ano 28
número 62
janeiro/abril 2022
62
ISSN 0104-7183
ISSN 1806-9983 (on-line)
História das antropologias do mundo
número organizado por
Patrícia Ferraz de Matos
Universidade de Lisboa – Portugal
Frederico Delgado Rosa
Universidade Nova de Lisboa – Portugal
Eduardo Dullo
Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Brasil
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Porto Alegre, ano 28, n. 62, jan./abr. 2022
Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 28, n. 62, jan./abr. 2022
Expediente:
UFRGS
UNIVERSIDADE FEDERAL
DO RIO GRANDE DO SUL
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Av. Bento Gonçalves, 9500, Prédio 43111, Sala 116
91509-900 – Porto Alegre – RS – Brasil
Telefone: (51) 3308-6625
E-mail: horizontes@ufrgs.br
Site: http://www.ufrgs.br/ppgas/ha
Capa:
Projeto gráfico: Carla Luzzatto
Desenvolvimento gráfico: Fabíola de Carvalho
Ilustração: @ Adam Adach, Quitter le continent [Deixar o continente], 2010-2021, óleo sobre tela,
180 cm × 180 cm.
Projeto gráfico do miolo, revisão e editoração eletrônica: Trema Assessoria Editorial
Este número é publicado com o suporte financeiro do Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social / UFRGS
Catalogação: Biblioteca Setorial de Ciências Sociais e Humanidades / UFRGS
Bibliotecário: Maycke Young de Lima – CRB 10/1920
Horizontes Antropológicos / Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-graduação em Antropologia
Social. – Vol. 1, n. 1 (1995)-. – Porto Alegre : UFRGS. IFCH, 2009. – Quadrimestral. Continua: Cadernos de Antropologia.
– ISSN 0104-7183 (impresso), ISSN 1806-9983 (on-line).
1. Antropologia. 2. Ciências sociais. I. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Programa de Pós-graduação em
Antropologia Social.
Horizontes Antropológicos está indexada em:
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en Ciencias Sociales y Humanidades da FLACSO
OJS – SEER
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ProQuest Social Science Journals via IBSS
Researching Brazil
ROAD
SciELO – Scientific Electronic Library Online
SCIMAGO – Web of Science
SCOPUS
SHERPA ROMEO
Social Compass via IBSS
Sumário | Summary
Apresentação | Introduction
7
Caminhos para uma história inclusiva das antropologias do mundo
Pathways to an inclusive history of world anthropologies
Patrícia Ferraz de Matos; Frederico Delgado Rosa; Eduardo Dullo
Artigos | Articles
47
A opção de Mariza Corrêa pelo etnógrafo oitocentista
Mariza Corrêa’s option for the 19th century ethnographer
Israel Ozanam
79
O tio haitiano da antropologia contemporânea: teoria, história
e poder em Jean Price-Mars
The Haitian uncle of contemporary anthropology: theory, history,
and power in Jean Price-Mars
João Felipe Gonçalves
115
Roger Bastide – entre tempos, espaços, tradições
Roger Bastide – between times, spaces, traditions
Fernanda Arêas Peixoto
145
Octávio Eduardo, René Ribeiro e Melville Herskovits. Religiões
afro-brasileiras, aculturação e sincretismo
Octávio Eduardo, René Ribeiro, and Melville Herskovits. Afro-Brazilian
religions, acculturation and syncretism
João Leal
179
Claude Lévi-Strauss en los mares del sur. Algunos desencuentros
entre estructuralismo y antropología en Argentina
Claude Lévi-Strauss in the South Seas. Some misunderstandings between
structuralism and anthropology in Argentina
Nicolás Viotti
211
(Re)aproximando-se e afastando-se da Alemanha: Curt Nimuendajú
como parte de redes transnacionais de antropólogos
(Re)approaching to and withdrawing from Germany: Curt Nimuendajú
as part of transnational networks of anthropologists
Peter Schröder
257
A mediação seletiva de Herbert Baldus entre etnologia alemã
e antropologia brasileira
Herbert Baldus’ selective mediation between German ethnology
and Brazilian anthropology
Sílvio Marcus de Souza Correa
293
Shōgorō Tsuboi e o início da antropologia japonesa
Shōgorō Tsuboi and the beginning of Japanese anthropology
Silvia Reis
317
Ernesto De Martino e o percurso italiano da antropologia
Ernesto De Martino and the Italian path of antropology
Cristina Pompa
351
Anahuac o la producción social de la diferencia: un episodio
en la configuración histórica de la antropología en México
Anahuac or the social production of difference: an episode in the
historical configuration of anthropology in Mexico
Alfredo Nava Sánchez
Espaço Aberto | Open Space
385
Entre reuniones y documentos: la demanda de acceso al cannabis
para usos terapéuticos en Argentina
Between meetings and documents: the demand for access to medical
cannabis in Argentina
María Cecilia Díaz
Apresentação
Introduction
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71832022000100001
Caminhos para uma história inclusiva
das antropologias do mundo
Pathways to an inclusive history of world
anthropologies
Patrícia Ferraz de Matos I
https://orcid.org/0000-0001-7322-3756
patricia_matos@ics.ulisboa.pt
Frederico Delgado Rosa II
https://orcid.org/0000-0003-0220-7374
fdelgadorosa@fcsh.unl.pt
Eduardo Dullo III
https://orcid.org/0000-0003-3793-7406
eduardo.dullo@ufrgs.br
I
Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa – Lisboa, Portugal
II
Centro em Rede de Investigação em Antropologia, Universidade Nova de Lisboa
– Lisboa, Portugal
III
Universidade Federal de Rio Grande do Sul – Porto Alegre, RS, Brasil
Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 28, n. 62, p. 7-45, jan./abr. 2022
Patrícia Ferraz de Matos; Frederico Delgado Rosa; Eduardo Dullo
8
O movimento das antropologias do mundo1
A expressão antropologias do mundo (world anthropologies), com um sentido
equiparável ao de músicas do mundo (world music), entrou no vocabulário disciplinar devido sobretudo à obra, organizada por Gustavo Lins Ribeiro e Arturo
Escobar (2006), World anthropologies, que constitui uma “antropología de las
antropologías del mundo” (Bueno, 2007, p. 238). Ribeiro e Escobar analisam
projetos antropológicos nacionais que promoveram o pensamento crítico na
disciplina, mas sem esquecer dos projetos que contribuíram para legitimar o
colonialismo. O conceito foi forjado para exprimir a diversidade e riqueza das
tradições antropológicas mantidas nas margens dos sistemas de poder epistêmico, relativamente à hegemonia dos Estados Unidos e da Europa, em particular do Reino Unido e da França. O seu sucesso é manifesto através de uma certa
rotinização da novidade na cena antropológica global e nos grandes centros
de produção científica do “Norte”, por exemplo através da criação, em 2015, de
uma seção permanente intitulada “World Anthropologies” (atualmente dirigida por Virginia Dominguez) na conceituada revista American Anthropologist;
ou da inclusão na The international encyclopaedia of anthropology, dirigida por
Hillary Callan e Simon Coleman (2018), da entrada “World anthropologies”
(Restrepo, 2018), a par de outras entradas sobre tradições antropológicas nacionais e regionais.
No prefácio de World anthropologies, Ribeiro e Escobar remontam à discussão do simpósio promovido em 2003 pela Wenner-Gren Foundation for
Anthropological Research, que reuniu na Itália 17 antropólogos de cinco continentes.2 Restrepo (2018, p. 1-2) considera ter ocorrido então uma “conceitualização coletiva”3 e identifica as influências e textos que foram inspiradores
da ideia. As antropologias do mundo são também referidas como “um paradigma” (Reuter, 2018, p. 5), novo, no seio do qual a diversidade é trazida das
1
Este trabalho foi apoiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., Norma Transitória
– DL57/2016/CP1441/CT0001.
2
Para um histórico de outros encontros científicos influentes no movimento, ver Ribeiro (2005,
p. 1). Essas redes viriam a permitir organizar congressos e criar associações como o World Council
of Anthropological Associations.
3
Todas as traduções de citações são nossas, salvo indicação contrária.
Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 28, n. 62, p. 7-45, jan./abr. 2022
Caminhos para uma história inclusiva das antropologias do mundo
margens para o centro. Ribeiro e Escobar (2006, p. 23) falam de “um projeto”,
afirmando que o mesmo tem “reverberações utópicas”. E num artigo de 2005,
Restrepo e Escobar (2005, p. 114) antecipam, quase profeticamente, o “resultado
final” dessa empresa criadora de espaço para “outras antropologias e para uma
antropologia diferente”; conjugando o verbo no futuro, concluem: “Esse seria
o espaço das ‘antropologias do mundo’.” O conceito ressurge em diversos artigos e livros, confirmando o impacto do desafio lançado (Copans, 2009; Cunin;
Hernandez, 2007; Gledhill, 2017).
O coletivo que originou o projeto das antropologias do mundo4 pretendeu
que este fosse multilinguístico, produzisse investigação com fundos alternativos, enfatizasse agendas de pesquisa e autorias coletivas com sensibilidade
para as particularidades locais e contra tendências normalizadoras – centrais
ou periféricas –, considerando que a academia é apenas um dos lugares onde
a produção de conhecimento é possível. Nele estiveram envolvidos pesquisadores não associados a tradições hegemônicas, como Eduardo Archetti, Eeva
Berglund, Marisol de la Cadeña, Arturo Escobar, Penelope Harvey, Susana
Narotzky, Eduardo Restrepo, Gustavo Lins Ribeiro e Sandy Toussaint (World
Anthropologies Network Collective, 2003, p. 265-267). Segundo Ribeiro (2014),
existem três tipos de cosmopolitismos antropológicos: o “imperial” simplesmente reproduz a hegemonia anglo-saxônica; o “liberal” naturaliza o lugar proeminente do Ocidente, representando um avanço em relação ao primeiro; e o
“radical”, exemplificado pelo projeto das antropologias do mundo, problematiza
a centralidade anglo-americana, critica o eurocentrismo e pretende pluralizar
a antropologia e a sua história.
Uma das características desse movimento consiste em abordar a cena
antropológica mundial em termos de relações de poder, de uma “geopolítica do
conhecimento” (Mignolo, 2001) que assegura maior visibilidade e impacto da
produção científica “metropolitana”,5 associada a instituições influentes e comparativamente ricas dos eixos anglo-saxônico (entenda-se anglo-americano)
4
E designadamente da World Anthropologies Network (WAN): http://www.ram-wan.net/en_US/.
5
A terminologia adequada para exprimir referências dicotômicas incontornáveis, embora relativas, como centro/periferia, hegemonia/subalternidade, Norte/Sul, etc., continua em debate
(Restrepo; Escobar, 2005, p. 121).
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9
Patrícia Ferraz de Matos; Frederico Delgado Rosa; Eduardo Dullo
10
e anglo-francês6 – acadêmicas, editoriais e outras (Escobar, 1995).7 Tal ocorre
em detrimento de criações antropológicas que, embora válidas, são tendencialmente ignoradas pela comunidade internacional por surgirem em países e
regiões com posições relativamente periféricas nessa geopolítica, ficando por
explorar o “potencial heteroglóssico da globalização” (Ribeiro; Escobar, 2006,
p. 6).8 Embora cientes de que a antropologia sempre foi propensa a circulações,
diversos teorizadores (e inspiradores) do novo paradigma tendem a acentuar o
contraste entre o presente e o passado disciplinar, no sentido em que só agora
seria possível, em virtude da sensibilidade pós-colonial, alcançar maior equilíbrio e justiça. Segundo Ribeiro e Escobar (2006, p. 11), “as antropologias do
mundo podem avançar nas condições atualmente existentes”. Tal não significa
que no passado “colonial” da antropologia a diversidade ou heteroglossia fossem inexistentes ou negligenciáveis à escala global, mas que não havia condições políticas para que fossem reconhecidas.
Entre outros textos apreciados pelo seu vanguardismo, destaca-se o de
Esteban Krotz (2005, p. 149, 151), que lançou, com ironia, a noção de antropologias sem história, não por serem desprovidas de passado, mas por serem sistematicamente excluídas da historiografia da antropologia: “As antropologias
geradas nos países do Sul […] quase não têm lugar nos manuais mais divulgados e traduzidos, bem como nas principais revistas”;9 na melhor das hipóteses,
são concebidas como uma espécie de “eco” ou “versão diluída” da antropologia emanada dos poderosos centros de produção científica. Krotz (2005, p. 155)
admite que a simples presença das ciências antropológicas nos “países do Sul”
resultou necessariamente de um processo histórico de difusão, considerando
a sua “origem norte-atlântica”, pelo que na primeira metade do século XX
6
A expressão “anglo-french core” é frequente.
7
Ainda que essa riqueza possa estar associada à precarização da mão de obra.
8
O termo heteroglossia provém da linguística. Exprimindo as variações no interior da mesma
língua, em particular as determinadas socialmente, é a tradução neogrega do termo introduzido
em russo, nos anos 1930, por Mikhail Bakhtin.
9
Um exemplo é a obra de Barth et al. (2005), cujo título reduz a antropologia às quatro tradições
hegemônicas. Contudo, no capítulo dedicado à antropologia alemã e austríaca, Gingrich põe
em causa a ideia de se tratar de uma tradição hegemônica. Devido a duas guerras mundiais, a
antropologia em língua alemã já não faz parte do cânone e Gingrich (2005, p. 103) refere-se a ela
como uma “não tradição de boa antropologia” que foi “esquecida, reprimida, e só relembrada
após tremendos lapsos temporais”.
Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 28, n. 62, p. 7-45, jan./abr. 2022
Caminhos para uma história inclusiva das antropologias do mundo
“qualquer prática antropológica científica era acima de tudo, embora em diferentes graus, uma extensão e ramificação dos impulsos gerados no centro”;
mas, pelo menos na segunda metade do século, “muitos desses transplantes
começaram a revelar-se […] como raízes”, dando lugar a combinações idiossincráticas de influências internas e externas.10 É, por isso, uma lástima, segundo
Krotz, que mesmo em países do “Sul” o ensino acadêmico recorra com frequência àqueles tipos de manuais e siga um modelo difusionista que contribui para
desconsiderar a importância, ou ignorar as antropologias locais.
Ribeiro e Escobar (2006, p. 8) introduzem a noção de “provincianismo cosmopolita” para exprimir o conhecimento privilegiado das antropologias norte-americana, britânica e francesa, e das suas histórias, por parte dos praticantes
do “Sul”, inclusive em detrimento das histórias próprias, como se fossem desprovidas de textos clássicos. Em contraponto, o “cosmopolitismo provinciano”
dos antropólogos do “Norte” manifesta-se através do seu desconhecimento das
outras antropologias e suas respectivas histórias. O dilema krotziano é sintetizado por Restrepo (2018, p. 5; 2011) nos seguintes termos: “Algumas tradições e
organizações antropológicas da periferia, subalternizadas ou dissidentes, são
vistas como ‘antropologias sem história’, enquanto as tradições e organizações
centrais ou hegemônicas são naturalizadas como a ‘história da antropologia’.”
Muitas vezes é caricato que os autores de trabalhos produzidos em e sobre contextos periféricos se vejam obrigados a articular o seu tema com referências
hegemônicas para que sejam aceitos para publicação.
Embora diversos capítulos da sua obra tenham uma dimensão histórica
(por exemplo Cadena, 2006; Yamashita, 2006), Ribeiro e Escobar (2006, p. 5,
19) reconhecem que “seria impossível escrever uma síntese das contribuições
plurais de histórias desconhecidas”, sendo necessários “muitos mais volumes”;
em qualquer caso, consideram que a escrita da história das antropologias sem
história é “o primeiro requisito” para reparar as assimetrias da episteme hegemônica. A historicização da disciplina, melhor dizendo a “re-historicização”
10 Krotz situa as origens da antropologia em finais do século XIX, mas diversos estudos revelam
que essa cronologia peca por defeito, já que houve importantes manifestações tanto na primeira metade do século XIX (por exemplo, Sera-Shriar, 2013, para o caso britânico) como no
século XVIII, quer no plano teórico, quer no plano das práticas e conceitos de observação e
descrição etnográfica. Ver, em particular, Vermeulen (2015), para a importância das expedições
germano-russas à Sibéria e subsequentes desenvolvimentos.
Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 28, n. 62, p. 7-45, jan./abr. 2022
11
12
Patrícia Ferraz de Matos; Frederico Delgado Rosa; Eduardo Dullo
das antropologias em uma perspectiva verdadeiramente plural e descentrada,
mostra-se essencial para os proponentes desse paradigma (Restrepo, 2018, p. 6;
Restrepo; Escobar, 2005, p. 119; Ribeiro, 2005, p. 3).
O passado disciplinar à escala mundial é uma questão demasiado vasta e
complexa para ser limitada com tentativas de periodização esquemática ou
ambiciosa generalização, havendo antes espaço para narrativas historiográficas alternativas, divergentes, também elas heteroglóssicas, sobre cada um dos
múltiplos contextos que integraram e integram a constelação histórica das
ciências e das práticas antropológicas e etnográficas.11 Há dois aspectos, contudo, sobre os quais parece existir consenso, sendo porventura suscetíveis de
generalização: tanto no presente como no passado, as “outras” antropologias
nunca representam meras réplicas, tampouco constituem casos de “particularismo epistêmico essencialista” (Restrepo, 2018, p. 2), à margem e à revelia das
tradições hegemônicas. Embora existam antropologias com particularidades
(Gerholm; Hannerz, 1982), qualquer tradição “nacional” é forçosamente híbrida,
composta de várias histórias de circulação e intercâmbio.
No passado, considerava-se que a própria presença de figuras oriundas de
contextos hegemônicos podia estimular o desenvolvimento de antropologias
locais. Um exemplo é a visita do antropólogo francês Paul Rivet (1876-1958) à
Colômbia quando da tomada de posse do presidente Eduardo Santos em 1938
(Reyes, 2018, p. 9). Mas no contexto colombiano a antropologia situava-se entre
a aceitação das tradições acadêmicas europeias, o comprometimento com as
comunidades do país (Caviedes, 2007; Pérez, 2010) e a influência do Estado
(Pulido Londoño, 2020). Existem ainda exemplos de ativismo por parte dos praticantes da antropologia em contextos como a Argentina (Guber; Visacovsky,
1998), Cuba (Coronil, 2005) e Bolívia (Combès, 2017), e terão sido aliás algumas
das características próprias dessas antropologias do “Sul” que inspiraram Krotz
(2011) a propor um estudo atento dos respectivos temas, formas de ensinar,
reflexão teórica e trabalho de campo.
11 Uma das primeiras investidas para averiguar a relação entre teoria antropológica (sobretudo da
antropologia social na tradição britânica) e circunstâncias regionais particulares que influenciaram tradições locais de escrita etnográfica (sobre contextos tão distintos como a Austrália
aborígine, a África subsaariana, a Melanésia ou a Ásia) encontra-se no livro clássico editado por
Richard Fardon (1990).
Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 28, n. 62, p. 7-45, jan./abr. 2022
Caminhos para uma história inclusiva das antropologias do mundo
O movimento das antropologias do mundo não pretende renegar o “Ocidente”, mas intensificar diálogos mais abrangentes, nos quais continuarão a
participar os antropólogos das regiões e países até agora em posição dominante. Um aspecto fundamental desse diálogo passa por reescrever (em alguns
casos reler ou traduzir) a história da antropologia, de forma a ultrapassar a
ignorância reinante sobre as tradições ditas periféricas. O presente número
temático situa-se nesse espaço de interrogação, numa confluência entre a teorização associada ao paradigma das antropologias do mundo e a historiografia da antropologia. Segundo Krotz (2005, p. 158), os esforços para tornar mais
visíveis as antropologias do “Sul” conjugaram-se com algumas tendências
do “Norte”, como “o veloz incremento do interesse pela história da disciplina”.
A necessidade de traçar um quadro mais inclusivo, exigindo uma exploração
do arquivo, tem sido um princípio orientador desde que a história da antropologia se afirmou internacionalmente como campo subdisciplinar, sobretudo
a partir dos anos 1960, com George W. Stocking Jr., que assumiu a liderança
desse movimento com epicentro nos Estados Unidos. As tentativas de reabilitar figuras menos conhecidas, vozes dissidentes e inclusive correntes de
pensamento marginais ou esquecidas, são justificadas, em muitos casos, pela
necessidade de contextualizar as grandes tradições e as suas figuras proeminentes (Bieder, 1986, p. xii; Stocking Jr., 1974). O especializado aparato metodológico historicista defendido por Stocking Jr. não significa que as tradições
antropológicas periféricas do ponto de vista geográfico e político (inclusive de
países europeus, como Espanha, Portugal, Itália ou Grécia) tenham recebido
atenção num grau minimamente comparável ao que recai sobre as tradições
nacionais hegemônicas, a despeito da existência de diversos autores e suas
respectivas obras, do folclorista e historiador das religiões Ernesto De Martino
(Gervasi, 2021; Zinn, 2015) ou do folclorista urbano Elias Petropoulos (Taylor,
2020), suscetíveis de integrar – e perturbar – os manuais de história disciplinar
que contribuem para a formação de novas gerações de antropólogos. A vasta
obra de Stocking Jr. dedicada à história da antropologia norte-americana e
britânica é por si só ilustrativa dessa desproporção. Num quadro de conhecimento mais democratizado, a heterogeneidade da produção antropológica
europeia poderia ser colocada no mesmo patamar que a de outros contextos
periféricos que oferecem alternativas aos poderosos referenciais dos Estados
Unidos e do Reino Unido.
Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 28, n. 62, p. 7-45, jan./abr. 2022
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Patrícia Ferraz de Matos; Frederico Delgado Rosa; Eduardo Dullo
Da história hegemônica à diversidade e multilinguismo
na historiografia da antropologia
Os historiadores da antropologia estão cientes dos riscos do anglocentrismo,
isto é, de perspectivar a história da disciplina principalmente a partir de uma
lente anglo-americana. Seguindo a metáfora de Gerholm e Hannerz (1982, p. 6),
é como se o mapa da antropologia fosse constituído por um território principal, o das antropologias britânica, americana e francesa, em torno do qual se
encontra um arquipélago com ilhas grandes e pequenas. Mesmo quando os
historiadores da disciplina explicitam que os resultados das suas pesquisas
apenas dizem respeito a contextos de língua inglesa, isso não os impede, nem
aos seus leitores, de produzirem generalizações a partir daí, ainda que de forma
subconsciente ou involuntária.12 Por exemplo, Stocking Jr. (1995, p. 94-95) sublinhou nos seguintes termos o estatuto pioneiro da célebre monografia de Baldwin Spencer e Francis Gillen (1899):
Apesar da sua base evolucionista, The native tribes of Central Australia representa
um afastamento substancial em relação às normas etnográficas do século XIX.
[…] Sente-se que entramos no universo etnográfico do século seguinte.
A importância de Spencer e Gillen é um tema de debate com vasta bibliografia,
mas as considerações de Stocking Jr. contribuem para uma visão anglocêntrica
da história da antropologia ao ofuscarem o trabalho de etnógrafos não anglófonos que também fizeram etnografia na Austrália Central no mesmo período.13
O problema agudiza-se se considerarmos muitos outros pioneiros etnográficos do século XIX que escreveram em outras línguas, trabalharam em outros
continentes e realizaram etnografias bem mais desafiantes e visionárias que
a de Spencer e Gillen, abordando questões que seriam aliás relegadas, durante
décadas, para as margens das tradições hegemônicas, como a história colonial.
Um exemplo desses pioneiros, ignorado no plano internacional, mas também
excluído das narrativas da história da antropologia no seu país, é o etnógrafo
12 O mesmo se aplica às perspectivas francocêntricas.
13 Em particular o seu “rival” no contexto arunta/arrernte, Carl Strehlow, autor da monografia em
sete volumes, Die Aranda- und Loritja-Stämme in Zentral-Australien (Strehlow, 1907-1920).
Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 28, n. 62, p. 7-45, jan./abr. 2022
Caminhos para uma história inclusiva das antropologias do mundo
português Henrique de Carvalho (1890a, 1890b), cuja vasta obra sobre a região
centro-africana da Lunda é suscetível de desestabilizar a história da antropologia
por várias razões, das quais destacamos as suas minuciosas e complexas descrições da vida política local. Se não pertencesse a uma tradição menor de um país
periférico, Carvalho poderia ter tido mais hipóteses de ser reconhecido como um
importante precursor da revolução etnográfica (Heintze, 2011; Rosa, 2017).
Um dos raros manuais de história da antropologia cujo conteúdo procura
responder ao problema do anglocentrismo14 é a obra coordenada por Henrika
Kuklick (2008, p. 8), que escreve na introdução:
Encontrar pioneiros do trabalho de campo nos mais diversos locais implica
questionar igualmente a reconhecida hierarquia internacional dos praticantes
da disciplina antropológica. […] Mas esta hegemonia é, em si mesma, um produto histórico. […] A desmistificação da continuada hegemonia antropológica
anglófona contribui para a causa contemporânea daqueles que estão fazendo da
antropologia uma disciplina cada vez mais internacional […].
Para não as favorecer em detrimento da produção antropológica de outros países, a antropologia dos Estados Unidos e do Reino Unido, como as da França,
Alemanha e Áustria ocupam um escasso número de páginas no cômputo da
obra, em quatro capítulos da primeira parte, intitulada “Major traditions”. Contudo, a tradição norte-americana acaba por marcar a estrutura do livro, que obedece a uma lógica de quatro subdisciplinas, associadas historicamente (ainda
que não unicamente) aos Estados Unidos através da expressão sacred bundle:
a antropologia cultural, a arqueologia, a antropologia biológica e a linguística.
Assim, no capítulo dedicado à arqueologia na China, a própria autora Hilary
Smith (2008, p. 207), especialista em história da ciência e sociedade chinesas,
reconhece: “Com efeito, muitos arqueólogos chineses ficariam surpreendidos
ao encontrarem um ensaio sobre a sua disciplina numa história da antropologia.” A obra integra uma parte essencial, intitulada “Neglected pasts”, da
qual faz parte o capítulo anteriormente referido e três outros, respectivamente
dedicados às tradições antropológicas holandesa, escandinava e russa. Embora
14 Esse problema se adensa com a possibilidade da anglicização da própria antropologia, um
aspecto analisado em Wulf (2016).
Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 28, n. 62, p. 7-45, jan./abr. 2022
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Patrícia Ferraz de Matos; Frederico Delgado Rosa; Eduardo Dullo
contemple alguns passados negligenciados, a obra fica aquém dessa ideia, pois
poderia ter incluído mais tradições “marginais” ou “periféricas”, inclusive do
hemisfério sul.
Outra tentativa, mais antiga, de escrever uma história alternativa foi a do
antropólogo espanhol exilado no México (desde a Guerra Civil), Ángel Palerm
Vich (2005, 2010a, 2010b), ao insistir na importância de antigos observadores
e pensadores da diferença cultural, gregos ou romanos, árabes ou italianos,
sendo de destacar os missionários e cronistas hispânicos das Américas, como
Bernardino de Sahagún. A propósito da reedição da obra em 2005-2010, Joan
Pujadas (2014, p. 151) salienta que Palerm se posicionava contra as abordagens
anglocêntricas e francocêntricas da antropologia de finais do século XVIII e
início do século XIX. Palerm terá sido um precursor da heteroglossia no âmbito
da própria historiografia da antropologia. Como escreve Pujadas (2014, p. 153):
“A sua mensagem é muito clara: cada tradição etnológica deve fazer a sua própria leitura da história do pensamento etnológico, eleger e reivindicar os seus
próprios antepassados, fixar essa mesma tradição e convertê-la em história.”15
Embora salientando o aspecto tardio, em termos comparativos e por razões
históricas óbvias da institucionalização da antropologia na generalidade dos
países do “Sul”, e designadamente no México, Krotz (2005, p. 155) faz uma inflexão no seu argumento com vista a “redescobrir”, na senda de Palerm, genealogias anteriores aos processos de institucionalização disciplinar:
Quando são narradas as biografias das primeiras pessoas que se dedicaram
desde finais do século XVIII ao estudo dos problemas cognitivos e práticos da
diversidade cultural, […] os cidadãos dos países poderosos de então e de hoje são
normalmente considerados “precursores” da disciplina, enquanto os dos países
do Sul não passam de simples “amadores”.
Pertencer ou não às sociedades onde a antropologia veio a nascer como disciplina científica é suficiente para justificar essas classificações? […] O perigo
reside na omissão provocada pelo uso irrefletido desse tipo de classificação, porquanto, em consequência disso, a própria existência das antropologias do Sul é
mais uma vez ignorada.16
15 Ver também Peña (1987).
16 Ver também Ribeiro (2005, p. 3).
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Caminhos para uma história inclusiva das antropologias do mundo
A tradição antropológica mexicana mais tardia, nomeadamente dos séculos XIX e XX, acabou por ficar de fora do projeto de Palerm, interrompido pela
sua morte, mas outros autores procuraram, na sua pegada, preencher essa
lacuna, sendo de destacar a monumental obra coletiva, em 15 volumes, La
antropología en México, dirigida por Carlos García Mora (1987-1988). O lugar de
Palerm na história da antropologia mexicana é objeto de um artigo que Krotz
(2010) publica em 2010 no periódico de referência (posteriormente coleção)
Histories of Anthropology Annual (HOAA). Com Gonzalo Aguirre Beltrán (19081996) e Guillermo Bonfil Batalla (1935-1991), Palerm emerge nesse texto como
um dos protagonistas de uma nova antropologia politicamente engajada à
esquerda, que questionou o indigenismo vieux style associado a certas elites
nacionais (ver também García Valencia, 1995). Na recente dissertação de mestrado dedicada a HOAA, o historiador brasileiro João Luiz dos Santos Junior
(2019, p. 84) sugere que o artigo de Krotz representa uma “pedrada no charco”,
referindo-se à historiografia anglocêntrica e – não obstante outros artigos
dedicados a antropologias do “Sul” (Adams, 2005; Fluehr-Lobban, 2007;
Guber; Visacovsky, 2006) – à própria revista dirigida por Regna Darnell e Frederic W. Gleach, marcada por “um certo status quo” em termos de referências
predominantes:
Trata-se afinal de uma revista científica produzida no “Norte”, publicada no
“Norte”, sobretudo com contribuidores do “Norte” ou mesmo dos Estados Unidos da América – e majoritariamente dedicada às tradições antropológicas do
“Norte”, se não ao culturalismo e seus antecedentes. Uma estatística que merece
ser feita.
Santos Junior fez esse exercício estatístico para os sete primeiros volumes de
HOAA (2005-2011), enquanto revista, e os resultados são expressivos. Os artigos
sobre as tradições estadunidenses e canadenses constituem 72% do total, os
artigos sobre as antropologias britânica, australiana e neozelandesa cerca de
14,5%, os dedicados às antropologias francesa, alemã e austríaca são cerca de
6,5%, os relativos a tradições “periféricas” do “Norte” representam cerca de 3% e
os que versam tradições da América Latina são 4%. Não havia, até então, qualquer artigo sobre tradições asiáticas e africanas. Essas porcentagens correspondem grosso modo à proveniência dos contribuidores da revista, sendo 81%
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dos Estados Unidos e do Canadá.17 Segundo Santos Junior (2019), esse predomínio anglo-saxônico contrasta com a pluralidade defendida nos editoriais de
Darnell e Gleach, que lançaram o plural histories para exprimir esse desígnio:
“Histories of Anthropology Annual tenciona demonstrar que, da mesma forma que
existe diversidade nas antropologias que praticamos, também existe diversidade na história da antropologia como especialização disciplinar”; tal demonstração tem a ver não apenas com diferentes abordagens historiográficas, mas
também com “a diversidade de tradições nacionais”, uma questão explicitada
desde o início (Darnell; Gleach, 2005, p. vii-viii).18
Em clara sintonia com algumas das reflexões do projeto das antropologias
do mundo, Darnell e Gleach (2006, p. viii; 2007, p. viii; 2014, p. x) reiteram praticamente em cada editorial a sua preocupação em “percorrer várias tradições
nacionais” que “se recusam a ser mantidas em caixas separadas”. Segundo
Santos Junior (2019, p. 8), “o peso inegável, desproporcional, da historiografia
estado-unidense faz-se sentir, porventura, nestas palavras quase dramáticas:
‘Continuamos a convidar contribuições que reflitam essa diversidade, especialmente de autores que acham que a sua perspectiva não está representada
aqui […] (Darnell e Gleach 2008 viii)’.”19 A diversidade das tradições nacionais é
abordada de forma mais otimista no editorial do volume de 2010: “As tradições
nacionais (neste caso do México, Canadá, Austrália e França) continuam a ocupar um lugar considerável entre os artigos que nos são submetidos, embora seja
cada vez mais claro que esses desenvolvimentos nacionais são inseparáveis das
forças transnacionais” (Darnell; Gleach, 2010, p. vii-viii). No primeiro volume
publicado, já não como revista, mas como livro, os organizadores manifestam-se “particularmente orgulhosos” por verem o seu projeto expandir-se para
lá do habitual enfoque norte-americano da subdisciplina da história da antropologia, incluindo desenvolvimentos profissionais na Europa, América Latina,
Austrália e Nova Zelândia (Darnell; Gleach, 2014, p. ix).
17 O critério seguido foi o da afiliação institucional; no caso de investigadores independentes foi
contemplada a nacionalidade.
18 À diversidade de tradições, deveria acrescentar-se a diversidade interna e a própria dispersão
temática associada a alguns contextos, por exemplo no caso do Chile (Palestini; Ramos; Canales,
2010).
19 Tradução de Santos Junior.
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Caminhos para uma história inclusiva das antropologias do mundo
Em 2016, Darnell e Gleach fazem uma retrospectiva que permite olhar mais
benevolamente para as estatísticas de HOAA: “O passado espacial ou geográfico manifesta-se num mundo contemporâneo em termos de diversas tradições e instituições nacionais, e cada um dos nossos primeiros dez volumes
incluiu artigos sobre essas tradições nacionais” (Darnell; Gleach, 2016, p. xi; ver,
por exemplo, Korsbaek; Barrios Luna, 2015; Matos, 2016). Destaca-se ainda o
volume de HOAA de 2017 por conter os primeiros três artigos dedicados a uma
tradição asiática, nomeadamente vietnamita, de Nguyen Phuong Ngoc (2017),
Nguyen Van Huy (2017) e Bradley Camp Davis (2017). Os resultados dessa incursão na história da antropologia vietnamita, desde a época colonial francesa à
era pós-socialista, são surpreendentes por relativizarem a polêmica em torno
do próprio relativismo cultural da antropologia como projeto ocidental ou colonial com fins políticos dúbios. A seguinte conclusão por parte de Ngoc (2017,
p. 215) enquanto historiador da antropologia vietnamita revela-se chocante:
“Assim, a colonização proporcionou aos vietnamitas uma oportunidade ímpar
de abertura às outras culturas.”
Um exercício estatístico similar, revelando maior ou menor anglocentrismo,
francocentrismo ou eurocentrismo, no que diz respeito às tradições abordadas,
poderia ser feito em relação a outras publicações de referência no domínio da
história da antropologia, como a coleção “History of anthropology”, criada por
G. W. Stocking Jr. e posteriormente dirigida por Richard Handler, ou a coleção
“Critical studies in the history of anthropology”, dirigida por Regna Darnell e
Stephen O. Murray (1950-2019), ou ainda a prestigiada Gradhiva: revue d’histoire
et d’archives de l’anthropologie, fundada em 1986 por Michel Leiris e Jean Jamin.20
Mais recentemente, a enciclopédia virtual BEROSE tomou de empréstimo, em diálogo e com o acordo de Regna Darnell, o plural utilizado no
título de HOAA. Nos primeiros dez anos de existência (2006-2016), sob a
direção de Daniel Fabre e Claudie Voisenat, esse projeto sediado na França
dedicou especial atenção a figuras pouco conhecidas da história da etnologia e do folclore franceses no século XIX e princípios do seguinte, como
Paul Sébillot, Théodore Hersart de La Villemarqué, François Cadic, Henri
Gaidoz e François Luzel. As obras desses autores, mais ou menos caídos
20 Em 2005 o subtítulo foi alterado para Revue d’anthropologie et d’histoire des arts, diminuindo o
número de artigos dedicados à história da antropologia.
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no esquecimento, versando temáticas surpreendentes, por exemplo as tradições locais sobre o mago Merlim e Jesus Cristo, o bestiário selvagem da
França, a literatura oral bretã e de outras regiões “celtas”, apresentaram uma
historiografia alternativa, revelando uma antropologia francesa profundamente ignorada, excluída das narrativas dominantes, tanto no contexto
francês como no internacional. A partir de 2017, sob a direção de Christine
Laurière e Frederico Delgado Rosa, o projeto passou a designar-se BEROSE international encyclopaedia of the histories of anthropology,21 assumindo a pluralização
da história da antropologia como desígnio. Destaca-se assim:
[…] a riqueza passada das antropologias do mundo, que são frequentemente ignoradas, subestimadas ou esquecidas nos círculos hegemônicos. BEROSE contribui para essa necessária pluralização como um desafio que diz respeito não só
às “antropologias sem história”, […] – mas também às antropologias ocidentais
ou do Norte […], por vezes reduzidas a uma visão monolítica das mais famosas
correntes teóricas e a algumas figuras importantes […]. O objetivo é multiplicar
os pontos de referência alternativos, ora provenientes do “Sul”, dos chamados
países periféricos, ora representando um contrapeso ao Ocidente: de Cuba ao
Vietnam, da Turquia ao Benin, do Japão à Ucrânia… Tanto as visões eurocêntricas da história como as críticas pós-coloniais radicais podem ser questionadas pela (re)descoberta de intercâmbios e fluxos de conhecimento mais antigos
[…]. Essas histórias podem revelar as sucessivas globalizações da antropologia
– das antropologias – num sentido que nunca é único, unívoco ou teleológico.
(Laurière; Rosa, 2021).
Sem que as chamadas “grandes tradições” sejam deixadas de lado, as histórias das antropologias do mundo ocupam um lugar de eleição na enciclopédia BEROSE,22 da Colômbia à Lituânia, do Haiti ao Mali, sendo de destacar, por
exemplo, o trabalho desenvolvido no âmbito do tema “Histories of anthropology in Brazil”, criado em 2019 sob a direção de Stefania Capone e Fernanda
21 Ou Bérose – Encyclopédie internationale des histoires de l’anthropologie, www.berose.fr. A enciclopédia publica artigos em seis línguas: francês, inglês, português, espanhol, italiano e alemão.
22 BEROSE tem uma equipe permanente composta por mais de 50 pesquisadores de várias nacionalidades, complementada por uma extensa rede de autores.
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Caminhos para uma história inclusiva das antropologias do mundo
Peixoto (Capone; Peixoto, 2020), que procura, por um lado, explorar a importante e vasta literatura existente sobre diversas figuras e temáticas – como
Edison Carneiro (Rossi, 2015, 2020) ou Luís da Câmara Cascudo (Gonçalves,
1999, 2004, 2009, 2020), contribuindo para a crescente visibilização internacional dessa historiografia – e, por outro, suscitar pesquisas sobre autores
ou instituições pouco abordados – como a história do Centro de Estudos
Afro-Orientais (Santos, J., 2021), fundamental para compreender os diálogos
“Sul-Sul”, ou a história do Instituto de Estudos da Religião (Novaes; Giumbelli;
Cunha, 2021).
Escrevia Krotz (2005, p. 156) em 1997 que “o estudo sistemático das antropologias do Sul mal começou”. Mas estará por escrever a história das antropologias do mundo? A resposta depende do ângulo e do raio de visão, da potência
dos motores de busca e da competência poliglota de quem procura responder à
questão, considerando que existem inúmeros estudos sobre diversas tradições
antropológicas, suas figuras, instituições e temáticas, dispersos em publicações periódicas de âmbito nacional ou obras especializadas que não chegam a
leitores mais amplos. O aspecto cumulativo da historiografia da antropologia
segue ritmos desiguais em diferentes contextos e as barreiras da língua frequentemente impedem o conhecimento – ou a própria leitura – de novidades
editoriais importantes. Trata-se de um vasto arquivo do qual é possível apenas
ter um vislumbre através das potencialidades oferecidas pela virada digital e
também pela velocidade inaudita que o ciberespaço e as novas tecnologias de
comunicação conferem às redes de conexão entre pesquisadores localizados
em diferentes países.
A necessidade de conhecer a história de antropologias menos estudadas a
nível internacional (Bošković, 2008) e inclusive no contexto europeu (Barrera-González; Heintz; Horolets, 2017) continua a ser sentida, mas têm sido feitos
esforços para dar mais visibilidade às produções locais. É o caso da History of
Anthropology Network (HOAN) da European Association of Social Anthropologists (EASA), que graças ao seu círculo de correspondentes em 21 países (e em
constante crescimento) promove a divulgação de publicações não anglófonas
no domínio da história de antropologia, em especial das periferias europeias,
que de outra forma provavelmente passariam despercebidas junto da comunidade internacional. Na sua newsletter de abril de 2021, a seção dedicada à
história da antropologia polonesa já contava com mais de uma centena de
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referências, compiladas e traduzidas para inglês por Filip Wróblewski (2021).23
Muitas das referências incluídas nas HOAN Newsletters obrigam a repensar
os pontos de referência da historiografia anglocêntrica e francocêntrica, como
Три века российской этнографии (Três séculos de etnografia russa), obra coletiva de grande envergadura, com dois volumes já publicados, o primeiro sob a
supervisão de Anna Sirina (2017) e o segundo organizado por Sirina e Mariam
Kerimova (2020). Deste último, o correspondente da HOAN na Rússia, Sergei
Alymov (2020), traduziu para inglês o índice e os resumos dos capítulos.
Na comunicação durante o recente colóquio organizado pela HOAN e pela
Europeanist Network da EASA, “Anthropological Pathways and Crossings.
Knowledge Production and Transfer in and beyond Europe”, Alymov foi mais
longe e perguntou se a antropologia russa é “uma tradição marginal ou um
centro alternativo”. A despeito dos múltiplos trânsitos intelectuais entre a
Rússia e o “Ocidente” do século XVIII à atualidade, os antropólogos russos ressentem-se de um “diálogo desigual”, em virtude de barreiras linguísticas, epistemológicas e políticas (Alymov, 2021).24 A mesma questão tem sido colocada,
em termos similares, por representantes de outras tradições não anglófonas
– como a espanhola (Archetti, 2006; Colera; Dominguez; Martinez, 2007) – que
não se sentem forçosamente confortáveis com o epíteto de periféricas. É de referir ainda a necessidade de romper com a dicotomia entre o Ocidente e a produção asiática, como reivindica a antropologia japonesa. Contrariar o império
da língua inglesa e promover intercâmbios alternativos são intentos associados ao paradigma das antropologias do mundo (Ribeiro; Escobar, 2006, p. 14),
23 Do conjunto, destacamos a obra em seis volumes, Etnografowie i ludoznawcy polscy: Sylwetki,
szkice biograficzne (Etnógrafos poloneses: personalidades e esboços biográficos), organizada por
Katarzyna Ceklarz e Jan Święch (2020). Cf. Wróblewski (2021, p. 16).
24 A questão também se coloca em relação ao desconhecimento da história da antropologia
russa. Tomemos o caso de Waldemar (ou Vladimir) Bogoraz. Figura relativamente conhecida
enquanto colaborador de Franz Boas durante a Jesup North Pacific Expedition de 1897-1902,
Bogoraz publicou extensamente em russo. É considerado “um dos pais fundadores da etnografia siberiana russa, e mais tarde soviética”, e a sua monografia sobre os chukchee, publicada em
Leningrado em 1939 (Bogoraz, 1939), “logo se tornou um clássico etnográfico do século XX e de
leitura obrigatória para muitos estudantes de antropologia [na Rússia]” (Krupnik, 2017, p. 9).
Krupnik (2017, p. 9) aborda a questão da relativa fama e esquecimento da monografia de Bogoraz, dependendo do ângulo de visão: “Apesar da sua aclamação universal entre os especialistas
siberianos russos e os leitores indígenas, a obra-prima de Bogoraz nunca foi minuciosamente
examinada tendo em mente um público anglófono.”
Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 28, n. 62, p. 7-45, jan./abr. 2022
Caminhos para uma história inclusiva das antropologias do mundo
mas que encontram eco em diversas experiências em curso no domínio da historiografia da antropologia.25 Em paralelo, trata-se de reconstituir outros tempos históricos, anteriores à Segunda Guerra Mundial, em que o inglês não era a
língua franca da antropologia e existia um maior número de eruditos poliglotas.
Todos esses exemplos permitem afirmar que, apesar das dificuldades e desafios
existentes, os antropólogos (dos chamados centros ou das chamadas periferias)
podem hoje trocar conhecimentos e experiências em tempo real (Bueno, 2007).
As antropologias do mundo são mais antigas que a história
da antropologia
O presente número não ambiciona proporcionar uma impossível síntese ou
visão panorâmica do passado disciplinar à escala planetária, mas contribuir,
através de estudos de caso interligados, para a percepção da complexidade,
diversidade e – igualmente importante – antiguidade das antropologias do
mundo. Há que reavaliar o passado da antropologia em sentido lato, compreendendo saberes e práticas, etnográficos e não só, que antecedem ou complementam a institucionalização científica, caracterizados inclusive por
experimentalismo e “amadorismo” em contextos diversificados e interconectados. Conforme escreve Fernanda Arêas Peixoto em sua contribuição para este
volume, tendo em mente as dimensões literárias modernistas que marcaram
(e extravasaram) o momento “pré-institucional” da antropologia no Brasil,
trata-se de reaver saberes que parecem não ocupar o proscênio, pois preteridos
pelos imperativos da institucionalização e da “disciplinarização” do conhecimento. Assim, as feições “amadoristas” e as veias literárias não fazem mais do
que complicar os diálogos entre as várias tradições antropológicas, com vigas
subterrâneas a atravessar fronteiras imprevistas. Não esqueçamos que mesmo
na Inglaterra os representantes da antropologia social permaneceram minoritários ao longo do século XX em face da massa envolvente de etnógrafos amadores, literatos e curiosos cujas referências antropológicas podiam ser desviantes
ou anacrônicas, por exemplo difusionistas e/ou evolucionistas, sendo um bom
25 É de referir a divulgação ocasional de novidades editoriais não anglófonas na plataforma de
referência History of Anthropology Review, https://histanthro.org/.
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Patrícia Ferraz de Matos; Frederico Delgado Rosa; Eduardo Dullo
exemplo a excêntrica antropologia de Lord Raglan (1885-1964), que chegou a
presidir o Royal Anthropological Institute nos anos 1950 (MacClancy, 2017).
Essa é uma das razões pelas quais entendemos ser necessário relativizar a
ideia de que apenas hoje é possível o diálogo entre antropólogos do “Norte” e
do “Sul”, em pé de igualdade enquanto profissionais da mesma ciência, como
se no passado as figuras locais tivessem forçosamente assumido, tanto pela
sua posição periférica como pela falta de formação acadêmica em antropologia, um papel subordinado de meros facilitadores de encontros no país receptor
ou informantes privilegiados.26 As histórias da antropologia são mais caleidoscópicas – isto é, com múltiplas variáveis em movimento – do que previsíveis, seja no plano político, seja no plano humano das inter-relações do foro
antropológico e etnográfico (Matos, 2018). Tendo em mente os chamados estudos subalternos e nomeadamente a já clássica interrogação de Gayatri Spivak
(1988), Restrepo e Escobar (2005, p. 117) perguntam se as antropologias hegemônicas têm sido ou não capazes, ao longo do tempo, de verdadeiramente dar
voz aos “outros”. E alguns autores acreditam que só recentemente surgiram
práticas etnográficas dialógicas e colaborativas suscetíveis de inverter a assimetria da observação participante e dar a primazia aos outrora “observados”,
tornando-os sujeitos das suas próprias narrativas e protagonistas das suas próprias histórias (Ribeiro; Escobar, 2006, p. 20).
Consideramos que a miopia em relação ao passado disciplinar deve dar
lugar a uma história das antropologias do mundo que, pela sua própria heteroglossia, não reduza o passado a uma fórmula simplista ou maniqueísta.
Entendemos aliás ser uma distorção histórica a ideia de que apenas na contemporaneidade os indivíduos indígenas têm acesso aos resultados das pesquisas antropológicas realizadas por estrangeiros ou participam nas mesmas
com verdadeiro conhecimento de causa, ou ainda por iniciativa própria. Pelo
contrário, existem indícios de que é antiga, e não recente, a problemática sumarizada no título da obra When they read what we write (Brettell, 1993), que deveria
ser reformulada para incluir what they wrote. É um fato conhecido dos historiadores da disciplina que, na sua conversão à antropologia, Lewis Henry Morgan
foi ele próprio influenciado por vários iroqueses que já estavam envolvidos
26 Para o caso espanhol, veja-se por exemplo Narotzky (2010).
Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 28, n. 62, p. 7-45, jan./abr. 2022
Caminhos para uma história inclusiva das antropologias do mundo
na produção de registros vernaculares e outros manuscritos etnográficos.27
The league of the Ho-dé-no-sau-nee, or Iroquois (Morgan, 1851) foi dedicada a
Hä-sa-no-an’-da, também conhecido como Ely Samuel Parker,28 já que os materiais apresentados na monografia eram fruto de “pesquisas conjuntas”. No
prefácio, Morgan (1851, p. xi) explicava estar em dívida para com Parker pela
sua “inestimável assistência durante toda a pesquisa, e por uma parte dos
materiais”.29 Lembremos também da íntima e longa colaboração (mais de um
quarto de século) entre Alice C. Fletcher e o indígena Omaha, Francis La Flesche,
que culminou na sua magnum opus conjunta, “The Omaha tribe” (Fletcher;
La Flesche, 1911). A escrita e o universo editorial “branco” faziam parte do universo de indivíduos como La Flesche, contratado pelo Bureau of American
Ethnology (Mark, 1982) e que escreveu as suas próprias monografias.
Essa realidade intercultural, expressiva no século XIX em múltiplos contextos, remontava a períodos mais antigos em outros casos. Para não reproduzir as assimetrias de poder do período colonial, devemos estar atentos ao risco
de minimizar o envolvimento legítimo das pessoas colonizadas com a etnografia/antropologia ou, já agora, com a historiografia, cujos métodos e teorias
muitas delas poderão ter adotado (Rosa, 2019). Isso inclui as defesas locais de
uma episteme empiricista e representacionista, quer essas opções sejam identificadas como ocidentais ou uma mistura de visões indígenas e não indígenas. Essas abordagens tiveram seguidores ou continuadores indígenas, sem
esquecer, naturalmente, os autores de ascendência mista, como Peter Buck/
Te Rangi Hiroa na Nova Zelândia/Aotearoa. “É tempo de descartar os pressupostos raciais e coloniais que têm obscurecido a nossa visão destes pensadores
originais”, escrevem Ned Blackhawk e Isaiah L. Wilner (2018, p. xiii) em uma
antologia que procura recentrar o vasto conjunto de atores indígenas que fizeram mais do que participar no projeto boasiano e na ciência ocidental – contribuíram para a construção da modernidade (antropológica) através de “um
vernáculo conceitual que permite vislumbrar modos de pertença partilhados”.
27 Existem casos anteriores na América do Norte (Bieder, 1986, p. 30, 206).
28 Ativista proeminente, Parker seria o primeiro nativo norte-americano a ocupar o cargo de
comissário dos Assuntos Indígenas (1869-1871), sob o mandato do presidente Ulisses S. Grant, a
quem tinha servido como adjunto e secretário durante a Guerra Civil.
29 Ver também Michaelsen (1996).
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Se as antropologias do mundo têm história, não há quaisquer motivos para restringir esse tipo de consideração, ou hipótese, ao culturalismo norte-americano.
Pelo contrário, a historiografia das tradições periféricas deve estar ainda
mais atenta à idiossincrasia dos encontros antropológicos entre atores de proveniências diversas, do interlocutor local ao etnógrafo indígena – sobretudo em
países não ocidentais (Fahim; Helmer, 1980; Kuwayama, 2004) –, do antropólogo amador ao profissional, do visitante do “Norte” ao anfitrião do “Sul”, com
posições ou papéis suscetíveis de serem reapreciados ou inclusive subvertidos
respectivamente no que diz respeito à sua importância na história disciplinar,
para lá dos cânones acadêmicos e de quaisquer outras hegemonias antropológicas, não sendo linear quem mais influenciou quem. Ainda antes do surgimento do conceito de antropologias do mundo, já a antropóloga neozelandesa
Anne Salmond indicava a existência de “certos desenvolvimentos interessantes”
na Nova Zelândia/Aotearoa, onde se haviam forjado laços peculiares entre os
etnógrafos de ascendência europeia e os seus interlocutores maoris, sem equivalente noutras tradições. Salmond reconhecia que eminentes pesquisadores
amadores30, nomeadamente de finais do século XIX e inícios do XX, não só falavam fluentemente o idioma local como estavam conscientes da profundidade
filosófica da visão do mundo própria dos maoris. Apesar das suas dimensões
coloniais, as obras em questão deveriam ser reconhecidas como ilustrativas de
uma tradição antropológica idiossincrática que, na época, era merecedora de
reconhecimento – e de envolvimento – por parte dos próprios maoris: “Uma
forma de antropologia local emergia que, não obstante os seus muitos defeitos,
apreendia o saber maori com muito respeito e implicava as pessoas indígenas
não apenas como fontes de informação, mas como autores, figuras de autoridade e inclusive patronos” (Salmond, 1983, p. 314).
Mais recentemente, num número especial da revista Oceania (Gardner;
Kenny, 2016), seis historiadores da antropologia sublinham a relevância das
experiências etnográficas que ocorreram em contextos oceânicos antes da
célebre expedição da Universidade de Cambridge ao estreito de Torres de 18981899, frequentemente identificada como um avanço em termos de profissionalização acadêmica do trabalho de campo etnográfico. Segundo esses autores,
30 Com destaque para Elsdon Best (1856-1931).
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Caminhos para uma história inclusiva das antropologias do mundo
a importância do “Sul” na emergência da sensibilidade etnográfica está insuficientemente reconhecida nas narrativas historiográficas que sobrevalorizam
o papel de figuras acadêmicas metropolitanas que viajavam do “Norte” para
o “Sul”, como Alfred Cort Haddon ou Bronislaw Malinowski, em detrimento de
etnógrafos locais, geralmente amadores, cujas vidas podiam estar mais imbricadas na realidade indígena. Em suma, Gardner e Kenny (2016, p. 220, 223) sugerem que a história da antropologia tem sido escrita “ao contrário” – “upside
down” – seguindo um modelo hierárquico de centro e periferia. Esse tipo de
reapreciação histórica poderá, por sua vez, soar estranho para os leitores não
anglófonos que consideram que as tradições antropológicas da Austrália e da
Nova Zelândia, pela sua proximidade política, cultural, econômica e linguística
em relação ao Reino Unido, estão longe de ser periféricas e não fazem parte do
“Sul”, mas sim do “Norte” anglo-saxônico. Os argumentos e contra-argumentos
complicam-se em consonância com o ponto de vista.
Complicam-se também em função das experiências humanas realmente
vividas em cada contexto em diferentes tempos, tendo em conta que muitos
historiadores da antropologia estão atentos não apenas aos diálogos ocorridos
no passado, mas também aos diálogos contemporâneos entre, por um lado, os
descendentes reais ou identitários das populações outrora estudadas e, por
outro, as peças do arquivo etnográfico.31 Para Gardner e Kenny (2016, p. 222): “A
inumação dos etnógrafos coloniais por debaixo da prática das ‘grandes figuras’
da metrópole significa que os peritos indígenas que colaboraram com os primeiros têm estado ainda mais enterrados, necessitando de uma arqueologia específica.” Ao invés de equipararem etnografia e colonialismo, os autores resistem
a esse “discurso totalizante” que, segundo eles, redunda em “tentativas de apagamento da iniciativa e da presença aborígenes” (Gardner; Kenny, 2016, p. 222);
31 Jude Philp (2018, p. 67) demonstra num estudo recente, com base em análise de fontes de
arquivo, em particular os diários de campo de Alfred C. Haddon e Charles Myers na ilha de Mer
durante a expedição ao estreito de Torres, que os antropólogos e os ilhéus “faziam parte de um
projeto partilhado”. Philp argumenta que a expedição teve um impacto inegavelmente positivo
(e duradouro) a nível local, incluindo a recuperação de rituais reprimidos pelos missionários ou
a produção local de manuscritos etnográficos por ilhéus como Pasi e Waria. É o que se pode concluir desta frase: “Estou a escrever isto para que aqueles que vierem depois saibam” (Waria, cf.
Philp, 2018, p. 84). Outros autores sublinham esta dimensão da expedição de Cambridge (Herle;
Rouse, 1998).
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e acrescentam, de forma potencialmente transponível para a historiografia de
outras tradições antropológicas e etnográficas:
A prova de que esses registros e textos coloniais estão saturados de conhecimentos indígenas pode ser encontrada no seu uso continuado pelas populações
aborígenes contemporâneas, por antropólogos, linguistas, advogados nativos e
historiadores que reconhecem o profundo emaranhamento dos povos aborígenes com aqueles que escreveram sobre eles e o valor desses documentos para a
língua, cultura e identificação de fronteiras. (Gardner; Kenny, 2016, p. 222).
Enquanto paradigma, escrevem Restrepo e Escobar (2005, p. 103), “as antropologias do mundo envolvem uma consciência crítica tanto do campo epistêmico e
político em que a antropologia emergiu e continua a funcionar como das micropráticas e relações de poder em diferentes locais, e tanto no interior como entre
diferentes tradições antropológicas”. Embora concordando com esse princípio,
entendemos que as assimetrias na história da antropologia não são absolutas nem estáticas, mas algo passível de múltiplas reinterpretações, potencialmente reveladoras de protagonistas e protagonismos que aguardam o seu
momento de (re)descoberta. Nesse sentido, as palavras de Restrepo e Escobar
encontram eco, afinal de contas, nas próprias metodologias da historiografia
da antropologia que permitem explorar, com minúcia “etnográfica”, relações
concretas, práticas locais e palavras proferidas e escritas. É o que fazem os contribuidores do presente número, como será exposto na seção seguinte.
Explorando o arquivo: dez estudos de caso
A nossa proposta situa-se no campo subdisciplinar da história da antropologia,
mas convida à interdisciplinaridade entre a antropologia e a história, a história
da ciência e a antropologia histórica, promovendo diálogos através da releitura
de arquivos etnográficos e antropológicos de diferentes locais, tempos e dimensões. Embora atentos à crítica pós-colonial das tentativas de levantamento e
análise da variabilidade humana, estamos mais interessados em situar essas
contribuições na complexidade dos respectivos contextos para resgatar o seu
lugar nas dinâmicas históricas da antropologia. O presente volume reúne dez
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estudos de caso focalizados em tradições antropológicas – como sejam as
lusófonas e ibero-americanas – periféricas, exteriores ou descentradas relativamente às ditas “grandes tradições”. Trata-se de uma reflexão comparativa em torno dos antecedentes históricos, pelo menos nos séculos XIX e XX,
do paradigma das world anthropologies e da disseminação da práxis antropológica. Procurou-se explorar as relações entre atores, produções e instituições
locais e internacionais e suscitar novas questões sobre os significados e a vastidão do arquivo num sentido plural e global. Ainda que o lugar para o pluralismo pareça utópico no espaço internacional (L’Estoile, 2008), é necessário
investir em iniciativas que apostem em promover não standards, mas esforços
de tradução que possam suscitar mais diálogos. Foi o que procuramos fazer
neste número.
Em “A opção de Mariza Corrêa pelo etnógrafo oitocentista”, Israel Ozanam
propõe uma releitura de um clássico da historiografia da antropologia brasileira, esmiuçando a tensão gerada pela proximidade e distanciamento da
autora em relação a Nina Rodrigues enquanto “pioneiro” do estudo da diferença e do conflito racial. Relacionando a história disciplinar e da sociedade
brasileira, o artigo propõe uma narrativa capaz de repensar em termos étnicos
e raciais as separações entre o próprio “observador” e os “observados”.
Em “O tio haitiano da antropologia contemporânea: teoria, história e poder
em Jean Price-Mars”, João Felipe Gonçalves nos apresenta a trajetória de uma
figura cuja importância transcende os estudos do Caribe e das religiões da
diáspora africana (o vodu, no caso). A reivindicação do “Tio” como um teorizador, muitas décadas antes dos seus colegas euro-americanos, da relação entre
cultura, história e poder é central no combate ao colonialismo da geopolítica
acadêmica.
Em “Roger Bastide – entre tempos, espaços, tradições”, Fernanda Arêas
Peixoto se ocupa do trânsito intelectual de Roger Bastide entre a França e o
Brasil. Ao descrevê-lo como um “homem-ponte” que articula diferentes tempos,
contextos e disciplinas, a autora faz implodir certas dualidades e nos revela
como “uma perspectiva de análise é construída com auxílio de um jogo especular que desloca permanentemente o observador: o francês olha a África no
(e desde o) Brasil e, inversamente, o Brasil na (e da) África”.
No artigo de João Leal, “Octávio Eduardo, René Ribeiro e Melville Herskovits.
Religiões afro-brasileiras, aculturação e sincretismo”, a obra dos dois eminentes
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pesquisadores brasileiros das religiões de matriz africana no Nordeste é analisada a partir do prisma do conceito de cultura propagado nos anos 1940 e 1950
e das reflexões sobre o sincretismo. O autor demonstra como esse debate foi
projetado pelo orientador de ambos nos Estados Unidos, mas subvertido por
Eduardo e Ribeiro, que acrescentaram reflexões próprias ao arcabouço teórico
de Herskovits.
Os entraves locais à circulação internacional de ideias é o objeto de Nicolás
Viotti no artigo “Claude Lévi-Strauss en los mares del sur. Algunos desencuentros entre estructuralismo y antropología en Argentina”. O autor explora o
contexto argentino dos anos 1950 a 1970 para explicar como Lévi-Strauss e a
proposta estruturalista foram rechaçados por posturas políticas, epistêmicas
e institucionais que privilegiavam outra maneira – marcada por “ideales de
homogeneidad-continuidad por sobre los de la diversidad-diferencia” – de conceber a pesquisa antropológica.
Em “(Re)aproximando-se e afastando-se da Alemanha: Curt Nimuendajú
como parte de redes transnacionais de antropólogos”, Peter Schröder explora
a documentação e correspondência do célebre etnólogo alemão com redes de
antropólogos do seu país natal e norte-americanos, revelando como se construíam e se desfaziam essas relações, bem como os impactos que a mudança de
eixo da Alemanha para os Estados Unidos tiveram para as relações travadas no
Brasil por Nimuendajú.
A relação entre política e ciência é o foco do artigo de Sílvio Marcus de
Souza Correa, “A mediação seletiva de Herbert Baldus entre etnologia alemã e
antropologia brasileira”, dedicado à trajetória do alemão Herbert Baldus, que
foi presidente da Associação Brasileira de Antropologia. O artigo investiga a
política de traduções e citações em meados do século XX, envolvendo alemães
associados ao nazismo ou em posições tensas com o Terceiro Reich. Democrata
e liberal antirracista, Baldus facilitou a tradução de autores de posição contrária, o que abre caminho a uma análise dessa complexidade.
No artigo “Shōgorō Tsuboi e o início da antropologia japonesa”, somos
levados por Silvia Reis aos inícios da antropologia no Japão entre 1884 e 1913.
A partir da trajetória de Shōgorō Tsuboi, vemos como se formaram espaços institucionais e editoriais marcados pela preocupação em pesquisar as origens da
cultura e da população japonesa. O artigo salienta ainda que esta antropologia
pouco conhecida foi “incentivada, capturada e utilizada em prol da invasão
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e colonização de outras nações, e da contínua aculturação e assimilação das
minorias étnicas dentro do arquipélago japonês”.
Nos deslocamos para a Europa, para compreendermos com Cristina Pompa,
em “Ernesto De Martino e o percurso italiano da antropologia”, como o espaço
anglófono e francófono “recuperou” ou “descobriu” algo que havia sido elaborado por um autor fundamental da tradição antropológica italiana – mas
ainda pouco conhecido no mundo lusófono –, pioneiro de perspectivas como
a centralidade das noções de hegemonia e subalternidade, a ênfase no corpo
enquanto lugar do sujeito, a performatividade do ritual, ou a crítica à naturalização do conceito de “natureza”.
Por último, em “Anahuac o la producción social de la diferencia: un episodio en la configuración histórica de la antropología en México”, Alfredo Nava
Sánchez questiona a forma como essa obra (1861) de Edward B. Tylor tem permanecido à margem da historiografia. O autor salienta “a estranheza” que a
América Latina gera dentro das narrativas que privilegiam a emergência da
disciplina no contexto colonial britânico; e questiona a forma como determinadas passagens de Anahuac, desconsideradas no México pelo seu racismo e
classismo, permitem reconstituir as condições de emergência mesoamericana
da produção antropológica evolucionista.
No final da leitura deste conjunto valioso de artigos podemos perguntar:
todas as antropologias são antropologias do mundo? Existem antropologias do
“Sul” anglo-saxônicas e antropologias do “Norte” latinas (por exemplo)? Se questões como essas não têm uma resposta unívoca e unânime, ninguém disputa o
fato de todas as tradições antropológicas ditas nacionais estarem entrelaçadas
historicamente. Essa é uma das razões pelas quais esse paradigma não é isento
de polêmica. Por um lado, dificilmente se contestará a boa intenção de dar visibilidade, espaço e voz a tradições antropológicas que durante muito tempo permaneceram ignoradas ou marginalizadas comparativamente ao protagonismo
desmesurado das major traditions. Por outro lado, subsistem riscos subjacentes à utilização do conceito de antropologias do mundo, nomeadamente o da
presunção de diferenças epistêmicas mais significativas do que serão na realidade, acentuando excessiva ou imaginariamente a idiossincrasia das antropologias não ocidentais ou de países ocidentais ditos periféricos, num processo
de diferenciação que pode conduzir, inclusive, a uma subalternização dessas
mesmas antropologias. Um exemplo, ainda que involuntário, desses riscos
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é a criação da seção “World Anthropologies” na revista American Anthropologist,
como se os antropólogos de países não anglófonos, a exemplo dos filmes de
língua estrangeira em praticamente toda a história da cerimônia de entrega
dos óscares (até 2011),32 não pudessem competir nas categorias principais. Num
recente número da referida revista, a antropóloga Beng-Lan Goh (2019, p. 498),
da Universidade da Indonésia, contribuiu para a seção em causa com reflexões
sobre esse dilema:
Por um lado, a existência de um quadro universalista de referência subjacente a
práticas plurais pode contribuir para a coerência disciplinar, mas se corre o risco
de reafirmar a predeterminação europeia ocidental e euro-americana. Por outro
lado, a insistência na incomensurabilidade e na pluralidade, podendo embora
levar a inovações conceptuais, comporta riscos de deriva para o relativismo radical e de bloqueio de toda a tradutibilidade.
Ribeiro e Escobar (2006, p. 19-20) alertam contra a essencialização das antropologias do mundo e salientam, em termos positivos, a sintonia teórica “foucaultiana”, a par do distanciamento em relação a abordagens culturalistas
ou neoculturalistas. O enfoque nas questões de hegemonia permite, segundo
Restrepo e Escobar, desconstruir as práticas e os discursos acadêmicos que
“naturalizaram” a antropologia – ou seja, as tradições hegemônicas – e seus
regimes epistêmicos, incluindo a “naturalização” de conceitos, como a noção
de “cultura”, especialmente associada à tradição estadunidense. É caso para
perguntarmos se essa desconstrução não está um pouco desfasada no tempo,
considerando que o “power shift”, como chamado por Sherry Ortner (2006),
remonta pelo menos aos anos 1970. Retomando o dilema de Goh, não estaremos perante uma outra forma de “naturalização”, a do próprio conceito de
poder dentro de um quadro de referência alegadamente universalista, mas
historicamente indissociável da teoria social contemporânea desenvolvida,
em grande medida, nas academias do “Norte”? Jean Copans (2009, p. 76;
32 Ano em que o filme francês L’artiste ganhou o óscar de melhor filme, não tendo passado despercebido, a esse propósito, o fato de se tratar de um filme mudo. Em 2019, em plena “Era Trump”
e em claro desafio ao sistema simbolizado pelo famigerado Presidente dos Estados Unidos, o
filme sul-coreano 기생충 (Parasita) ganhou o galardão de melhor filme do ano.
