafael. Sendo que Lúcifer, ao querer ser senhor à imagem do rei ou Deus, este o expulsa do Céu com todos aqueles a quem comandava. Dessa feita, Deus resolve fazer Adão e Eva e toda a humanidade para substituir os anjos expulsos; a essa humanidade, que não cumpria os seus mandamentos, enviou o seu filho que foi preso e crucificado pelos judeus. 84 259 CÉSAR SABINO voltar a atribuir-lhe um valor discriminativo. Esse jogo, essa dinâmica de expropriação e desautorização, parece ser uma forma comum a inúmeras sociedades complexas atuais de renovar as distâncias socioculturais. Destarte, a atração exercida sobre as camadas inferiores da sociedade pela cultura da elite não deixa de tornar essa cultura mais exigente ou ao menos de tentar inovar essa exigência; os condicionamentos dos dominantes sobre os dominados não deixam de provocar efeitos de retorno, que reforçam nos poderosos os mecanismos de autocondicionamento (CHARTIER, 1990; ELIAS, 1983; 1994). Parecem ser as camadas mais jovens das classes altas aquelas que absorvem com mais facilidade e rebeldia os elementos desprezados, fazendo-os entrar na cultura superior. Nesse movimento, os itens característicos das classes baixas tornam-se moda ou objeto de culto no mercado consumidor, provocando ações de repúdio ou aceitação tácita por parte da camada da qual fazem parte – não raro essa aceitação é consciente e populista. Como as classes sociais se definem pela oposição que ocupam na estrutura social, sendo essa posição única e não confundida com uma outra, ocorre entre elas uma relação de forças que as atinge em todas as modalidades. Trata-se, grosso modo, do espaço social caracterizado por tensões entre diferentes modalidades de poderes, cada qual atuando de acordo com lógicas que lhes são próprias e pertencentes ao seu campo específico, formando subestruturas de relacionamentos. O espaço das classes seria o espaço ocupado dentro dessa estrutura social – objetiva e subjetiva –; espaço esse que se situa e estabelece uma posição, num ambiente hierarquizado. Essa hierarquia, radicada na posse de determinados capitais (econômico, cultural, social etc.) e na sua desigual distribuição no espaço, estabelece singularidades relativas às diferentes visões de mundo hegemônicas ou dominantes em seu espaço de existência, e só nele; ou seja, cada classe produziria, e seria produzida, não apenas pela posse do capital econômico mas também pelas representações coletivas inerentes a ela. No entanto, a primazia do sistema simbólico, enquanto construtor da distinção social, reitera a permanência, ou a renovação, das relações de força que constituem a estrutura das sociedades. O que equivale dizer que ocorre uma constante disputa pela hegemonia intra e entre grupos sociais, pela autoridade de impor sua visão de mundo e classe às outras classes e aos seus opositores em competição (BOURDIEU, 1979; 2001; NUNES; KHOLSDORF, 1999; SOBRINHO, 2003). A circularidade cultural aqui citada seria um exemplo dessa luta. Portanto, é possível resumir essa circularidade como um processo relacionado a valores, sentimentos, ideias, visões de mundo e práticas, 260 DROGAS DE APOLO vividas e produzidas por grupos ou classes, que são absorvidas, ou recriadas, por outros grupos de uma mesma sociedade ou de outra sociedade, em um tempo específico, ou de tempos diferentes, sempre ligadas às relações de poder e dominação. Retornando ao aspecto de disputas entre gangues e galeras, Zaluar (1997) escreve que, sejam elas de classe média ou não, espelham-se, no caso do Brasil, no modelo organizacional das quadrilhas de traficantes, embora com a particularidade de não terem chefia instituída, regras explícitas (mas implícitas) e objetivo de atividades criminais visando ao enriquecimento. Porém o aspecto comum aos modelos organizacionais que é o da exaltação à violência deve ser destacado, como pode ser percebido no relato de um frequentador de uma academia de musculação no bairro do Grajaú: Eu tava no carro [...] chegou um mané e emparelhou [o carro dele com o meu] e começou a tirar onda com a minha cara, tava querendo botar um pega, aí eu acelerei, ele acelerou e a gente ficou naquela, eu passava, ele passava [...] de repente o cara deu uma batida no meu para-choque, fiquei puto! Vai se f****, gritei. Ele me mandou tomar no c*. Ah, malandro [...] eu peguei a máquina [pistola] e mandei bala pra cima dele, só que eu tava tão puto que mandei pelo vidro do meu carro, o cara sumiu e eu fiquei com o vidro todo quebrado. No outro dia arrumei um parceiro e fui procurar um carro igual ao meu para roubar o vidro, a gente encontrou [...] em Botafogo, ele abriu o carro, eu entrei e meti o pé por dentro no vidro, ele soltou e a gente levou, mas a cor era meio esverdeada, não ficou bom que nem o outro, mas usei assim mesmo (Carlos. 31 anos. Advogado). Esse relato, um entre muitos do mesmo teor, feito por um informante de família abastada, pode ter sido exagerado pelo informante em seus aspectos principais; porém alude ao fato de que não é apenas a dimensão econômica, de classe social, ou a miséria que leva os indivíduos a cometerem roubos, ou mesmo assaltos, além de outros crimes. Entre alguns daqueles – sempre indivíduos do sexo masculino –, pertencentes à classe média das academias pesquisadas, pequenos furtos em estabelecimentos comerciais, roubo de carros, uso de drogas recreativas, prática de “pegas”, agressões corporais e uso de armas de fogo são comuns objetivando aquisição de destaque dentro do grupo que exalta esse tipo de masculinidade. Esses aspectos transcendem as determinações da pobreza e da exclusão social. É preciso ressaltar que os indivíduos aqui estudados não são atletas profissionais, pois, como disse, o bodybuilding no Brasil apresenta profissionalização bastante incipiente. 261 CÉSAR SABINO A convivência próxima que esses jovens têm com o crime organizado nas favelas que circundam seus bairros, (convivência estreitada pela frequência a determinados locais festivos e acesso à “cultura das favelas”), leva-os, muitas vezes, a verem os líderes do tráfico como modelos de poder e paradigmas de autoridade. Soma-se a isso o uso, e mesmo o tráfico, de esteroides anabolizantes que podem criar sentimentos de empatia pelas práticas ilegais do tráfico de entorpecentes, associadas à admiração pela rebeldia e juventude. Alguns jovens universitários que praticam musculação e fisiculturismo obtêm renda significativa vendendo esteroides e outros tipos de drogas nas academias do Rio de Janeiro. Esta nota etnográfica escrita por mim em maio de 2002 é significativa: Chegando à academia na parte da manhã vejo Ricardo conversando em caráter confidencial com um indivíduo de cabelos escuros e lisos e óculos de sol. Me aproximo e João me apresenta a Márcio, o sujeito vende todo tipo de esteroide possível. Márcio aparenta em torno de 22 anos, está vestido com uma camiseta de malha escrita Boss, calçado com um tênis Nike e usa cordão e pulseira grossa de ouro. Chego bem na hora que João está encomendando 22 ampolas de winstrol. Percebo que aquele é o instante para estabelecer contato com um ‘traficante’. Digo que estou interessado em comprar o mesmo que João. Márcio responde que tenho que dar o dinheiro primeiro e ele me traz “a parada” depois, no dia seguinte. Pergunto se ele só tem winstrol e ele diz que tem de tudo. Aí contigo agora? Pergunto. Ele diz que não. No momento só tem durateston e deposteron, peço para ver, ele diz para irmos ao carro do outro lado da rua. Vou com ele até um carro caro e bem equipado. Tentando ganhar mais tempo pergunto a ele qual produto é melhor para fazer emagrecer, segundo a maioria dos usuários, além de crescer músculo. Ele diz que é o winstrol. Ele me mostra uma caixa de isopor cheia de ampolas de durateston já sem as embalagens. Digo que estou em dúvida que acho que o winstrol seria melhor. João reitera que o winstrol é mais adequado mesmo já que desejo perder gordura. Afirmo que ficarei com o winstrol que ele não tem no momento. O vendedor me diz para lhe dar o dinheiro. Falo (temeroso) que, como não sabia, só estou com cheque. Ele diz que só aceita dinheiro e que estará na academia no dia seguinte pela parte da manhã para que o procure. Após o fornecedor ir embora, pergunto a João se ele o conhece há muito tempo. Diz que o conhece há um ano e que ele é o seu fornecedor. Como conheço João desde os tempos da graduação, pergunto sobre a vida de Márcio, mas ele só diz que o cara vive disso, de vender ‘bomba’ para tudo quanto é academia das redondezas e até da Zona Sul, e que ganha muito dinheiro, principalmente no verão; fala também 262 DROGAS DE APOLO que o mercador de ‘bombas’ estuda Educação Física. Depois disso passei um mês sem aparecer pelas manhãs, revezando noite e tarde até que Márcio esqueceu de mim. Tem ocorrido também a venda, por intermédio das farmácias virtuais, destas substâncias pela internet. As atividades ilícitas que essas pessoas praticam com suas galeras são realizadas de maneira transitória e esporádica. Com o passar do tempo, em geral, esses jovens rebeldes tendem a abandonar as práticas, o contrário daqueles que entram para o crime organizado, do qual em geral saem mortos (ZALUAR, 1997) – é preciso ressaltar da mesma maneira que jovens abastados que cometem pequenos delitos, ou mesmo delitos maiores, têm, em suas famílias ou meios de influência, quem os impeça de serem presos ou de assim continuarem se for o caso. Sem embargo, não apenas nesse grupo social, mas em outros, existe a tendência à apologia da delinquência e da violência como uma espécie de modus vivendi85. O fascínio pela imagem do macho, “bárbaro”, violento, armado com seus músculos, técnicas de luta e armas de fogo diversas, que impõe sua autoridade pelo terror, está, mesmo que em alguns casos de forma incipiente, presente no imaginário de fisiculturistas que formam turmas e têm a marca da virilidade como espécie de ícone sagrado. Arriscaria mesmo dizer que essa representação está presente na mentalidade de grande parcela da população brasileira. A necessidade belicosa pode ser exemplificada pelo fato de que apenas o olhar de um homem desconhecido para outro, em um recinto fechado, ou mesmo na rua, ou um esbarrão não intencional, já basta para criar uma briga, posto que esses acontecimentos são, em geral, entendidos como desafio, invasão de território (espaço pessoal) e privacidade, além de significar atos inimigos que devem ser imediatamente destruídos: Os dados do campo apontam para a dimensão cultural da reprodução da violência colocando em xeque as concepções do senso comum que vê apenas e somente na pobreza sua causa primordial (RIELLA, 1999). É certo, porém, que os filhos da classe média carioca atual se deparam com uma realidade econômica em crise que, não raro, coloca-os em situação de maior dificuldade econômica se comparada com a de seus pais quando tinham sua idade em décadas passadas. Há hoje convergência entre o aspecto econômico de reorganização do mundo do trabalho – com grande desemprego estrutural – e a dimensão simbólica que radica cidadania e construção social da pessoa ao consumo de bens e serviços que pode levar jovens à delinquência da mesma forma que leva jovens da classe baixa, não devido necessariamente à miséria, embora esse seja uma elemento crucial de análise, mas, como disse, à importância dada ao consumo como condição sine qua non da dignidade e identidade social. Se, para alguns jovens das favelas cariocas, não raro, a violência e o crime são um dos únicos, se não o único, meio de conquistar dignidade social destacada em seu meio – ainda que momentânea –; para jovens de classe média, essas atividades não significam a única forma, contudo podem representar o meio mais imediato de se destacar socialmente pela atuação criminosa e consumo de bens considerados por eles indispensáveis para representar papel social reconhecido (WACQUANT, 2001), sendo também a própria sensação de se colocar em risco e a demonstração de destemor um desses itens “espetaculares” de consumo. 85 263 CÉSAR SABINO [...] as brigas, a porradaria começam com um olhar [...] o cara encara o outro desafiando, pronto! A porrada já come solta. Se tá olhando muito tá desafiando, tá duvidando de que tu sabe brigar ou tá achando que tu é viado... ou então o cara te dá um esbarrão e aí tu já sai socando... se ele olhar muito e, pior, se mexer com uma garota do grupo também já leva porrada. Mulher dos outros tem que ser respeitada. (Pedro, 21 anos. Estudante). Embora, como disse, não possuam uma organização com regras rígidas, tais como as regras que governam os grupos e quadrilhas do crime organizado, nem mesmo uma chefia devidamente estabelecida, pode-se considerar que a organização das galeras funciona, grosso modo, como a política segmentar dos Nuer estudada por Evans-Pritchard (1978). Os Nuer dividem-se em aldeias “vinculadas pela residência comum e por uma rede de parentesco e laços de afinidades, cujos membros cooperam em muitas atividades [...] tendo um forte sentimento de solidariedade contra outras aldeias”, pois têm um “sentimento comum ligado a um território único” (EVANS-PRITCHARD, 1978, p. 127, 154). As galeras da maromba organizam-se adotando muitas vezes o nome das favelas e morros que circundam os bairros do Rio de Janeiro dos quais esses homens e mulheres são provenientes: “bonde do Borel”, em alusão ao morro do Boréu, favela situada no bairro da Tijuca, “galera do Cantagalo”, favela do bairro de Copacabana, e assim por diante. Também os nomes dos próprios bairros podem servir de referência. Grupos que alimentam sentimento bairrista, unindo-se quando surgem disputas com outros grupos de bairros rivais. Essa rivalidade confere seu tom organizacional segmentar. Quando em um evento qualquer, surgem disputas entre indivíduos de grupos diferentes e rivais, todos os indivíduos presentes ao local e pertencentes aos grupos em atrito entram no conflito provocando pancadarias generalizadas. Embora diferente, o sistema organizacional nuer é similarmente segmentado e acéfalo constituído por uma série de seções opostas que se contrapõem de forma cada vez mais aguda à medida que a distância territorial e de parentesco se concretiza. São tais oposições entre valores rivais dentro de um sistema territorial que fazem a essência da sua organização político-social. Enquanto entre os belicosos Nuer a separação se dá, a princípio, por seções e segmentações que vão se ampliando em rivalidade e se unindo em luta até chegar à disputa com o estrangeiro; entre as galeras, a segmentação principia entre academias do mesmo bairro que podem, em uma disputa maior, estabelecer união. Grupos de uma academia