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Quinlan, 2000) vai longe nessa direção, ao sugerir que a diferença das outras
antropologias é muitas vezes retórica, um “soi-disant relativisme”. Outras
vozes têm sugerido ser preferível que as histórias das antropologias não ocidentais sejam “libertadas de etiquetas distanciadoras como a de antropologias
‘do mundo’, uma etiqueta que não pode deixar de decepcionar à medida que
descobrimos a proximidade entre os intelectuais da ‘periferia’ e do ‘centro’ e
vice-versa, inclusive a aprendizagem, bem como a dependência dos intelectuais do centro em relação aos ‘assistentes’ nativos da pesquisa” (Singh; Guyer,
2016, p. 205).33
Um exemplo expressivo dessa proximidade surge num artigo da referida
seção “World Anthropologies” em que Leticia Cesarino (2017) retoma a já
conhecida crítica da prevalência histórica do conceito de cultura na tradição
antropológica brasileira, em particular no domínio dos estudos afro-brasileiros – e sob influência inequívoca do culturalismo estadunidense. Na direção
de vários autores que se têm debruçado sobre a questão, Cesarino considera
que essa forma de orientalismo interno ao serviço da construção da nação,
nomeadamente a partir dos anos 1930, é sobretudo revelador de assimetrias
existentes no Brasil, tendo impedido durante muito tempo a leitura antropológica dos temas afro-brasileiros em termos de discriminação racial. Além
disso, afetou e continua a afetar as relações “Sul-Sul” do ponto de vista da cooperação (Cesarino, 2012, 2017), nomeadamente pelo enfoque culturalista como
ainda são abordados os contextos africanos historicamente relacionados com
o Brasil. Pode-se dizer que a moldura teórica do artigo está em sintonia com
as referências anticulturalistas dominantes no “Norte” há várias décadas, o
que relativiza a sua idiossincrasia. Por outro lado, o estudo de Cesarino não
deixa de ser representativo de uma antropologia do mundo na medida em que
a crítica do culturalismo se inscreve numa linhagem disciplinar que desenvolveu raízes no Brasil, ainda que em diálogo com o “Norte”, nomeadamente com
autores dos Estados Unidos. A problemática da americanização (e anglicização) antropológica da América Latina (Cardoso de Oliveira, 1999) não se limita
33 A questão também é colocada em relação a outros conceitos ou “etiquetas”, como epistemologias do Sul (cujo principal proponente é Boaventura de Sousa Santos, 2014), Southern theory
(Connell, 2007), ou ainda antropologias nativas (Jones, 1988) e antropologias indígenas (Gefou-Madianou, 1993).
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a respostas simples. Podemos dizer o mesmo em relação ao apogeu da antropologia freyriana no Brasil, passível de leituras heteroglóssicas, contrastadas, que
evidenciam o seu hibridismo intelectual sob diversos pontos de vista.
Um outro risco associado ao novo paradigma consiste em depender dos
órgãos das grandes tradições para serem consideradas antropologias do mundo
e para serem validadas. Quão irônico é falar delas através da American Anthropologist, uma das mais poderosas publicações na área da antropologia em escala
global, cujos artigos são, para muitos leitores interessados, inacessíveis, por
serem de acesso online condicionado a assinaturas ou pagos a preços elevados.
O presente número procura contornar esses múltiplos riscos assumindo
um duplo princípio: não é possível estudar as tradições antropológicas do “Sul”
ignorando as do “Norte”, uma vez que são numerosos e profundos os vasos
comunicantes entre umas e outras, sendo que o inverso também é (ou deveria
ser) verdade, isto é, não faz sentido continuar a produzir narrativas historiográficas sobre as tradições hegemônicas sem levar em conta as periféricas. Eis o
que procuramos também evocar, simbolicamente, na capa deste número, que
reproduz um quadro da autoria de Adam Adach, artista visual franco-polonês
cuja obra combina memórias pessoais e histórias coletivas dos séculos XX e
XXI, nas suas dimensões políticas e poéticas. Nessa pintura a óleo, intitulada
Quitter le continent (Deixar o continente, 2010-2021), Adach recorre à paisagem
de uma fortaleza seiscentista da ilha atlântica da Berlenga, com seus atalhos
e caminhos envolventes, seus seres humanos e outros, num universo simultaneamente descentrado e conectado, complexo e plural. Associado ao presente
volume, esse pluriverso artístico serve de metáfora das trajetórias históricas
das antropologias do mundo e no mundo. Embora seja fundamental averiguar
de que cosmopolitismo estamos falando (Glick-Schiller; Irving, 2015), explorar esses trânsitos e diálogos mais ou menos cosmopolitas ou “provincianos”
permite tornar visíveis as “genealogias invisíveis” (Darnell, 2001) que ligam as
antropologias do mundo de hoje às do passado. Em outras palavras, esse exercício permite escrever, ainda que parceladamente, uma entre muitas histórias
possíveis das antropologias do mundo.
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Artigos
Articles
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71832022000100002
A opção de Mariza Corrêa pelo etnógrafo
oitocentista
Mariza Corrêa’s option for the 19th century
ethnographer
Israel Ozanam I
https://orcid.org/0000-0003-2556-0525
israel_ozanam@hotmail.com
I
Pesquisador independente – Recife, PE, Brasil
Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 28, n. 62, p. 47-77, jan./abr. 2022
Israel Ozanam
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Resumo
A busca por vincular as ciências sociais a um princípio evolucionista das ciências
naturais no Brasil do final do século XIX fez emergir a figura do observador da diferença, entendido como alguém que reconheceria nas raças inferiores as raízes da
nacionalidade sem identificar-se com elas. Na década de 1980, Mariza Corrêa viu
nesse personagem – representado na obra dela por Raimundo Nina Rodrigues – um
valioso contraponto a autores do século XX inclinados a minimizar os conflitos raciais
existentes na sociedade brasileira. Este artigo visa a demonstrar que, ao considerar-se herdeira do etnógrafo oitocentista como observador da diferença e do conflito,
a autora deixou de explorar o conflito em torno da demarcação da própria diferença
entre o etnógrafo que observa e os grupos étnicos observados, conflito que envolveu
escritores de norte a sul do país no século XIX e de cuja existência há inclusive indícios significativos no trabalho dela.
Palavras-chave: alteridade; evolucionismo; história da ciência; literatura.
Abstract
The quest for linking the social sciences to an evolutionary principle of natural sciences in Brazil at the end of the 19th century brought out the character of the “observer
of difference”, understood as someone who would recognize the roots of nationality
in the lower races without identifying with them. In the 1980s, Mariza Corrêa took
this character – represented in her work by the scientist Raimundo Nina Rodrigues
– as a valuable counterpoint to 20th century authors who were inclined to minimize
the racial conflicts that exist in Brazilian society. This article aims to demonstrate
that, in considering herself a scientific heiress of the 19th century ethnographer as an
observer of difference and conflict, the author failed to explore the conflict around the
demarcation of the very difference between the ethnographer who observes and the
observed ethnic groups. Such conflict involved writers from the north and the south
of the country in the 19th century and its existence might be glimpsed in her work.
Keywords: alterity; evolutionism; history of science; literature.
Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 28, n. 62, p. 47-77, jan./abr. 2022
A opção de Mariza Corrêa pelo etnógrafo oitocentista
Introdução1
Este artigo propõe que a diferença étnica entre os observadores e os observados,
central na constituição das ciências sociais no Brasil no final do século XIX,
seja historicizada e não tratada como uma premissa nas pesquisas que relacionam história e antropologia no país. Em vista desse propósito, as conclusões do estudo de Mariza Corrêa sobre o legado do médico Raimundo Nina
Rodrigues (1862-1906) serão analisadas em conexão com o debate transdisciplinar em torno de questões étnicas realizado na época por autores que atuavam
no Rio de Janeiro e no Recife, como Clóvis Bevilaqua, Tobias Barreto, Aderbal
de Carvalho e Sílvio Romero.
Defendido como tese de doutorado em 1982 com o título As ilusões da liberdade – a escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil, e publicado em livro na
década seguinte, aquele estudo ao mesmo tempo se aproxima e se distancia do
que será aqui proposto. Ambos, a aproximação e o distanciamento, emergem
desde as primeiras páginas dele, quando é justificado o enfoque em Nina Rodrigues situando-o como integrante de um grupo social. De acordo com a autora,
definindo-se como observadores da realidade nacional, e como seus críticos
imparciais, os intelectuais brasileiros desse período ao mesmo tempo que definem o restante da população como seus objetos privilegiados de análise, se constituem também como categoria social. E de certa forma se separam da sociedade
em que viviam, ao elegerem a raça como primeiro critério de nacionalidade.
(Corrêa, 2013, p. 35).
Assim, a raça teria sido o prisma principal através do qual a diferença era observada e articulada numa linguagem na fronteira entre ciência e literatura, especialmente nas obras de Euclides da Cunha, Aluízio Azevedo, Nina Rodrigues
e Sílvio Romero (Corrêa, 2013, p. 33). Destes, os dois últimos estariam particularmente preocupados em afirmar a distância entre os literatos ou cientistas
e a população transformada em objeto de estudo etnográfico. Diante disso,
1
Uma parte da pesquisa apresentada neste texto foi financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de São Paulo (Fapesp), através do processo nº 2013/03914-3. Agradeço a Rodrigo Bulamah
pelo incentivo à publicação deste artigo e às(aos) pareceristas pelas estimulantes sugestões.
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Israel Ozanam
e do fato de Sílvio Romero ser um dos interlocutores privilegiados por Nina
Rodrigues (Corrêa, 2013, p. 49), este artigo é até certo ponto uma tentativa de
estender a abordagem de Mariza Corrêa a um contexto contíguo ao investigado
por ela. Espera-se, assim, evidenciar que a definição do “nós” dos observadores
se dava em contraste com a do “eles” dos observados na forma de escrita que
Romero empenhava-se em atribuir a uma “escola do Recife”.
Portanto, a seção a seguir acompanha o percurso analítico da autora na primeira parte do seu livro e indaga qual sentido adquiriram as palavras “etnografia” e “antropologia” entre as ideias novas que, conforme Sílvio Romero, teriam
invadido a vida intelectual brasileira nas últimas décadas do século XIX. No
entanto, a aproximação com a perspectiva de Mariza Corrêa encontra um
limite na terceira seção deste artigo. Ali é demonstrado que na segunda parte
de As ilusões da liberdade a autora opta por não trazer para o centro da análise a historicidade da fronteira entre observador e observado afirmada por
Nina Rodrigues e Sílvio Romero. Com efeito, Corrêa tratou essa fronteira como
recurso analítico e, embora proveniente de teorias raciais deterministas e evolucionistas, acolheu-a como parte do legado da etnografia do final do século XIX
à antropologia do final do século XX. Contudo, a decisão da autora, tomada por
motivos que ela detalharia na terceira parte de sua obra, não se distancia da
norma em sua geração, como mostram os estudos de Luena Pereira (2020) e
Mônica Pechincha (2006).
Um exemplo disso é o motivo de Mariza Peirano (1999), pioneira nos estudos
sobre a história da antropologia no Brasil e contemporânea de Mariza Corrêa,
ter considerado o Brasil um caso etnográfico privilegiado na reflexão sobre o
caráter fundante da alteridade na prática antropológica. De acordo com ela, a
antropologia na Europa e nos Estados Unidos teria levado um século para ir da
busca pelo “outro” na distância geográfica ou cultural à ideia de que o próprio
antropólogo é um nativo, enquanto os pesquisadores brasileiros teriam experimentado esses gradientes de alteridade em no máximo três décadas (Peirano,
1997, p. 71-72, 1999, p. 3).
Assim, entre os anos 1950 e 1980, a antropologia no Brasil teria passado da
alteridade radical no estudo das populações indígenas à alteridade mínima
na reflexão sobre as próprias ciências sociais, reflexão esta da qual a obra dela
seria parte (Peirano, 1999, p. 13-14). Ao contrário de Mariza Corrêa, Peirano não
analisou com profundidade os pontos de contato entre a etnografia oitocentista
Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 28, n. 62, p. 47-77, jan./abr. 2022
A opção de Mariza Corrêa pelo etnógrafo oitocentista
e a antropologia do século XX. Ainda que em alguns momentos faça referência
ao século XIX e a Nina Rodrigues, a “antropologia da antropologia” proposta por
ela toma como ponto de partida a institucionalização das ciências sociais no
Brasil na década de 1930 (Peirano, 1981, p. 14-42, 64-65).
De qualquer modo, ao tipificar mais tarde a alteridade vivenciada pela
antropologia brasileira, a autora citará As ilusões da liberdade como exemplo
de alteridade mínima (Peirano, 1999, p. 13). Ou seja, no seu entendimento,
Mariza Corrêa e Nina Rodrigues estariam mais próximos entre si (e dela) do
que de grupos definidos como o “outro” dos antropólogos, como índios, negros
e camponeses.
Porém, Luena Pereira (2020, p. 1) considera esse “nós” antropológico insuficiente para dar conta do “novo perfil dos cientistas sociais quanto ao pertencimento étnico, racial e de classe que tem se pluralizado” no Brasil nas primeiras
décadas do século XXI. Para ela, ao definir “o lugar do antropólogo brasileiro
enquanto um não índio, um não negro, um não camponês”, Peirano estaria
compartilhando “um certo inconsciente do fazer antropológico brasileiro” no
qual o “nós” que observa a diferença seria uma coletividade “branca, de classe
média, oriunda ou socializada no sul/sudeste do país” (Pereira, 2020, p. 8).
A premissa de Luena Pereira é a de que o “nós” antropológico na passagem
do século XX para o XXI não é estável a ponto de permitir uma tipologia da
alteridade como aquela de Mariza Peirano, na qual a distância em relação aos
“outros” definidos em termos de etnia, classe ou lugar de origem esteja garantida. Do mesmo modo, a premissa aqui é a de que na passagem do século XIX
para o XX essa distância também não estava garantida. Mas, como se verá ao
longo deste artigo, Mariza Corrêa estava ciente disso e não levou sua investigação nessa direção por opção, uma opção relacionada à busca por se contrapor a
certa leitura da obra de Nina Rodrigues realizada no Brasil no século XX.
No trecho de As ilusões da liberdade citado logo no início desta introdução,
os “intelectuais brasileiros” aparecem como categoria social que, com êxito,
constituiu a si mesma ao distanciar-se da parcela da sociedade a ser observada
em termos raciais. Ao fazerem isso, esses intelectuais teriam criado o paradoxo
identitário de se afirmarem como observadores externos de um povo do qual
eles próprios faziam parte (Corrêa, 2013, p. 35). Mariza Corrêa lembra que, antes
dela, Sérgio Buarque já havia constatado esse paradoxo, designando-o de “desterro em nossa terra”. Depois dela, o mesmo seria designado de “autoexotismo”
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Israel Ozanam
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por Roberto Ventura (1991, p. 37-38),2 autor tão perspicaz na análise da escrita
definida como literária quanto ela na da definida como científica no Brasil do
final do século XIX.
Entretanto, apresentado nesses termos, o paradoxo não aparece como algo
vivido de maneiras e intensidades diversas por diferentes sujeitos. É como se a
oscilação entre pertencer ao povo observado pela ciência e pertencer à ciência
que observa fosse vivenciada pela categoria social dos “intelectuais” como um
todo, a qual internamente seria dotada de estabilidade e fronteiras bem delimitadas, permitindo que seus membros mantivessem sua posição apesar da oscilação.
Ao mesmo tempo, sabe-se que a cultura letrada no Brasil daquele período
era perpassada por polêmicas de cunho extremamente pessoal, onde os contentores desqualificavam seus adversários identificando-os com grupos sociais
considerados inferiores (Ozanam, 2014). Mariza Corrêa – bem como Roberto
Ventura – tinha amplo conhecimento disso, então surpreende que não tenha
ligado as duas coisas e tematizado a instabilidade interna da categoria dos
“observadores”, seja ela definida como intelectuais, literatos ou cientistas.
Com o intuito de chamar a atenção para isso, a quarta seção deste artigo
aborda brevemente uma situação-limite, sugerindo que essa instabilidade
pode ter sido sentida por Tobias Barreto e até mesmo Sílvio Romero, alguém
cuja posição na elite intelectual a princípio não parece passível de contaminação com classes e raças consideradas inferiores na sua época. Por fim, o artigo
retoma a aproximação com a abordagem de Mariza Corrêa nas considerações
finais, remetendo ao propósito compartilhado de chamar a atenção para as afinidades entre a etnografia do final do século XIX e as pesquisas que relacionam
história e antropologia no final do século XX.
Onde natureza e sociedade se encontram
Em As ilusões da liberdade, a análise das noções de “etnografia” e “antropologia”
no Brasil oitocentista aparece imediatamente após a daquele paradoxo descrito acima (Corrêa, 2013, p. 38). É como se a autora evitasse dispersar-se na
2
As citações originalmente em português tiveram sua grafia atualizada.
Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 28, n. 62, p. 47-77, jan./abr. 2022
A opção de Mariza Corrêa pelo etnógrafo oitocentista
multiplicidade de ideias científicas, filosóficas e literárias que eram parte do
paradoxo, concentrando o foco na disciplina cuja história ela buscava reconstituir. Mas, apesar dessa multiplicidade, o maior obstáculo a seu foco disciplinar
provém de uma única ideia que circulava nos tempos de Nina Rodrigues: a de
que todas as formas de conhecimento estavam unidas em função de sua subordinação ao evolucionismo derivado das ciências naturais. Essa ideia, definida
como um tipo de monismo, significava que a caracterização e hierarquização da
população brasileira dependia da integração dos métodos de pesquisa e escrita
de virtualmente todas as disciplinas então conhecidas (Romero, 1879, p. 490).
Nesse sentido, à reflexão sobre o elemento humano formador da nacionalidade se sobrepunha outra a respeito da viabilidade de produzir-se no país
uma ciência capaz de estudá-lo. Neste último caso, a perspectiva evolucionista
se traduziu numa periodização lentamente sistematizada por Sílvio Romero
e imaginada como a reconstituição de uma tradição intelectual oriunda da
Faculdade de Direito do Recife e que envolvia autores de diversas partes do
Brasil, alguns dos quais atuantes no Rio de Janeiro. De acordo com ele, o progresso na direção de um conhecimento científico sobre o povo brasileiro teria
passado por uma fase inicial de natureza poética e romântica, superada a partir
dos anos 1870 pela prosa etnográfica da segunda fase. Esta, por sua vez, teria
sido completada por uma terceira fase jurídica e criminológica, também ela
marcada em alguma medida pela interface entre ciência e literatura (Romero,
1888, p. 1248).
Dedicada às implicações políticas e profissionais da relação entre medicina
legal e antropologia na escola Nina Rodrigues na Bahia, Mariza Corrêa (2013,
p. 24-25) ainda encontrou espaço para ao menos esboçar sua insatisfação com
a conotação estritamente teórica da noção de “escola do Recife” subjacente ao
relato de Romero e adotada pela bibliografia à disposição dela no início dos
anos 1980.3 Ainda assim, é possível encontrar ecos daquele relato na reconstituição que a autora faz do conceito de antropologia no Brasil oitocentista.
Ela a inicia com um poeta indianista, Gonçalves Dias, na posição de primeiro
3
Mais tarde Angela Alonso (2002) iria mais longe, contrapondo à abordagem teórica da história
intelectual uma sociologia histórica centrada nas redes de relações políticas dos membros da
chamada “geração 1870”. Para uma análise das limitações epistemológicas desse olhar exclusivamente político, ver Ozanam (2018, p. 435-461).
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etnógrafo oficial do país nos anos 1850 (Corrêa, 2013, p. 38). Em seguida, levanta
hipóteses plausíveis sobre o sentido físico ou biológico adquirido pela noção
de antropologia nas décadas seguintes, em contraposição a um entendimento
mais cultural das expressões “etnografia” e “etnologia”, recuperando, entre
outras, as posições de Sílvio Romero e Nina Rodrigues a esse respeito (Corrêa,
2013, p. 40-41).
Concluindo assim sua reconstituição, Corrêa (2013, p. 63-67) inicia a
segunda parte de As ilusões da liberdade tratando de passagem das afinidades
etnográficas entre Nina Rodrigues e representantes da cena literária do Maranhão, sua terra, no final do século XIX, como Aluísio Azevedo e Celso de Magalhães, algo que remete à fase da prosa ficcional mencionada por Sílvio Romero.
Só então ela indica quais teriam sido as referências teóricas mais duradoras
de Nina Rodrigues: sociologia e antropologia criminais (Corrêa, 2013, p. 68-74).
Uma detalhada versão de como o tema do crime entrou naquele debate
sobre etnicidade e nação que passara pela poesia romântica e as prosas realista
e naturalista foi fornecida no “retrospecto literário e científico” apresentado
por Sílvio Romero em 1889 na Revista Sul-Americana, do Rio de Janeiro. Nesse
relato, o escritor sergipano Tobias Barreto aparece desencadeando um movimento no direito que resultou na criação de duas frentes de diálogo com a criminologia emergente nos anos 1880: a dele, baseada nos alemães, e a de João
Vieira de Araújo, de inspiração “na escola italiana de Lombroso, Garofalo e Ferri”
(Romero, 1889, p. 262).
Esta última partiria de uma concepção de acordo com a qual “o direito, a
moral, a virtude, o crime são produções naturais, mecânicas, como quaisquer
outras do mundo físico”. Portanto, a “ciência do crime” seria um capítulo da
“anatomia e da fisiologia: sob o nome de antropologia criminal ela deve estudar
os delinquentes pelos processos da etnografia geral; medir-lhe os crânios, os
ângulos faciais, os braços; notar-lhes a forma dos narizes, a cor dos cabelos, dos
olhos etc.” a fim de determinar a sua índole (Romero, 1889, p. 262).
Por outro lado, a perspectiva de Tobias Barreto, apesar de evolucionista e
monista, colocaria o peso da “vontade individual” ao lado dos da sociedade
e da natureza. Mas Sílvio Romero procura harmonizar as duas abordagens
e cita um trecho de Barreto no qual este reconhece a importância dos fatores naturais e sociais na origem do crime, bem como a relevância dos estudos em antropologia criminal. Esse esforço por forjar uma coerência na fase
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A opção de Mariza Corrêa pelo etnógrafo oitocentista
jurídico-criminológica da “escola do Recife” o levou ainda a listar não só a si
próprio ao lado de Tobias, mas também Arthur Orlando, Clóvis Bevilaqua, José
Higino e Martins Júnior, todos conhecidos por seus vínculos com a Faculdade
de Direito do Recife (Romero, 1889, p. 262).
Mas Bevilaqua (1977) não concordaria com esse esforço conciliatório em sua
História da Faculdade de Direito do Recife, escrita nos anos 1920. Ele abertamente
considerou contraditório Tobias Barreto ter introduzido a intuição evolucionista no direito, manifestado o desejo de ser reconhecido como criminalista –
área na qual escreveu vários trabalhos – e, mesmo assim, ter demonstrado uma
“inexplicável repulsa” pela sociologia. Disse então que os discípulos teriam em
peso discordado do mestre nesse quesito e abraçado não só a cientificidade da
teorização sociológica, mas também as outras ciências destinadas a interessar aos juristas, como “a etnologia, e a linguística, sem esquecer a psicologia”
(Bevilaqua, 1977, p. 368-379).
De acordo com Clóvis Bevilaqua (1977, p. 378), a relevância das preocupações antropológicas para o direito provinha do fato de este último pressupor
o “homem em sociedade”. Ou seja, está implícito aí um conceito de antropologia que ia além do estudo do aspecto físico. Embora isso possa estar relacionado com o período, já no início do século XX, no qual a História da Faculdade
de Direito do Recife foi escrita, é preciso salientar a existência de uma conotação
etimológica por trás dessa observação. Ela remete à característica básica da criminologia difundida a partir do Recife nos anos 1880, pois o objetivo do autor
era destacar que o estudo das normas sociais agora dependia como nunca do
estudo do ser humano.
Vale lembrar que o criminologista italiano Cesare Lombroso havia afirmado
que os criminosos “reproduziam física e mentalmente características primitivas do homem” (Alvarez, 2014, p. 19). Portanto, a problemática por ele sugerida
girava em torno da relação entre indivíduo e espécie, enquanto coletividade.
Segundo essa perspectiva, o direito penal clássico concentrava-se nos crimes
porque partia da fantasia do livre-arbítrio, a qual doravante seria substituída
pelo estudo científico dos condicionantes biológicos existentes por trás das
ações humanas (Dantas, 2013, p. 4-5).
Por conseguinte, como demonstra Marcos César Alvarez (2003, p. 78-79),
apesar de o debate subsequente a respeito das origens do crime não ter gerado
um consenso em torno da obra de Lombroso no Brasil, a ideia “de que o objeto
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da ação jurídica e penal deve ser não o crime, mas o criminoso, considerado
enquanto um indivíduo anormal” foi capaz de unir as diferentes perspectivas,
resultando numa “nova escola penal”. Assim, aquele encontro entre criminologia e direito se dá pelo deslocamento da atenção ao estudo do ser humano.
Porém, apesar de a influência lombrosiana parecer encaixar-se como uma
luva no persistente fator biológico da observação científica da população
brasileira, a noção de antropologia mais aberta a fatores sociais utilizada por
Bevilaqua nos anos 1920 já aparecia explicitamente em 1904 nos Ensaios de
crítica de Artur Orlando, membro da Academia Brasileira de Letras e um dos
mais notáveis representantes da “escola do Recife” nas formulações de Sílvio
Romero (Romero, 1897, p. 7). Na obra de Orlando (1904, p. 284-290), antropologia
se tonará sinônimo de etnologia na união do biológico e do social, o que justificaria a criação de uma disciplina de antropologia jurídica na Faculdade “para
estudar-se cientificamente o homem, tendo em mira a arte do Direito”.
Essas sugestões de uma influência de determinantes socioculturais na
explicação da etnicidade de forma paralela aos naturais, e não submetida a
eles, está relacionada à recepção, pelos autores brasileiros, das críticas feitas ao
pensamento lombrosiano pela sociologia francesa, com as obras de Alexandre
Lacassagne e sobretudo Gabriel Tarde e Émile Durkheim (Alvarez, 2014, p. 19).
De acordo com Laércio Dantas (2013, p. 4-5), “para esses críticos da escola antropológica, o ambiente social no qual o indivíduo estava imerso contribuiria
muito mais para a sua propensão ao delito do que os fatores biológicos”.
Nina Rodrigues teve um papel ativo nessa recepção. Partidário da expansão do conceito de antropologia, teria igualmente atenuado o determinismo
biológico de Lombroso por meio da leitura de Tarde e Lacassagne, além de
suas próprias observações empíricas (Corrêa, 2013, p. 68-74). Desse modo ele
esteve pronto para empregar um conceito de raça que permitisse o trânsito
entre o natural e o cultural. Isso recebeu bastante atenção de Mariza Corrêa
(2013, p. 144-145) porque levava aquele médico legista a relativizar a anormalidade das características dos indivíduos biologicamente desviantes, considerando-as normais quando inseridas nos grupos culturais aos quais esses
indivíduos fariam parte. Com isso, como se verá adiante, Nina Rodrigues adotava um olhar antropológico no sentido que a palavra tinha para a própria
autora no final do século XX, levando-a a considerar esse um dos pontos de
contato entre aquele autor e a ciência social praticada por ela.
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A opção de Mariza Corrêa pelo etnógrafo oitocentista
De acordo com Clóvis Bevilaqua (1977, p. 342-345), essa vertente criminológica
da qual participavam Lacassagne e Tarde também tinha um representante alemão, Franz Von Liszt, favoravelmente recebido no Recife por José Higino, catedrático na Faculdade de Direito do Recife a partir de 1884. Mas seria um engano
pensar na contribuição de Von Liszt e na crítica ao determinismo biológico
como aspectos suficientes para atrair as simpatias do germanista Tobias Barreto.
Para ele, tal abordagem, por buscar os condicionantes no meio social, seria um
“estranho romantismo humanitário, que se compadece mais do criminoso do que
de sua vítima” e torna a “sociedade uma corré de todos os réus”, culpando-a pela
prática dos crimes (Barreto, 1888 apud Romero, 1889, p. 263, grifo do autor).
Ao mencionar o “romantismo humanitário”, Tobias Barreto se referia a
Victor Hugo, pois logo depois cita Jean Valjean, protagonista do romance
Os miseráveis. Mas quando disse que todos os melhores representantes da
sociologia criminal atuavam “no domínio da literatura propriamente dita”,
chamando-a de “intuição literária” (Barreto, 1888 apud Romero, 1889, p. 263),
provavelmente estava tratando de Gabriel Tarde, também conhecido como
poeta e romancista (Lepenies, 1996, p. 62).
A linguagem literária empregada no debate sobre raça, natureza e cultura
certamente tinha um forte componente cognitivo que não a tornava incompatível com a ciência da época (Ozanam, 2018; Ribeiro, 2016). Porém, ao compará-la com a literatura, Tobias Barreto estava visivelmente minimizando a
cientificidade da vertente criminológica que favoreceu, no Brasil, a expansão
do conceito de antropologia na direção da noção de que as práticas dos negros
só se tornavam ilegítimas quando inseridas em relações sociais dominadas
pelas normas dos brancos. Ou seja, ele se distanciava exatamente daquilo de
que Mariza Corrêa se aproximou nas obras de Nina Rodrigues e Sílvio Romero.
Convém, portanto, analisar o que estava em jogo nessa expansão que levou um
contemporâneo e uma observadora de um século depois a chegarem a conclusões tão díspares em relação aos méritos da etnografia oitocentista.
O determinismo nas diferenças e conflitos
Para entender a relutância de Tobias Barreto frente ao movimento do qual
ele era considerado o fundador é importante observar o papel que neste
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Israel Ozanam
desempenhava a vinculação de ações individuais a determinações coletivas e a
tendência a considerar isso igualmente matéria etnográfica, jurídica e literária.
Essa tendência era muito frequente no Brasil na época da sua morte, em 1889,
e só começou a ser tratada como superada na década de 1910. Por exemplo, na
ocasião da morte de Artur Orlando em 1916, o jornal do Rio de Janeiro A Notícia
o descreveu como pertencente “a uma corrente que teve a hegemonia mental
durante algum tempo entre nós, a chamada escola do Recife, de que eram corifeus Tobias Barreto, Sílvio Romero, Clóvis Bevilaqua, Sousa Bandeira e muitos
outros, hoje luminares nas letras jurídicas” (As letras…, 1916).
O termo “luminares nas letras jurídicas” empregado aí remete a duas questões. A primeira é a dos alcances e limites da agregação desses autores em uma
categoria social distinta da população brasileira que era objeto de observação
no debate etnográfico do período. A segunda é a do gênero e conteúdo da produção intelectual deles. Embora o foco aqui seja a primeira das duas questões, é importante não perder a segunda de vista, pois ela aponta para o modo
transdisciplinar como categorias sociais e hierarquias eram fixadas na escrita
e transmitidas como retratos da realidade aos pesquisadores da posteridade.
Clóvis Bevilaqua, citado pelo redator de A Notícia, é um dos nomes nos quais
a identidade social de homem de letras era construída na combinação entre
uma noção ampla e outra restrita de “literatura” existentes no Brasil do período. Isso foi articulado em 1895 pelo crítico fluminense Aderbal de Carvalho,
de acordo com o qual haveria dois métodos pelos quais Bevilaqua poderia ser
visto como alguém atento à elaboração formal das ideias. Primeiro, num sentido amplo, pelos recursos empregados na escrita de suas obras de direito, história e criminologia. Se isso não parecesse suficiente, o status de literato estaria
inequivocamente reconhecido na sua produção específica em crítica, prosa e
poesia (Carvalho, 1902, p. 219). Levando em conta que muitas das fontes atualmente consultadas em busca da ciência social oitocentista são mais passíveis
de serem vistas como pertencentes ao primeiro e não ao segundo grupo, é relevante ter em mente essa dupla dimensão do literário.
O fato de Carvalho tê-la apontado em Clóvis Bevilaqua é significativo, pois foi
o estudo dele de 1896 sobre a criminalidade no Ceará que Marcos César Alvarez
(2003, p. 135-136) considerou mais suscetível a ser reconhecido como eminentemente sociológico. Como a preocupação metodológica presente na obra
de Bevilaqua de 1896 não foi constatada pelo pesquisador na maior parte do
Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 28, n. 62, p. 47-77, jan./abr. 2022
A opção de Mariza Corrêa pelo etnógrafo oitocentista
restante do material selecionado em seu estudo, ele concluiu que a coleta de
dados empíricos sobre as “classes populares” não era o forte dos criminologistas,
nem mesmo dos mais inclinados à escola sociológica (Alvarez, 2003, p. 135-148).
Assim, Alvarez (2003, p. 138), que buscava a empiria dos juristas em diálogo
direto com a forma como Mariza Corrêa buscou a dos médicos, não incluiu em
sua documentação as narrativas fornecidas pela combinação dos registros da
polícia, da justiça criminal e da imprensa. Porém, era nelas que mais explicitamente os dados empíricos e a imaginação conceitual sobre a população brasileira eram integrados num modelo de organização social onde o determinismo
étnico instituía as “classes populares” como unidade dotada de cultura diferente da das elites (Ozanam, 2018).
Então não é que a pesquisa empírica não existisse, apenas os gêneros de
escrita nos quais ela se dava eram tantos e tão variáveis em termos disciplinares quanto o exigia a amplitude da perspectiva monista. A essa motivação
teórica se acrescentava outra de ordem prática. Como Mariza Corrêa (2013,
p. 14, p. 22) demonstrou muito bem, a necessidade profissional fez com que
muitas das pessoas que buscaram promover aquela integração atuassem nos
mais variados setores da administração pública, deixando registros em formatos e estilos muito diversos do artigo científico e do manual acadêmico.
A isso se acrescenta o fato de muitos terem atuado na imprensa e, como Clóvis
Bevilaqua, tido aspirações literárias. Nesse sentido, o fato de ele ter escolhido
Franklin Távora – que levou o folclore ao romance antes da guinada criminológica da Faculdade de Direito do Recife – para ser o patrono da cadeira que
ocupou na Academia Brasileira de Letras em 1897 (Chacon, 2017; Ribeiro, 2016)
não é casual, pois a ideia de unir os conhecimentos literários e científicos nas
questões étnicas lhe era familiar.
Ao mesmo tempo, no conteúdo da sua produção Bevilaqua combinava posições divergentes sem perder de vista a coerência maior com o princípio etnográfico, por meio do qual a escrita sobre a sociedade era marcada pela divisão
entre observadores e observados. Portanto, quando dizia que índios e negros “as
duas raças inferiores”, contribuíam “muito mais poderosamente para a criminalidade […] por defeito de educação” (Bevilaqua, 1896, p. 94), ele juntava antropologia e sociologia criminal numa interpretação onde as transgressões dos
supostos observadores dificilmente seriam quantificadas na demonstração de
um padrão étnico. Então soava natural a Bevilaqua apontar “os sambas” como
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ambientes propícios à violência sem incorporar como dados de ciência os
incontáveis exemplos nos quais seus pares e alunos eram os responsáveis pela
criminalidade em espaços considerados de práticas e divertimentos “populares” no Recife entre o final do século XIX e o início do XX.
Em 1904, quando “cavalheiros” que acompanhavam o Dr. Odilon Nestor
numa visita à casa da “moreninha” Maria de Almeida cometeram lá um crime
violento, o Jornal Pequeno não utilizou o caso como evidência de características
negativas intrínsecas à classe ou à raça deles (O caso…, 1904). Ao contrário, publicou uma entrevista na qual Nestor negou qualquer acusação e lamentou “que
alguém na posição social” dele tivesse estado no lugar errado e na hora errada.
Assim, o episódio se transformou em apenas um caso particular de desvio
momentâneo de “moços de famílias respeitáveis e distintas”. Três anos mais
tarde, o mesmo Odilon Nestor foi aprovado no concurso para professor da
Faculdade de Direito do Recife (Bevilaqua, 1977, p. 411). No final da década de
1920, já catedrático da instituição, ele aludirá saudoso àquele tempo de “indisciplina, boemia e exuberância” (Nestor, 1927 apud Schwarcz, 1993, p. 172).
Nessa perspectiva, não era um problema reconhecer a existência da criminalidade entre todas as raças e classes, pois isso em nada mudava o fato de só a
algumas delas o crime pertencer como normalidade, coerente etnicamente, mas
de todo incompatível com a legalidade instituída na sociedade civil. No Recife
da entrada do século XX, reconhecer a presença dos “observadores” nos sambas,
pastoris e tavolagens dos “observados” era até comum, preservando-se de várias
maneiras o pressuposto da distância, como, por exemplo, no tom de advertência:
Esses antros de vício são frequentados por chefes de famílias respeitáveis, não
sendo raro que se aponte entre eles um ou outro magistrado, um ou outro advogado, um ou outro lente de escolas superiores, chefes de repartições, negociantes, professores públicos, cidadãos, enfim, de quem a sociedade tinha a esperar
outros exemplos, e que, de par com a gentalha ínfima […] ali vão deixar, muitas
vezes, o pão de suas famílias. (Ao dr. Gonçalves…, 1904).4
4
Queixas assim eram abundantes, a exemplo de Cousas… (1908) e O azul… (1890). Isso sem falar
nos casos relativos a bacharéis e estudantes de direito na documentação policial, como, por
exemplo: Ofício da 1ª Delegacia do Recife em 16/04/1912. Fundo da SSP, Vol. 449, Arquivo Público
Estadual Jordão Emerenciano (APEJE); Ofício da 1ª Delegacia do Recife em 24/07/1905. Fundo
SSP, Vol. 439, APEJE; Ofício da 1ª Delegacia do Recife em 31/08/1908. Fundo SSP, Vol. 442, APEJE.
Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 28, n. 62, p. 47-77, jan./abr. 2022
A opção de Mariza Corrêa pelo etnógrafo oitocentista
Portanto, havia um modelo explicativo da organização social brasileira no
qual uma vida inteira na criminalidade talvez não fosse suficiente para transformar homens “de famílias respeitáveis” em “gentalha ínfima”. O desafio de
cada um era conseguir firmar-se no lado favorável da distinção, o que certamente era mais difícil para quem era de antemão reconhecido como representante de uma raça inferior.
Não havia contradição em afirmar num tom de discordância com Lombroso
esse princípio de que o desvio era a norma de alguns grupos, pois provavelmente se estava contestando não apenas a elevada ênfase dele na anormalidade, mas também a sua pouca ênfase na etnicidade do crime. Com efeito, ao
menos no Recife, era de domínio público a percepção segundo a qual o criminologista italiano seria capaz de chamar de criminoso degenerado tanto um preto
pobre quanto um milionário de um país civilizado (Lombroso…, 1906).
Nessa questão, Nina Rodrigues, apesar de sua inclinação à antropologia criminal, inovará frente às influências recebidas. Ele estará mais disposto a encarar o crime como um desvio quando manifestado entre as raças superiores:
Desde 1894 que insisto no contingente que prestam à criminalidade brasileira
muitos atos antijurídicos dos representantes das raças inferiores, negra e vermelha, os quais, contrários à ordem social estabelecida no país pelos brancos, são,
todavia, perfeitamente lícitos, morais e jurídicos, considerados do ponto de vista
a que pertencem os que as praticam. (Nina Rodrigues, 2010, p. 301).
As linhas acima, do final do último capítulo de Os africanos no Brasil, foram
escritas num contexto em que Nina Rodrigues diferenciava os conceitos de
“atavismo” e “sobrevivência” na análise do crime. Enquanto aquele remeteria à
hereditariedade, esta, também chamada por ele de “criminalidade étnica”, estaria mais ligada ao aspecto social da convivência “de povos ou raças em fases
diversas de evolução moral e jurídica” (Nina Rodrigues, 2010, p. 300). Em outras
palavras, descontado o caráter hierarquizante da noção de evolução adotada
por ele, o autor estaria admitindo aí que os “crimes” da população negra brasileira seriam na realidade a sua cultura criminalizada pelos brancos. Resta saber
até que ponto é possível descontar a hierarquização racial desse relativismo
cultural de Nina Rodrigues. Aqui, mais uma vez, podem-se comparar as posições de Tobias Barreto um pouco antes dele e de Mariza Corrêa cem anos depois.
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No trecho citado acima, ao remeter a sua perspectiva ao ano de 1894, Nina
Rodrigues provavelmente se referia ao livro As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil. Nele o autor reservou um capítulo para defender o argumento de que Tobias Barreto, “que revolucionou o ensino do direito no Brasil”,
teria hesitado diante das consequências de “seus princípios filosóficos” (Nina
Rodrigues, 2011, p. 14). Isso porque, onde o professor da Faculdade de Direito do
Recife via a possibilidade de um relativo livre-arbítrio para os indivíduos em
meio às determinações do monismo e do evolucionismo, Nina Rodrigues (2011,
p. 16) via apenas uma “aparência ilusória de liberdade”.
Levando em conta o que foi dito na seção anterior deste artigo, percebe-se que essa crítica a Tobias Barreto lembra aquela feita por Clóvis Bevilaqua
quando propôs a expansão do conceito de antropologia para abranger determinantes sociais e não só físicos. De fato, Nina Rodrigues (2011, p. 21) cita diretamente Bevilaqua para defender que os princípios monísticos de unidade na
ciência e na natureza, os quais fundamentavam um conceito de antropologia
no qual raça e cultura eram conciliados, previam um determinismo incompatível com qualquer noção de livre-arbítrio.
No início de As ilusões da liberdade, Mariza Corrêa dá a entender que não
via nessa conciliação um caminho para a conexão entre o conceito de etnia de
Nina Rodrigues e a antropologia praticada nos anos 1980. Em primeiro lugar,
ela se recusa a acompanhar Arthur Ramos na afirmação de que “basta substituir a noção de raça pela de cultura nos trabalhos de Nina Rodrigues para que
suas pesquisas sejam aceitáveis em termos da ciência contemporânea” (Corrêa,
2013, p. 25).
Além do mais, a certa altura a autora contrapõe o modelo teórico aos
dados apresentados por Nina Rodrigues nesse quesito. Por um lado, ele acreditava que haveria um alinhamento entre pertencimento cultural e categorização biológica de indivíduos. Por outro lado, mencionava “senhoras brancas
de ‘famílias distintas’ que procuravam mães de santo”, além de “médicos que
consultavam cartomantes ou que empregavam práticas ‘africanas’ na cura de
certas moléstias” (Corrêa, 2013, p. 144-145). Ainda segundo Corrêa, essas evidências desagradavam a Nina Rodrigues, pois, quando indivíduos classificados
como pertencentes “a categorias culturais bem estabelecidas como superiores”
davam “sinais de pertinência às inferiores”, tornavam “inexpressivas as fronteiras que ele tão cuidadosamente procurava traçar” (Corrêa, 2013, p. 144-145).
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A opção de Mariza Corrêa pelo etnógrafo oitocentista
Mas não era para esse impasse que ela queria chamar a atenção na obra
de Nina Rodrigues. Ao citar aquele trecho de Os africanos no Brasil no qual a
visão que os membros dos grupos racialmente inferiores tinham dos seus atos
antijurídicos é diferenciada da forma como esses atos eram definidos na ordem
social dominante, Corrêa (2013, p. 118) afirma que a escolha do autor
por definir essa diferença como sinal de inferioridade desses grupos numa
ordem social dominada “pelos brancos” pode ser avaliada negativamente, hoje,
mas não podemos desconhecer a importância dessa lógica, em que a percepção
da diferença e do conflito está presente, na fundamentação de uma perspectiva
que só muito mais tarde seria retomada pelas ciências sociais no Brasil, com
outra linguagem.
Ou seja, a autora considerava a conexão feita por Nina Rodrigues entre criminalidade e fronteira étnica, à qual ela retorna outras vezes (Corrêa, 2013, p. 108109, 282-283), um ponto de contato entre as antropologias do final do século XIX
e do final do século XX. Por mais que ela rejeitasse a hierarquia racial, a afirmação das fronteiras culturais que colocavam os brancos na posição de detentores
da cultura oficial e os negros na de transgressores dessa cultura parecia-lhe
mais apropriada do que a perspectiva da qual efetivamente buscava se distanciar: a dos seguidores dele na chamada “escola Nina Rodrigues”, particularmente Arthur Ramos.
Isso porque, segundo ela, a partir dos anos 1930 Arthur Ramos (e também
Gilberto Freyre) adotariam uma noção de cultura que minimizaria a diferença
e o conflito racial no Brasil, ambos ressaltados por Nina Rodrigues (Corrêa,
2013, p. 214-218). Em outras palavras, a fim de distanciar-se da “orientação culturalista” (Corrêa, 2013, p. 234) de uma tendência antropológica mais próxima
temporalmente dela, a autora optou por aproximar-se do modelo de etnógrafo
oitocentista elaborado nas instituições de medicina e direito na Bahia e em
Pernambuco, ainda que procurando evitar os determinismos biológico e social
aglutinados na noção de etnia em voga nelas.
Nesse sentido, está implícita em As ilusões da liberdade uma revisão da história da antropologia no Brasil, elegendo-se como ponto de referência um Nina
Rodrigues atento às “desigualdades reinantes na sociedade brasileira”, definidas por ele “principalmente como relações entre brancos e negros” (Corrêa,
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Israel Ozanam
2013, p. 233-234). Essa seria uma antropologia militante, que defendia “explicitamente a intervenção do Estado” e se contrapunha ao liberalismo político
predominante, pautado pela desconsideração daquelas desigualdades (Corrêa,
2013, p. 233-234). Na perspectiva de Mariza Corrêa (2013, p. 236-237), isso – além
dos seus méritos como pesquisador – tornava Nina Rodrigues “um antropólogo
também no sentido contemporâneo da palavra, na medida em que reconhecia e afirmava os conflitos existentes na sociedade brasileira e os analisava de
acordo com a linguagem de seu tempo”.
Em suma, a perspectiva atenta às diferenças e aos conflitos, os quais Nina
Rodrigues “analisava de acordo com a linguagem de seu tempo”, seria mais
tarde “retomada pelas ciências sociais no Brasil, com outra linguagem” (Corrêa,
2013, p. 118). Ainda que não pareça a princípio, nesse ponto as maneiras como
Mariza Corrêa e Arthur Ramos dialogavam com o autor de Os africanos no Brasil não seriam tão discordantes assim. Ambos acreditavam que uma mudança
de linguagem seria suficiente para evidenciar a continuidade entre seus projetos intelectuais e o conteúdo central da obra de Nina Rodrigues. Porém, para
Corrêa (2013, p. 203-204), a discordância estaria na interpretação sobre qual
conteúdo seria esse, pois, ao contrário dela, Arthur Ramos e a “escola Nina
Rodrigues” buscariam “demonstrar a harmonia reinante nas relações culturais
entre negros e brancos”.
Cabe salientar que, para ela, alguns dos subsídios para a busca por demonstrar essa harmonia teriam sido encontrados nas “próprias pesquisas de Nina
Rodrigues” destinadas a “comprovar a fraqueza da hegemonia branca na cultura nacional” (Corrêa, 2013, p. 203-204). Mas, embora reconhecesse que Nina
Rodrigues tinha dificuldade de encaixar os dados empíricos nas fronteiras étnicas conceitualmente estabelecidas, a autora estava de certa forma impedida de
aprofundar essa questão por tê-la identificado com a negação dos problemas da
diferença e do conflito na sociedade brasileira. Assim, ao fazer o seu livro girar
em torno do contraste entre as leituras que ela e autores como Arthur Ramos
fizeram da obra de Nina Rodrigues, Mariza Corrêa (2013, p. 235), se comprometeu com o esforço deste último em vincular o estudo da diferença e do conflito
à aceitação das fronteiras étnicas como premissa e não como tema de pesquisa:
Ironicamente também, a perspectiva “racista” de Nina Rodrigues, explicitamente condenada por seus discípulos, parecia ser mais reveladora dos conflitos
Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 28, n. 62, p. 47-77, jan./abr. 2022
A opção de Mariza Corrêa pelo etnógrafo oitocentista
sociais que eles negarão em nome de uma harmonia racial e social do que as
noções de “sincretismo” ou “aculturação” por eles utilizadas para nomear esta
harmonia ao substituir a noção de raça pela de cultura.
Consequentemente, para ela um olhar histórico que problematize a rigidez dos
binômios observador/observado, raça branca/raça negra, cultura dominante/
cultura dos dominados nessa perspectiva soará como um retorno às “noções de
‘sincretismo’ ou ‘aculturação’”, as quais seriam piores do que a linguagem oitocentista por minimizarem os conflitos e as diferenças. O problema é que, assim
como essas noções, a aceitação das fronteiras também minimiza um grande
conflito: aquele em torno da construção das próprias fronteiras e da definição
do lugar de cada sujeito nelas, como se verá na seção a seguir.
“A raça preta, esse doloroso problema etnográfico”
Uma das formas de explorar a historicidade da distinção entre o observador
da diferença étnica e o observado etnicamente diferente na sociedade brasileira
no final do século XIX é levar em consideração os impasses teóricos, por sua
vez dotados de implicações pessoais, provocados por ela entre alguns de seus
propugnadores. Para isso, vale apontar que um aspecto central do tratamento
da relação entre natureza, cultura e identidade nacional na prosa ficcional no
Brasil do período consistia na defesa do deslocamento da atenção do índio para
o negro no estudo do caráter brasileiro, como se percebe no diálogo entre Sílvio
Romero e Franklin Távora (Távora, 1880, p. 425).
Nas palavras deste último, as informações disponíveis sobre as tradições
e lendas indígenas eram devidas “aos poetas e aos viajantes que as recolheram dos próprios índios nas aldeias, e não do nosso povo que as desconhece”
(Távora, 1879 apud Carvalho, 1902, p. 70-73). É interessante notar aí a utilização do detalhe metodológico para fundamentar o argumento da alteridade
maior de uma das duas raças inferiores. Ou seja, se determinada coisa não era
espontaneamente verificável no cotidiano, mas dependia do deslocamento do
observador até o “outro”, então ela não pertencia a “nós”, ao “nosso povo”. Se
pertencesse, não seria preciso ir às “aldeias” para buscá-la, ela estaria acessível
por toda a parte.
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Israel Ozanam
Não é difícil perceber as implicações de semelhante raciocínio para a
separação entre observados e observadores no tocante à outra raça. Portanto,
se, conforme essa ótica, a distância em relação ao índio estava relativamente
garantida,
o mesmo entretanto não acontece à raça preta, esse doloroso problema etnográfico, essa raça desgraçada que serviu por muito tempo de pábulo às especulações
torpes de um comércio aviltante. Como é sabido, a raça preta não só tem modificado o caráter nacional, mas tem até influído nas instituições, nas letras, no
comércio e nas ciências do país. […] Os nossos historiadores são todos unânimes
em exaltar-lhes a grande contribuição na formação etnográfica e etnológica da
nacionalidade brasileira. (Carvalho, 1902, p. 70-71).
Note-se que o autor dessas palavras, Aderbal de Carvalho, muito inspirado em
Franklin Távora e Sílvio Romero, nem sequer usou aí o conceito de “povo”, o qual
poderia gerar alguma dúvida sobre se ele estava constatando a influência da
raça africana apenas sobre a população pobre e distanciada dos elementos civilizados ou sobre até mesmo a civilização. Sem dúvida, trata-se da segunda opção,
de toda a “nacionalidade brasileira”. Mas se a fronteira étnica amparada no evolucionismo monista situava os negros no lugar da diferença, no papel de “eles”,
os mesmos dificilmente poderiam ter influenciado as instituições, as letras, o
comércio e as ciências do país sem se tornarem “nós” em alguma medida.
Era por confundir dessa maneira a distinção entre as partes que cabiam à
inferioridade racial e ao progresso que a “raça preta” consistiria num “doloroso
problema etnográfico”. Contudo, a perspectiva evolucionista permitia que a
gravidade do problema fosse vista como um indicativo da marcha para a solução, pois a sobreposição entre o peso étnico e a busca civilizatória no Brasil
seria um sinal da “fase de transição etnossociológica” na qual se encontraria
a nação (Carvalho, 1902, p. 214). Assim, era só descansar com a “consoladora
verdade” de que o “elemento etnográfico” nocivo “não será daqui alguns anos,
mais que uma triste lembrança, uma simples curiosidade arqueológica. Na luta
pela vida das raças predominará certamente a branca”, beneficiada pela sua
superioridade e pela imigração (Carvalho, 1902, p. 72).
Sentar e esperar a realização do prognóstico seria simples para a elite
letrada, caso esta fosse uma categoria estável, pairando acima dos conflitos
Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 28, n. 62, p. 47-77, jan./abr. 2022
A opção de Mariza Corrêa pelo etnógrafo oitocentista
sociais e observando-os. Mas se ela também era algo a ser construído no processo histórico, era muito difícil definir, nesse meio tempo da evolução racial
do país, quem tinha e quem não tinha o privilégio de passar mais ou menos
incólume pela marca da inferioridade. Após um tempo mantendo uma posição
semelhante àquela de Aderbal de Carvalho, Sílvio Romero eventualmente se
tornará pessimista sobre a miscigenação poder levar o país a uma raça civilizável (Ventura, 1991, p. 51-65). De acordo com Araripe Júnior(1899, p. 355), no final
do século XIX essa também seria a posição dos acadêmicos José Veríssimo e
João Ribeiro.
Como foi dito na introdução deste artigo, Mariza Corrêa e, depois dela,
Roberto Ventura foram bastante perspicazes ao notar o paradoxo identitário no qual se encontrava quem queria afirmar a diferença etnográfica
entre observadores e observados no Brasil oitocentista. Mas ambos trataram
isso como uma experiência coletiva dos “críticos brasileiros” (Ventura, 1991,
p. 51-65) ou simplesmente dos “intelectuais”, categoria de cuja estabilidade
Mariza Corrêa (2013, p. 14, 20, 32-33) a princípio ainda deu sinais de desconfiar,
embora não tenha expandido essa desconfiança ao ponto de rever as conclusões às quais chegaria sobre o sentido dado por Nina Rodrigues à diferença e
ao conflito étnico.
Mas é digno de nota que, numa demonstração de cuidado metodológico e
honestidade intelectual, ela não ocultou as indicações de que a tensão enfrentada por Nina Rodrigues entre modelo teórico e dados empíricos foi eventualmente acompanhada pela modificação no projeto inicial dele “de demonstrar
a distância enorme que separava a civilização da barbárie, e o perigo que esta
representava para aquela”, dando lugar ao tema da “proximidade e a semelhança de ambas” (Corrêa, 2013, p. 149-150). A certa altura, ao tratar do crescente
interesse do autor pela “linguagem, os costumes, as artes” dos negros da Bahia,
ela aponta que faltou a Nina Rodrigues explorar uma incongruência implícita
no trabalho dele: “como uma raça considerada inferior conseguiu ter tal influência na vida cultural baiana?” (Corrêa, 2013, p. 146-147).
Entretanto, talvez tão relevante quanto apontar essa incongruência fosse
investigar as implicações da constatação que leva a ela, ou seja, da constatação da enorme participação de africanos e descendentes na construção dos
aspectos considerados civilizados da sociedade brasileira. Se aos olhos de Nina
Rodrigues, Aderbal de Carvalho e muitos outros autores as raças inferiores
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estavam imiscuídas na cultura superior, que garantias cada um deles tinha de
que não eram, eles próprios, um desses elementos indesejados? A atenção a isso
teria conferido um significado muito maior a afirmações de Nina Rodrigues
por vezes apenas transcritas ou mencionadas de passagem pela autora, como
as queixas dele contra as discussões médicas na imprensa, nas quais “menos
se procuram elucidar dúvidas do que agredir e desrespeitar colegas, com manifesto prejuízo dos créditos da profissão” (Nina Rodrigues, 1904 apud Corrêa,
2013, p. 96-97).
O exemplo mais indicativo disso é o longo e impressionante trecho de
“Métissage, dégénérescence et crime” – publicado por Nina Rodrigues em 1899
nos Archives de l’anthropologie criminelle – transcrito por Mariza Corrêa (2013,
p. 142-144) ao analisar a conexão feita pelo autor entre raça e cultura. De acordo
com ela, as determinações do meio tinham um papel importante na inclinação
de Nina Rodrigues a relativizar a gravidade da degenerescência racial. Assim,
do ponto de vista dele, da mesma forma que na África era legítimo o negro ser
agressivo e fetichista, no interior do território brasileiro o mestiço estava bem
aclimatado ao ambiente selvagem e viril do sertão.
Para Nina Rodrigues, o mesmo não se podia dizer dos mestiços na cidade,
pois o ambiente civilizado exigiria demais das limitadas capacidades físicas
e morais deles, mesmo daqueles aparentemente valorosos, cuja vivacidade da
inteligência seria indissociável da sua degeneração. A fim de embasar seu argumento, ele cita alguns exemplos, entre os quais Tobias Barreto, “um dos nossos
mestiços de maior valor intelectual”, que “sempre levou uma vida desregrada e
dela morreu” (Nina Rodrigues, 1899 apud Corrêa, 2013, p. 144).
Diante do foco de Mariza Corrêa em distanciar-se de certos autores do
século XX por meio do restabelecimento de um elo com a antropologia do
século XIX, é compreensível que não tenha dado suficiente atenção a essas
evidências apresentadas por ela mesma. Mas Tobias Barreto dificilmente pôde
ignorá-las. Quem sabe isso ajude a explicar por que ambos, ele no final do
século XIX e ela no final do século XX, tiveram respostas diametralmente opostas ao valor intelectual da aproximação entre raça e cultura nos conceitos de
etnografia e antropologia mencionada no final da segunda seção deste artigo.
Antes de adentrar um pouco mais nesse ponto é importante ressaltar que
a situação identitária vivenciada por Tobias Barreto – ou, para citar outro caso,
por Machado de Assis quando este era alvo das invectivas etnográficas de
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A opção de Mariza Corrêa pelo etnógrafo oitocentista
Sílvio Romero (1897, p. 18) –, não era exclusiva de autores amplamente considerados mestiços e pretos. Ainda que com eles isso possa ter sido mais grave e constante, não eram exceções dentro de um contexto geral no qual a identidade de
“observador” estaria firmemente distanciada dos tipos inferiores representados
pelos “observados”. E como talvez ninguém no Brasil oitocentista tenha defendido tanto a determinação natural e cultural das hierarquias raciais quanto
Sílvio Romero, nada melhor do que o seu caso para demonstrar esse ponto.
Romero nunca perdeu uma oportunidade de lembrar que, quando o assunto
era a difusão do evolucionismo monista no Brasil, “o brado de alarma partiu
da Escola do Recife” (Candido, 2006, p. 221). Ao fazê-lo, mobilizava uma noção
de originalidade alinhada às ideias etnográficas que defendia. Se, para ele,
um dos maiores méritos do seu grupo foi a inovação no encontro do folclore
com a literatura na interpretação do caráter nacional, era porque este último
se encontrava mais bem expresso entre as populações do norte do país, onde
estava localizada a Faculdade pioneira, do que entre as do sul (Ribeiro, 2016,
p. 30-31). Isso lembrava um pouco um dos sentidos adquiridos pela noção de
“folk-lore” na Europa, entendido como os conhecimentos e práticas das populações moradoras das áreas mais afastadas do cosmopolitismo e do progresso
dos grandes centros, sendo por isso mais representativas das raízes da nacionalidade (Ribeiro, 2016, p. 13-14).
Assim, o folclore havia entrado no quebra-cabeça da diversidade como
material empírico subsidiário à compreensão da forma mental de expressar os
condicionantes evolutivos. Como lembraria o bacharel Carlos Góes (1916, p. 8
e 36), ainda lendo na cartilha do “notável mestre Sílvio Romero” nos anos 1910,
“quem se abalançar a estudar a etnologia de um povo terá de descer a pesquisas
e escavações no terreno do folclore e, neste particular, a poesia popular é um
dos filões mais ricos e variegados”. Isso porque nela seria possível constatar o
“fundo hipocôndrico [sic] de que padeceram todos os nossos ancestrais e que a
hereditariedade e o atavismo continuam de fazer perdurar através dos tempos”
(Góes, 1916, p. 10).
Nessa perspectiva, os literatos românticos na Corte – muitos deles também
nortistas –, teriam sido incapazes de calibrar a sua inclinação etnográfica para
captar a influência negra, perdendo-se, assim, na falsidade do indianismo. Do
Recife, portanto, podia-se observar mais de perto a ação do princípio étnico
sendo exercida na vida mental do povo, e isso devia consistir em vantagem
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passível de render reconhecimento científico aos aspirantes a homens de
letras que, saindo de lá, circulavam pela nação pessoalmente ou através de
seus textos.
Mas essa era uma faca de dois gumes, pois a ligação entre o folclórico e
o biológico fazia a originalidade tornar-se sinônimo de inferioridade racial.
Portanto, quanto mais representativa dos elementos constitutivos do caráter
nacional fosse uma região do país, maiores as chances de ela ser considerada
primitiva do ponto de vista evolutivo. Se essa era uma conclusão à qual poderiam chegar tanto Sílvio Romero quanto Aderbal de Carvalho, que o considerava “o maior crítico literário-filosófico do Brasil e de quem me orgulho de ser
discípulo”, a posição pessoal dos dois diante dela talvez ajude a entender o
eventual pessimismo do primeiro e otimismo do segundo (Carvalho, 1888). Este
último concordava plenamente que o “hibridismo etnológico” havia transformado o “mulato” no tipo nacional, mas isso não seria suficiente para definir o
brasileiro, pois as diferenças mesológicas teriam separado o homem do norte
daquele do sul “de um modo extraordinário, quer física, quer fisiologicamente”
(Carvalho, 1902, p. 67).
Por esse motivo, o crítico fluminense discordava de Romero, um sergipano,
quando este definia o brasileiro como um “‘ser desequilibrado, ferido nas fontes
da vida […] mais amigo de sonho e de palavras retumbantes do que de ideias
científicas e demonstradas’”, pois, na opinião de Aderbal de Carvalho (1902,
p. 67-68),
essa deveria ser a descrição psicofisiológica da população linfática, histérica
do Norte, e nunca do brasileiro em geral. Contra essa definição protesta solenemente a população pletórica e musculosa do Sul, cuja organização física e intelectual, modo de vida etc., etc., são extremamente desiguais às dos seus irmãos
do Norte.
Não se trata aqui de atribuir opiniões como essa apenas a quem havia nascido
no sul, mas sim de indicar que um sergipano formado no Recife tinha menos
facilidade de distanciar-se etnicamente do elemento regional atrasado, posicionando-se como observador e fazendo prognósticos. De qualquer maneira,
talvez por conferir menos peso a fatores mesológicos, Sílvio Romero não
encontrou em si mesmo um motivo para duvidar do valor cognitivo de uma
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A opção de Mariza Corrêa pelo etnógrafo oitocentista
etnografia baseada num paradigma determinista, e nisso ele diferiu muito do
seu maior interlocutor.
Quando assumiu a incumbência de organizar a publicação póstuma das
obras de Tobias Barreto no início dos anos 1890, Romero (1892, p. VII) acreditava já ter destacado o suficiente, em pelo menos três livros, a relevância do
amigo para a “vida espiritual moderna em nosso país”. Por isso, no prefácio do
primeiro volume, intitulado Estudos de direito, decidiu fazer quase o caminho
inverso, relativizando a afinidade intelectual existente entre eles:
Há especialmente dois assuntos em que o meu modo de sentir e pensar foi sempre completamente oposto ao seu: a poesia popular e a etnografia. Sabe-se que
uma das bases da minha crítica aplicada à literatura, à história e em geral à vida
espiritual brasileira, foi a apreciação etnográfica das raças que constituíram o
nosso povo. Sabe-se mais que uma das primeiras aplicações desse modo de pensar foi justamente o estudo, a pesquisa da poesia, dos contos, das tradições populares, do folclore, em suma. Pois bem: Tobias Barreto não aceitava isto e tivemos
intermináveis discussões a respeito. (Romero, 1892, p. IX-X).
De fato, se a intenção era demonstrar que os dois tinham divergências, não
poderia haver exemplo melhor. É impossível conceber a trajetória de Sílvio
Romero – e também de Nina Rodrigues – sem a centralidade conferida àquilo
que, como Mariza Corrêa (2013, p. 141) notou, posteriormente se tornaria fonte
de pesquisa para a antropologia e a história social. Portanto, a princípio quem
se dedica a esses campos de estudo se considerará heuristicamente mais próximo de Romero nesse debate. Afinal, Tobias Barreto considerava o interesse
pela poesia popular apenas um “resto de vertigem romântica” destinado a desaparecer, pois essa seria uma forma de expressão desprovida de interesse histórico e estético (Barreto, 1888 apud Romero, 1892, p. X).
Mas justamente no ponto mais sensível, o “interesse histórico”, a resposta
de Sílvio Romero tem o potencial de fazer historiadores e antropólogos de hoje
repensarem um pouco sua tomada de posição. Pois, para ele, esse interesse
reside no fato de os conteúdos coletados entre o povo serem “documentos das
raças”, indispensáveis para um estudo evolucionista da cultura. Ao mesmo
tempo, a citação das palavras de Tobias Barreto publicadas em Questões vigentes
permitem entender de onde este último estava partindo ao rejeitar a produção
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de fontes que são tão caras a pesquisadores atuais: “quanto ao ponto relativo às
raças, isto é apenas o efeito de outra mania do nosso tempo, a mania etnológica.
[…] As chamadas raças inferiores nem sempre ficam atrás, o filhinho do negro,
ou do mulato, muitas vezes leva de vencida o seu coevo de puríssimo sangue
ariano” (Barreto, 1888 apud Romero, 1892, p. XII, grifo do autor).
Indignado como se estivesse lendo aquelas linhas pela primeira vez, Sílvio
Romero afirmou: “quando a antropoetnografia chegou a afirmar a existência
de raças humanas inferiores, não o fez levianamente”. De acordo com ele, teria
sido através da observação conscienciosa da anatomia, fisiologia e meio social
“dos selvagens e bárbaros de raça negra, vermelha e amarela […] que a ciência
ousou pronunciar-se” sobre a inferioridade delas, demonstrada na sua incapacidade de civilizar-se (Romero, 1892, p. XII). Diante disso, questiona retoricamente: “Não merecerão o qualificativo de inferiores?”
Portanto, independentemente de o caldo etnográfico constitutivo da “energia latente de nosso povo” ter às vezes gerado um impulso transformador vindo
das camadas mais baixas da população, haveria uma linha tênue entre a transformação social e a dissolução social porque parte dos ingredientes raciais
dessa população estariam biologicamente destinados a serem sempre externos
à ordem, à lei e à alta cultura (Romero, 1892, p. XIV). Porém, em meio à condenação categórica, surge uma pequena ressalva: “Uma ou outra exceção, um ou
outro caso de superioridade no filhinho do negro não pode constituir uma regra,
nem firmar a doutrina. Muito menos no filho do mulato”, pois “o que é decisivo
é o estudo da sociedade no seu conjunto. Não existe, nunca existiu uma civilização original de negros, nem de mulatos” (Romero, 1892, p. XII, grifo do autor).
Sílvio Romero não era obrigado a fazer essa concessão, pois não teria dificuldades em preservar totalmente a regra geral apontando sinais de degeneração
em qualquer negro ou mulato aparentemente bem-sucedido se assim o quisesse. Mas como poderia querer, se, ao fazê-lo, estaria inferiorizando aquele a
quem tanto admirava? Pois se ele aceitava inserir em seu modelo analítico, na
condição de exceção, a possibilidade de um “filhinho do negro, ou do mulato”
superar um de “puríssimo sangue ariano”, ao invés de simplesmente rejeitá-la,
era porque essa era uma brecha deixada para o próprio Tobias Barreto.
Brecha a qual muita gente, mesmo entre os seus admiradores, não estaria
disposta a deixar. Basta observar o discurso feito em 1905 por Graça Aranha na
recepção da Academia Brasileira de Letras a João Carneiro de Sousa Bandeira.
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A opção de Mariza Corrêa pelo etnógrafo oitocentista
Talvez porque o recepcionado se considerasse membro da “chamada escola do
Recife” e defendesse o legado dela no discurso de posse, o orador dedicou bastante espaço a uma homenagem póstuma ao homem cuja trajetória era utilizada para sistematizá-la.5 Ao fazê-lo, não escondeu a sua adesão aos princípios
etnográficos em voga na Faculdade de Direito do Recife. Assim, segundo ele,
Tobias Barreto teria invadido o meio intelectual “de seu tempo como um verdadeiro homem da sua raça”, dotada de um temperamento “em cuja formidável
composição entram doses gigantescas de calor, de luz e de todas aquelas ondas
da vida que o sol transfunde regiamente ao sangue mestiço…”.
A essa introdução segue um curioso elogio no qual Barreto, o inspirador de
uma geração científica, aparece como muito mais inclinado à fantasia e aos
instintos naturais do que à lógica e ao raciocínio: “Não conheceu senão os limites inabordáveis da liberdade e os da extrema irresponsabilidade. Pôde, como
um sertanejo, viver com o povo, foi descuidado, miserável e infeliz.” Saber que
esse era seu lugar num quadro determinista podia até não ser a única razão,
mas provavelmente contribuía para Tobias Barreto não admitir a cientificidade
da psicologia e da sociologia, desdenhar a obra de Herbert Spencer e não querer
nem ouvir falar em folclore e etnografia, tudo isso lembrado por Sílvio Romero
(1892) em seu prefácio.
Considerações finais
Na epígrafe do seu livro, Mariza Corrêa poderia ter posto uma citação de Nina
Rodrigues sobre o caráter ilusório da liberdade humana. Ela conhecia várias
(Corrêa, 2013, p. 134, 145). Ao invés disso, escolheu uma de Tobias Barreto na
qual o eco de uma hesitante noção de livre-arbítrio é direcionado à enunciação
da especificidade da disciplina cuja história ela reconstituía: “Ainda quando
ficasse assentado que a liberdade humana não passa de uma ilusão, esta
mesma ilusão seria bastante para dar à ciência social um certo plus, que a diferencia e distingue das ciências naturais” (Barreto, 1882 apud Corrêa, 2013, p. 7).
5
As referências a seguir aos discursos de posse e de recepção se encontram disponíveis na área
relativa a Sousa Bandeira na página da Academia Brasileira de Letras (cf. http://www.academia.
org.br/academicos/sousa-bandeira).