contra grupos de outra do mesmo bairro, conjunto de grupos de academias do mesmo bairro contra outro conjunto de academias 264 DROGAS DE APOLO de outro bairro, e assim por diante se a circunstância sugerir. Vale ressaltar que esse processo não possui a fixidez presente na organização social Nuer na qual a segmentação é muita mais vital e necessária, nem mesmo é possível generalizá-lo para todas as gangues e grupos em disputa na cidade. Outro aspecto organizacional que vem distinguir as galeras das quadrilhas do crime organizado é a questão do patronímico. Se tanto a quadrilha quanto a galera dão importância ao território, tendo esse como um dos focos organizacionais, a última organiza-se em torno de um chefe, uma liderança criminosa (ZALUAR, 1997), o que não ocorre necessariamente com as galeras. Fernandinho Beira-Mar, Marcinho V. P., Isaías do Boréu etc., são nomes de líderes do tráfico tornados famosos pela ampla divulgação de suas figuras na imprensa e mídia em geral. Indivíduos que servem de base representacional para organizações criminosas as quais eles comandam, similar ao estilo da dominação carismática estudada por Weber. Quando mortos, logo são substituídos por outros com tendência similar. Esse tipo de violência, descrito anteriormente, pode ser relacionado àquele citado por Simmel em sua obra, o qual ressalta que o conflito é indispensável para a unidade dos grupos sociais, mesmo a preço do aniquilamento, mas nunca da destruição total ou do extermínio do adversário. A luta ou o conflito são condição sine qua non para a coesão social nesse caso, pois os grupos têm o interesse em manter acesa as disputas, em fazer perdurar os conflitos, provocando-os muitas vezes, sem pretender resolvê-los definitivamente para não ver quebrada a unidade que os caracteriza, pois a vitória total de um grupo sobre seus inimigos nem sempre representa uma solução de fato, por debilitar a energia que garante a unidade, possibilitando o desenvolvimento de forças dissolventes, que sempre estão ativas. Desse modo, pode ser prova de articulação e habilidade política manter, ou mesmo provocar, a existência de certos inimigos para manter a coesão dos membros, e para que o grupo continue consciente de que a unidade constitui seu máximo interesse vital. Em suma, o conflito (ou a luta) é considerado uma forma fundamental do processo social (SIMMEL, 1983; 1993; também: GLUCKMAN, 1987; TARDE, 2002; LEACH, 2014). Assim, a segmentaridade conflituosa presente nas academias pode ser um meio do grupo manter um tipo, mesmo temporário, de coesão, além de toda a competição formal e individualista inerente à prática do fisiculturismo. Todavia, o conflito constatado nesses grupos sociais não se resume apenas a essa dimensão que a princípio seria função de uma ordem fundada na troca horizontal entre grupos similar às trocas bélicas primitivas (FAUSTO, 1999). 265 CÉSAR SABINO 6.3 VIOLÊNCIA ANÔMICA Necessário se faz observar uma dimensão que muitas vezes passa despercebida àqueles que abordam o problema da violência. É comum o uso de exemplos relacionados aos povos africanos e principalmente ameríndios – esses últimos talvez devido ao tema do canibalismo que surte efeito impactante sobre o senso comum. Se as sociedades nuer ou tupinambá são usadas como exemplos de culturas belicosas, isso não significa que articulem a violência com o mesmo sentido, função e consequência que as atuais sociedades latino-americanas, europeias, asiáticas e norte-americanas, produtoras e produtos de sociedades complexas capitalistas86. O tema violência é polissêmico, polivalente e caracterizado por uma plasticidade de sentidos que propicia fácil manipulação; portanto há que ser esclarecido: se não existe sociedade sem um certo quantum de violência (GIRARD, 1989; MAUSS; HUBERT, 2005; MISSE, 2012; WIEWORKA, 2014), é no Ocidente capitalista, porém, que se gesta, cria e articula um modelo de violência racionalizada, arquitetada para eliminar a diferença, o diferente e o Outro da face da Terra. Essa Violência, que, para distinguir um tipo do outro, grafamos no momento com V maiúsculo, tem como característica o aperfeiçoamento técnico proporcionado por um paroxismo calculante na arte da guerra e da guerrilha visando ao aniquilamento da alteridade. Violência produto da razão instrumental ou sistêmica e de seu culto, o racionalismo que a tudo visa a submeter, abarcar, explorar e controlar (WEBER, 1997; HABERMAS, 1992). Sem embargo, a diferença é traduzida enquanto ameaça à Identidade; o inimigo não deve jamais ser assimilado, absorvido ou aceito, mas destruído, pulverizado, aniquilado. Esse movimento depredatório atingiu seu desenvolvimento máximo entre as nações denominadas “evoluídas” durante o século XX, por intermédio do “desenvolvimento técnico dos implementos, [destrutivos ao] ponto em que nenhum objetivo político poderia presumivelmente corresponder ao seu potencial de destruição, ou justificar seu uso efetivo no conflito armado” (ARENDT, 1994, p. 13). Nesse âmbito, necessito fazer um adendo: o ser humano é o único animal que fala, tem parentesco, troca produtos do seu trabalho (LÉVI-STRAUSS, 1982) e é cruel (NIETZSCHE, 1988). A violência pelo simples prazer e gozo de ver o outro sofrer até os estertores, a transformação de outros seres vivos e semelhantes A respeito da violência em sociedades denominadas de “Primeiro Mundo”, por exemplo, Wacquant escreve: “a partir da década de 1980, a autoimagem das sociedades de Primeiro Mundo, como cada vez mais pacíficas, homogêneas, coesas e igualitárias – ‘democráticas’ segundo a noção de Tocqueville, ‘civilizadas’ no léxico de Norbert Elias – vem sendo destruída por explosões estrondosas de desordem pública, por crescentes tensões etnorraciais e pelo surgimento evidente da desigualdade e da marginalidade das metrópoles” (2001, p. 163). 86 266 DROGAS DE APOLO em espetáculos trágicos e sanguinolentos para o deleite do espectador, seja qual for, é uma característica única desse ser produtor de símbolos complexos. E é por isso que temo quando alguma autoridade diz que pretende humanizar algum aspecto da realidade social, como se a crueldade não fosse elemento pertencente exclusivamente à nossa espécie. Pelo que sei, Hitler, Mussolini, Papa Doc, Stálin e tantos outros não eram poodles ou equinos. Para percebermos as sutilezas que separam a violência constitutiva de todas as organizações sociais e a Violência que ameaça a própria dissolução da sociedade e dos recursos planetários, necessário se faz remeter a estudos da antropologia política, mormente a etnologia. É interessante que as sociedades que se autodenominaram civilizadas, evoluídas, e que reivindicaram o título de portadoras do progresso para o aprimoramento dos “povos bárbaros” tenham materializado, em suas próprias ações, o significado da palavra barbárie (significado que elas mesmas forjaram para se distinguirem dos “outros”) engendrando, pela primeira vez na história, carnificinas traduzidas em etnocídios e genocídios: o totalitarismo é um fenômeno de origem eminentemente ocidental (ARENDT, 1989)87 que parece ter sido exportado para outras culturas e sociedades. Segundo atestam inúmeras etnografias até o momento, sociedades ameríndias, por exemplo, não apresentavam violência a ponto de colocar em risco a existência de suas estruturas sociais. Os tupinambás, amplamente conhecidos pela sua belicosidade e canibalismo, articulavam essas práticas em um processo de trocas com o inimigo que eram constitutivas de suas relações sociais de troca demonstrando uma grande civilidade no trato com o outro (DESCOLA, 1999). Se a guerra era violenta, ela não portava Violência, pois seu propósito era alimentar a ordem cosmológica, absorver a alteridade tida como honrosa, portanto jamais passível de ser destruída. A guerra era mesmo uma forma de evitar o surgimento do Estado mantendo a reciprocidade como dinâmica de trocas do sistema social (CLASTRES, 1989; FAUSTO,1999). Assim, a existência da diferença e da alteridade era essencial para a própria existência tupinambá: [...] a ‘teologia’ de alguns povos tupis formula-se diretamente nos termos de uma sociologia da troca: a diferença entre deuses e homens se diz na linguagem da aliança de casamento, aquela mesma linguagem que os tupinambá usavam “Os campos [de concentração] destinam-se não apenas a exterminar pessoas e degradar seres humanos, mas também servem à chocante experiência da eliminação, em condições cientificamente controladas [...] da transformação da personalidade humana numa simples coisa.” (ARENDT, 1989, p. 489). 87 267 CÉSAR SABINO para pensar e incorporar seus inimigos [...] é a troca não a identidade o valor fundamental a ser afirmado [...] guerra mortal aos inimigos e hospitalidade entusiástica [...], vingança canibal e voracidade ideológica exprimiam a mesma propensão e o mesmo desejo: absorver o outro e, neste processo, alterar-se. Deuses, inimigos, europeus eram figuras da afinidade potencial, modalizações de uma alteridade que atraía e devia ser atraída; uma alteridade sem a qual o mundo soçobraria na indiferença e na paralisia. O outro não era um espelho, mas um destino (VIVEIROS DE CASTRO, 2002b, p. 206-207, 220, grifos meus). Longe de destruir o outro, a guerra entre os tupinambás era um processo constitutivo de sua própria existência (FERNANDES, 1970); ela não visava, portanto, a aniquilar a diferença, mas a estabelecer uma relação de troca com o inimigo, sempre digno de honra e respeito88. O antagonista era morto e devorado em um movimento ritual (exocanibalismo) no qual se esperava que seus parentes o vingassem matando e devorando, num ritual similar e honroso, aqueles que mataram e devoraram seu parente ou semelhante guerreiro: A religião tupinambá, radicada no complexo do exocanibalismo guerreiro, projetava uma forma onde o socius constituía -se na relação ao outro, onde a incorporação do outro dependia de um sair de si – o exterior estava em processo incessante de interiorização, e o interior não era mais que movimento para fora [...] tratava-se, em suma, de uma ordem onde o interior e a identidade estavam hierarquicamente subordinados à exterioridade e à diferença, onde o devir e a relação prevaleciam sobre o ser e a substância. Para esse tipo de cosmologia os outros são uma solução, antes de serem – como foram os invasores europeus – um problema. (VIVEIROS DE CASTRO, 2002b, p. 221). O inimigo, absorvido, transformado, tornava-se um tupinambá. Esse processo se realizava com o cativo sendo depilado e pintado à moda da casa (quando era europeu), comia e bebia com seus captores, dançava e acompanhava-os à guerra e a ele, cativo, era dada uma esposa, o que o transformava em cunhado daqueles que o matariam e comeriam. Dessa forma, o exocanibalismo guerreiro era uma empresa de socialização do inimigo. Longe de retirar a dignidade e a honra do outro, desejando exterObserva-se que a barbárie é, portanto, uma representação criada pelas culturas ocidentais e que ela se aplica a princípio àqueles que já, apresentando a tendência de praticá-la, inventaram-na para classificar o outro. 88 268 DROGAS DE APOLO miná-lo como antagonista, os tupinambás queriam certificar-se que aquele que seria morto entendesse e desejasse o que estava acontecendo consigo (VIVEIROS DE CASTRO, 2002b, p. 221). Ao contrário da Violência típica das sociedades complexas ocidentais, a guerra tupinambá não era feita com o objetivo de enriquecimento, anexação de propriedades ou conservação de território, mas unicamente pela honra; um sentido de honra que estava diretamente relacionado a outro, o de vingança. Essa vingança, por sua vez, relacionava-se à concepção guerreira de que [...] a morte em mãos alheias era morte excelente porque era morte vindicável, isto é justificável e vingável; morte com sentido, produtora de valores e de pessoas [...] morrer em mãos alheias era uma honra para o guerreiro, mas um insulto à honra de seu grupo, que impunha resposta equivalente. É que a honra, afinal, repousava em se poder ser motivo de vingança, penhor do perseverar da sociedade em seu próprio devir. O ódio mortal a ligar os inimigos era o sinal de sua mútua indispensabilidade (VIVEIROS DE CASTRO, 2002b, p. 233-234). O sistema exocanibalista consumia indivíduos para que a sociedade mantivesse aquilo que lhe era essencial: sua relação com o outro. Esse deveria sempre ser respeitado e honrado em sua diferença, visto que sua existência e de seu diferir eram essenciais para a existência do “eu” ou do “nós”. Devia-se, portanto, esperar a contrapartida do inimigo e encará-la com honra, pois a troca no sistema exigia também morte igual daquele que matava (FAUSTO, 1999). Na hora de sua morte, o cativo, de maneira orgulhosa e destemida, afirmava sua condição de matador e canibal, evocando aqueles inimigos que havia morto em circunstâncias semelhantes as quais se encontrava naquele momento e reivindicava, em uma espécie de eterno retorno nietzscheano, a vingança daqueles que, com a sua morte, estavam se vingando das mortes que outrora ele havia provocado: “o passado de vítima foi o de um matador, o futuro do matador será o de uma vítima; a execução iria soldar as mortes passadas às mortes futuras, dando sentido ao tempo” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002b, p. 238). Sem querer incitar dualismos ou ser reducionista demais, ao me deparar com esses dois tipos de abordagens socioculturais distintas relacionadas ao comportamento violento, pergunto-me: se tomarmos como elementos o respeito à alteridade, a disciplina de costumes e condutas, a contenção da violência destrutiva e depredadora, a manutenção da reciprocidade, a harmonia com o entorno 269 CÉSAR SABINO socioecológico, podemos considerar as formações sociais ameríndias como tendo realizado processos civilizatórios consistentes que, diante da condição atual das sociedades complexas, colocar-lhes-ia em condição de bárbaros, invertendo totalmente a tradição etnocêntrica? O modus operandi da violência, nessas sociedades “primitivas”, portanto, articula-se enquanto manutenção da própria ordem social (CLASTRES, 1989)89 ao contrário da violência anômica (Violência) existente em sociedades complexas, como a brasileira ou grande parte dela. Esse aspecto pode ser aplicado ao entendimento da Violência presente, por exemplo, no Rio de Janeiro. A expansão na cidade do mercado das drogas, com a inserção da cocaína na década de 80 e o aumento do tráfico de armas e das condições de miserabilidade com ausência de serviços estatais nas favelas, potencializou a violência de forma a torná-la praticamente um risco para a manutenção da organização social. Contudo parece que o aumento de ambos os tráficos – armas e drogas –, da dissensão entre traficantes pela disputa territorial e o surgimento das milícias são sintomas de um processo de longa duração depredatória somado às tradições culturais que têm no compadrio, na corrupção e na transformação do mundo e do outro em coisa o seu sustentáculo, em um verdadeiro devir-escravocrata. O relato a seguir, colhido em uma academia do Grajaú, é sugestivo: Eu detono, destruo, aquele que me desafia [...] se alguém é ‘alemão’ [inimigo] eu pego para matar, não quero nem saber, se saio na night então é festa total! Outro dia descarreguei [a arma] em cima de um otário, tava no carro e vi o mané na rua [...] duas e pouco da manhã, acho que ele tinha mexido com minha mina no baile e aí eu ia enfiar a porrada nele, mas ele sumiu com uma galera [...], e eu não vi mais [...] ah, meu irmão, tava passando no carro e vi o otário com outro babaca andando na rua, diminui a velocidade, cheguei pertinho e mandei bala em cima dos dois não sei nem o que deu, saí a mais de cem, sumi [...] como tava escuro e não tinha ninguém na rua, [...] ninguém viu. (Paulo. 27 anos. Advogado). A atitude gratuitamente violenta que está predisposta a eliminar outras pessoas pelo simples prazer de extravasar o ódio, a crueldade ou a tensão raivosa por serem diferentes, parece exemplificar os valores, as crenças e os costumes autoritários que permeiam o cotidiano nacional, e do carioca mais especificamente. Cidadania, equanimidade e respeito à diferença Para Clastres, a chefia amazônica funda-se sobre o consenso do grupo; esse, para precaver-se contra uma possível violência abusiva que o exercício do poder pode implicar, escolhe, mais ou menos a contragosto, um homem marginalizado e moderado, que possa proteger a sociedade da eventualidade de transformar-se em Estado. 89 270 DROGAS DE APOLO parecem, em alguns momentos, inexistir no dia a dia e nas relações sociais do grupo estudado e podem ser tidos como amostra do que é geral em uma sociedade que, durante quase quatro séculos, esteve acostumada à escravatura, naturalizando-a e que mantém um devir-escravocrata. Sendo assim, parece “normal” tratar a diferença como objeto a ser destruído, exterminado se não for útil para ser explorado até as últimas possibilidades. Fora essa violência gratuita há, nesse pequeno trecho de entrevista, o exemplo da manipulação identitária percebida no discurso referido ao contexto social no qual o narrador está inserido. A fala desse advogado – eivada de itens pertencentes ao sistema linguístico das favelas cariocas – só é possível ser compreendida se for tomada pela perspectiva daquele que a profere, na circunstância que a profere: indivíduo pertencente a uma classe superior e portador de capital cultural legitimado (BOURDIEU, 2001; GOFFMAN, 1982). Aqui é preciso fazer um adendo para a questão da sutil violência linguística que não se limita apenas ao grupo estudado e que, por homologia, compara-se a outras instâncias sociais. Essa manobra simbólica apresenta o caráter que Bourdieu – ao escrever sobre a apologia que alguns intelectuais fazem a respeito do colorido da linguagem do gueto – bem frisou em seu livro Meditações Pascalinas (BOURDIEU, 2001, p. 93): [...] em lugar dos alunos de escolas de elite, a linguagem inventiva e cheia de colorido, logo capaz de propiciar intensas satisfações estéticas, dos adolescentes do Harlem, permanece inteiramente desprovida de valor nos mercados escolares e em quaisquer situações sociais análogas, a começar pelas entrevistas de empregos [...] o culto da ‘cultura popular’, não passa, no mais das vezes, de uma invenção verbal e inconsequente, portanto falsamente revolucionária [...] essa maneira um tanto confortável de respeitar o ‘povo’, contribuindo, sob a aparência de exaltá-lo, para encerrá-lo ou enfurná-lo no que ele é [...] acaba proporcionando todas as benesses de uma ostentação de generosidade subversiva e paradoxal , deixando as coisas como estão, ou seja, uns com sua cultura (ou língua) realmente cultivada e capaz de absorver sua própria subversão elegante, outros com sua cultura ou língua destituídas de qualquer valor social ou sujeitas a brutais desvalorizações. Essa “hipocrisia douta ou esteticismo populista” (BOURDIEU, 2001, p. 96) é outro tipo típico de violência simbólica presente nas relações sociais estudadas. É o tipo de atitude dominante sutil que se manifesta na fala dos “doutos”, ou indivíduos de classes superiores, portanto também 271 CÉSAR SABINO entre alguns acadêmicos que fazem fama e dinheiro usando itens culturais e lugar de fala dos nativos que estudam ou dos subordinados com quem convivem em suas relações de mando e ordem. Esses think tanks da miséria são a romantização oportunista-acadêmica – mas não apenas – que manifesta a lógica da política populista, seja de direita ou “esquerda”, a qual, não raro, utiliza-se da condição inferior alheia, sob o pretexto do “respeito à diversidade”, para promover suas carreiras, denegando e ignorando, em seu inconsciente escolástico, o processo de apologia e manutenção das desigualdades que essa própria apologia à diversidade articula quando não é dada a oportunidade, de fato e direito, ao diverso, das condições institucionais que o permitam construir o próprio discurso sobre si mesmo e suas condições de existência. Nesse desdobrar, entra o aspecto da circularidade cultural, que anteriormente abordei, a qual, ao exaltar a cultura popular, o faz com a intenção de manter o status de sua posição analítica segura, subsumindo o diferente à identidade do observador circunstancialmente complacente, assim como o sentimento, mesmo inconsciente ou recalcado, de superioridade confortável daquele autorizado institucionalmente a emitir discursos e julgamentos sobre os sofredores e inferiores – seus “objetos de estudo” –, do qual se arroga porta-voz eventual, retirando dessa profissão de “bom samaritano intelectual” suas regalias materiais ou simbólicas, sua posição privilegiada no seu campo profissional – acadêmico, jornalístico ou político. Esse tipo sutil de violência simbólica nada contribui para minorar a tradicional violência física presente na sociedade brasileira de tradição escravocrata e escravizante. Processo homólogo se configura quando indivíduos de classe média ou alta (como esse advogado, conhecido no meio como pessoa abastada) apropriam-se das categorias, dos comportamentos e do estilo dos marginalizados da classe baixa, romantizando essa condição, para demarcar na verdade as estruturas da desigualdade que marcam as relações sociais. Esse é um processo homólogo à cismogênese capitalista que se movimenta e se adequa a todas as bandeiras identitárias e contestatórias absorvendo-as e transformando-as em mercadorias. Com efeito, movimentos sociais, como os movimentos negro, feminista, LGBTQIA+ etc., transformam-se em temas de publicidade, filmes, novelas, séries tornando-se produtos rentáveis (SANTOS, 2020), da mesma forma que as imagens-produto nas plataformas digitais e redes sociais. As relações de poder, portanto, são dúcteis, flexíveis, transversais às instituições, organizações e indivíduos. Jamais param de se flexibilizar, exigindo resistência intermitente e renovada a cada instante, tanto por parte dos agentes sociais como 272 DROGAS DE APOLO dos grupos. Não há uma fórmula geral e definitiva de combate à substância poder, simplesmente pelo fato de ela não existir como tal, mas apenas como exercício, fluxo, movimento (FOUCAULT, 1993; GUATTARI; ROLNIK, 1997; DELEUZE; GUATTARI, 2010). Necessária se faz uma constante “crítica da crítica crítica”, para lembrar Marx e Engels em A Sagrada Família, cujo objetivo seja compreender, em um processo de análise que Nietzsche (1988) denominou genealogia da moral, as intenções, a vontade de poder, que sustentam sub-repticiamente, a narrativa, ou o discurso, que se diz e se quer piedoso e, não raro, igualitário, mas que, na prática cotidiana de seus emissores, mantém os elementos opostos de suas afirmações éticas. De qual posição social, quais interesses particulares ou perspectiva cultural a narrativa diz o que está dizendo: “pois todo impulso ambiciona dominar: e portanto procura filosofar [...] uma criatura viva quer antes de tudo dar vazão a sua força – a própria vida é vontade de poder [...] toda opinião é também um esconderijo, toda palavra também uma máscara” (NIETZSCHE, 1993, p. 13, 20, 193). Esse processo, em geral, ocorre de forma inconsciente ao próprio emissor. Retornando à Violência presente no grupo estudado, ela carece de reciprocidade ou de vindicabilidade, tornando-se gratuita e vazia. Ela denuncia a presença do alto risco embutido em uma relação social que envolve a diversidade cultural (BECK, 1996) a qual permite que o medo e sua dissimulação, por meio da reação de ódio, ou uso de armas de fogo, perpassem as relações entre os grupos e pessoas, instaurando a concepção de que qualquer um pode ser um inimigo em potencial. O sentimento generalizado de medo é o reconhecimento do grau de risco real das relações em que as pessoas se tratam não como semelhantes, mas como coisas (MACHADO, 2003). As relações sociais nas quais a Violência se faz manifesta têm estado presente no cotidiano daqueles que vivem nos grandes centros urbanos – e as academias de fisiculturismo não escapam a essa situação. Por exemplo, praticantes de jiu-jitsu, (fisiculturistas, veteranos ou não) são os que enumeram maior número de confusões com agressões físicas ou homicídios até o ano de 2003. O Rio de Janeiro é a capital nacional dos praticantes dessa arte marcial. Em 1999 existiam mais de 400 academias que ensinavam jiu-jitsu. O maior número em todo país (Veja, 3/02/1999). No verão do mesmo ano, em um espaço de poucos meses, a imprensa noticiou a morte de duas pessoas envolvidas em brigas provocadas por lutadores dessa arte marcial. A identificação desses jovens se realiza pelas orelhas 273 CÉSAR SABINO deformadas pelo constante atrito, nos treinos diários, com a lona do tatame. Atrito provocado por gravatas e chaves de perna. A cartilagem, fraturada e esfarelada, conforme cicatriza deixa a orelha sempre inchada e disforme sem as divisões características do pavilhão auricular. Nas academias estudadas, chamam “orelha de repolho”. São insígnias entre os frequentadores dos tatames, símbolos corporais que conferem maior destaque àquele que ostentar o pavilhão mais devastado. O culto à agressão gratuita tem sido outra característica desse grupo: “Se o camarada fica me olhando, vou lá perguntar o que é. Dependendo da resposta, arrebento a cara dele” (Rodrigo. 19 anos. Estudante). Além disso, outra característica dessa “tribo urbana”, são os dedos levemente tortos com nódulos nas juntas de tanto dar socos, a mão muito calejada pela prática intermitente de musculação e a cabeça raspada ostentando apenas um topete. Alguns desses jovens vão às boates e bailes, nos finais de semana, com o intuito de arrumar atritos, confusões e brigas. Em algumas segundas-feiras, encontrei, pelos vestiários das academias, integrantes desse grupo contando proezas. Suas idas em bandos a bailes, dirigindo caminhonetes – outro objeto de adoração dessa tribo que prefere carros grandes e fortes –, lá se apressam em consumir bebidas energéticas à base de cafeína e aminoácidos misturadas com uísque e vodka. Quando agitados, começam a abordar, esbarrar e mesmo agarrar mulheres que acham bonitas e, com a eventual reação de outros para defendê-las, inicia-se a pancadaria. Frequentemente acabam nas delegacias de polícia, mas, como são de classe abastada, dificilmente ocorre punição de fato, pois dizem subornar policiais ou ligam para conhecidos ou parentes influentes que resolvem seus problemas com a Lei. São também aficionados por campeonatos de Vale-Tudo (competições em um ringue em que só é proibido enfiar o dedo no olho do adversário ou mordê-lo. Foram proibidas anos depois) e lutas de boxe. Uma possível mudança desse comportamento talvez sobrevenha ao grupo pela atuação de seus próprios professores e empresários desses esportes que, cada vez mais, tornam-se objeto de repreensão das autoridades e opinião pública, o que ameaça o exercício da profissão daqueles que vivem do ensino e transmissão dessa arte marcial. Da perspectiva de Elias e Dunning (1990; 1993; s/d), essa prática corporal de lutas precisaria passar por um processo civilizatório com a diminuição de sua brutalidade para poder transformar-se em esporte. De acordo com os autores (1994), o surgimento do esporte representou um item singular do processo civilizatório, ocorrido em um período específico de algumas sociedades ocidentais, no qual o controle dos enfrentamentos, 274 DROGAS DE APOLO da brutalidade e da violência destrutiva se manifestou por intermédio da codificação de regras. Essas regras estabeleceram que os embates entre indivíduos e equipes deveriam se realizar sem colocar em perigo os corpos e as vidas produzindo, pari passu, uma tensão prazerosa por meio do relaxamento modulado das pulsões emocionais. O conceito de civilizado – ou de processo civilizatório ou civilizador – nessa abordagem nada tem do etnocentrismo peculiar às tradições positivistas ou perspectivas desenvolvimentistas da sociologia econômica. Busca apenas destacar as estratégias sociais de longa duração visando à criação de dispositivos de regulação e de controle das pulsões de confronto (CHARTIER, 1994; ELIAS, 1993). Essa busca de liberação controlada das emoções parece indicar que as sociedades ocidentais, em algum momento de suas histórias (em outros não), empreenderam estratégias de manutenção de domínio sobre os perigosos vetores pulsionais destrutivos presentes em grupos os quais, desde o início de suas existências, buscaram desenvolver um racionalismo gradativo que, paradoxalmente, ao dominar o mundo, corria o risco de perder o controle desse mesmo domínio. Elias, herdeiro de uma tradição sociológica alemã anti-hegeliana, compreendia que o processo civilizatório não se apresenta como sinônimo de história-progresso, mas sofre retrocessos que podem ser observados ao longo da história, como demonstra o exemplo do nazismo90 (ELIAS, 1996). Ao que parece, esse retrocesso vem ocorrendo desde, pelo menos, o início do século XX, sendo ele mesmo o produto de um movimento histórico de longa duração característico do capitalismo. Assim, a violência presente nas academias pode ser um sintoma de uma situação muito mais ampla que se reflete e reproduz no funcionamento dessas instituições de culto ao corpo e à forma: a situação de violência pervasiva ou difusa que denomino Violência. Há que se esclarecer as sutis modulações relacionadas às categorias de poder e violência. Pode-se considerar, grosso modo, poder como forma de exercício da dominação que se caracteriza pela legitimidade e pela capacidade, proporcionada por essa, de negociar Conforme Novaes (1999, p. 11) e Abdelwahab Meddeb (1999, p. 171-196), o Islã, de forma similar, criou uma das maiores e mais consistentes civilizações que não apenas aceitava as diferenças, e com elas convivia, assimilando-as, como produziu também uma revolução nos campos do saber, indo das artes à ciência passando pela arquitetura, geometria, álgebra, matemática em geral; tudo exatamente produto da confluência – e de suas traduções árabes –, de elementos gregos, latinos, indianos, persas e chineses. Esse processo civilizatório apresentou seu auge entre os séculos IX e XII quando regrediu (processo descivilizatório) de forma intensa pela força autoritária da teologia política maniqueísta: “o Islã da decadência [civilizatória] seria precisamente a do maniqueísmo [...], uma crença definitivamente fixada, que execra qualquer inovação; um pensamento conservador que fecha as portas às críticas da razão; a ausência de sábios e espírito científico” (MEDDEB, 1999, p. 192). 