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É como se essa epígrafe fosse para o leitor um recado de que o determinismo era a linha que ela não estava disposta a cruzar para encontrar em Nina
Rodrigues um precursor da sua prática como antropóloga. Daí o seu otimismo
ao ver na superação dos resquícios do “determinismo biológico” um dos pontos de distanciamento entre a antropologia da segunda metade do século XX
e os culturalistas dos anos 1930-1940 (Corrêa, 2013, p. 203-204, 219-222). Nessa
interpretação, a geração dela estaria na posição oposta à destes últimos, pois
teria enfatizado a diferença e o conflito étnico na sociedade brasileira como a
etnografia oitocentista, mas sem influenciar-se pelo “paradigma determinista”
(Corrêa, 2013, p. 235-236).
Contudo, um pouco mais de investimento na análise de divergências
como aquela entre Tobias Barreto e Sílvio Romero poderia ter feito a autora
notar que o determinismo era indissociável da maneira como a diferença e
o conflito étnico eram ressaltados na escrita etnográfica no Brasil do final
do século XIX. Afinal, esta tomava como ponto de partida grupos humanos
naturalmente estabelecidos, a começar por aquele ao qual deveriam pertencer
os observadores da diferença. Nesse sentido, a opção de Mariza Corrêa pelo
etnógrafo oitocentista não consistiu apenas em adotar a visão de Nina Rodrigues no tema da diferença e do conflito, mas sim em admitir que a diferença
e o conflito não seriam abrangentes o suficiente para alcançarem a própria
identidade coletiva do etnógrafo oitocentista, da qual Nina Rodrigues seria
um representante.
Mas o rigor documental e o alcance da sua análise a colocam a todo instante
a um passo de tomar a outra direção. Ela inclusive mencionou rapidamente
que Sílvio Romero e Tobias Barreto nem sempre “partiam dos mesmos pressupostos” (Corrêa, 2013, p. 24), o que é surpreendente se for levado em conta que
o contexto empírico da autora era o da apropriação da obra de Nina Rodrigues
na Bahia. Isso aponta para o fato de que o objetivo dela não era apenas dar uma
contribuição num recorte específico da historiografia sobre as ciências sociais
no Brasil – o que já seria bastante – mas sim investigar o máximo possível
aquilo que a antropologia do final do século XX tinha em comum com a do final
do século XIX (Tambascia; Rossi, 2018, p. 16). E é nesse aspecto que este artigo,
apesar (ou talvez por causa) do engajamento crítico, pode ser entendido como
uma tentativa de investigar a história da antropologia no Brasil aplicando os
métodos dela.
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A opção de Mariza Corrêa pelo etnógrafo oitocentista
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Recebido: 23/03/2021
Aceito: 01/07/2021
|
Received: 3/23/2021
Accepted: 7/1/2021
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Artigos
Articles
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71832022000100003
O tio haitiano da antropologia
contemporânea: teoria, história e poder
em Jean Price-Mars
The Haitian uncle of contemporary anthropology:
theory, history, and power in Jean Price-Mars
João Felipe Gonçalves I
https://orcid.org/0000-0002-6627-0236
joaofg@uchicago.edu
I
Universidade de São Paulo – São Paulo, SP, Brasil
Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 28, n. 62, p. 79-113, jan./abr. 2022
João Felipe Gonçalves
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Resumo
Este artigo discute o contexto de produção, o conteúdo e a recepção do livro Ainsi
parla l’oncle (Assim falou o tio), do antropólogo haitiano Jean Price-Mars, publicado em
1928. O artigo argumenta que, ademais de oferecer uma interpretação nacionalista da
cultura popular haitiana, esse livro faz inovações teóricas importantes que antecipam perspectivas que a antropologia do Norte Global só viria a adotar cinco décadas
depois. O artigo examina o contraste entre a recepção do livro, que circunscreve seu
interesse aos estudos do Haiti, do Caribe e do mundo afro-atlântico, e a relevância
geral de seus argumentos, para além desses campos antropológicos restritos. O artigo,
portanto, defende que Jean Price-Mars seja reconhecido e reivindicado na história da
antropologia por suas contribuições não apenas regionais e temáticas, mas também
propriamente teóricas.
Palavras-chave: história da antropologia; antropologia da história; diáspora africana;
Caribe.
Abstract
This article examines the context of production, the content, and the reception of
the book Ainsi parla l’oncle (So spoke the uncle), written by Haitian anthropologist Jean
Price-Mars and published in 1928. The article maintains that, besides a nationalist
interpretation of Haitian popular culture, the book makes important theoretical
innovations that anticipate perspectives that the anthropology of the Global North
would only adopt five decades later. The article discusses the contrast between the
reception of the book, which circumscribes its interest to Haitian, Caribbean, and Afro-Atlantic studies, and the general relevance of its arguments, beyond these restricted
anthropological fields. The article, therefore, argues that Jean Price-Mars should be
acknowledged and claimed by the history of anthropology not only for the regional
and thematic relevance of his work, but also for its theoretical contributions.
Keywords: history of anthropology; anthropology of history; African diaspora;
Caribbean.
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O tio haitiano da antropologia contemporânea
Dois livros publicados em 1928 estão entre os que mais tiveram impacto
público, para além da academia, em toda a história da antropologia.1 Ambos
combinavam a etnografia de ilhéus subalternos e a teorização antropológica
para fazer uma crítica política e defender uma reforma sociocultural democratizante e inclusiva. Graças em parte a esses trabalhos, seus autores são os
antropólogos que mais impacto tiveram nas culturas públicas de seus respectivos países. Outra semelhança entre os livros é sua relação histórica com o
poder imperial dos Estados Unidos, pois tratavam de territórios insulares, um
no Caribe e outro na Polinésia, governados à época por militares daquele país.
Esses livros são Ainsi parla l’oncle, do haitiano Jean Price-Mars (1876-1969), e
Coming of age in Samoa, da estadunidense Margaret Mead (1901-1978).
Uma diferença evidente entre os dois livros é que Jean Price-Mars era um
cidadão negro do Estado nacional insular, então ocupado, que ele estudava; já
Margaret Mead era uma cidadã branca do Estado nacional que ocupava a ilha
que ela estudava. Outra diferença fundamental é que Coming of age in Samoa se
tornou parte incontornável do cânone antropológico – conhecido, lido, citado,
lecionado, discutido em todo o mundo por antropólogos de todas especialidades temáticas e regionais. Já Ainsi parla l’oncle tem tido um alcance restrito
basicamente a especialistas do Caribe, da diáspora africana e das religiões
afro-americanas.
As duas diferenças, é claro, estão relacionadas. A presença extremamente
desigual dos trabalhos de Jean Price-Mars e de Margaret Mead nas narrativas
da história da antropologia é em parte explicada pelas posições, também extremamente desiguais, do Haiti e dos Estados Unidos na divisão global do trabalho intelectual e no sistema econômico e geopolítico mundial. Isso é indicado
até mesmo pelos lugares em que os dois livros foram originalmente publicados: o primeiro na França, antiga metrópole do país de Price-Mars, e o segundo
em Nova York, a metrópole em que Mead vivia e trabalhava. O elemento racial
1
Agradeço o financiamento dado pelo Roger Thayer Stone Center for Latin American Studies,
da Universidade de Tulane, Estados Unidos, a minha viagem de campo ao Haiti em 2013-2014.
Sou muito grato também a Omar Ribeiro Thomaz pelas várias conversas em que aprendi muito
sobre o Haiti, a Rachel Hynson pela colaboração na obtenção de algumas fontes utilizadas
no artigo, e a dois pareceristas anônimos pelos valiosos comentários e sugestões. Agradeço
muito os comentários feitos pelos demais membros do grupo de pesquisas que dirijo na USP,
o CANIBAL: Grupo de Antropologia do Caribe Global (antropocanibal.com.br).
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contribui igualmente para os diferentes níveis de impacto e reconhecimento
desses dois livros. No cânone altamente racializado da antropologia clássica,
a predominância de brancos e brancas do Norte Global é indissociável do
silenciamento de profissionais de outras origens raciais, étnicas e geográficas,
especialmente indígenas e afrodescendentes, vistos tradicionalmente como
“objetos” e não como sujeitos da disciplina.
Discutindo Ainsi parla l’oncle (Assim falou o tio), busco neste artigo contribuir tanto para o descentramento e a diversificação da história da antropologia quanto para a compreensão das exclusões e silenciamentos subjacentes à
produção da história disciplinar. Ou seja, relaciono o livro de Jean Price-Mars
à história da disciplina nos dois sentidos do termo “história” apontados por
outro antropólogo haitiano, Michel-Rolph Trouillot (1995, p. 3): como processo,
como “aquilo que aconteceu”, e como narrativa, como “aquilo que se diz que
aconteceu”.2 Assim, examino aqui o desequilíbrio entre os papéis de Price-Mars
na história no primeiro sentido (sua fala) e na história no segundo sentido (o
que se fala, ou não, dele). Para explorar esse contraste, faço dois argumentos
principais.
O primeiro é que o livro de Jean Price-Mars é muito mais do que uma defesa
e uma interpretação da cultura popular haitiana e de suas origens africanas,
como é normalmente lido. Ao propor uma reavaliação e uma reforma sociocultural do Haiti, o Tio – como é chamado por vários intelectuais caribenhos – faz
importantes contribuições teóricas que ressaltam a relação intrínseca entre
cultura, história e poder. Ele antecipa, dessa forma, perspectivas críticas que
os centros hegemônicos da antropologia do Norte Global só vieram a adotar
cinco décadas depois. Vale dizer, o trabalho de Price-Mars tem uma dimensão
propriamente teórica, cuja validade inclui mas ultrapassa os limites do Caribe
e do Atlântico Negro, e que justifica seu necessário reconhecimento como um
pensador fundamental para a história – no primeiro sentido de Michel-Rolph
Trouillot – da antropologia.
Meu segundo argumento principal é que tanto o inovador conteúdo teórico quanto o limitado impacto global de Ainsi parla l’oncle estão intimamente
relacionados a seu caráter nacionalista. Por um lado, o imperativo de todo
2
Todas as traduções de citações são minhas, salvo quando o contrário é indicado.
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O tio haitiano da antropologia contemporânea
nacionalismo de narrar histórias coletivas, bem como a própria constituição do
Haiti como um Estado nacional negro, surgido de uma revolução bem-sucedida
levada a cabo por escravizados e ex-escravizados, permitiram que Price-Mars
lesse a cultura de seu país pela lente de uma história marcada pelo poder, pela
desigualdade, pelo conflito e pela resistência. Por outro lado, esse mesmo nacionalismo torna menos visível a dimensão teórica das inovações de Price-Mars,
pois ele as articula em uma linguagem não teórica, como parte de um debate
nacional e visando a um público nacional. No próprio texto do Tio se encontram, portanto, algumas condições de possibilidade de sua marginalização na
história – no segundo sentido de Michel-Rolph Trouillot – da antropologia.
Para além do caso haitiano, examino, através do livro de Jean Price-Mars,
algumas possibilidades e limites colocados pelo comprometimento nacionalista das antropologias periféricas. Busco ainda contribuir para calibrar o foco
no colonialismo que tem predominado nas narrativas da história da antropologia e enfatizar o nacionalismo como outro contexto crucial para o desenvolvimento da disciplina. Começo, porém, falando um pouco mais sobre esse tão
silenciado mas nada calado tio.
Assim viveu o Tio
Jean Price-Mars nasceu em Gran Rivyè Dinò,3 nas serras do norte do Haiti, em
1876, e faleceu na capital, Porto Príncipe, em 1969.4 Na maior parte de sua vida,
alternou períodos como professor, pesquisador, médico e político no Haiti e
como diplomata nos vários lugares da Europa e das Américas em que representou seu país. Teve ainda uma longa carreira em cargos públicos, por eleição
ou por indicação: foi deputado (1904-1908), inspetor geral da instrução pública
(1912-1915), senador (1930-1935 e 1944-1946) e ministro das relações exteriores
(1946-1956).
3
Há variações para a forma escrita do nome da localidade em haitiano, como Grann Rivyè dinò e
Gran Rivyè di Nò. Em francês, a cidade se chama Grande Rivière du Nord. Optei por usar topônimos em haitiano, a não ser quando haja um uso regular e estabelecido de versões em português.
4
Esta seção biográfica é baseada principalmente nos trabalhos de Hénock Trouillot (1956),
Jacques Carmeleau Antoine (1981) e Magdaline Shannon (1996).
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O deslanchar das carreiras de Price-Mars foi ajudado por suas relações
familiares oligárquicas. No ano de seu nascimento, seu pai, um bem-sucedido
cafeicultor, foi eleito deputado. E dois primos de Price-Mars que ocuparam a
presidência do Haiti foram particularmente importantes para sua trajetória.
Um deles, Vilbrun Guillaume-Sam, quando ainda presidia a Câmara dos Deputados, acolheu-o em Porto Príncipe, onde ele estudou no mais prestigioso colégio do país, o Lycée Pétion.5 Em 1899, Price-Mars foi estudar medicina em Paris
graças a um duplo financiamento do Estado haitiano – uma bolsa de estudos
e um posto diplomático – fornecido por seu primo Tirésias Simon Sam, então
presidente da república. Jean Price-Mars logo interrompeu tais estudos quando
outro governo haitiano cortou sua bolsa, mas continuou na Europa como diplomata até 1902, frequentando cursos de antropologia e sociologia em várias instituições parisienses – algo que voltaria a fazer em períodos posteriores.
As trajetórias sociais ascendentes de Price-Mars e sua família fazem parte de
uma transformação histórica mais ampla. Ainda hoje, predomina no Haiti uma
complexa hierarquização segmentar que combina critérios fenotípicos – similares aos daquilo que, falando de outras Américas, Alejandro Lipschutz (1944)
chamou de pigmentocracia e Alice Walker (1983), de colorismo – com elementos de classe social, nível educacional e domínio do francês (ver Hurbon, 1987a;
Thomaz, 2005; Trouillot, M.-R., 1990a). Desde a independência, em 1804, a elite
haitiana, especialmente no centro e no sul do país, era formada em sua maioria
por pessoas menos marcadas social e fenotipicamente como negros – os chamados mulâtres, em francês, ou milat, em haitiano.6 Mas, desde o final do século XIX,
indivíduos como Price-Mars, vistos como mais puramente negros – chamados
noirs, em francês, ou nèg, em haitiano – experimentaram coletivamente uma
notável ascensão social e política a nível nacional, graças, em parte, à expansão
da educação pública e da burocracia estatal (Dubois, 2012; Trouillot, M.-R., 1990a).
5
O ensino médio teve um papel crucial na formação da intelectualidade no Caribe não hispânico
até a criação de universidades a partir de meados do século XX. O Lycée Pétion desempenhou
no Haiti o papel que tiveram o Lycée Schoelcher na Martinica e o Queen’s Royal College em
Trinidad e Tobago.
6
Ao longo do texto utilizo o termo “haitiano” para designar a língua falada pela imensa maioria da população do Haiti. Não utilizo os autônimos haitianos ayisyen, kreyòl, ou kreyòl ayisyen
porque isso reproduziria a ideia de excepcionalidade dos idiomas crioulos (ver, por ex., DeGraff,
2005; Mufwene, 2015). Sobre as complexas questões político-linguísticas no Haiti, ver, por ex.,
Schieffelin e Doucet (1994) e Spears e Joseph (2010).
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O tio haitiano da antropologia contemporânea
Mais individualmente, Price-Mars ganhou proeminência durante a ocupação do Haiti pelos Estados Unidos, de 1915 a 1934. No contexto da expansão neocolonial deste país na bacia do Caribe, os marines agiram nesse período como
“agentes coloniais” (Dubois, 2012, p. 233) no Haiti, governando-o através de arranjos institucionais como uma nova constituição, eleições fraudulentas, um parlamento com poucos poderes e presidentes manipulados. John D. Kelly (2006)
compara esse tipo de domínio indireto exercido globalmente pelos Estados Unidos às regras do beisebol – esporte, aliás, que os norte-americanos popularizaram no Caribe. Mas o caráter delegativo do governo estadunidense do Haiti não
suavizava sua brutalidade racista. A ocupação representou a perda temporária
da soberania nacional, gerou um imenso choque para todas as classes, e é vista
até hoje como um grande trauma coletivo (Alexis, 2013; Dubois, 2012).
Empobrecidos e submetidos ao trabalho forçado (apresentado como uma
forma de imposto), os camponeses se revoltaram nos anos iniciais da ocupação,
sobretudo no norte e no centro do país, e foram cruelmente reprimidos. Já a
classe média e a elite urbanas resistiram ao domínio norte-americano através
de uma efervescência nacionalista nos campos intelectual e cultural. Sua agitação se contrapunha, em parte, às imaginações racistas criadas e disseminadas pelos ocupantes, que tentavam justificar sua intervenção representando o
Haiti como uma terra bárbara, primitiva, despreparada para o autogoverno e
marcada pela violência, tirania, superstição, bruxaria e canibalismo (Hurbon,
1987b; Polyné, 2013).
Uma das respostas haitianas a tais visões foi o movimento indigéniste (Déus,
2020; Perry, 2017). Centrado na Revue Indigène, periódico fundado em 1927, esse
movimento buscava resgatar e revalorizar a cultura popular haitiana e seu
legado africano através da produção intelectual e artística. Michel-Rolph Trouillot (1993, p. 30) caracteriza o indigénisme como uma “superposição histórica”
de diversas orientações artísticas, cívicas e políticas, muitas vezes contraditórias entre si, mas unidas por seu “nacionalismo cultural”; mais criticamente,
descreve o movimento como “um jogo, um privilégio mundano” (Trouillot, M.-R.,
1993, p. 35), cujos protagonistas eram jovens haitianos privilegiados que tinham
estudado na França e viviam em Porto Príncipe.
Embora já não fosse tão jovem, Jean Price-Mars foi uma figura central nessa
efervescência cultural e política. Enquanto retomava e concluía seus estudos
de medicina e, em seguida, exercia a profissão, levou a cabo uma incansável
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campanha pública contra o domínio estadunidense. Publicando artigos na
imprensa e proferindo palestras em teatros e associações de elite, Price-Mars
ganhou fama e prestígio por sua oratória carismática e sua escrita envolvente.
Sua atuação institucional no período também foi notável: lecionou no Lycée
Pétion de 1918 a 1930; foi membro ativo da principal organização de resistência
à ocupação, a Union Patriotique; e cofundou e dirigiu o Institut d’Histoire et
Géographie d’Haïti.
Foi como parte desse ativismo nacionalista sob a ocupação que Price-Mars
publicou seus dois livros mais influentes: La vocation de l’élite, de 1919 (A vocação da elite), e Ainsi parla l’oncle, de 1928. Nas próximas seções discutirei o argumento e o impacto desses livros, especialmente do segundo, mas adianto que
seu sucesso contribuiu para gerar no Haiti uma “veneração religiosa” (Shannon,
1996, p. 70) em torno de seu autor, sobretudo por parte da juventude indigenista,
e para que ele se consolidasse como uma referência política e intelectual essencial para o país.
Apesar de derrotado em sua candidatura à presidência da república em
1930, Price-Mars continuou sua exitosa carreira diplomática e política até
encerrá-las em seu octogésimo aniversário, celebrado como um evento público
(Paul; Fouchard, 1956; Trouillot, H., 1956). No mesmo ano, 1956, chegou à presidência do Haiti outro popular médico e etnógrafo: François Duvalier. Já idoso,
Price-Mars manteve com a ditadura duvalierista uma relação controversa que
o escritor Dany Laferrière (2009b, p. 257) descreveu como um pacto de “silêncio ensurdecedor”. Enquanto Duvalier reivindicava Price-Mars, sem seu beneplácito, como uma inspiração ideológica,7 o Tio não criticava nem defendia
7
O movimento liderado por François Duvalier era chamado de noirisme. Como observado por
Michel-Rolph Trouillot (1990a, p. 121), o noirisme era “uma ideologia estritamente política” que
defendia o controle do Estado haitiano por pessoas de fenótipo visto como mais puramente
negro (nèg), em contraposição a pessoas de fenótipo visto como mais distante da negritude
(milat). Simplificando uma realidade mais complexa, o noirisme apresentava os nèg como componentes das massas pobres do país e os milat como membros da elite social e política. Ainda
segundo Trouillot, o caráter político e racialista do noirisme o diferencia do indigénisme e das
ideias de Price-Mars, embora este fosse reivindicado pelos noiristes como uma importante fonte
de inspiração. Trouillot nota, ademais, uma interface assimétrica entre os dois movimentos: “Se
a maioria dos escritores indigenistas não era noiriste, a maioria dos noiristes eram indigenistas”
(Trouillot, M.-R., 1990a, p. 132).
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O tio haitiano da antropologia contemporânea
publicamente o regime, apesar de ter agradecido em público a pensão especial
que Duvalier lhe concedeu em 1960 (Byron, 2014; Laferrière, 2009b).
Mais diretamente relevante para este artigo é a atuação de Price-Mars
como antropólogo. Ainsi parla l’oncle lançou as bases da escola etnológica
haitiana, uma das primeiras escolas antropológicas a se consolidar fora das
grandes potências globais (Byron, 2014; Rémy, 1987; Trouillot, M.-R., 1986).
Voltada para os estudos da religião e da cultura camponesas do país, essa
escola foi, em grande medida, produto das pesquisas, do ensino e da liderança institucional de Price-Mars. Além de numerosos livros e artigos (por
ex., Price-Mars, 1939, 1954b, 1954c, 1962; para uma bibliografia exaustiva, ver
Hoffman, 2009), ele contribuiu para o desenvolvimento da antropologia haitiana como cofundador do Institut d’Ethnographie, em 1941; docente e presidente do mesmo até 1947; tutor e colaborador de antropólogos haitianos
e estrangeiros; e reitor da Université d’Haïti 8 de 1956 a 1960 (Byron, 2014;
Magloire; Yelvington, 2005).
Assim escreveu o Tio: clivagem e desvio
Incorporando a fala de um entrevistado, o historiador Hénock Trouillot (1956,
p. 23) descreve uma rotina de Jean Price-Mars nos anos 1920:
Quando chegava a tarde, o Dr. Price-Mars montava seu cavalo alazão e se dirigia
às planícies ou às montanhas dos arredores. “Ele abordava os camponeses que
encontrava como se fossem velhos conhecidos […] As camponesas recebiam conselhos e pequenos presentes em troca de sua disponibilidade em responder às
perguntas que o Mestre lhes fazia. As gaguères [rinhadeiros] lhe eram familiares,
e os hounforts [templos de vodu] também. Suas conversas nas ajoupas (cabanas
de camponeses) não terminavam antes de o sol se pôr.” E, de noite, antes do adormecer, as notas se acumulavam… É assim que nasceria, alguns anos depois, Ainsi
parlait l’oncle, uma das obras-primas do Dr. Price-Mars.
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Criada em 1942, essa universidade foi renomeada Université d’État d’Haïti em 1960.
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Essas jornadas ao campo e de campo, em que Price-Mars exercia tanto a
medicina quanto a pesquisa etnográfica, tinham como ponto de partida e de
retorno sua casa de Petyonvil.9 Boa parte da elite do Haiti vivia então nesse
subúrbio situado nos morros que dominam a cidade baixa e costeira de Porto
Príncipe. O trânsito diário do Tio entre o núcleo urbano das classes altas e o
empobrecido mundo camponês ligava mais do que duas paisagens e duas classes sociais. Segundo o próprio Price-Mars (2013, p. 98-99), o Haiti era marcado
por uma “funesta separação da elite e da multidão de tal forma que elas formam atualmente duas nações dentro da nação, tendo cada uma seus próprios
interesses, tendências e fins”.
Price-Mars atravessava quase diariamente a clivagem, indissociavelmente
social e cultural, que seus textos denunciavam. De um lado, estava uma reduzida elite urbana, francófona, europeizada, letrada e católica; de outro, uma
imensa massa camponesa, monolíngue em haitiano, com uma cultura oral própria e praticante de vodu. O Tio dedicou grande parte de sua atuação à análise
e superação dessa profunda divisão, que ele via como a questão intelectual e
política mais importante do Haiti. Ele começou a analisá-la criticamente em
suas conferências durante a ocupação estadunidense, reunidas como livro em
1919 sob o título La vocation de l’élite. Essas palestras e esse livro instavam seu
público, a elite haitiana, a sair de sua apatia diante do domínio estrangeiro e a
liderar a reconstrução nacional.
A tal objetivo, aparentemente elitista, subjazia um feroz ataque à elite como
“um organismo estrangeiro, sobreposto ao resto da nação e vivendo em relação
ao povo em um estado equívoco de parasitismo” (Price-Mars, 2013, p. 91; ver
Alemán Rodríguez, 2015). Ademais, Price-Mars acusava a elite de ter permitido
a ocupação do país devido à superficialidade de seu orgulho nacional e a sua
distância e seu desconhecimento dos camponeses. A superação da clivagem
sociocultural, clamava o Tio, era imprescindível para reconquistar a soberania
nacional e criar uma sociedade integrada e democrática.
Esse projeto de reforma sociocultural informa todo o trabalho antropológico de Jean Price-Mars. Em suas excursões ao campo, ele produzia conhecimento etnográfico para pô-lo a serviço do projeto cívico de conhecer e valorizar
9
Em francês, Pétion-Ville. Então separada fisicamente de Porto Príncipe, o município (commune)
é hoje totalmente integrado à metrópole.
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O tio haitiano da antropologia contemporânea
a cultura nacional, conectar a elite e as massas, e possibilitar, nos termos de
Jhon Picard Byron, (2014, p. 34, grifo do autor) o “estabelecimento de uma cultura compartilhada por essas duas grandes categorias da sociedade haitiana”.
Um dos maiores passos de Jean Price-Mars em direção a isso foi a escrita
e a publicação, em 1928, de Ainsi parla l’oncle. Retomando argumentos anteriores, ele abre o livro criticando a elite haitiana por sua obsessão em imitar a
cultura ocidental, especialmente a francesa. É o que Price-Mars (1954a, p. 10,
grifo do autor) chama de “bovarismo coletivo, isto é, a faculdade que uma sociedade se atribui de conceber-se como algo que ela não é”. Embora essa elite se
reivindicasse, desde 1804, como redentora mundial da raça negra, ela o fazia,
ironicamente, de um modo mimético e eurocêntrico, orgulhando-se de sua ocidentalização. E,
à medida que nos esforçávamos por nos crermos franceses “de cor”, desaprendíamos a ser simplesmente haitianos, ou seja, homens nascidos em condições
históricas determinadas, que recolheram em suas almas, como todos os outros
agrupamentos humanos, um complexo psicológico que dá à comunidade haitiana sua fisionomia específica. (Price-Mars, 1954a, p. 10).
Ainsi parla l’oncle se dedica a localizar tal especificidade nacional haitiana na
cultura camponesa, a demonstrar suas origens africanas e a promover o valor
tanto daquela cultura como destas origens. Para isso, o livro segue uma sequência reveladora. Depois de um prefácio, os dois capítulos iniciais versam, respectivamente, sobre o “folclore haitiano” e “as crenças populares”. Seguem-se três
capítulos sobre o continente africano: um sobre suas culturas, outro sobre
suas antigas relações com “o mundo exterior” e o terceiro sobre suas religiões. Retornando ao Haiti, os três capítulos finais examinam, sucessivamente,
“os sentimentos religiosos das massas haitianas”, a relação entre “a literatura e
o folclore”, e “a família camponesa”.
Começando no Haiti e voltando a ele depois de um percurso pela África, a
organização de Ainsi parla l’oncle reproduz textualmente a trajetória histórica
apontada pelo intelectual trinitário C. L. R. James (2005, p. 402): “O caminho
para a identidade nacional caribenha passava pela África.” O mesmo processo
foi descrito pelo escritor martinicano Édouard Glissant (1997, p. 56) como um
benéfico “desvio”, através do qual os pensadores caribenhos voltaram-se para
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a África para superar seu eurocentrismo e, dessa forma, poder realizar um
“fecundo retorno” a seu lugar no mundo – as Antilhas.10
Os principais objetivos do desvio de Ainsi parla l’oncle são mostrar que a
África é a “pátria de origem” (Price-Mars, 1954a, p. 222) da grande maioria das
tradições populares haitianas e conclamar os haitianos a se orgulharem desse
“patrimônio ancestral” (Price-Mars, 1954a, p. 237). Esse gesto se verifica até em
sua tácita ressignificação de expressões corriqueiras – como “velho continente”
para se referir à África, e não à Europa; e “nossos ancestrais” para se referir aos
africanos, e não – como queria o mimetismo da elite – aos gauleses.
Para valorizar a herança africana, Price-Mars retoma e atualiza, citando
trabalhos etnográficos contemporâneos, o argumento antirracista de autores
haitianos anteriores, como Anténor Firmin (2004), de que a África produziu
importantes civilizações. Além disso, o Tio escapa da imaginação ocidental
de uma África isolada, a-histórica e racializada (Appiah, 1992; Mbembe, 2001;
Mudimbe, 1988) ao apontar, por exemplo, que até a natureza do continente
passou por transformações históricas em suas interações com os humanos
(Price-Mars, 1954a, p. 84-87) e que, antes do tráfico de escravizados, os africanos
mantiveram relações intensas e saudáveis com a Índia, o Oriente Médio e a
Europa (Price-Mars, 1954a, cap. IV). E, o que é mais impressionante para sua
época, ele reitera várias vezes que os grupos étnicos africanos são produto de
uma longa e complexa mistura racial. Aliás, todas as vezes em que aparecem
em Ainsi parla l’oncle as palavras métissé (mestiço; Price-Mars, 1954a, p. 73, 79, 91)
ou métissage (mestiçagem; Price-Mars, 1954a, p. 80, 88), elas se referem à África,
e não ao Novo Mundo.
Não que Price-Mars ignore a existência de mestiçagem no Haiti; ele apenas evita esse termo para designar o que entende como um efeito da violência sexual colonial. Já no prefácio de Ainsi parla l’oncle, ele critica o sentimento
de superioridade dos milat que ostentam “as ignomínias das promiscuidades
10 Seguindo esse conceito de Glissant, identifico três grandes formas de desvio africano dos intelectuais caribenhos. Na primeira, a viagem à África é literal – seja coletiva, como propugnada
por Marcus Garvey, seja individual, como realizada por Frantz Fanon. Na segunda, o desvio é
poético – como na deliberada idealização da África por Aimé Césaire e nos poemas de Nicolás
Guillén e Luis Palés Matos. A terceira forma é a etnográfica, realizada por antropólogos como
Fernando Ortiz e Price-Mars.
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coloniais, as vergonhas anônimas dos encontros casuais” como se fossem “títulos de consideração e glória” (Price-Mars, 1954a, p. 11).
Price-Mars desenvolve esse tema no capítulo sobre a família camponesa –
não por acaso apresentado originalmente como palestra em um clube feminino de elite. Ali ele afirma que o parentesco camponês deve ser entendido
como resultado da fragmentação social causada pela escravidão e da exploração sexual das mulheres negras tornadas amantes dos colonizadores – prática colonial conhecida como plaçage, que o Tio descreve como a “brutal lei do
concubinato” (Price-Mars, 1954a, p. 236). A centralidade da figura da madrinha
entre os camponeses, por exemplo, tem, segundo ele, suas origens no fato de
que a criança negra costumava ser “arrancada de sua mãe, cujo serviço era
requerido pela exploração” (Price-Mars, 1954a, p. 235).
Assim escreveu o Tio: retorno e poder
A visão de Price-Mars sobre o parentesco exemplifica meu argumento geral
sobre Ainsi parla l’oncle: não há, nesse livro, cultura sem história, nem história
sem poder. Numa época em que as antropologias britânica e norte-americana
consolidavam seus respectivos focos nas noções de sociedade e de cultura
– mutuamente separadas, a-históricas, purificadas de desigualdades político-econômicas, e construídas de forma a apagar o colonialismo (Asad, 1973; Leach,
1986; Stocking Jr., 1994; Trouillot, M.-R., 2003) –, Price-Mars deixava claro que
uma análise antropológica do Haiti era impossível sem a consideração da história colonial, de conflitos de classe e do racismo global.
Como nota Jhon Picard Byron (2014), o Tio antecipa a perspectiva dos estudos pós-coloniais quando denuncia que pouco havia mudado no Haiti mais
de um século depois do fim do colonialismo e da escravidão. A separação e a
desigualdade entre as elites e as massas, para Price-Mars, reproduzia o colonialismo: “Houve apenas uma substituição de mestres. […] O status social permaneceu inalterado” (Price-Mars, 1954a, p. 115).
Além disso, sua denúncia da clivagem haitiana mostra que os diversos elementos culturais herdados do colonialismo não são harmônicos e consensuais,
mas estão sempre em conflito, em “uma luta surda ou áspera cujo prêmio final
é o domínio das almas. Mas é sobretudo nesse domínio que o conflito reveste
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aspectos diferentes se o campo de batalha se levanta na consciência das multidões ou na das elites” (Price-Mars, 1954a, p. 16). O legado colonial, segundo
Price-Mars, é simultaneamente social e cultural, atravessado por assimetrias e
conflitos em que significado, história e poder são inextricáveis.
Isso fica claro também nas análises dos outros dois tópicos que Price-Mars
mais discute na cultura camponesa: o folclore e o vodu. Quanto ao primeiro,
ele adota a definição do francês Paul Sébillot, para quem o folclore agrupa costumes originalmente comuns a “um povo” que, uma vez abandonados pelas
classes altas, “se tornaram as superstições e tradições das classes baixas”; o
folclore é, então, “a história não escrita dos tempos primitivos” (Sébillot apud
Price-Mars, 1954a, p. 13-14). Apesar de seu viés evolucionista, o que sobressai na
passagem citada pelo Tio é a concepção diacrônica do folclore como uma forma
de consciência histórica subalterna. Mais uma vez, cultura, história e poder
aparecem como indissociáveis.
Como exemplo das interpretações folclóricas mais concretas do Tio, evoco
a que ele faz dos personagens mais recorrentes dos contos populares haitianos,
Oncle Bouqui e Ti Malice (literalmente, Tio Bouqui e Pequeno Malícia). Price-Mars interpreta o primeiro, sempre alvo da malandragem do segundo, como
um símbolo do escravizado “recentemente importado da África” e Ti Malice
como uma representação do escravizado nascido na colônia francesa de Saint-Domingue11 (Price-Mars, 1954a, p. 21). Como aponta Imani Owens (2015), o
folclorismo do Tio atribui aos camponeses não apenas autenticidade, mas também historicidade.
Mas não se trata de uma historicidade qualquer. Para usar uma distinção
feita por Michel-Rolph Trouillot (1995), os subalternos aparecem, nessa leitura dos contos por Price-Mars, tanto como agentes históricos (os escravizados
representados pelos contos) quanto como narradores históricos (os camponeses
que contam os contos). Mais que isso, considerando a desigualdade que existia
na colônia entre os escravizados nascidos em Saint-Domingue e os trazidos da
África, bem como o virulento conflito armado entre esses dois grupos durante
a Revolução Haitiana (Dubois, 2005; Knight, 2000; Trouillot, M.-R., 1995),
11 Utilizo o nome francês do território porque se refere a um contexto colonial e porque seu equivalente em haitiano (Sendomeng) é mais comumente utilizado para designar a atual República
Dominicana.
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os contos populares são, para Price-Mars, uma forma de crítica social e histórica, que discute simbolicamente assimetrias e conflitos, inclusive entre os próprios explorados. Mas os contos não são as únicas práticas populares que o Tio
enxerga como comentários poéticos e morais sobre poder e resistência. Para
citar outro exemplo vindo do folclore, ele interpreta os cantos populares como
atos de crítica social: “O povo haitiano […] canta no furor dos combates, sob o
granizo das metralhas e na luta das baionetas. […] Canta o esforço muscular e o
descanso após o trabalho” (Price-Mars, 1954a, p. 31).
A imbricação entre cultura, história, poder e resistência é fundamental também para a análise que Price-Mars faz do vodu, perseguido e reprimido pela
Igreja católica e pelo Estado pós-colonial já havia muitas décadas. Contra os
preconceitos de classe dos haitianos urbanos, que viam nele uma confusão
de superstições e feitiços a ser combatida, o Tio dedica várias páginas a argumentar que “o vodu é uma religião” (Price-Mars, 1954a, p. 45). Mobilizando a
definição e a análise de Émile Durkheim (1912), ele mostra que, sendo baseado na oposição entre o sagrado e o profano, o vodu produz uma moralidade e
uma solidariedade próprias. E, mesmo sem citar a “efervescência coletiva” de
Durkheim de forma explícita, Price-Mars (1954a, p. 168) descreve com particular
atenção os rituais do vodu, sobretudo “o delírio extático, o sacrifício ritual, a
dança litúrgica”.
A interpretação do vodu por Price-Mars inicia a versão haitiana da produção antropológica das “religiões afro-americanas”, cujo equivalente cubano
é magistralmente discutido por Stephan Palmié (2013). Comparando fontes
secundárias africanistas e sua etnografia local para “descobrir” de qual região
e grupo da África “nos vem o vodu” (Price-Mars, 1954a, p. 50), o Tio conclui que
ele é “um sincretismo de crenças, um compromisso do animismo daomeano,
congolês, sudanês e outros” (Price-Mars, 1954a, p. 56), em que predominam elementos culturais vindos do Daomé.
O esmero de Price-Mars em unir várias representações e práticas populares em um objeto coerente reconhecível como “religião” talvez possa ser lido
também como um dos esforços antropológicos, devidamente criticados por
Talal Asad (1993), em purificar essa categoria. Contudo, definitivamente não
se pode aplicar ao Tio a crítica que Asad (1993, p. 29) faz, com razão, a outros
antropólogos, cuja “busca teórica por uma essência da religião nos convida a
separá-la conceitualmente da esfera do poder”. Ainsi parla l’oncle, ao contrário,
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realiza um duplo movimento simultâneo: por um lado, enfatiza que o vodu
deve ser entendido como religião; por outro, demonstra sua inseparabilidade
analítica de processos políticos e econômicos. Para o Tio, no vodu – como no
folclore e no parentesco – cultura, história, e poder são inextricáveis.
Isso é notável até na resposta que Price-Mars dá à busca, à primeira vista
pouco excepcional para sua época, das origens africanas da religião popular
haitiana. Segundo o Tio, os daomeanos deixaram uma marca maior na conformação do vodu não por sua suposta predominância demográfica, mas porque
“exerceram simultaneamente o poder político e religioso” (Price-Mars, 1954a,
p. 61) entre os diversos grupos étnicos trazidos para o Haiti. Quanto ao “poder
religioso”, ele explica, a religião daomeana fornecia uma base linguística e cosmológica comum através da qual diversas religiões puderam comunicar-se e,
portanto, amalgamar-se em um “sincretismo” no Haiti.
Mas, continua Price-Mars, esse poder simbólico não explica, por si só, a
primazia dos daomeanos no vodu. Esta se deve também ao papel de liderança
que eles tiveram nas insurreições contra a escravidão: a predominância religiosa dos daomeanos se deve a sua “dupla influência mística”, que fez deles “ao
mesmo tempo condutores do povo e doutores da fé” (Price-Mars, 1954a, p. 61). E,
se o Tio insiste que o vodu é produto tanto de uma mistura cultural quanto de
uma liderança rebelde, é porque, para ele, trata-se de um fenômeno tão “político” quanto “religioso”. O vodu é, em Ainsi parla l’oncle, uma forma de resistência indissociavelmente social, cultural e política.
E, bem como a resistência, a dominação toma formas religiosas no livro,
pois sua análise do cristianismo colonial também mostra as intrínsecas relações entre cultura, história e poder. Para Price-Mars (1954a, p. 53), a religião
cristã não fora apenas um instrumento de poder dos colonizadores franceses,
mas uma forma de dominação colonial em si mesma, uma “manifestação da
violência pela qual [o africano] era obrigado a confessar outros deuses […] que
se apresentavam […] como mensageiros de sofrimentos imediatos ou distantes”.
A essa dominação religiosa, argumenta o Tio, os escravizados responderam
com várias formas de resistência religiosa. A própria religião colonial oferecia brechas que possibilitavam aquelas pequenas subversões que James Scott
(1985) denomina “formas de resistência cotidiana”. Os escravizados encontraram no cristianismo “a ocasião de brincar de astúcia com o adversário e subtrair
uma parcela de liberdade ao duro labor cotidiano”, refastelando-se de comida
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O tio haitiano da antropologia contemporânea
e bebida nas festas religiosas e “batizando-se várias vezes para ter mais ocasiões de se divertir” (Price-Mars, 1954a, p. 55).
Muito mais importante que isso, segundo Price-Mars, era o vodu como
resistência à brutal exploração e fragmentação sociocultural dos escravizados
de Saint-Domingue. Em suas cerimônias secretas, dominadas ritualmente
pelos daomeanos, eles constituíam uma nova solidariedade, reconheciam as
semelhanças entre as diversas crenças que trouxeram do velho continente, e
as reinventavam em uma mistura criativa. Nas palavras do Tio, “a organização
das sociedades secretas, cujas reuniões se realizavam no fundo dos bosques,
durante a noite, para o livre exercício dos cultos” gerou “uma verdadeira comunidade religiosa, nova sob vários aspectos, filha do meio e das necessidades do
momento” (Price-Mars, 1954a, p. 56). Em outras palavras, o vodu era uma reconstituição sociocultural dos negros escravizados.
Nesse tipo de resistência religiosa, seus praticantes inicialmente não
questionavam aberta e diretamente as estruturas do poder colonial. Porém,
segundo Price-Mars (1954a, p. 56), “essas reuniões obtiveram, com o tempo, um
caráter francamente político”, quando os rituais noturnos se tornaram ocasiões
de organização de revoltas. O vodu ganhou assim um duplo caráter de resistência: como reorganização sociocultural e como instrumento estratégico de
rebeliões. Em termos gramscianos, se poderia dizer que o vodu começou como
uma “guerra de posição”, em que o poder é combatido no campo cultural, para
depois facilitar também uma “guerra de manobra”, que combate abertamente
estruturas políticas e econômicas (Gramsci, 1971, p. 229).
“Guerra”, no segundo caso, é mais que uma metáfora. Price-Mars argumenta
que o caráter de resistência do vodu colonial culminou no famoso juramento
(sèman) de Bwa Kayiman12 de 1791. Liderada pelo africano escravizado Dutty Boukman, essa cerimônia de vodu inaugurou uma revolta que, logo transformada em
revolução, poria fim à escravidão e ao colonialismo. A indissociabilidade entre
“religião” e “política” é notável nas palavras do juramento solene que o Tio atribui
ao líder da cerimônia: “O deus dos brancos ordena o crime, o nosso requer boas
ações. […] Quebrem a imagem do deus dos brancos que tem sede de nossas lágrimas; escutem em nós mesmos o chamado da liberdade!” (Price-Mars, 1954a, p. 54).
12 Em francês, Bois-Caïman.
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Assim se citou e não se citou o Tio
No obituário que escreveu sobre Jean Price-Mars, Roger Bastide (1968, p. 75)
afirmou que o Tio fora um dos fundadores da “ciência afro-latino-americana”
e que esta viria a ter um “lugar eminente” na “antropologia contemporânea”.13
Se com isso Bastide quis dizer que o lugar eminente daquela “ciência” se estenderia a seu fundador haitiano, sua profecia estava tão certa quanto errada. Por
um lado, Price-Mars antecipou teorias posteriores que afirmam e investigam as
relações intrínsecas entre cultura, história e poder. Por outro lado, ele continua
sendo lido, citado e reconhecido como um pensador relevante para as antropologias do Haiti, do Caribe, da diáspora africana e das religiões afro-americanas,
mas não para a teoria antropológica em geral.
Para deixar claro o tipo de antropologia de que Price-Mars foi pioneiro, remeto
à análise de Michel-Rolph Trouillot (2003) sobre a guinada teórica dada pela disciplina a partir dos anos 1970. Para ele, essa grande virada colocou a história “vigorosamente no centro da prática antropológica” e “o poder – até então um oximoro
teórico fora da área reservada da antropologia política – se tornou o mediador-chave da nova relação entre passado e presente” (Trouillot, 2003, p. 120). Dessa
forma, segundo o autor, “palavras até então ausentes do vocabulário-padrão da
antropologia – como colonialismo, racismo, imperialismo, dominação, ou resistência” se tornaram comuns na disciplina (Trouillot, M.-R., 2003, p. 120).
A nova perspectiva tornou obsoletas as clássicas “ficções tribais” criticadas
por Edmund Leach (1986), que expurgavam de sua análise a modernidade, a
desigualdade, o conflito e o contexto global. A separação analítica entre sociedade e cultura também foi abandonada, e a antropologia se tornou verdadeiramente sociocultural, dedicada a estudar as relações entre formações simbólicas
e culturais, por um lado, e processos políticos e econômicos, por outro – isto é,
as relações entre significado e poder.
Embora, ironicamente, essa concepção geral da antropologia esteja atualmente
menos presente em certas vertentes da disciplina feitas no Sul Global, ela marca
tão profundamente a antropologia central que é difícil assinalar seus principais
13 Curiosamente, o obituário é datado do ano anterior à morte de Price-Mars. Isso se deve à publicação tardia do número em que o obituário veio a público (Bastide, 1968), e não a um possível
dom profético do francês.
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O tio haitiano da antropologia contemporânea
autores. Por isso, além dos já citados Michel-Rolph Trouillot e Talal Asad, menciono aqui apenas a consolidação da antropologia do colonialismo (por ex., Cohn,
1987; Stoler, 1995) e quatro autores que, oriundos de regiões periféricas, foram
fundamentais para a profunda transformação da antropologia do Norte Global:
Michael Taussig (1980, 1987, 1997), Arjun Appadurai (1996, 2013), Jean Comaroff e
John Comaroff (Comaroff, 1985; Comaroff; Comaroff, 1991, 1992, 2001, 2009).
Essa guinada histórico-política da antropologia envolveu dois processos
específicos que interessam diretamente a este artigo. O primeiro foi a incorporação ao repertório disciplinar – graças ao intenso diálogo com antigas tradições intelectuais e com emergentes campos transdisciplinares – de pensadores
negros como Frantz Fanon, Édouard Glissant, Stuart Hall e Paul Gilroy, para
citar alguns de origem caribenha. O segundo processo foi o maior destaque que
o Caribe ganhou na disciplina, deixando de ser uma região marginal e problemática para ela (ver Mintz, 1966; Trouillot, M.-R., 1992) para se converter em
local etnográfico privilegiado de teorização sobre temas globais como o neoliberalismo (Gregory, 2007), revolução (Scott, D., 2014) e soberania (Bonilla, 2015).
Esses dois processos tornam ainda mais problemática a duradoura circunscrição do trabalho de Jean Price-Mars a subáreas regionais e temáticas
da antropologia. Tal marginalização tem predominado fora do Haiti desde que
Ainsi parla l’oncle foi traduzido para o inglês, 55 anos depois de sua publicação
original (Price-Mars, 1983). A resenha da tradução na revista American Anthropologist, por exemplo, ressaltou sua relevância para “qualquer um com interesse no Caribe ou na África” e para entender as “ideologias da négritude, do
panafricanismo, ou do black power” (LaFlamme, 1985, p. 963). A resenha publicada em American Ethnologist limitou ainda mais o interesse do livro, descrevendo-o como “de grande valor para todo acadêmico interessado no estudo
do Haiti e do Caribe” (Rémy, 1987, p. 575). De forma similar, a resenha escrita
por Michel-Rolph Trouillot (1986) para Research in African literatures salientou a importância de Price-Mars como pioneiro do movimento da négritude14
14 A négritude foi um movimento artístico e literário francófono desenvolvido nas décadas de 1930
e 1940, que buscava valorizar tradições culturais africanas e afrodiaspóricas. Seus três líderes
mais destacados foram o martinicano Aimé Césaire, o franco-guianense Léon Damas e o senegalês Léopold Senghor. Embora a négritude não tivesse o caráter nacionalista e etnográfico dos
estudos de Price-Mars, este foi enaltecido como precursor do movimento por seus principais
integrantes (ver Senghor, 1956).
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e dos estudos caribenhos e afro-americanos, mas não como um teórico de interesse e alcance gerais.
Mais significativamente, Michel-Rolph Trouillot contribuiu para o relativo
silenciamento de Price-Mars em seu clássico State against nation. Sua interpretação da história pós-colonial do Haiti como uma “crescente disjunção entre
as sociedades política e civil” (Trouillot, M.-R., 1990a, p. 15) é flagrantemente
inspirada no argumento de Price-Mars sobre a clivagem sociocultural entre as
“elites” e as “massas”. Contudo, o trabalho cita o Tio quase sempre como uma
fonte de informações empíricas específicas (Trouillot, M.-R., 1990a, p. 88, 95,
120), discutindo-o detidamente apenas como figura do movimento indigéniste
(Trouillot, M.-R., 1990a, p. 130-132). Esses usos de Price-Mars por Michel-Rolph
Trouillot refletem a maneira como o Tio tem sido discutido pela intelectualidade haitiana: um pensador imprescindível para a compreensão do Haiti, um
articulador fundamental da imaginação nacional e um precursor da négritude (ver, por exemplo, Byron, 2014; Depestre, 1968; Goyatá, 2019; Izzo, 2019;
Laferrière, 2009a; Paul, Fouchard, 1956; Trouillot, H., 1956).
Obviamente, Price-Mars é tudo isso. E tudo isso não é pouco. Mas o que
saliento aqui é que ele também fez contribuições teóricas para a antropologia
que raramente são reconhecidas como tal e cujo valor ultrapassa o Caribe e o
mundo afro-atlântico. À parte as observações pontuais que citei, de que o Tio
antecipa a teoria pós-colonial (Byron, 2014) e concede historicidade aos camponeses (Owens, 2015), os poucos trabalhos que afirmam a dimensão teórica
inovadora da obra de Price-Mars – em um esforço semelhante, mas de uma
maneira distinta e complementar aos deste artigo – vêm, significativamente,
de intelectuais brasileiros (Marques; Kosby, 2020; Thomaz, 2011).
Mesmo a mais recente coletânea de estudos sobre Price-Mars (Joseph; Saint
Paul; Mezilas, 2018) discute detalhadamente sua contribuição para os estudos
haitianos, afrodiaspóricos e panafricanistas, mas não reconhece aquilo que
aponto neste artigo: o pioneirismo da visão do Tio sobre as relações entre cultura, história e poder. Isso indica que o reconhecimento de Price-Mars como
teórico não se ampliou mesmo quando a antropologia passou a se voltar para
temas e ideias explorados por ele, a reconhecer a importância de autores negros,
e a conceder status teórico às etnografias do Caribe.
Esse descompasso é explicado em parte pela divisão global do trabalho
intelectual que predominou ao longo do século XX (e que persiste ainda hoje),
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em que intelectuais do Sul Global produziam conhecimento empírico sobre
seus países, enquanto acadêmicos do centro do sistema mundial tanto realizavam pesquisas empíricas sobre a periferia quanto produziam teorias de caráter generalizante. Tradicionalmente, a hierarquia dessa relação era ainda mais
acentuada, como no caso de Price-Mars, quando desigualdades raciais se acrescentavam às origens geográficas dos pesquisadores.
Exemplar dessa assimetria é a relação que Jean Price-Mars manteve com
dois grandes nomes dos estudos afro-atlânticos, Melville Herskovits e Roger
Bastide. Ambos, como convincentemente argumentam Gérarde Magloire e
Kevin Yelvington (2005), usaram em seus trabalhos tanto a pesquisa de Price-Mars quanto os preciosos recursos sociais de que ele dispunha no Haiti. Mas,
apesar da generosidade com que o Tio os ajudou, tanto o francês quanto o
estadunidense pressupunham que “Price-Mars poderia fornecer informações
úteis, e podia até usar sua autoridade para fazer política, mas, nessa divisão do
trabalho, não poderia ser visto como produtor de modelos teóricos dignos de
apreço” (Magloire, Yelvington, 2005, p. 23). Herskovits e Bastide não contribuíram para que Price-Mars obtivesse o que próprio Bastide previa para “a ciência
afro-latino-americana”: um “lugar eminente” na “antropologia contemporânea”.
O facão de dois gumes
Um mesmo objeto, o machete, tem status de símbolo nacional tanto em Cuba
quanto no Haiti, dois Estados antilhanos construídos sobre uma mística revolucionária. Originalmente usado em ambos os países no brutal labor do corte de
cana por negros escravizados, esse tipo de facão (em haitiano, machèt) se tornou
uma arma na luta contra o colonialismo e a escravidão. Ele conecta, portanto,
dois tipos de “revolução” no Caribe: as revoluções açucareiras que implantaram
o sistema de plantation em quase todas suas ilhas e as revoluções populares
que transformaram profundamente duas dessas ilhas. Em Cuba e no Haiti, a
ambivalência do machete fez dele um símbolo da resistência nascida da opressão (Desch-Obi, 2008; Dubois, 2005; Gonçalves, 2017; Ortiz, 2002).
As antropologias nacionalistas têm uma ambivalência semelhante à do
machete: elas contribuem tanto para uma liberdade criativa quanto para
uma prisão intelectual; tanto possibilitam quanto limitam experimentações
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e inovações. Essa ambivalência fica evidente em Ainsi parla l’oncle e sua recepção. Se a missão cívica e nacionalista de Jean Price-Mars lhe permitiu entender
e apontar as inextricáveis relações entre cultura, história e poder, essa mesma
missão o levou a discutir essas relações em uma linguagem particularista que
contribuiu para reduzir o alcance de sua análise. De forma nenhuma quero atribuir todas suas inovações (e limitações) a seu nacionalismo, inclusive porque
poucos antropólogos nacionalistas foram – ou são – tão inovadores quanto Price-Mars. Ao discutir seu trabalho sob esse prisma, procuro entender melhor as possibilidades abertas e os caminhos fechados pelo nacionalismo antropológico.
Desde a guinada construcionista dos estudos do nacionalismo impulsionada pelos livros de Ernest Gellner (1983) e Benedict Anderson (1991) publicados em um mesmo ano (1983), muitos antropólogos e historiadores têm
estudado o papel fundamental desempenhado por intelectuais na produção
de imaginações nacionais ao redor do mundo (por ex. Abu El-Haj, 2001; Duara,
1995; Goswami, 2004; Lomnitz-Adler, 1993; Verdery, 1991). Embora discutam
intelectuais nacionalistas das mais diversas áreas – arqueólogos, críticos
literários, filósofos, geógrafos, etc. –, esses estudos são unânimes em afirmar
a importância das narrativas históricas para o nacionalismo. Se, como argumentou Richard Handler (1988), as nações são sujeitos coletivos abstratos cuja
existência tem de ser continuamente demonstrada, a história é uma forma
privilegiada de dar-lhes realidade. Ao pressuporem a existência do sujeito coletivo cuja trajetória querem contar, as narrativas históricas nacionais, através de
diversas versões e inúmeras iterações, naturalizam tal existência e produzem
tal sujeito imaginado (Bhabha, 1990; Gonçalves, 2015).
Não é surpreendente, então, que, nos países em que a antropologia participou de forma proeminente na construção da imaginação nacional, a disciplina
tenha, desde sua emergência, enfatizado a historicidade. Isso caracteriza o que
Claudio Lomnitz (2001, p. 228) chama de “antropologias nacionais”, “fomentadas por instituições culturais e educacionais voltadas para o desenvolvimento
dos estudos de sua própria nação”. Essas tradições se desenvolveram sobretudo em países da periferia do sistema mundial, cujas numerosas populações
subalternas eram entendidas como localizadas fora da modernidade ocidental
e, assim, como apropriadas para o estudo antropológico (Trouillot, M.-R., 1991).
Se as antropologias do Norte Global foram possibilitadas pelo colonialismo e
pelo imperialismo (Asad, 1973; Cohn, 1987; Stocking Jr., 1994), várias vertentes
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disciplinares da periferia, como as latino-americanas (Gonçalves, 2014; Lomnitz,
2001; Peirano, 1991; Poole, 2008) surgiram de uma missão política nacional que,
como todo nacionalismo, envolvia o imperativo de contar uma história coletiva.
Esse é o caso também da antropologia haitiana. É como parte desses contextos globais e regionais que se deve entender, sem negar suas especificidades
e sua criatividade, o trabalho de Jean Price-Mars – em um gesto similar ao que
ele mesmo fez ao entender as particularidades do Haiti dentro de um contexto
mundial. Não apenas a historicidade de sua análise marca várias antropologias
nacionais, como seu trabalho pedagógico e organizativo se deu nas versões haitianas das “instituições culturais e educacionais” nacionalistas mencionadas por
Lomnitz. Ademais, o pensamento do Tio faz parte de um dos vários movimentos
culturais nacionalistas que se desenvolveram na América Latina e no Caribe
entre as duas guerras mundiais, como o afrocubanismo, o muralismo mexicano,
o modernismo brasileiro e o indigenismo peruano. E, não se deve esquecer, Ainsi
parla l’oncle é uma das tantas expressões de um gênero literário que floresceu na
região: o ensaio de interpretação nacional (Ramos, 2003; Skirius, 2006).
Inserir Price-Mars e Ainsi parla l’oncle nesses contextos históricos, intelectuais, regionais e globais é importante para evitar o “excepcionalismo haitiano”
que Michel-Rolph Trouillot (2020, p. 4) acusa em vários discursos (populares,
governamentais, acadêmicos, etc.) sobre o Haiti: “Quando nos dizem repetidas
vezes que o Haiti é único, bizarro, anormal, esquisito, excêntrico, exótico ou
grotesco, também estão nos dizendo, de diversas formas, que o Haiti é anormal,
irregular e, portanto, inexplicável.” Trouillot assinala que esse excepcionalismo
permeia não apenas as visões pejorativas e racistas sobre o Haiti reproduzidas
desde sua independência, mas também concepções positivas do país que buscam de forma bem-intencionada corrigir tais ideias preconceituosas.
Ao criticar esse excepcionalismo, Trouillot não nega as especificidades do
Haiti. Ao contrário: segundo ele, elas são inegáveis. O erro excepcionalista consiste em atribuir ao Haiti um caráter de aberração que excede as particularidades reconhecidas em outros lugares. Seguindo essa orientação, saliento, por um
lado, que Price-Mars é um dos tantos intelectuais de todas as regiões do globo
que, no esforço por “descobrir” as especificidades de suas “nações”, contribuíram para a produção dessas comunidades imaginadas. Por outro lado, como em
todos os casos semelhantes, a produção intelectual nacionalista de Price-Mars
se deu em um contexto histórico particular.
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As especificidades que possibilitaram as inovações teóricas de Price-Mars
se relacionam à história haitiana nos dois sentidos do termo “história” diferenciados por Michel-Rolph Trouillot (1995): como processo e como narrativa.
O próprio processo histórico haitiano torna dimensões de poder, conflito e
resistência particularmente incontornáveis: o primeiro país moderno de maioria negra surgiu de uma revolução levada a cabo por sujeitos subalternos racializados, em uma colônia baseada em um sistema de exploração extremamente
brutal que está na base do capitalismo global.
A tais processos históricos devem se agregar as narrativas históricas haitianas que, desde o início do século XIX, associavam o orgulho nacional à luta pela
igualdade racial, à denúncia do racismo global, à reivindicação do valor e das
conquistas dos negros de todo o mundo (Antoine, 1981; Byron, 2014; Hurbon,
1987a; Trouillot, H., 1956). Tais ideias foram articuladas por importantes intelectuais haitianos que tiveram grande influência sobre o Tio, especialmente
Anténor Firmin (2004) e Hannibal Price (2012). Mas, para além de formulações
acadêmicas, Ainsi parla l’oncle foi informado também por narrativas nacionalistas que já então permeavam toda a cultura pública haitiana, centradas na luta
contra a escravidão e na Revolução Haitiana.
Um bom exemplo é o juramento de Bwa Kayiman. Como mostra Léon-François Hoffman (1992, p. 283), esse evento (de veracidade histórica controversa)
ganhou status mitológico já no século XIX, e as palavras que Price-Mars atribuiu a Boukman em seu livro são quase idênticas às dos versos publicados pelo
poeta Hérard Dumesle em 1824, “a primeira composição séria” publicada em
haitiano. Mas, ao interpretar essa cerimônia religiosa, Price-Mars inverteu a
direção da relação subjacente às narrativas nacionalistas anteriores. Se estas
implicitamente reconheciam, ao enaltecer o juramento, que a Revolução Haitiana não se podia entender sem o vodu, o Tio mobilizou o evento para mostrar
que tampouco se poderia entender o vodu sem a Revolução Haitiana – ou seja,
que não se poderia entender uma forma cultural sem se considerar uma história na qual o poder e o conflito têm papel fundamental.
Assim, o nacionalismo haitiano possibilitou as inovações de Price-Mars,
convidando-o não apenas a fazer uma antropologia intrinsicamente histórica, mas também a introduzir nela questões como o racismo, o colonialismo,
o poder, o conflito e a resistência – processos e fenômenos que as antropologias centrais só incorporariam a partir dos anos 1970 e aos quais algumas
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antropologias nacionais não dão, ainda hoje, a devida importância. Graças a
sua perspectiva histórica e política, Ainsi parla l’oncle antecipou aquilo que viria
a definir a antropologia a partir do final do século XX: uma análise sociocultural focada na relação entre significado e poder. Nesse sentido, o machete nacionalista permitiu ao Tio abrir novos caminhos para a antropologia.
Porém, o nacionalismo de Price-Mars também o faz apresentar suas inovações de maneira particularista, enfatizando as particularidades do Haiti,
promovendo um debate nacional, junto a um público nacional, a respeito de
problemas nacionais. Ao interpretar os cantos populares e as figuras de Oncle
Bouqui e Ti Malice, por exemplo, ele fala de fenômenos que considera peculiares ao Haiti, sem fazer abertamente argumentos gerais sobre cultura popular e resistência. Ao examinar a criação de novas formas religiosas e sociais
em reuniões rituais clandestinas, ele fala de algo que vê como particular ao
vodu, sem teorizar ostensivamente a relação entre religião, poder e conflito. Ou
seja, o próprio texto do Tio convida a uma circunscrição geográfica e temática
– como a das leituras que recebeu – que oculta seu valor teórico. Nesse sentido,
o machete nacionalista não conseguiu deixar totalmente à vista o caminho
que abriu.
Isso não quer dizer que Ainsi parla l’oncle não faça, por vezes, argumentos
generalizantes. Como Omar Ribeiro Thomaz (2011) corretamente observa,
Price-Mars aponta no camponês haitiano um “universalismo encontrado em
todas as culturas”. Isso se nota, por exemplo, no argumento do Tio sobre o caráter religioso do vodu, que salienta suas semelhanças com o judaísmo antigo e
o cristianismo primitivo; ou em sua discussão sobre o parentesco camponês,
cujas similaridades com a antiguidade greco-romana ele se deleita em destacar
para chocar sua audiência eurocêntrica.
Contudo, Price-Mars põe tais argumentos universalistas a serviço da compreensão e da valorização da particularidade da cultura popular haitiana, para
mostrar que ela não é uma aberração, ou uma “monstruosa anomalia” (Nesbitt,
2013), como diziam tantos estrangeiros e haitianos de elite (ver Hurbon, 1987b;
Polyné, 2013; Trouillot, M.-R., 1990b). Price-Mars não faz generalizações a partir
do Haiti; ele aplica generalizações ao Haiti para tornar sua particularidade ordinária, não excepcional. Seu universalismo é um meio para entender o particular; não é ponto de chegada, mas de partida. Seu objetivo explícito é entender o
Haiti através do mundo, não entender o mundo através do Haiti.
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Reivindicando o Tio
O que este artigo propõe, portanto, é ler Ainsi parla l’oncle a contrapelo: explicitar suas inovações teóricas e evidenciar que ele permite também entender
o mundo através e a partir do Haiti. Tomando no sentido inverso o caminho
aberto pelo machete nacionalista de Price-Mars e tornando o percurso mais
visível para outros caminhantes, pode-se entender sua relevância não apenas
para os restritos campos regionais e temáticos a que ele tem sido circunscrito,
mas para a teoria antropológica em geral. Ou seja, cumpre colocá-lo no cânone
da antropologia como um teórico.
Para entender o pioneirismo do Tio, basta revisitar aquele outro volume
publicado em 1928, Coming of age in Samoa, e reler o Apêndice III, em que
Margaret Mead (1973, p. 148-155) revela que a fabulosa liberdade sexual das adolescentes samoanas, atribuída no corpo do livro a uma cultura atemporal, é na
verdade o produto de recentes transformações das hierarquias locais geradas
pelas práticas coloniais de militares e missionários estadunidenses! No mesmo
ano em que Mead isolava a história e o poder em um solitário e discreto apêndice para retratar uma cultura purificada daqueles elementos, Price-Mars
punha no centro de sua análise a relação inextricável entre cultura, história e
poder. É desnecessário dizer qual dos dois livros é hoje mais atual.
Por isso concluo este artigo argumentando que se deve levar a sério o uso
da palavra “Tio” para se referir a Price-Mars. Para explicar esse ponto, discuto
brevemente algo que Price-Mars se furtou a explicar abertamente: o título de
Ainsi parla l’oncle. O escritor martinicano Jean Bernabé (2009) vê nesse nome
uma evocação de Und Afrika sprach… (E a África falou…), livro de 1914 de Leo Frobenius, antropólogo cuja valorização das civilizações africanas foi inspiração
para Price-Mars. Quanto ao “tio” do título, Bernabé retoma uma observação
recorrente sobre Ainsi parla l’oncle: a importância do avunculato em várias
sociedades africanas, do qual Price-Mars era conhecedor. Para Bernabé (2009,
p. 353), isso permite ver na África o “tio” do título, uma figura paternal que protege o Haiti de sua “madrasta: a Europa, no caso a França, nação colonizadora,
castradora”.
Concordo com a interpretação de Bernabé do “tio” como representação da
África, mais especificamente de seu legado cultural, mas discordo da relação
de gênero que, de forma quase misógina, Bernabé enxerga nisso. Considerando
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que o foco do avunculato africano é o irmão da mãe – como há muito mostrou
Radcliffe-Brown, 1965) – deve-se ver no título de Price-Mars um tio materno
que substitui uma figura maternal perdida: a África. Essa leitura é corroborada
pela ênfase de Price-Mars no sequestro da mãe escravizada pelo francês colonizador para fins de exploração laboral e sexual. A meu ver, o “tio” usa sua fala
para resgatar e proteger o Haiti não de uma madrasta má europeia, mas de um
pai europeu, lascivo e abusivo. Sob essa perspectiva, o título afirma que a cultura oral de origem africana dos camponeses haitianos – a fala do tio – é o que
permite ao Haiti superar o trauma da violência escravocrata e colonial.
Mas, como observei, o “tio” do título ganhou novo significado ao ser associado a Jean Price-Mars ainda durante sua vida. A associação não é ingênua,
pois ela reconhece em Price-Mars o porta-voz do tio subalterno – haitiano e
africano. Em parte é por isso que segui neste artigo a tradição caribenha de
chamar Price-Mars de “Tio”. Mas a isso adiciono outra razão. Este artigo buscou
mostrar que, ainda que Price-Mars não tenha sido lido e citado amplamente
como um teórico, e portanto não tenha de fato inspirado a guinada político-histórica da antropologia no final do século XX, ele pode e deve ser reivindicado
como seu precursor. Para voltar à distinção feita por Michel-Rolph Trouillot,
Price-Mars não teve o papel merecido no desenrolar histórico da disciplina –
em sua história como processo – mas pode e deve ter um papel mais destacado
na forma como esse processo é contado – ou seja, nas narrativas históricas da
antropologia.
Em outras palavras, Jean Price-Mars pode não ter sido o pai ou o avô da
prática antropológica atual, mas certamente pode e deve ser reivindicado como
seu tio. O tipo de genealogia avuncular que reivindico para ele está implícita
em algumas referências usadas neste artigo. Michel-Rolph Trouillot (1995,
p. xvii), na primeira página do prefácio a Silencing the past, menciona a influência que recebeu de seu tio Hénock Trouillot, historiador e estudioso de Price-Mars. E o próprio nome de Price-Mars evidencia um avunculato intelectual
adotivo. Seu nome original, Jean Price Mars (sem hífen), incluía uma homenagem de seu pai a um grande amigo, o intelectual Hannibal Price. Em 1902, em
uma carta ao educador e líder negro estadunidense Booker T. Washington, o
jovem haitiano assinou pela primeira vez “Jean Price-Mars” (com hífen). Nessa
autorrenomeação, que passou a usar desde então, Price-Mars marcava a união
(“hífen”, em francês, é trait d’union) entre os haitianos nèg, como ele próprio,
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e os haitianos milat, como seu tio intelectual Hannibal Price (Antoine, 1981;
Byron, 2014; Shannon, 1996).
É nesse espírito de reconhecimento de parentescos intelectuais para além
de paternidades, maternidades e afiliações que reivindico Price-Mars como
um tio da antropologia contemporânea. O reconhecimento do avunculato
intelectual nos ajuda a recuperar e revalorizar a dimensão propriamente teórica de antropólogos periféricos e especialmente de antropólogos negros, como
Price-Mars, tradicionalmente silenciados, e diversificar e descentrar retroativamente a genealogia da disciplina. Adaptando a observação do antropólogo
guadalupense Alain Anselin (2009, p. 435) – que, referindo-se a Jean Price-Mars,
disse que “todo caribenho tem um tio haitiano” – concluo que todo antropólogo
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Recebido: 31/03/2021
Aceito: 01/07/2021
|
Received: 3/31/2021
Accepted: 7/1/2021
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Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 28, n. 62, p. 79-113, jan./abr. 2022
Artigos
Articles
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71832022000100004
Roger Bastide – entre tempos, espaços,
tradições
Roger Bastide – between times, spaces, traditions
Fernanda Arêas Peixoto I
https://orcid.org/0000-0002-5100-6635
fapeixoto@usp.br
I
Universidade de São Paulo – São Paulo, SP, Brasil
Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 28, n. 62, p. 115-143, jan./abr. 2022
Fernanda Arêas Peixoto
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Resumo
O artigo propõe uma análise do itinerário e escritos de Roger Bastide (1989-1974), procurando mostrar como os seus trânsitos entre França e Brasil, e entre diferentes domínios do conhecimento, contribuíram para a formação de seu ponto de vista plural, e
como essa sua posição entre tempos, espaços e tradições lança questões importantes
para o modo como pensamos e escrevemos a história da antropologia.