90 275 CÉSAR SABINO o conflito e estabelecer o consenso; ou seja, o poder é a possibilidade que tem o indivíduo ou o grupo de realizar sua vontade. Ele – o poder – necessariamente se estabelece na coerção simbólica, não apenas econômica (WEBER, 1995; BOURDIEU, 1987); essa sedimenta a organização social fazendo com que um grande número de pessoas siga, obedeça a, um número menor ou lideranças. Por sua vez, a prática que concretiza o processo reproduz a dimensão simbólica que o organiza. Eventualmente, a coerção física é utilizada para reiterar essa ordem, e a intensidade de tal coerção deve estar em harmonia com a legitimidade do sistema simbólico que, por sua vez, tautologicamente a legitima. O aumento de intensidade da coerção física é proporcionalmente inverso à coesão sustentada pela coerção simbólica; o que significa dizer que a desmesura da violência física representa um sintoma de esgarçamento do tecido social e, paradoxalmente, a piora dessa condição haja vista que, quanto mais violência física se utiliza, menos legitimidade se tem (ARENDT, 1990; 1994; RIELLA, 1999). A solidez do poder e da coesão social, portanto, estaria assentada sobre dispositivos disciplinares apreendidos pelos indivíduos em um processo de inculcação institucional que, ao atuar no inconsciente coletivo, reproduziria a hierarquia da sociedade (ELIAS, 1983; BOURDIEU, 1987; FOUCAULT, 1993). Quando a intensidade da violência material se expande, chegando ao limite de ameaçar as condições de sobrevivência dos grupos sociais, ela representa a antirrelação, ou a “relação social inegociável” (RIELLA, 1999, p. 137), e estabelece o fato de que a ordem social se debilita quando se debilitam suas formas efetivas, simbólicas, de controle social. Um fator primordial de manutenção da coesão social é a dádiva, ou que Mauss denominou o dom ou dádiva (MAUSS, 1974). O caráter precípuo da experiência do dom é sua ambiguidade: de um lado, essa experiência é, ou pretende ser, vivida como rejeição do interesse, do cálculo egoísta, como exaltação da generosidade, da dádiva gratuita e sem retribuição; de outro, nunca exclui completamente a consciência da lógica da troca91 que é a de retribuir a dádiva, em um ato de gratidão, seja de que tipo for, quando o momento propício surgir (BOURDIEU, 1996a). A dádiva, enquanto ato generoso, gratuito e teoricamente sem retribuição necessária, embora denegada, estabelece-se (se for tomada a lógica econômica do lucro capitalista) como economia antieconômica que não se pauta sobre a prática do cálculo A troca é fator primordial de manutenção da sociedade: “ toda cultura pode ser considerada como um conjunto de sistemas simbólicos em cuja linha de frente colocam-se a linguagem, as regras matrimoniais, as relações econômicas, a arte, a ciência, a religião” (LÉVI-STRAUSS, 1974, p. 9). 91 276 DROGAS DE APOLO racional, portanto necessariamente consciente92. Dessa forma, a disposição calculista que surge com o racionalismo ocidental é a antítese perfeita da disposição generosa, ameaçando-a. De acordo com Weber, a ação econômica capitalista define-se como aquela [...] que repousa sobre a esperança de um lucro pela exploração de possibilidades de troca, isto é, sobre chances (formalmente) pacíficas de lucro [...] o que conta é que uma estimativa do capital seja feita em dinheiro [...] o importante para nosso conceito, o que determina aqui a ação econômica de forma decisiva, é a tendência efetiva a comparar um resultado expresso em dinheiro com um investimento avaliado em dinheiro (WEBER, 1985, p. 12). A ordem econômica e social, radicada na calculabilidade e na previsibilidade, que transforma os seres humanos, como escreveu Mauss, em “máquinas de calcular” (1974, p. 177) apresenta a tendência à dissolução sistêmica, posto que retira da ordem social o espírito de generosidade e, portanto, de coesão. O individualismo racionalista retirou o interesse na generosidade ao postular que o egoísmo individual serviria de base ao bem comum, propiciando que a lógica da economia capitalista invadisse as dimensões das relações sociais em que, até então, reinava a economia interessadamente. Esse processo de busca suprema pela autossatisfação, reiterada hoje pelo consumo de bens, acaba por transformar relações sociais – e o corpo do outro – em relações de vantagens. Esse fetichismo da mercadoria93 (MARX, 1983) termina por reencantar no consumo o desencantamento do mundo que Weber (1981) havia ressaltado como próprio produto do capitalismo, no qual a relação coisificada com o próximo produz. Em suma, a calculabilidade e a razão instrumental inerente aos negócios empresariais transbordaram para o cotidiano, para a vida particular ou esfera da vida privada (HABERMAS, 1992) – Marketing Pessoal –, levando as relações a se manterem na efêmera superficialidade das aparências e do interesse coisificante (LUZ, 1999). A transposição da economia do lucro para as dimensões às quais ela não está adequada vem engendrando uma não relação ou mesmo uma antirrelação social. O uso do outro como meio de satisfação (objeto do qual se deve extrair um determinado lucro para depois ser abandonado em detrimento de outro Mauss escreve: “Foi preciso a vitória do racionalismo e do mercantilismo para que fossem postas em vigor e elevadas à altura de princípios as noções de lucro e de indivíduo” (1974c, p. 176). 93 “A forma mercadoria [...] não é mais nada que determinada relação social entre os próprios homens que para eles aqui assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas” (MARX, 1983, p. 71). 92 277 CÉSAR SABINO objeto) alimenta essa formação crescente da Violência. Tal característica vem tomando feição singular na atualidade devido a fatores relacionados à mundialização do crime organizado, à diminuição das relações de trabalho e à globalização cultural, além do enfraquecimento do Estado. Os tradicionais mecanismos disciplinares estudados por Foucault (1987; 1993; 1997) estão gravemente debilitados94, perdendo sua eficácia, justamente pela falta de crença coletiva nas instituições que os aplicavam. Assim, o retrocesso da dominação institucional – percebida pela tentativa desesperada por parte dos governos de todo o mundo em aumentar a repressão à violência utilizando a própria violência (PAIXÃO, 1994; RIELLA, 1999; WACQUANT, 1999) – sugere o fortalecimento da violência difusa, concreta (Violência) já que os instrumentos da dominação institucional radicados na violência simbólica perdem sua eficácia. O autocontrole das paixões e dos medos produzido pelo processo civilizatório se dissolve fazendo retornar a disputa aberta calcada na busca desenfreada e destrutiva de prestígio social, bens materiais e gozo a todo custo. O fisiculturismo pode ser classificado como um exemplo de esporte no qual o controle da violência se manifestou de forma efetiva e intensa. Sem contato físico, com competições baseadas na performance estética dos participantes e com uma descarga de energia voltada contra os pesos e o próprio corpo, a prática seria o exemplo de disciplina e autocontrole que objetivaria criar cidadãos altruístas e equilibrados. De fato, todo o discurso presente em livros e publicações voltadas para a musculação ressalta essa Não é prudente, contudo, confundir – como fazem alguns – os estudos de Foucault a respeito da sociedade disciplinar e o processo civilizatório de Elias. Parece que para Foucault o surgimento da disciplina apresentava, algumas vezes, a tendência a produzir efeito contrário àquele proposto inicialmente. Se, por exemplo, as instituições disciplinares, como o manicômio e a prisão, propunham-se – e ainda se propõem – a recuperar o louco e o delinquente, não é isso que necessariamente realizam: “a organização de uma penalidade de enclausuramento [...] é enigmática. No exato momento em que era planejada, constituía também o objeto de violentas críticas [...] formuladas a partir de todos os disfuncionamentos que a prisão [por exemplo] podia induzir no sistema [visto que esta] impede o poder judiciário de controlar e aplicar as penas. A lei não penetra nas prisões [...] a prisão misturando os condenados [...] constitui uma comunidade homogênea de criminosos que se tornam solidários no enclausuramento e [...] no exterior. A prisão fabrica um verdadeiro exército de inimigos interiores [...] os hábitos de infâmia que marcam as pessoas que saem da prisão fazem com que sejam definitivamente fadadas à criminalidade. Logo, a prisão [e o mesmo pode ser dito do manicômio] fabrica aqueles que essa mesma justiça mandará encarcerar, uma ou mais vezes” (FOUCAULT, 1997, p. 29-30). Assim, ao contrário de integrar os excluídos, as instituições e organizações, não raro, tenderiam a excluí-los de forma ainda mais eficaz e refinada. Contudo, as obras dos dois autores confluem quando Foucault ressalta o aspecto positivo, integrativo e produtor do poder e da disciplina. 94 278 DROGAS DE APOLO característica95. Como explicar que, ao menos em parte significativa das academias do Rio de Janeiro, a violência esteja tão presente escapando mesmo ao controle? Uma hipótese é que a disciplina extrema que necessita do conhecimento do risco de morte construído pelo uso contínuo de fármacos, além da árdua e dolorida disciplina cotidiana, em algum momento, faz com que essa violência contra si mesmo seja exteriorizada, tornando-se ação contra o outro de forma objetiva ou simbólica. A busca individualista pelo capital estético que a cultura bodybuilder, centrada em valores neoliberais de conduta e masculinidade engendra, esconde relações de exploração de classe, gênero e raça tradicionais da sociedade brasileira, reproduzindo-as agora em outro patamar no qual o corpo-imagem-empresa-de-si continua relegando ao indivíduo – e não às condições sociais e oportunidades na qual se encontra e com as quais se depara – a culpa por sua condição e suposto fracasso. Esses agenciamentos coletivos de subjetividades, dentre outros, referidos à estética, torna, repetindo Foucault, corpos dominados dóceis aceitando condições que os impedem de chegarem aos recursos que possibilitariam a transformação da sua condição dominada. Consolidando esse processo, do ponto de vista da Saúde Pública, há com frequência a masculinidade deletéria e tóxica para aqueles que a representam e que, a todo custo, nela necessitam se encaixar. Masculinidade que traduz representações e práticas relacionadas à violência, competição e agressão como ideais de afirmação de virilidade e autoridade. Assim, a valorização do sofrimento até o limite máximo sem demonstrar sensibilidade (“homem não chora”), cultivo da dor física, o que pode causar lesões irreversíveis e morte, apologia à crueldade e à dureza de espírito, No editorial de uma das principais revistas de fisiculturismo, publicada pelo megaempresário do bodybuilding e fitness Joe Weider, vendida em quase todo o mundo, está escrito: “strive for excellence, exceed yourself, love your friends, speak the truth, practice fidelity, and honour your father and mother. These principles will help you master yourself, make you strong, give you hope and put you on the path to greatness” – “Lute pela excelência, supere-se, ame seus amigos, fale a verdade, pratique a fidelidade e honre seu pai e sua mãe. Esses princípios o ajudarão a ter autodomínio, o farão forte, dar-lhe-ão esperança e o colocarão no caminho da grandeza” (Muscle and Fitness, sept. 1998, p. 12). Nos últimos 20 ou 30 anos, pode ter ocorrido sensível transformação nas práticas de adeptos do fisiculturismo e dos esportes de academias em geral; práticas que têm se radicado em uma cultura das sensações e não dos sentimentos. Cultivar a forma musculosa pode ter deixado de ser o símbolo da disciplina e reprodução de projetos pessoais ligados ao coletivo (família, amizade, honra à tradição etc.), passando a ser a busca solitária pela imagem refletida na beleza, na categoria saúde e na juventude consideradas itens fundamentais para o consumo individualista da existência. Esses mandamentos talvez reflitam uma ética que já não funciona na prática das academias. Tal aspecto pode ser percebido pelas análises de antigas revistas de fisiculturismo da primeira metade do século XX (La Culture Physique. Paris: 11e année. N. 216 1.er janvier 1914; Charles Atlas. Salud y Fuerza Perdurables, NY. 1947; Howett, George. How to Achieve Nerves of Steel Muscles like Iron. New York: The Jowett Institute of Phisical culture, 1950). 