Palavras-chave: Roger Bastide; antropologia francesa; modernismo paulista de 1922;
história da antropologia no Brasil.
Abstract
The article proposes an analysis of the itinerary and writings of Roger Bastide
(1898-1974), trying to show how his displacements between France and Brazil, and
also between different fields of knowledge, contribute to the formation of his plural
point of view, and also how his position at the intersection of times, places and traditions raises important questions for the way we conceive and write the history of
anthropology.
Keywords: Roger Bastide; French anthropology; São Paulo’s modernism; history of
anthropology in Brazil.
Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 28, n. 62, p. 115-143, jan./abr. 2022
Roger Bastide – entre tempos, espaços, tradições
A consideração detida do trajeto e produção de Roger Bastide (1898-1974) deixa
ver um autor que resiste a classificações; aliás, ele perturba categorizações estritas e nisso reside, talvez, um de seus maiores interesses. De saída, o seu exemplo
convida-nos a borrar fronteiras disciplinares; definido e definindo-se diversas
vezes como sociólogo, Bastide é presença inconteste em mais de uma história
da antropologia, tendo transitado ainda pela filosofia, história e psicologia. Militante do método científico e arquiteto de instituições acadêmicas, experimentou a crítica de arte, o jornalismo e o ensaio de corte literário, desconcertando
oposições entre ciência e literatura, amadorismo e profissionalização. Francês
de nascimento e formação, renasce (africano) no Brasil, conhecendo aí novas
tradições intelectuais e revendo com elas repertórios e pontos de vista prévios.
Com isso, desestabiliza as linhas de um mapa que discerne inequivocamente
centros e periferias; afinal, ele ensina, as chamadas periferias produzem ideias
originais, permitindo miradas outras sobre as denominadas tradições centrais.
Nesse sentido, é possível dizer que Bastide situa-se entre tempos, espaços e
tradições: entre passado e presente; entre França, África e Brasil; entre saberes
e práticas distintos. Tal localização em zonas limítrofes evidencia o seu perfil de “homem-ponte”, que faz comunicar ideias e experiências, e que se deixa
tocar pelos trânsitos que se verificam em áreas de fronteiras.1
Esta leitura do autor ampara-se em um convívio de mais de 20 anos com
os seus escritos, que conheceu uma primeira sistematização em Diálogos brasileiros (Peixoto, 2000) e uma reavaliação em A viagem como vocação (Peixoto,
2016). Convencida de que nada mais teria a dizer sobre ele, vi-me instigada a
revisitá-lo, motivada pela proposta deste dossiê, convencida que o seu exemplo
coloca questões importantes para o modo como pensamos e narramos a história da antropologia. Mas, deixo anotado, a retomada do percurso e de parte da
produção do autor neste texto carrega um sentido de “re-suscitar”, quer dizer,
trata-se da recuperação criadora de problemas antes trabalhados que, sem
esquecê-los, reformula-os em função de novas indagações.2
1
A expressão “homem-ponte” foi utilizada por Antonio Candido (1989) para definir o crítico, sociólogo e poeta Sérgio Milliet.
2
Esta reflexão teve origem no painel organizado por Patrícia Ferraz de Matos e Frederico Delgado
Rosa, “Genealogias resgatadas: trilhos para uma historiografia das antropologias do mundo”, no
Congresso da Associação Portuguesa de Antropologia, Lisboa, 2019. O sentido de “re-suscitar”
foi retirado de Despret e Stengers (2011, p. 60, nota 1).
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Entre tradições, nacionais e disciplinares
Em terras francesas
Os escritos de Roger Bastide dos anos 1920 e 1930 exibem traços salientes do
perfil do jovem agregé de filosofia, que fizera seus estudos universitários em
Bordeaux, e que assume seu primeiro posto docente em 1924, em um liceu
de Cahors, no sul da França, mudando-se dois anos depois para Lorient e
em seguida para Valence (de 1928 a 1937), sempre como professor do ensino
médio.3 Antes da publicação do livro de estreia, Les problèmes de la vie mystique
(Bastide, 1996), em 1931, publicou artigos e conferências que permitem flagrar
a educação familiar protestante; os primeiros experimentos poéticos; as incursões pela crítica literária; a formação filosófica; o aprendizado paulatino da
sociologia e os contatos sistemáticos com a psicologia. O livro sobre os escritores místicos reafirma o amplo espectro dos seus interesses e as tentativas de
combiná-los. Os textos produzidos em seguida, entre 1931 e 1935, mostram a
permanência de temas, ainda que a visada sociológica adquira proeminência
no segundo livro, Éléments de sociologie religieuse (Bastide, 1997a), de 1935. Esses
trabalhos de juventude revelam uma forte imbricação entre arte, vida mística
e religião, domínios nos quais ele afia seus instrumentos de interpretação e
escrita, aproximando reflexão e experiência com o auxílio de uma atitude crítica eminentemente “introspectiva”, que quer afastar todo e qualquer positivismo científico.
No mesmo período, Bastide arrisca-se na literatura, indicam os versos
de “La montée au désert” (Bastide, 1995c) (inédito até 1995) e “Le cep taillé”
(Bastide, 1995b), de 1920, e a prosa de “Dépaysements” (Bastide, 1995a), de 1927.
Essa breve produção literária permite entrever a temática religiosa, a presença
da terra natal e uma reflexão sobre a experiência da viagem e do deslocamento
(Ravelet, 1995). Paralelamente, Bastide exercita-se na crítica da literatura e
nos ensaios sobre estética, nos quais são também evidentes a importância da
dimensão religiosa e mística; a reflexão sobre a criação poética; a especial predileção pelas literaturas de André Gide e Pierre Jean Jouve.
3
Para a biografia do autor, ver Ravelet (1993).
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Roger Bastide – entre tempos, espaços, tradições
Mas talvez a grande trilha aberta por esses textos (e que será revisitada mais
tarde, com outras inflexões), diz respeito às influências da religião no processo
criador, ponto que será explorado, por exemplo, em “Marcel Proust et le pilpoul”
(Bastide, 1994b), de 1928, dedicado aos traços judaicos da literatura de Proust;
em “André Gide et le temps retrouvé” (Bastide, 1928a), voltado para o protestantismo em Gide; em “Les héros de Mauriac” (Bastide, 1935), quando discute
as marcas católicas do escritor. Nesses escritos primeiros insinua-se também
a preocupação em exercitar um ponto de vista sociológico capaz de complementar as visadas filosófica e psicológica, predominantes nos ensaios sobre
literatura e vida mística.4
Esforço semelhante em mobilizar instrumentos da sociologia associados
a outros aportes pode ser notado em Les problèmes de la vie mystique (Bastide,
1996), quando ele tenta reaver, de outro ângulo, um tema de certo modo cativo
de filósofos, teólogos, moralistas e psicólogos. Tomando como ponto de partida
a classificação das personalidades místicas (o “entusiasta”, o “quietista”, o “construtor” e o “profeta”) e a rara coexistência desses tipos em uma mesma época e
país, Bastide chama a atenção para a importância fundamental do “meio social
e intelectual” para a conformação de cada uma delas (a despeito das questões
individuais, fisiológicas e psicológicas, que também atuam). Defende assim
a necessidade de situar o fenômeno sob o “fogo cruzado de todas as ciências:
medicina, psicologia, etnografia, história e sociologia” (Bastide, 1996, p. 12).5
Não parece difícil localizar no livro de estreia ecos do modelo durkheimiano
de análise da religião, quando, por exemplo, o autor toma as formas elementares da vida mística e o “misticismo primitivo” de modo a acompanhar o desenvolvimento e a transformação progressivos do fenômeno até as suas formas
mais acabadas, nas quais concentra sua interpretação. O seu interesse recai
precisamente sobre o que denomina “misticismo verdadeiro”, que permitiria
deixar as trilhas explicativas que veem o fenômeno como patologia, expressão
da confusão afetiva ou negação do pensamento, para tomá-lo como fonte de
criação, intelectual, poética, estética.
4
Retomei com mais vagar esses escritos na introdução de Diálogos brasileiros (Peixoto, 2000).
A relação da bibliografia completa de Bastide pode ser encontrada em Dauty (1978).
5
Salvo indicação contrária, as traduções são de minha autoria.
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Se na parte inicial do volume Bastide afirma o vigor da explicação sociológica para a compreensão da vida mística, nos segmentos finais sublinha a
necessidade de associá-la à perspectiva psicológica, de modo que seja possível
apreender o fenômeno em sua dupla dimensão, individual e social. Se isso é
verdade, somente a psicologia poderia penetrar a essência do misticismo, diz
ele, cabendo à sociologia a análise das “impurezas” que o cercam, isto é, dos
elementos alheios à vida mística que interferem em sua manifestação.
Em Éléments de sociologie religieuse, por sua vez, a visada sociológica assume o
primeiro plano e, ao explicitá-la, Bastide (1997a) define a sua posição no interior
de um campo de debates de época. Duas concepções pautaram os estudos na
área da sociologia da religião, diz ele. A primeira, exemplificada por Raoul de la
Grasserie e por sua tentativa de circunscrever os móveis psicológicos do fenômeno religioso; a segunda, que tem em Durkheim sua maior expressão, coloca
o seu foco nas coletividades, nas comunidades de crenças e práticas. Reivindicando o feitio sociológico de sua análise, Bastide busca afastar-se do que ele
denomina a “ênfase coletivista” de Durkheim (tendência em fazer coincidir
o religioso e o coletivo), assim como de seu esforço em transformar a sociologia
religiosa em uma sociologia do conhecimento. A despeito de endossar a distinção
entre sagrado e profano (que auxiliaria a apreender a essência do fenômeno, ele
indica), defende a importância dos fatores individuais na compreensão da religião, recusando a oposição indivíduo e sociedade, cara à sociologia de Durkheim.
Desde os primeiros esboços de sua sociologia da vida mística, que se mostram no ensaio “Mysticisme e sociologie” (Bastide, 1928b) antes de assumir
forma mais acabada no livro de 1931, Bastide estabelece um diálogo crítico
com as teses durkheimianas. Dentre os pontos centrais das discordâncias
encontram-se o apagamento da dimensão individual das análises (resultante
da definição do fato social como “coisa”, anterior e exterior ao indivíduo) e a
condenação da “introspecção”, isto é, a recusa da possibilidade de partilhar a
fé estudada e do estabelecimento de uma relação de “simpatia intuitiva” com o
objeto. Assume expressamente outra via interpretativa, sustentando a importância decisiva da experiência pessoal e subjetiva para a análise sociológica.
Um Renan, um Damester, um Gaston Richard, diz ele, advogam que
[…] se a primeira condição para falar de arte e poesia com discernimento é sentir
a poesia e a arte, a primeira condição exigida daquele que deseja compreender os
Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 28, n. 62, p. 115-143, jan./abr. 2022
Roger Bastide – entre tempos, espaços, tradições
que creem e os grupos de fiéis é ter ele mesmo participado, em algum momento
da vida, de uma fé, ao menos pela emoção ou pelo sentimento. (Bastide, 1997a, p. 8).
A referência a Gaston Richard na abertura do livro não é casual; o sociólogo
fora professor de Bastide em Bordeaux e influência marcante em seus primeiros trabalhos.6 Assim, as críticas que ele empreende à sociologia religiosa de
Durkheim são, em larga medida, devedoras, de reparos feitos antes por Richard
às teses do líder do Année sociologique.
Gaston Richard (1860-1945) esteve ligado ao Année desde a sua criação em
1896, revista para a qual realiza colaborações sistemáticas até 1907. Em 1905,
ao que tudo indica por primeira vez, realiza uma série de críticas às ideias
de Durkheim, que se explicitam, entre outros, nos reparos feitos ao Suicídio
(Durkheim, 1897), alguns deles publicados nas próprias páginas da revista, em
1898 (Besnard, 1979; Pickering, 1979). Parte de suas discordâncias recaem sobre
o “sociologismo” de Durkheim, sobre a eliminação da dimensão individual da
análise e sobre a recusa da introspecção como atitude metodológica (Richard,
1911, 1923), pontos salientados por Bastide em sua leitura de 1935, como vimos.
As controvérsias entre os autores baseiam-se não apenas em visões distintas de
sociologia, mas se estendem ao ensino da sociologia na França. E os argumentos
de Richard sobre o assunto são retomados por Bastide (1936) em “L’enseigment
de la sociologie en France”, sobretudo os que dizem respeito à dominância da
sociologia durkheimiana no ensino francês e à imposição de certa visão sociológica da religião, que deveria estar desligada da experiência religiosa.
Richard destoa do grupo do Année sociologique não apenas em função da fé
religiosa explicitada (ele se converte ao protestantismo quando de seus estudos
universitários, ligando-se aos círculos protestantes de Bordeaux, onde leciona7),
mas também pela sua defesa dos nexos estreitos entre sociologia e psicologia,
que o levam a prestar atenção nas questões de convicção pessoal, na base da
6
As cartas trocadas entre eles mostram que foi Richard quem introduziu Bastide nos estudos
sociológicos e quem o auxiliou na preparação da agrégation; mostram ainda os laços de amizade que estabeleceram. Cf. Morin (1994) e também os artigos escritos por Bastide sobre Richard
(Bastide, 1930, 1998). As relações próximas entre Bastide e Richard foram examinadas por
Reuter (1997).
7
Sobre os laços dos universitários, e sobretudo de Richard, com a Igreja reformada de Bordeaux,
cf. artigo de Luze (2015), que integra um dossiê sobre o autor.
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religião, e a tentar discernir a essência do fato religioso que, segundo ele, não
poderia ser confundido com todo e qualquer fenômeno coletivo.
Essas críticas fazem ecoar reparos anteriores de René Worms (1869-1926) e,
antes dele, de Gabriel Tarde (1843-1904) a Durkheim, que remetem às aproximações e afastamentos entre a sociologia e a psicologia, dois regimes de pensamento
científico em disputa pela representação e compreensão do homem e da vida
social à época, e não apenas na França (Joly, 2017). Os afastamentos entre Tarde
e Durkheim referem-se a diferentes concepções do social e de seu estudo, como
também a perfis intelectuais distintos: o exemplo de Tarde, que combina inclinações literárias com o trabalho científico, contraria o de Durkheim, que afirma
a legitimidade da ciência por oposição a certo estilo letrado. O modelo representado por Tarde reverbera nas gerações seguintes (Worms, Richard, Bastide), que
cultivam o gosto pela literatura e pelas artes, e concebem a sociologia em estreita
relação com a psicologia. Nada mais distante do ponto de vista durkheimiano
para o qual a sociologia é a ciência em torno da qual giram as demais.8
A despeito dos interesses heterogêneos e das aberturas da produção de
Tarde para domínios diversos (a criminologia, a filosofia, a antropologia, a
sociologia, a geografia, a arqueologia, a história, como também a literatura e a
poesia), nota-se em sua obra um esforço sistemático de fundar uma psicologia
social. Esta, em sua concepção, se define como a ciência da sociedade, cuja base
é o estudo da “alma humana”. Nesse sentido, sociologia e psicologia deveriam
atuar juntas para compreender indivíduos e sociedade, termos irremediavelmente imbricados (Lubek, 1981, p. 361-364). Tal empenho em associar sociologia
e psicologia, e em recusar dicotomias entre dimensões individuais e coletivas,
reverbera no grupo reunido em torno de René Worms no Institut Internationale de Sociologie e da Revue internationale de sociologie, criada em 1893, reduto
de críticos de Durkheim (Clark, 1973).
8
É Lepenies (1988) quem vê o conflito entre Tarde e Durkheim como amparado em temperamentos intelectuais diversos. Segundo ele, Tarde repudiaria o modelo do scholar representado por
Durkheim; este, por sua vez, recusaria o homem de letras que Tarde personificava. Tal visão se
afasta da leitura de Marc Joly (2017), que localiza a disputa entre os autores no modo como concebem as relações entre sociologia e psicologia. Tendo a achar que os dois argumentos são complementares. Lembro ainda, com o auxílio de Mucchielli (1994), que a sociologia de Durkheim não
recusa de modo cabal a psicologia, mas a localiza no interior da sociologia, que de certo modo a
englobaria. Isso sem esquecer que alguns dos chamados “durkheimianos” se valeram expressamente das contribuições da psicologia, Marcel Mauss e Maurice Halbwachs, por exemplo.
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Roger Bastide – entre tempos, espaços, tradições
Será Richard, em 1926, o substituto de Worms na direção do instituto e da
revista, com a qual Bastide colabora de modo relativamente assíduo, e não por
acaso. Os primeiros escritos de Bastide (sobretudo os textos que escreveu sobre
religião até meados dos anos 1930) indicam suas afinidades com essa vertente
que se opõe ao determinismo sociológico de Durkheim, propondo a análise
inseparável das coletividades e das manifestações individuais, além do foco
específico nas especificidades do fenômeno religioso. Foi Richard quem provavelmente aproximou o jovem colega dessa corrente, no interior da qual se
encontra um número expressivo de intelectuais protestantes.
Assim, no momento inicial de sua produção, Bastide define um instrumental de análise, faz escolhas temáticas e experimenta associar sociologia e psicologia, de acordo com ensinamentos retirados de Pierre Janet, Georges Dumas,
Gabriel Tarde e Raoul Allier.9
Se isso é verdade, parece difícil não reconhecer nesses primeiros escritos a
adesão a certas teses de Durkheim, sobretudo por intermédio de alguns de seus
próximos. No livro de 1935, por exemplo, a crítica formulada ao mestre francês
na introdução ganha novos matizes quando da definição do fenômeno religioso.
Objetando a “teoria intelectualista” de Frazer, ele recupera Lévy-Bruhl, Mauss
e Hubert para defender as proximidades entre magia e afetividade. A magia,
segundo ele, traduz a “eficácia do desejo” (nos termos de Allier) e tem sua raiz
no sentimento e não no exercício da inteligência. Os sentimentos envolvidos
na magia se oferecem ao escrutínio da psicologia, é certo, mas o caráter convencional e tradicional do fenômeno deve ser estudado pela sociologia, o que,
mais uma vez, reafirma a necessidade de complementaridade entre os saberes
(Bastide, 1997a, p. 21).
Bastide endossa a linha divisória que Durkheim estabelece entre magia e
religião, mas discorda do percurso traçado pelo autor que coloca a magia como
termo de origem fadada ao desaparecimento em um mundo em vias de secularização, no qual ganha terreno a lógica e a explicação científicas. Seguindo as
trilhas abertas por Allier e Richard, afirma: “Para compreendermos a magia, em
lugar de nos dirigirmos à ciência, devemos nos voltar para a música e para a
9
As ideias do historiador, psicólogo e professor na Faculdade de Teologia de Paris, Raoul Allier,
grande referência para Richard, é matéria de exame de Bastide em artigo de 1929, “L’œuvre de
Raoul Allier et la sociologie religieuse” (Bastide, 1993).
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poesia” (Bastide, 1997a, p. 13). Outro ponto de discordância anunciado no livro, e
que faz coro às críticas anteriores de Richard, diz respeito à redução explicativa
do fenômeno, considerado expressão da sociedade. Não percorreria a religião
outros caminhos que escapam aos ditames sociais?
Em seus termos:
Mas se a religião traduz, ao lado das tendências coletivas e das necessidades
sociais, os solilóquios solitários das almas, os movimentos secretos do coração,
as nostalgias dos espíritos em busca do absoluto, imiscuem-se então no seio
desse determinismo [sociológico] começos imprevisíveis, germens misteriosos,
promessas de flores desconhecidas, dos quais a sociologia religiosa pode constatar a presença, mas que não consegue explicar. (Bastide, 1997a, p. 199).
Seu esforço é mostrar como as relações entre religião e sociedade desenham
um movimento de dupla mão, contrariando o sentido único das determinações e a visão da religião como epifenômeno. Além disso, em algumas ocasiões
é possível observar como as expressões religiosas se descolam dos substratos
sociais, interferindo em seus contornos.
Vemos, com efeito, as religiões sobreviverem às revoluções, se adaptarem às
estruturas as mais diversas mantendo os seus próprios sistemas de valores […].
Se a religião tende a se destacar de todo substrato social para viver uma vida
autônoma, é porque a religião é mais do que um sistema de instituições, é um
sistema de crenças e sentimentos. (Bastide, 1997a, p. 133).10
As claras discordâncias em relação a Durkheim não impediram aproximações
com figuras de seu círculo, como Maurice Halbwachs por exemplo, que ele
conhece nos anos 1930. Os dois se encontram em Estrasburgo, momento em
10 Vale notar, em primeiro lugar, que Bastide recorre às análises de Max Weber sobre a ética protestante e o espírito do capitalismo para fundamentar o seu ponto de vista sobre as relações de
dupla mão existentes entre religião e sociedade. Em segundo, as considerações sobre o relativo
descolamento da “superestrutura” religiosa de seu substrato material aqui anunciado serão
retomadas e exemplificadas na análise das religiões africanas no Brasil, quando ele mostra
como o esfacelamento dos grupos e das coletividades pela escravidão não impediu a reconstrução de expressões religiosas, que se mantêm vivas e transformadas no Brasil. Cf. Bastide (1971),
sobretudo o primeiro volume.
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Roger Bastide – entre tempos, espaços, tradições
que Halbwachs sugere que entre em contato com Mauss. As trocas de Bastide
com o autor do Ensaio sobre o dom (Mauss, 1925) podem ser aferidas na breve
correspondência entre eles; em carta datada de 3 de novembro de 1936, por
exemplo, Mauss pondera certos exageros nos questionamentos de Bastide em
relação a Durkheim, chamando a atenção para o caráter excessivamente filosófico da introdução do seu livro de 1935. Diz ainda não corroborar sua predileção
por Weber: “Um dos autores que você mais aprecia, Max Weber, é um daqueles
com quem Durkheim, Hubert e eu dialogamos menos” (cf. Morin, 1994, p. 37).
A importância atribuída às expressões individuais e à subjetividade se faz
presente também nos artigos que Bastide escreve sobre os sonhos, tema desses escritos primeiros que reaparecerá em trabalhos de maturidade. As fabulações oníricas são objeto de dois ensaios: “La plongée tenebreuse” (Bastide,
1932), espécie de peça literário-filosófica sobre o sonho, e “Matériaux pour une
sociologie du rêve” (Bastide, 1933) que, como o título indica, debruça-se sobre as
possibilidades de uma abordagem sociológica da matéria.
Em suma, a obra de juventude do autor deixa ver um amplo leque temático
que ele não mais abandona – a vida mística, o sagrado, a religião, a literatura,
o sonho, o imaginário, a memória – bem como uma atitude intelectual que
continuará a ser exercitada, ritmada pelo trânsito entre saberes e formas de
conhecimento, entre disciplinas e métodos retirados de diversos domínios: da
sociologia, da antropologia, da história, da psicologia e das artes. Claro está que
certas marcas – a de Richard, por exemplo – tendem a se esmaecer e a dar lugar
a outras, em função de novas leituras e contatos, que o levam a rever referências primeiras.11
Além disso, é importante observar ainda que se a sociologia exercitada nas
décadas de 1920 e 1930 e aquela que ele ensinará na Universidade de São Paulo,
11 Astrid Reuter (1997) chama a atenção para o silêncio progressivo de Bastide em relação a
Richard e sugere ter sido o Brasil um campo profícuo para o estreitamento de laços com a sociologia durkheimiana, diante da forte influência de Durkheim no meio intelectual paulista da
época e entre os professores franceses que integraram a missão francesa na Universidade de
São Paulo na década de 1930. Difícil aferir tal influência durkheimiana, seja nos intelectuais
brasileiros, seja no grupo francês de professores, bastante heterogêneo. O que talvez possa ser
dito é que longe do solo francês e das polarizações de um debate acirrado, Bastide pode adquirir
certa distância para reler Durkheim à luz de outros autores e das pesquisas empíricas que realizaria no Brasil. De todo o modo, Richard continua presente nos programas de seus cursos na
Universidade de São Paulo.
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entre 1938 a 1954, diferem em função do aprendizado de novas teorias e das
pesquisas realizadas em solo brasileiro – que convertem o contato de civilizações em um eixo central da sua produção – é possível notar a permanência
dos trânsitos entre disciplinas, aos quais se soma uma perspectiva, ela mesma
deslocada, forjada por sua condição de estrangeiro, posição da qual soube tirar
farto partido teórico-metodológico.
Em terras brasileiras
No Brasil, onde permaneceu por 16 anos, Bastide não se contentou com as atividades docentes e com o convívio nos círculos acadêmicos, ainda que tenha se
engajado na confecção de cursos (sobre folclore, arte, psicanálise, religião, etc.)
e na orientação de teses (algumas delas heterodoxas para o período12), defendendo a importância e vitalidade do prisma sociológico de análise, que ensinava os alunos a manejar em sala de aula e trabalhos de campo.
Ao lado dos cursos e pesquisas, ele exercitará a crítica de arte, colaborando
semanalmente com importantes jornais e revistas brasileiros: com os jornais
O Estado de S. Paulo, Diário de S. Paulo, Folha da Manhã, Folha de S. Paulo; com
as revistas Anhembi, Revista do Arquivo Municipal, Revista do Brasil, etc. Escreveria, entre 1939 e 1945, um ou dois artigos por semana sobre temas diversos:
cultura e literatura francesas; literatura e artes brasileiras; estética e estética
afro-brasileira; sociologia brasileira; cidades e arquitetura. O registro dessa
ampla produção jornalística mostra como, desde sua chegada ao país, ele mergulhou na produção nacional, na sociologia e antropologia brasileiras (Bastide,
1939), mas também na literatura e nas artes visuais. No campo literário, lançou
comentários sobre escritores consagrados, do porte de Machado de Assis e José
de Alencar; sobre outros pouco tratados (como Sousândrade) e também sobre
seus contemporâneos, Mário e Oswald de Andrade. Paralelamente às contribuições a órgãos brasileiros, manteve-se ligado à impressa de matriz francesa no
Brasil (ao Boletim da Aliança Francesa, por exemplo) e a veículos franceses, como
12 Lembremos a tese de Gilda de Mello e Souza, A moda no século XIX, defendida em 1950 e publicada no ano seguinte na revista do Museu Paulista. Não por acaso, apenas em 1987 o ensaio é
publicado na forma de livro, adquirindo reconhecimento e visibilidade inéditos, com o título
O espírito das roupas (Souza, 1987).
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Roger Bastide – entre tempos, espaços, tradições
a revista Mercure de France, com a qual colaborou regularmente entre 1948 e 1965,
com textos sobre as lettres brésiliennes (Amaral, 1998, 2010).13
Essa profícua e importante produção faz com que Bastide seja reconhecido
no Brasil também como crítico literário, responsável por textos importantes
para a reavaliação da literatura brasileira, como o ensaio “Machado de Assis,
paisagista” (Bastide, 1940a), que Antonio Candido (1993) diz ter sido o texto-guia
para a sua formação como crítico literário.14 Menos comentados, mas também
expressivos, são seus escritos sobre artes visuais, nos quais examina obras de
Tarsila do Amaral, Lasar Segall, Vicente do Rego Monteiro, Di Cavalcanti, entre
vários outros artistas.
O exercício rotineiro da crítica dirigida à literatura, artes visuais, e também
às cidades e à arquitetura, foi realizado de modo concomitante às aulas e às
pesquisas que ele empreende no país sobre o folclore, o barroco e o candomblé.15
Menos do que reflexões e atividades apartadas ou conflitantes, elas se encontram associadas em prol da composição de uma perspectiva sociológica híbrida
e dissonante para os padrões da época.
Tais escritos críticos, realizados ao ritmo das descobertas e aprendizados
das tradições artísticas e intelectuais brasileiras, chamam a atenção por seu
caráter sociológico, sempre reivindicado. Ainda que sensível aos desafios
formais das expressões artísticas, a arte mostra-se para Bastide um acesso à
compreensão da sociedade e da cultura brasileiras mais amplas, sem que isso
signifique recair em determinismos. O alerta é explicitado nos debates com o
crítico Sérgio Milliet, nos quais pondera sobre os perigos dos excessos sociológicos nas análises das artes; nesse sentido, convida o amigo a pensar a poesia
13 Essa produção jornalística encontra-se no Arquivo Roger Bastide, do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP. A crítica literária, especificamente, foi reunida por Amaral (2010).
14 Antonio Candido afirma, em mais de uma ocasião, as marcas deixadas por Bastide em sua formação como crítico, cf. “Roger Bastide e a literatura brasileira” e “Machado de Assis de outro
modo”, reunidos em Candido (1993). A importância das aulas, dos textos e da convivência com
Bastide é lembrada pelos jovens membros do grupo Clima, que se tornariam importantes ensaístas e críticos de arte em São Paulo; além de Antonio Candido, Gilda de Mello e Souza, Décio de
Almeida Prado, Lourival Gomes Machado, Paulo Emílio Salles Gomes, Ruy Coelho, entre outros.
Sobre essa geração que desenhou “destinos mistos”, cf. Pontes (1998).
15 Nos capítulos 1 e 2 de A viagem como vocação (Peixoto, 2016), “Roger Bastide e as cidades” e
“O candomblé barroco de Roger Bastide”, proponho uma leitura integrada dos textos que Bastide
produziu sobre cidades, barroco e candomblé, mostrando as repercussões que essas reflexões e
pesquisas tiveram, umas sobre as outras.
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como forma de conhecimento e como “método” ou “mergulho na experiência
social.16 Os nexos entre arte e sociedade são também enfrentados em sala de
aula, nos cursos sobre estética sociológica que ministrou, parte deles reunidos
em Arte e sociedade (Bastide, 1945a).
Nas análises das expressões literárias e artísticas nacionais, Bastide inicia
o enfrentamento de questões que serão revisitadas a partir das pesquisas que
realizará sobre o barroco, o folclore e as religiões africanas, que se abrem na
direção de problemas ampliados, entre os quais: os contatos entre culturas e a
“mestiçagem estética”; a formação da cultura; as marcas dos negros nas artes; a
questão do “autenticamente nacional”. Tais questões, às quais conferiu tratamento próprio, correspondem a pontos centrais da pauta modernista, sobretudo de Mário de Andrade, um dos grandes nomes do modernismo de 1922, com
o qual ele conviveu em seu período brasileiro e cujos escritos (literários e ensaísticos) foram decisivos para seu aprendizado das coisas brasileiras.17
Quando chega à cidade de São Paulo em 1938, Bastide se aproxima imediatamente dos críticos atuantes na imprensa da época: Sérgio Milliet, Luís Martins
e Lourival Gomes Machado, este último integrante do grupo Clima, composto
por alunos do professor francês e ligados aos poetas modernistas. Esse é o ano
em que Mário de Andrade muda-se para o Rio de Janeiro, após fechamento
do Departamento de Cultura que dirigia em São Paulo. Mas, mesmo assim, ele
continua a dar o tom da crítica na capital paulista, e Bastide segue-o de perto,
sobretudo na defesa de uma arte capaz de figurar a nação. Os diversos textos
que publicou sobre as artes nacionais são eloquentes em relação às suas afinidades com problemas caros ao modernismo paulista e a Mário de Andrade em
particular, entre os quais a reflexão sobre a importância do estabelecimento
de uma tradição estética nacional, que se revela na paisagem, na cor local e no
inventário de tipos nacionais; tradição forjada pelas marcas indígena e africana, vivas no Brasil, sobretudo na “cultura popular”.18
16 Cf. Milliet (1981) e Bastide (1980). Sobre os diálogos entre os dois críticos, ver R. Campos (1996).
17 Acompanho no detalhe os diálogos entre Bastide e Mário de Andrade no capítulo 1 de Diálogos
brasileiros (Peixoto, 2000).
18 Nunca é demais lembrar que o folclore, tema de Bastide em artigos e cursos, parte deles reunidos em livro (Bastide, 1959), é elemento central do repertório modernista.
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Roger Bastide – entre tempos, espaços, tradições
O barroco arquitetônico, transformado pela presença africana no país –
outro tópico caro ao modernismo de 1922 – converte-se imediatamente em
interesse do sociólogo francês; as expressões nordestinas do barroco brasileiro
serão conhecidas de perto na viagem de 1944 ao nordeste do país, momento em
que visita também terreiros de candomblé (Bastide, 1945b). Ao mesmo tempo,
Bastide percorre a cidade de São Paulo, que seus olhos veem crescer e transformar-se, escrevendo sobre a estética da cidade em expansão, horizontal e verticalmente, em textos nos quais dialoga com arquitetos e urbanistas. Lidos lado
a lado, os registros das pesquisas simultâneas sobre o barroco e o candomblé,
assim como os escritos concomitantes sobre cidades e arquitetura, mostram
cruzamentos surpreendentes, deixando ver como um campo termina por iluminar e expandir a compreensão do outro.
Interessado nas projeções barrocas que encontra em diversas expressões da
cultura, esses escritos permitem flagrar o seu “ponto de vista barroco”, a informar suas análises das artes, cidades e também do candomblé.19 Assim, o barroco não apenas fornece matéria de estudo, mas oferece elementos decisivos
para que ele ajuste sua mirada analítica.
A obstinada busca modernista por uma expressão autenticamente nacional,
que a obra e as pesquisas de Mário traduzem de modo exemplar, encontra eco
nas formulações do sociólogo sobre a arte e a cultura brasileira, como disse
antes. Mas, é importante frisar, a preocupação com a autenticidade cultural
corresponde não apenas à busca de objetos genuinamente nacionais, mas à
definição de uma perspectiva que permita alcançá-los. No contexto brasileiro, a
questão da autenticidade liga-se ao cruzamento de legados culturais distintos,
às mesclas e sínteses, que não devem ser confundidos com “pureza” ou “cópia”,
nem com exotismos ou com o pitoresco.20
O problema, anunciado por Mário no ensaio sobre Machado de Assis em
1939 (Andrade, M., 1943) é enfrentado por Bastide em seu artigo sobre o escritor,
publicado no ano seguinte. A contrapelo das leituras realizadas sobre Machado
19 Desenvolvi o ponto com vagar nos capítulos 1 e 2 de A viagem como vocação, já referidos, analisando cada um desses textos (Peixoto, 2016).
20 A questão encontra-se claramente explicitada na correspondência de Mário e Carlos Drummond de Andrade, quando o primeiro afirma que o seu projeto de “devoção ao Brasil” não se
confunde com o cultivo de exotismos nem de regionalismos (Andrade, C., 1982, p. 5, 23).
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e do que ele próprio afirma (no Memorial de Aires, Machado diz não saber descrever nem pintar), Bastide vai rastrear a presença da paisagem em sua obra, que,
embora pareça ausente, “está terrivelmente presente […] dissimulada atrás dos
homens”, sutilmente expressa em pormenores, transposta em coloridos tênues
e sensações delicadas. “Não conheço nada mais tropical”, declara. Machado
“soube, com razão, ver um perigo no gosto de seus predecessores pelas paisagens
exóticas” (Bastide 1940a, p. 4).21
Se o exotismo pode ser entendido como “ver o próprio país com olhos de
estrangeiro” (Bastide 1940a, p. 5), Machado escapou do risco, do qual o sociólogo,
ele também, quer escapar, em seu esforço de alcançar uma compreensão profunda da “alma brasileira”. Como se aproximar do autenticamente nacional sem
deixar-se levar pelos arremedos? A questão, fundamental para Mário de Andrade,
é enfrentada por Bastide, seja na crítica ligeira ou em ensaios mais longos, como
“A poesia afro-brasileira”, de 1943, no qual se debruça sobre a poesia escrita por
negros e mulatos no Brasil, tentando desvelar a presença da “raça na trama da
obra escrita”, esforçando-se para sair das aparências e impressões primeiras de
modo a capturar “ressonâncias em profundidade” (Bastide, 1983e, p. 4, 41-42).22
Roteiros da pauta literária modernista são assim seguidos na definição do
percurso de sua interpretação e do seu ponto de vista sociológico. Estrangeiro,
engajado na superação de uma visão postiça do país, ele se vê diante de certa
radicalização da busca dos poetas e escritores que vão buscar nos temas indígenas e afro-brasileiros “o exotismo no interior da terra exótica”. Se os poetas no
modernismo viam-se diante de um “exotismo de segundo grau” (afinal, buscavam a diferença no próprio país), o intérprete francês teve que lidar com outro,
em grau superior. Nesse sentido, sua posição aprofunda o desafio dos artistas:
a procura da África no Brasil, no seu caso, converte-se na procura do “outro do
outro” (Bastide, 1997b, p. 40-50).
A definição de uma perspectiva de análise é construída com auxílio de um
jogo especular que desloca permanentemente o observador: o francês olha a
21 As citações originalmente em português tiveram sua grafia atualizada.
22 Exercício semelhante, tomando como material de análise a literatura produzida por brancos,
pode ser verificado no ensaio de 1945, “A incorporação da poesia africana à poesia brasileira”,
reunido um ano depois em Poetas do Brasil (Bastide, 1997b).
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Roger Bastide – entre tempos, espaços, tradições
África no (e desde o) Brasil e, inversamente, o Brasil na (e da) África.23 Desse modo,
o triângulo composto pelos vértices África, Europa, Brasil define um espaço de
observação movimentado por trocas e barganhas, que se revelam, mais ou menos
explicitamente, em função do patamar de observação escolhido. Em outras palavras: se o folclore, o barroco e a literatura permitem ao intérprete olhar para a
trama sincrética em função da preponderância branca e ocidental, as religiões,
reduto privilegiado da resistência africana, dão acesso às expressões negras,
abrindo caminho para que o analista localize as marcas africanas na cultura.
A apreensão dos processos de hibridação e a sondagem de suas camadas
profundas dependem da definição de uma perspectiva que permita apanhá-los,
como disse antes, e da conversão do intérprete à realidade estudada. O problema é expressamente discutido na introdução aos Estudos afro-brasileiros, de
1973, quando Bastide descreve a primeira etapa de seu “itinerário de pesquisador europeu nos trópicos” como uma crise de consciência, que implica uma
“modificação total das [suas] categorias lógicas”; foi preciso, diz ele, “que me deixasse penetrar por uma civilização diferente da minha”, de modo que a compreensão pudesse emergir de dentro, e não do exterior (Bastide, 1983c, p. X-XI).
A segunda etapa do itinerário corresponde ao encantamento da descoberta,
fruto do desvendamento de sistemas simbólicos originais; etapa que coincide
com a sua segunda viagem ao Nordeste, em 1959, quando se inicia no candomblé. Assim, a conversão que em seus diálogos com os poetas e críticos literários
é definida como “poética”, mergulho na realidade estudada, efetiva-se nesse
segundo momento como conversão religiosa.
Ao tornar-se africano no Brasil (africanus sum, ele diz na mesma introdução),
Bastide parece incorporar a multiplicidade mesclada do eu, em uma espécie de
paráfrase de Mário de Andrade, quando este afirma em mais de uma ocasião,
“sou trezentos, trezentos e cinquenta”. Em outras palavras, a conversão, longe
de resolver um problema identitário, revela um self plural: ao protestante;
ao poeta e crítico de arte; ao professor e sociólogo cioso do método,
agrega-se agora o Bastide africano, adepto do candomblé.
23 A busca das marcas brasileiras na África, empreendida com a ajuda dos materiais que lhe são
apresentados regularmente pelo amigo Pierre Verger, se aprofunda quando da viagem que realizam juntos ao Benim e à Nigéria, em 1958. Analisei essa viagem no capítulo 4 de A viagem como
vocação, “Bastide e Verger entre áfricas e brasis” (Peixoto, 2016).
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A convivência dessas diversas faces vem acompanhada de um conjunto
de leituras e referências que concorrem para a confecção de uma perspectiva
plural de análise, que se beneficia de contatos e leituras variadas. Ao lado do
estudo dos escritores nacionais e das discussões com os críticos de arte, Bastide
realiza uma revisão dos grandes nomes do pensamento social brasileiro (Sérgio
Buarque de Holanda e Gilberto Freyre, por exemplo), examinando também a
tradição africanista nacional (Nina Rodrigues, Manuel Querino, Arthur Ramos,
Edison Carneiro, entre outros).24 Essas referências oferecem-lhe meios de combinar uma perspectiva sociológica de análise das religiões (verificável em As
religiões africanas no Brasil [Bastide, 1971], obra na qual é central a noção de
“formação”, tal como sugerida por Gilberto Freyre nos anos 1930) a outra de
cunho etnográfico (em O candomblé da Bahia [Bastide, 1978], onde o esforço
é decantar os nichos africanos no interior do amálgama sincrético, descrevendo-os e interpretando-os).
Para a consolidação do problema da interpenetração de civilizações, central a partir da estada brasileira, Bastide retoma e redefine também a formação
francesa primeira. O enfrentamento do sincretismo leva-o a reler Lévy-Bruhl
e a noção de “participação”, teia de relações que enlaça coisas, seres humanos e demais espécies que habitam o universo. Mas ao recuperar o conceito,
retira-o do plano da ideação e da mentalidade mística, para considerá-la como
“categoria pragmática”, operador que orienta a ação e que, portanto, “só existe
quando manipulada” (Bastide, 1978, p. 274). Além disso, a participação, segundo
ele, atuaria em um campo definido pelas classificações primitivas, nos termos
de Durkheim e Mauss. Os primitivos, assim como nós, indica, dividem o universo em compartimentos, que estabelecem correspondências entre si; mas no
interior de cada um deles, verificam-se participações.25
24 Cf. o ensaio de 1939, já citado, e também o balanço realizado em 1974 (Bastide, 1939, 1974b).
25 Em artigo especificamente dedicado à noção de participação, ele anuncia em termos semelhantes: “Talvez fosse melhor substituir a noção de categoria afetiva, que visa explicar o processo
de formação dessas participações pelas leis da psicologia humana, pela expressão ‘categoria
pragmática’, que indica que a categoria só existe manipulada […], o que levaria a substituir a
explicação psicológica por uma explicação sociológica ou cultural da participação”. Aí também
chama a atenção para a confusão frequente entre “participações” e “correspondências”, também
entre “participação” e “identidade”. É preciso atentar, ele diz, para níveis de participação, o que
pode conduzir à identificação, mas também permanecer em um nível de “simples ligação de
forças” (Bastide, 1953, p. 35-37).
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Roger Bastide – entre tempos, espaços, tradições
Tais sugestões serão aproveitas nas análises que realiza do sincretismo religioso (ou “católico-fetichista”) e das equivalências entre divindades africanas
e santos católicos observadas no Brasil, que colocam, ele sugere, um problema
de tradução: vemos uma mesma “realidade sobrenatural mas numa língua
diferente”. As operações tradutórias que definem os processos sincréticos não
significam misturas ou identificações completas, mas são sempre parciais, os
textos originais mantidos em suas complexidades lexicais. “Cada nação conserva os seus deuses mas todos estão reunidos por uma série de equivalências”
(Bastide, 1983a, p. 183).
A interpenetração religiosa faz conviver, em planos diferentes, participações, equivalências ou correspondências, nos termos de Marcel Griaule,
também lido por Bastide quando das pesquisas sobre as “áfricas brasileiras”.
A série de entrevistas realizadas pelo africanista com Ogotemmêli, o caçador
dogon, e reunidas em Dieu d’eau (Griaule, 1966), de 1948, e o modo como percorre os enredos de um pensamento habilidoso na realização de operações
lógicas e de correspondências cosmobiológicas, inspira Bastide a pensar o
candomblé como uma “filosofia sutil” e não apenas como uma religião, o que
ele faz em O candomblé da Bahia (Bastide, 1978), de 1958. Aí, ele se vale também dos escritos de Michel Leiris sobre os aspectos teatrais da possessão
entre os dogon, que encontram forma acabada na tese de 1958 (Leiris, 1958). As
referências a Griaule e Leiris indicam como a etnografia dos nichos africanos
encontrados no Brasil leva Bastide a estabelecer um diálogo estreito com certa
produção africanista francesa, que ele lê no calor da hora ao ritmo das pesquisas realizadas.
A noção de “memória coletiva” de Maurice Halbwachs, de seu lado, é fundamental para que ele reflita sobre como a sobrevivência das marcas africanas
no Brasil e nas Américas deve ser compreendida como processo mnemônico.
Afinal, a cultura africana é recriada em nova geografia em função de viagens
e recomposições, em que se observam criações de tipo bricolagem, realizadas
com fragmentos de memória (Bastide, 1994a). Em Gurvitch, por sua vez, ele
localiza as potencialidades de uma sociologia ao mesmo tempo “pluralista e
empirista”, que combina os interesses durkheimianos pelas normas jurídicas
e pela consciência coletiva com a perspectiva weberiana que enfatiza as condutas e a ação. Além disso, endossa o seu modelo antideterminista, apoiado
na visão da realidade social composta por estratos, que logra relançar a noção
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maussiana de fato social total, permitindo ainda a articulação dos níveis micro
e macrossociológicos de análise (Bastide, 1940b).26
Vemos então que na longa estada brasileira, Bastide não apenas define um
problema que se tornará central em sua obra – o da interpenetração de civilizações – como forja uma perspectiva essencialmente compósita, para a qual
concorrem diferentes repertórios: a sociologia e antropologia francesas, readquiridas e reavaliadas no Brasil; as tradições intelectuais brasileiras (literárias,
sociológicas e antropológicas) e a sociologia e antropologia norte-americanas,
com as quais ele entra em contato no país.
Os problemas de “difusão”, “aculturação”, “assimilação”, “miscigenação” e
“acomodação”, tais como formulados no “Memorandum” de Robert Redfield,
Ralph Linton e Melville Herskovits (1936), são passados em revista pelo autor,
que, reconhecendo seus méritos, tenta deles se afastar (Bastide, 1948). As formulações da Escola de Chicago, por sua vez, inspiram-lhe a pensar as cidades,
as relações raciais, as migrações e as relações interétnicas, temas para os quais
dirige parte importante de sua obra.27 As afinidades de Bastide com os sociólogos e antropólogos de Chicago insinuam-se também em convergências teórico-epistemológicas: as fontes alemãs (a sociologia de Weber, Tönnies e Simmel) e
o tratamento conferido aos fatos individuais, compreendidos em suas relações
com a sociedade e a cultura, e que obrigam à reunião da sociologia, da antropologia e da psicologia (Cuche, 2008).28
26 Marcas da “sociologia em profundidade” de Gurvitch podem se fazer sentir em diversos de seus
trabalhos do período brasileiro e em publicações posteriores; em As Américas negras, por exemplo, Gurvitch auxilia-o projetar um “sincretismo em camadas” (Bastide, 1974a, p. 143).
27 As críticas que empreendeu a vertentes do culturalismo norte-americano não impediram o
estabelecimento de diálogos profícuos com vários de seus expoentes, sobretudo com Herskovits,
com o qual ele partilha uma série de preocupações. A noção de “reinterpretação”, nuclear para
o antropólogo norte-americano, é utilizada por Bastide em mais de uma ocasião, que reconhece
os seus rendimentos para a análise das questões de mudança cultural (o sincretismo seria uma
forma de reinterpretação). As limitações maiores que localiza nas formulações do colega dizem
respeito à falta de uma ancoragem teórica mais ampla, necessária para retirar a discussão do
registro exclusivo das sobrevivências africanas (Bastide, 1974a, p. 362, 375).
28 Denis Cuche observa como dentre os franceses de sua geração Bastide é dos únicos – ao lado de
Halbwachs – a ler e utilizar os autores de Chicago, praticamente desconhecidos na França do
entreguerras (Cuche 2008, p. 43-45). Pierre-Jean Simon (1994, p. 62), por sua vez, lembra como
nos cursos de Bastide nos anos 1950 em Paris, ele tem contato com os autores da Escola de
Chicago; “era praticamente o único a falar nisso”.
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Roger Bastide – entre tempos, espaços, tradições
Tudo indica que Bastide conhece os autores de Chicago por meio dos professores norte-americanos atuantes na Escola de Sociologia e Política de São
Paulo, sobretudo por intermédio de Donald Pierson, aluno de Robert Park, que
em seus anos brasileiros (1939-1956) faz chegar ao país um feitio de trabalho
caro à Chicago, os estudos de comunidade, como também um modelo institucional, com primazia dos estudos pós-graduados e da formação de laboratórios
e grupos, aos quais Bastide se mantém atento. Ecos dos autores de Chicago, e
sobretudo de Park, se fazem sentir de modo mais decidido em suas reflexões
sobre as expressões urbanas das religiões (em “A macumba paulista” [Bastide,
1983d], de 1946, por exemplo) ou quando se volta para o exame do crescimento
da cidade e para o feitio de urbanização de São Paulo (Bastide, 1952).29
É possível localizar ainda outros movimentos empíricos e teóricos ensaiados por Bastide quando de sua estada em terras brasileiras, por exemplo, sua
proximidade de lideranças dos movimentos negros brasileiros e sobretudo
paulistas, com os quais conviveu e sobre os quais escreveu.30 Os aprendizados
retirados desse convívio próximo repercutirão no formato das pesquisas sobre
relações raciais que coordenou com Florestan Fernandes em São Paulo, no bojo
do projeto Unesco em 1951 e 1952; aí verifica-se de forma inédita a colaboração
entre acadêmicos e militantes, o que incidiu sobre os métodos e sobre os resultados das pesquisas (Campos, A., 2014).
As relações entre sociologia e psicologia, cultivadas desde o período de
juventude, serão retomadas em cursos oferecidos na Universidade de São Paulo,
podendo ser aferidas em textos que escreveu para o projeto Unesco – sobre os
sonhos de pessoas negras –, textos nos quais é possível observar forte inclinação para as dimensões psicossociais da experiência (Bastide; Fernandes, 1955).
Os elos com a psicologia encontrarão novas feições em preocupações posteriores com a sociologia das doenças mentais e com a psiquiatria social, que ainda
estão por conhecer avaliação mais detida.31
29 Examinei mais de perto o ponto no capítulo 1 de A viagem como vocação, mostrando como, a
despeito das afinidades, Bastide se afasta de certas dicotomias caras ao vocabulário da sociologia de Chicago – comunidade/sociedade, cultura de folk/cultura civilizada – como também da
associação que Park realiza entre urbanização, secularização e individualização (Peixoto, 2016).
30 Conferir, entre outros, “A imprensa negra no estado de São Paulo” (Bastide, 1983b).
31 As relações com a psicologia nessa fase madura conhecem expressão no livro Sociologie des maladies mentales (Bastide, 1965) e no Centre de psychiatrie social, que ele dirigiu nos anos 1960 e 1970.
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Observações finais
O percurso e a produção de Roger Bastide aqui analisados mostram movimentações permanentes, que auxiliam à compreensão de um perfil plural, marcado
pela convivência de orientações díspares. O Bastide renascido africano no Brasil não substitui o protestante e místico que o período de formação francesa
revela; nem suplanta o jovem aprendiz de poeta ou o crítico de arte; muito
menos o pesquisador cioso do método e investigações detidas. Um dos interesses de sua experiência e obra variadas reside em não ter resolvido de modo
externo as tensões que as fricções entre zonas díspares às vezes produzem, mas
em tê-las incorporado na forma de seu próprio pensamento, que se beneficiou
de trânsitos e deslocamentos perspectivos.
Além de contribuir para a compreensão do autor, o exame de seus escritos e
experiências coloca questões importantes para refletirmos sobre o modo como
pensamos e escrevemos a história da antropologia, de acordo com os objetivos
deste dossiê. Desde logo, ele nos convoca a ampliar os limites estritamente disciplinares, pela incorporação de exemplos que escapam a definições mais estritas em termos de domínios do conhecimento. Aos trânsitos indisciplinados do
autor, somam-se as circulações entre França e Brasil, que o situam ao mesmo
tempo na história da antropologia e da sociologia, em ambos os países. No Brasil,
especificamente, além de notório especialista nas religiões afro-brasileiras, seu
nome figura ao lado de importantes críticos de literatura dos anos 1930 e 1940,
sendo reconhecido também como formador de uma importante geração de
estudiosos e comentadores das artes.
Os movimentos disciplinares, temáticos e epistemológicos experimentados
pelo autor, que o texto procurou evidenciar, deixam sugestões importantes aos
interessados nos balanços históricos de saberes e práticas. De saída, convida-nos a atravessarmos fronteiras e a considerarmos, lado a lado, produções que à
primeira vista não se comunicam. A leitura integrada de seus escritos ilumina,
de outros ângulos, questões e problemas sobre os quais ele se debruçou com a
ajuda de materiais diversos, evitando que apartemos o estudioso das religiões
e o analista das artes, das cidades e do folclore.32
32 Esse tem sido o esforço de minhas leituras do autor, sistematizadas nos dois livros, já mencionados, e em diversos artigos.
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A consideração detida de suas experiências leva-nos ainda a desconfiar da
oposição entre centro e periferia e de um sentido preferencial da circulação
dos saberes, como se houvesse zonas de produção de ideias e outras onde elas
aportam, mais ou menos alteradas. Bastide não apenas descobre concepções
originais nas tradições intelectuais brasileiras, fundamentais na definição de
sua perspectiva analítica, como encontra outras (a antropologia e sociologia
norte-americanas), desconhecidas nos círculos nos quais se formara. E essas
descobertas, realizadas ao sabor dos achados empíricos, permitiram-lhe a revisão de aprendizados primeiros.
O Brasil foi não apenas um rico laboratório de pesquisas para o autor, mas
descortinou um campo de possibilidades, teóricas e metodológicas. Permitiu-lhe também aceder ao ensino universitário e aos meios acadêmicos – lugares
de formação de novas gerações de especialistas, para a qual muito contribuiu33
– sem que deixasse de circular por espaços extramuros, frequentando círculos e figuras atuantes na cena cultural e política da cidade. Ao mesmo tempo
dentro e fora da universidade, pôde testar o estilo monográfico da escrita acadêmica e a forma do ensaio, fazendo-as conviver expressamente em algumas
obras (em Psicanálise do cafuné, [Bastide, 1941] e Imagens do Nordeste místico em
branco e preto, [Bastide, 1945b], por exemplo). Com isso, auxilia-nos a desconfiar
da incompatibilidade entre institucionalização científica e experimentalismos, como se algumas formas expressivas fossem completamente descartadas
diante da “disciplinarização” do conhecimento. Finalmente, o seu exemplo
leva-nos a interconectar passado e presente, mostrando como ideias à primeira
vista ultrapassadas ou autores démodés (Lévy-Bruhl, por exemplo) estão vivos
no presente, permanentemente relidos e reavaliados.
Mas não se trata de fazer de Bastide um caso excepcional. O exercício proposto a partir do seu exemplo tem como uma de suas motivações pensar o
modo como empreendemos o resgate de teorias e autores do passado, perguntando se não seria possível dirigir à história da antropologia as orientações teóricas primeiras de nossa disciplina. Dirigir ao passado a atitude reflexiva que
baliza todo e qualquer estudo antropológico não nos auxiliaria a compreender
33 Não esqueçamos que ele foi também responsável pela formação de uma geração de antropólogos
e sociólogos, como Florestan Fernandes, Maria Isaura Pereira de Queiróz, Fernando Henrique
Cardoso, Ruth Cardoso, entre outros.
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as práticas e saberes em seus próprios termos e, ao mesmo tempo, buscar
extrair suas potencialidades para a reflexão contemporânea? Com o auxílio
de instrumentos adequados parece possível liberar o passado de seu confinamento em um tempo distante, inscrevendo-o no presente, convertendo a estranheza que ele porventura carregue em diferença produtiva, e deixando que ela
afete e transforme as nossas próprias formas de reflexão. Formas “velhas” ou
“antiquadas” de fazer antropologia não poderiam nos provocar e provocar novas
questões?
Uma atitude antropológica dirigida a momentos pretéritos permite uma
recuperação das ideias que não se confunde com o mero registro que visaria,
no limite, preencher as lacunas de um amplo mapa de saberes, trazendo à tona
figuras “menores”, “esquecidas” ou curiosas, que terminariam por compor uma
espécie de museu da disciplina repleto de ídolos e totens, mais ou menos estranhos. Ao contrário, o desafio inscrito na operação (antropológica) de reaver
saberes e práticas outros é converter a diferença que eles exibem em instrumento de indagação, de questionamento e de autorreflexão.34
Uma história da antropologia orientada pela bússola antropológica nos
convida, assim, a colocar em suspeição dicotomias como “científico” x “pré-científico”, “amadorismo” x “profissionalismo”, “central” x “periférico”, “vencedores” x “vencidos”. Claro está que tais categorias podem ser pensadas como
classificações forjadas em situações precisas, que produzem efeitos sobre o
mundo (e que as análises sócio-históricas dos contextos intelectuais permitem
elucidar), mas não parecem ser as ferramentas mais adequadas à compreensão
do caráter de procedimentos e concepções específicos, considerados do ponto
de vista de seus formuladores. Nesse sentido, o célebre lema lévi-straussiano –
a antropologia é a “ciência social do observado” – parece sugestivo para o exame
das práticas e ideias antropológicas, do passado e do presente, que demandam
o tratamento detido de saberes e fazeres de modo a compreendermos linguagens, modelos e condutas, e que pensemos com eles.
É dessa maneira que tenho me voltado para a história da antropologia, procurando realizar investigações minuciosas de produções e experiências, como
as de Roger Bastide, que põem a nu movimentos de contágio e imbricações
34 Esforços bem-sucedidos nessa direção podem ser encontrados em Geiger (1999), Valentini (2013)
e Goyatá (2019).
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entre ideias à primeira vista “envelhecidas” ou “superadas” (seja do ponto das
formulações ou do vocabulário), mas que se revelam repletas de sugestões para
os caminhos da reflexão que fazemos hoje.
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Recebido: 01/02/2021
Aceito: 15/10/2021
|
Received: 2/1/2021
Accepted: 10/15/2021
Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional
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Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 28, n. 62, p. 115-143, jan./abr. 2022
Artigos
Articles
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71832022000100005
Octávio Eduardo, René Ribeiro e Melville
Herskovits. Religiões afro-brasileiras,
aculturação e sincretismo
Octávio Eduardo, René Ribeiro, and Melville
Herskovits. Afro-Brazilian religions, acculturation
and syncretism
João Leal I
https://orcid.org/0000-0002-0513-103X
joao.leal@fcsh.unl.pt
I
Centro em Rede de Investigação em Antropologia, Universidade Nova de Lisboa
– Lisboa, Portugal
Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 28, n. 62, p. 145-177, jan./abr. 2022
João Leal
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Resumo
Este artigo é dedicado aos contributos dos antropólogos brasileiros Octávio Eduardo
e René Ribeiro para a tematização do sincretismo. Ambos foram dois dos mais importantes estudiosos das religiões afro-brasileiras a partir de final dos anos 1940. Ambos
foram também orientandos de Melville Herskovits e inscreveram o seu interesse pelo
sincretismo no quadro mais geral da teoria da aculturação proposta por este antropólogo norte-americano. O artigo debruça-se sobre as contribuições mais gerais dos dois
antropólogos para o estudo das culturas e religiões afro-brasileiras para se centrar
depois nos seus contributos para a tematização do sincretismo, com destaque para a
sua identificação de diferentes formas de sincretismo e para a sua interpretação das
razões da sua importância no tambor de mina (Maranhão) e no xangô (Recife).
Palavras-chave: religiões afro-brasileiras; sincretismo; aculturação; história da
antropologia.
Abstract
This paper addresses the contributions of Brazilian anthropologists Octávio Eduardo
and René Ribeiro to the thematization of syncretism. Both anthropologists wrote
majors contributions to the study of African-Brazilian religions from the 1940s
onwards. Both were also supervised by Melville Herskovits and addressed syncretism
through the lens of the herksovitsian theory of acculturation. The paper addresses
their more general contributions to the study of African-Brazilian cultures and religions, as well as their more specific contributions to the study of syncretism, with
special emphasis on the identification of different forms of syncretism and the discussion of the reasons for their importance in tambor de mina (Maranhão) and in
xangô (Recife).
Keywords: Afro-Brazilian religions; syncretism; acculturation; history of anthropology.
Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 28, n. 62, p. 145-177, jan./abr. 2022
Octávio Eduardo, René Ribeiro e Melville Herskovits. Religiões afro-brasileiras…
Abordado de uma forma pioneira por Nina Rodrigues (2006, 2008), o tema do
sincretismo ganhou nos anos 1930 e 1940 um lugar de destaque na reflexão
antropológica sobre religiões afro-brasileiras. É então que, pela mão de Arthur
Ramos (2001), surge no Brasil a expressão (ausente, apesar do seu interesse pelo
tópico, da obra de Nina Rodrigues).1 E é desse período que datam as primeiras
abordagens ampliadas ao tema, em particular nas obras de Arthur Ramos e de
Edison Carneiro. Enquanto o primeiro se distinguiu pela sua tentativa de sistematização dos vários tipos de sincretismo presentes nas religiões afro-brasileiras,
o segundo destacou-se pela aplicação do conceito ao candomblé da Bahia, com
particular destaque para o chamado candomblé de caboclo. É também com eles
que – no seguimento de Nina Rodrigues – se aprofunda a reflexão sobre as razões
do sincretismo (Leal, 2021). Mas foi sobretudo a partir do final dos anos 1940 e
no decurso das décadas de 1950 e 1960 que o sincretismo ganhou os seus tratamentos mais ambiciosos. O nome de Roger Bastide é usualmente retido a esse
respeito e existe alguma bibliografia recente sobre esse seu continuado interesse
pelo tema (e.g. Capone, 2000; 2007). Este, tendo-se iniciado com o livro Imagens do
Nordeste místico em branco e preto (Bastide, 1945), irá de facto acompanhar em plano
de relevo toda a sua reflexão posterior sobre religiões afro-brasileiras com destaque, em 1960, para Les religions africaines au Brésil (Bastide, 1960). Mas outros autores deram igualmente, nesse período, contributos relevantes para o seu estudo.
Entre eles, contam-se dois dos três discípulos brasileiros de Melville Herskovits:
Octávio Eduardo – que pesquisou no Maranhão, com ênfase no tambor de mina
– e René Ribeiro – baseado no Recife e um dos principais estudiosos do xangô.2
É aos contributos desses dois antropólogos para a tematização do sincretismo que este artigo é dedicado. Nele, começo por apresentar a obra de
Eduardo e de Ribeiro para em seguida me focar na relação que ambos mantiveram com Herskovits, sob cuja supervisão escreveram os seus livros mais importantes – The Negro in Northern Brazil: a study in acculturation, de 1948, no caso de
Eduardo (1966), e Cultos afro-brasileiros do Recife: um estudo de ajustamento social,
de 1952, no caso de Ribeiro (1978). Debruço-me sobre as contribuições mais
1
Ver Leal (2020).
2
Um terceiro antropólogo brasileiro orientado por Herskovits foi Ruy Coelho (2000, 2002),
mas, como é sabido, a sua pesquisa não incidiu sobre o Brasil, mas sobre os caraíbas negros
(Honduras).
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gerais de ambos os antropólogos para o estudo das culturas e religiões afro-brasileiras para me centrar depois nos seus contributos mais específicos para
a tematização do sincretismo. Enfatizo, em particular, o modo como ambos
identificaram diferentes formas de sincretismo e interpretaram as razões da
sua importância no tambor de mina e no xangô. Na abordagem deste último
ponto dou particular ênfase ao modo como a reflexão de Ribeiro sobre o tema
irá encostar, sobretudo a partir de Religião e relações raciais (Ribeiro, 1956a), às
ideias de Gilberto Freyre sobre a mestiçagem cultural do Brasil. Nas conclusões, abordo aquelas que me parecem ter sido as contribuições principais de
Eduardo e Ribeiro para o estudo do sincretismo nas religiões afro-brasileiras.
Octávio Eduardo e René Ribeiro
Nos anos 1950 e 1960 – dando continuidade a tendências que já haviam emergido no final dos anos 1940 – a antropologia das religiões afro-brasileiras
entrou numa nova fase marcada, entre outros traços, pela sua academização.
Não é que antes – nomeadamente em Arthur Ramos – essa tendência não se
tivesse já esboçado, mas foi sobretudo então que se tornou mais expressiva. De
facto, os autores mais relevantes dessas décadas – não apenas Octávio Eduardo
e René Ribeiro, mas também Roger Bastide e Waldemar Valente – tinham uma
ligação forte à universidade, em particular aos dois grandes polos que se afirmavam então na cena antropológica brasileira – um baseado no Nordeste e, em
particular, no Recife, outro baseado no Sudeste, especialmente em São Paulo.
Essa academização da antropologia é uma característica geral desse
período. De acordo com Mariza Corrêa (1987), os anos 1950 e 1960 caracterizam-se de facto não apenas pelo desenvolvimento de pesquisas empíricas,
como por passos importantes no sentido da implementação do ensino universitário de antropologia. Tornou-se também relevante a “associação de orientações teóricas ‘modernas’” (Corrêa, 1987, p. 22) vindas de fora – nomeadamente
pela mão de brasilianistas que desenvolviam então pesquisa no Brasil – “com
tradições bem estabelecidas dos intelectuais nacionais” (Corrêa, 1987, p. 22-23).
Embora Corrêa destaque o peso dos grandes projetos de pesquisa nesse novo
curso da antropologia brasileira (projeto da Unesco sobre relações raciais, projeto do Vale de São Francisco, projeto Universidade da Bahia/Universidade
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Octávio Eduardo, René Ribeiro e Melville Herskovits. Religiões afro-brasileiras…
de Columbia), essa tendência é mais geral e dela é expressão, justamente, a
cooptação académica da antropologia das religiões-brasileiras.
Eduardo e Ribeiro são dois dos autores em que essa inscrição académica
dos estudos sobre religiões de matriz africana é mais importante. Octávio
Eduardo teve uma carreira mais breve nessa área. Depois da publicação dos
seus estudos sobre culturas de matriz africana no Maranhão – em particular
sobre o tambor de mina – ainda participou no projeto do Vale de São Francisco
– sobre o qual não chegou a escrever – para depois trocar a sua promissora carreira de antropólogo por uma carreira de especialista de estudos de mercado e
de opinião, área em que teve, no Brasil, um papel pioneiro.3
Filho de um comerciante paulista de café que entrou em bancarrota na
sequência da grande depressão de 1929, Eduardo frequentou o curso noturno da
Escola Livre de Sociologia e Política (ELSP) de São Paulo entre 1938 e 1940, onde
foi aluno, entre outros, de Donald Pierson, Radcliffe-Brown, Herbert Baldus e
Emílio Willems (Ramassote, 2017a). Foi justamente a partir da ELSP que lançou
a sua carreira de antropólogo. Pierson havia então iniciado um programa que
visava enviar estudantes brasileiros a prosseguirem os seus estudos pós-graduados em universidades norte-americanas e a ideia inicial de Eduardo – que havia
ficado fascinado com a obra de Robert Redfield – era frequentar a Universidade
de Chicago. O seu nome chegou, entretanto, ao conhecimento de Herskovits, que
o desviou para a Northwestern University. Foi nessa universidade – que frequentou a partir de 1941 – que completou a sua tese de mestrado (nunca publicada).
Uma vez terminada esta, iniciou imediatamente o doutoramento e foi
então que, por sugestão de Herskovits, realizou a sua pesquisa sobre culturas
e religiões afro-brasileiras no Maranhão. Essa “sugestão” – na realidade uma
quase imposição (Silva, V., 2000, p. 28) – parece ter resultado do interesse de
Herskovits pelo estudo das “sobrevivências daomeanas” nesse estado brasileiro. Esse interesse remontava à sua pesquisa no Haiti (Herskovits, 1937b) e
tinha-se posteriormente fortalecido com o seu trabalho de campo no Daomé
(Herskovits, 1937a). Não tendo tido a oportunidade de realizar ele próprio a pesquisa no Maranhão, coube a Eduardo a tarefa de concretizar esse sonho daomeano de Herskovits. Fazendo-o, Eduardo, além de ter sido o primeiro antropólogo
3
Para uma apresentação geral da obra de Eduardo, ver S. Ferretti (2017) e Ramassote (2017a).
A correspondência entre Eduardo e Herskovits foi publicada por Ramassote (2017b).
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brasileiro a fazer o seu doutoramento numa universidade norte-americana, foi
também o primeiro antropólogo brasileiro a realizar pesquisa sobre religiões
afro-brasileiras fora do estado onde residia (São Paulo).
O livro que resultou da sua pesquisa abrange dois contextos distintos: a cidade
de São Luís e o povoado de Santo António dos Pretos (Codó). Embora abarcando
outros temas – como a vida económica ou a organização familiar – o foco principal da pesquisa de Eduardo foi a religião, com particular relevo, em São Luís, para
o tambor de mina. Essa religião afro-brasileira, como foi sublinhado por Sérgio
Ferretti (1995, p. 78-85), era, até à década de 1940, praticamente desconhecida na
cena intelectual afro-americana e foi então que foram publicadas as primeiras
contribuições para o seu estudo, com destaque para os artigos do antropólogo
português Edmundo Correia Lopes (1939, 1942, 1945, 1947), para o livro de Nunes
Pereira (1979) sobre a Casa das Minas e para a monografia de Oneyda Alvarenga
(1948), realizada no âmbito da Missão de Pesquisas Folclóricas. Eduardo insere-se,
em plano de destaque, nessa vaga pioneira de estudos sobre o tambor de mina.