95 279 CÉSAR SABINO ausência de empatia e desprezo ao sofrimento alheio (sempre visto como algo procurado pelo sofredor, portanto merecido) pode fazer parte da socialização bodybuilder construindo, em consonância à musculosidade, um habitus repleto de elementos antifeminilidade, agressividade, competitividade visando à violência como sinônimo de autoridade sobre si mesmo e outros e destaque. Esse modelo de macho encontrado entre fisiculturistas, mas não apenas, é, sob nosso ponto de vista, reflexo do campo esportivo específico, mas também da sociedade androcêntrica geral. Dutra e Orellana (2017, p. 152), ao estudarem discursos e imagens masculinas no Tinder, escreveram: A toxic masculinity se baseia em competir com os outros homens e outras mulheres e dominá-los, sendo uma tendência problemática dos homens. Essas tendências masculinas promovem a resistência à dor, à sensibilidade e à psicoterapia e se apresentam geralmente sob a forma de estresse e complexidades da vida do homem moderno. A relação entre masculinidade hegemônica e masculinidade tóxica integra dinâmicas individuais e institucionais que intensificam a masculinidade tóxica, ocasionando, muitas vezes, obstáculos estruturais ao tratamento de saúde mental. Geralmente a masculinidade tóxica está atrelada à violência e agressão como um ideal cultural da própria masculinidade onde a [imagem da] força é tudo, e onde, como consequência, acidentes e [...] mortes acontecem. Essas perspectivas podem também representar posições políticas e micropolíticas anti-LGBTQIA+, misóginos, pró-armamentistas, objetificadoras de mulheres, anti-intelectualistas, ultraindividualistas, além de sustentarem discursivamente a hipersexualização do cotidiano, produzindo bazófia como necessidade constante de afirmação de heterossexualidade (GOMES DA SILVA, 2000). Resta saber, repito, se essa Violência transversal ao cotidiano é uma manifestação passageira de um momento, ou formação social, ou se é uma constante da sociedade brasileira em geral, refletida nesse dia a dia das academias de musculação e bodybuilding. Se esse for o caso, ela não necessariamente deixa de ser anômica, mas torna-se um elemento crônico e mesmo estrutural do sistema social nacional. Uma Violência crônica desse tipo tornar-se-ia estruturada pelas práticas dos agentes sociais e estruturante delas mesmas posto tornar-se meio de manutenção da (des)ordem inerente às relações de dominação e suas representações de autoridade. 280 DROGAS DE APOLO 6.4 BÁRBAROS E CIVILIZADOS Dunning, em seu estudo sobre os violentos torcedores hooligans, escreve que a maior parte dos componentes desses grupos de jovens desordeiros advém dos extratos inferiores das classes baixas inglesas. Excluída e marginalizada, essa parcela da sociedade estaria apartada do processo de civilização pertinente aos outros grupos sociais. Devido a tal exclusão, que não teria permitido a interiorização do controle necessário da agressividade, esse grupo construiria a violência enquanto valor social, respaldando a concepção de status inerente àqueles que se veem, e desejam ser vistos, como outsiders (DUNNING; MURPHY; WILLIANS, 1994), em consonância com o fato de que tal postura liminar e antiestrutural confere sentido de poder aos que a sustentam. Contudo, os praticantes de fisiculturismo aqui estudados são, em sua maioria, provenientes do que se pode denominar camadas médias urbanas, como dito anteriormente. Em vez de serem excluídos por forças estruturais de carência ou impedimento institucional, esses jovens cultivam o fascínio da condição de excluído tendo, porém, como fiduciário sua condição de pertencentes a um extrato social brasileiro que, apesar de ter sofrido redução em seu poder aquisitivo nas últimas décadas, ainda se mantém, mutatis mutandis, como superior. O acontecimento a seguir, registrado em meu diário de campo, em outubro de 2000 em uma academia do bairro da Tijuca, pode sugerir, ao menos parcialmente, essa concepção: Chego à academia, são 15:49. Este horário ainda apresenta um número reduzido de pessoas nos salões de musculação; elas vão em número cada vez maior até às 18:00 quando todas as salas tornam-se superlotadas e o estridente barulho dos pesos de ferro em colisão e falatório geral invadem todo o ambiente. Por volta das 16:10 chega Daniel, um fisiculturista que veio de São Paulo com sua namorada e que agora está morando em um apartamento no bairro do Estácio. Daniel parece bastante irritado [...] Logo percebo que não é o efeito colateral de alguma droga que o deixa assim, mas que algo errado aconteceu entre ele e outro de nome Gilberto. Pergunto à Glória, recepcionista, o que está acontecendo. Ela diz: Hoje vai ter briga aqui... o Daniel está aborrecido com o Gilberto porque ele andou dizendo que o Daniel tá saindo com a Carla, e a mulher dele [do Daniel], parece que ficou desconfiada e brigou com ele”. Quando Gilberto chega Daniel vai tomar satisfações e rapidamente surge uma discussão entre os dois repleta de acusações e impropérios. Gilberto agride o outro que se atraca com ele, mas apesar da audácia, ele é menor e mais fraco; os dois caem por cima dos aparelhos e a gritaria 281 CÉSAR SABINO e o alvoroço é geral. Na mesma hora fico pensando no perigo que me ameaça, já que logo vão me pedir para ajudar a separar a contenda entre os dois brutamontes. Mas felizmente não é preciso, Gilberto joga uma anilha de 10 quilos no pé de Daniel, mas não acerta, e sai correndo com a camiseta rasgada em direção à rua, fugindo. Daniel diz que não está machucado e fica tentando explicar para todos que estão chegando, sem saber de nada a respeito do ocorrido, o motivo da agressão. Quando eu já pensava que Gilberto havia sumido e que provavelmente não apareceria mais na academia, pelo menos durante uns bons meses, ele reaparece com três camburões da Polícia Militar. Destes descem seis soldados e um oficial (um capitão) que é quase idêntico ao Gilberto – obviamente irmão gêmeo dele. Os policiais, dois portando fuzil, um com uma pistola em punho e o oficial segurando algemas, entram na academia em busca de Daniel que não tem como escapar. O irmão de Gilberto dá voz de prisão a Daniel dizendo: ah, você que é o valentão, né? Vai tomar porrada pra ver o que é bom. Um dos soldados mantém constantemente o fuzil apontado para ele. O capitão então desfere tapas no rosto de Daniel, algemando-o com as mãos para traz. Como as algemas ficam muito apertadas, Daniel reclama, o que apenas agrava sua situação, pois o sósia fardado de Gilberto aperta ainda mais as pulseiras de aço, levando o fisiculturista para a caçapa do camburão parado na calçada em frente à academia. Vão todos para a delegacia. Após este acontecimento Daniel sumiu da academia. Encontrei com ele no Estácio, por acaso, em uma tarde de domingo. Viu só o que aquele otário fez comigo? Ele se garante na familiazinha dele, por isso que é folgado, ele deu parte de mim e naquele dia fiquei a noite toda na delegacia, mas tudo bem agora tô treinando lá na [academia] Neves; o pior é que não posso fazer nada com aquele mané, por que a polícia tem meu endereço, telefone, tudo [...] Como escrevi anteriormente, a prática da musculação, em determinadas circunstâncias, pode servir de instrumento para a potencialização da agressividade e expansão de um egocentrismo fadado a não perceber “que o mundo não foi feito para nossa conveniência pessoal” (LASCH, 1995, p. 278). Diante disso, o domínio das técnicas corporais do fisiculturismo (do mesmo modo que as técnicas das artes marciais) pode ser um exemplo de desvio de propósito que pode caracterizar um possível retrocesso civilizatório ou um breve retrato de uma sociedade que nunca passou por um de fato. Se os indivíduos pertencentes às camadas médias urbanas não passam pela privação direta dos meios de sobrevivência ou pela exclusão institucional, eles, ao menos nesse caso, cultivam certo fascínio pela marginalidade criminosa devido ao fato de valores como virilidade, força, agressividade e 282 DROGAS DE APOLO resolução de conflitos sem a mediação jurídico-estatal serem transversais às classes socais no Brasil, mormente no Rio de Janeiro. Esses elementos culturais, associados à extrema desigualdade social, talvez ajudem a fazer do país um dos mais violentos do mundo. Por conseguinte, podemos afirmar com Nazareth (2020, p. 10, 12) que no Brasil o Estado não se mostra capaz de cumprir sua missão civilizatória a contento, pois provoca a sensação de desordem e medo, negando à sociedade o mais básico em educação e saúde, o que, em vez de pacificar, só faz aumentar a latência disruptiva presente no dia a dia. O não reconhecimento social da legitimidade da existência do outro, da capacidade do diálogo e da política de encaminhar soluções para conflitos coletivos por intermédio do diálogo democrático, parlamentado, na persuasão, sob regras consensuais da disputa política, impede, não raro, as tensões manterem-se sob níveis equilibrados ou harmônicos. Se isso não for transformado, provavelmente, haverá emergência, cada vez mais, frequente dos impulsos de destruição, banalização e eliminação do outro, do ódio ao diferente transformado em inimigo mortal a ser varrido da face da Terra. A atitude de admiração ao mundo do crime e suas organizações e ao poder paralelo que delas emana, talvez, seja exacerbada pelo tradicional autoritarismo ligado ao patrimonialismo característico das relações cotidianas no Brasil. Se a lógica do “sabe com quem está falando” está presente em várias circunstâncias da vida nacional, no caso específico das academias de musculação, ela também se faz atuante. Não é incomum acontecer, por exemplo, alguém com aparência mais fraca – um neófito ou aluno pouco musculoso – ser impedido (apesar de pagar as mesmas mensalidades que os veteranos e fisiculturistas, às vezes até mais) de fazer exercícios em determinadas máquinas ou pesos pelo simples fato de haver um ou mais “influentes” no campo (fisiculturistas ou veteranos) monopolizando aparelhos e pesos. É cena comum nas academias – principalmente a partir da primavera em diante – grupos de veteranos e fisiculturistas encostarem-se em aparelhos ou carregarem pesos para o local no qual estão reunidos impedindo, assim, qualquer indivíduo que não pertence ao mesmo grupo de utilizá-los, em uma flagrante ausência de concepção cidadã. A aglomeração de seletos cultuadores dos músculos também impede o trânsito de pessoas comuns nos recintos. Muitas vezes observei esses indivíduos exercitando-se em abdominais nas principais passagens, inclusive entrada e saída das academias, impedindo o trânsito normal das pessoas, como se esses mesmos indivíduos tivessem a autoridade e o direito de se apropriar, privatizar, o espaço coletivo. 283 CÉSAR SABINO Sem embargo, a prática sugere a existência de uma violência simbólica autoritária característica de dimensões societárias relacionais e patrimonialistas como a nossa. Prática que pode vir a diminuir com o tempo, ou no pior dos casos, intensificar-se. Essa característica do tão falado “jeitinho” brasileiro, que propicia “levar vantagem em tudo” e instrumentalizar o outro como coisa, é a marca de longa duração das relações escravistas que perdura no cotidiano nacional (DA MATTA, 1979; 1991; BARBOSA, 1992; 1999). O uso ilegítimo da violência em suas dimensões cotidianas, subjetivas (micropolíticas de autodestruição) e estatais (macropolíticas) é capaz de nos levar a repetir com Ortega y Gasset: [...] o homem sempre recorre à violência: algumas vezes esse recurso era simplesmente um crime [...] outras vezes a violência era o meio a que se recorria depois de se terem esgotado todos os outros para defender a razão e a justiça que se acreditava ter [...] a civilização não é outra coisa senão a tentativa de reduzir a força à ultima ratio. Agora começamos a enxergar isso com extrema clareza, porque a ‘ação direta’ consiste em inverter a ordem e proclamar a violência como prima ratio; a rigor como única razão. Ela é a norma que propõe a anulação [da] norma, que suprime todo interregno entre nosso propósito e sua imposição. É a Charta Magna da barbárie. (2002, p. 107. Grifos do autor). Diante do exposto, é preciso retornar à polêmica questão do que vem a ser bárbaro e civilizado. Adotamos neste livro o relativismo como ferramenta analítica e não como uma espécie de imperativo ético. Não há espaço neste trabalho para a discussão sobre o tema que envolve pensadores que vão de Platão, passando pelos sofistas, Nietzsche, até Habermas e Deleuze. Fora o imenso e consistente debate dentre os gigantes intelectuais da disciplina que praticamente o reinventou na era contemporânea: a Antropologia Cultural ou Social. Basta aqui reiterar que, tanto em estudos sociológicos como antropológicos, torna-se fundamental suspender as pré-noções (DURKHEIM, 1972), buscar neutralidade axiológica (WEBER, 1992; 1997) e estudar os sentidos e significados e as funções de uma instituição dentro do sistema social ou cultural no qual ela está inserida, posto que, fora desse contexto relacional, ela perde totalmente sua racionalidade (MALINOWSKI, 1978; LÉVI-STRAUSS, 1976a; 1976b; 1976c; 2012a). Não podemos estudar um grupo social, uma sociedade e cultura, ou mesmo outro período histórico, armados com os valores, crenças, verdades e certezas que constituem nossa própria sociedade. No momento da observação, é preciso compreender os fatos ou os significados 284 DROGAS DE APOLO sem julgá-los. Todavia, essa é uma ferramenta que auxilia a compreensão do funcionamento de outros sistemas diversos daquele do observador. O problema surge quando, em vez de utilizar o relativismo como ferramenta de pesquisa, alguém o utiliza como princípio de vida equivalendo ontologicamente todos os comportamentos e crenças, o que provoca uma confusão filosófica com consequências niilistas dignas de Turgueniev. Esse processo ético paradoxal de nivelar filosoficamente todos os valores pode induzir aquele que o sustenta a correr o risco de nadar no vácuo da total ausência de sentido da sua existência, posto que o ser humano é um ser que raciocina e, ao fazê-lo, classifica e, inexoravelmente, confere valor a tudo que afeta seus sentidos e razão, como Nietzsche tão bem ressaltou ao longo de sua obra (1978a; 1978b; 1988; 1998). A partir dessa perspectiva, darei seguimento à questão colocada no início do capítulo sobre o que é ser civilizado ou bárbaro a partir do comportamento dos homens do grupo estudado buscando expandir a máxima lévi-straussiana de que bárbaro é aquele que acredita na barbárie. Destarte, minha posição é similar àquela formulada pelo pensador francês Francis Wolff (2004, p. 19-40). Chamo de bárbara toda cultura, sociedade, ou grupo social, que não dispõe, em sua estrutura, de meios de admitir, assimilar ou reconhecer outra cultura, comportamentos e valores diversos dos seus. Em outras palavras, bárbaro é todo aquele que não consegue admitir outras formas de humanidade diferente da sua e que acredita que a única e verdadeira forma de ser homem ou ser humano é ser igual a ele. Sem embargo, ele rejeita a humanidade do diferente e a diferença como elemento de humanidade e do mundo o que supostamente lhe permite destruir e coisificar a alteridade, visto ela não ser humana, mas sub-humana, ou mesmo inumana. Isso permite, àquele que assim vê as relações sociais, perpetuar a depredação, a crueldade, a destruição, a exploração, o extermínio e o genocídio dos que não se comportam e não pensam como o suposto portador da Verdade e da verdadeira Humanidade. A barbárie, ou sua cultura, não pode suportar a diversidade e a divergência, necessitando destruir, da forma que for, aqueles que se encontram fora de suas classificações morais; e mais ainda: um dos itens