Uma vez concluída a pesquisa, Eduardo regressou aos Estados Unidos, onde redigiu a sua tese de doutoramento, posteriormente editada em
livro, que conheceria duas edições em 1948 e em 1966 (mas que, infelizmente,
nunca chegou a ser traduzido para português). Mais tarde – já na década de
1950 – Eduardo escreveu outros dois artigos a partir do seu trabalho de campo
(Eduardo, 1951, 1952), mas a sua vida tomará em breve outro rumo, que – como
vimos antes – o conduzirá a trocar a antropologia pelos estudos de mercado e
de opinião. Para trás ficava uma breve mas cintilante carreira no estudo das
religiões afro-brasileiras, à qual ficamos a dever uma das melhores – senão
mesmo a melhor – monografia sobre o tema escrita nos anos 1940 e 1950.
Cinco anos mais velho do que Octávio Eduardo, René Ribeiro terá, ao seu
invés, uma vida inteira dedicada à antropologia. Filho de um médico recifense
e ele próprio formado em medicina, começou por pesquisar e publicar, sob o
impulso inicial e a direção de Ulysses Pernambucano, em áreas relacionadas
com a saúde e a psiquiatria. Será a partir desses campos disciplinares que – tal
como Pernambucano – construirá o seu interesse inicial pelas religiões afro-brasileiras e, em particular, sobre o xangô do Recife.4
4
Sobre a obra de René Ribeiro no campo das religiões afro-brasileiras ver Motta (1993) e os estudos reunidos em Campos, Pereira e Matos (2017).
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Octávio Eduardo, René Ribeiro e Melville Herskovits. Religiões afro-brasileiras…
Replicava assim, à sua maneira, o percurso de outros seus antecessores –
como Nina Rodrigues e Arthur Ramos – que, tal como ele, tinham viajado
da medicina para a antropologia. Para isso contribuíram, segundo o próprio
Ribeiro (1983/1984, p. 86), a sua leitura de Casa-grande e senzala, de Gilberto
Freyre (1957), de 1933, e a sua participação no 1º Congresso Afro-Brasileiro (1934)
realizado no Recife, onde terá tido o seu primeiro contacto com a reflexão
de Herskovits. Este, embora não tenha participado presencialmente no Congresso, apresentou aos seus trabalhos duas comunicações escritas (Herskovits,
1935a, 1935b). Terá sido na mesma década que conheceu outros autores que
haviam escrito sobre religiões afro-brasileiras – como Arthur Ramos, Manuel
Querino, João do Rio e Edison Carneiro (Ribeiro 1983/1984, p. 86) – mas serão
Herskovits e Freyre que marcarão a posterior reorientação culturalista da sua
reflexão sobre religiões afro-brasileiras.
Esta terá lugar nos anos 1940, isto é, na mesma década em que Eduardo
estava já a caminho do Maranhão. Para isso terá contribuído – tal como no
caso de Eduardo – a figura de Donald Pierson, com quem entrou em contacto
durante uma estadia na ELSP. Mas, tal como no caso de Eduardo, terá sido o
seu encontro com Herskovits aquele que influirá mais decisivamente no novo
curso que a sua obra toma a partir de 1945, quando escreve o artigo “On the
amaziado relationship and other aspects of the family in Recife” (Ribeiro, 1945).
Esse encontro ocorreu por ocasião da passagem de Herskovits pelo Recife em
maio de 1942, no âmbito da sua estadia de cerca de um ano no Brasil. Foi esse
encontro que ocasionou, nas palavras de Ribeiro “uma guinada de cento e
oitenta graus” (Ribeiro, 1983/1984, p. 89) na sua pesquisa. O artigo de 1945 – em
que toma posição a favor de Herskovits no seu famoso debate com Franklin
Frazier sobre a organização familiar de grupos de matriz africana nas Américas
– testemunha da amplitude dessa viragem.
Foi na sequência desse contacto inicial que, em 1949, Ribeiro frequentou a
Northwestern University, onde, sob a direção de Herskovits, escreveu a sua tese
de mestrado. A tese apoiava-se no seu já extenso conhecimento sobre o xangô
e viria a ser publicada em português em 1952, sob o título Cultos afro-brasileiros
do Recife. Um estudo de ajustamento social (Ribeiro, 1978). Antes Ribeiro havia
publicado outros artigos sobre o xangô (e.g. Ribeiro, 1951a, 1951b), tema sobre
o qual continuará posteriormente a escrever com regularidade. Particularmente importantes são os seus artigos sobre possessão (Ribeiro, 1956b), sobre
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as cerimónias dos Ibêji (Ribeiro, 1957a), e, já posteriormente aos anos 1950, a
sua contribuição sobre a relação entre cultos afro-brasileiros e a homossexualidade masculina (Ribeiro, 1969) e a sua interpretação de alguns aspetos cerimoniais do xangô à luz dos conceitos de liminaridade e communitas (Ribeiro,
1986). Diferentemente do tambor de mina – que era praticamente desconhecido até aos anos 1940 – o xangô havia já sido objeto das inquirições etnográficas de Gonçalves Fernandes (1937) e será também um dos temas de pesquisa
de Waldemar Valente (e.g. Valente, 1976). Mas foi sobretudo com Ribeiro que
ele entrou de forma mais decidida no repertório antropológico das religiões
afro-brasileiras.
Tendo no estudo do xangô a sua pièce de résistance, a obra de Ribeiro – que
no seu regresso ao Brasil havia começado a colaborar com Gilberto Freyre no
recém-criado Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais e que, a partir
de 1957, passou a ensinar na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) –
abrangeu outros temas. Foi dele o primeiro estudo antropológico do figurado de
Mestre Vitalino (Ribeiro, 1959a), cuja importância para a consagração do famoso
artista popular brasileiro foi sublinhada por Waldeck (2009, p. 21). Estudou
também os movimentos messiânicos no Nordeste brasileiro (e.g. Ribeiro, 1962,
1968) e escreveu vários artigos sobre pesquisa social. Mas foi sobretudo o autor
de Religião e relações raciais (Ribeiro, 1956a), resultante de uma das pesquisas
regionais empreendidas no quadro do projeto da Unesco sobre relações raciais
no Brasil. Alinhado com as teses de Freyre (Maio, 1999; Motta, 2007), o livro de
Ribeiro debruça-se sobre a importância da religião – em particular do catolicismo português – na formatação das relações raciais no Nordeste, enfatizando
a sua contribuição para a miscigenação cultural e para os processos aculturativos. Pese embora alguma escassez de referências explícitas às religiões afro-brasileiras, o livro não deixa, entretanto, de dialogar com as linhas de análise
desenvolvidas por Ribeiro em torno do xangô.
A sombra de Herskovits
Marcadas pelo seu interesse comum pelas culturas e religiões de matriz africana no Brasil, as obras de Octávio Eduardo e René Ribeiro colocam também esse interesse sob o signo de Herskovits. De facto, como foi referido
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Octávio Eduardo, René Ribeiro e Melville Herskovits. Religiões afro-brasileiras…
anteriormente, ambos os antropólogos escreveram as suas monografias mais
importantes sob a supervisão de Herskovits. E, como veremos mais adiante,
essa circunstância revelou-se de grande importância não apenas para a montagem do quadro analítico que ambos usaram na sua abordagem ao tambor
de mina e ao xangô, mas também para a inscrição das suas contribuições no
campo da modernidade antropológica.
O papel que Herskovits desempenhou na pesquisa de Eduardo e de Ribeiro
é indissociável do itinerário de Herskovits no âmbito dos estudos afro-americanos, de que foi a figura mais destacada durante os anos 1930 e 1940.5 Baseado na
Northwestern University – onde tinha fundado o Departamento de Antropologia em 1938 e lançado, em 1948, o Programa de Estudos Africanos – Herskovits
havia de facto desenvolvido um diversificado percurso de pesquisa – sempre
acompanhado pela sua esposa Francis Herskovits – que passou sucessivamente pela Guiana holandesa (Herskovits; Herskovits, 1934), pelo Haiti (Herskovits, 1937b), pelo Daomé (Herskovits, 1937a), pelo sul dos Estados Unidos
(Herskovits, 1941) e por Trinidad (Herskovits; Herskovits, 1947). Era não apenas
o antropólogo com mais experiência empírica sobre culturas afro-americanas,
mas um dos antropólogos mais destacados na formulação de um quadro analítico sobre o tema.
Esse quadro baseava-se em grande medida na teoria da aculturação, de que
ele foi um dos mais importantes teorizadores (Herskovits, 1938, 1948; Redfield;
Herskovits; Linton, 1936). De acordo com a definição inicial proposta no
“Memorandum for the study of acculturation” – à qual Herskovits se manterá
fiel – a aculturação compreenderia
those phenomena which result when groups of individuals having different cultures come into continuous first-hand contact, with subsequent changes in the
original cultural patterns of either or both groups. (Redfield; Herskovits; Linton,
1936, p. 149).
5
Existe uma extensa bibliografia sobre Herskovits, que se torna impossível citar no espaço deste
artigo. Um dos antropólogos que mais se tem debruçado sobre a obra do antropólogo norte-americano é Kevin Yelvington, autor de um texto em que são abordadas as relações entre
Herskovits e a antropologia brasileira (Yelvington, 2007).
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Propondo uma interpretação simultaneamente histórica e antropológica
dos processos de difusão e adaptação das culturas africanas ao “Novo Mundo”,
a teoria da aculturação repousava – para além do conceito de aculturação –
sobre conceitos como os de base de partida cultural (cultural baseline), foco
cultural, retenção, reinterpretação e contra-aculturação – a partir dos quais
seria possível tematizar as viagens e as transformações das culturas africanas
nas Américas. Nalguns dos seus livros, essa aproximação encontrava-se ao
serviço de uma visão das culturas afro-americanas marcada pela ênfase nos
“africanismos”. Essa ênfase nos africanismos, porém, foi sendo equilibrada com
uma crescente atenção aos processos de transformação das culturas negras
nas Américas, aspeto que se se tornará mais claro a partir dos anos 1950, com
o distanciamento de Herskovits em relação a alguns dos seus iniciais excessos
africanistas (e.g. Herskovits, 1966e).
Conjugando pesquisa empírica em múltiplos contextos afro-americanos (e africanos) com um quadro analítico que combinava sensibilidade às
raízes com atenção em relação às transformações, Herskovits foi também um
antropólogo atento à importância de articular a sua própria pesquisa com pesquisas de outros antropólogos, por forma a construir um quadro empírico e
analítico mais sólido e alargado. Isso passou, por um lado, pelo estímulo que
deu a outros pesquisadores norte-americanos interessados no tema. Mas passou também pela montagem de uma rede transnacional de correspondência e
colaborações com alguns dos principais pesquisadores das culturas afro-americanas baseados em diferentes países da América Latina – cujas obras ele
conhecia e citava nos seus escritos. Entre esses pesquisadores contam-se, por
exemplo, Jean Price-Mars e Louis Mars (no Haiti) ou Fernando Ortiz (em Cuba)
(Yelvington 2006). Será essa orientação transnacional da pesquisa antropológica, associada à vontade de Herskovits de ampliação dos repertórios culturais
afro-americanos, que estará na base do seu envolvimento com o Brasil – que
terá um dos momentos mais altos na sua supervisão das teses de Eduardo e
de Ribeiro.
Esse envolvimento começa por remontar aos anos 1930 e tem a sua primeira expressão nas comunicações enviadas por Herskovits ao 1º Congresso
Afro-Brasileiro realizado em 1934 no Recife (Herskovits, 1935a, 1935b). O convite partiu de Gilberto Freyre, com quem Herskovits se corresponde a partir
desse ano.
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Octávio Eduardo, René Ribeiro e Melville Herskovits. Religiões afro-brasileiras…
A partir desse contacto inicial, o envolvimento de Herskovits com o Brasil
não cessará de se aprofundar. Nele começa por ocupar lugar de relevo a sua
colaboração com Arthur Ramos, que era, nos anos 1930 e 1940, a figura mais
destacada do interesse antropológico pelas religiões afro-brasileiras e que se
debruçou também, sobretudo a partir dos anos 1940, sobre o tema das relações raciais (Guimarães, 2008). Essa colaboração iniciou-se com uma carta
de Ramos a Herskovits acompanhada do envio de três obras da sua autoria.
Provavelmente em resultado desse primeiro contacto, Herskovits será convidado a enviar para o 2º Congresso Afro-Brasileiro realizado em 1937, na Bahia,
uma das suas mais famosas contribuições para o estudo das religiões afro-americanas – “Deuses africanos e santos católicos nas crenças do negro do
Novo Mundo” (Herskovits, 1940). Mas o mais importante fruto da colaboração
entre Ramos e Herskovits foi a viagem que Ramos efetuou aos Estados Unidos
em 1940 e 1941. Para além de uma estadia de dois meses na Louisiana State
University e de várias conferências em diferentes universidades norte-americanas, Ramos passou dois meses na Northwestern University. Na sequência
multiplicaram-se os convites e oportunidades para que Ramos publicasse em
inglês, tendo a sua deslocação sido de grande importância para a solidificação
do seu renome entre os estudiosos norte-americanos das culturas africanas do
“Novo Mundo”.
Na sequência desses contactos com a antropologia brasileira, Herskovits
– crente na importância dos factos brasileiros para a sua visão continental
das culturas afro-americanas – ir-se-á envolver de forma mais decisiva com o
Brasil nos anos 1940. A sua rede de correspondentes alargou-se então, passando
a incluir, entre outros, Roger Bastide (Guimarães, 2008, p. 73), sobre quem exerceu uma influência intelectual que tem sido sublinhada (Peixoto, 2000, p. 102).
Entre setembro de 1941 e agosto de 1942, conduziu também pesquisa no Brasil.
Para além de ter visitado o Rio de Janeiro e o Recife, realizou estadias de pesquisa mais longas na Bahia e no Rio Grande do Sul. O objetivo inicial da sua
pesquisa seria – à semelhança do que já havia feito na Guiana holandesa ou
no Haiti – a edição de um livro que daria lugar de destaque à sua pesquisa na
Bahia. Esse livro, porém, nunca verá a luz do dia. Herskovits tinha tido problemas de saúde durante a sua estadia no Brasil que dificultaram a sua pesquisa
e é possível que isso tenha tornado mais difícil a concretização do seu projeto.
Por isso, em vez do livro, Herskovits optará pela publicação de um conjunto
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de dez artigos, alguns dos quais serão mais tarde reeditados em The new world
Negro (Herskovits, 1966c).6
Apesar da sua deslocação ao Brasil – provavelmente já antes dela – Herskovits tinha-se dado conta que a inclusão das religiões e culturas afro-brasileiras no repertório mais vasto das religiões e culturas afro-americanas não
era – devido à dimensão do país e à diversidade da sua herança africana – a
tarefa para um homem só. É nesse ponto que entra a sua supervisão de Eduardo e de Ribeiro. Por seu intermédio, ele não só garantia que os factos brasileiros viessem a alargar a sua visão continental das culturas e das religiões
afro-americanas, como solidificava o seu estatuto de maior especialista sobre
o tema, com capacidade para influenciar analiticamente a expansão desse terreno disciplinar.
Herskovits, Eduardo e Ribeiro
Essa capacidade de influência analítica é particularmente visível nos escritos
de Octávio Eduardo sobre as culturas e religiões afro-brasileiras do Maranhão,
em particular na sua monografia The Negro in Northern Brazil: a study in acculturation (Eduardo, 1966). Como o próprio título sugere, a obra pode ser apresentada como um estudo sobre a aculturação das culturas negras no Maranhão,
influenciada pelas teorizações de Herskovits e em particular pelo conceito de
aculturação.
Este é objeto de uma breve apresentação inicial que retoma, citando-a, a
definição do “Memorandum for the study of acculturation” (Redfield; Linton;
Herskovits, 1936) e é à sua luz que Eduardo (1966, p. 1-2) define como seu objetivo principal o estudo da
6
Embora a maioria dos artigos se reporte ao material empírico que havia recolhido na Bahia,
um deles é dedicado aos cultos afro-brasileiros no Rio Grande do Sul (Herskovits, 1966f). Entre
os artigos sobre o candomblé baiano, deve ser sublinhada, para além do artigo “Pesquisas
etnológicas na Bahia” – inicialmente publicado em 1943 e republicado em 1967 na revista Afro-Ásia (Herskovits, 1967) – a importância dos artigos dedicados à música (Herskovits, 1966b;
Herskovits; Herskovits, 1947; Herskovits; Waterman, 1949).
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Octávio Eduardo, René Ribeiro e Melville Herskovits. Religiões afro-brasileiras…
preservation of African ways of life, the acceptance of European customs and
institutions, the degrees of integration which have been achieved between African and European traditions to form the present culture of Maranhão.
Como foi sublinhado anteriormente, a sua monografia é marcada pela abrangência, uma vez que procede à abordagem sucessiva de um contexto rural –
Santo António dos Pretos – e de um contexto urbano – São Luís.7 Ao mesmo
tempo – contrariamente ao foco na religião que encontramos nas pesquisas
afro-brasileiras de Nina Rodrigues, Arthur Ramos e Edison Carneiro – The Negro
in Northern Brazil debruça-se, para além da religião, sobre diferentes dimensões
da vida social e cultural de Santo António dos Pretos e de São Luís com destaque para a economia e para a organização familiar.
As conclusões principais da monografia de Eduardo são conhecidas. Ao
passo que em Santo António dos Pretos as influências africanas seriam maiores na economia e na família e menos evidentes na religião, em São Luís passar-se-ia o contrário: a presença de africanismos – embora misturados com
influências europeias – seria mais evidente na religião, enquanto na economia
e na organização familiar se passaria o inverso.
Organizado em torno dessa tese central, The Negro in Northern Brazil não só
vai buscar a Herskovits o seu foco central na aculturação, como a influência do
antropólogo norte-americano se estende a outros pontos do seu argumento. As
suas constantes remissões para África – usuais nas pesquisas anteriores sobre
religiões afro-brasileiras – são feitas sobretudo com recurso a Herskovits, em
particular às suas monografias sobre o Daomé (Herskovits, 1937a). Mas, mais
importante do que isso, é a Herskovits que Eduardo vai buscar um conjunto
de outros conceitos como reinterpretação, foco cultural – aplicado, como em
Herskovits, à religião – ou “províncias culturais do Velho Mundo” – que utiliza para reconstituir a base de partida cultural das influências africanas e
europeias.
É ainda a influência de Herskovits que podemos encontrar nos dois artigos
que Eduardo dedicou ao estudo dos abatazeiros (tocares de abatá, nome dado
7
Embora nenhuma contribuição de Robert Redfield sobre o tema seja mencionada na bibliografia da monografia, pode ter havido nessa escolha ecos da atração inicial de Eduardo pelas ideias
do antropólogo norte-americano e, em particular, pelo seu conceito de folk-urban continuum.
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em São Luís aos tambores que dirigem os toques de tambor de mina) (Eduardo,
1952) e ao folclore de origem africana em Santo António dos Pretos (Eduardo, 1951).
Enquanto o primeiro artigo replica para o tambor de Mina a aproximação proposta por Herskovits (1966b) para o candomblé da Bahia em “Drums and drummers in Afro-Brazilian cult life”, o segundo, colocado sob o signo da aculturação,
recorre novamente a Herskovits como seu interlocutor africanista privilegiado.
Presente em Eduardo, a influência de Herskovits estende-se também a René
Ribeiro. De facto, a sua monografia sobre o xangô (Cultos afro-brasileiros do Recife)
coloca-se igualmente sob o signo da aculturação. Como ele escreve logo no início
da obra, esta tem como horizonte o estudo do “processo aculturativo que sucedeu ao […] encontro [de sudaneses e bantus] com representantes das culturas
ameríndias e europeias” (Ribeiro, 1978, p. 24). Não é que as retenções africanas
não ocupem – como em Eduardo – um lugar muito relevante na sua análise. Mas
a atenção aos processos aculturativos não deixa de ser uma constante da sua
monografia e, com o tempo, ganhará – como veremos – mais relevo na sua obra.
Tal como em Eduardo, a adoção do argumento aculturativo faz-se acompanhar da mobilização de outros conceitos de Herskovits, como foco cultural
ou reinterpretação. Assim, em “Xangô” (Ribeiro, 1954), há uma presença forte
dos conceitos de reinterpretação e contra-aculturação, que se combina como
uma análise das funções sociais do xangô inspirada em Herskovits. A análise
da possessão proposta por Ribeiro (1956b) é também feita à luz da argumentação culturalista que havia sido desenvolvida por Herskovits. E no artigo sobre
os Ibêji é ainda a influência de Herskovits que é possível detetar, nomeadamente na utilização dos conceitos de reinterpretação (Ribeiro, 1957a, p. 130) e
contra-aculturação (Ribeiro, 1957a, p. 138). Por fim, alguns textos mais tardios
de Ribeiro – escritos já depois da morte de Herskovits – tornarão ainda mais
clara a sua dívida para com o antropólogo norte-americano, cuja obra é objeto
de múltiplos elogios.
O sincretismo em Octávio Eduardo
É no interior desse quadro analítico, em que a aculturação ocupa um papel
central, que é possível entender o recurso ao conceito de sincretismo na
obra de Octávio Eduardo e de René Ribeiro. Enquanto, na sua formulação
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Octávio Eduardo, René Ribeiro e Melville Herskovits. Religiões afro-brasileiras…
herskovitsiana, aculturação era um conceito abrangente, suscetível de ser aplicado a diferentes facetas da vida social e cultural dos grupos afrodescendentes,
o conceito de sincretismo aplicar-se-ia – de forma mais especializada – aos processos de aculturação no domínio da religião.
A história do conceito de sincretismo na antropologia das religiões afro-brasileiras é conhecida (Leal, 2021). Proposto primeiro por Jean Price-Mars (2008)
na sua obra sobre o vodu haitiano, de 1928, o conceito surge também, ligeiramente mais tarde, no livro de Arthur Ramos (2001) O negro brasileiro, de 1934,
aparentemente de forma independente.8 A partir dessas formulações iniciais,
o conceito espalhou-se rapidamente entre os autores ativos no estudo das religiões afro-americanas nos anos 1930 e 1940. No Brasil, foi adotado por antropólogos como Edison Carneiro e Gonçalves Fernandes. E em 1937 foi cooptado por
Herskovits no seu famoso artigo “African gods and catholic saints in new world
Negro belief” (Herskovits, 1966a), tendo-se tornado, depois dessa data, uma presença recorrente na sua obra.9
Para Herskovits (1966a, p. 322) seriam duas as características principais do
sincretismo nas religiões afro-americanas:
The Negroes profess nominal Catholicism while at the same time they belong to
“fetish” cults which are under the direction of priests whose functions are essentially African […]; the ceremonialism and ideology of these “fetish cults” exhibit
Catholic elements more or less prominently, and everywhere specific identifications are made between African Gods and Catholic saints.
Seja por influência direta de Herskovits, seja simultaneamente devido à sua
importância na obra dos antropólogos brasileiros dos anos 1930 e 1940 – com
8
De facto, em 1934, Arthur Ramos desconhecia ainda a obra de Price-Mars. Terá sido a partir da
leitura do psicanalista e historiador das religiões austríaco Theodor Reik que Ramos cooptou o
conceito para o campo das religiões afro-brasileiras (ver Leal, 2021).
9
Herskovits poderá ter-se inspirado tanto em Price-Mars como em Ramos – autores que cita no
artigo de 1937 – mas a influência de Ramos parece ter sido mais determinante. De facto, num
artigo de 1956, Herskovits (1966d, p. 78) escreverá que “one of the earliest concepts of students
in the Afroamerican field was that of syncretism. In extended form, it was given expression by
Ramos in his studies of religious beliefs of Afrobrazilians.”
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particular destaque para Arthur Ramos – o conceito de sincretismo vai-se revelar central na obra de Eduardo e de Ribeiro.
Na obra de Eduardo, ele surge logo no capítulo inicial de The Negro in Northern Brazil. Aí, Eduardo (1966, p. 3, grifo meu) escreve que “the merging of religious and other cultural forms has received the name of synchretization, most
widely recognized in the field of religion”. Mas é sobretudo no capítulo V da sua
monografia – dedicado á religião – que o conceito é mais intensivamente usado.
Como ele escreve logo na abertura do capítulo:
Most of the Maranhão Negroes are professing Catholics. […] Yet […] certain Negro
groups in São Luís and most of the Negroes of [Santo António dos Pretos], hold
beliefs of African origin and participate in cult rites of African derivation. […]
The acceptance of Christianity […] has by no means meant the disappearance of
African beliefs or patterns of worship. Rather they have been syncretized with the
new religion. (Eduardo, 1966, p. 46, grifo meu).
Em Santo António dos Pretos, entretanto, a herança africana estaria mais
“diluída” (Eduardo, 1966, p. 47) e expressar-se-ia sobretudo por intermédio do
terecô.10 Embora a matriz geral do culto fosse africana – nomeadamente no
tocante à importância da dança com possessão – este caracterizar-se-ia por
várias misturas, particularmente evidentes nos nomes dos encantados que se
manifestam durante os toques. Embora sejam referidas entidades espirituais
com nomes africanos, seriam as entidades com nomes indígenas e luso-brasileiros as que baixariam nos fiéis. Tal não impede que alguns traços africanos
não continuem a ser evidentes, mas seriam mais pontuais. Seria esse o caso da
designação de brinquedo (de “brincar”, que significa dançar em África) dado ao
terecô ou, sobretudo, da importância de Légua Boji – uma entidade espiritual
hoje muito conhecida em São Luís, mas que é originária de Codó – que Eduardo
foi um dos primeiros antropólogos a identificar, comparando-a – com a ajuda
de Herskovits – ao Legba africano.
10 “Terecô” é uma das expressões usadas por Eduardo para designar as danças (com possessão) de
homenagem aos encantados em Santo António dos Pretos. É hoje em dia a designação mais
corrente para a religião afro-brasileira predominante em Codó (Ahlert, 2013; Ferretti, M., 2001),
mas Eduardo (1966, p. 60) lista outras designações, como “pagé”, “brinquedo de Santa Bárbara”,
“nago”, “budu”.
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Octávio Eduardo, René Ribeiro e Melville Herskovits. Religiões afro-brasileiras…
No caso de São Luís, entretanto, a situação seria mais complexa. Aí, a abordagem de Eduardo compreende dois grandes tópicos: o tambor de mina e, em
plano mais secundário, a pajelança.
No caso do tambor de mina, o universo a partir do qual Eduardo trabalha é
constituído por vários dos 20 terreiros que ele identificou em São Luís. Entre
esses terreiros, contam-se a famosa Casa das Minas (a que Eduardo se refere
como sendo “a casa daomeana”), a Casa de Nagô (ou “a casa iorubana”) e um
conjunto de outros terreiros de ascendência iorubá. Estes últimos seriam maioritariamente influenciados pela Casa de Nagô e muitos teriam também influências da pajelança indígena.11 Segundo ele, o sincretismo seria uma tendência
geral no tambor de mina, mas seria mais forte à medida que se passa da Casa
das Minas – com forte influência africana – para a Casa de Nagô e desta para os
restantes terreiros de ascendência iorubá.
Uma parte importante da sua análise é justamente dedicada à influência
africana na Casa das Minas, cabendo a Eduardo o mérito de ter identificado
algumas divindades cultuadas nesse terreiro com os reis do Daomé de finais
do século XVIII e inícios do século XIX. Mas – como S. Ferretti (2017) sublinhou – foram outras as contribuições pioneiras de Eduardo para o estudo da
matriz africana da Casa das Minas. Entre elas, uma das mais importantes tem
a ver com a identificação de uma categoria especial de divindades infantis,
as tobossa.
Mas ao mesmo tempo que o subcapítulo sobre religião em São Luís encosta
a África – sobretudo no referente à Casa das Minas –, ele está simultaneamente atento aos processos sincréticos em operação, tanto na Casa das Minas
como na Casa de Nagô e nos restantes terreiros de ascendência iorubá. Uma
das peças essenciais dessa abordagem tem que ver com o peso que as festas
do Divino Espírito Santo ocupam na argumentação de Eduardo. Ao mesmo
tempo que sublinha a sua importância entre os segmentos negros da população de São Luís, Eduardo refere a sua relevância no menu ritual dos terreiros de tambor de mina. Segundo ele, “the festa is celebrated at cult houses
11 A parte mais importante do subcapítulo que Eduardo consagra à religião em São Luís é dedicada à Casa das Minas, mas apoia-se também em informação recolhida na Casa de Nagô e noutros terreiros.
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of African derivation and one of the most impressive festivals for the Holy
Ghost is held in the Dahomean cult center” (Eduardo, 1966, p. 54).12
Para além das festas do Espírito Santo, a argumentação sincrética de Eduardo abarca outros aspetos. Um deles prende-se com a equivalência entre
santos católicos e divindades africanas. A sua argumentação desse ponto é
algo inovadora, uma vez que, em vez das clássicas tabelas de equivalência
entre divindades africanas e santos católicos, dá voz – mesmo que por instantes – às verbalizações locais sobre o tema. A importância dos altares católicos em muitas casas de culto e a realização de ladainhas antes dos toques
de tambor de mina também são sublinhadas e, em relação à Casa das Minas,
Eduardo dá algum destaque à realização do chamado banquete dos cachorros,
em honra de São Lázaro (Eduardo, 1966, p. 98). Um outro aspeto ressaltado
prende-se com a iniciação. Esta não só teria perdido muito dos seus traços
africanos (ainda presentes na Bahia), como o batismo dos encantados seguiria o modelo do batismo católico.
Mas é quando passa para os terreiros ascendência iorubá – incluindo,
nalguns casos, a Casa de Nagô – que o repertório sincrético identificado por
Eduardo se alarga mais. Ele compreende, por um lado, a inclusão de caboclos
e de nobres e reis europeus (estes últimos com equivalência a santos católicos) no panteão das entidades espirituais cultuadas. Passa pela identificação
de Santa Bárbara como fundadora do tambor de mina. E finalmente sublinha a abertura desses terreiros para crenças e rituais vindos da pajelança
indígena.
Embora a abordagem de Eduardo conceda mais espaço ao tambor de mina,
ela contempla também a pajelança. Sublinhando as suas raízes indígenas –
particularmente em relação à dança – Eduardo está também atento ao tema
do sincretismo, que aborda sobretudo por referência às influências europeias
presentes nos rituais de cura.
Procedendo ao inventário do sincretismo em São Luís, Eduardo, ao mesmo
tempo que confirma padrões já anteriormente identificados para outras religiões afro-brasileiras – como a equivalência das divindades africanas aos santos
12 Nesse aspeto, o que escreve Eduardo deve ser confrontado com o silêncio a que Nunes Pereira
(1979) – muito mais africanista que Eduardo – votou o tema. Sobre a importância das festas do
Espírito Santo no tambor de mina, ver S. Ferretti (1995) e Leal (2017).
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Octávio Eduardo, René Ribeiro e Melville Herskovits. Religiões afro-brasileiras…
católicos ou a inclusão dos caboclos no panteão das religiões afro-brasileiras
– abre para outras facetas do sincretismo, que, em muitos casos, são específicas
do tambor de mina. Entre elas, a mais importante relaciona-se – como referi
antes – com a importância das festas do Espírito Santo nos terreiros de tambor
de mina. A outra prende-se com a inclusão de nobres e reis europeus como
entidades espirituais importantes – e singulares – no panteão dos terreiros de
ascendência iorubá (e na Casa de Nagô). 13
Alargando o catálogo das formas do sincretismo nas religiões afro-brasileiras, Eduardo intervém também na discussão sobre as razões do sincretismo.
Estas radicariam nas compatibilidades entre o catolicismo e as religiões de
matriz africana. Esse ponto começa por ser sublinhado logo na introdução,
quando Eduardo refere a importância do conceito de “província cultural do
Velho Mundo” e das similitudes existente entre as tradições e instituições
europeias e africanas (Eduardo, 1966, p. 2). Mas é um ponto ao qual regressa
mais detalhadamente no capítulo sobre religião. Segundo ele, “it may be pointed out that African beliefs concerning nature deities, personal spirits, the
cult of the dead and magic have their counterparts in Catholicism” (Eduardo,
1966, p. 49). Foi isso que permitiu que “in Brazil, the African slave encountered
among the Whites a religious attitude very similar to his own” (Eduardo, 1966,
p. 49). Esta teria favorecido – nesse ponto Eduardo troca momentaneamente
Herskovits por Freyre – “the ‘deep blending of values and sentiments’” (Eduardo,
1966, p. 50) entre africanos e europeus. Mais à frente, Eduardo (1966, p. 103) – no
seguimento da sua abordagem da pajelança – sublinha também as semelhanças entre a magia de origem indígena e o catolicismo:
Like the cult groups, the pagés have sanctuaries in their houses with images of
Catholic saints, and they as well as the persons who attend the pajelança are
devout Catholics. In their minds, there is no inconsistency between the magic
practices which they follow and Catholic beliefs.
13 A pesquisa posterior sobre tambor de mina não só dará razão à abordagem sincrética de Eduardo, como permitirá resolver um aparente paradoxo que decorre da leitura do subcapítulo consagrado a São Luís, a saber, o modo como, na Casa das Minas, uma herança africana tão forte
coexiste com uma influência relevante do catolicismo (ver Ferretti, S., 1995).
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Esse argumento sobre as razões do sincretismo não é novo, uma vez que
ideias similares estavam já presentes em Nina Rodrigues e em Arthur Ramos
(Leal, 2020, 2021). A novidade é que nestes dois autores havia uma certa desqualificação do catolicismo como “politeísta” ou “pagão”, ao passo que em
Eduardo as compatibilidades sobre que assenta o sincretismo são com o catolicismo tout court e a desqualificação é substituída pela mera constatação.14
René Ribeiro, o sincretismo e a sombra de Freyre
Tal como em Octávio Eduardo, o conceito de sincretismo ocupa um lugar de
relevo na produção de René Ribeiro. Ele surge, logo em 1952, em Cultos afro-brasileiros do Recife (Ribeiro, 1978) para nunca mais abandonar a sua obra.
Em Cultos afro-brasileiros do Recife, o conceito começa por ser empregue para
caracterizar o catimbó, “onde o sincretismo religioso parece ter avançado mais”
(Ribeiro, 1978, p. 37). Mas é sobretudo usado na análise do xangô. Referindo-se ao
arrolamento de terreiros do Recife realizado em 1934, Ribeiro (1978, p. 37) afirma
que a maioria dos 14 centros de culto então existentes “admitiam sincretismo
yoruba-daomeano” e “em todos esses grupos a fusão e a reinterpretação de elementos das religiões africanas, ameríndias e europeia era evidente”. Referindo
– em relação aos elementos africanos – a importância “do chamado sincretismo
gege-nagô” (Ribeiro, 1978, p. 43), Ribeiro vai sobretudo centrar-se – em particular
no capítulo 2 – na importância do sincretismo afrocatólico, relativamente ao
qual irá proceder a um inventário das suas principais formas.
O relevo vai mais uma vez para a equivalência entre divindades africanas e
santos católicos. Para além da maior parte dos terreiros terem nomes de santos
católicos, as paredes dos seus salões exibem estampas desses e doutros santos
e “as festividades anuais seguem a seriação dos santos católicos” (Ribeiro, 1978,
p. 66). Eduardo procede depois a um levantamento das principais equivalências entre divindades africanas e santos católicos, analisando a lógica que lhes
14 Para Nina Rodrigues (2006, p. 109), o catolicismo luso-brasileiro seria “um verdadeiro politeísmo para uso das classes menos cultas”. Ramos ecoa essa ideia, quando escreve que o cristianismo, ao triunfar entre as classes populares, se teria transformado num “politeísmo disfarçado,
herança do paganismo” (Ramos, 2007, p. 25).
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Octávio Eduardo, René Ribeiro e Melville Herskovits. Religiões afro-brasileiras…
estaria subjacente. O levantamento é exaustivo e chama a atenção para aspetos
até aí desconhecidos do sincretismo afrocatólico no xangô. Entre eles está, por
exemplo, o modo como as divindades africanas Oxalá, Oxaguiã e Oxalufã são
identificadas “à Santíssima Trindade da concepção católica” (Ribeiro, 1978, p. 45)
ou, ainda, o facto de, para um dos informantes de Ribeiro, um certo número de
divindades africanas representarem os passos da paixão de Jesus Cristo. Chama
também a atenção para o modo como a equivalência entre Nossa Senhora e
Iemanjá conduziu a que a virgindade fosse cooptada como uma das suas caraterísticas e insiste no modo como a mitologia de algumas entidades africanas
teria sido afetada pelos contos populares portugueses (Ribeiro, 1978, p. 97).
Para além de aspetos relacionados com a equivalência entre divindades
africanas e santos católicos, Ribeiro chama também a atenção para outros traços do sincretismo afrocatólico: desde as “ideias sobre a vida além mundo” –
“fortemente influenciadas pelas concepções católicas” (Ribeiro, 1978, p. 57) – até
a uma conceção do anjo da guarda “que pouco se afasta do [papel] admitido
pela Igreja católica” (Ribeiro, 1978, p. 133).
Deve ainda sublinhar-se que a listagem dos traços sincréticos do xangô
a que Ribeiro procede é enriquecida – de forma mais notória do que em
Eduardo – pela atenção às verbalizações locais sobre o tema, expressa tanto
na transcrição integral de narrativas recolhidas em campo relativas às divindades africanas como na frequente referência a pontos de vista de diferentes
interlocutores seus.
Ocupando um lugar central em Cultos afro-brasileiros do Recife, o tema do
sincretismo será revisitado em textos posteriores de Ribeiro. É o que se passa
com o seu artigo sobre os Ibêji, organizado em torno das similitudes entre
o culto católico de São Cosme e Damião e os cultos africanos dos gémeos
(Ribeiro, 1957a). No mesmo ano, um outro artigo de Ribeiro sublinha “a confluência em torno do interesse sexual da bruxaria portuguesa e da magia africana”
(Ribeiro, 1957b, p. 6). Nesse mesmo artigo – e num artigo de 1959 – o sincretismo faz-se também presente, por intermédio de extratos de uma entrevista
com um informante afrorreligioso – que disserta sobre a relação entre a criação do mundo e a multiplicidade de divindades católicas e africanas (Ribeiro,
1959b, p. 142-144) – e do retrato de uma outra informante que se afirma católica e afrorreligiosa (Ribeiro, 1959b, p. 144-145). Em 1988, sairão as suas últimas
reflexões sobre o tema, marcadas pela defesa do sincretismo enquanto linha
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interpretativa dominante da sua obra, e, de uma forma geral, da antropologia
das religiões afro-brasileiras. Regressa a Gonçalves Fernandes, para relembrar o
modo como Pai Adão – um dos mais conhecidos pais de santo do xangô – combinava a atração por África com o catolicismo, abrigando no seu terreiro uma
capela dedicada a Nossa Senhora da Conceição “onde rezava o Mês de Maio
e de onde saíam procissões de encerramento mariano” (Ribeiro, 1988, p. 41).
Distancia-se das teses de Nina Rodrigues acerca do sincretismo como “ilusão
da catequese” (Ribeiro, 1988, p. 73) e critica Nunes Pereira pelo modo como
contestou o sincretismo no seu livro sobre a Casa das Minas (São Luís): “Não
obstante, a varanda da Casa das Minas está cheia de estampas de santos católicos” (Ribeiro, 1988, p. 90). E relembra a importância que tanto Herskovits como
Bastide deram ao tema.
Interessado na exploração descritiva e tipológica do sincretismo no xangô,
Ribeiro terá também uma intervenção relevante na discussão sobre as razões
do sincretismo. A sua tese a esse respeito não é inovadora. Para ele – como,
antes dele, para Nina Rodrigues, Arthur Ramos e Octávio Eduardo – as razões
do sincretismo encontrar-se-iam nas compatibilidades entre o catolicismo
afro-brasileiro e as religiões de matriz africana.
Esse argumento é inicialmente apresentado em Cultos afro-brasileiros
do Recife, onde é desenvolvido a partir das teses de Gilberto Freyre. De facto,
segundo Ribeiro (1978, p. 60), o sincretismo deveria ser explicado
à luz da espécie de cristianismo que vieram aqui encontrar os escravos negros.
Conforme já assinalou Gilberto Freyre, o catolicismo luso-brasileiro permitia
uma intimidade entre o fiel e os santos e a participação destes em todas as fases
da vida doméstica e íntima da família brasileira que pouco se distanciava do
papel atribuído às divindades negras no próprio continente africano. De outro
lado, detalhes do ritual católico […] coincidiam com o ritual africano.
Embora surja aqui de forma discreta, a influência de Freyre na argumentação das compatibilidades entre o catolicismo luso-brasileiro e as religiões
de matriz africana ganhará posteriormente um peso decisivo na reflexão de
Ribeiro.
De facto, quatro anos depois de Cultos afro-brasileiros do Recife, Ribeiro
(1956a) publicará Religião e relações raciais. Como foi anteriormente referido,
Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 28, n. 62, p. 145-177, jan./abr. 2022
Octávio Eduardo, René Ribeiro e Melville Herskovits. Religiões afro-brasileiras…
esse livro reúne os resultados da pesquisa realizada por Ribeiro – a convite
de Gilberto Freyre – no quadro do projeto da Unesco sobre relações raciais no
Brasil. Como foi mostrado por Maio (1999) e Motta (2007), essa pesquisa nasce
da insistência de Freyre em alargar para o Recife o projeto da Unesco.
Não é por isso de estranhar que seja Freyre – que de resto prefacia a obra
– a musa inspiradora de Religião e relações raciais. A tese central de Ribeiro
(1956a, p. 58, grifo do autor) é desde logo de clara inspiração freyriana, quando
sublinha a importância da colonização portuguesa na miscigenação e nas
relações raciais, supostamente mais harmónicas, que seriam prevalecentes
no Nordeste:
Miscigenação, portanto, e encontro de culturas, foram os elementos capitais para
a formação de uma sociedade híbrida e ao mesmo tempo tolerante dos contatos
de raça que completavam e integravam os contatos de cultura então havidos e
ainda hoje em franco processo de fusão e integração.
Esse acento na miscigenação não significa – e essa é uma das contribuições de
Ribeiro para o estudo das relações raciais no Nordeste – a ausência de preconceito, mas a sua passagem da raça para a cor (Ribeiro, 1956a, p. 145).
A sua outra contribuição relaciona-se com a análise do papel que a religião
– apreendida, à Herskovits, como foco cultural da cultura nordestina – teria no
desenvolvimento histórico da miscigenação e de relações raciais alegadamente
mais harmoniosas. É nesse ponto que a sombra de Freyre se projeta mais decisivamente em Religião e relações raciais.
De facto, por um lado, o “regime racial” nordestino teria sido facilitado por
um conjunto de características gerais da colonização portuguesa, que Ribeiro
vai buscar a Freyre. Para ele teriam contribuído “a fraca consciência de raça do
colono português, o regime semifeudal do patriarcalismo escravocrata colonial
e a falta de mulheres brancas” (Ribeiro, 1956a, p. 40). Mas ele teria sido sobretudo facilitado pelas características de base do catolicismo português, descritas de uma forma que replica, quase ponto por ponto, a imagem paradisíaca
que dele tinha dado Freyre em Casa-grande e senzala. Entre essas características estariam, por exemplo, o carácter doce e familiar do catolicismo português
– o “doce cristianismo lírico de que nos fala Gilberto Freyre” (Ribeiro, 1956a, p. 51) –
o seu caráter pouco rígido (Ribeiro, 1956a, p. 46) e “festivo” (Ribeiro, 1956a, p. 76),
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a sua faceta de “religião mestiçada” (Ribeiro, 1956a, p. 49) e a sua “tolerância
eivada de práticas pouco ortodoxas e até pagãs” (Ribeiro, 1956a, p. 49).15
Recorrendo a Freyre, aquilo que Ribeiro faz é evocar o ambiente religioso
geral, influenciado pelo catolicismo português, que teria contribuído para que
a miscigenação que tanto preza abrangesse tanto os corpos como as almas.
Nesse sentido, Religião e relações raciais pode ser visto como um livro que
– embora não recorra frequentemente ao conceito de sincretismo – dá continuidade à preocupação com o tema presente em Cultos afro-brasileiros do Recife
e noutros textos de Ribeiro. O ponto de vista já não é construído a partir do
xangô, como em Cultos afro-brasileiros do Recife, mas da religião dominante – o
catolicismo português. A ênfase também não é tanto no presente, mas no processo histórico de formação da paisagem religiosa do Nordeste. Mas não só o
horizonte temático é o mesmo – a aculturação religiosa – como é a mesma a
tese – a compatibilidade entre o catolicismo português e as religiões africanas
(e indígenas).16
Já vimos que, nesse aspeto, Ribeiro dá continuidade a uma tese presente
em Nina Rodrigues e em Arthur Ramos. Mas aquilo que nestes autores era uma
mera constatação, muitas vezes acompanhada de uma certa desqualificação do
catolicismo, torna-se em Ribeiro um facto que é não apenas constatado – como
em Octávio Eduardo – mas que é valorizado positivamente. Afinal o catolicismo
português não teria tido apenas um papel positivo na aculturação religiosa,
como teria sido decisivo para a formação de um quadro de relações raciais que
– embora não isento de tensões – era ele próprio avaliado positivamente.
Conclusão
Dando sequência a abordagens que se iniciaram – no final do século XIX – com
Nina Rodrigues e que prosseguiram – nos anos 1930 e 1940 – com Arthur Ramos,
15 Essa caracterização do catolicismo português não deixa de recorrer a autores portugueses, com
destaque para Jorge Dias (com quem de resto René Ribeiro se correspondeu; ver Silva, A. 2021).
Mas é sobretudo em Freyre que Ribeiro se inspira.
16 Formuladas de forma mais desenvolvida em Cultos afro-brasileiros do Recife, essas ideias serão
posteriormente retomadas em outros artigos de Ribeiro, com destaque para “Reações do negro
ao cristianismo na América portuguesa” (Ribeiro, 1959b).
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Octávio Eduardo, René Ribeiro e Melville Herskovits. Religiões afro-brasileiras…
Edison Carneiro e Gonçalves Fernandes – as contribuições de Octávio Eduardo
e René Ribeiro sobre o sincretismo foram importantes para a sua consolidação
como um dos temas centrais na antropologia das religiões afro-brasileiras ao
longo dos anos 1950 e 1960.
Possuem em relação a esses seus antecessores três méritos principais. Por
um lado, contribuíram para o alargamento geográfico dos estudos sobre sincretismo, até aí muito centrados na Bahia. Essa ampliação da geografia do sincretismo afro-brasileiro é particularmente marcada na obra de Eduardo, com
o seu foco no Maranhão e no tambor de mina. Mas reencontra-se também na
pesquisa de Ribeiro, que contribuiu de forma significativa para uma abordagem mais sistematizada e analítica – por relação com as contribuições mais
descritivas de Gonçalves Fernandes – do sincretismo no xangô.
Eduardo e Ribeiro procederam também à ampliação do catálogo das formas do sincretismo presentes nas religiões afro-brasileiras. Ambos os autores
dão relevo ao sincretismo afrocatólico e, no seu interior, à equação entre divindades africanas e santos católicos – temas que já antes ocupavam um lugar
importante, embora não exclusivo (ver Leal, 2021) – nos tratamentos dados ao
sincretismo. Mas acrescentaram outros modos de articulação entre religiões de
matriz africana e catolicismo anteriormente não trabalhados ou insuficientemente pesquisados. Essa tendência é particularmente notória na monografia
de Eduardo, com o acento que ela coloca na importância de festas católicas –
como as festas do Espírito Santo ou o banquete dos cachorros – em terreiros de
tambor de mina (incluindo a Casa das Minas), ou com a importância que atribui aos encantados de origem europeia e brasileira e a crenças e práticas inspiradas na pajelança indígena na maioria dos terreiros de São Luís (incluindo a
Casa de Nagô). Mas reencontra-se também na obra de Ribeiro, designadamente
no modo como explora desenvolvimentos pouco conhecidos das equivalências
entre divindades africanas e santos católicos, conferindo-lhes mais espessura.
O modo como a obra dos dois antropólogos introduziu pontualmente verbalizações locais sobre o tema do sincretismo – tendência que é particularmente
importante na obra de Ribeiro – deve também ser sublinhado.
Ambos os autores contribuíram também para a estabilização – provisória – de uma interpretação do sincretismo assente na tematização das compatibilidades entre religiões de matriz africana e o catolicismo luso-brasileiro,
que, embora já presente em autores anteriores, ganhou neles particular relevo.
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O modo como em Ribeiro essa interpretação se cruzou com as ideias de Freyre
sobre mestiçagem racial e cultural como traços definidores da formação social
brasileira deve também ser sublinhado. É verdade que essa associação, embora
de forma menos incisiva, havia antes sido sugerida por Arthur Ramos (Leal,
2021). Mas é em Ribeiro que ela se afirma de forma mais perentória e argumentada. Esse ponto deve ser sublinhado sobretudo porque a crítica contemporânea ao conceito de sincretismo faz da sua associação às ideias freyrianas sobre
mestiçagem uma característica genérica do tratamento dado historicamente
ao tema na antropologia das religiões afro-brasileiras. O que uma análise mais
cuidadosa mostra é que essa orientação não é tão generalizada assim e que é
apenas em Ribeiro (e, de uma forma menos categórica, em Arthur Ramos), que
ela se expressa.
Para além dos méritos que acabei de enunciar, as reflexões de Eduardo e
de Ribeiro são também importantes por duas outras razões – ambas ligadas à
influência de Herskovits na sua pesquisa.
Em primeiro lugar, elas representam, no campo de estudos das religiões
afro-brasileiras, as primeiras tentativas de trabalhar com o modelo – que então
se tornara já dominante na antropologia de língua inglesa – da monografia
moderna, organizada em torno de um ou mais estudos de caso e com a capacidade de articular a descrição com um quadro interpretativo informado pelos
critérios teóricos da antropologia moderna.
A adoção desses critérios – em segundo lugar – teve duas consequências
principais. Ela facilitou, por um lado, uma abordagem às religiões afro-brasileiras (e ao sincretismo) que levou em consideração outros aspetos da condição
aculturativa das populações afrodescendentes no Brasil: a economia e a família em Eduardo; a família e as relações raciais em Ribeiro. Por outro lado, ela foi
ainda responsável – por intermédio de conceitos como aculturação, reinterpretação, foco cultural, etc. – por uma maior sofisticação analítica na abordagem
ao próprio tema do sincretismo.
Nesse sentido as obras de Octávio Eduardo e de René Ribeiro ilustram um
dos aspetos – evocado no início deste artigo – que, segundo Mariza Corrêa (1987,
p. 22), caracteriza a antropologia brasileira dos anos 1950 e 1960: a sua capacidade de associar “orientações teóricas ‘modernas’” vindas de fora – nomeadamente pela mão de brasilianistas que desenvolviam então pesquisa no Brasil
– “com tradições bem estabelecidas dos intelectuais nacionais”.
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Octávio Eduardo, René Ribeiro e Melville Herskovits. Religiões afro-brasileiras…
Não deixa, entretanto, de ser irónico o desfecho dessa associação, quando
visto a partir do “centro”. Pensada por Herskovits como um passo importante
no sentido de construção de uma visão mais alargada das culturas e religiões afro-americanas que sedimentasse a sua própria posição de liderança no
campo dos estudos afro-americanos, a supervisão de Eduardo e Ribeiro – como
de resto a própria pesquisa de Herskovits no Brasil – não teve os resultados que
dela se podiam esperar. De facto, se tomarmos como referência os artigos de
Herskovits republicados em The new world Negro (Herskovits, 1966c), as citações
de Eduardo – quatro – e de Ribeiro – três – não só são escassas como não têm
efeitos analiticamente produtivos. Se, para os anos 1920 e 1930, Kevin Yelvington (2006) pôde sublinhar a importância de antropólogos latino-americanos e
caribenhos – como Price-Mars, Fernando Ortiz e Arthur Ramos – na formação
e desenvolvimento do pensamento de Herskovits sobre as Américas negras, o
mesmo não se parece ter passado com Eduardo e Ribeiro.
Esse desfecho desapontador parece ficar a dever-se à reorientação africanista da obra de Herskovits a seguir à II Guerra Mundial. Essa, contrariamente
à sua pesquisa anterior sobre o Daomé, não tinha já em mira as Américas
negras. Um tal facto parece ter determinado o arrefecimento do interesse de
Herskovits na proposição de uma visão integrada das culturas africanas nas
Américas, tarefa para a qual estava particularmente habilitado – graças também às contribuições dos seus “discípulos” brasileiros.
O espaço ficava assim aberto para Bastide, que o preencherá nos anos
1960, com Les religions africaines au Brésil (Bastide, 1960) e Les Amériques noires
(Bastide, 1967). Nessas suas contribuições – como também em muitos outros
artigos e livro seus escritos entre 1945 e 1973 – o tema do sincretismo conhecerá
novos desenvolvimentos (Capone, 2000, 2007). De que forma é que as contribuições de Octávio Eduardo e René Ribeiro – que pouco se repercutiram na
produção herskovitsiana – encontraram aí (ou não) “porto de abrigo” é o tema
para um outro artigo.
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Recebido: 19/03/2021
Aceito: 01/07/2021
|
Received: 3/19/2021
Accepted: 7/1/2021
Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional
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Artigos
Articles
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71832022000100006
Claude Lévi-Strauss en los mares
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Claude Lévi-Strauss in the South Seas. Some
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Nicolás Viotti I, II
https://orcid.org/0000-0002-1868-5453
nicolas.viotti@gmail.com
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Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 28, n. 62, p. 179-209, jan./abr. 2022
Nicolás Viotti
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Resumen
La obra de Claude Lévi-Strauss fue traducida de modo pionero y circuló ampliamente
en la cultura intelectual argentina de las décadas de 1960 y 1970; sin embargo, sus
usos no estuvieron enmarcados en la problemática antropológica en sentido estricto,
sino en debates más generales sobre problemas ideológicos dentro de la sociología, el
análisis semiótico y el psicoanálisis. Sin descuidar factores específicos como las redes
intelectuales y la consolidación particular de campos disciplinares, en este trabajo
pretendemos plantear una hipótesis que pone el foco en un orden más general: las
relaciones entre la circulación de ideas y prácticas intelectuales con las formas nacionales de asumir la alteridad. En ese sentido, proponemos que la particular circulación
y usos de Lévi-Strauss en Argentina, en general alejados del problema de la alteridad
realmente existente que atraviesa su obra, permiten reflexionar sobre una relación
tensa con la diferencia cultural en la narración nacional dominante.
Palabras clave: Lévi-Strauss; intelectuales; ideologías de alteridad; Argentina.
Abstract
The work of Claude Lévi-Strauss was translated in a pioneering way and circulated
widely in the Argentine intellectual culture of the 1960s and 1970s. However, its uses
were not framed within the anthropological framework in the strict sense, but in more
general debates on ideological problems within sociology, semiotic analysis and psychoanalysis. Without neglecting specific factors such as intellectual networks and the
particular consolidation of disciplinary fields, this work intends to propose a hypothesis that focuses on a more general order: the relationships between the circulation
of ideas and intellectual practices with the national ways of assuming the Otherness.
Therefore, the particular circulation and uses of Lévi-Strauss in Argentina -in general,
away from the issue of the really existing alterity that runs through his work- leads to
reflexing on a tough relationship between Argentina’s dominant national narrative
and the problem of cultural difference.
Keywords: Lévi-Strauss; intellectuals; ideologies of Otherness; Argentina.
Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 28, n. 62, p. 179-209, jan./abr. 2022
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Introducción
Es sabido que la circulación de las ideas de Claude Lévi-Strauss en Latinoamérica no tuvo que ver exclusivamente con ámbitos antropológicos, sino con espacios más amplios del campo cultural. En Argentina este rasgo se revela como
particularmente paradojal. Llama la atención que la obra del antropólogo francés fue allí temprana y sistemáticamente traducida y editada, pero sus usos
concretos (algo que no debería ser descuidado) se mantuvieron por fuera del
proyecto del análisis de la diferencia cultural que inspiraba su formulación original. En cambio, durante las décadas de 1960 y 1970, Lévi-Strauss fue el epicentro de un proceso de reconfiguración de los debates sobre ideología, semiótica,
marxismo cultural, psicoanálisis y nueva crítica literaria, todas problemáticas
vinculadas con la propia sociedad argentina, es decir con fenómenos alejados
de la alteridad cultural. Tanto en las tradiciones heredadas vinculadas con
miradas más historicistas y culturalistas del momento como en los intentos de
una renovación asociada con los enfoques “sociales”, la incorporación del proyecto de Lévi-Strauss estuvo casi ausente de los antropólogos locales, quienes
incluso –y por razones muy variadas– se posicionaron críticamente.
¿A qué se debe ese desencuentro entre el programa de investigación de LéviStrauss y la antropología en Argentina? ¿Desde qué argumentos se discutió un
programa estructural para el trabajo antropológico? ¿Qué lugar ocuparon en
ese proceso las tradiciones intelectuales heredadas y las experiencias innovadoras durante las décadas de 1960 y 1970? ¿Cómo se vincula el proyecto de una
antropología de la diferencia cultural con las matrices nacionales de imaginar
la alteridad en Argentina?
Si bien Lévi-Strauss es un autor que desde la refundación de la antropología
en la década de 1980 ha sido enseñado e incluso reverenciado, resulta difícil rastrear su influencia en debates, programas de investigación o tradiciones intelectuales de las antropologías argentinas. Salvo escasas excepciones, en Argentina
es difícil encontrar antropólogos que hayan hecho del estilo de trabajo inspirado por una perspectiva estructuralista algo más que una mera referencia teórica o una cita de autoridad.1 Lévi-Strauss circula como un marcador disciplinar
1
Los 100 años de Lévi-Strauss produjeron una nueva frecuentación de su obra y los homenajes
latinoamericanos son un buen ejemplo del lugar que ocupa en las antropologías nacionales. →
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en ausencia, demasiado alejado del empirismo etnográfico o del procesualismo
sociológico dominantes y demasiado cerca del fantasma del teoricismo o del
culturalismo presente en los sentidos comunes antropológicos locales.
Las razones para ello pueden ser muchas. Sin duda hay factores vinculados
con la tardía institucionalización de la disciplina, rasgos del propio campo de
las antropologías locales, sus historias y sus disputas internas, factores sociopolíticos vinculados con las crisis institucionales y las interrupciones democráticas propias de los devenires políticos argentinos. Mas allá de esos procesos,
sin duda relevantes para entender particulares usos y formas de circulación
del antropólogo francés en Argentina, sugerimos que existen razones que se
enmarcan en un encuadre más general vinculado con las narrativas nacionales dominantes de pensar la alteridad. Justamente, el principio lógico propuesto por Lévi-Strauss de pensar la radicalidad de la diferencia cultural como
una totalidad contrastiva desentona con una ideología nacional que tiende a
la homogeneización y a la subordinación de la diferencia cultural realmente
existente: ya sea en un modelo nacionalista que las subsume en una síntesis
“criollista” o en el modelo modernizador que la niega bajo la problemática de
la cuestión “social”. En el caso argentino, en comparación con otros contextos
latinoamericanos (y subrayamos el caso de la antropología brasileña como un
modelo de contraste singular), se han priorizado estilos de antropología que no
siempre establecieron buenos vínculos con algunas de las premisas implícitas
o explícitas en la obra de Lévi-Strauss, aspecto que ha tenido derivas diversas
en la profesionalización de las antropologías argentinas en las últimas décadas.2 Luego de la década de 1980 se han incorporado corrientes internacionales
→
2
En Brasil se encuentran varias publicaciones, ver por ejemplo la colección de artículos organizados por Caixeta de Queiroz y Nobre (2008). En México se destaca la de Olavarría, Millán y
Bonfiglioli (2010). Todas ellas compilan ensayos de antropólogos con trabajo de campo o temas
fuertemente vinculados con la obra de Lévi-Strauss que vienen desarrollando desde las décadas
de 1970 y 1980. En Argentina encontramos sólo una publicación que compila intervenciones en
una suerte de homenaje por los 100 años realizada en la Biblioteca Nacional donde sintomáticamente las intervenciones antropológicas dialogan con planteos más generales de la obra del
etnólogo elaboradas desde la filosofía y desde el psicoanálisis (Bilbao; Gras; Vermeren, 2009).
No es casual que sea Brasil, una nación con una narración dominante de “diversidad” y “mezcla”,
donde la circulación de Lévi-Strauss resulte significativa. Mas allá de los diferentes momentos
de ese vínculo, el de la década de 1930 con la visita de la misión francesa a la USP (Peixoto, 1998)
o el de las décadas de 1960-1970, donde se destaca la inclusión de Lévi-Strauss como americanista (Viveiros de Castro, 1999), existe una sensibilidad antropológica más general inspirada en →
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innovadoras en la disciplina como la teoría de la práctica, las antropologías de
la experiencia y análisis basados en una economía política de la cultura, pero
sin haber transitado un “momento estructural”, lo que incide en un sesgo particular de las antropologías argentinas mucho más interesadas en procesos políticos y en la inclusión de colectivos subordinados (sociales, étnicos, religiosos,
etc.) a los procesos de ciudadanización que en los problemas de la totalidad
cultural, la diferencia y la comparación. En ese sentido, proponemos que la particular circulación y usos de Lévi-Strauss en Argentina permiten reflexionar
sobre una relación tensa que la narración nacional dominante posee con la
diferencia cultural (el relativismo cultural en general), en la cual priman ideales de homogeneidad-continuidad por sobre los de la diversidad-diferencia.3
Existe una bibliografía que se ha ocupado de las historias de la recepción
de autores vinculados con el estructuralismo francés resaltando el proceso de
modernización cultural de la década de 1960-1970, con particular foco en las
transformaciones del mundo intelectual. Así, contamos con una variada literatura sobre el impacto de Lévi-Strauss en el ámbito académico. Por ejemplo, análisis dedicados a los programas de estudio de las humanidades y las ciencias
sociales (Acuña, 2005), a la centralidad de algunos difusores centrales como fue
el caso de Eliseo Verón (Barreras, 2015, 2016; Diviani, 2019; Zarowsky, 2013, 2017) y,
finalmente, a los proyectos editoriales innovadores del momento vinculados con
el “estructuralismo” como marca de posicionamiento en el campo intelectual (Grisendi; Novello, 2020; Sorá; Novello, 2018; Zarowsky, 2017). En este trabajo nos interesa establecer un diálogo con esta literatura, pero desde un lugar diferente a los
análisis sobre el “estructuralismo” o la modernización cultural de las instituciones académicas argentinas en la década de 1960. Este trabajo supone un recorte
→
el método estructural y en sus principios de diferencia y totalidad. Un horizonte que incluso
excede la obra de Lévi-Strauss en un marco más amplio en donde se destaca por ejemplo el uso
creativo y original del estructuralismo dialéctico de Louis Dumont (Archetti, 2008; Duarte, 2017).
3
Sólo más recientemente se han desarrollado análisis sobre el problema de las construcciones
ideológicas nacionales de la alteridad en Argentina, sobre todo a partir de la diferencia étnica
y socio-religiosa (Frigerio, 2002; Segato, 2007). Resulta significativo que estas problemáticas
hayan sido centrales en las discusiones comparativas sobre cómo cada contexto nacional o
sub-nacional habilita la imaginación de sus propias alteridades, dejando aun de lado cómo
esa problemática aparece en los saberes expertos o intelectuales (encarnados en posiciones
epistemológicas, en tradiciones intelectuales dominantes y regímenes de visibilización/invisibilización de sus alteridades) que parecen resistirse con más fuerza a un tratamiento semejante
y a análisis comparativos.
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particular que va más allá del denominado “estructuralismo”, una categoría que
si bien tiene el mérito de captar toda una sensiblidad, también puede anular una
intervención mas específica sobre el proyecto antropológico que se encuentra
atrás de la innovación analítica de la antropología francesa de posguerra.4 Nos
interesa entonces poner el foco en los procesos de circulación internacional de las
ideas antropológicas, asumiendo que allí existe un espacio para reflexionar sobre
cómo los saberes antropológicos se vinculan o incluso son parte de un engranaje
de los modos de imaginación de la alteridad en diferentes contextos nacionales.
Es ya célebre la distinción entre antropologías de empire building y de nation
building (Stocking, 1982), instituyendo un recorte “nacional” y “periférico” para
las antropologías producidas en América Latina. En ese sentido, algunos autores
han señalado la centralidad de “estilos nacionales de antropología” (Cardoso de
Oliveira; Ruben, 1995) vinculados con particulares formas de construcción de
nación. También se ha insistido en que esas prácticas intelectuales no deben ser
reducidas a un nacionalismo metodológico ni a un globalismo ingenuo (Peirano,
2004; Ribeiro; Escobar, 2008), insistiendo en perspectivas transversales a esa
mirada binaria, que suponen usos capilares y situados de las “antropologías centrales” y hacen de ese panorama un espacio diverso. En este sentido, hacemos
nuestras las palabras de Eduardo Archetti (2008, p.161) que insistía en la diversidad de “centros” y de “periferias” en la circulación de ideas antropológicas:
“La descripción de viajes y de inesperadas ramificaciones de ideas en lugares
distintos y en tiempos diferentes es, desde mi perspectiva, una fructífera herramienta para una mejor comprensión sobre la forma en la que las antropologías
del mundo son constituidas” (sobre ese aspecto ver también Velho, 2008). A su
vez, asumimos que esos usos no son exclusivamente los de la incorporación acrítica o incluso los de la recepción creativa; sino también los rechazos, las ausencias y la invisibilización. Estos procesos, ya sean explícitos o implícitos, pueden
ser buenos indicadores de las configuraciones de saber que los contienen.
4
Identificación que Lévi-Strauss rechazó innumerables veces o lo asumió más como un método
de trabajo científico y de análisis, que como una posición filosófica (Lévi-Strauss; Eribon,
2005, p. 109). Es en ese movimiento que puede encuadrarse la filiación de Lévi-Strauss a los
trabajos de la lingüística estructural de Roman Jakobson y Emile Benveniste, y a los trabajos
de antropología comparada inspirados en Marcel Mauss de Georges Dumézil, Leroi-Gourhan y
Louis Dumont (Lévi-Strauss; Eribon, 2005, p. 103) y no al “canon estructuralista” con que habitualmente se lo asocia, que pone en el mismo plano al psicoanálisis, la crítica literaria y las
humanidades en general.
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El trabajo se organiza en dos momentos. En primer lugar, describe la circulación de las ideas de Lévi-Strauss en el ámbito universitario a principios de
la década de 1960, sobre todo dentro del espacio de la sociología de la Universidad de Buenos Aires, y luego en un fenómeno más amplio identificado con
la “moda del estructuralismo”. En un apartado independiente se analizan las
repercusiones en el espacio estricto de la antropología, dando cuenta de tensiones entre una zona heredera de tradiciones de raigambre histórico-cultural, y
las breves experiencias de la antropología social. Se sugieren finalmente algunas hipótesis sobre ese paradojal eco muy poco antropológico de la “antropología estructuralista” en Argentina.5
Un nuevo lenguaje para las ciencias sociales
El responsable de las primeras traducciones y de la difusión del programa del
antropólogo francés en la Universidad de Buenos Aires fue Eliseo Verón, un
joven filósofo que trabajaba en el flamante Departamento de Sociología fundado por el italiano Gino Germani en 1958. Verón viajó a París entre 1961-1963
con una beca de especialización externa del recién creado Consejo Nacional de
Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET), donde estableció contacto
con el Laboratorio de Antropología dirigido por Lévi-Strauss.6 A partir de ese
vínculo consolidó un programa institucional e intelectual en torno a la obra
5
Este trabajo es parte de un proyecto más amplio sobre el estatuto de la diferencia cultural y la
multiplicidad/diversidad de modos de pensamiento/racionalidad en los saberes expertos de
las ciencias sociales argentinas. El análisis aquí presentado se basa en un corpus de trabajos
producidos por intelectuales vinculados con las ciencias sociales entre la década de 1960 y 1970,
sobre todo en las redes de la Universidad de Buenos Aires, vinculados directa o indirectamente
con las ideas y las prácticas intelectuales de Lévi-Strauss. Se consideran además conferencias,
entrevistas públicas y material periodístico vinculado con la temática, así como entrevistas
realizadas personalmente con algunos actores clave.
6
Verón tenía la intención de hacer una estadía de investigación por dos años con Maurice
Merleau Ponty, autor de moda entre los jóvenes intelectuales de la Facultad de Filosofía y Letras
de la UBA en la década de 1950 y un insumo fundamental de su tesis de graduación en Filosofía
titulada “Cuerpo y experiencia. Para una psicología social de la imagen del cuerpo”. El fallecimiento de Merleau Ponty en 1961 cambió sus planes y optó por realizar su estadía de investigación
con Lévi-Strauss. El interés por la cuestión del cuerpo se mantuvo, y se prolongó en el Laboratorio
de Antropología con un análisis del papel de la imagen del cuerpo en el funcionamiento de una
sociedad indígena australiana que el propio Levi-Strauss supervisó (Verón, 2001, p. 105).
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del antropólogo que se había iniciado un poco antes con la traducción de la
primera versión castellana de Antropología estructural publicada en 1961 por la
Editorial de la Universidad de Buenos Aires. La publicación se hacía tan sólo
tres años luego de aparecida la versión francesa. Un año más tarde se publicaba
una célebre entrevista con el sugerente título de “La antropología, hoy” que fue
la primera en aparecer en lengua castellana (Lévi-Strauss; Verón, 1962) y, casi
una década después, Verón sería el revisor de la edición argentina de Tristes
trópicos, obra traducida por Noelia Bastard (Lévi-Strauss, 1973). Ese programa
liderado por Verón, pero con eco en diferentes proyectos intelectuales, continuó con una gran cantidad de traducciones, publicaciones y ensayos en torno a
la antropología estructural durante la década de 1960 que se insertaron en un
debate mayor sobre el problema del “estructuralismo” (Grisendi; Novello, 2020).
Si en Argentina la antropología tenía en ese momento un programa institucionalmente débil, la sociología suponía una estructura institucional, un sistema de publicaciones y de redes internacionales que permitía innovaciones
diversas, incluso en tensión con las corrientes dominantes. De hecho, el enfoque estructural en ciencias sociales ocupaba un lugar marginal en la sociología
del momento, mucho más orientada o bien a la herencia de la sociología norteamericana o a un marxismo más duro poco preocupado por las superestructuras.
Ni la Carrera de Filosofía ni la de Antropología eran espacios fecundos para el
florecimiento de las ideas de Lévi-Strauss. En cambio, el ámbito modernizador
del Departamento de Sociología parecía ser efectivamente un contexto más
propicio. Si el proyecto de Germani fue parte de un primer momento modernizador de las instituciones en la universidad pos-peronista (Blanco, 2006), el
proyecto de Verón dentro del ámbito de la sociología puede interpretarse como
una “segunda modernización”, lo que implicaba no descuidar una zona de contacto entre Sociología y Filosofía (la revista fundada por Verón, que era el eje de
esa empresa, se llamaba deliberadamente Cuestiones de Filosofía y apuntaba
a un diálogo entre ambas zonas del conocimiento) (Barreras, 2016). Tal vez por
ello los primeros textos de Verón y colaboradores se dieran en el espacio intermedio de la epistemología de las ciencias sociales: asumiendo inicialmente
una crítica epistemológica a las teorías funcionalistas de la acción propias de
la sociología norteamericana y al culturalismo derivado de ellas. Así, el foco en
un modelo comunicativo y lógico de la acción social proponía un paradigma
relacional y monista que atacaba de frente al dualismo entre “todo” y “parte”
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o, en otras palabras, entre cultura/sociedad y personalidad/individuo (Verón,
1963, 1968; Verón; Sigal, 1965).
En contraposición al enfoque funcional y culturalista, Verón proponía un
modelo relacional, basado en el principio comunicativo de la significación
de Lévi-Strauss, pero en complementariedad con la naciente pragmática de la
comunicación, utilizando creativamente aportes de la cibernética, la teoría de
la semantización de Algirdas Greimas y el análisis relacional del antropólogo
Gregory Bateson. Esta tríada conformaba lo que Diviani (2019) denomina un
“estructuralismo ensanchado”. Verón asumía de este modo las enseñanzas de
Lévi-Strauss como una novedosa herramienta epistemológica, pero dejaba
de modo testimonial la dimensión específica del problema de la alteridad que
se consolidaba en los trabajos específicos sobre etnología indígena para un
ejercicio de transposición del modelo de análisis de la antropología estructural
de las sociedades “simples” a las “sociedades industriales”. Allí Verón reconocía
la necesidad de miradas que combinasen recursos de la sociología más convencional y el método estructural, asumiendo que lo característico de las sociedades industriales es la simultaneidad de sistemas semiológicos que requieren
metodologías mixtas (Verón, 1963, p. 102).
En su célebre Introducción a la edición castellana de Antropología estructural, recordaba que el proyecto de Lévi-Strauss era eminentemente etnológico
y que desplegaba una contundente crítica a los componentes ideológicos de
la antropología clásica, desarrollando un análisis comparativo que afirmaba
al mismo tiempo la unidad lógica del pensamiento humano pero el principio
claro de la diferencia cultural que se construía con una “posición de observador
externo”. Verón consideraba esto un “componente esencial de la explicación
antropológica” que la diferenciaba del marxismo y del psicoanálisis, donde el
observador no suponía una diferenciación en relación con su objeto (Verón,
1961, p. 14-15). Esa perspectiva analítica tenía que ver de modo ineludible con
un proyecto etnológico, “sólo se conoce por diferencia” subrayaba Verón, pero
sus consecuencias podían extenderse a las ciencias sociales en general y, salvando la desconfianza explícita de Lévi-Strauss a aplicar el modelo estructural
a la sociología, emparentar al menos algunos de sus supuestos en el análisis de
los procesos de significación en las sociedades industriales.
En 1969 la revista Primera Plana, un semanario de interés general para un
público educado que fue uno de los símbolos de la modernización cultural de
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la década, publicó una entrevista titulada “Lévi-Strauss: el padre del estructuralismo”. El diálogo con los periodistas argentinos tuvo lugar en París, a donde
fueron especialmente enviados para el reportaje. En el encabezamiento de
la extensa entrevista sobre la vida y obra del intelectual francés, se señalaba
que Lévi-Strauss era “uno de los mayores talentos de este siglo, y el padre y el
adalid de la más fecunda metodología de conocimiento –el estructuralismo–
concebida en las últimas décadas” (Lévi-Strauss; Fernández Moreno; Martínez,
1969, p. 60). La nota daba visibilidad pública a quien fuera tal vez el antropólogo
más célebre de la segunda mitad del siglo XX y era testimonio del momento consagratorio de la antropología estructural en un clima cultural más general que el
del reducido circuito de las nuevas ciencias sociales argentinas en el que había
empezado a ser leído. La antropología estaba de moda, pero paradojalmente
no era en el espacio académico de la antropología argentina donde la obra del
antropólogo francés se proyectaba, sino en ámbitos que en el momento ocupaban el espacio más vanguardista de la cultura académica vinculado con el problema de las ideologías, los procesos simbólicos y la sociología del conocimiento.
El boom del estructuralismo en el mundo editorial y la prensa cultural, que
consolidó la imagen de Lévi-Strauss y del llamado análisis estructural como una
mirada legítima e innovadora sobre los procesos de significación, iba de la mano
con las derivas más reveladoras de las ideas del antropólogo francés que tomaron
forma en Argentina: la semiótica de los medios, la problemática ideológica en la
sociedad de masas y el psicoanálisis lacaniano. Marxismo y psicoanálisis se convirtieron en cadenas de transmisión particularmente favorables a las ideas del
llamado estructuralismo, subordinando la preocupación por el estatuto lógico de
la diferencia cultural a inquietudes que aparecían con mayor relevancia vinculadas con los problemas de la modernización de la sociedad argentina: la transformación de la sociedad de masas y los dispositivos terapéuticos del sujeto.7
¿Cómo se enmarcaba ese proyecto científico sociológico inicial con la “moda
del estructuralismo”? ¿Qué lugar se reservaba a los usos antropológicos de
Lévi-Strauss en Argentina? En una evaluación hecha más de diez años después
7
Un capítulo aparte, que merece un análisis en sí mismo, lo constituyen los usos estrictamente
teóricos de Lévi-Strauss en Argentina y su impacto en debates conceptuales más específicos, en
general enmarcados en problemáticas filosóficas como la historia o lo político en el marco de
una definición estructural de la cultura, y no en la antropología como disciplina empírica (De
Ipola, 1970; Del Barco, 1965, 1967; Podetti, 1969; Sazbón, 1969a, 1969b).
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Claude Lévi-Strauss en los mares del sur. Algunos desencuentros …
de sus primeros textos sobre la obra del antropólogo francés, Verón reflexionaba sobre el escaso impacto en la antropología local, refiriéndose al “atraso”
de esa disciplina y al lugar “dependiente” de la sociedad argentina en la circulación de las ideas estructuralistas, insistiendo en una “disociación” de su
contexto original de producción:
La introducción de los trabajos de Lévi-Strauss en la Argentina no tuvo nada que
ver con los estudios antropológicos, lo cual es ya una marca característica de una
cultura dependiente. Sean cuales fueren las críticas que puedan formularse a la
perspectiva de Lévi-Strauss, ella se originó en una práctica científica específica:
la antropología (o la “etnología”, si seguimos la nomenclatura francesa) y con respecto a ella debe ser inicialmente evaluada, como en efecto ocurrió en los países
centrales. A la Argentina llegan en cambio ideas estructuralistas, desprendidas de
la práctica que las engendra. En el caso del estructuralismo, esa disociación es particularmente fuerte, dado el estado de atraso en que las ciencias antropológicas se
hallaban (y se hallan aún) en nuestro país. (Verón, 1974, p. 104, énfasis en el original).
Esta descripción daba cuenta de una conciencia muy clara sobre el lugar antropológico de la obra de Lévi-Strauss (que Verón no se cansó nunca de defender)
y al mismo tiempo de una discusión con los “malos usos” del estructuralismo
que desdibujaban el proyecto científico y empírico fundacional en lo que en
pocos años se convertiría en la “moda estructuralista”. Pero al mismo tiempo,
la vocación de mantener su espíritu científico original antropológico implicaba
además encuadrar la revolución epistemológica de la antropología estructural
en un proyecto analítico para los procesos ideológicos en la sociedad argentina.
Lévi-Strauss en las antropologías argentinas de las décadas
de 1960-1970
Hacia finales de la década de 1950 se consolidan dos proyectos de profesionalización de la Antropología, encarnados en la creación de sucesivas carreras en la
Universidad Nacional de La Plata, en 1957, y en la Universidad de Buenos Aires,
en 1958. La denominada institucionalización es relativa, en tanto que desde
finales del siglo XIX y la primera mitad del siglo XX existía una red de prácticas
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y de producción intelectual que confluyó en la moderna antropología que se
consolidó en diferentes espacios académico-culturales. Fundamentalmente,
esto se daba en torno al Museo Etnográfico (fundado en 1906) dependiente de
la Universidad de Buenos Aires y el Museo de La Plata (fundado en 1884), los
que dieron cuenta de proyectos y sensibilidades intelectuales diversas en el
fomento de la arqueología, el folklore y la etnología indígena.
El espacio del saber sobre la alteridad étnica y cultural de finales del
siglo XIX y comienzos del XX estaba signado por lo que Fabian (1983) describió como una definición temporal de los otros, en donde la misma no sólo era
geográficamente distante de los polos de modernización sino temporalmente
localizada en el pasado o en vías de desaparición. Mientras el Estado argentino expandía su soberanía a partir de las campañas de consolidación de sus
fronteras (muchas veces de la mano de una política etnocida) sobre el territorio indígena, los iniciadores de experiencias vinculadas con la antropología
en ciernes y sus discípulos se dedicaron a reconstruir el pasado prehispánico
o sus “supervivencias”. El mundo de la alteridad étnico-cultural era el mundo
pretérito, por lo tanto, objeto del análisis arqueológico o del folklore, que se
preocupaba por las “supervivencias” de elementos culturales arcaicos (su catalogación y clasificación en un diagrama estático) que persistían en la vida contemporánea y, en última instancia, estaban destinados a ser relevados por el
progreso y la civilización (Fígoli, 1995; Guber; Visacovsky, 2000). Por otro lado,
el vínculo de antropólogos extranjeros con analistas locales fue más escaso que
en otros países latinoamericanos que encajaban mejor con las imágenes de lo
“exótico”.8 El mundo urbano y el proceso de multiplicidad étnica y cultural que
fue consecuencia de la inmigración quedaba absolutamente fuera de la indagación antropológica, reservado al ensayo social con una función moralizadora.
Se configuraba entonces un modelo de nación en el que los saberes sobre la
Otredad se supeditaban a una ideología nacional europeísta, de homogeneización étnica y religiosa (Frigerio, 2002; Segato, 2007) que desentona con las
ideologías tropicalistas de la “mezcla” y el “sincretismo” de otras naciones latinoamericanas (Ribeiro, 2002).
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Tal vez una de las pocas excepciones haya sido el caso de Alfred Métraux en la Universidad
Nacional de Tucumán (Bilbao, 2002).
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Claude Lévi-Strauss en los mares del sur. Algunos desencuentros …
Hacia finales de la década de 1950 y comienzos de 1960, en el contexto de
modernización de las ciencias sociales, emergerían experiencias innovadoras
en los saberes sobre la alteridad. Si bien la Escuela histórico-cultural era dominante, no era la única. Durante los primeros años de la década de 1960, la antropología en la UBA se basaba sobre todo en una corriente folklórica que recién
empezaba a producir innovaciones dentro de un paradigma funcional y una
etnología de base histórico-cultural de tipo interpretativo con base existencial.
Sólo hacia finales de la década se consolidaría una etnología arraigada en un
programa fenomenológico más claro liderado por el italiano Marcelo Bórmida
(Silla, 2019).
La ausencia de toda referencia a Lévi-Strauss hacia comienzos de la década
de 1960 podía ser esperable, considerando que el sistema de traducción, edición y circulación de ideas si bien era amplio estaba mediado por espacios de
sociabilidad intelectual y académica particulares de la antropología vernácula.
Sin embargo, esa ausencia se convertiría en un rechazo explícito, mostrando un
horizonte poco abierto al diálogo, al pluralismo teórico y a la innovación epistemológica. Así describe Verón una conferencia impartida en el Departamento
de Antropología de la UBA a comienzos de la década de 1960:
Yo tuve la oportunidad de apreciar la oposición de derecha al estructuralismo.
En 1963, y poco después de mi regreso de París, donde había realizado estudios
de posgrado con Lévi-Strauss, fui invitado a dar una conferencia en el Departamento de Antropología de la Universidad de Buenos Aires, bajo el título: “Sociedad y comunicación: introducción a la obra de Claude Levi Strauss”. La oposición
encarnizada que encontré fue muy reveladora: el “racionalismo” de Levi-Strauss
era rechazado en nombre de una perspectiva vitalista-existencialista fundada
entre otras cosas en el supuesto de la existencia de diferencias cualitativas radicales entre las culturas. Ante este tipo de enfoque, que protegía al hombre blanco,
católico y educado, representante de la Civilización Occidental, de toda posible
contaminación con otras versiones del hombre, el punto de vista de la antropología estructural sólo podía provocar un rechazo global. De más está decir que no
fui invitado a dar ninguna otra conferencia. (Verón, 1974, p. 104).
En la descripción de su presentación fallida Verón identificaba una corriente
dominante en el clima intelectual de la antropología durante finales de la
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década de 1950 y comienzo de 1960, que asumía una noción de la cultura como
un delimitador fundamental de las diferencias, sin interés en indagar en un
principio de unidad del “espíritu humano” y que, como señala Silla (2014),
priorizaba la diversidad de “contenidos de conciencia”. A ello Verón opone el
programa de Lévi-Strauss, que si bien comparte la posibilidad de una totalidad cultural esta posee algunos elementos particulares. En primer lugar, es
el resultado de una operación de observación diferencial y no algo dado a ser
interpretado y descifrado; en segundo lugar, asume la diferencia cultural como
un principio fundamental, pero de orden semántico y no de orden existencial;
en tercer lugar, esas diferencias se dan sobre la base de una unidad común del
pensamiento humano.
La etnología fenomenológica frente a Lévi-Strauss
Marcelo Bórmida había hecho una carrera en arqueología de la mano de José
Imbelloni dentro de la tradición histórico-cultural; sin embargo, durante
la década de 1960 desarrollaría posiciones teóricas propias. No sólo reivindicaría la tradición historicista-vitalista, sino que incorporaría tradiciones estrictamente socio-antropológicas: los aportes del italiano Ernesto
Di Martino y la tradición sociológica francesa, que seguía una corriente “experiencial” ya presente en la herencia de Marcel Mauss, una lectura no ingenua
de Lucien Lévi-Bruhl y el modelo de trabajo etnográfico inspirado en Maurice
Lenhaardt. Estas últimas abrevaban de una corriente relevante en la antropología francesa previa a la consolidación del estructuralismo antropológico
como paradigma dominante en el contexto de posguerra y que constituyó uno
de los blancos de ataque y de disputa intelectual del proyecto científico de
Lévi-Strauss.
Hacia finales de la década de 1960, Bórmida consolidaría su modelo de
análisis de la cultura (sobre todo del mito, pero también de las relaciones de
parentesco y la cultura material) basado en una concepción vivencial y experiencial que se distanciaba fuertemente del funcionalismo de Malinowski, su
foco principal de discusión, pero también de la antropología estructural. En
un conjunto de publicaciones hacia el final de la década, hacía una referencia
crítica a Lévi-Strauss como un modelo “racionalista” y “abstracto” alejado de la
“experiencia concreta”:
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Claude Lévi-Strauss en los mares del sur. Algunos desencuentros …
Las “estructuras conscientes” de Lévi-Strauss se refieren únicamente al aspecto
externo, “morfológico” de los hechos culturales mutilados de su rostro vivencial,
es decir, separados del contexto de acción y emocionalidad que constituye su
aspecto más esencial […]. Un sistema de parentesco no es solo un conjunto de
relaciones, una estructura que se puede representar elegantemente a través de
esquemas gráficos, sino la herencia de ideas, creencias y experiencias que hacen
posibles estas creencias y les dan significado [y] de ninguna manera la reciprocidad, aunque explica un cierto nivel de parentesco, es suficiente para explicar el
horror sagrado ante el incesto. (Bórmida, 1969-1970, p. 37).
Como señala Silla (2014, p. 355-356) en una lectura contemporánea de esa
dimensión de la antropología fenomenológica de Bórmida, el mito es un relato
que emociona y que no puede explicarse en función de una estructura social
o de factores económicos, pero tampoco en relación con una estructura simbólica más allá de la experiencia (inter) subjetiva. Como vemos, el lugar del
estructuralismo etnológico resultaba complejo para este tipo de enfoque. Si
bien ambas posiciones podían compartir una preocupación por la totalidad
cultural y el problema de la diferencia, dejando eventualmente en un segundo
plano a los enfoques sociopolíticos, la prioridad dada a una mirada humanista
de lo “vivido” (Silla, 2019) se alejaba del foco levistraussiano que se construyó
justamente contra ese mismo humanismo.
Dos antropólogos formados como etnólogos en el círculo de Bórmida
(fallecido en 1977) recuerdan las discusiones sobre el lugar de Lévi-Strauss en
la etnología indígena del momento. Anatilde Idoyaga Molina, especialista en
sociedades chaqueñas y alumna de Bórmida en sus primeros años de formación durante la década de 1970, recuerda ese momento como distante y crítico
del estructuralismo en boga.9 En sus palabras:
9
Idoyaga Molina egresó de las Carreras de Historia y de Antropología a principio de la década
de 1970. Trabajó en la cátedra de Historia de España con el emigrado republicano Sánchez
Albornoz y se especializó en etnología de la mano de Bórmida. Se doctoró en Antropología en la
UBA en 1984 con una tesis sobre sistemas de clasificación entre los pilagá del Chaco argentino.
Trabajó durante la década de 1980 dentro de los enfoques simbólicos, incorporando la antropología cognitiva y aspectos históricos como el mesianismo y la conversión evangélica. Desde la
década de 1990 se dedicó a la antropología de la salud intercultural en diálogo con la antropología médica norteamericana de inspiración interpretativa.
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En la década de 1970 los antropólogos discutían las cosas que decía Lévi-Strauss
en entrevistas, que salían en el diario. Era como una moda. Pero muy pocos lo
contrastaban con trabajo etnológico concreto. Bórmida era alguien muy estricto
y estaba muy mal visto leer Levi-Strauss, lo leíamos y lo discutíamos medio a
escondidas, sobre todo cuando fueron saliendo las Mitológicas. De todos modos,
nuestra formación desconfiaba de las clasificaciones binarias y de ese modelo
tan abstracto, nosotros estábamos más cerca de un modelo vivencial del mito y
de la cultura, más en el modelo de Leenhardt sobre el que Lévi-Strauss era muy
crítico. Yo escribí ya en la década del 80 un artículo crítico con una discusión
sobre el problema del trickster en la mitología chaqueña, mostrando que LéviStrauss exagera bastante. Años después también edité en castellano el libro de
Francis Korn que hizo con Needham en Oxford, que mostraba un montón de
inconsistencias de Lévi-Strauss y abría un tipo de antropología más empírica
que me interesaba más.
La referencia a la edición castellana del trabajo de Francis Korn, publicado a
comienzos de la década de 1970 en inglés, resulta significativa porque muestra
una sensibilidad común empirista contra lo que aparecía como una mirada
abstracta y racionalista. Korn era egresada de la Carrera de Sociología –donde
fue colaboradora de Gino Germani y de Eliseo Verón-, especializada en metodología y doctorada en Antropología Social bajo la dirección de Rodney Needham
en Oxford a finales de la década de 1960. Si bien Korn, una vez regresada a la
Argentina, desarrolló una carrera como investigadora dentro de la epistemología de las ciencias sociales, la sociología y la historia, es autora de una serie de
artículos (sola o en colaboración con el propio Needham) y un libro aparecido
en inglés donde despliega una crítica empirista a Lévi-Strauss (Korn, 1973).10 Su
crítica, inspirada fuertemente en el nominalismo empirista de Needham, no
se basa en una trabajo etnográfico, sino en la revisión de datos clásicos sobre
10 La publicación en castellano del libro, recién veintitrés años luego de su aparición original
(Korn, 1996) por el Centro Argentino de Etnología Americana, fundado por Bórmida y para la
época un espacio relativamente aislado y marginal de la etnología en Argentina, es sintomática
de que la circulación local de Lévi-Strauss es algo complejo que puede llegar a articular, como
en la trayectoria de Korn, la sociología germaniana, la semiótica de Verón, las lecturas de LéviStrauss en la antropología británica y la matriz experiencial de una corriente fenomenológica
en la antropología argentina.
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Claude Lévi-Strauss en los mares del sur. Algunos desencuentros …
el parentesco dieri (Australia), iatmul (Nueva Guinea) y mara (Australia) para
desplegar una crítica concreta a los “errores” del tratamiento de Lévi-Strauss en
Las estructuras elementales del parentesco y, más en general, formular una crítica
teórica a los conceptos de “prescripción” y “preferencia”. Durante los primeros
años de la década de 1970 Korn se mantuvo alejada de cualquier vínculo con la
antropología argentina, sin embargo, el modelo de su crítica produciría semejanzas formales significativas con algunos planteos en contra de la supuesta
abstracción del estructuralismo antropológico.
Edgardo Cordeu, alumno de Bórmida desde la década de 1960 y especializado en etnología chaqueña, también recuerda sus lecturas de Lévi-Strauss
como hechos relativamente aislados que sólo pudieron plasmarse en ensayos
tardíos de su trayectoria.11
Yo llegué a Lévi-Strauss por la traducción de Eliseo Verón en la década de 1960.
En el grupo de Bórmida no estaban muy bien vistas esas lecturas. A mí me interesaba de todos modos y a pesar de no compartir ese modelo tan abstracto me
sirvió para una serie de artículos mucho más recientes sobre las organizaciones
duales entre los chamacoco del Alto Paraguay. Ahí es donde usé Lévi-Strauss
de modo más concreto, pero no por un tema teórico, sino porque esas sociedades tienen organizaciones duales. Me interesó también incluirlo en la materia
Antropología Sistemática III de la UBA, como bibliografía obligatoria, porque es
un autor clave. Pero nunca hubo una inspiración en Lévi-Strauss entre nosotros
de un modo total, fue siempre una lectura complementar. El estilo de trabajo
entre nosotros fue siempre más empirista, más centrado en la cuestión de la
vivencia.
Estos testimonios de antropólogos especializados en etnología indígena que
iniciaron su trabajo entre las décadas de 1960 y 1970 en el espacio académico
cercano a Bórmida, indican hasta qué punto en esa tradición Lévi-Strauss ocupaba un lugar marginal. Explicado, en parte, por el rechazo al estructuralismo
11 Cordeu egresó como antropólogo en 1963 y se doctoró en la UBA en 1981. Desarrolló una carrera
dentro de los estudios chaqueños (en Argentina y Paraguay), sobre todo acerca de problemas de
cosmología, mitología y cognición, incorporando tempranamente procesos históricos y modelos de cambio sociocultural que asumían procesos de transformación y relaciones sociopolíticas de las sociedades indígenas.
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como un programa racionalista y la defensa de un modelo experiencial-vivencial. Al mismo tiempo, muestran la necesidad de tomar posición en relación
con el autor, sobre todo en función de un área de trabajo, la etnología indígena,
en la cual las ideas del antropólogo francés hacían foco. Por otro lado, si bien
no tomó un lugar central, Lévi-Strauss fue incorporado tardíamente (muchas
veces de un modo crítico) en publicaciones con referencias situadas sobre el
campo de la etnología indígena chaqueña, en traducciones que discutían sus
aportes, como es el caso del trabajo de Francis Korn, y en diseños curriculares
que reconocían su importancia relativa.12
Lévi-Strauss y la antropología social
La llamada antropología social constituye una experiencia que empieza a consolidarse en la década de 1970 y tiene un lugar preponderante sólo a partir de
la consolidación de la democracia en la década siguiente. Sin embargo, como
señala Guber (2006, p. 25) hubo experiencias pioneras de la antropología social
en la UBA hacia finales de la década de 1950 de la mano de Esther Hermitte.
Por ejemplo, describe para ese momento prácticas de investigación bajo el
paraguas del término “antropología social” en un contexto previo a la creación
de las Carreras de Antropología (Guber, 2007, p. 280-1) y algunos cursos ya en
la década de 1960 sobre etnografía maya, tema de especialización de la tesis
doctoral Hermitte. La inspiración funcionalista de este nuevo paradigma se
posicionaba de un modo muy distante de la inspiración epistemológica del
estructuralismo antropológico.
12 Un episodio relativamente independiente de los usos de Lévi-Strauss en Argentina en el horizonte estricto de la antropología se dio en el Museo de Ciencias Naturales de la Universidad
Nacional de La Plata. Allí Héctor Lahitte, quien a inicios de la década 1970 paso por el Laboratorio de Antropología dirigido por Claude Lévi-Strauss, constituye un ejemplo que requeriría
un análisis más detallado. Su lugar periférico en la antropología social contemporánea, por
las temáticas analizadas, por su trayectoria político-institucional y por el espacio mismo de la
Universidad de La Plata en los procesos de modernización académica de las últimas décadas,
contrasta con una apropiación singular y pionera del estructuralismo antropológico que abrió
una alternativa a la tradición histórico-cultural dominante hasta avanzados los años 70s en
esa Universidad. Lahitte utilizó la obra de Lévi-Strauss como docente y como investigador para
desarrollar una serie de intervenciones sobre problemas epistemológicos y en estudios sobre
sistemas clasificatorios que, durante la década de 1980, dialogaron con las etnociencias y la
antropología cognitiva.
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Claude Lévi-Strauss en los mares del sur. Algunos desencuentros …
Los cursos de Introducción a las Ciencias Antropológicas, dictados dentro
de la flamante Carrera de Antropología de la UBA no hacían mención alguna a
Lévi-Strauss y en las materias etnológicas, dominadas por el enfoque vivencial
de Bórmida, brillaba por su ausencia durante toda la década de 1960. Cynthia
Acuña (2005), quien analizó con detalle los programas de la Facultad de Filosofía y Letras de la UBA, insiste en esta ausencia de la temática estructural en
la Carrera de Antropología, en contraste con los cursos ofrecidos en Sociología, muchos de los cuales eran optativos para los alumnos de todas las carreras.
Una de las primeras referencias aparece en un curso denominado Antropología
Social, ofrecido por poco tiempo y a cargo de Ralph Beals, un antropólogo graduado de la Universidad de California y colaborador de Alfred Kroeber, invitado
a Argentina por Gino Germani (Guber, 2007, p. 269). En su programa encontramos una referencia aislada al artículo “El concepto de estructura social” (LéviStrauss, 1960), editado en el Boletín del Instituto de Sociología (publicación de
la que Gino Germani era el director y Eliseo Verón el secretario de redacción)
y que incluía junto al escrito del antropólogo francés un trabajo clásico de
Radcliffe-Brown.13 Como observa Barreras (2016), la presencia de un texto traducido del inglés es importante en tanto revela el sistema de referencias anglosajón por el que ingresa el autor a la temática estrictamente antropológica. Se
trata de un texto leído en un curso ofrecido por el Departamento de Sociología a
mediados de la década de 1960, originalmente escrito en inglés para ser difundido en el ambiente norteamericano y sólo publicado en francés en 1958 en
Anthropologie structurale como “La notion de structure en ethnologie”. La publicación era afín al proyecto editorial, docente y académico de Gino Germani,
asumiendo el modelo de una ciencia social unificada de Parsons que incluía la
antropología cultural, la sociología y la psicología social (Blanco, 2006).
Esa traducción inicial del texto de Lévi-Strauss se mantuvo en el programa
de Antropología Social y Cultural dictado por Abraham Monk, sucesor de Beals.
Las referencias de Monk eran las de la antropología cultural norteamericana.
Entre varias publicaciones se destaca la versión castellana de un volumen
13 La versión castellana estaba traducida del original en inglés Social structure, incluido en una
compilación norteamericana de Alfred L. Kroeber titulada Anthropology today y editada en 1953.
La traducción a cargo de Irene Dab y Noemí Rosenblatt contó con la revisión de Eliseo Verón
que utilizó la versión francesa incluida en Anthropologie structurale.
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especial que publicaba trabajos de un simposio organizado por Arthur Kroeber,
bajo el amparo de la Wenner-Gren Foundation, dedicado al problema de los
“conceptos y valores en antropología”. En la presentación de Monk se detallan
los avances en la antropología norteamericana reciente y la centralidad del
problema de los “estilos de vida”, temática cara a la antropología de Kroeber.
Lévi-Strauss aparece entonces en una cita muy heterodoxa, como un modo de
reivindicar el culturalismo norteamericano en su veta comparativa:
La antropología tiene por objeto, según Lévy-Strauss [sic], alcanzar la objetividad
metodológica. En este sentido debe superar el lastre impuesto por sus precursores evolucionistas, tales como Tylor que deseaba hacer de ella una filosofía
del reformismo social. En segundo término, según Lévy-Strauss, aspira a la mencionada “totalidad” del fenómeno social. El antropólogo tiene, sin embargo, por
objetivo cada vez más notorio observar la dinámica de la vida social, con un criterio comparativo, estableciendo las relaciones interculturales de pautas. (Monk,
1965, p. 18).
La referencia de Monk confirma el sesgo que homologa la noción de cultura
del antropólogo francés –una propuesta comunicacional, en la que lo central
no son los contenidos culturales sino las relaciones subyacentes entre términos-, con la de inspiración norteamericana centrada en modos de vida y rasgos
manifiestos.
La antropología con un proyecto etnográfico más claro, desplegada durante
la década de 1960-1970 por antropólogos argentinos formados en su mayoría en el exterior, tampoco manifestó referencias explícitas a la antropología estructural. La inspiración etnográfica de los trabajos pioneros, llevados
a cabo por Esther Hermitte, Santiago Bilbao, Hebe Vessuri, Ricardo Archetti,
Leopoldo Bartolomé y Hugo Ratier, se distanciaba tanto del culturalismo de
Germani (incluso de los modelos cuantitativos de la nueva sociología empírica)
como del exotismo etnológico de Bórmida (Guber, 2007, 2008, 2010; Guber;
Visacovsky, 2000), profundizando una etnografía procesualista que desconfiaba de las totalidades culturales.
En paralelo, existía en la antropología del momento una corriente que mantenía una relación fuerte con la idea de cultura, entendida como totalidad, pero
distanciándose del refinamiento metodológico-etnográfico de los antropólogos
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Claude Lévi-Strauss en los mares del sur. Algunos desencuentros …
sociales formados en el exterior y más afín a la síntesis teórica y la crítica política. Allí se destaca por su lectura de Lévi-Strauss el antropólogo Eduardo
Menéndez, inicialmente alumno de Bórmida pero también integrante de equipos dirigidos por Esther Hermitte en el Instituto Di Tella.14 Luego de un trabajo
de campo con inmigrantes italianos en la provincia de Entre Ríos, fue autor
de una serie de textos de índole política-epistemológica sobre el colonialismo,
el racismo y el problema de la ideología en relación con el quehacer antropológico, inspirado en una economía política de la cultura con fuerte influencia de
Antonio Gramsci (Guber, 2008, 2010).
Menéndez representaba una antropología social en diálogo con las corrientes más politizadas del momento, pero esa relación con el marxismo y con
análisis basados en el concepto de “totalidad cultural” era identificada por el
propio Menéndez en relación con la matriz histórico-cultural de su formación
etnológica con Bórmida al comienzo de la década de 1960 y su relación con las
corrientes culturalistas de origen europeo, sobre todo en la reivindicación de
lecturas iniciáticas del antropólogo italiano Ernesto De Martino, quien sintetizaba el materialismo cultural con el particularismo histórico:
Nosotros comenzábamos nuestra formación teórico/metodológica leyendo un
texto de De Martino que se llamaba Naturalismo e storicismo, que era una crítica a las teorías positivistas y funcionalistas y coincidía en gran medida con
nuestras lecturas marxistas y de otras corrientes críticas respecto justamente de
posiciones positivistas y funcionalistas. (Menéndez, 2008, p. 20).
Menéndez mantenía el problema de la totalidad cultural y su crítica epistemológica hacía foco en el estatuto de la alteridad, que no debía ser exotizado sino
entendido en función de relaciones de dominación política. En esa crítica el
14 Entre las lecturas de Lévi-Strauss dentro de la antropología se destacan también las de Blas
Alberti, junto con Menéndez uno de los primeros egresados de la Carrera de Antropología y, a su
vez, también colaborador de Bórmida en sus años de formación. Blas Alberti frecuentó los trabajos del estructuralismo antropológico desde una mirada teórica en sus cursos como docente
y en algunos textos de crítica ideológico-política donde reivindicaba a Lévi-Strauss como parte
de un planteo anticolonialista, asumiendo una distancia explícita entre el historicismo culturalista de Bórmida y el estructuralismo, pero al mismo tiempo reconociendo afinidades en
relación con la problemática de la “totalidad” que la antropología anglosajona más empírica
pondría en crisis (Alberti; Gurevich, 1998).
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problema del relativismo cultural de Bórmida era en cierto sentido también el
problema de Lévi-Strauss, aunque sus ideas de cultura y de diferencia se inspirasen en paradigmas opuestos. Por ejemplo, en una revisión contemporánea
Menéndez reflexionaba sobre ese momento:
Esta posición supuso varios cuestionamientos, entre los cuales subrayo nuestro
rechazo al exotismo y a la exotización del sujeto de trabajo antropológico, así
como un cuestionamiento del relativismo cultural en términos de irresponsabilidad epistemológica y social. Proponíamos pensar y actuar la realidad a través de nuestros intereses y objetivos y no de modas teóricas y epistemológicas
de turno. Y, además, acompañar el acto intelectual por una suerte de apasionamiento que nos movilizara y movilizara a los otros sin reducir por ello nuestra
rigurosidad intelectual. (Menéndez, 2008, p. 25-26).
La crítica más sistemática a Lévi-Strauss se condensa en un artículo llamado
“Ideología, ciencia y práctica profesional” (Menéndez, 1970) incluido en una
compilación organizada por la socióloga Rosalía Cortés, recolectando los trabajos de un evento organizado por Verón y dedicada a discutir el concepto
de ideología y el problema de la realidad nacional. En ese artículo Menéndez
atacaba directamente el concepto de ideología tal como era utilizado por LéviStrauss y sus ecos locales (claramente Verón, pero también la “moda estructuralista”) como colonialista, deshistorizado y etnocéntrico.15 Luego de describir
la función imperialista y colonial de las ciencias sociales y sus funciones ideológicas en América Latina, rescatando sólo algunos recursos metodológicos de
la antropología pero cuestionando su matriz colonial clásica, sostiene:
El estructuralismo antropológico constituye una orientación científica que
está cumpliendo en la actualidad un intenso rol instrumentalizador e ideológico. En principio subrayamos que si algo caracteriza como constante a la teoría antropológica es eso: ha de ser, debido en parte a su objeto, una teoría que
15 Desde una posición fundamentalmente teórico-filosófica, la crítica a la falta de historicidad y
de política en la obra de Lévi-Strauss era un tema habitual en la época. Entre ellos destacamos
el argumento de la filósofa heideggeriana Alicia Podetti (1969) que desde una posición nacionalista-anticolonial ataca a Lévi-Strauss con argumentos próximos a los de Menéndez.
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Claude Lévi-Strauss en los mares del sur. Algunos desencuentros …
tiende a la estructuración. El estructuralismo levistraussiano constituye la más
amplia tarea teórica de anulación de la historia desde el auge de las escuelas
cicloculturalistas en antropología. […] Su enfoque metodológico no constituye
nada nuevo en antropología. Lo constituye para dar a las otras ciencias, que
rápidamente van a tratar de asumirlo como propio para intentar nuevamente
la cosificación y deshistorización de su objeto, para resolver así la permanente
contradicción del proceso sociocultural. (Menéndez, 1970, p. 118).
Cabe aclarar que Menéndez, a diferencia de otros antropólogos identificados
explícita o implícitamente con la antropología social, no estaba distante del
debate en torno al problema del análisis ideológico impulsado por Verón. De
hecho, Menéndez había sido el revisor de la traducción de Antropología estructural realizada por Verón y publicada en 1961. Por otro lado, ambos dirigían
dos colecciones dedicadas a temas afines en la Editorial Tiempo Contemporáneo, una de las nuevas editoriales del campo cultural de la Nueva Izquierda
en la década de 1960. Dentro de una sección denominada “Biblioteca de Ciencias Sociales”, a partir de 1969 aparece una seria de colecciones que por su
catálogo y sus traducciones disputarían diferentes sentidos sobre la cultura
y lo ideológico. “Análisis y Perspectivas” y “Signos” fueron colecciones dirigidas por Eliseo Verón y se convirtieron en epicentro de las traducciones de la
semiótica de la época y el estructuralismo. Por otra parte, la editorial lleva
adelante la colección “Crítica ideológica”, dirigida por Menéndez, que incluía
títulos dedicados a procesos de descolonización y el Tercer Mundo (Zarowsky,
2017). Los proyectos editoriales de ambos hacen a un debate de ideas implícito entre el estructuralismo (no sólo antropológico) –que no desconocía sus
relaciones con las prácticas materiales de inspiración marxista-, y la crítica
de inspiración anticolonial de las ideologías como procesos de dominación.
Uno de los volúmenes publicados en la colección dirigida por Menéndez
resulta paradigmático de ese debate. El texto en cuestión es una traducción
de Sociología de la descolonización del antropólogo francés George Balandier.
El estudio preliminar, firmado por Luis F. Rivas –seudónimo de Menéndez–,
seguía todos los puntos críticos desplegados por el mismo Menéndez, incluso
citándolo, y dedicando buena parte del ensayo al contraste entre Balandier, un
antropólogo comprometido con la crítica descolonial y el análisis procesualista
histórico-político, y la obra de Lévi-Strauss. Según su perspectiva la etnología
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americanista de Lévi-Strauss poseía todos los rasgos de una ideología colonial
encubierta en un proyecto científico. Este fragmento resulta ejemplificador:
La obra de Lévi-Strauss señala casi paradigmáticamente nuestro estructural
colonialismo cultural, el cual no es pasible de ser adosado sólo a quienes “importan” modelos europeos o norteamericanos, sino también a quienes se supone
atacan la importación de dichos modelos en cuanto son parte del proceso de
mantenimiento de nuestra dependencia cultural. Tanto en unos como en otros
se registra un curioso reconocimiento de la obra de Lévi-Strauss; tanto en unos
como en otros se observa consecuentemente una ignorancia bastante antigua
de los autores que como Balandier adelantaron “las problemáticas del Tercer
Mundo”. (Rivas, 1973, p. 2).
La publicación del libro de Balandier resultaba entonces una herramienta para
zanjar la cuestión atacando a los usos de Lévi-Strauss (como vimos casi inexistentes en el espacio antropológico) pero en el código anticolonial propio de la
radicalización política del momento, del que Menéndez era un representante
conspicuo.
Si Verón, en su reseña histórica sobre los usos del estructuralismo se refería
a la crítica conservadora escenificada en el desaire a su conferencia de 1963,
también se refería a su contracara: la crítica al estructuralismo desde lo que
aparecía como un izquierdismo ingenuo que, amparándose en un universalismo rígido, subsumía las diferencias culturales como marcadores distintivos,
poniendo el foco en las condiciones universales (o por lo menos universalmente esperables) del acceso a la emancipación social. La defensa de Verón se
centraba en los usos innovadores que se hicieron durante la década de 1960 de
las ideas de Lévi-Strauss, incorporando modelos pragmáticos y síntesis creativas tempranas con la obra de Bateson (de la que Verón era el autor). Además,
otro de sus argumentos se centraba en la publicación, dentro de la colección en
Tiempo Contemporáneo, de obras críticas del colonialismo como La paz blanca
de Robert Jaulin, que constituye una denuncia sistemática del etnocidio en las
sociedades amerindias firmada por un miembro del círculo estrecho de la etnología levistraussiana.
La antropología social demoraría más de 25 años en consolidarse como
una corriente fundamental. Al hacerlo, la prioridad dada a la fricción social
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Claude Lévi-Strauss en los mares del sur. Algunos desencuentros …
por sobre las regularidades culturales dejaría al estructuralismo como un
capítulo superado de la antropología. La antropología social, consolidada a
la luz de la politización de las prácticas intelectuales (Guber, 2008, 2010), se
mantuvo alejada de la tradición lévistraussiana, mantuvo un tono de desconfianza sobre la posible deriva esencialista de la idea de estructura y, en el caso
específico de la problemática étnica, desconfió del lugar subordinado que este
tema adquirió en la renovación social de la disciplina durante la década de
1980. La obra de Lévi-Strauss no se adaptó bien a una antropología que luchaba
por imponer una nueva agenda de temas (que incorporaba los problemas urbanos, la desigualdad y los procesos vinculados con la modernización), relegando
el problema clásico de la diferencia cultural para dar prioridad a las relaciones sociales de subordinación y los Otros internos de la nación (Guber, 2008;
Guber; Visakovsky, 2000; Visakovsky; Guber; Gurevich, 1997).
Conclusiones
La presencia de la obra de Lévi-Strauss en Argentina puede leerse como parte
de los procesos de modernización cultural de las ciencias sociales durante la
década de 1960, en la que se perciben por lo menos dos momentos. En primer
lugar, el estructuralismo antropológico es la base de un proyecto epistemológico
sobre la noción semiótica de acción social que disputaba tanto el cultural-funcionalismo norteamericano en boga en la sociología, como las fenomenologías europeas difundidas en la filosofía y la antropología. En segundo lugar, el
antropólogo francés conformó junto con una batería más amplía de autores por
fuera de los circuitos antropológicos las bases de una mirada semiótica sobre
la cultura de masas y los procesos ideológicos que dieron jugar a un fenómeno
más amplio asociado con la “moda del estructuralismo”.
El recorrido propuesto en este artículo partió del hecho paradojal de que
ese proceso tuvo un impacto relativo o mínimo en la antropología de las décadas de 1960-1970, pero sin embargo sus obras no dejaron de ser discutidas.
Los cambios vertiginosos en la práctica de la antropología en el período son
un campo fértil de indagación sobre los rechazos u omisiones de la obra de
Lévi-Strauss, sus condiciones de circulación y los argumentos que diferentes
posiciones identificadas con ese espacio intelectual movilizaron en relación
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con el proyecto científico del estructuralismo antropológico. El trabajo de LéviStrauss fue asociado con un excesivo racionalismo desde el análisis empírico
de inspiración existencial en la etnología que privilegiaba una perspectiva
vivencial de la cultura. Al mismo tiempo, para la antropología social “comprometida”, que priorizaba un enfoque procesualista, fue identificado como un
modo de esencialización de la alteridad con supuestas consecuencias políticas
conservadoras.
De este modo, podemos suponer que cada una de estas posiciones epistemológicas ha privilegiado imágenes particulares de la nación, afines a los
estatutos políticos de alteridad en que esas corrientes estuvieron insertas: el
humanismo de los contenidos de conciencia, junto a su alteridad conservadora
pasiva y en vías de desaparición, y el proceso modernizador de la integración
del Otro implícito tanto en el desarrollismo liberal como en la transformación
emancipadora. Esto implicaba que quedaba trunca la posibilidad de un camino
alternativo, de un análisis etnográfico que, como en el caso de Lévi-Strauss, partiese de un enfoque comunicacional y comparado de la cultura y considerase
una dimensión histórica de las transformaciones.
Sólo más tardíamente ese camino alternativo que sintetiza una idea de
totalidad cultural con un reconocimiento político de la alteridad se incorporaría a la antropología argentina, de un modo parcial y sin el antecedente de
un “momento estructuralista”. Los desencuentros entre la obra de Lévi-Strauss
y la antropología hecha en Argentina nos dicen algo sobre las formas de pensar la alteridad en una nación donde los intelectuales y académicos no fueron ajenos a una narración dominante que, explícita o implícitamente, reguló
los modos de imaginarla como un todo cultural estático o, en su defecto, como
una diferencia puramente social con poca o escasa autonomía relativa con
respecto a los modos de pensamiento de la racionalidad occidental hegemónica. Cada uno de ellos fue subsidiario de narraciones sobre la alteridad que
organizaron polarmente el problema de cultura, como vivencia deshistorizada
primero durante el auge existencial, o como efecto de procesos o disputas
sociales en las corrientes más dominantes de la antropología social argentina.
El efecto de retorno sobre la obra de Lévi-Strauss en la antropología hecha en
Argentina tal vez permita un camino alternativo para reconstruir la fuerza
analítica del estructuralismo en las heterogéneas y conflictivas tradiciones
antropológicas nacionales. Por un lado, es crucial repensar ese vínculo en relación
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Claude Lévi-Strauss en los mares del sur. Algunos desencuentros …
con el trabajo etnográfico y, por otro, como horizonte donde las regularidades
simbólicas puedan ser repensadas como modos de pensamiento diferenciales.
Ese lugar de las formas de alteridad como estructuras de pensamiento o códigos diferenciales es una herramienta analítica que resulta cada vez más significativa en un contexto como el contemporáneo, en donde parece quedar cada
vez más claro que la diversidad y el pluralismo no puede ser solo de “grupos” o
“identificaciones” sino de formas de vida y racionalidades múltiples.
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Recebido: 31/03/2021
Aceito: 01/07/2021
|
Received: 3/31/2021
Accepted: 7/1/2021
Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional
This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License.
Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 28, n. 62, p. 179-209, jan./abr. 2022
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Artigos
Articles
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71832022000100007
(Re)aproximando-se e afastando-se da
Alemanha: Curt Nimuendajú como parte
de redes transnacionais de antropólogos
(Re)approaching to and withdrawing from Germany:
Curt Nimuendajú as part of transnational networks
of anthropologists
Peter Schröder I
https://orcid.org/0000-0001-9084-7106
peter.schroder@ufpe.br
I
Universidade Federal de Pernambuco – Recife, PE, Brasil
Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 28, n. 62, p. 211-255, jan./abr. 2022
Peter Schröder
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Resumo
Na história da antropologia, há vários personagens sobre os quais foi produzida uma
bibliografia extensa. Esse também é o caso do etnólogo brasileiro de origem alemã
Curt Nimuendajú (1883-1945). Revisitar as diversas narrativas, brasileiras e estrangeiras, sobre sua biografia se justifica, sobretudo quando novos dados empíricos ficam
disponíveis. Que Nimuendajú cultivava numerosos contatos com pesquisadores
brasileiros e estrangeiros é um fato amplamente conhecido, no entanto vale a pena
lançar um outro olhar para as redes transnacionais de antropólogos das quais ele
fazia parte e ver como elas estruturaram suas atividades de pesquisador e colecionador. Neste artigo, são analisadas três dessas redes em ordem cronológica (tendo
Theodor Koch-Grünberg e Emilie Snethlage, Fritz Krause e Otto Reche, e Robert Lowie
e Julian Steward como os principais interlocutores, respectivamente). Fica patente
que a formação, o abandono e a transformação delas refletem, num tipo de microcosmo, as transformações no cenário da antropologia brasileira na primeira metade
do século XX, com seu afastamento paulatino da etnologia alemã, abrindo-se para os
diálogos com a antropologia cultural norte-americana.
Palavras-chave: Curt Nimuendajú; etnologia alemã; antropologia brasileira; transnacionalismo científico.
Abstract
In the history of anthropology, there has been produced an extensive bibliography
about some personages. This is also true for the Brazilian ethnologist of German origin Curt Nimuendajú (1883-1945). Revisiting the various, Brazilian and foreign, narratives about his biography can be justified above all when new empirical information
becomes available. That Nimuendajú cultivated numerous contacts with Brazilian
and foreign researchers is a well-known fact, but it is worth while taking another look
at the transnational networks of anthropologists he took an active part in and seeing
how they structured his activities as a researcher and collector. In this article, three of
these networks are analyzed in chronological order (with Theodor Koch-Grünberg and
Emilie Snethlage, Fritz Krause and Otto Reche, and Robert Lowie and Julian Steward,
respectively, as his principal interlocutors). It becomes evident that their formation,
discontinuation, and transformation reflect, in a kind of microcosm, the changes in
the scenario of Brazilian anthropology in the first half of the twentieth century, with
its gradual turning away from German ethnology, opening for dialogues with North
American cultural anthropology.
Keywords: Curt Nimuendajú; German ethnology; Brazilian anthropology; scientific
transnationalism.
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(Re)aproximando-se e afastando-se da Alemanha
Introdução: um ancestral em duas tradições1
Na história da antropologia, há vários personagens centrais sobre os quais está
disponível uma extensa bibliografia em várias línguas, sobretudo quando se
trata de figuras proeminentes para a formação, constituição e consolidação da
área em seus respectivos contextos nacionais. Isso também pode ser afirmado
sobre o etnólogo naturalizado brasileiro de origem alemã Curt Nimuendajú
(1883-1945). Roberto Cardoso de Oliveira (1988), em sua conhecida periodização
da antropologia brasileira, atribuiu a Nimuendajú um papel de “herói civilizador” para a tradição da etnologia indígena, na fase “heroica” da área, enquanto
Mércio Gomes (2008, p. 185), em uma das poucas introduções brasileiras à
antropologia (a maioria das introduções publicadas por editoras brasileiras são
traduções), o denomina “o pai da Antropologia brasileira dedicada aos estudos
dos povos indígenas nos últimos cem anos”. Seu papel frequente de indigenista
e sua defesa intransigente dos direitos indígenas à sobrevivência cultural e
física garantiram a ele, além da fama na produção de conhecimentos científicos para a antropologia, um forte bônus de simpatias, tão importante para as
narrativas predominantes na história da antropologia brasileira, ou seja, algo
que uma figura relevante para a história das culturas afro-brasileiras como
Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906), conhecido por suas posições eugenistas e racistas, não despertaria. Ruas (na capital paulista ou na cidade alemã
de Jena, onde nasceu, por exemplo), salas de museus, institutos universitários,
um posto indígena, séries de palestras ou placas comemorativas podem levar o
nome de Nimuendajú, para citar apenas alguns exemplos.
Não obstante isso, a impressão é que a maioria dos alunos dos cursos de
antropologia no Brasil não sabe mais sobre o etnólogo do que seu nome, embora
seja muito fácil ter acesso a informações biográficas básicas. Uma das versões
1
Este artigo é um dos resultados de dois projetos de pesquisa financiados com recursos do CNPq
na modalidade Produtividade em Pesquisa (PQ): “Curt Unckel Nimuendajú e a etnologia alemã
nas décadas de 1910 e 1920: uma contribuição à história da Antropologia no Brasil” (processo
n. 307304/2013-2; 2014-2017) e “Triângulo etnológico: as relações entre Curt Nimuendajú, Fritz
Krause e Otto Reche. Um espelho das mudanças no cenário da antropologia brasileira na
década de 1930” (processo n. 306550/2016-4; 2017-2020). Agradeço ao CNPq pelo apoio. Também expresso minha gratidão aos três pareceristas anônimos da primeira versão do artigo pelas
leituras atentas e pelas diversas sugestões construtivas.
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Peter Schröder
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mais breves foi redigida pelo próprio Nimuendajú como resposta a um pedido
do etnólogo Herbert Baldus (1899-1970):
Quer que lhe mande uma história da minha vida? É muito simples: nasci em
Jena, no ano de 1883, não tive instrução universitária de espécie alguma, vim ao
Brasil em 1903, tinha como residência permanente, até 1913, São Paulo, e depois
Belém do Pará, e todo o resto foi, até hoje, uma série quase ininterrupta de explorações, das quais enumerei, na lista anexa, aquelas de que me lembro. Fotografia
minha não tenho. (Baldus, 1945, p. 92).
Nesse trecho, trata-se da expressão de traços do caráter do autor (humildade,
sobriedade e desapego a formalismos acadêmicos), mas também de um understatement calculado, já que, naquela altura, Nimuendajú não era mais nenhuma
pessoa desconhecida entre os especialistas sobre os indígenas no Brasil (ver
também os comentários de Oliveira [2007] sobre o resumo autobiográfico).
De fato, Curt Unckel emigrou da Alemanha para o Brasil com 20 anos, em
1903, e viveu entre um grupo Guarani numa aldeia do rio Batalha, no estado
de São Paulo, entre 1905 e 1907, onde recebeu o nome Nimuendajú, o qual ele
registrou como sobrenome em 19262 ao optar pela nacionalidade brasileira.
Em 1913, ele mudou-se de São Paulo para Belém, onde teve seu endereço residencial permanente até a data de seu falecimento, em 10 de dezembro de 1945
numa aldeia Ticuna, no município de São Paulo de Olivença, região do Alto
Solimões, por causa nunca apurada de forma conclusiva, embora a hipótese
de assassinato seja uma delas (Oliveira, 1999).3 Mais de quatro décadas dedicadas à etnologia indígena renderam-lhe, ainda em vida, o reconhecimento como
uma das maiores autoridades da etnologia dos povos indígenas no Brasil na
primeira metade do século XX (Grupioni, 1998, p. 164) e, segundo alguns autores,
como sendo a maior durante todo esse período (Kraus, 2004, p. 44-45). Embora
continue vivo o interesse pela obra de Nimuendajú, sendo que uma parte dela
2
Às vezes pode-se ler que isso ocorreu em 1922, porém a certidão de naturalização original, de 30
de janeiro de 1926, encontra-se guardada no Arquivo Guilherme de La Penha, do Museu Paraense Emílio Goeldi. A origem do equívoco do ano da naturalização ainda é desconhecida.
3
Welper (2016) apresenta, num artigo mais recente, um tipo de genealogia das diversas versões
da morte de Nimuendajú.
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(Re)aproximando-se e afastando-se da Alemanha
ainda não foi publicada em português, especialmente alguns trabalhos publicados em alemão (Schröder, 2013), sempre foi sua biografia insólita e em parte
misteriosa que despertou curiosidades ao menos iguais, se não maiores, como
também observou Grupioni (1998, p. 15).
Na antropologia brasileira, Nimuendajú geralmente é visto como antropólogo brasileiro, às vezes com um acréscimo “de origem alemã”, ou como “teuto-brasileiro” (Viveiros de Castro, 1986), e menos como um etnólogo alemão com
residência no Brasil. Não se costuma considerá-lo um representante da etnologia alemã, embora na correspondência com Theodor Koch-Grünberg (18721924), arquivada na Universidade de Marburg, Alemanha,4 a identificação de
Nimuendajú com a etnologia alemã fique explícita. No entanto, a correspondência terminou em 1924, com a morte de Koch-Grünberg, e Nimuendajú ainda
viveu por 21 anos. Na Alemanha, o ponto de vista frequentemente é diferente.
Desse modo, encontra-se, por exemplo, entre os pequenos retratos biográficos
do portal importante Interviews with German Anthropologists, administrado por
Dieter Haller, da Universidade do Vale do Ruhr (Ruhr-Universität Bochum),
um verbete sobre “Curt Nimuendajú (Unckel)” (Riese, [2016]). Michael Kraus
(2004, p. 44-45), em seu detalhado estudo sobre a pesquisa etnológica alemã na
Amazônia entre 1884 e 1929, também incluiu Nimuendajú na tradição etnológica alemã. Isso também fica evidente em dicionários e manuais, por exemplo
em Hirschberg (1999, p. 271-272: “dt. Ethnologe”) ou em Haller (2005), onde, no
índice remissivo onomástico, se encontra seu nome em “Unkel, C.”.5 Em 2016, a
Comissão Histórica da Academia Bávara de Ciências (Historische Kommission
bei der Bayerischen Akademie der Wissenschaften) publicou o volume 26 da
Neue Deutsche Biographie (NDB). A NDB é a obra de consultas biográficas mais
bem conceituada e confiável da Alemanha. No volume 26, Curt é citado como
Unckel, e não como Nimuendajú (Schröder, 2016).
4
Mais especificamente, na Área Antropologia Cultural e Social (Fachgebiet Kultur- und Sozialanthropologie), Instituto de Antropologia Social e Ciências da Religião (Institut für Sozialanthropologie und Religionswissenschaft) da Universidade de Marburg. Ver https://www.uni-marburg.
de/de/fb03/ivk/fachgebiete/kultur-und-sozialanthropologie/ethnographische-sammlung/
nachlass-koch-gruenberg (acesso em 16/07/2021).
5
Ver também Barnard e Spencer (1996, p. 586: “German ethnologist”) e Panoff e Perrin (1973, p. 193:
“chercheur allemand”).
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Uma avaliação de vida e obra do etnólogo ganha novas facetas quando ela
não é feita exclusivamente com relação a uma única tradição nacional da área,
mas quando também se lança o olhar para seus numerosos contatos, diretos e
epistolares, no cenário internacional da antropologia na primeira metade do
século XX (o que foi feito, por exemplo, por Petschelies [2019] com relação a
Koch-Grünberg).
A questão não pode ser abordada, portanto, sem levar em consideração o
papel da etnologia alemã no cenário acadêmico brasileiro na primeira metade
do século passado. Segundo Julio Cezar Melatti (1983), a influência da etnologia alemã era preponderante nos estudos de etnologia indígena no Brasil até a
década de 1930. No entanto, com a Primeira Guerra Mundial começou um declínio abrangente da etnologia alemã (Kraus, 2004), tanto em seu território nacional quanto no cenário internacional, cujo ponto mais profundo seria alcançado
com o nazismo e a adaptação majoritariamente voluntária dos antropólogos alemães ao regime (Hauschild, 1995). A importância de uma perspectiva
transnacional na avaliação do legado das antropologias de língua alemã na
América Latina também foi destacada recentemente num dossiê sobre “German-Speaking Anthropologists in Latin America, 1884-1945”, publicado na Revista de
Antropologia (2019), da Universidade de São Paulo (USP). Nesse dossiê, a obra
de Nimuendajú foi interpretada como vinculada à tradição alemã (Pinheiro;
Schröder; Vermeulen, 2019), mas sem diminuir seu papel pioneiro para a formação da antropologia brasileira (Schröder, 2019c).
O objetivo deste artigo é revisitar as diversas narrativas, brasileiras e estrangeiras, sobre a biografia de Nimuendajú, com ajuda de novos materiais bibliográficos e documentais publicados e disponibilizados no decorrer dos últimos
dez a quinze anos. Será dado destaque para as redes transnacionais de antropólogos das quais ele fazia parte para ver como elas influenciaram suas atividades
de pesquisador e colecionador.6 A hipótese é que a formação, o abandono e a
transformação dessas redes refletem, num tipo de microcosmo, as transformações no cenário da antropologia brasileira na primeira metade do século XX.
6
A inserção de Nimuendajú em redes internacionais de comercialização de objetos etnográficos e arqueológicos já foi apresentada e discutida em trabalhos anteriores (Grupioni, 1998, por
exemplo), embora ainda exista muito material inédito sobre essas atividades e relações do
etnólogo. Faulhaber (2013), por sua vez, focaliza as conexões internacionais de Nimuendajú na
produção da etnografia Ticuna, no período de 1940 a 1945.
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(Re)aproximando-se e afastando-se da Alemanha
Por isso, vale a pena primeiro lançar um olhar para as narrativas convencionais
sobre vida e obra do etnólogo e alguns novos caminhos propostos e seguidos
em trabalhos mais recentes.
Narrativas convencionais e outras trilhas
Os trabalhos sobre a história da antropologia no Brasil majoritariamente representam facetas ou fragmentos focalizados ou em determinados pesquisadores
ou em algum período específico, porém não foi publicada até agora nenhuma
síntese abrangente que poderia ser considerada uma espécie de referência
principal (Peirano, 2018). No entanto, com relação a Nimuendajú, existe um
amplo consenso sobre seu papel proeminente na consolidação da etnologia
indígena no Brasil, enquanto as divergências dizem respeito a interpretações
de sua personalidade e, sobretudo, de sua obra. Isso também se expressa na
bibliografia referente a sua vida e obra. Em 2013, foi publicado o resultado de
um levantamento bibliográfico da literatura primária e secundária sobre sua
vida e obra, com 181 referências de trabalhos publicados (Schröder, 2013). Essa
bibliografia já merece ser atualizada por causa de novas publicações importantes dos últimos anos.7
Existem diversas sínteses biográficas e bibliográficas antigas, como as de
Baldus (1945), Pereira (1946), Nimuendajú e Guérios (1948), Métraux (1950),
Lowie (1959), Cappeller (1963), Schaden (1968, 1973) e Arnaud (1983), para citar
apenas uma parte. Na sua introdução à primeira e única edição brasileira de As
lendas da criação e destruição do mundo como fundamentos da religião dos Apapocuva-Guarani, o opus primus de Nimuendajú, Eduardo Viveiros de Castro (1987,
p. XVIII) comentou sobre esse tipo de literatura:
A vida-obra de Nimuendajú ainda está à espera de um estudo que lhe faça
justiça; à parte de alguns curtos ensaios sobre aspectos específicos de suas
7
No PPGA da UFPE até se fala, jocosamente, de uma “nimuendajulogia”, em analogia a outras
subsubáreas presentes naquele programa de pós-graduação e estudadas exaustivamente por
alunos do mestrado e doutorado, como “quadrilhologia”, “juremologia” ou “maracatulogia”, para
citar apenas poucos exemplos.
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pesquisas, o que se tem são necrológios e outros textos de circunstância, reivindicações totêmicas e toda uma hagiologia folclórica do métier, exprimindo muito
mais os mitos e tensões inerentes ao campo antropológico-indigenista que qualquer outra coisa.
Desde 1987, essa situação mudou, embora a crítica de Viveiros de Castro não
tenha perdido completamente sua pertinência, como mostra uma coletânea
com as contribuições de um evento organizado em Jena, em 2005, por ocasião do sexagésimo aniversário da morte do etnólogo (Born, 2007). A partir da
década de 1990, trabalhos importantes sobre vida e obra de Nimuendajú foram
publicados, dos quais uma parte merece ser citada resumidamente.
A tese de doutorado de Dungs (1991), defendida na Universidade de Colônia
em 1991, tem como objetivo declarado descrever a metodologia de campo de
Nimuendajú. O autor, um administrador aposentado de cerca de 70 anos na
época da defesa, conseguiu consultar, num esforço impressionante, fontes
importantes em arquivos brasileiros e realizar diversas entrevistas com testemunhas, mas infelizmente seu trabalho evoluiu, por ansiedade de destacar os
aspectos positivos do biografado, para aquilo que Viveiros de Castro chamou
de hagiografia. A tese, contudo, tem um mérito inegável: a apresentação de um
número elevado de fontes documentais transcritas. Desse modo, ela pode ser
mais bem aproveitada como um tipo de guia às fontes.
A dissertação de Grupioni (1998), por sua vez, inclui uma avaliação criteriosa
das pesquisas de Nimuendajú com base numa gama ampla de fontes do ponto
de vista de suas relações com o Conselho de Fiscalização das Expedições Artísticas e Científicas no Brasil, órgão federal em funcionamento entre 1933 e 1968
e objeto principal do estudo, chegando a diversas reinterpretações das formas
e estilos de trabalho de Nimuendajú.
A dissertação de Elena Welper (2002) oferece uma nova síntese e interpretação biográfica. Ela se diferencia de outros trabalhos por ter concentrado a
pesquisa documental no antigo espólio do etnólogo no Arquivo Curt Nimuendajú do Museu Nacional, que virou cinzas no incêndio de 2 de setembro de
2018, e, também, por ter operado com a hipótese da influência do romantismo
alemão em vida e obra de Nimuendajú. Essa hipótese continua a ser defendida pela autora num artigo recente (Welper, 2018), e também é endossada por
Faulhaber (2013), mas recebeu uma crítica veemente por Hannes Stubbe (2020),
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acusando a autora de projetar ideias nebulosas sobre o romantismo na figura
do etnólogo. Seja como for, ou endossando a hipótese de Welper, sobretudo
para os primeiros anos do etnólogo no Brasil, ou aceitando a crítica de Stubbe,
é necessário se perguntar se o pensamento e a personalidade de Nimuendajú
não passaram por transformações no decorrer de quatro décadas depois da
emigração, vivendo em ambientes pouco “românticos” em comparação com
a Jena do século XIX e a literatura lida como adolescente e jovem na biblioteca popular da empresa Carl Zeiss. Além de discutir sobre os significados do
conceito de romantismo ao norte e ao sul do equador, também é possível se
perguntar se o material empírico sustenta a hipótese. A leitura das correspondências com Theodor Koch-Grünberg, de 1915 a 1924, e com Fritz Krause, de 1927
a 1938, indica o contrário e revela um Nimuendajú em que é muito difícil, para
não dizer, impossível, identificar traços românticos. O que se pode perceber
naquelas cartas é, sobretudo, um idealismo decepcionado que encontra sua
expressão em ironias ou até em comentários cáusticos, os quais às vezes não
são lisonjeiros de modo algum quando o assunto são as instituições brasileiras
ou até a população deste país. Uma avaliação atribuída ao etnólogo suíço Felix
Speiser (1880-1949) e citada numa carta de Alfred Métraux (1902-1963), também etnólogo de origem suíça, para Nimuendajú é reveladora: “Many years ago
I heard Dr. Speiser, who is an ironical and critical man, say that he knew of only
one anthropologist whom he considered an idealist – and that was you.”8
A edição, por Thekla Hartmann, da correspondência de Nimuendajú (2000)
com Carlos Estevão de Oliveira (1880-1946), um de seus melhores amigos e
aliados mais importantes, diretor do Museu Paraense Emílio Goeldi a partir de
1930, constitui uma das fontes imprescindíveis para estudar aspectos da sua
vida e obra, como também foi observado por Amoroso (2001). Embora houvesse
algumas publicações anteriores, avulsas, de cartas de Nimuendajú, ou recortes delas (Edelweiss, 1971; Ehrlich, 1970; Torre; Damy, 1990), a edição organizada por Hartmann representa o início de uma nova fase de pesquisas sobre
a vida e obra do etnólogo, baseada na avaliação criteriosa de novos materiais
empíricos disponíveis, sobretudo, em arquivos que guardam sua volumosa correspondência com o mundo acadêmico nacional e internacional. Desse modo,
8
Carta de Alfred Métraux para Nimuendajú, 8 de agosto de 1938 (Arquivo Curt Nimuendajú,
CELIN, Museu Nacional/UFRJ, pasta 27).
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alguns trabalhos mais recentes que dizem respeito à biografia de Nimuendajú
se apoiam em análises de material epistolar (Mere, 2013; Sanjad, 2019; Welper,
2018, 2019, 2020; além do conjunto de artigos reunidos num “Dossiê Nimuendajú” da Revista Tellus [2013], publicado por ocasião do centenário de As lendas
da criação e destruição…).
A epistolografia é um gênero literário próprio. Edições epistolográficas costumam ser cultivadas, sobretudo, nas áreas de letras e história, mas na antropologia são raras. A questão como justificar a epistolografia na antropologia é
legítima, porque se pode perguntar qual sua contribuição para a produção de
conhecimentos, em particular para a história da área. Apenas publicar cartas,
eventualmente traduzidas, sem editoração criteriosa e interpretações complementares, é, sem dúvida, louvável, mas pode ser intelectualmente modesto.
No entanto, quando a correspondência privada, oficial e semioficial de antropólogos é estudada para lançar novas luzes sobre as práticas de pesquisa e os
pensamentos de seus autores, como mostrou Michael Kraus (2004) de maneira
magistral, sua publicação se justifica com facilidade. Correspondências particulares podem contribuir para encontrar respostas a questões levantadas há
muito tempo. O enigma de como Nimuendajú conseguiu, sem ter nenhuma formação acadêmica, publicar, em 1914, seu primeiro trabalho científico na renomada, ao menos na época, Zeitschrift für Ethnologie, em Berlim, só foi resolvido
recentemente, no artigo de Sanjad (2019), porque o autor teve acesso à correspondência de Emilie Snethlage (1868-1929), como intermediadora, com Eduard
Seler (1849-1922), Max Schmidt (1874-1950) e Theodor Koch-Grünberg. A consulta da correspondência entre Nimuendajú e Koch-Grünberg também permitiu abordar e responder diversas questões relativas a um episódio incomum
da história da antropologia na Amazônia: a pesquisa de Nimuendajú entre os
Xipaya, de 1916 a 1919 (Schröder, 2018, 2019a).