fundamentais de seu movimento é a destruição da multiplicidade, visando a nivelar, impor e dissolver qualquer discordância em relação a sua Identidade e pensamento único. Por outro lado, civilizações são caracterizadas por áreas culturais que permitem a coexistência, de fato como de direito, de vários povos, sociedades 285 CÉSAR SABINO e culturas com suas diferenças e potencialidades de diferir, permitindo sua interpenetração e compreensão recíproca. Civilização não aceita qualquer espécie de pensamento único, autoritário, totalitário ou de caráter fascista, posto que ela configura como a possibilidade da diversidade de valores, perspectivas, divergências e abertura constante para multiplicidades. Assim: Uma cultura específica é “civilizada” quando, independentemente da riqueza ou pobreza [...] de seu nível de desenvolvimento técnico, [...] tolera em seu seio uma diversidade de crenças e práticas (excluindo-se, evidentemente, práticas bárbaras). Uma cultura civilizada é sempre virtualmente mestiça. Em suma, uma civilização é enriquecida por uma pluralidade de culturas, enquanto uma cultura é bárbara quando [aceita] apenas ela mesma, só pode ser ela mesma, permanece centrada e, portanto, fechada sobre si mesma [acreditando] que sua própria cultura é a única forma de humanidade possível (WOLFF, 2004, p. 41-42, grifo meu). Em consonância com essa afirmação, podemos acrescentar a concepção ameríndia de Ailton Krenak que vem ampliar a compreensão do que seria civilizado ou civilização quando escreve que a resistência indígena consiste na negação da ideia ou representação de que somos todos essencialmente iguais ou senhores da mesma identidade humana essencial. Para ele, de acordo com o pensamento de seu povo e dos ameríndios em geral, é urgente o reconhecimento da diversidade e da diferença, efetivando também a recusa de que o humano é superior não apenas a outros tipos de homens, mas também aos demais seres que vivem no planeta. Para o autor, só adotando essa visão e prática, a humanidade conseguirá impedir o retrocesso que a leva em direção ao abismo (KRENAK, 2019). Portanto, processos civilizatórios relacionam-se tanto a sistemas sociais e culturais como às formas de pensar coletivas e individuais, bem como para opiniões e filosofias que aceitam, ou não, a diversidade, a pluralidade e a diferença. A barbárie obviamente não é dada por condições genéticas ou ditas naturais, não é jamais biológica, mas uma incapacidade de pensar o múltiplo, os fluxos criativos e divergentes, a criação de novos valores, tudo que pode ser, ou se tornar, uma nova forma de existência e, por consequência, novas formas de relacionamentos e composições de afetos nas infinitas possibilidades das relações sociais. Sendo assim, ela, a barbárie, é um produto sociocultural (WOLFF, 1999). Com efeito, reformulando a máxima de Lévi-Strauss, bárbaro é todo aquele que acredita na barbárie 286 DROGAS DE APOLO referida à diferença e alteridade e não reconhece que o devir, incluindo os fluxos sociais, diz-se em múltiplos sentidos. Portanto, aquele que nega e renega toda a diversidade ao considerar como única verdade e possibilidade de vida seu próprio modo de existência e valores, sua própria Identidade, pode ser considerado bárbaro. 287 CONSIDERAÇÕES FINAIS O uso de esteroides anabolizantes por parte dos fisiculturistas estudados relaciona-se à visão de mundo do grupo ou as suas representações sociais (crenças, normas, valores, formas de sentir e pensar) e práticas (formas de agir) calcadas no elogio a um paradigma estético de musculosidade e masculinidade hipertrofiadas. Esse aspecto caracteriza a dimensão micropolítica presente no grupo, ou seja, suas relações cotidianas de poder e dominação, suas estratégias e negociações para conquistar os papéis ambicionados com a ascensão social por intermédio da imagem, no caso. No entanto, também mostram sua ligação direta com elementos simbólicos e práticos da macropolítica – ou política partidária e estatal, da cultura, da sociedade e da época histórica na qual o grupo se insere. Isso é perceptível pela transversalidade que a exaltação à violência estética, o elogio à destruição da diferença, o modelo dominante androcêntrico se apresenta tanto em uma dimensão social micro como em outra macro. Com efeito, os esteroides anabolizantes surgem como item ritual a reforçar a reprodução das estruturas sociais de dominação típicas não apenas do campo do fisiculturismo, mas também da sociedade brasileira; estruturas calcadas no modelo patriarcal, patrimonialista e autoritário. Esse, relativamente novo tipo de uso de novas drogas, pode tanto ser contraposto ao uso de drogas “recreativas” tradicionais, como a essas associar-se, objetivando a construção da chamada “forma física ideal” ou uma imagem próxima daquilo que o grupo se coloca como perfeita. Imagens jamais são neutras, evocam sempre as relações de poder implícitas em sua produção, além de significarem a excelência ou a derrisão em uma cultura ou sociedade. Essas drogas que resolvi denominar drogas de Apolo são elemento fundamental para a construção identitária dos indivíduos ou agentes sociais do grupo observado e, em contraposição às opiniões vigentes que associam o seu uso à ignorância dos efeitos de sua utilização ou ao desconhecimento por parte desses mesmos usuários, digo que é justamente o conhecimento e o reconhecimento desses riscos, a consciência objetiva e clara de seus danos, a reflexividade investida no uso perigoso, e não raro mortal, o item principal de sua eficácia ritual. Ou seja, o risco é conhecido por todos usuários e há mesmo prazer, elogio a ele como etapa renovada de coragem e como dispositivo prático eficaz nos ritos que consolidam e perpetuam a 289 CÉSAR SABINO estrutura do grupo, ritos que têm no perigo da morte o emblema da coragem, dureza e capacidade de liderança, pois, conforme sugeriu Bourdieu (1996), os indivíduos aderem de maneira tanto mais decidida a uma instituição quanto mais severos e dolorosos tiverem sido os ritos iniciáticos aos quais se submetem. O consumo de esteroides anabolizantes alimenta a função hierarquizante na estrutura do grupo conferindo status aos usuários que demostram perícia em relação à manipulação e ao saber que têm do seu uso na fabricação de uma imagem corporal próxima à ideal. Como essas substâncias são, em sua maioria, hormônios sintéticos androgênicos, atuando, portanto, na produção de caracteres sexuais secundários, elas são esteticamente masculinizantes, o que sugere a existência de um louvor estético e ético aos princípios fundantes da masculinidade dominante, ou hegemônica, na cultura brasileira contemporânea – a imagem do macho bem-sucedido, repleto de admiradoras, com poder de impor sua vontade e objetivos. Esse louvor ao princípio ético-estético da masculinidade dominante ou hegemônica, por parte de algumas mulheres fisiculturistas, eu denomino Complexo de Piegan. A invenção dessas técnicas corporais, testadas pelos próprios fisiculturistas neles mesmos, pode ser observada in loco. O saber sobre esse tipo de consumo se realiza, também, por intermédio da associação dessas mesmas substâncias com outras, como remédios diversos e suplementos alimentares, que são frequentemente experimentadas pelos próprios bodybuilders em sua busca de construir músculos e diminuir adiposidade; corpos cada vez mais próximos ao ideal de perfeição, em um movimento que remete diretamente ao aspecto platônico presente na mentalidade dessas pessoas. Da mesma forma, o uso de drogas para a construção estética e otimização da forma relaciona-se ao processo denominado, desde a década de 70 do século XX, medicamentalização da sociedade contemporânea (ILLICH, 1975; DUPUY; KARSENTY, 1979), significando um tipo de crença e dependência quase mágica no poder dos produtos da indústria farmacêutica e nas descobertas da ciência. Por sua vez, essa medicamentalização apresenta relação, cada vez mais, intensa com uma utopia da saúde (SFEZ, 1995), a qual persegue, nas sociedades atuais, um corpo eternamente jovem, belo e supostamente pleno de saúde, produzindo crescente dependência cotidiana em relação às instituições médicas e suas organizações e discursos (ILLICH, 1972; 1992; LUZ, 1986; 2003). Esse parece ser o paradigma organizador do comportamento e das relações sociais, portanto dos adeptos da boa forma e do corpo perfeito, paradoxalmente dito “saudável”. 290 DROGAS DE APOLO Se, por um lado, o capitalismo, conforme escreveu Weber (1992), apresenta, via racionalização e burocratização, a tendência ao desencantamento do mundo, esvaziando o sentido da vida das pessoas; por outro, o mesmo capitalismo reencanta, por intermédio das técnicas do marketing e da propaganda, o universo de parte significativa da população. Reencantamento fugaz radicado no agenciamento intermitente do desejo o qual está na base do consumo conspícuo de elementos simbólicos, ou não, que possam alimentar a perfectibilidade, por sua vez, levando à eterna insatisfação, frustração e carência em um ciclo intermitente de consumo dos renovados itens ligados ao aprimoramento da forma corporal. Como ressaltei, o surgimento do esporte, de acordo com Elias e Dunning (1994), representou a estilização das práticas violentas, servindo para consolidar o processo civilizatório no qual as mesmas práticas tenderiam a ser controladas não apenas pelas instituições diretamente coercitivas, mas principalmente pela absorção de valores, regras e normas de disciplinarização das relações sociais por parte dos indivíduos e coletividades. Interiorização do controle social em relação à agressividade. Segundo os autores, esse processo estaria ligado também ao fortalecimento do Estado Moderno, fiduciário último da civilidade e detentor legítimo da violência física. Nesse movimento disciplinar de controle cotidiano das condutas violentas (estudado também, de certa forma, por Foucault), o bodybuilding, dentre algumas atividades desportivas ou práticas corporais (como parte do nado sincronizado ou da ginástica rítmica), poderia assumir o caráter máximo de estilização da violência física devido ao fato de não apresentar qualquer tipo de contato corporal entre os competidores, tendo suas disputas individuais ligadas apenas à apresentação estética em locais adequados. Todavia, ao longo da segunda metade do século XX, mormente a partir do final dos anos 70 e início dos anos 80, o fisiculturismo tornou-se, cada vez mais, próximo às representações e práticas conservadoras e neoliberais de mundo. O que, algumas vezes, levou a estética musculosa e hipertrofiada a associar-se a atitudes de grupos políticos de extrema direita com comportamentos violentos e discursos excludentes antidemocráticos. Fato que, em um primeiro momento, pareceu uma contradição em termos. Se a tese de Elias sobre a estilização da violência por intermédio do esporte pode ser sustentada, os dados colhidos durante os anos de trabalho de campo entre o grupo observado vêm sugerindo que essa violência sofreu algumas modulações permanecendo presente no cotidiano dos indivíduos de forma acirrada em sua dimensão simbólica e prática, não apenas como violência 291 CÉSAR SABINO contra o outro, mas também como autoviolência. Violência simbólica e prática consolidada por intermédio da busca, a qualquer preço, da forma ideal como sinônimo de realização e felicidade. Sem embargo, para atingir o ideal do sucesso, todos os recursos são utilizados podendo levar à apologia da agressão física, ao desrespeito, menosprezo e desprezo pela alteridade. Em um primeiro momento, o bodybuilder introjeta, ou absorve, em si mesmo toda a violência, aplicando ao seu corpo os riscos e desafios presentes na construção de sua forma, produto de um duro, ascético e abnegado trabalho, aparentemente individualizado; contudo o faz sem perceber que também é produto direto de relações sociais disciplinadoras, administradoras, agenciadoras de seu comportamento tornado dúctil em contraposição à crescente dureza e expansão de seus músculos. A violência física, assim estilizada, volta-se contra o atleta, não raro, destruindo-o. Outro aspecto relaciona-se ao uso das tecnologias corporais desenvolvidas pelos saberes e pelas práticas da musculação e do fisiculturismo que, associadas às lutas ou artes marciais, por exemplo, podem ser utilizadas por indivíduos ou grupos específicos para a otimização das práticas da violência física contra aqueles considerados seus oponentes ou inimigos. Ocorre que, em uma sociedade altamente hierarquizada como a brasileira e de tradição escravocrata, esses saberes e práticas podem significar emblemas de distinção e excelência reproduzindo a violência simbólica e física contra si e outros, violência sempre inscrita nos corpos como habitus (BOURDIEU, 1983; ELIAS, 1994). Há que se ressaltar que a opressão articulada contra si na produção esportiva imagética pode não se deter apenas nesse âmbito, mas extravasar em práticas violentas de galeras e gangues, as quais apresentam, em sua lógica identitária, a inaceitação ou mesmo a ojeriza à diferença tentando eliminá-la do âmbito de sua convivência. Resta saber se ela é anômica, um episódio de um processo social que corre o risco de perder sua coesão, ou se é estrutural; ou seja, se constitui item fundamental da própria manutenção do sistema social que depreda parte de seus elementos para se perpetuar. Dentre as sugestões presentes neste livro sobre a construção do corpo, há uma em especial, devido a sua generalização teórica, que deve ser ressaltada: as representações e práticas presentes no cotidiano do grupo pesquisado (que, de certa forma, espelham parte da sociedade maior no qual está inserido) sugerem que o Brasil parece passar por um processo descivilizatório (ou processo de descivilização, de acordo com Elias) sem mesmo ter experimentado de forma efetiva seu oposto. A sociedade brasileira não perpassaria um estado anômico de violência e crueldade, ou seja, essa não é um evento 292 DROGAS DE APOLO conjuntural, passageiro, mas um elemento estrutural de um sistema criado sob o domínio da escravidão e do genocídio, do etnocídio e da destruição da alteridade. Essa descivilização brasileira que há séculos depreda o outro e a alteridade fortalece-se associada ao modelo econômico neoliberal e às políticas públicas ligadas ao desprezo crescente às questões sociais. Esse aspecto parece sugerir que, além de serem hipóteses econômicas reflexivas, princípios neoliberais tornaram-se itens inconscientes ou valores, crenças, regras, normas, portanto modos de vida, que, ao menos em parte, encontram-se no cotidiano do grupo estudado (BROWN, 2019). Isso sugere que instituições de saúde e organizações, direta ou indiretamente a elas associadas, refletem as representações e práticas, as relações sociais da sociedade brasileira em geral (LUZ, 1986), o que indica comportamento no qual a violência é manifesta não apenas como coisificação do outro, desinteresse pela cultura humanística, pelo coletivo e pela dimensão solidária da vida, mas também como autocoisificação levando à morte, à autodestruição em nome de um padrão de beleza percebido como signo de empreendedorismo e vitória. O corpo e sua forma passam a ser vistos e a funcionarem socialmente como microempresa capitalista, e o bodybuilder afigura-se como um Uber de imagens trocadas nos mercados dos bens simbólicos das redes sociais e competições esportivas. Imagem logo descartada pelos acelerados processos da nova etapa do capital na qual a produção exige crescente depredação de si, em novos níveis de extração de mais-valia. Corpo-imagem-empresa-de-si, corpo-capital, sacrificado no altar do deus-mercado. 