Que Nimuendajú costumava manter contatos epistolares ou pessoais
com antropólogos de diversas nacionalidades representa um tipo de fato consumado em muitos trabalhos sobre sua vida e obra. Em outras palavras, que
esses contatos existiam não causa surpresa, mas as questões são outras: como,
com quem, em que intensidade e com que resultados? E o que essas relações
revelam sobre as qualidades dos contatos e as cooperações internacionais e
as modalidades como a antropologia foi praticada no Brasil naquela época?
O caminho para as respostas leva inevitavelmente aos arquivos.
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Todas as publicações da correspondência de Nimuendajú com outros pesquisadores até agora privilegiaram relações bilaterais diádicas, ou seja, a relação epistolar entre duas pessoas. O artigo de Sanjad (2019), no entanto, indica
outro caminho analítico possível: olhar para o etnólogo como parte de redes
transnacionais de troca e circulação de conhecimentos. Na próxima seção
vamos examinar três dessas redes que se constituíram no decorrer da vida de
Nimuendajú como etnólogo, arqueólogo e linguista.
Redes transnacionais de antropólogos: três casos
Devido à situação descrita dos trabalhos sobre a história da antropologia brasileira é proveitoso consultar a bibliografia sobre a história transnacional das
ciências (Clavin, 2005), em particular os trabalhos sobre redes sociais intelectuais transnacionais (Charle; Schriewer; Wagner, 2004). McCook (2013), por sua
vez, chama a atenção para a “virada global” na história das ciências e para as
novas formas de pensar suas histórias nacionais e regionais, em particular nos
contextos latino-americanos. Contrariando os modelos convencionais, difusionistas e estruturalistas, sobre a expansão de saberes e práticas científicas, este
autor, e outros que também publicaram no mesmo dossiê da revista Isis, destaca
o papel ativo de cientistas latino-americanos na construção de saberes científicos no cenário global, o que seria o caso de Nimuendajú com relação a seus interlocutores na Alemanha, na Suécia, na França9 e, mais tarde, nos Estados Unidos.
Que Nimuendajú fazia parte de uma rede internacional de fornecedores
de objetos etnográficos para museus europeus já foi destacado por Luís de
Castro Faria (2017), no entanto o aspecto principal das redes transnacionais
que nos interessa aqui é o fluxo de conhecimentos e ideias entre pesquisadores.
9
Nimuendajú manteve contatos epistolares regulares com etnólogos franceses em vários períodos de sua vida, por exemplo com Paul Rivet (1876-1958), mas também com etnógrafos não profissionais como o missionário Constant Tastevin (1880-1962); ver Faulhaber (2008) e Faulhaber
e Monserrat (2008). Também houve uma breve correspondência com Claude Lévi-Strauss, em
1937, sobre sua eventual participação numa expedição a ser organizada pelo jovem antropólogo francês, no entanto Nimuendajú declinou o convite, tanto por discordar da composição da
expedição quanto por preferir pesquisas de campo individuais. Sobre esse episódio cf. Welper
(2020) e Villar (2020). Esses contatos com a antropologia francesa não serão aprofundados no
resto do artigo para não extrapolar seu tamanho.
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É evidente que Nimuendajú também fazia parte de redes científicas nacionais,
envolvendo pesquisadores como Carlos Estevão de Oliveira, Heloísa Alberto
Torres (1895-1977) ou Herbert Baldus, e que ele mantinha, durante toda a sua
vida no Brasil, diálogos intensos com o campo indigenista, retroalimentando as
relações entre etnografia e indigenismo,10 mas as redes transnacionais tiveram
um impacto maior na estruturação de suas atividades de pesquisador e colecionador. Nos três casos apresentados a seguir, usando a pessoa de Nimuendajú
como ponto de referência na rede, as relações centrais, ou seja, aquelas que
mais nos interessam, podem ser descritas como triangulares ou diádicas.
Caso 1: Nimuendajú – Snethlage – Koch-Grünberg
Essa rede teve início em 1913, depois da mudança de Nimuendajú de São
Paulo para Belém, e começou a se desintegrar a partir de 1924, com a morte
de Koch-Grünberg. Embora Nimuendajú já tivesse feito contatos com o meio
acadêmico no período quando estava contratado pelo Museu Paulista, entre
1908 e 1910, ele ainda não gozava dos créditos necessários, como operário especializado sem nenhuma formação acadêmica, para encaminhar um trabalho a
um renomado periódico especializado. Entre 1913 e 1921, ele teve vínculos não
duradouros, e muito mal remunerados, com o Museu Goeldi e assim conhecia
a ornitóloga Emilie Snethlage que, de 1914 a 1921, foi diretora da instituição.
Snethlage reconheceu o talento do conterrâneo para a etnologia e viabilizou,
por correspondências com recomendações enfáticas, a publicação dos primeiros trabalhos etnológicos e linguísticos de Nimuendajú na Zeitschrift für Ethnologie, de Berlim, em 1914 e 1915. Segundo Sanjad (2019, p. 1):
Snethlage teve […] decisiva participação na inserção de Nimuendajú no meio
científico. […] viabilizou suas primeiras expedições e publicações científicas,
além de articular suas relações com museus e etnólogos alemães, incluindo
aquele que viria a ser seu dileto amigo e interlocutor, Koch-Grünberg, de maneira
a lhe permitir trabalhar também como coletor profissional.
10 Cf., por exemplo, Nimuendajú (1982) e Gonçalves (1993).
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Figura 1. Emilie Snethlage (em pé) com duas funcionárias nos jardins do Museu Goeldi,
c. 1917 (MCTI/Museu Paraense Emílio Goeldi).11
Snethlage não foi apenas uma intermediária de contatos acadêmicos para
Nimuendajú e, posteriormente, tanto sua chefe quanto sua aliada, mas também
uma importante interlocutora acadêmica, sobretudo no que diz respeito aos
indígenas das regiões dos rios Xingu, Iriri e Curuá. Ela mesma tinha realizado
pesquisas etnográficas e linguísticas com indígenas Xipaya e Kuruaya durante
duas expedições, em 1909 e em 1914, a segunda sendo financiada pelo Museu
de Etnologia (Museum für Völkerkunde) de Berlim (Sanjad, 2019; Snethlage,
1910, 1913, 1920/1921). Ela deve ter incentivado a pesquisa de Nimuendajú com
os Xipaya, de 1916 a 1919, aproveitando suas boas relações políticas com o seringalista Ernesto Accioly, um gatekeeper incontornável na região na época, para
tentar facilitar a vida do conterrâneo. Sendo responsável pela contratação de
11 Fonte: https://www.researchgate.net/figure/Women-employees-of-the-Goeldi-Museum-c1917-MCTI-Museu-Paraense-Emilio-Goeldi-archive_fig2_308339686 (CC BY-NC-ND 4.0).
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Nimuendajú pelo Museu Goeldi, de dezembro de 1919 a maio de 1921, Snethlage
era também a interlocutora principal no que diz respeito às coleções etnográficas do museu, que Nimuendajú teve a tarefa de catalogar com um novo sistema.
A partir de 1915, Nimuendajú iniciou uma correspondência autônoma com
Koch-Grünberg, a qual foi imediatamente interrompida pela Primeira Guerra
Mundial e retomada apenas em abril de 1920.12 Embora o contato posterior com
Lowie seja muito mais conhecido, a relação epistolar com o grande etnólogo
alemão não deve ser considerada inferior em termos de qualidades acadêmicas.
Pelo contrário, enquanto a relação com Lowie costuma ser interpretada como
complementariedade entre um destacado teórico (Lowie) e um experiente
pesquisador de campo, no caso da correspondência entre Nimuendajú e Koch-Grünberg percebemos diálogos fascinantes de dois apaixonados pela etnologia
que versavam sobre os mais diversos temas da etnologia indígena, em particular mitologias e relações interétnicas, línguas indígenas e seus parentescos
genéticos, etno-história, novas publicações antropológicas e, sobretudo, a vida
em campo entre os indígenas, mas também sobre a política indigenista. Entre
todos os interlocutores de Nimuendajú dos quais dispomos de documentações
conservadas, Koch-Grünberg era um tipo de alma gêmea. Embora houvesse
uma diferença considerável de status social entre os dois que se manifestou
nos tratamentos iniciais das cartas (“Sehr geehrter Herr [Nimuendajú]!” –
“Sehr geehrter Herr Professor!”), as afinidades ficaram tão evidentes que Koch-Grünberg, a partir da carta de 30 de junho de 1922,13 inesperadamente diminuiu a distância social, iniciando-a com “Sehr geehrter Herr und lieber Freund!”
(“estimado senhor e caro amigo”). Na mesma carta, Koch-Grünberg escreve:
“Enfim, para falar francamente, como se fala em Hesse, o senhor é um cara legal
[ein famoser Kerl] e eu gostaria muito de conhecê-lo pessoalmente e fazer uma
viagem com o senhor. Acho que nos daríamos bem.”
12 A correspondência entre os dois etnólogos ainda não foi publicada em sua totalidade, embora
trechos de uma parte das cartas já fossem citados em alguns trabalhos (Kraus, 2017; Sanjad,
2019; Schröder, 2019a). Uma edição crítica da correspondência dos dois etnólogos estava em
processo de finalização quando este artigo foi escrito.
13 Nachlass Theodor Koch-Grünberg, Völkerkundliche Sammlung der Philipps-Universität Marburg (doravante: Espólio TKG), VK MR A.33. Ou: “Lembre-se sempre que tem em mim um amigo
sincero” (“Denken Sie immer daran, dass Sie an mir einen aufrichtigen Freund haben”); carta de
13 de novembro de 1921, VK MR A.31. (tradução de Miriam Junghans).
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Figura 2. Theodor Koch-Grünberg, 1924 (Familienarchiv Koch-Grünberg).
Podemos definir a relação entre os dois etnólogos como completamente altruísta, porque não envolvia nenhuma organização de coleções etnográficas ou
contratação para expedições, embora Nimuendajú oferecesse mais de uma
vez objetos etnográficos ao Museu Linden, do qual Koch-Grünberg era diretor,
porém a situação financeira do museu no pós-guerra não permitiu adquiri-los.
Koch-Grünberg até chegou a sugerir, numa carta de 13 de novembro de 1921, talvez num momento quando o desânimo estava se misturando com certa ingenuidade: “Aliás, se os brasileiros quiserem que eu seja inspetor de índios, irei
imediatamente. Posso passar muito bem sem a Alemanha e, quando penso que
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teria que viver aqui ainda por décadas, onde as pessoas, com poucas exceções,
são tão mesquinhas e o clima tão frio, me dá arrepios.”14
Nimuendajú trabalhou em condições bastante instáveis e geralmente precárias durante todo o período, inicialmente, depois da demissão do SPI em 1915,
sob acusação infundada de ser espião do Império Alemão, numa expedição
de alguns meses para os Aparai, financiada pelo Museu Goeldi, com o apoio
de Emilie Snethlage, sua diretora interina depois do falecimento do diretor
Jacques Huber (1867-1914). Mas os resultados da expedição de 1915 favoreceram, afinal de contas, a carreira acadêmica do antropólogo americano William
Curtis Farabee (1865-1925) (ver Kraus, 2017), o qual adquiriu não só uma parte
da coleção etnográfica organizada por Nimuendajú, mas também seu material
etnográfico e linguístico. De 1916 a 1919, Nimuendajú conseguiu sobreviver
com empregos temporários e inseguros trabalhando para potentados locais,
passando a maior parte do tempo nos seringais do Curuá e Iriri, no sul do Pará
(Schröder, 2019a, 2019b).
Embora Snethlage sempre fosse uma fiel aliada de Nimuendajú, e vice-versa, um emprego no Museu Goeldi não se revelou como uma alternativa
considerada viável:
Desde o começo de junho, sou “Chefe interino da Seção Etnográfica do Museu Goeldi”.
Meu salário mensal é de 500$000, mas naturalmente não o recebo, como ninguém recebe nada aqui. A Srta. Dra. Snethlage pede dinheiro a Berringer e a
Paaschen [casas comerciais] para si – e para mim.
Inicialmente, eu não queria aceitar o cargo de jeito nenhum, primeiro porque
sabia que iriam me deixar morrer de fome, depois porque considero o Museu
Goeldi completamente condenado e creio que sua decadência é apenas questão de tempo. Foi um grande crime contra a ciência fazer com que uma instituição como essa ficasse dependente de um governo como o do Pará. Lamento,
sinceramente, pela Srta. Dra. Snethlage – cujas realizações científicas tenho na
mais alta conta –, que ela tenha se acorrentado dessa forma a essa instituição
e que creia que tem consigo mesma a obrigação moral de aguentar até o fim.
O que essa senhora suporta de trapaças e calúnias grosseiras pela sua ciência
14 Espólio TKG, VK MR A.31 (tradução de Miriam Junghans).
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é inacreditável. Nas circunstâncias atuais, que o Museu ainda resista em sua
agonia é devido apenas à dedicação da Srta. Dra. Snethlage. Além dela, o pessoal
é formado apenas por alguns caluniadores podres para os quais é válido qualquer meio para expulsar a Srta. Dra. e colocar a si mesmos no cargo de diretor e
nos outros postos. Isso só não deu certo, até agora, porque o secretário de Estado
é, excepcionalmente, um senhor decente. Só os deuses, e talvez nem esses, sabem
o que vai acontecer no início do próximo ano, quando chegar o novo governo.
Na época em que a Srta. Dra. Snethlage foi dispensada do serviço por causa da
guerra, o Museu foi roubado, de forma inacreditável, pelos seus próprios funcionários. Também na minha seção encontro, a cada passo, rastros desses roubos,
p. ex., na sua bela coleção [do rio] Caiary, e a grande sorte ainda foi que os sujeitos não conheciam o valor das peças e deixaram as melhores para trás. Quando
a Srta. Dra. Snethlage se preparava para sua viagem à Europa, insistiu que eu
ficasse no Museu durante sua ausência e fez com que o governo aceitasse minha
contratação como condição para sua viagem. Agora, o plano para resolver a questão financeira fracassou e eu gostaria muito de ir embora, mas tenho vergonha
da Srta. Dra., cuja situação passei a conhecer bem.15
De final de 1921 até início de 1923, Nimuendajú foi contratado pelo SPI para
iniciar os primeiros contatos não violentos (“pacificação”) com os Parintintin
(Kagwahiva) (Nimuendajú, 1924). As duas longas cartas enviadas do campo para
Koch-Grünberg são as melhores de toda a correspondência entre os dois etnólogos
por causa de suas descrições vivazes.16 Embora o episódio tenha entrado na história do indigenismo brasileiro como um dos capítulos mais heroicos, Nimuendajú
mais tarde se arrependeu profundamente de ter convencido os Parintintin de
abandonar sua postura hostil contra a frente de colonização na região.17
De 1923 a 1927, Nimuendajú trabalhou, sobretudo, como colecionador de
objetos arqueológicos e etnográficos para o Museu Etnográfico de Gotemburgo
(hoje: Museu das Culturas do Mundo [Världskulturmuseet]) ou, mais especificamente, para “o Barão”, ou seja, Erland Nordenskiöld (1877-1932), poderoso
15 Carta de 29 de julho de 1920, Espólio TKG, VK MR A.29 (grifo no original, tradução de Miriam
Junghans).
16 Cartas de 10 de julho de 1922 e 25 de dezembro de 1922, Espólio TKG, VK MR G.II.1.
17 Cartas de 25 de dezembro de 1922 e de 22 de agosto de 1923, Espólio TKG, VK MR G.II.1.
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diretor do museu e membro de uma das grandes famílias aristocráticas do
Reino da Suécia (ver Nimuendajú, 2001). Nimuendajú nunca publicou nenhum
trabalho arqueológico com os resultados de suas expedições, mas Per Stenborg organizou, em 2004, um impecável volume com a tradução dos relatórios enviados ao museu (Nimuendajú, 2004). O museu também financiou a
pesquisa de campo entre os Palikur e a publicação da monografia etnográfica
resultante (Nimuendajú, 1926). Além disso, o contato com o Museu Etnográfico
de Gotemburgo mais tarde abriria o caminho para o estabelecimento de outra
rede transnacional, tendo Lowie como o principal interlocutor.
Snethlage e Koch-Grünberg não só intermediaram a publicação dos primeiros trabalhos de Nimuendajú na Zeitschrift für Ethnologie, mas Koch-Grünberg
também abriu o caminho para a publicação dos trabalhos sobre cultura e
língua dos Xipaya no periódico Anthropos (Nimuendajú, 191919/20, 1921/1922,
1923/1924, 1928, 1929a):
Mas o senhor tem razão, decaímos muito com essa guerra criminosa e suas consequências inevitáveis; isso aconteceu também com nossa ciência, da qual tanto
podíamos nos orgulhar anteriormente. É coisa que se pode perceber nos periódicos, enquanto ainda são publicados. A Zeitschrift für Ethnologie, por exemplo
– já faz tempo que saiu o último fascículo – com poucas páginas, em um papel
terrível e com um conteúdo pífio. Apenas uma lamentável ruína da maravilha
que era. […] Por isso, lamento que o senhor não tenha enviado seus trabalhos para
mim. Eu poderia tê-los colocado imediatamente no Anthropos, cujos editores, o
P[adr]e. Wilh.[elm] Schmidt e o P[adr]e. Wilh.[elm] Koppers, são meus amigos há
muitos anos. O Anthropos tem também a divulgação mais ampla e é, hoje, graças
aos contatos internacionais que possui, a única revista de etnologia que consegue ser publicada regularmente com um aspecto decente.18
A intermediação de Koch-Grünberg deu início a uma década de contatos de
Nimuendajú com o Anthropos, naquela época publicado em Mödling, perto de
Viena, e sobretudo com o editor-chefe, o Padre Wilhelm Koppers (1886-1961).
Esses contatos terminaram abruptamente em 1929 por decisão unilateral de
18 Carta de 20 de maio de 1920, Espólio TKG, VK MR A.29 (tradução de Miriam Junghans).
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(Re)aproximando-se e afastando-se da Alemanha
Nimuendajú, porque Koppers tinha decidido publicar, sem autorização prévia
do autor, uma carta particular de Nimuendajú direcionada para ele (Nimuendajú, 1929b).
Outro contato intermediado por Koch-Grünberg foi com Paul Rivet:
Agradeço-lhe, em especial, também pelos diversos anexos às suas duas cartas: o
pequeno e excelente mapa da área na qual fará pesquisas, o vocabulário Kuniba,
bem como o interessante mito da lua, que reúne, em si, os diversos motivos e,
finalmente, as três listas de palavras Múra e Turá. Esse material será de extraordinário interesse para meu amigo Rivet, a quem muito considero, tanto como
pessoa quanto como pesquisador. Será que posso, eventualmente, enviar esse
material para que ele o publique no Journal de la Société des Américanistes de Paris, o
único periódico no qual coisas como essas são divulgadas com relativa rapidez?19
O resultado foi que Nimuendajú conseguiu publicar, entre 1922 e 1932, oito
artigos etnográficos e linguísticos, em alemão e em português, no vetusto periódico americanista (Nimuendajú, 1924, 1925, 1929c, 1929d, 1930, 1932a, 1932b;
Nimuendajú; Bentes, 1922).
Finalmente, Koch-Grünberg intermediou outro contato que, poucos anos
mais tarde, abriria novos contatos para Nimuendajú com a etnologia alemã.
Numa carta datada de 29 de outubro de 1923,20 Koch-Grünberg começou a apresentar a Nimuendajú o etnólogo suíço Felix Speiser, o qual estava à procura de
orientações de um pesquisador experiente para uma expedição etnográfica na
Amazônia. Nimuendajú não podia, segundo suas palavras,21 ou não queria, o
que é mais provável, acompanhar Speiser, em 1924, na sua expedição aos Aparai, sobre a qual este publicou um livro de divulgação científica (Speiser, 1926).
Para tentar especificar a intensidade dos contatos de Nimuendajú com
seus dois interlocutores principais desta primeira rede é importante frisar
que a comunicação com Koch-Grünberg foi exclusivamente epistolar e que
não existe nenhum indício inequívoco que os dois se encontraram em Belém,
em 1924, por ocasião de uma breve passagem de Koch-Grünberg. Em Marburg,
19 Carta de 12 de março de 1922, Espólio TKG, VK MR A.33 (tradução de Miriam Junghans).
20 Espólio TKG, VK MR A.35.
21 Carta sem data (1923? 1924?), Espólio TKG, VK MR A.37.
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há 34 cartas da correspondência arquivadas, enquanto duas podem ter ficado
perdidas entre Belém e Stuttgart. As cartas de Nimuendajú geralmente são
mais longas e detalhadas do que aquelas de Koch-Grünberg. Em contrapartida, a comunicação entre Nimuendajú e Snethlage, entre 1913 e 1921, dependia
menos dos correios, era mais direta e verbal e certamente muito mais frequente.
Só a partir de julho de 1922, com a transferência de Snethlage para o Rio de
Janeiro, sendo nomeada “naturalista viajante” do Museu Nacional, a comunicação entre os dois tornou-se exclusivamente epistolar.
Desse modo, podemos abstrair os principais contatos da primeira rede
transnacional de que Nimuendajú fazia parte na Figura 3.
Figura 3. Principais integrantes da rede (1913-1929). (A espessura das setas indica a
frequência e intensidade relativas dos contatos.)
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(Re)aproximando-se e afastando-se da Alemanha
Caso 2: Nimuendajú – Krause – Reche
Essa rede se constituiu a partir de 1927, começou a se desintegrar a partir de
1931/1932, mas durou até 1939. Seu caráter não era altruísta como a anterior,
porque envolvia negociações e contratos entre instituições alemãs e Nimuendajú enquanto etnólogo e, sobretudo, colecionador, com o compromisso de
entregar produtos ou resultados esperados.
As dificuldades financeiras constituem um tema permanente na biografia
do etnólogo, o que também se manifesta em suas correspondências. Não era
diferente em 1926, quando as relações com seu patrocinador naquela época,
Erland Nordenskiöld, começaram a piorar, levando finalmente ao rompimento
da cooperação em 1927 e colocando em risco a continuidade dos trabalhos
de Nimuendajú. Naquela situação complicada, uma recomendação de Felix
Speiser chegou em boa hora. Em 25 de fevereiro de 1927, ele escreveu uma carta
para seu colega Fritz Krause:
Por isso me permita lhe comunicar – com o consentimento do Sr. Nimuendayù
[sic] – que ele aceitaria com muito prazer receber encomendas de caráter etnográfico, de modo que ele coletaria para o senhor em determinados lugares. Ele
tem conhecimentos de muitas regiões da América do Sul e, já que ele mora no
Brasil, poderá visitar com despesas relativamente pequenas qualquer área indicada pelo senhor como área de coleta. Além disso, sua modéstia pessoal é grande.
Desse modo, seu museu teria uma oportunidade de arranjar valiosas coleções
originais e o trabalho do Sr. Nimuendayù para a etnografia continuaria a ficar
garantida.22
O etnólogo Fritz Krause (1881-1963) ficou conhecido entre os americanistas
sobretudo por sua expedição à região do Araguaia, em 1908-1909. Ele começou a trabalhar no Museu Etnológico de Leipzig, parte do Museu Grassi, em
1912 e assumiu sua diretoria em 1927, mas também ensinou como professor na
Universidade de Leipzig, entre 1925 e 1945. Para mais informações sobre a obra
de Krause, em particular sua teoria estrutural, ver Wolfradt (2011).
22 Staatliche Ethnographische Sammlungen Sachsen (doravante: SES), Leipzig, 1928/43, Krause,
25/02/1927 (tradução minha).
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Figura 4. Fritz Krause, 1924. Fotógrafo desconhecido (cf. Baldus, 1968).
Para Krause, Nimuendajú não era nenhum nome desconhecido, porque já
tinha publicado vários artigos em periódicos como Zeitschrift für Ethnologie,
Petermanns Geographische Mitteilungen, Anthropos e Journal de la Société des Américanistes e em meados da década de 1920 já tinha alcançado uma boa reputação internacional como especialista em etnologia e linguística indígena das
terras baixas da América do Sul.23 A reação de Krause à carta de Speiser foi posi-
23 A afirmação de que ele teria recebido a atenção do mundo antropológico apenas a partir das
publicações sobre os povos falantes de línguas Jê (Welper, 2020) é equivocada e me parece ser
uma transferência do cenário atual, das antropologias hegemônicas anglofônicas, para outra
situação histórica.
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(Re)aproximando-se e afastando-se da Alemanha
tiva, mas ele preferiu consultar seu velho amigo, o barão Nordenskiöld.24 Este
respondeu poucos dias depois:
Quanto a Nimuendajú, preciso lhe dizer que eu o considero um excelente pesquisador que conseguiu executar trabalhos muito valiosos para nós com meios
muito modestos. […] O motivo por que cortei as relações com ele é que ele não
sabe se virar adequadamente com os brasileiros. Provavelmente ele é honesto
demais para adulá-los quando é necessário. Com os índios, no entanto, ele se
entende muito bem. Quanto a seus artigos publicados, eles foram elaborados
de modo totalmente autônomo.25
O último comentário tem a ver com a dúvida de Krause, se o pesquisador
autodidata redigiu seus textos sem ajuda alheia. Entrementes, Nimuendajú e
Krause tinham trocado várias ideias, por correspondência, sobre possibilidades
de pesquisa de campo e os interesses do museu, mas o aspecto decisivo nessas
negociações foi o interesse do museu de adquirir objetos etnográficos da região
entre o médio Tocantins e o Mearim, no Maranhão, para “preencher as lacunas
regionais” em suas coleções.
Não só Nimuendajú tinha sérios problemas financeiros, o Museu Grassi
também estava sofrendo das constantes crises orçamentárias na Alemanha
pós-guerra que atingiram a maioria dos museus e instituições científicas. Para
achar uma solução para os interesses mútuos, Krause conseguiu em negociações morosas convencer seus colegas Georg Thilenius (1868-1937), do Museu
Etnológico de Hamburgo, e Arnold Jacobi (1870-1948), do Museu de Zoologia e
Etnologia de Dresden, de apoiar uma expedição e dividir os custos. Em contrapartida, Nimuendajú teve que coletar três exemplares de cada objeto para que
estes fossem distribuídos depois entre os três museus.
Nimuendajú realizou duas expedições para a coleta de objetos etnográficos
e pesquisas etnológicas para instituições de pesquisa etnológica na Alemanha.
A primeira, de setembro de 1928 a maio de 1929, levou-o aos Apinayé, Krĩkateyé,
24 SES, Leipzig, 1928/43, Krause, 12/11/1927.
25 SES, Leipzig, 1928/43, Krause, 15/12/1927 (sublinhado no original, tradução minha).
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Kreapimkateyé, Pukobyê, Guajajara e Canela (Apanyekrã e Ramkokamekrã).
Na segunda expedição, de fevereiro a setembro de 1930, ele visitou os Apinayé,
Xerente, Krahô e Canela-Ramkokamekrã. Esta foi financiada pelos museus
etnológicos de Leipzig e Hamburgo, pelo Instituto de Etnologia da Universidade de Leipzig e com recursos da Notgemeinschaft der Deutschen Wissenschaft (NDW; Sociedade Emergencial das Ciências Alemãs, criada em 1920).
Enquanto na primeira expedição foram solicitadas informações etnográficas
detalhadas para acompanhar as coleções, para a segunda foi combinada a
publicação de uma monografia (Die Timbira) complementar à exposição dos
objetos coletados. Essa monografia em alemão, objeto de negociações demoradas entre Krause e Nimuendajú, acabou por não ser publicada, ao menos
não na forma original. A história em torno das duas expedições foi resumida
em Schröder (2019c), enquanto uma edição crítica da correspondência de
Nimuendajú com Krause encontrava-se em fase de finalização quando este
artigo foi escrito.
Na primeira expedição, o interlocutor principal foi Fritz Krause, enquanto
na segunda, devido ao rearranjo institucional, também entrou Otto Reche
(1879-1966), diretor do Instituto de Etnologia da Universidade de Leipzig.
Reche foi nomeado professor titular para a cátedra de Antropologia e Etnologia na Universidade de Leipzig, em 1927. Entre os antropólogos alemães que
ficavam na Alemanha depois de 1933, Reche pode ser considerado um dos serviçais mais fiéis do regime, inclusive como apologista do genocídio no Leste
Europeu. A melhor síntese de sua vida e obra é a tese monumental de Katja
Geisenhainer (2002), a qual tem como enfoque temático sua atuação raciológica durante o Terceiro Reich. Isso explica por que a segunda expedição de
Nimuendajú, de 1930, de caráter eminentemente etnológico, é mencionada em
apenas uma página. Ela foi financiada, por parte do Instituto de Etnologia em
Leipzig, com recursos do Instituto Estadual de Pesquisa da Saxônia (Staatlich-Sächsisches Forschungsinstitut), uma das poucas instituições que ainda conseguiram oferecer auxílios financeiros para pesquisas de campo etnológicas
durante os anos finais da República de Weimar.
Com outros antropólogos das instituições envolvidas (Thilenius, Jacobi
e Gustav Antze [1877-1957], curador do Museu Etnológico de Hamburgo),
Nimuendajú quase não se comunicou. Todos os relatórios de campo e todas
as cartas relacionadas a negociações anteriores e posteriores foram enviados
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exclusivamente para Krause e Reche, enquanto as negociações entre as instituições alemãs ficaram principalmente nas mãos de Krause. As incertezas
e demoras dos honorários combinados e da publicação do manuscrito sobre
os Timbira, no contexto da crise econômica dos últimos anos da República
de Weimar, levaram ao rompimento dos contatos e depois abriram o caminho para a colaboração tanto com instituições norte-americanas quanto com
museus brasileiros, o que levou à consolidação da trajetória etnológica de
Nimuendajú.
A documentação encontrada pelo autor nos museus etnológicos de Leipzig
e Dresden e no arquivo do Instituto de Etnologia da Universidade de Leipzig
indica que as correspondências entre Nimuendajú, Krause e Reche foram mantidas ao menos até 1934/1935 e, no caso de Nimuendajú e Krause, até a eclosão
da Segunda Guerra Mundial. Até agora, não foram descobertos nas cartas de
Nimuendajú para os dois professores alemães trechos que poderiam indicar
sua própria posição com relação ao nazismo. Porém, diversas cartas enviadas para o amigo Carlos Estevão de Oliveira, a partir de 1933 (em Nimuendajú,
2000), e, em particular, a correspondência com sua meia-irmã Olga Richter, em
Jena, a qual virou cinzas com o incêndio do Museu Nacional em 2018,26 não
deixam dúvidas sobre sua aversão total ao nazismo.
As relações entre Nimuendajú, Krause e Reche, no período de 1929 a
1934/1935, podem ser imaginadas com a ajuda da figura de um triângulo, porém,
ao transpô-las para um formato geométrico, seria mais pertinente não as pensar como um triângulo equilátero, mas como um isóscele, tendo Nimuendajú,
em Belém, no ângulo do vértice e Krause e Reche na base, a qual seria muito
curta, já que a distância entre o Museu Grassi e o Instituto de Etnologia em
Leipzig é de apenas poucas centenas de metros. Entre os três etnólogos havia
diversas convergências, mas também diferenças consideráveis. Os únicos
denominadores comuns eram a mesma língua nativa e o interesse pela etnologia, porém a etnologia indígena apenas fazia parte das carreiras profissionais
de Nimuendajú e Krause (Schröder, 2020).
26 Arquivo Curt Nimuendajú, CELIN, Museu Nacional/UFRJ, armário MNDA-189, caixa 2, pasta 1.
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A razão de ser da segunda rede transnacional foram interesses científicos
e museais, porém bastante diferentes daquela da anterior. Krause era um leitor atento e curioso das cartas de Nimuendajú, mas com seu estilo, às vezes
descrito como “prussiano” ou até wilhelminisch (fiel ao Kaiser Guilherme), não
conseguiu estabelecer uma troca de ideias e informações tão instigante como
Koch-Grünberg ou mais tarde Lowie. Em geral, Nimuendajú forneceu informações etnográficas detalhadas a Krause (e Reche), mas recebeu como reações
mais confirmações de recebimento e satisfação do que discussões sobre etnologia e linguística indígena. No entanto, Krause percebeu que Nimuendajú estava
fazendo descobertas inovadoras sobre a organização social e o parentesco dos
povos indígenas falantes de línguas Jê, sobretudo entre os Ramkokamekrã,
de modo que ele até pediu ajuda ao etnólogo Paul Kirchhoff (1900-1972) para
interpretar os dados.27 Mas com o fim da relação contratual de Nimuendajú
com as instituições alemãs (1930/1931) as informações fornecidas não foram
mais usadas para iniciar uma nova fase da pesquisa etnológica alemã a partir de Leipzig e viraram material de arquivo. Os desenvolvimentos políticos na
Alemanha não ofereceram novas perspectivas promissoras para a etnologia, a
não ser num formato de uma aberração pseudocientífica sujeita aos mandos e
desmandos ideológicos do regime. Krause, por exemplo, optou muito cedo por
se adaptar.
Como indicador da intensidade de contatos da segunda rede transnacional pode ser citada a quantidade de cartas encontradas no Museu Grassi
em Leipzig e no Museu Etnológico de Dresden: 53 cartas entre Nimuendajú
e Krause; 12 entre Nimuendajú e Reche; 10 entre Krause e Reche; 29 entre
Krause e Thilenius; e 28 entre Krause e Jacobi.
A segunda rede transnacional de Nimuendajú, com os principais contatos,
pode ser visualizada na Figura 5.
27 Carta de Krause a Kirchhoff, 22 de setembro de 1931, e resposta de Kirchhoff, 16 de outubro de
1931, SES, Leipzig, 1929/71, SAm 17944-18375, Krause, 698-862, 24/10/1934, n. 845/846 e 847.
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Figura 5. Principais integrantes da rede (1927-1939). (A espessura das setas indica a
frequência e intensidade relativas dos contatos.)
Caso 3: Nimuendajú – Lowie – Steward
A terceira rede transnacional ora revisitada é a mais conhecida da biografia
de Nimuendajú, já que seu principal interlocutor até a apresentou em sua
autobiografia (Lowie, 1959). As relações de Nimuendajú com Lowie e outros
antropólogos norte-americanos foram tema de artigos recentes, baseados em
materiais inéditos (Faulhaber 2013; Welper, 2018, 2020), no entanto elas merecem uma monografia detalhada, porque representam uma cooperação singular
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na história da antropologia.28 Já que o incêndio trágico do dia 2 de setembro
de 2018 destruiu aquela parte da correspondência arquivada no Museu Nacional, uma futura edição detalhada das cartas dos dois etnólogos será possível
apenas depois de consultar também a documentação arquivada na Bancroft
Library da Universidade da Califórnia em Berkeley, para compará-la com a
parte digitalizada da correspondência antes do incêndio.
Como a segunda rede analisada, a terceira também surgiu a partir da anterior, o que se percebe lendo as palavras do próprio Lowie (1959, p. 119):
As early as 1925 the late Baron Erland Nordensköld [sic] told me something of a
certain Nimuendajú in Belém de Pará and praised him as an acute observer of
native customs. “Nimuendajú” was a name given him by natives and invariably
used by him. He was a German named Kurt Onkel [sic], who had spent most of
his adult life in Brazil, except for a year’s study in Sweden at Uppsala [sic]. His
formal training was meagre, but his natural talents were exceptional. In 1925
I had no interest in South America, so I merely filed this odd name away among
my neurons, where it lay for a decade, until Karl G. Izikowitz, a student of Baron
Nordenskiöld’s, asked me if something could be done for Nimuendajú, who, ultimately, wrote me a letter himself and sent a sample manuscript.
Quanto ao suposto ano inteiro na Suécia, de fato Nimuendajú passou, em sua
única e, ao mesmo tempo, última viagem para a Europa, em 1934, um semestre
em Gotemburgo, com auxílio financeiro da Carnegie Foundation. Mas o que
mais importa no depoimento de Lowie é a citação de algo que podemos chamar
uma Swedish connection. Outra vez percebemos o papel de Nordenskiöld como
uma figura central nas redes internacionais de americanistas da época. Karl
Gustav Izikowitz (1903-1984) era doutorando do barão e conheceu Nimuendajú em 1934. Existia simpatia mútua entre os dois, apesar dos estilos muito
28 Numa situação irônica, esse tema até foi sugerido pelo americanista Peter Tschohl (1935-2007),
professor catedrático do Instituto de Etnologia da Universidade de Colônia, para a tese de doutorado de Günther Friedrich Dungs, em 1987, porém foi categoricamente ignorado pelo doutorando num tipo de autismo discursivo, ou seja, ele falou sem parar, não aceitando nenhuma
orientação ou sugestão. No entanto, ele tinha conseguido tirar fotocópias de grande parte da
correspondência entre os dois etnólogos. Às vezes, as melhores orientações encontram ouvidos
fechados (minha observação durante o colóquio de orientações ministrado por Tschohl em 1987).
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diferentes de pesquisar.29 Nimuendajú finalmente acatou a sugestão de Izikowitz e, em fevereiro de 1935, enviou para Lowie um manuscrito de seu estudo
sobre a corrida de toras dos Timbira. Isso foi o passo inicial para uma cooperação que duraria de 1935 a 1942.
Figura 6. Robert Lowie, c. 1933 (Coleção “California Faces: Selections from The Bancroft
Library Portrait Collection”, UC Berkeley, Bancroft Library).30
29 Em 1934, Izikowitz já estava afastado do museu pelo sucessor de Nordenskiöld, Walter Kaudern
(1881-1942), porque este era antissemita (e até se filiou ao Partido Nacional-Socialista, em 1938)
e Izikowitz, judeu (carta para Carlos Estevão, 9 de junho de 1934; Nimuendajú, 2000, p. 213).
Depois da morte de Kaudern, no entanto, Izikowitz conseguiu iniciar sua carreira acadêmica
no mesmo museu, em 1944.
30 Fonte: https://calisphere.org/item/ark:/13030/tf1q2nb1zn/.
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Para Nimuendajú, a obra de Lowie não era desconhecida. Foi Fritz Krause
quem recomendou, numa carta de 12 de dezembro de 1929,31 a leitura de dois
livros de Lowie (1920, 1924) com o argumento de que não haveria nenhuma
obra com qualidades iguais disponível na etnologia alemã da época. A compra dos dois livros, inclusive, fazia parte do contrato estipulado para a segunda
expedição, em 1930, mas os preços até foram descontados dos honorários acertados, num típico gesto de burocracia prussiana.
A leitura dos livros de Lowie, mas sobretudo a rica e detalhada correspondência entre os dois etnólogos, direcionou as atividades de pesquisa de
Nimuendajú para temas que naquela época tinham ocupado espaço menor na
literatura americanista de língua alemã, especialmente para questões relacionadas com organização social e parentesco, ou seja, campos temáticos muito
destacados na antropologia social britânica, africanista e oceanista, da época,
mas também, em escala menor, na antropologia cultural americana. Nimuendajú frequentemente chamou esse enfoque temático de “sociologia”, de acordo
com um vocabulário americanista alemão da época. Já que não estava devidamente familiarizado com a terminologia de parentesco antropológica nem
com as práticas de pesquisa voltadas especificamente para organização social
e parentesco, ele confessou repetidas vezes em suas cartas para Lowie suas dificuldades de anotar informações detalhadas sobre parentesco e, sobretudo, a
vida familiar indígena. Um exemplo:
Estou profundamente grato ao senhor por todas as perguntas e indicações sobre
as indefinições em minhas descrições. Era isso de que eu tinha sentido falta: e se
alguém me tivesse orientado dessa maneira desde o início, talvez meu trabalho
tivesse ficado visivelmente melhor. Confesso que não compreendi devidamente
o problema dos irmãos consanguíneos [entre os Ramkokamekrã] por falta de
uma formação sociológica.32
Lowie sempre respondeu com compreensão e paciência, por exemplo numa
carta de 27 de agosto de 1937:
31 SES, Leipzig, 1929/71, Krause, S. 736-739, 12/12/1929.
32 Carta de Nimuendajú para Lowie, 3 de março de 1936, Arquivo Curt Nimuendajú, CELIN, Museu
Nacional/UFRJ, pasta 20 (parcialmente reproduzida em Dungs, 1991, p. 268-269, tradução minha).
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(Re)aproximando-se e afastando-se da Alemanha
O senhor não precisa se afligir com o fato de ter encontrado algumas dificuldades com a terminologia do parentesco; todo pesquisador sincero passa por isso,
apenas trabalhadores [Arbeiter] superficiais afirmam conseguir aprofundar algo
a fundo sem mais nada […].33
O estudo das complexas estruturas sociais das sociedades dos povos indígenas
falantes de línguas Jê era o interesse teórico principal de Lowie que motivou
seu “deslocamento regionalista” da América do Norte para a América do Sul, ao
menos em parte. A publicação de uma série de trabalhos, ou em conjunto ou
como monografias traduzidas para o inglês pelo próprio Lowie, garantiram a
Nimuendajú não só um pioneirismo destacado na “Jê-ologia”, ou seja, nos estudos antropológicos dos povos indígenas falantes de línguas Jê, mas também
uma visibilidade internacional muito maior do que as publicações americanistas em alemão e português em periódicos europeus. Até a monografia Die
Timbira, encomendada por ocasião da segunda expedição de Nimuendajú para
instituições alemãs, em 1930, finalmente foi publicada, porém em inglês e em
duas partes completamente revisadas (Nimuendajú, 1939, 1946).
A cooperação entre Lowie e Nimuendajú não só estava baseada numa complementariedade de interesses, teóricos e etnográficos, mas também numa
convergência de convicções de que os melhores trabalhos teóricos não resistem
à carência de sólidos fundamentos empíricos. Além disso, existia uma certa
afinidade por causa da língua nativa comum dos dois etnólogos e um grande
respeito recíproco. Até 1942 foi possível, para Lowie, organizar auxílios para as
pesquisas de Nimuendajú, sobretudo com recursos do Instituto de Ciências
Sociais da Universidade da Califórnia em Berkeley. Nos relatórios oficiais de
atividades para a instituição, ele definiu o papel de Nimuendajú como “assistente de pesquisa” (Faulhaber, 2013, p. 225, nota 14), o que, no entanto, não descreve de maneira alguma a relação entre os dois etnólogos.
De fato, existiam, como no caso das duas redes transnacionais anteriores,
assimetrias entre os protagonistas. Em primeiro lugar, havia consideráveis
diferenças de status social e econômico: por um lado, professores catedráticos e/ou diretores de museus e, por outro lado, um pesquisador e colecionador
33 Carta de Nimuendajú para Lowie, 27 de agosto de 1937, Arquivo Curt Nimuendajú, CELIN, Museu
Nacional/UFRJ, pasta 21 (parcialmente reproduzida em Dungs, 1991, p. 276-277, tradução minha).
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autodidata sem nenhuma formação acadêmica, sobrevivendo com rendas temporárias e frequentemente imprevisíveis. Contudo, as assimetrias se invertiam
ou até ficavam neutralizadas no campo dos conhecimentos etnográficos, etnológicos e linguísticos, porque nenhum dos interlocutores citados neste artigo
conseguia demonstrar experiências de campo e conhecimentos concretos
equivalentes àqueles de Nimuendajú – com uma exceção: Koch-Grünberg. Por
causa disso, a relação entre estes dois etnólogos, apesar de eles provavelmente
nunca terem se conhecido pessoalmente, evoluiu para algo simétrico e equilibrado que podemos denominar uma verdadeira amizade.
Quando os Estados Unidos oficialmente entraram na guerra em 1941, os
recursos americanos destinados para as pesquisas de Nimuendajú diminuíram
cada vez mais até desaparecer completamente. A partir de 1942, ainda havia os
honorários de colaborador, pagos pela Smithsonian Institution, para os artigos elaborados para os volumes 1 e 3 do Handbook of South American Indians
(publicados em 1946 e 1948, respectivamente), organizado por Julian Steward
(1902-1972). As relações com Steward, no entanto, eram marcadas por diversas
tensões que tinham a ver tanto com sua personalidade, descrita como autoritária, quanto com as intervenções editoriais nos artigos enviados por Nimuendajú. Em outro colaborador importante do Handbook, o antropólogo de origem
suíça Alfred Métraux, contudo, Nimuendajú teve um excelente interlocutor que
até se tornou um de seus maiores admiradores e divulgadores, ao lado de Lowie:
Dr. Lowie, who is known for his critical judgement and his severity in his appreciation, mentions you as a typical anthropologist, who by long contact has
managed to give us the truest picture of native life. You are perhaps the only
man about whom Dr. Lowie expressed unconditional admiration. It is not of
sheer enthusiasm and partiality that I have said that your work among the Gê
was a turning point in American anthropology. Remember that you are the first
one who has discovered this complicated and vicious social organization in
South America.34
34 Carta de Alfred Métraux para Nimuendajú, 8 de agosto de 1938 (Arquivo Curt Nimuendajú,
CELIN, Museu Nacional/UFRJ, pasta 27).
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(Re)aproximando-se e afastando-se da Alemanha
A quantidade da correspondência envolvendo a terceira rede transnacional
apresentada aqui indica a intensidade dos contatos, os quais, afinal de contas,
levaram ao auge da produção científica de Nimuendajú: com Lowie, 165 cartas;
com Steward, 32; e com Métraux, 17.35
Figura 7. Principais integrantes da rede (1935-1945). (A espessura das setas indica a
frequência e intensidade relativas dos contatos.)
35 Cálculo feito com base na lista de documentos do Arquivo Curt Nimuendajú, CELIN, Museu
Nacional/UFRJ, embora a lista talvez não seja exaustiva e outras cartas originais, ou suas duplicatas, possam ser encontradas em outros arquivos.
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Uma biografia como espelho de transformações
na antropologia brasileira
Podemos nos perguntar se as três redes transnacionais apresentadas representam apenas configurações específicas de determinados períodos de uma biografia incomum ou se é possível perceber uma analogia entre a esfera micro das
relações acadêmicas transnacionais do etnólogo e uma tendência macro na
antropologia brasileira no mesmo período, ou, em outras palavras, se se trata
de uma analogia meramente fortuita ou se podemos identificar causalidades
comuns nas duas esferas, micro e macro.
Até a década de 1930, a etnologia alemã exercia uma influência hegemônica
na antropologia brasileira, no entanto, a partir da mesma década ela entrou em
concorrência crescente com as antropologias francesa, britânica e norte-americana até finalmente perder seu status e protagonismo. Tanto as missões culturais francesas quanto as grandes fundações americanas de fomento à pesquisa
(Carnegie, Ford, Rockefeller, etc.) contribuíram para a crescente influência das
antropologias francesa e, sobretudo, norte-americana nas ciências sociais brasileiras. Ao menos, essa é a parte mais conhecida da história (Pinheiro; Schröder;
Vermeulen, 2019).
Frequentemente também se invoca o argumento da falta de familiaridade
com a língua alemã para tentar explicar a perda da influência das ciências
humanas de língua alemã em diversos países latino-americanos a partir da
década de 1930. Porém, esse argumento é questionável para as gerações de
antropólogos brasileiros atuantes nas décadas de 1930 a 1950, os quais frequentemente sabiam ler e falar alemão, ou seja, essa interpretação parece ser uma
transferência dos conhecimentos linguísticos dos antropólogos brasileiros atuais para outra época histórica. Além disso, a língua nunca foi nenhum impedimento para a presença contínua e forte da sociologia alemã nos currículos
brasileiros de ciências sociais.
Isso significa que devemos lançar um olhar para outros aspectos e outras
explicações, além das influências de órgãos de fomento estrangeiros e de competências linguísticas. Identificamos três causas principais para o afastamento
gradual da etnologia alemã na antropologia brasileira: 1) o encolhimento do
ambiente institucional alemão e austríaco como consequência da Primeira
Guerra Mundial e das crises econômicas subsequentes; 2) a intoxicação
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(Re)aproximando-se e afastando-se da Alemanha
ideológica nazista das instituições acadêmicas a partir dos últimos anos da
República de Weimar; e 3) a crescente estagnação das discussões teóricas no
âmbito das antropologias de língua alemã depois da Primeira Guerra Mundial.
1) O declínio institucional e financeiro
A etnologia alemã pode ser considerada uma antiga antropologia hegemônica, de acordo com os critérios de definição de hegemonia usados por Ribeiro
(2006) para o cenário global, embora Barth et al. (2005) ainda a tenham incluído entre as quatro grandes tradições da área. Para a etnologia americanista de
língua alemã, o período entre a década de 1880 e o início da Primeira Guerra
Mundial foi algo como um auge, sobretudo com relação às pesquisas realizadas
em diversas partes da América do Sul.
O declínio institucional e financeiro começou com a Primeira Guerra Mundial, como mostrou Petschelies (2019, p. 487-552), seguido pela perda das colônias do Império Alemão, pela dissolução do Império Austro-Húngaro e pelo
boicote internacional contra as ciências alemãs no pós-guerra. A pauperização
não só disse respeito aos recursos financeiros disponíveis para instituições de
pesquisa antropológica, mas também às condições de vida materiais dos próprios profissionais da área durante a guerra e no pós-guerra. Em suas cartas para
Nimuendajú, Koch-Grünberg fala das condições gerais para o trabalho acadêmico no pós-guerra apenas em termos gerais, mas alguns detalhes como a falta
de papel, ou sua qualidade, para imprimir periódicos científicos são bastante
reveladores. O principal financiador das grandes expedições etnográficas nas
três décadas antes da guerra, o Museu Etnológico de Berlim, não conseguiu mais
desempenhar esse papel. É irônico e, ao mesmo tempo, revelador que a expedição durante a qual faleceu Koch-Grünberg, em 1924, tenha sido organizada pelo
geógrafo americano Hamilton Rice (1875-1956) com recursos americanos.
Enquanto o Reich, depois da hiperinflação, passou por uma recuperação
econômica no período de 1924 a 1929, isso não teve impactos significativos
para pequenas áreas como a etnologia. E com a Grande Depressão, a partir de
1929, o quadro voltou a se agravar. A história das duas expedições realizadas por
Nimuendajú para instituições alemãs é sintomática: elas apenas foram possíveis
devido ao financiamento garantido por várias instituições em conjunto. Mesmo
assim, no final faltou o dinheiro para publicar a monografia sobre os Timbira.
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2) A ascensão do nazismo
Enquanto a repressão do regime nazista se instalou imediatamente após a
Machtergreifung (tomada de poder) em 30 de janeiro de 1933, fazendo com que
uma parte dos etnólogos alemães optasse pela emigração, como Herbert Baldus,
por exemplo, a intoxicação ideológica do meio acadêmico já tinha se tornado
evidente e perceptível em anos anteriores, de modo que Bossert e Villar (2019)
até aventaram a hipótese de que aquele clima político-ideológico poderia ter
sido um dos motivos principais que teriam levado o etnólogo Max Schmidt a
optar pela emigração, em 1929.
As biografias dos dois principais interlocutores de Nimuendajú no contexto desta pesquisa, Krause e Reche, podem ser descritas como típicas para
o período nazista e, em particular, para o conjunto dos antropólogos alemães
que optaram por não emigrar, embora outras biografias, bastante diferentes e
às vezes trágicas, também fossem documentadas, mostrando outras facetas
daquilo que significou sobreviver, ou tentar sobreviver, como antropólogo sob
um regime totalitário.
A atuação de Krause foi de suma importância para a organização profissional da etnologia alemã, já que ele foi o fundador e primeiro presidente da
Associação Alemã de Etnologia (Deutsche Gesellschaft für Völkerkunde), criada
em 1929. Mas também em outro sentido: como membro do partido nazista, ele
ficou na direção do Museu Grassi, de Leipzig, até a derrota definitiva do Reich.
Sendo removido de seu cargo pelos soviéticos, ainda em 1945, Krause ficou um
profissional marginalizado na antiga RDA até seu falecimento, em 1963.
Enquanto na biografia de Krause o envolvimento com o regime nazista
representa uma faceta repugnante, esse aspecto tornou-se um traço predominante na atuação acadêmica de Reche. Em novembro de 1933, Reche, junto
com outros etnólogos, foi signatário de uma carta aberta de apoio ao regime.36
Em alemão, isso se chama “obediência antecipada” (vorauseilender Gehorsam).
Sob sua direção, o Instituto de Antropologia e Etnologia na Universidade de
36 “Bekenntnis der Professoren an den deutschen Universitäten und Hochschulen zu Adolf Hitler
und dem nationalsozialistischen Staat” (“Carta de apoio dos professores nas universidades e
escolas de ensino superior alemães a Adolf Hitler e ao Estado nacional-socialista”), de 11 de
novembro de 1933.
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(Re)aproximando-se e afastando-se da Alemanha
Leipzig foi rebatizado em Instituto de Raciologia e Etnologia, e suas atividades evoluíram em duas direções: por um lado, foi dada continuidade às pesquisas etnológicas convencionais (enquanto elas tinham um caráter inócuo do
ponto de vista ideológico), por outro lado, Reche transformou o instituto em um
endereço de referência para pesquisas raciológicas, especializado na emissão
de pareceres sobre “pertencimento racial” (Rassenzugehörigkeit) no sentido da
ideologia arianista do regime.
O desinteresse do regime pela antropologia cultural e social, ao contrário
do fomento dado à antropologia física, no sentido raciológico, foi outro duro
golpe dado à etnologia alemã, impossibilitando uma recuperação de seu antigo
status no contexto internacional.
3) Estagnação teórica
Com as duas guerras mundiais, não foram apenas os antropólogos de língua
alemã que frequentemente viram diminuir seu prestígio acadêmico. As antropologias na Alemanha e na Áustria também perderam espaço no cenário
internacional por orientações teóricas infelizes. A maioria dos antropólogos
optou por abordagens difusionistas que mais tarde se revelariam como inférteis, levando a um beco sem saída teórico. Embora uma parte dos antropólogos
de língua alemã ainda mantivesse vivos seus contatos internacionais e aplicasse outras abordagens em suas pesquisas,37 a maioria optou pelo isolamento
teórico, abandonou seus contatos internacionais, ou os perdeu, e depois foi
incapaz de reconhecer os avanços inovadores na área oferecidos pelas antropologias americana e britânica. Por exemplo, o funcionalismo, nas versões malinowskiana e browniana, apenas entraram nas grades curriculares etnológicas
alemãs depois da Segunda Guerra Mundial (Haller, 2012).
Desse modo, depois da Primeira Guerra Mundial, a antropologia praticada nos países de língua alemã tinha cada vez menos a oferecer tanto a um
37 Uma das exceções importantes foi Richard Thurnwald (1869-1954), conhecido por sua abordagem denominada “funcionalismo histórico”. Thurnwald fazia parte de amplas redes transnacionais de antropólogos e estava bem familiarizado com os trabalhos dos colegas britânicos e
de suas metodologias. Seus trabalhos, inclusive, foram citados por Malinowski. Apesar de suas
contribuições inovadoras para a etnologia alemã, ele optou por voltar para a Alemanha em 1936
e arranjar-se com os nacional-socialistas.
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estudioso como Nimuendajú, em particular, quanto ao conjunto da pequena
comunidade de antropólogos brasileiros, do ponto de vista teórico. A aproximação de um estudioso familiarizado com a bibliografia especializada em
língua alemã à antropologia americana da linhagem boasiana, representada
por Lowie e outros antropólogos, ao que tudo indica, não foi nenhuma decisão
meramente pragmática, envolvendo possibilidades de financiamentos disponíveis, mas também estava caracterizada por uma certa afinidade tanto pessoal
quanto teórica, ao menos implícita, já que a tradição culturalista tinha suas
origens na Alemanha do século XIX e o próprio Lowie, nascido em Viena, sempre manteve vivos seus vínculos com a língua alemã. Desse modo, podemos
constatar que a hipótese inicial ficou confirmada, levando em consideração o
material empírico consultado: uma analogia entre a esfera micro das relações
acadêmicas transnacionais de Nimuendajú e uma tendência macro na antropologia brasileira no mesmo período.
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Recebido: 31/01/2021
Aceito: 01/07/2021
|
Received: 1/31/2021
Accepted: 7/1/2021
Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional
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Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 28, n. 62, p. 211-255, jan./abr. 2022
Artigos
Articles
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71832022000100008
A mediação seletiva de Herbert Baldus
entre etnologia alemã e antropologia
brasileira
Herbert Baldus’ selective mediation between German
ethnology and Brazilian anthropology
Sílvio Marcus de Souza Correa I
https://orcid.org/0000-0002-0364-6590
silvio.correa@pq.cnpq.br
I
Universidade Federal de Santa Catarina – Florianópolis, SC, Brasil
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Sílvio Marcus de Souza Correa
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Resumo
Radicado em São Paulo desde o início da década de 1930, Herbert Baldus atuou em
várias frentes no emergente campo das ciências sociais no Brasil, no qual procurou
manter viva a tradição de americanistas alemães. Além do ensino e da pesquisa, o
professor de etnologia da Escola de Sociologia e Política de São Paulo promoveu o trabalho de seus conterrâneos por meio de traduções e publicações. Acontece que alguns
americanistas alemães, como Walter Krickeberg e Fritz Krause, estiveram envolvidos
com o nazismo entre 1933 e 1944. A análise da correspondência em alemão de Baldus
revela algumas ambiguidades em sua deontologia, notadamente nas suas escolhas
para a divulgação científica, e oferece uma nova perspectiva sobre a sua contribuição
para a antropologia brasileira do seu tempo.
Palavras-chave: Herbert Baldus; americanistas alemães; nazismo; deontologia.
Abstract
Living in São Paulo since the early 1930s, Herbert Baldus worked in different ways in
favor of the emerging field of social sciences in Brazil, also seeking to keep the tradition of German Americanists alive. In addition to teaching and research, the professor
of Ethnology at the School of Sociology and Politics of São Paulo promoted the work
of his compatriots through translations and publications. But some German Americanists, like Walter Krickeberg and Fritz Krause, were committed to Nazism between
1933 and 1944. The analysis of Baldus’ correspondence reveals some ambiguities in
his deontology, especially in his choices for scientific divulgation, and offers a new
perspective on his contribution to the Brazilian anthropology of his time.
Keywords: Herbert Baldus, German Americanists, Nazism, deontology.
Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 28, n. 62, p. 257-291, jan./abr. 2022
A mediação seletiva de Herbert Baldus entre etnologia alemã e antropologia brasileira
Americanistas alemães nos “tristes trópicos”1
Durante as primeiras décadas do século XX, a etnografia alemã foi uma das
principais referências internacionais para o campo científico da antropologia em formação no país.2 Assim como Karl von den Steinen (1855-1929), Paul
Ehrenreich (1855-1914), Theodor Koch-Grünberg (1872-1924), Max Schmidt (18741950) e Fritz Krause (1881-1963), outros nomes, como Curt Nimuendajú (18831945) e Herbert Baldus (1899-1970), inscrevem-se nas redes da etnografia alemã
no Brasil (Petschelies, 2019).
Curt Nimuendajú e Herbert Baldus são dois personagens emblemáticos da
história da antropologia brasileira (Welper, 2019, p. 22). Ambos tiveram muita
importância para o desenvolvimento científico da disciplina, sendo a contribuição do primeiro mais voltada às pesquisas de campo e à “etnografia de salvamento” e a do segundo, ao ensino e à divulgação científica no incipiente meio
acadêmico nacional.
A correspondência de mais de dez anos entre Herbert Baldus e Curt
Nimuendajú (1934-1945) foi objeto de pesquisa da antropóloga Elena Welper,
que, nas palavras de Carlos Fausto, “salvou uma parte apreciável do arquivo
Curt Nimuendajú que queimou em setembro de 2018 no trágico incêndio do
Museu Nacional”. Nessas cartas, tem-se a interlocução entre dois homens
1
O presente trabalho foi realizado durante a pandemia do coronavírus. Impedido de viajar para
consultar arquivos nacionais e estrangeiros, agradeço a Eric Santos Alves pela cópia da correspondência entre Herbert Baldus e Richard Thurnwald, do Arquivo do Museu Paulista, a
Elena Welper pela cópia de uma carta de Richard Thurnwald (02/10/1939), do Arquivo Edgard
Leuenroth da Universidade Estadual de Campinas, e a Judith Syga-Dubois pela cópia da documentação relativa à candidatura de Baldus para uma bolsa da Fundação Rockefeller, em 1932,
conservada na Biblioteca Pública de Oldenburg (Alemanha). Agradeço ainda às pessoas que elaboraram os pareceres anônimos pela leitura acurada. Uma parte deste artigo foi apresentada no
Colóquio Internacional “Changing Fields. Hilde and Richard Thurnwald’s Ethnology”, realizado
na Université Sorbonne-Nouvelle entre os dias 7 e 9 de julho de 2021. Com exceção das cartas
de Baldus organizadas e publicadas em Elena Welper (2019) com tradução de Peter Welper, as
traduções das citações são todas minhas.
2
Para Eduardo Viveiros de Castro (1992, p. 177), “os naturalistas e etnólogos alemães que andaram
por aqui no século XIX e começo do século XX não chegaram a se impor à tradição acadêmica
moderna, embora tenham influenciado decisivamente o americanismo”. Ainda sobre a tradição
dos americanistas alemães, ver o dossiê “German-Speaking Anthropologists in Latin America,
1884-1945” (Revista de Antropologia, 2019).
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“apaixonados pelo seu trabalho e decepcionados com os rumos do mundo, em
particular com a ascensão do nazismo, que rejeitam visceralmente” (Fausto,
2019, p. 21).
Para o presente artigo, fundamental foi a correspondência em alemão entre
Herbert Baldus e Richard Thurnwald durante os primeiros anos do pós-guerra,
que se encontra no Arquivo do Museu Paulista. A análise dessas cartas permite observar alguns ressentimentos e silêncios ainda presentes nesse período.
Percebe-se, outrossim, o espectro do nazismo pairando sob a disciplina e tendo
impacto na vida de Herbert Baldus e de outros etnólogos alemães, mesmo
depois da guerra. Com base na correspondência de Herbert Baldus com dois
interlocutores de sua mais alta estima e na divulgação científica da etnologia
alemã no Brasil, da qual Baldus foi um dos principais mediadores nas décadas de 1930, 1940 e 1950, busco a seguir apontar para algumas ambiguidades e
mesmo intrigas marcadas por afetos e desafetos de um dos principais nomes
no carrefour entre a tradição etnográfica alemã e a moderna antropologia
brasileira.
Entre afetos e desafetos
Após a defesa de sua tese em Berlim no ano de 1931, Herbert Baldus se candidatou para uma bolsa da Fundação Rockefeller de 12 meses nos Estados
Unidos. Ele tinha 33 anos. No seu dossiê de candidatura, encontram-se quatro cartas de recomendação dos professores Lehmann, Thurnwald, Thilenius e
Westermann. Datada de 28 de janeiro de 1932, a carta de Richard Thurnwald
destacou as qualidades do candidato para trabalho de campo e a sua experiência na América do Sul.3 Já as cartas de Lehmann, Thilenius e Westermann
apontaram certas limitações do candidato. Mas foi a carta de Diedrich Westermann aquela que, provavelmente, mais pesou para chumbar a candidatura de
Baldus. “Se os bolsistas da Rockefeller devem ser vistos como uma elite da próxima geração de estudiosos alemães, eu não consideraria Baldus um candidato
3
Carta de recomendação de Richard Thurnwald (28/01/1932) a August Wilhelm Fehling, responsável pela seleção de bolsistas alemães da Fundação Rockefeller. Landesbibliothek Oldenburg,
Nachlass Hermann Schumacher (HS 362.2203.1-8).
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A mediação seletiva de Herbert Baldus entre etnologia alemã e antropologia brasileira
adequado”, declarou Westermann.4 Além disso, a tese de Baldus não teve a
menção honorífica summa cum laude e nem magna cum laude, o que diminuía
as chances de sua candidatura. A sua proposta de pesquisa apresentava ainda
inconsistências. A frustração com o resultado da seleção da bolsa da Fundação
Rockefeller pode ter influenciado a sua decisão de se instalar em São Paulo, ainda
mais quando a Sociedade de Assistência Científica Alemã (Notgemeinschaft
der deutschen Wissenschaft) poderia auferir recursos para o seu trabalho etnográfico no Brasil.5
A partir da década de 1930, alguns americanistas alemães encontraram certas dificuldades para continuar o seu trabalho de campo no Brasil. Apesar da
obtenção da naturalização brasileira em 1922, Curt Nimuendajú queixou-se do
“nativismo” e da xenofobia em correspondência com o seu conterrâneo Herbert
Baldus (cf. Welper, 2019, p. 106).6 Mas se o espectro do nazismo poderia prejudicar a atuação de etnólogos de origem alemã no Brasil, o anticomunismo e o
antissemitismo na Alemanha começavam a complicar a vida de professores e
pesquisadores. Herbert Baldus sentiu-se ultrajado quando soube que a indicação do seu nome para integrar a Sociedade de Antropologia, Etnologia e Pré-História de Berlim (Berliner Gesellschaft für Anthropologie, Ethnologie und
Urgeschichte) foi indeferida por causa de uma objeção levantada pelo americanista Walter Krickeberg. Este último acusara Baldus de atuar em favor da causa
comunista no Brasil.
Por uma carta do professor Konrad Theodor Preuss, Baldus soube que
Krickeberg havia mencionado o nome de Curt Nimuendajú como uma de suas
fontes de informação (cf. Welper, 2019, p. 38).7 Krickeberg comunicou ainda que
4
No original: “Wenn die Rockefeller-Stipendiaten als eine Elite der kommenden Generation
deutscher Gelehrter angesehen werden sollen, so würde ich Baldus nicht als geeigneten
Kandidaten ansehen.” Carta de recomendação de D. Westermann (16/01/1932) a August
Wilhelm Fehling, responsável pela seleção de bolsistas alemães da Fundação Rockefeller.
Landesbibliothek Oldenburg, Nachlass Hermann Schumacher (HS 362.2203.1-8).
5
As cartas de recomendação dos professores Lehmann e Westermann para o candidato à bolsa
da Fundação Rockefeller sugerem que Baldus teria mais chances na América do Sul do que na
América do Norte. Em seu dossiê de candidatura, o próprio Baldus expressou o seu interesse
em fazer uma nova viagem pela América do Sul e vir a ser professor de etnologia e americanista.
Landesbibliothek Oldenburg, Nachlass Hermann Schumacher (HS 362.2203.1-8).
6
Carta de Curt Nimuendajú para Herbert Baldus, Belém do Pará, 11 de setembro de 1939.
7
Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 20 de julho de 1934.
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alguém da família de Baldus, que queria permanecer anônimo, confirmara a
orientação política do expatriado e acrescentou que a esposa de Baldus também era comunista e tinha sido presa uma vez por suas atividades políticas
(Díaz de Arce, 2005, p. 183).8 Diante da acusação de ser comunista, uma carta
de Baldus para o professor Preuss revela certa ambiguidade em relação à sua
atitude com a “nova Alemanha”.
Não pretendo negar que, certa vez, me manifestei de modo desfavorável sobre o
estado das coisas na Alemanha. Mas isto ocorreu sob o impacto da notícia de que
minha mulher, por causa de uma denúncia totalmente insustentável – como
mais tarde ficou comprovado – tinha sido mantida em prisão preventiva. Desde
que ela voltou para a minha companhia, contando-me sobre a nova Alemanha,
passei a ver tanto a sua prisão quanto o nacional-socialismo e seus objetivos sob
uma luz totalmente diferente e lamento as palavras que escrevi a este respeito a
Nimuendajú. (cf. Welper, 2019, p. 39).9
Baldus considerou uma infâmia a acusação de Krickeberg e receava os impactos decorrentes para a sua vida e para o seu trabalho, pois ela poderia ter as
seguintes consequências: perda de seus meios de subsistência já que, segundo
ele, esses provinham da Alemanha; impossibilidade de publicação de seus
escritos na Alemanha; e inviabilidade de sua candidatura para uma universidade alemã e, por conseguinte, de retorno para o seu país natal (cf. Welper, 2019,
p. 40).10 Em carta para o professor Preuss, datada de 20 de julho de 1934, Baldus
informou ao seu destinatário que pretendia processar Krickeberg pela intriga.
Assim que tiver se manifestado sobre este assunto, vou proceder contra o senhor
Krickeberg com todos os meios para obrigá-lo a confessar a irresponsabilidade
de sua atitude e se retratar da sua acusação. Não acho muito heroico atacar pelas
costas, de sua confortável escrivaninha, uma pessoa que, aqui no exterior luta
8
Ulla e Herbert Baldus eram casados desde outubro de 1929, segundo o curriculum vitae apresentado por ele para candidatura de uma bolsa da Fundação Rockefeller. Landesbibliothek
Oldenburg, Nachlass Hermann Schumacher (HS 362.2203.1-8).
9
Carta de Herbert Baldus para Konrad Theodor Preuss, São Paulo, 20 de julho de 1934.
10 Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 25 de outubro de 1934.
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A mediação seletiva de Herbert Baldus entre etnologia alemã e antropologia brasileira
com as maiores dificuldades para realizar o seu trabalho. Nós, cientistas alemães
no exterior, mais do que nunca, precisamos ter a certeza que a pátria nos apoia,
senão materialmente, ao menos idealmente. (cf. Welper, 2019, p. 39).11
Meses depois, em meio a dificuldades financeiras, Baldus informava Curt
Nimuendajú que “da história com Krickeberg, até agora não ouvi mais nada.
Por mim, essa gente lá que faça fofocas à vontade, contanto que eu aqui
tenha dinheiro suficiente para viver e viajar” (cf. Welper, 2019, p. 42).12 Porém,
Baldus continuava preocupado com as consequências da intriga de Krickeberg
e chegou a apelar para o etnólogo Emil W. Mühlmann. Ambos eram da mesma
geração e tinham estudado em Berlim com o professor Richard Thurnwald.