293 POST SCRIPTUM MOVIMENTOS CONJUNTURAIS Da última década do século XX até o momento, vários aspectos relativos ao campo ou ao grupo estudado transformaram-se, porém a estrutura hierárquica e as relações de poder anteriores foram mantidas, e mesmo reforçadas. Um dos aspectos que mais chama a atenção é o crescente domínio do poder médico em relação às práticas corporais em geral, e o fisiculturismo em particular. Os esteroides anabolizantes continuam sendo itens fundamentais do cotidiano bodybuilder e seus rituais de instituição. Todavia, o crescimento da chamada medicina estética vem colonizando a administração de seu uso em parte crescente das academias, mormente aquelas de classe média alta. O ramo da medicina voltado para o aperfeiçoamento da forma física tem elaborado com dedicação saberes e práticas sobre o que considera beleza como sinônimo de saúde (FERREIRA, 2010), produzindo subjetividades e justificando os padrões estéticos socioculturais dominantes que são agora perseguidos sob a égide da legalidade institucional. Assim, essa medicina transforma o que é uma representação social sobre o feio ou a feiura em patologia a ser combatida por intermédio de intervenções diversas, ao menos para aqueles que têm capital monetário para investir em consultas dispendiosas e produtos ainda mais (JARRIN, 2017). Destarte, embora os esteroides anabolizantes ainda sejam traficados nas academias em quantidade significativa (obviamente de forma ilegal); em grande parte daquelas nas quais o poder aquisitivo dos alunos e atletas é maior, o uso torna-se legalizado via consulta médica e sua consequente prescrição (receita). Esses remédios passam então a serem utilizados em nome da “reposição hormonal”, eliminando o caráter ilegal que o tráfico porta. Dessa feita, o terapeuta não apenas utiliza as substâncias já citadas, mas também as associa a outras, não raro também prescrevendo hormônio do crescimento humano (HGH ou GH entre os bodybuilders cariocas) visando a uma maior eficácia nos resultados. Vários consultórios se espalham pela cidade – da Zona Sul ao subúrbio, Zona Oeste e Baixada Fluminense – especializados nesse tipo de consulta. Em outras palavras, a prática e o saber médico, de certa forma, apropriaram-se de um campo que era ilegal, ou no mínimo o 295 CÉSAR SABINO enfraqueceram, “legalizando” – via receituário – o consumo de esteroides e outras substâncias, retirando parte significativa dos clientes do tráfico. As clínicas médicas de estética, endocrinologia e dermatologia associam-se em convênios ou parcerias às farmácias de manipulação para as quais receitas de esteroides anabolizantes e outras substâncias são enviadas visando à feitura das fórmulas individualizadas prescritas para o uso de clientes-pacientes em busca do padrão dominante de beleza. Esse crescente e próspero ramo da medicina, ao legalizar o uso desses componentes, em nome de um suposto deficit hormonal, reitera, justifica e amplia o padrão corporal socioculturalmente hegemônico reproduzindo as desigualdades inerentes às relações sociais. Fato que corrobora as previsões críticas de Illich (1975; 1992) a respeito da medicamentalização, ou domínio, cada vez maior, da medicina sobre a conduta e o corpo dos indivíduos e da sociedade em geral. Outro aspecto a ser ressaltado tem a ver com o fato de as academias que no início do estudo eram frequentadas por jovens, em sua maioria, pertencentes à classe média, sendo marca organizacional dessa classe, passaram a ser uma instância quase que obrigatória de práticas físicas e corporais para todas as pessoas de todas as classes sociais, sendo encontradas tanto em favelas como em condomínios de luxo da classe média alta (SILVA, 2014), e não apenas por jovens, mas também por pessoas de faixas etárias diversas nos também diversos horários de seu funcionamento. Repetindo Madel Luz, as classes baixas e altas aderiram ao projeto do “Apolo biomecânico” (2003a, p. 34), ou seja, ao modelo do corpo musculoso e definido, trabalhado com anilhas e máquinas – com baixo ou baixíssimo percentual de gordura – como emblema de saúde e beleza da racionalidade ocidental biomecânica. Acompanhando também essa expansão transversal da clientela, o Brasil passou a fazer parte do circuito mundial das competições de bodybuilding e fitness, o que fortaleceu a semiprofissionalização, ou mesmo a profissionalização, e consolidação da área no país. Isso ampliou ainda mais o fluxo de pessoas voltadas à produção do corpo como capital ou empresa a ser colocada para funcionar tanto no mercado das competições como no mercado sexual e, em muitos casos, no mercado da segurança privada de casas noturnas ou eventos diurnos, no caso de pessoas de menor poder aquisitivo (LUZ; SABINO, 2013; 2018). A expansão das redes sociais, como Facebook, Instagram e outras, além do surgimento dos aplicativos de exercícios, aulas com profissionais e bodybuilders pelo YouTube e outras plataformas digitais – além de der296 DROGAS DE APOLO matologistas, cirurgiões plásticos, endocrinologistas, médicos em geral, e nutricionistas veiculando informações sobre saúde, estética e estilo de vida –, alavancou a hiperexposição imagética e a obsessão pelo corpo magro e musculoso. As imagens dos influenciadores digitais, atletas ou professores, com seus corpos talhados a ferro e dietas, representam agora não apenas o ideal de saúde e beleza, mas também de vida feliz em uma atualização crescente do que Lucien Sfez (1995), na década de 90, detectou como o surgimento de uma nova utopia, a da saúde perfeita. Parte dessa utopia pode ser alimentada diretamente pelas imagens hipertratadas por filtros de câmeras cada vez mais aperfeiçoadas tecnologicamente e, assim, levadas ao máximo de aprimoramento visual em plataformas digitais, nas quais todos se apresentam alegres, satisfeitos e mesmo felizes, associando-se às novas formas de produção e consumo do corpo como virtualidade e objeto central de um mercado que, ao profissionalizar os digital influencers, consolida o mesmo corpo como mercadoria e empresa. Cada curtida em uma imagem exposta em plataformas digitais pode representar lucro para o corpo-empresa-de-si típico do modelo econômico neoliberal, o qual busca avançar a extração de valor em todas as instâncias possíveis da vida. O bodybuilding adentrou a nova era de expansão mercadológica não apenas como campo independente, mas também como um dos exemplos de exposição e exploração estética. O corpo-mercadoria sendo consumido em todas as suas formas vitais e imagéticas possíveis. Nesse aspecto, este trabalho, além de ser uma descrição de uma tribo urbana, é análise de uma época refletida nas práticas e representações desse mesmo grupo. Práticas e representações que significam um modo ou desdobramento da subjetividade neoliberal. Em outras palavras, o que se reflete é que o neoliberalismo surge como uma racionalidade da vida cotidiana e das microinstâncias sociais; além de ser uma política econômica e uma Weltanschauung (visão de mundo), ele reestrutura e reorganiza a ação dos governantes e a conduta dos governados. De acordo com Santos (2020, p. 19): “A racionalidade neoliberal apresenta como aspecto fundamental a generalização da concorrência na qualidade de norma de conduta e da empresa enquanto modelo de subjetivação”. A concorrência torna-se princípio universal de vida individual e coletiva configurando-se como reordenamento da maneira de governar subjetividades e populações. O bodybuilding, como socialidade e conjunto de valores ou representações e práticas, já estava, desde seu início, muito próximo das práticas conservadores e liberais, vide a mitologia biográfica de seu maior ícone, Arnold Schwarzenegger. Agora, em uma modulação conjuntural, 297 CÉSAR SABINO passa a refletir, de maneira ainda mais intensa, crenças, práticas e visões de mundo neoliberais com todas suas consequências individuais e coletivas. Esta modulação da subjetividade, em consonância com novas políticas econômicas e mudanças tecnológicas, pode ser entendida pela descrição que Deleuze e Guattari realizam sobre a capacidade do capitalismo se adequar e se transformar agenciando o desejo e domesticando as tentativas de subvertê-lo. Para os autores, a economia política não se separa da economia libidinal, sendo o desejo elemento constitutivo da infraestrutrura social e não apenas projeção superestrutural. Com efeito, o capitalismo funciona a partir da liberação dos fluxos desejantes que excedem conjuntos sociais e políticos instituídos visando a própria reprodução do sistema de produção – assim também todo desejo é produção. É nesse sentido que a produção subjetiva capitalista pode ser qualificada como esquizofrênica. Todavia, se o sistema funciona liberando doses intensas de energia libidinal que “decodificam” e “desterritorializam”, ele mesmo articula mecanismos contínuos de reabsorção desta energia à máquina produtiva. Os autores escrevem que quanto mais a máquina capitalista desterritorializa, decodificando fluxos, mais ela busca extrair deles a mais-valia (ou mais-valor) por intermédio dos aparatos burocráticos e policiais, máquinas repressivas, reterritorializando e reabsorvendo as forças em processo incessante no qual o capital tenta, em jogo contínuo, dominar as linhas de fuga criativas, os fluxos desejantes por intermédio dessas máquinas “paranoicas” que delas escapam (DELEUZE; GUATTARI, 1995; 2010; 2012; RICARDO, 2020). Deleuze, porém, perceberá uma nova modulação do funcionamento do capital e, por conseguinte, das instituições nas sociedades atuais pós anos 80. Para ele, a liberação dos fluxos desejantes ou linhas de fuga passarão de forma crescente a serem controlados entre o modo de subjetivação por estímulo do desejo e a avaliação dos desempenhos, dispensando cada vez mais as paredes institucionais e a configuração anterior das máquinas de repressão (DELEUZE, 1992). Se a dinâmica do capital produz nela mesma oposições ao seu funcionamento, novas subjetivações, ela, por sua vez, busca rearticular formas de agenciar e controlar essas forças desejantes que se opõem e saem do capital, transformando-as, modulando-as em uma dinâmica que, não raro, termina por transformar os produtos da rebeldia em uma nova mercadoria que vem a ser também o produto de uma extração inusitada de mais-valia ou mais-valor. São novas subjetividades, novas formas de valorar e se relacionar e ver o mundo que surgem nos parâmetros sempre adaptativos do capitalismo – no caso em voga, subjetividades ou subjetivações neoliberais. 298 DROGAS DE APOLO A busca incansável pela forma física perfeita na dinâmica dessa nova anátomo-política (o corpo-capital-vitrine-empresa), crescem, desde o final dos anos 90, as experimentações com remédios de todos os tipos em composição com esteroides anabolizantes. Em outras palavras, o uso de substâncias combinadas aumentou não apenas por intermédio dos autoexperimentos dos praticantes, mas também sob a tutela médico-estética visando a trabalhar o corpo para adequá-lo ao padrão hegemônico de beleza – vale ressaltar que o termo malhar muito em uso em tempos anteriores tem sido substituído pela categoria trabalho. É um trabalho-de-si que demanda capitais de todos os tipos e que será bem-sucedido em conformidade com a quantidade de capitais investidos pelo sujeito em sua empresa corporal. Surgem então, com renovados exercícios, sob supervisão de profissionais e supervisão clínica ou não, todos os tipos de combinações possíveis de fármacos e substâncias para o aprimoramento da aparência na luta competitiva pela melhor imagem de si. E, se novas identidades (minoritárias) tomam, cada vez mais, lugar no cenário capitalista em suas lutas por reconhecimento, trans, lésbicas, negros etc.; o paradigma, ou a estrutura da forma física, assim como as relações de poder continuam sendo as mesmas – sendo a própria condição de cidadão cada vez mais associada ou aproximada ao modelo hegemônico de beleza do corpo simétrico, musculoso e definido (LUZ; SABINO, 2013; JARRIN, 2017a), não importando necessariamente mais a cor da pele ou a orientação sexual. O mercado da forma física e estética jamais esteve com tamanha solidez como agora. Mercado em todos os sentidos do termo. Esse processo está em harmonia com e indica a formação de novas subjetividades, ou seja, aquela do “sujeito-empresarial” ou “homem-empresa-de-si” característica neoliberal produtora de novas modulações psíquico-funcionais96 Com efeito, além das já tradicionais associações de esteroides anabolizantes, hormônio do crescimento humano e infindáveis dietas surgidas no dia a dia das academias, novas experimentações aparecem, fazendo Dardot e Laval (2016, p. 332-335) escrevem a respeito dessa nova subjetividade: do sujeito ao Estado, passando pela empresa, um mesmo discurso permite articular uma definição do homem pela maneira como ele quer ser “bem-sucedido”, assim como pelo modo como deve ser “guiado”, “estimulado”, “formado”, “empoderado” (empowered) para cumprir seus “objetivos”. Em outras palavras, a racionalidade neoliberal produz o sujeito de que necessita ordenando os meios de governá-lo para que ele se conduza realmente como uma entidade em competição e que, por isso, deve maximizar seus resultados, expondo-se a riscos e assumindo inteira responsabilidade por eventuais fracassos. “Empresa” é também o nome que se deve dar ao governo de si na era neoliberal. Especialista de si mesmo, empregador de si mesmo, inventor de si mesmo, empreendedor de si mesmo: a racionalidade neoliberal impele o eu a agir sobre si mesmo para fortalecer-se e, assim, sobreviver na competição. Todas as suas atividades devem assemelhar-se a uma produção, a um investimento, a um cálculo de custos. Uma espécie de uberização geral. A economia torna-se uma disciplina pessoal. Tudo isso pode ser aplicado ao universo bodybuilder aqui estudado. 96 299 CÉSAR SABINO talvez do ritual de instituição, ou construção, de identidade e pessoa do fisiculturista um processo ainda mais arriscado que antes. Potencializou-se a produção da forma física tanto de homens como de mulheres em busca do padrão apolíneo hegemônico, sendo o arsenal bioquímico, cada vez mais, ampliado – antes apenas ampolas de testosterona sintética e comprimidos eram utilizados por fisiculturistas e simpatizantes do bodybuilding nos banheiros das academias ou em suas residências. Atualmente, médicos em clínicas associam várias substâncias aceleradoras do metabolismo, visando à perda de adiposidade, com os esteroides e hormônios do crescimento. Destarte, houve a expansão da tríade academia-consultório-esteticista em um primeiro instante, direcionando-se agora para procedimentos cirúrgicos delimitados, hidrolipo, lipoenxertias ou lipoesculturas, por exemplo, para os que portam algum recurso monetário, e harmonização facial. O padrão lipofóbico e simétrico de musculosidade se consolidou em um paradigma de Apolo Biomecânico ou Vênus Carnavalesca para mulheres. Nesse último caso, o modelo ambicionado pelas mulheres é o da forma rainha de bateria atual; ou seja: músculos protuberantes e definição abdominal demonstrando o mínimo possível de gordura corporal, além de coxas similares àquelas ostentadas por jogadores de futebol associadas às nádegas “granadas”, ou em forma desse artefato bélico. Essa bricolagem estética produz uma espécie de mix dos tradicionais tipos “mulata brasileira”, de fartas ancas, com a “loura americana” de seios grandes – em geral siliconados no caso em voga (LUZ; SABINO, 2013). Como dito, é o tipo (Vênus Carnavalesca) ou o papel social que representa a rainha de bateria do carnaval brasileiro (eminentemente o carioca) que se aproxima agora mais do tipo fisiculturista feminino, apenas com menor conteúdo de volume muscular. Esse tipo estético sem leveza é ambicionado por número significativo de mulheres jovens, competindo no mercado sexual ou no mercado das plataformas virtuais produtoras de celebridades imagéticas (LUZ; SABINO, 2013, 2018). Há que se ressaltar o crescente número dos denominados digital influencers que têm como profissão a postagem diária não apenas das imagens de seus corpos, modelados como descrito anteriormente, mas também as exposição cotidiana da forma como se alimentam, os meios nutricionais, o que vestem, os produtos estéticos e suplementos alimentares que utilizam e, fundamentalmente, as práticas dos variados tipos de exercícios ao ar livre ou em academias com pesos, amealhando assim milhares de seguidores e altos patrocínios de empresas ligadas a tudo que se relaciona à forma física. 300 DROGAS DE APOLO Adoração da imagem total, paradigma de existência, é o desdobramento do capital extraindo lucro de “curtidas”, tempo e vida. Como escreve Jonathan Crary (2016), uma das grandes afrontas à expansão voraz do capitalismo atual é aquela parte das vidas humanas que ainda não estão em atividade de consumo ou produção, seja qual consumo for, mesmo que sejam imagens do mundo virtual. Dessa feita, uma das estratégias do capital contemporâneo e sua desregulação do trabalho, é o máximo da manutenção das atividades, se possível durante 24 horas, sete dias por semana. Esse processo induz à insônia parcelas crescentes da população mundial, já que as redes sociais, principalmente via internet de tablets e smartphones, que colonizam o tempo e a vida, avançam e direção ao sono, diminuindo-o gradativamente, o que faz com que tudo se direcione e seja absorvido pela lógica da mercadoria, do código genético das espécies vivas e extintas até afetos e contatos com semelhantes. É o máximo de flexibilização do capital já alcançado aumentando a precarização do emprego (uberização do corpo e da imagem no caso aqui tratado) e a desigualdade social em todos os níveis possíveis. Esse é o retrato paradoxal dos mercados desregulamentados que extraem tempo e vida em forma de lucros em contraposição aos limites físicos inerentes aos seres humanos obrigados a se conformarem com esta demanda incessante. Essa lógica que Crary aplica ao sono pode ser estendida para a própria produção do corpo entre fisiculturistas e similares, todos inseridos no mesmo sistema que visa a colonizar e, cada vez mais, extrair riqueza da vida, esbarrando em seus próprios limites. Nesse sentido, os mercados da estética, boa forma e saúde, não cessam suas articulações, buscando refinar suas técnicas de marketing, suas tecnologias da beleza e, assim, aumentar o número de consumidores. Portanto, houve, nas últimas décadas, significativa redução dos preços de consultas e procedimentos estéticos que passaram a ser parcelados a perder de vista alcançando pessoas das classes mais baixas, além dos moradores dos subúrbios e bairros de origem proletária, não apenas no Rio de Janeiro, mas em todos os lugares. Fora a expansão de academias e redes de academias pelo país e a ampliação das vendas pelas redes sociais de todos os itens possíveis para manutenção da forma que se consolidou de vez. Os suplementos alimentares, cada vez mais sofisticados, podem ser comprados e consumidos por qualquer um, assim como programas de treinamento vendidos on-line por especialistas. Seguindo a percepção de Deleuze (1992, p. 219-226) sobre o surgimento de uma sociedade mundial que estaria não apenas submetida à disciplina, mas também ao controle intermitente de práticas e subjetividades pelos desdobramentos do capital; o bodybuilding (mas 301 CÉSAR SABINO não apenas ele, e sim todas as práticas de boa forma e estética, sendo ele aqui tomado apenas como modelo analítico maior e exagerado) teve suas práticas agenciadas, expandidas e flexibilizadas para muito além das organizações ou academias, terminando por ser conduzido, e por vezes administrado, pelas instituições médicas – e seus produtos – também flexibilizadas no âmbito da modulação capitalista. Aqui é preciso fazer um adendo, pois, diante de todo esse movimento de criação da saúde como beleza, vem surgindo um novo campo de práticas ou atividades físicas que, a partir do início dos anos 2000, passou a se expandir dos EUA para o mundo, tornando-se a maior cadeia de fitness da atualidade: o CrossFit Inc. Não vou aprofundar o assunto sobre esse grupo bastante diverso dos fisiculturistas e que mereceria um estudo em separado, mas posso dizer que é uma nova tribo urbana se consolidando com práticas, regras, associações próprias e singulares que surge adequada ao sistema neoliberal e ao modelo de sociedade de controle da era contemporânea. A CrossFit Inc., aparece já como uma marca ou grife, uma espécie de startup do corpo saudável, muito mais do que um esporte ou modalidade. Destarte, seu inventor, o estadunidense Greg Glassman, criou, em parceria com Lauren Jenai, um pacote de metodologia de exercícios variados que misturam ginástica calistênica, corrida, pliastenia e levantamento de pesos, mas com uma aplicação do tempo mais curto e funcional, diverso das academias de musculação em geral. Assim, em uma nova bricolagem de práticas, contempla exercícios de levantamento olímpico, movimentos ginásticos e condicionamento aeróbio, os quais são executados em alta intensidade (DOMINSKI et al., 2018) o que difere do fisiculturismo, ao menos em parte. Com efeito, os vastos galpões nos quais a prática é realizada são denominados pelo seu criador de Box. O pacote de instruções e atividades é alugado para filiados empresários da boa forma e saúde ao redor do mundo no modelo de franquia (franchising) no qual aqueles que aderem, mediante um licenciamento anual renovável, estão obrigados a seguir o cronograma e a cartilha das práticas criadas e formuladas por Glassman. Ou seja, a prática intensa de perda de adiposidade e criação de massa muscular e condicionamento físico é mais “solta” que o fisiculturismo, inclusive podendo ser realizada em partes externas ao box, como, em alguns momentos e casos, a própria rua ou amplos espaços abertos. Porém, apesar dos movimentos mais livres e independentes, posto que funcionais (calcados em movimentos cotidianos do corpo), todas as atividades acabam sendo controladas, administrativa e 302 DROGAS DE APOLO financeiramente, ou seja, centralizadas por um líder-empresário da forma e saúde e pelas regras que ele compôs. Diante de todo o cenário descrito, resta reiterar que a estrutura das relações de poder representadas pelo grupo de bodybuilders estudado se mantém e se expande em uma conjugação incessante de saberes-práticas associadas aos mercados. A manutenção do ritual de instituição ligado ao consumo de substâncias lícitas e ilícitas para a construção da forma física, portanto da identidade do praticante, é um exemplo dessa permanência. Como disse no início, aos esteroides anabolizantes, são somadas novas substâncias sob supervisão médica ou não. Assim, é possível elencar alguns elementos agora usados que não são testosterona, mas que se enquadrariam pelo contexto social no que denominei drogas de Apolo. Assim, quatro grandes grupos podem ser destacados nas práticas rituais da forma: esteroides anabolizantes e hormônio do crescimento HGH – os de sempre; broncodilatadores; estimulantes e emagrecedores. Sem embargo, tanto farmácias de manipulação podem vender composições e fórmulas prescritas por médicos com partes dessas substâncias, assim como os próprios fisiculturistas podem, por conta própria, compor e experimentar em si mesmos os “coquetéis explosivos” que, não por acaso, são por eles denominados “bombas”. As indicações e contraindicações ou informações sobre como funcionam seus usos, resultados e riscos podem atualmente ser encontradas, direta ou indiretamente, nas redes sociais (ORTIZ, 2020), algo quase impossível até meados da primeira década do século XXI. Além da facilidade de informações, nem sempre seguras, é possível até mesmo comprar a maioria dessas substâncias via sites ou farmácias virtuais. Associados ao uso dos esteroides – que variam de um tipo a cinco simultaneamente –, estão os broncodilatadores que, segundo os praticantes, auxiliam na perda de gordura ou no “ficar seco”. O primeiro remédio broncodilatador que vi ser associado foi o Franol que contém sulfato de efedrina e produz no atleta, segundo usuários, disposição e maior concentração. Outro remédio para asma, utilizado com o mesmo propósito, é o Marax que também contém sulfato de efedrina, além de teofilina anidra e dicloridrato de hidroxizida. Outro muito usado com o mesmo propósito de emagrecimento, embora sem a efedrina, é o Aerolin spray. Há nesse aspecto também o remédio veterinário Brontel (Clembuterol cloridrato. 20 mg.), da mesma forma um broncodilatador que tem efeito similar ao da adrenalina. Segundo usuários, apresenta efeito termogênico e ajuda, de forma significativa, a perda de gordura em 15 dias mais ou menos. O uso de Ritalina 303 CÉSAR SABINO também é comum, visando a aumentar concentração e foco nos treinos, como dizem. O Cloridrato de Sibutramina entra na lista, por ser responsável pela perda de apetite e eliminação de gordura, assim como o Orlistate; também a Metformina passou a ser usada, um fármaco para diabetes que reduz absorção de carboidratos e a produção de glicose. Fora esses fármacos, surgem também os diuréticos no auxílio de perda de peso, o Aldactone (espironolactona), que elimina a retenção hídrica, assim como a Hidroclorotiazida. Além desse bulário, existem muitas outras drogas desviadas de seus objetivos principais para o uso na busca da forma perfeita, como a insulina e os hormônios tireoidianos (que são usados para regular o metabolismo de quem apresenta sintomas de hipotiroidismo), como Cytomel, Eutirox 50, Levotiroxina (Puran T4) e o Tertroxin. A perseguição, a todo custo, da boa forma ou do padrão de beleza dominante, passou, a partir da década de 90, ao menos no Brasil, a ser conduzida por valores conservadores, antissolidários, individualistas e masculinistas. Porém, mais do que isso, aprimorou a transformação do corpo em empresa ou mercadoria, levando à epifania do consumo, sendo sua imagem transmutada em moeda virtual de troca no âmbito cotidiano das plataformas digitais e competições. Cotidiano esse de relações econômicas e trabalhistas, cada vez mais, desreguladas e desregulamentadas, propensas à neoescravidão por parte da acumulação do capital. Com efeito, o campo analisado reflete o contexto econômico geral, mas também as ideias, representações e o imaginário que o envolvem. Em outras palavras, as práticas e visões de mundo do grupo estudado podem indicar, por um lado, o desdobramento da moral ascética capaz de impor autodisciplina ao corpo em nome de um ideal imagético supremo, sacrificando-o até a morte pela causa da glória individual e egocentrada, e, por outro lado, a reprodução das práticas e afetos escravocratas, excludentes e androcêntricas tradicionalmente presentes na cultura brasileira. Com efeito, no contexto hodierno, a já tradicional propensão ao autoritarismo e à antidemocracia do país parece associar-se às práticas políticas anti-solidária enraizadas nos valores neoliberais e neoconservadores vigentes (SCHWARCZ, 2019; BOURDIEU, 1997). Busquei aqui não apenas compreender, talvez de forma tortuosa, o dia a dia dos bodybuilders em suas relações de poder, moralidade e aspirações, mas também, a partir daí, enxergar um pouco a forma como a economia política molda a subjetividade e como por ela é moldada. Perceber, assim, os sentidos de uma época em crise, que mercantiliza – torna objetos – todos os aspectos da vida, então sujeitada à lógica do empreendedorismo e ao recrudescimento da solidariedade e da democracia. 304 REFERÊNCIAS ABDELWAHAB, Meddeb. O Islã entre civilização e barbárie. In: NOVAES, Adauto (org.). Civilização e Barbárie. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. ABRAMOVAY, Mirian; WAISELFIZS, Julio Jacobo et al. Gangues, Galeras, Chegados e Rappers. Juventude, violência e cidadania nas cidades da periferia de Brasília. Brasília: Garamond/Unesco, 1999. AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua. I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. ALMEIDA, Maria Isabel Mendes de. Nada além da epiderme: a performance romântica da tatuagem. Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, p. 103-123, 2000. ALVES, Elder Patrick Maia. Norbert Elias (1897-1990). In: TELLES, Sarah; OLIVEIRA, Solange (org.). Os Sociólogos. De Auguste Comte a Gilles Lipovetsky. 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