Em carta datada de 28 de janeiro de 1935, Mühlmann chegou a intervir junto
ao presidente da Berliner Gesellschaft für Anthropologie, Ethnologie und
Urgeschichte, informando que Baldus lhe confirmou a “sua positiva atitude em
relação ao Terceiro Reich” e pediu ainda para lhe transmitir essa sua “política
atitude” (cf. Díaz de Arce, 2005, p. 183).13
As intrigas de Krickeberg continuaram a causar constrangimentos nos próximos anos.14 Seus ataques tiveram ainda por alvo Walter Lehmann, Konrad
Theodor Preuss e Richard Thurnwald. Esses três tinham sido professores de
Baldus na Alemanha (Sampaio-Silva, 2000, p. 24). Porém, Curt Nimuendajú
parece ter mantido “boas relações” com o então diretor do Museu de Etnologia
de Berlim. Em carta datada de 14 de agosto de 1939, Nimuendajú pediu para
Emil-Heinrich Snethlage mandar lembranças suas ao professor Krickeberg
(cf. Mere, 2013, p. 795).15 Para o americanista nazista, “apesar do nome indígena”,
Curt Nimuendajú era “um bom alemão” (Díaz de Arce, 2005, p. 183). Ambos se
encontraram em Berlim, durante a viagem de Nimuendajú à Europa em 1934
para tratar da venda de algumas coleções etnográficas.
11 Carta de Herbert Baldus para Theodor K. Preuss, São Paulo, 20 de julho de 1934.
12 Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 17 de dezembro de 1934.
13 No original: “Er versichert mir seine positive Einstellung zum Dritten Reich und bittet mich,
Ihnen gegenüber diese seine politische Gesinnung zum Ausdruck zu bringen.”
14 Sobre os ataques de Krickeberg e suas diatribes, ver a tese de Norbert Díaz de Arce, especialmente o seu quinto capítulo (Díaz de Arce, 2005, p. 153-181).
15 Carta de Curt Nimuendajú para Emil-Heinrich Snethlage, Belém do Pará, 14 de agosto de 1939.
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Malgrado o envolvimento do nome de Nimuendajú na intriga de Krickeberg,
Baldus não ficou magoado com quem ele tinha muito apreço, conforme a sua
carta de 20 de julho de 1934 (cf. Welper, 2019, p. 38).16 Alguns anos depois, o
nome de Nimuendajú foi novamente implicado num outro caso de constrangimento para Baldus. Tratava-se do fenômeno Lévi-Strauss, cujo sucesso fulgurante em 1937 deixou Baldus afetado e preocupado a ponto de desabafar nos
seguintes termos em carta para Nimuendajú:
Posso entender muito bem que o senhor não queira participar da planejada
expedição francesa e também estou convencido de que, por muitos motivos,
teria tido muito mais aborrecimento do que prazer. Pois essa gente sabe maravilhosamente bem explorar os outros e depois fingir que nunca ninguém além
deles existiu ou trabalhou. Apreendi isto muito recentemente, por experiência
própria, principalmente em relação ao senhor Lévi-Strauss, a quem desobstruí
todos os caminhos e que agora fundou com grande estardalhaço uma Sociedade
Etnográfica, encarregada de organizar um Instituto para Etnologia na Universidade. Lévi-Strauss não para de emitir para a imprensa julgamentos sábios,
na qualidade de autoridade etnológica e pré-histórica, pondo-se portanto em
cena como um maioral e, de repente, fingindo não mais me conhecer e fazendo
tudo para me excluir. Isto tudo me deixaria indiferente – pois prefiro uma vida
solitária e contemplativa a esses ruídos variados – mas, como certos caciques
daqui, como por exemplo Fernando de Azevedo, declararam que teria sido exatamente o por mim tão admirado senhor Nimuendajú que teria posto o senhor
Lévi-Strauss em cena, ao enaltecê-lo como grande etnólogo, tendo considerado
o artigo Bororo uma obra de mestre, então não quero – pelo menos não com o
senhor – deixar este assunto em nobre silêncio. (cf. Welper, 2019, p. 71).17
Passado um mês, Nimuendajú respondeu a carta de Baldus, procurando esclarecer alguns pontos e expressar seus sentimentos: “Fico extremamente sentido
se prejudiquei logo o senhor com aquela declaração sobre Lévi-Strauss. É ainda
mais embaraçoso para mim, porque já é a segunda vez que terceiros lhe causam
16 Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 20 de julho de 1934.
17 Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 11 de outubro de 1937.
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A mediação seletiva de Herbert Baldus entre etnologia alemã e antropologia brasileira
dificuldades, envolvendo o meu nome” (cf. Welper, 2019, p. 76).18 Mas o remetente fez saber ao seu destinatário o seguinte:
O senhor pode acreditar que não tenho o menor interesse em tomar partido de
um homem com as qualidades morais de Lévi-Strauss – ainda por cima contra
o senhor – mas não posso evitar e lhe peço perdão ao lhe dizer com toda honestidade: Não posso desprezar, nem com a maior boa vontade, o meu julgamento
sobre o referido trabalho. (cf. Welper, 2019, p. 76).19
Embora tenha considerado que Lévi-Strauss se portara “de forma muito infame”
em relação a Baldus, Nimuendajú renovou os seus elogios ao trabalho do jovem
etnólogo francês.20 Essa separação entre juízo moral e científico teria implicação na deontologia da incipiente etnologia no Brasil. Mais tarde, Baldus parece
ter aplicado essa lição ao buscar separar política e ciência, notadamente para a
divulgação científica de alemães comprometidos com o nazismo.
Em 1934, Baldus viu as portas se fecharem para um futuro retorno ao país
natal depois da acusação de Krickeberg. Em 1937, Lévi-Strauss surgia como um
concorrente. Diante do promissor antropólogo francês, o alemão sentia que
suas chances eram poucas de obter uma cátedra de etnologia em São Paulo.
O desafeto de Baldus aparece em outras cartas quando se refere a Lévi-Strauss
e aos franceses, marcando as fronteiras entre nós (alemães), eles (franceses) e
os outros (brasileiros): “Essa gente tem mais talento do que nós para vender a
si próprios, sabem fazer com que os outros falem deles sem parar e de modo
exagerado, com as respectivas fotos, sabem bajular as pessoas necessárias etc.”
(cf. Welper, 2019, p. 60).21
Em outra missiva, Baldus foi implacável com a maneira de proceder de Jean
Vellard, condenando-a pela sua “barbárie covarde e criminal”. Por outro lado,
ele não condenou o método do seu conterrâneo Mayntzhusen que mantinha
“amigavelmente” presos tantos indivíduos quanto possível para criar um contato permanente com os Guayaki; método que o próprio Baldus tentou aplicar
18 Carta de Curt Nimuendajú para Herbert Baldus, Belém do Pará, 22 de novembro de 1937.
19 Carta de Curt Nimuendajú para Herbert Baldus, Belém do Pará, 22 de novembro de 1937.
20 Sobre a correspondência de Nimuendajú e Lévi-Strauss, ver Welper (2020).
21 Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 30 de novembro de 1936.
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sem sucesso quando esteve em campo com Mayntzhusen por alguns meses
(cf. Welper, 2019, p. 72).22 Isso não significa que outras questões de deontologia
não fossem tratadas por Baldus. Ao menos, ele marcou a sua posição ao condenar, na maioria dos representantes da sua “raça”, “um interesse maior em
explorar os índios e, eventualmente, dormir com suas mulheres, do que apoiar
a conservação das próprias culturas indígenas” (cf. Welper, 2019, p. 79).23
Na correspondência entre Baldus e Nimuendajú, as queixas vinham de
ambas as partes. O nativismo e a xenofobia foram mencionados nas suas cartas, mesmo que Baldus parecesse ter uma opinião diferente sobre o nativismo
brasileiro daquela do seu interlocutor. Em setembro de 1939, Curt Nimuendajú
viu-se impedido de fazer uma viagem para o Xingu, pois o Conselho de Fiscalização de Expedições Artísticas e Científicas no Brasil negou a permissão para
viajar sob o pretexto de que ele não havia cumprido as obrigações assumidas
em relação à viagem anterior. Nimuendajú reconhecia que o seu trabalho de
campo era “um escândalo para muita gente” e contava com a probabilidade de
que, “devido à xenofobia” e pelo fato de não ter consentido em ficar a serviço do
Museu Nacional, suas atividades poderiam ter fim (cf. Welper, 2019, p. 106). 24
Anunciava ainda ao destinatário da carta que poderia transferir o seu campo de
trabalho para a zona subandina da Colômbia, do Peru e da Bolívia.
Do trabalho de campo provinha um dos principais meios de sustento de
Nimuendajú, pois ele vendia coleções para museus etnológicos estrangeiros e
nacionais. Para ficar num exemplo, entre 1929 e 1936, Nimuendajú organizou
sete coleções, as quais foram vendidas para os museus alemães de Hamburgo,
Leipzig e Berlim, para o museu sueco de Göteborg e para os nacionais de Belém,
São Paulo e Rio de Janeiro (cf. Welper, 2019, p. 67).25
A venda de coleções foi tema recorrente na correspondência entre Nimuendajú e Baldus. Esse último chegou a pedir um conselho para o primeiro, quando
intencionava vender uma coleção para a Europa ou para a América do Norte.
Entre os museus europeus, Baldus descartou os da Alemanha nazista não por
questões ideológicas, mas simplesmente porque havia o risco de não receber
22 Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 11 de outubro de 1937.
23 Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 30 de novembro de 1937.
24 Carta de Curt Nimuendajú para Herbert Baldus, Belém do Pará, 11 de setembro de 1939.
25 Carta de Curt Nimuendajú para Herbert Baldus, Boa Vista, 6 de julho de 1937.
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A mediação seletiva de Herbert Baldus entre etnologia alemã e antropologia brasileira
dinheiro algum devido às determinações em vigor sobre as divisas e transferência de valores para o exterior (cf. Welper, 2019, p. 47).26 No entanto, uma carta
de Emil W. Mühlmann para Eugen Fischer informava que Baldus colecionava
para museus alemães ainda em 1935 (cf. Díaz de Arce, 2005, p. 183).27
Baldus procurou ainda saber de Nimuendajú se o Museu Nacional do Rio
de Janeiro pagava bem pelas coleções etnográficas (Welper, 2019, p. 48).28 Com
a venda de uma coleção, Nimuendajú podia liquidar as suas dívidas e organizar
uma nova viagem para voltar a campo. Ao menos, assim foi com os dez contos
que recebeu do Museu Nacional por uma de suas coleções (cf. Welper, 2019,
p. 53).29 Baldus pediu ainda outros conselhos para Nimuendajú, pois pretendia
fazer algumas viagens e “tentar colecionar alguma coisa” (Welper, 2019, p. 66).30
Cabe lembrar que Baldus havia vendido algumas coleções para o Museu de
Etnologia de Hamburgo das suas duas primeiras viagens pela América do Sul
na década de 1920.31
Segundo Elena Welper (2019, p. 32), a etnografia de salvamento foi um ponto
de convergência entre Nimuendajú e Baldus. O trabalho de campo era ainda
uma necessidade científica, pois permitia estudar povos e culturas que estariam em risco de “desaparecimento” (Welper, 2019, p. 32). As coleções sobre as
quais ambos tratavam em sua correspondência não eram apenas de objetos
da cultura material, mas também da cultura imaterial. Numa de suas cartas,
Nimuendajú fez saber que havia se comprometido com o Museu Nacional para
organizar todas as lendas recolhidas por ele a fim de publicar a coleção, além
de uma pequena série que deveria estar pronta em abril de 1944 (cf. Welper,
2019, p. 156).32 Por seu turno, Baldus pretendia publicar uma coleção de “lendas
26 Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 6 de novembro de 1935.
27 No original: “Sie werden sich entsinnen, dass vor einiger Zeit Dr. Herbert Baldus, der z. Zt. mit
Mitteln der Notgemeinschaft als Ethnograph im Chaco reist und auch für deutsche Museen
sammelt, um die Mitgliedschaft in der Anthropologischen Gesellschaft nachsuchte.”
28 Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 30 de novembro de 1935.
29 Carta de Curt Nimuendajú para Herbert Baldus, Belém do Pará, 20 de fevereiro de 1936.
30 Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 5 de fevereiro de 1937.
31 Ver curriculum vitae (Lebenslauf) de Baldus e também carta de recomendação do professor Lehmann (05/02/1932). Landesbibliothek Oldenburg, Nachlass Hermann Schumacher
(HS 362.2203.1-8).
32 Carta de Curt Nimuendajú para Herbert Baldus, Belém do Pará, 21 de março de 1944.
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índias” do Brasil para uma série de cadernos de divulgação científica de uma
nova editora (cf. Welper, 2019, p. 153).33
A venda de coleções de objetos da cultura material e a publicação de “mitos
e lendas” da cultura imaterial de terceiros por esses dois representantes da
“etnografia de salvamento” e fundadores da antropologia brasileira devem ser
entendidas no contexto da época, que demarcava, igualmente, a deontologia
e a autocrítica que ambos compartilhavam com outros americanistas. Porém,
Baldus esboçou uma crítica à coleção vendida por Nimuendajú ao Instituto de
Educação de São Paulo e cuja maior parte era composta por “peças não usadas
e, certamente, confeccionadas por encomenda, portanto uma espécie de indústria turística” (cf. Welper, 2019, p. 65).34
Baldus foi um dos peritos da comissão que Fernando de Azevedo incumbiu de examinar a coleção vendida por Nimuendajú. A relação de amizade do
perito com quem vendeu a coleção parece ter prevalecido em detrimento de
uma expertise imparcial, pois Baldus informou ao destinatário de sua carta de
5 de fevereiro de 1937 que não comentou com ninguém sobre o fato de a maioria das peças não terem sido usadas. Além disso, o perito disse a Fernando de
Azevedo que se tratava da “maior, melhor e mais completa coleção dos índios
brasileiros até então existentes em toda a América do Sul e talvez no mundo
inteiro” (cf. Welper, 2019, p. 64).35 O próprio Nimuendajú não concordou com
os superlativos “benevolentes demais” que Baldus havia empregado. Ele ainda
defendeu a sua coleção nos seguintes termos:
Se eu não tivesse agido assim, simplesmente não possuiríamos qualquer registro
material desta tribo, pois eu não sei onde se pode encontrar uma coleção deles (a
não ser a minha própria, do ano de 1930, que se encontra em Hamburgo, se não
me engano). (cf. Welper, 2019, p. 67).36
Baldus não apenas exagerou na sua avaliação enquanto “perito”, mas também superestimou o valor venal da coleção, pois a estimou em 40 contos e
33 Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 1º de março de 1944.
34 Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 5 de fevereiro de 1937.
35 Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 5 de fevereiro de 1937.
36 Carta de Curt Nimuendajú para Herbert Baldus, Boa Vista, 6 de julho de 1937.
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A mediação seletiva de Herbert Baldus entre etnologia alemã e antropologia brasileira
considerou o pagamento de apenas oito contos um “abuso dos sentimentos
filantrópicos do Senhor Nimuendajú e um verdadeiro roubo” (cf. Welper, 2019,
p. 65).37 Provavelmente, Baldus procurava retribuir o apoio e as palavras gentis
que lhe dedicou Nimuendajú em carta a Fernando de Azevedo. Este último pretendia organizar um Centro de Documentação Social e Etnográfica, cuja direção ficaria a cargo de Baldus.
Embora a correspondência entre os dois expatriados alemães permita mostrar uma certa reciprocidade de favores, ela contém algumas tensões devidas,
geralmente, a posições diferentes sobre certas questões. Além dos desafetos,
Baldus parece expressar mais os afetos do que o seu reservado interlocutor. Ao
menos é o que indicam as suas cartas quando manifesta seus sentimentos, por
exemplo, sobre o falecimento do professor Preuss, “um dos nossos melhores”
segundo Baldus em sua carta de 7 de novembro de 1938, e sobre o falecimento
do americanista Snethlage “uma vítima dessa guerra nojenta” sentenciou
Baldus em sua carta de 26 de abril de 1940. Fez ainda o seguinte adendo: “Ele
tinha se tornado pai há pouco tempo e, assim como eu, não era uma pessoa de
orientação nazista” (cf. Welper, 2019, p. 113).38
Da correspondência entre Nimuendajú e Baldus, Eduardo Viveiros de Castro já chamou atenção para a sua assimetria.39 Uma espécie de dívida simbólica do segundo para com o primeiro pode ser uma das razões para Baldus ter
buscado quase sempre encontrar meios de recompensar o amigo mais velho e
mais experiente. Se não tinha capital econômico para amenizar as dificuldades financeiras de Nimuendajú, Baldus mobilizou diversas vezes o seu capital
social. Em carta datada de 19 de fevereiro de 1943, Baldus propôs uma publicação de mitos inéditos recolhidos por Nimuendajú. “Com os meus amigos da
Companhia da Editora Nacional, posso facilmente arranjar a publicação, e, principalmente, também o pagamento adiantado logo que o manuscrito estiver aqui”
(cf. Welper, 2019, p. 144).40 Na mesma carta, o remetente informava ao seu destinatário que poderia obter com o seu amigo Carlos Estevão o aval para uma
37 Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 5 de fevereiro de 1937.
38 Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 26 de abril de 1940.
39 Ver texto de Eduardo Viveiros de Castro publicado na orelha do livro Chamada da selva: correspondência entre Curt Nimuendajú e Herbert Baldus (Welper, 2019).
40 Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 19 de fevereiro de 1943.
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tradução e publicação da monografia sobre os Apinayé na série Brasiliana, da
Companhia da Editora Nacional, e arranjar ainda a publicação paga de um artigo
de autoria de Nimuendajú para a revista Sociologia. Baldus escreveu ao seu interlocutor: “Esta revista tem uma seção etnológica dirigida por mim na qual já aparecem trabalhos de Wagley, Thurnwald e outros, e eu ficaria contentíssimo se o
amigo honrasse esta seção com a sua colaboração” (cf. Welper, 2019, p. 144).41
Em carta datada de 6 de abril de 1945, Baldus propôs ao seu amigo um projeto de pesquisa etnográfica no território do rio Branco, onde havia uma missão
da ordem dos beneditinos. A missão tinha em vista receber 20 mil dólares dos
Estados Unidos nos próximos anos. O remetente ponderou sobre os limites do
projeto: “Eu, por mim, não gosto de ser pioneiro de padres ou de qualquer outra
espécie de ‘civilizadores’, mas talvez a gente possa ser mais útil aos índios, elaborando alguma coisa em vez de nos abstermos” (cf. Welper, 2019, p. 201).42
Nimuendajú faleceu em dezembro de 1945 em circunstâncias que deram
margem para diferentes versões sobre as causas da sua morte. No ano seguinte,
Baldus assumiu a direção da seção de etnologia do Museu Paulista. Desde
então, a cátedra de etnologia e as novas funções no Museu Paulista demandavam considerável tempo de Baldus, que se via cada vez mais impedido de
voltar ao trabalho de campo. Nos anos seguintes, ele continuou a defender uma
antropologia aplicada, uma “etnografia de salvamento” e um indigenismo fiel
aos princípios de Rondon e Nimuendajú. Por outro lado, algumas ambiguidades continuaram em sua política editorial na sessão de etnologia que dirigia na
revista Sociologia e na sua direção da Revista do Museu Paulista, como também
na sua correspondência em alemão, notadamente com Richard Thurnwald.
A mediação de Baldus na divulgação científica da etnologia
alemã
Nas décadas de 1930 e 1940, pesquisadores dos Estados Unidos e da França, mas
também da Alemanha, tiveram uma supina importância na formação de uma
primeira geração de cientistas sociais no Brasil (Corrêa, 1987; Villas Boas, 1997).
41 Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 19 de fevereiro de 1943.
42 Carta de Herbert Baldus para Curt Nimuendajú, São Paulo, 6 de abril de 1945.
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A mediação seletiva de Herbert Baldus entre etnologia alemã e antropologia brasileira
Entre as primeiras instituições de ensino superior, destacou-se a Escola Livre
de Sociologia e Política de São Paulo, onde os alemães Herbert Baldus e Emilio
Willems atuaram entre outros docentes estrangeiros como Melville Herskovits,
Donald Pierson, Claude Lévi-Strauss e Roger Bastide. No Brasil, Herbert Baldus
procurou seguir os passos do seu mestre Richard Thurnwald. A sua devoção
como discípulo de Thurnwald já se encontra no seu primeiro trabalho intitulado Estudos dos índios do nordeste do Chaco (Indianerstudien im nordöstlichen
Chaco), no qual Baldus (1931) faz um agradecimento ao seu professor de Berlim
e editor da revista onde foi publicado o referido trabalho.
Richard Thurnwald era pouco conhecido entre os intelectuais brasileiros
do entre-guerras. Gilberto Freyre (1999, p. 166) lhe fez uma pequena referência em nota de rodapé de Casa-Grande e senzala. A chamada etnossociologia de
Thurnwald teria um impacto na primeira geração formada pela Escola Livre de
Sociologia e Política de São Paulo pela mediação dos alemães Baldus e Willems.
Ambos estudaram em Berlim e tinham em elevado apreço os ensinamentos
do mestre. Em 1939, Baldus e Willems publicaram o Dicionário de etnologia e
sociologia (Baldus; Willems, 1939), no qual 30 verbetes se referem à etnossociologia de Thurnwald. Emilio Willems traduziu ainda parte da obra A sociedade humana e seus fundamentos etno-sociológicos (Die menschliche Gesellschaft
in ihren ethno-soziologischen Grundlagen) que foi publicada na revista Sociologia
em 1941, cuja sessão etnológica estava sob a direção de Baldus.
A tradução e publicação de Thurnwald no Brasil foi útil tanto para a geração
de Francisco José de Oliveira Viana (1999), como demonstra seu livro Instituições políticas brasileiras, de 1949, quanto para uma nova geração de etnólogos
e sociólogos brasileiros. Em seu livro Lutas de famílias no Brasil, de 1949, Luiz
Aguiar Costa Pinto (1980) baseou-se na etnologia jurídica de Thurnwald. A tese
de Florestan Fernandes (1989) sobre a organização social dos Tupinambá apresenta algumas ideias que remetem à etnossociologia de Thurnwald. No prefácio de Baldus (1989, p. 12) ao primeiro livro de Florestan Fernandes, de 1949, ele
afirmava que, “como discípulo do etno-sociólogo Richard Thurnwald”, procurava incutir nos alunos os ensinamentos do mestre.
Acontece que Richard Thurnwald esteve comprometido com o colonialismo
e, depois, com o nazismo (Dedryvère, 2018; Trautmann-Waller, 2020). Enquanto
muitos cientistas alemães emigraram da Alemanha (König, 1981; Papcke, 1997),
Thurnwald deixou os Estados Unidos e retornou para a Alemanha em 1936.
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É verdade que ele tinha quase 67 anos, o que dificultava a sua inserção profissional em instituição de ensino ou pesquisa no exterior. Mas o seu retorno à
Alemanha não foi nada seguro. No campo científico da etnologia, antropologia e sociologia alemãs, ocorria a nazificação (Gerndt, 1987; Klingemann, 1996;
Michel, 1991).
Em 1937, o artigo de Thurnwald, intitulado “Die Kolonialfrage” (Thurnwald,
1937), atualizava certas opiniões que ele defendera nas primeiras décadas do
século XX.43 Esse artigo foi visto como prova de “sua boa-fé” quando ele se inscreveu para novo ingresso na Universidade de Berlim. No entanto, sua reintegração foi rejeitada pelo chefe da associação de professores nazistas daquela
universidade, para quem Thurnwald não era “um nacional-socialista em termos políticos”. Foi o reitor da Universidade de Berlim, Eugen Fischer, quem
apoiou a sua reintegração (Steinmetz, 2010, p. 25). Eugen Fischer havia conduzido pesquisas na colônia alemã do sudoeste africano (hoje Namíbia). Seu
trabalho sobre a degeneração dos “bastardos de Rehoboth” apareceu em 1913
(Fischer, E., 1913). Foi ele também quem apoiou a esterilização daqueles que
ele chamava de “bastardos da Renânia” em meados da década de 1930. Cabe
ainda lembrar que era Fischer o presidente da Berliner Gesellschaft für Anthropologie, Ethnologie und Urgeschichte quando a indicação do nome de Baldus
foi recusada em 1934. Em 1936, Thurnwald foi renomeado para o seu cargo na
Universidade de Berlim pelas mãos do reitor e professor Eugen Fischer.
No final da década de 1930, Thurnwald se viu em posição sem grande prestígio no círculo de Berlim e sua margem de manobra se tornaria cada vez mais
estreita. Seus anos sombrios (1937-1945) guardam alguns pontos obscuros na
história da etnologia e da sociologia na Alemanha do Terceiro Reich. Os estudos sobre o campo científico durante o nazismo têm trazido a lume as contradições e as ambiguidades de alguns professores alemães como Thurnwald
(Fischer, H., 1990; Gerndt, 1987; Klingemann, 1996; Melck-Koch, 1989; Steinmetz,
2010; Trautmann-Waller, 2011). Thurnwald chegou a ser membro do Partido
Nazista em 1940 (Steinmetz, 2010, p. 19). Em 1940, cinco entre sete professores catedráticos de etnologia (Baumann, Heydrich, Plischke, Reche e Struck)
43 Em 1905, Thurnwald fundara com Alfred Ploetz e Ernst Rüdin a Sociedade para a Higiene Racial
(Gesellschaft für Rassenhygiene). Thurnwald foi também um dos editores do periódico Archiv für
Rassen- und Gesellschafts-Biologie.
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A mediação seletiva de Herbert Baldus entre etnologia alemã e antropologia brasileira
estavam ativamente engajados no apoio ao Partido Nazista (Conte; Essner,
1994, p. 151-152). Em 1946, Richard Thurnwald se tornou professor honorário aos
77 anos. Apesar de sua reintegração na Universidade de Berlim em 1936, ele não
seria professor honorário até o fim da guerra. Isso pode ter sido um ponto a seu
favor durante a desnazificação. Nos anos do pós-guerra, o septuagenário procurou refundar a etnologia alemã (Trautmann-Waller, 2011, p. 208). Nesse período,
Thurnwald retomou a correspondência com Baldus. Porém, Baldus ignorava,
provavelmente, algumas atitudes políticas do seu mestre entre 1937 e 1945.
Com o início da guerra, a situação política para os imigrantes de origem
alemã era pouco segura no Brasil. No caso de Baldus, a nacionalidade brasileira
foi concedida em 1941. Desde 1939, Baldus não media esforços para divulgar a
etnossociologia de Thurnwald, que, por ser mais próxima da escola anglo-saxã,
não parecia representar um problema. Ao mesmo tempo, Baldus procurava convergir a “etnografia de salvamento” com o indigenismo numa espécie de antropologia aplicada. Sua grande inspiração era Curt Nimuendajú, para quem dedicou
o seu livro Ensaios de etnologia brasileira, publicado em 1937 (Baldus, 1937).
Para Baldus (1939, p. 141), o etnólogo desempenha um papel significativo,
pois “o destino de povos inteiros depende exclusivamente dele”. Acrescentou ainda: “Necessitamos de auxílio e considerando o tamanho do Brasil e a
natureza da obra a fazer cabe pedir o auxílio do governo” (Baldus, 1939, p. 150).
Baldus apostava numa assimilação dirigida pela ciência, pois, desde a criação do
Serviço de Proteção aos Índios (SPI), a política indigenista não havia evitado o
aumento dos conflitos e da apropriação de terras indígenas. Embora os temas de
contato, aculturação e assimilação estivessem entre seus interesses de pesquisa,
Baldus parecia ignorar os trabalhos de Thurnwald (1929, 1932, 1935, 1936) que tratavam da África colonial. Em outros textos, Thurnwald desenvolveu uma reflexão sobre a política colonial do Terceiro Reich; suas análises se estruturaram
cada vez mais em torno da terminologia nazista e chegou a propor um plano de
segregação racial para a África (Linne, 2008, p. 63; Steinmetz, 2010, p. 28).
Richard Thurnwald apresentou um relatório sobre a questão do trabalho
indígena na África à Secretaria dos Assuntos Coloniais do Terceiro Reich em
11 de julho de 1938 (Thurnwald, 1938). Nesse relatório, a questão do trabalho
indígena estava ligada à questão racial. A partir da experiência colonial de
outros impérios, ele defendeu uma separação dos “espaços de vida” de brancos
e negros (Timm, 1977). Ainda em seu relatório, Thurnwald (1938, p. 24) sugere
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que os negros poderiam ser integrados por meio de seu trabalho em uma
grande comunidade alemã ultramarina, o que dava azo ao projeto de colonização alemã da África. Esse relatório de 1938 tem algo em comum com o seu
pleito de 1912 por uma etnologia aplicada dentro da estrutura do colonialismo
(cf. Thurnwald, 1912).
Com o fim da Segunda Guerra Mundial e a derrocada do nazifascismo,
começa uma nova etapa nas ciências sociais. Durante uma conferência realizada em Berlim no verão de 1947, o professor Thurnwald (1948) deplorou que
a reputação da etnologia tenha sido prejudicada pela suspeita de que servia à
política colonial. Como outros de sua geração, Thurnwald procurava se proteger de eventuais ataques relacionados à instrumentalização da etnologia pelo
colonialismo e pelo nazismo.
No Brasil do pós-guerra, a antropologia e outras disciplinas ampliam o
intercâmbio internacional com suas congêneres nos Estados Unidos e na
França. Com a Alemanha, os contatos na área das ciências humanas foram
poucos e mitigados. Havia, no entanto, uma longa tradição de americanistas
alemães (Karl von den Steinen, Paul Ehrenreich, Max Schmidt, Fritz Krause e
Theodor Koch-Grünberg). Cabe lembrar ainda a importância de Curt Nimuendajú para a etnologia e a antropologia brasileiras (Welper, 2002).
Entre os “intérpretes do Brasil”, Sérgio Buarque de Holanda foi um dos
que mais se interessou pela etnografia alemã (Françozo, 2007). Em sua biblioteca havia uma gama de títulos de etnólogos alemães, inclusive de Richard
Thurnwald. O prefácio de Sérgio Buarque de Holanda (1980, p. 30) ao livro
Memórias de um colono no Brasil (1850), do imigrante suíço Thomaz Davatz,
trazia em nota de rodapé uma referência ao livro Koloniale Gestaltung, de
Thurnwald (1939a).
Na introdução do livro, Thurnwald (1939a, p. 15) afirmou que a “Alemanha se
encontrou novamente sob a conduta [Führung] do nacional-socialismo.” Como
ressaltou Rudolf Karlowa (1939, p. 373) em sua resenha sobre o livro Koloniale
Gestaltung, o autor apresenta os princípios de uma estrutura colonial “como deve
ser buscada na construção nacional-socialista de colônias” em contraste com
“os métodos e caminhos errados das democracias ocidentais”. Um leitor como
Sérgio Buarque de Holanda não podia se enganar sobre o conteúdo desse livro
de Thurnwald que tratava tanto da política colonial alemã do passado quanto
das reivindicações alemãs para reaver suas colônias durante o Terceiro Reich.
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A mediação seletiva de Herbert Baldus entre etnologia alemã e antropologia brasileira
Sérgio Buarque de Holanda tinha também um exemplar do Manual de etnologia (Lehrbuch der Völkerkunde, Thurnwald, 1939b).44 Esse livro tinha sido alvo
de uma crítica virulenta de Walter Krickeberg em 1937. Na biblioteca do professor da USP, havia ainda um exemplar de Methodik der Völkerkunde (Mühlmann,
1938), publicado em 1938.45 Esses exemplos mostram que o historiador paulista
conhecia os trabalhos de Thurnwald, Preuss, Mühlmann, Krickeberg, entre
outros etnólogos alemães.
Ao assumir a direção do Museu Paulista em 1946, o autor de Raízes do Brasil
confiou a nova seção de etnologia ao etnólogo Herbert Baldus, que, por sua vez,
recebeu a incumbência de dirigir a Revista do Museu Paulista.46 Os dois homens
já se conheciam e uma longa amizade se desenvolveu desde 1946. Segundo
Antônio Cândido, ele costumava encontrar com frequência Herbert Baldus na
casa de Sérgio Buarque de Holanda (Passador, 2002, p. 195-196).
Como explicar, então, que Baldus nunca escreveu uma linha sobre o projeto
de apartheid proposto por Thurnwald (1939), uma vez que o livro Koloniale Gestaltung estava ao alcance de suas mãos na biblioteca do seu amigo e diretor do
Museu Paulista? Para seus colegas e alunos, Baldus era um homem “humanista”
e “liberal” (Passador, 2002, p. 174). Assim como Sérgio Buarque de Holanda,
Baldus era um antifascista. Ao mesmo tempo, algumas cartas de Baldus contêm certos silêncios que permitem melhor compreender a difícil situação nos
anos de guerra e os dilemas de certos “homens de ciência”. Os trabalhos de
Thurnwald que Willems e Baldus divulgaram em suas aulas ou que traduziram e publicaram no Brasil eram trabalhos de síntese. Baldus contornou assim
alguns trabalhos que poderiam questionar uma eventual instrumentalização
política da etnossociologia do seu mestre.
Baldus era contra a ideia de segregação racial e favorável a uma nova política indigenista no sentido de uma “colonização pacífica”. Segundo ele, era o
etnólogo quem deveria indicar quando acelerar a assimilação dos grupos indígenas, já que quem não podia mais viver “sem calças e sem cachaça” exigia uma
rápida assimilação (Baldus, 1939, p. 147).
44 Ver http://acervus.unicamp.br/index.asp?codigo_sophia=235935.
45 Ver http://acervus.unicamp.br/index.asp?codigo_sophia=249419.
46 Cópia do contrato de Baldus encontra-se no Arquivo do Museu Paulista. AMP/Set-Dez.1946.
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A convicção de Baldus sobre o poder do etnólogo exala hoje certa arrogância científica e sinaliza uma contradição. Segundo ele, a etnologia aplicada se
traduzia em ação indigenista, enquanto a etnologia pura ou teórica poderia ser
feita sem qualquer vínculo com a política. Portanto, aqui está uma parte da
resposta às escolhas de Baldus quando ele publica algumas contribuições de
etnólogos comprometidos com o nazismo ou simpatizantes do fascismo.
Após 25 anos à frente da seção de etnologia do Museu Paulista, Baldus fez
uma avaliação crítica da ação indigenista em três partes: proteção, pacificação
e aculturação dirigida. Apesar dos esforços do Serviço de Proteção aos Índios
e missões religiosas, vários grupos indígenas se encontravam isolados, vulneráveis e ameaçados de extermínio. Suas críticas ecoaram as do ex-diretor do
SPI, José Maria da Gama Malcher, e se alinhavam às palavras de Darcy Ribeiro
apresentadas no IV Congresso Indígena Interamericano, realizado no México
em 1960 (Baldus, 1962, p. 37-38).
Como democrata e liberal, Baldus se opôs a toda discriminação racial. Em discurso como presidente da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) em 1963,
Baldus deplorou as afirmações racistas e destacou que, em um país com milhões
de negros como o Brasil, muitas vezes são eles que ensinam aos outros o que é
humanitarismo. Segundo Baldus, os corifeus da ideologia racista “já são fósseis
para nós e não merecem controvérsia” (Baldus, 1963, apud Passador, 2002, p. 173).
No mesmo discurso, o presidente da ABA reconheceu que racistas tinham os
seus representantes “na Alemanha hitlerista” até “entre os antropólogos profissionais de bastante renome” (Baldus, 1963, apud Passador, 2002, p. 173). Tal fato
exigiu, provavelmente, de Baldus um maior cuidado em seus contatos com seus
pares alemães e para fazer escolhas na hora de divulgar o trabalho deles por meio
de traduções e publicações. Como apontou Orlando Sampaio-Silva (2000, p. 36):
Nota-se em Baldus interesse especial pelos autores de língua alemã, particularmente os alemães que contribuíram para o conhecimento dos índios do Brasil,
com ensaios em língua germânica, como se percebe em seu trabalho “Beiträge in
deutscher Sprache zur Indianerforschung in Brasilien (1954-1958)”.
Com ênfase na correspondência em alemão de Herbert Baldus com Richard Thurnwald entre 1947 e 1953 e nos artigos publicados em periódicos, como a revista
Sociologia ou a Revista do Museu Paulista, percebe-se uma certa ambiguidade na
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A mediação seletiva de Herbert Baldus entre etnologia alemã e antropologia brasileira
mediação de Baldus, notadamente no que tange à relação entre ciência e política. A seguir, procuro discutir como etnólogos estrangeiros envolvidos com o
nazismo tiveram o aval de Herbert Baldus para publicação de seus artigos ou
resenhas de seus trabalhos em periódicos científicos dos meados do século XX.
Evidências de ambiguidades
Fundado em 1895, o Museu Paulista teve como primeiro diretor o naturalista
alemão Hermann von Ihering, que criou a Revista do Museu Paulista (RMP). Sob
a sua direção, o periódico espelhou a ênfase dada por ele à história natural da
América do Sul e da qual os “povos da natureza” (“Naturvölker”) faziam parte,
segundo a etnologia (Völkerkunde) em voga na Alemanha e da qual Hermann
von Ihering era um dos seus representantes no Brasil. Segundo Baldus (1949,
p. 169), “sua dedicação ao estudo não só da fauna, mas também do índio, refletia-se igualmente na Revista do Museu Paulista, fundada por ele em 1895”.
Entre 1917 e 1945, o historiador Afonso d’Escragnolle Taunay foi o segundo
diretor do Museu Paulista. Sob as suas diretivas houve uma série de mudanças
na instituição, inclusive no seu periódico. Uma nova fase da RMP iniciou após
a contratação de Herbert Baldus para a seção de etnologia. Como lembrou o
próprio Baldus (1949, p. 170):
Mas, quando o autor de “Raízes do Brasil” me confiou, com a chefia da nova
secção, a direção de seu órgão, lembrei-me que havia uma tradição a respeitar.
Na lista das revistas etnológicas do mundo inteiro, inserta no “Lehrbuch der
Völkerkunde” de K. Th. Preuss, o Brasil é representado por três, sendo duas do
Museu Nacional e, uma, a “Revista do Museu Paulista”.
Herbert Baldus tinha plena consciência que era preciso “conservar um nome
já consagrado no mundo internacional dos etnólogos”. Ao mesmo tempo, ele
inaugurou uma nova série da RMP. Desde o primeiro volume da nova série, a
presença de americanistas alemães foi uma constante na RMP sob a direção de
Baldus. O novo cargo no Museu Paulista foi para ele uma ocasião para recompor
e ampliar a sua rede de contatos profissionais com ex-professores e colegas alemães. As cartas em alemão do diretor da RMP revelam a sua preocupação com o
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passado nazista de alguns nomes de potenciais colaboradores. Apesar das informações solicitadas e recebidas sobre o passado nazista de outrem, Baldus publicou na RMP alguns trabalhos de americanistas que estiveram comprometidos
com o regime nazista ou que foram simpatizantes do fascismo italiano.
Na direção da RMP, Baldus procurou ampliar o reconhecimento nacional e
internacional do periódico. Para isso, convidou colaboradores internacionais,
inclusive americanistas alemães. Entre 1947 e 1952, a RMP publicou alguns artigos de americanistas alemães como Max Schmidt e Fritz Krause. Esse período
pós-guerra foi marcado por uma certa reserva em nível internacional a despeito
da desnazificação de alguns cientistas alemães. Muitos cientistas e intelectuais tinham deixado a Alemanha nazista (König, 1981; Papcke, 1997). Quem havia
permanecido era suspeito, ainda mais que muitos passaram incólumes pela
malha da desnazificação, como Eugen Fischer e Otmar von Verschuer. Entre os
da geração de Herbert Baldus, Wilhelm Emil Mühlmann e Walter Krickeberg
foram absolvidos de qualquer responsabilidade, enquanto Fritz Krause perdera
alguns direitos, inclusive de docência.
Herbert Baldus sabia da posição nazista de alguns etnólogos alemães devido
às informações contidas nas cartas de alguns remetentes como os professores
Konrad Theodor Preuss e Richard Thurnwald. Algumas informações sobre o passado nazista de um ou outro chegaram após o fim da guerra quando a correspondência entre Baldus e Thurnwald foi retomada com regularidade entre 1947 e 1953.
No pós-guerra, Thurnwald lamentava a situação miserável de Berlim ocupada pelos aliados. Em sua carta datada de 12 de julho de 1947, Thurnwald agradeceu um pacote enviado por Baldus – Thurnwald usou a sigla da Cooperative
for American Remittances to Europe em inglês com a palavra pacote (Paket)
em alemão, como ficou chamado na época (“CARE-Paket”).47 Dias mais tarde,
em nova missiva, Thurnwald tratou dos honorários de uma publicação que
podiam ser convertidos em alimentos. Sugeriu frutas secas, chocolate e outros
doces, já que quase não se encontram frutas em Berlim.48 Em sua carta de 2 de
novembro de 1948, Thurnwald deplorava a sua situação: “Vivemos aqui como
47 Carta de Richard Thurnwald a Herbert Baldus, Berlim, 12 de julho de 1947. AMP/P20: Série:
Correspondência (1946-1949).
48 Carta de Richard Thurnwald a Herbert Baldus, Berlim, 24 de julho de 1947. AMP/P20: Série:
Correspondência (1946-1949).
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A mediação seletiva de Herbert Baldus entre etnologia alemã e antropologia brasileira
uma prisão”.49 Afirmou ainda que trabalhava em casa com a esposa em condições muito difíceis, pois os cortes diários de energia eram longos, sem falar
na falta de carvão para aquecimento. A miséria em Berlim era indescritível
e os berlinenses usavam roupas esfarrapadas, afirmou Thurnwald. Já Hilde
Thurnwald, em carta datada de 11 de março de 1949, relatava uma situação
menos lamentável do que a descrita por seu marido: “Meu marido e eu não
devemos reclamar. Em comparação com as condições médias, estamos indo
muito bem. Também temos um apartamento confortável e carvão suficiente”.50
A análise da correspondência de Baldus com o casal Thurnwald mostra que
os laços de amizade ficaram mais fortes depois do encontro deles nos Estados
Unidos em 1949. Para Baldus, Thurnwald não era apenas o mestre, mas também um conselheiro. Em carta datada de 7 de janeiro de 1950, ele pediu alguns
conselhos a Thurnwald, pois estava preocupado com o seu futuro e pensava em
retornar para a Alemanha. A resposta de Thurnwald não demorou a chegar. Em
20 de março de 1950, o mestre aconselhou o discípulo a ficar em São Paulo, ou
pelo menos no hemisfério sul.51
Além da amizade entre os dois homens, a correspondência demonstra suas
trocas intelectuais. Periódicos científicos, artigos ou livros eram enviados de
um para o outro e teve início um trabalho em parceria para a revista Sociologus,
cujo editor era Thurnwald.52 Em 22 de fevereiro de 1951, Thurnwald pediu a seu
amigo no Brasil alguns nomes de pesquisadores que poderiam contribuir para
a revista. Baldus respondeu em carta de 1º de março de 1951. Ele deu algumas
sugestões para nomes de pesquisadores na América do Sul, como o naturalista
49 No original: “Wir leben hier wie in einem Gefängnis”. Carta de Richard Thurnwald a Herbert
Baldus, Berlim, 2 de novembro de 1948. AMP/P20: Série: Correspondência (1946-1949).
50 Carta de Hilde Thurnwald a Herbert Baldus, Berlim, 11 de março de 1949. AMP/P20: Série: Correspondência (1946-1949).
51 Carta de Richard Thurnwald a Herbert Baldus, Berlim, 20 de março de 1950. AMP/P21: Série:
Correspondência (1950-1952).
52 Richard Thurnwald fundou a Zeitschrift für Völker-Psychologie und Soziologie em 1925. Posteriormente, a revista mudou o seu nome para Sociologus, Zeitschrift für empirische Soziologie, Sozialpsychologische und ethnologische Forschung. Artigo de Baldus foi publicado na primeira edição de
Sociologus do pós-guerra. Para a sua revista, Thurnwald contou com a colaboração de Herbert
Baldus (São Paulo, Brasil), Wolfram Eberhard (Berkeley, Estados Unidos), Douglas G. Haring
(Syracusa, Estados Unidos), A. L. Kroeber (Nova York, Estados Unidos), F. Rudolf Lehmann
(Potchefstroom, África do Sul), Günter Wagner (Windhoek, sob supervisão da África do Sul),
Ernst Wahle (Heidelberg, Alemanha) e Diedrich Westermann (Baden em Bremen, Alemanha).
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e antropólogo italiano José Imbelloni, diretor do Museu Etnográfico de Buenos
Aires, e conhecido como “fascista, germanófilo e americanofóbico”.53 Embora
se encontrassem “alguns disparates” em seus escritos, o nome de Imbelloni foi
indicado por Baldus. Por seu turno, Emilio Willems (1945) referia-se, sem constrangimentos, aos trabalhos de Imbelloni em seu artigo sobre antropologia física.
No pós-guerra, o “fascista” José Imbelloni teve artigos publicados na Revista
de Antropologia (Imbelloni, 1953) e na Revista do Museu Paulista (Imbelloni,
1956-1958). Na primeira, o editor era o antropólogo Egon Schaden, discípulo de
Baldus, e na segunda, o próprio Baldus. O editor da RMP esteve suficientemente informado sobre o passado nazista ou fascista de quem ele convidava
para colaborar em periódicos sob a sua direção ou dos quais era membro do
conselho editorial e/ou científico. Ao menos, a correspondência dele com
Thurnwald revela a troca de informações sobre as atitudes políticas de terceiros.
Em uma carta datada de 17 de fevereiro de 1948, Baldus respondeu ao pedido
de Thurnwald sobre um certo Mayntzhusen. Thurnwald havia recebido um
manuscrito de Mayntzhusen, de quem Baldus fez um retrato nada lisonjeiro.
Apesar de Mayntzhusen ser um “nazista selvagem” (“wilder Nazi”), Baldus deu
parecer favorável para publicação do seu manuscrito, pois seria, sem dúvida,
uma importante contribuição para “nossa ciência”.54
Em carta de 18 de setembro de 1948, Baldus informava que desejava ajudar Martin Haetinger, um imigrante alemão que se apresentou como um ex-aluno de Thurnwald. Baldus pediu ao seu mestre algumas informações sobre
a sua habilidade científica e a sua atitude política. Em 24 de novembro de 1948,
Thurnwald respondeu dizendo que Haetinger havia feito uma boa tese e que
tinha pontos fortes. Ainda assim, Thurnwald suspeitava que Haetinger estivesse entre os “seguidores” (“Mitläufern”) do regime nazista. Ele advertiu que
Haetinger não foi um ativista como Mühlmann, autor de livros de propaganda
nazista e que buscava, agora, redimir-se.55
53 No original: “Faschist, Deutschenfreund und Hasser der Nordamerikaner”. Carta de Herbert
Baldus a Richard Thurnwald, São Paulo, 1o de março de 1951. AMP/P21: Série: Correspondência
(1950-1952).
54 Carta de Herbert Baldus a Richard Thurnwald, São Paulo, 17 de fevereiro de 1948. AMP/P20:
Série: Correspondência (1946-1949).
55 Carta de Richard Thurnwald a Herbert Baldus, Berlim, 24 de novembro de 1948. AMP/P20: Série:
Correspondência (1946-1949).
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A mediação seletiva de Herbert Baldus entre etnologia alemã e antropologia brasileira
Em carta de 1º de fevereiro de 1949, Baldus agradeceu a Thurnwald pelas
informações sobre Haetinger e perguntou novamente sobre a atitude política
do professor Franz Termer durante o período nazista. Baldus desconfiava que
Termer recomendara Haetinger para protegê-lo e que nisso haveria uma simpatia ideológica entre o professor e o seu assistente. Thurnwald admitiu que
não sabia se Termer era nazista em sua carta datada de 11 de março de 1949,
mas acrescentou que Termer contratou Haetinger e outro nazista no Museu de
Etnologia de Hamburgo. Thurnwald ponderou que algumas pessoas estavam
em uma posição difícil naquela época. Ele afirmou que ele próprio deixou Berlim quando se viu na mira do africanista Heinz Sölken. Além disso, ele deplorava a permanência no meio acadêmico de alguns “senhores desnazificados”.56
Thurnwald não deu nomes, mas, provavelmente, estava pensando, entre outros,
em Walter Krickeberg e Wilhelm Mühlmann.
Em 18 de julho de 1947, durante uma reunião para a retomada da Berliner
Gesellschaft für Anthropologie, Ethnologie und Urgeschichte, Thurnwald se
opôs à inclusão do nome de Krickeberg na lista dos membros fundadores por
ser um “nazista”. Krickeberg não estava presente na reunião, mas escreveu ao
seu detrator e exigiu uma retratação de Thurnwald, caso contrário, ele entraria com um recurso contra Thurnwald. A relação entre os dois homens era
tensa desde os ataques de Krickeberg ao livro de etnologia editado por Konrad
Theodor Preuss.57
Na altura, Thurnwald foi acusado de fazer uma etnologia insuficientemente
“ariana” e de ter publicado em sua revista artigos de autores judeus. Outra diatribe envolveu Krickeberg, Baumann e Thurnwald. Este último não abordou o
seu acerto de contas com Krickeberg em sua correspondência com Baldus. Ao
seu discípulo no Brasil, compartilhou outros desafetos, como o seu ressentimento em relação a Mühlmann, seu ex-aluno, e que também havia se envolvido
na diatribe iniciada por Krickeberg em 1937.
Em 1937, Herbert Baldus (1937) publicou Ensaios de etnologia brasileira, com
prefácio de Affonso de E. Taunay, então diretor do Museu Paulista. Nesses
56 Carta de Richard Thurnwald a Herbert Baldus, Berlim, 11 de março de 1949. AMP/P20: Série:
Correspondência (1946-1949).
57 Para mais detalhes sobre a denúncia de Krickeberg e sua diatribe com Thurnwald, veja o capítulo 5 da tese de Norbert Díaz de Arce (2005, p. 153-181).
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ensaios pululam as referências aos americanistas alemães. Contudo, não há
nenhuma referência ao nome de Walter Krickeberg. Talvez a ausência de qualquer referência tenha a ver com a hostilidade de Krickeberg e pelo fato de ele
ter acusado Baldus de ser comunista e um inimigo da Alemanha. Apesar disso,
Baldus procurou separar política de ciência durante os anos de guerra, mas
também no pós-guerra. No Dicionário de Etnologia e Sociologia, organizado por
Baldus e Willems (1939) e publicado em 1939, o nome de Krickeberg aparece
relacionado a três verbetes. Na introdução de sua Bibliografia crítica da etnologia brasileira, Baldus (1954a, p. 17) ainda reservou um lugar importante para
Krickeberg entre aqueles que, depois de Martius e Ehrenreich, procuraram sintetizar o material a respeito da etnologia brasileira.
Outro nome que aparece na correspondência entre Baldus e Thurnwald é o
do americanista alemão Fritz Krause. Desde 1944, Krause não trabalhava mais
no Museu de Etnologia de Leipzig. Devido ao processo de desnazificação, ele foi
demitido dos serviços públicos por causa do seu passado nazista. Ele também
perdeu a sua licença para ensinar.
Em 1952, dois artigos de Fritz Krause foram publicados na Revista do Museu
Paulista. Sérgio Buarque de Holanda traduziu os dois artigos. O primeiro artigo
tratou da alcova de parto entre os Bakairi, do qual a principal fonte foi o caderno
de esboços de Wilhelm von den Steinen durante a segunda expedição de seu
primo Karl von den Steinen ao Brasil entre 1887 e 1888. O outro artigo foi sobre
tatuagem de unhas entre os Yamarikumá, do qual as fontes foram o diário de viagem e um esboço de Herrmann Meyer durante sua expedição ao Brasil em 1896.
O diretor da RMP foi informado por Richard Thurnwald que Fritz Krause
era um nazista em sua carta datada de 3 de dezembro de 1947. Nessa carta, o
remetente informou que Fritz Krause estava em dificuldades por ter sido um
membro do partido (Parteigenosse), assim como Wilhelm Emil Mühlmann.
Thurnwald ressaltou que Krause não seguiu os nazistas por muito tempo,
enquanto Mühlmann era autor de um livro de propaganda.58
Os dois trabalhos de Krause publicados na RMP em 1952 demonstram que
Baldus e Holanda não se preocuparam, respectivamente, em publicar e traduzir a obra de um etnólogo que se comprometera com o Terceiro Reich. Essas
58 Carta de Richard Thurnwald a Herbert Baldus, Berlim, 3 de dezembro de 1947. AMP/P20: Série:
Correspondência (1946-1949).
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A mediação seletiva de Herbert Baldus entre etnologia alemã e antropologia brasileira
traduções e publicações permitem, outrossim, compreender uma visão nada
naïve da relação entre ciência e política.
Um outro trabalho de Fritz Krause foi publicado no Brasil durante a
Segunda Guerra Mundial, quando ele estava ainda a frente do Museu de Etnologia de Leipzig. Trata-se de “Nos sertões do Brasil” (In den Wildnissen Brasiliens),
obra traduzida por Egon Schaden e publicada em partes na Revista do Arquivo
Municipal entre 1940 e 1944 (ver, por exemplo, Krause, 1940a, 1940b, 1940c,
1940d). O original em alemão tinha sido publicado em Leipzig em 1911.
Ainda em 1960, um artigo de Fritz Krause sobre máscaras grandes do alto
Xingu, com 12 figuras e 8 pranchas fora do texto, foi publicado na RMP (Krause,
1960). Herbert Baldus sempre teve em conta o trabalho de Krause realizado nas
selvas brasileiras na primeira década do século XX. Assim como os seus tradutores (Egon Schaden e Sérgio Buarque de Holanda), Baldus preferiu guardar
silêncio sobre os anos sombrios de Fritz Krause. Por outro lado, o silêncio pode
indicar a capacidade de Baldus em perdoar. Cabe lembrar que o ato de perdoar
ou de ser perdoado não significa esquecer e pode ajudar a resolver ou amenizar
conflitos com si mesmo e com outrem. O perdão pode dar uma chance para um
novo começo. Mesmo que Krause tenha sido réu no processo de desnazificação
do pós-guerra, parece que Baldus preferia virar a página.
Nas cartas de Baldus do período do pós-guerra, percebe-se o seu interesse
pelo eventual envolvimento de americanistas alemães com o nazismo. Elas
contêm ainda indícios da faculdade de indulgência de Baldus para com alguns
de seus interlocutores alemães. Na correspondência entre Herbert Baldus e
Richard Thurnwald, encontra-se uma série de evidências da dificuldade de
ambos em lidar com o constrangimento do passado nazista de outrem. As
missivas de Thurnwald revelam ainda o seu cinismo, conquanto o seu silêncio sobre certas questões parece sintomático de uma atitude coletiva de parte
da população alemã do pós-guerra.59 Se Thurnwald não se privou de comentar
sobre a sorte dos outros em sua correspondência com Baldus, ele soube guardar
silêncio sobre os seus anos sombrios (1936-1945).
59 Durante uma estada na Alemanha do pós-guerra, o sociólogo americano Everett Cherrington
Hugues entrevistou alemães sobre temas como nazismo, racismo, campos de concentração,
a solução final, etc. Em artigo publicado mais tarde, Hugues (1962) tratou da relação entre
“boa gente” (“good people”) e “trabalho sujo” (“dirty work”) e na qual identificou uma atitude coletiva de certa cumplicidade dessa “boa gente” com quem tinha que fazer o “trabalho sujo”.
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Desde 1953, Herbert Baldus era o diretor do Museu Paulista da USP, cargo
que ocuparia até 1960 (Sampaio-Silva, 2000, p. 36). Também era o presidente
do comitê de organização do XXXI Congresso Internacional dos Americanistas, que foi realizado em São Paulo no mês de agosto de 1954. Desde 1953,
Baldus contava com a participação de Thurnwald no evento (Baldus, 1954b,
p. 51). A morte do mestre, em janeiro de 1954, deixou ao discípulo o consolo de
uma homenagem póstuma durante o seu discurso de abertura do supracitado
congresso em 23 de agosto de 1954 (Baldus, 1955); aliás, poucas horas antes do
suicídio de Getúlio Vargas.
Considerações finais
As escolhas de Baldus para a divulgação científica da etnologia alemã no Brasil
têm sido tratadas na antropologia brasileira sem levar muito em conta as suas
ambiguidades. Geralmente, a notória postura antifascista de Baldus e o seu
apego aos valores da democracia liberal inibem a crítica sobre as contradições
e os eventuais conflitos internos – e demasiadamente humanos – de alguém
que procurou separar política e ciência. Porém, Baldus se envolveu em intrigas em meados da década de 1930, sobre as quais a sua correspondência revela
algumas declarações graves.
Como mediador, Baldus conseguiu de alguma forma “adaptar” a etnologia
alemã em dois contextos brasileiros diferentes, ou seja, os anos do regime autoritário do Estado Novo (1937-1945) e os do período do pós-guerra. Se essa adaptação passou por certos filtros de leitura, tentando privilegiar os trabalhos de
síntese ou mais teóricos e contornar qualquer vestígio colonial ou nazista, cabe
questionar as motivações de Baldus – talvez mais pessoais e políticas do que
científicas – e suas repercussões na antropologia brasileira.
Assim como Curt Nimuendajú, Herbert Baldus foi um dos fundadores da
antropologia brasileira. Ambos organizaram e venderam coleções etnográficas
e seus respectivos legados em termos de produção intelectual representam
uma transição da tradição etnográfica alemã do século XIX para a moderna
antropologia dos meados do século XX. Contudo, a deontologia de suas práticas em trabalhos de campo, em venda de coleções, em publicação e na divulgação científica, tem sido tratada mais nas entrelinhas de alguns textos da
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A mediação seletiva de Herbert Baldus entre etnologia alemã e antropologia brasileira
antropologia (Françozo, 2007; Passador, 2002; Petschelies, 2019; Welper, 2016),
mesmo que alguns artigos da década de 1980 (Corrêa, 1988; DaMatta, 1985;
Taylor, 1984) já tenham discutido de forma mais crítica sobre a contribuição de
americanistas estrangeiros.
Atualmente, a chamada “descolonização dos museus” fomenta uma discussão sobre as formas possíveis de restituição de objetos etnográficos cuja
recolha foi feita à época dos impérios coloniais. Com base na documentação
dos museus e na correspondência dos colecionadores e curadores sobre as
expedições e as aquisições de coleções, novas pesquisas podem trazer à luz
muita informação sobre as formas de coleta e de aquisição de coleções “brasilianas” para museus estrangeiros desde Karl von den Steinen, Paul Ehrenreich,
Theodor Koch-Grünberg, Max Schmidt e Fritz Krause até Curt Nimuendajú e
Herbert Baldus. Nota-se que a recolha da maioria das coleções de etnologia
brasileira dos museus alemães foi realizada durante as primeiras décadas do
período republicano. Apesar disso, os métodos empregados e a deontologia dos
americanistas alemães não diferiam muito dos etnólogos africanistas que realizaram expedições durante o colonialismo. O que relatou Michel Leiris (1934)
sobre os métodos empregados na recolha de objetos pela missão etnográfica
Dakar-Djibouti (1931-1933), dirigida por Marcel Griaule, permite imaginar o que
pode também ter ocorrido durante as expedições de americanistas alemães no
Brasil. A atividade de colecionador de Baldus precisa ser ainda estudada.
A frustrada carreira literária de Baldus, a condição de expatriado, as dificuldades financeiras e as intrigas e as decepções da fase inicial de sua trajetória
profissional no Brasil podem ter interferido nas suas escolhas para divulgação
científica durante os anos de guerra e do pós-guerra. Nesse sentido, os afetos
e desafetos afirmam a dimensão humana das atividades de Baldus, sobretudo
na sua mediação seletiva da etnologia alemã no Brasil. As ambiguidades, os
silêncios, os ressentimentos e as contradições na correspondência em alemão
de Baldus devem ser contextualizados para lograr uma compreensão da contribuição e dos limites de uma geração de americanistas alemães na história da
antropologia brasileira.
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Referências
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biblio:baldus-1954-bibliografia. Acesso em: 20 mar. 2021.
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Recebido: 26/03/2021
Aceito: 1/7/2021
|
Received: 3/26/2021
Accepted: 7/1/2021
Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional
This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License.
Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 28, n. 62, p. 257-291, jan./abr. 2022
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Artigos
Articles
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71832022000100009
Shōgorō Tsuboi e o início da antropologia
japonesa
Shōgorō Tsuboi and the beginning of Japanese
anthropology
Silvia Reis I
https://orcid.org/0000-0003-2965-7834
sreis@mn.ufrj.br
I
Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 28, n. 62, p. 293-315, jan./abr. 2022
Silvia Reis
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Resumo
Shōgorō Tsuboi é considerado o principal fundador da antropologia japonesa, desenhando seu escopo inicial, promovendo e norteando a criação de uma comunidade
científica antropológica. Assim, neste artigo, a trajetória de Tsuboi é analisada, buscando compreender o início da antropologia no Japão. A atuação de Tsuboi também
reflete o contexto social e político da época, construindo uma carreira em meio ao tão
buscado diálogo com a academia ocidental e o recrudescimento da agenda nacionalista do Estado japonês.
Palavras-chave: antropologia japonesa; estudos japoneses; história da antropologia;
antropologia da ciência.
Abstract
Shōgorō Tsuboi is considered the main founder of Japanese anthropology, designing
its initial scope, promoting and guiding the creation of an anthropological scientific
community. Thus, in this article, Tsuboi’s trajectory is analyzed, seeking to understand
the beginning of anthropology in Japan. Tsuboi’s work also reflects the social and
political context of the time, building a career in the midst of the much sought after
dialogue with the Western academy and the resurgence of the nationalist agenda of
the Japanese state.
Keywords: Japanese anthropology; Japanese studies; history of anthropology; anthropology of science.
Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 28, n. 62, p. 293-315, jan./abr. 2022
Shōgorō Tsuboi e o início da antropologia japonesa
A antropologia como ciência foi construída inicialmente de forma eurocêntrica,
em uma relação dicotômica entre uma identidade entendida como ocidental
versus o Outro não ocidental. Apesar do reconhecimento das diversas antropologias no cenário atual, ainda encontramos algumas consideradas como periféricas. Barreiras linguísticas, diferentes perspectivas de divulgação e interação
podem ser consideradas para entender a persistência dessa prática. Todavia, é
necessário considerar em que medida há um certo conforto acadêmico em persistir enclausurado nos considerados centros intelectuais, seja como partícipe,
ou tendo-os como norte, ambos em uma relação assimétrica.
A antropologia brasileira, em certa medida considerada periférica, não
pode reproduzir essa relação dicotômica se objetiva se realizar de forma descolonizada. Assim, entre os diversos caminhos necessários, faz-se premente
dialogar com as diversas antropologias. Nesse viés, este artigo é uma pequena
contribuição, buscando analisar o início da antropologia no Japão a partir de
seu principal fundador, Shōgorō Tsuboi (1863-1913). Segundo Yamashita (2006),
a antropologia japonesa pode ser dividida em cinco períodos: 1884-1913, 19131934, 1934-1945, 1945-1964, 1964-presente. O primeiro é exatamente o período
de atuação de Tsuboi, sendo finalizado com seu falecimento precoce por uma
doença aguda durante o 5º Congresso da União Acadêmica Internacional, em
São Petersburgo, Rússia.
Reunindo os “Amigos da Antropologia”
A abertura proporcionada pela Restauração Meiji1 (1868), com o fim do xogunato, levou o Japão a entrar no cenário acadêmico internacional, estabelecendo
diversos contatos com diferentes universidades e museus pelo mundo, recebendo pesquisadores em suas recém-criadas universidades e enviando pesquisadores japoneses para estudo e treinamento no exterior. Foi no bojo desse
1
A Restauração Meiji foi uma reforma política que devolveu a centralização do poder para a
figura do imperador, o qual, durante o xogunato, se encontrava de fato nas mãos do xogum
(generalíssimo da classe guerreira). A Restauração deu início à abertura e, em certa medida, ocidentalização e modernização da sociedade japonesa, tendo como uma das diversas consequências, a reestruturação das classes sociais.
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intenso contato, dessa busca em se colocar como uma potência internacional,
em todos os sentidos, que a antropologia japonesa teve início.
Shōgorō Tsuboi é considerado o fundador da antropologia japonesa, tendo
iniciado seus estudos em biologia na Faculdade de Ciências da Universidade
de Tóquio em 1881, na qual foi apontado como assistente de pesquisa em 1888.
Ainda pela universidade, foi enviado em 1889 para Londres para estudar antropologia, passando os primeiros três meses em Paris. Durante os anos que esteve
em Londres, sabe-se que entrou em contato com Edward B. Tylor (1832-1917) e
Alfred C. Haddon (1855-1940). Em 1892, retornando ao Japão, foi apontado como
o primeiro professor de antropologia da Universidade de Tóquio (Kang, 2016;
Okamura, 2020; Omoto, 2018).
O interesse de Tsuboi pelos estudos antropológicos começou ainda como
aluno na universidade. Em 12 de outubro de 1884, Tsuboi fundou a Jinruigaku
no Tomo (じんるいがくのとも, Amigos da Antropologia), um grupo de pesquisa composto por colegas com o mesmo interesse em estudar antropologia.
Em pouco tempo, foi renomeado como Jinruigaku Kuwai (じんるいがくくわい,
Sociedade de Antropologia). Durante a atuação do grupo, foi publicada de
forma breve a revista Yori Ai no Kakitome, よりあひのかきとめ (Hasebe, 1939). Se
o grupo inicial no momento de fundação contava com poucas pessoas, em apenas dois anos atingiram a marca de mais de 200 associados (Low, 2012). Em
1886, foi criada a primeira Sociedade de Antropologia, Jinrui Gakkai (人類學會),
renomeada ainda no mesmo ano como Tōkyō Jinrui Gakkai (東京人類學會),
e finalmente como Nippon Jinrui Gakkai (日本人類学会, Sociedade Japonesa
de Antropologia) em 1941. Doravante, a antropologia no Japão teve seu início de
forma auspiciosa, com a formação rápida de uma comunidade científica, com
veículo de publicação específico, alimentando tanto o crescimento e desenvolvimento das pesquisas antropológicas, formando novos profissionais, quanto
construindo uma identidade de campo.
Com a criação da associação propriamente dita, transbordando o espaço
inicial de um grupo ou clube, foi iniciada em 1886 a publicação da chamada
Jinrui Gakkai Hōkoku (人類學會報告, Bulletin of the Anthropological Society),
contando já com um índice em língua estrangeira (geralmente em inglês) e a
respectiva tradução oficial do nome da revista. Nesse sentido, nota-se a clara
preocupação em dialogar com o cenário internacional acadêmico, mesmo
que nas primeiras décadas os artigos fossem em sua esmagadora maioria
Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 28, n. 62, p. 293-315, jan./abr. 2022
Shōgorō Tsuboi e o início da antropologia japonesa
em japonês, sem tradução. Ainda foi renomeada algumas vezes, seguindo as
mudanças do nome da associação e atualização da identidade da revista, a
saber, em 1886 para Tōkyō Jinrui Gakkai Hōkoku (東京人類學會報告, The Bulletin of the Tokyo Anthropological Society), em 1887 para Tōkyō Jinrui Gakkai Zasshi
(東京人類學會雜誌, The Journal of the Anthropological Society of Tokyo), em 1911
para Jinruigaku Zasshi (人類學雜誌, The Journal of the Anthropological Society of
Tōkyō/Nippon), e finalmente em 1993 para Anthropological Science.
Em 1887, Takahira Kanda (1830-1898) foi apontado como primeiro presidente da Jinrui Gakkai (Nakano, 1994). Com notória carreira como político (de
governador da prefeitura de Hyogo a senador) e como professor de estudos
ocidentais, é compreensível que Kanda tenha sido colocado em uma posição
de proeminência, respeitando a hierarquia de senioridade, cara à cultura japonesa, e, ao mesmo tempo, refletindo a seriedade e ambição da nova associação.
No entanto, o motor conceitual do campo permaneceria, até seu falecimento,
com Tsuboi.
Definindo o campo antropológico em revista
A publicação da Jinrui Gakkai reflete um intenso debate e esforço para definição do campo antropológico e promover a atuação de seus partícipes. Chegando a até 12 números publicados em apenas um ano, os textos se mostram
diversos, com transcrições de alguns discursos das reuniões da associação, artigos e notícias de pesquisas realizadas. Todavia, um elemento importante em
prol da organização da identidade do campo antropológico é a apresentação de
uma lista de itens de pesquisa ao final de cada número. Dessa forma, é possível
acompanhar o desenho do que era entendido como antropologia, as áreas e
temas nos quais os membros da Jinrui Gakkai atuavam ou eram incentivados
a atuar. No primeiro número da revista, 39 itens de pesquisa (研究項目) são
apresentados (Figura 1), abordando temas (Quadro 1) que podem ser agrupados
em quatro grandes áreas.
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Figura 1. Lista de itens de pesquisa publicados
na Jinrui Gakkai Hōkoku (1886, p. 37).
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Shōgorō Tsuboi e o início da antropologia japonesa
Item
Tradução livre
人類ノ解剖
anatomia humana
人類ノ生理
人類ノ發育
人類ノ遺傳
人類ノ變遷
人類卜近似動物トノ比較
人類卜絕種動物ノ關係
人類ト稱す可キモノ、顯レシ時
人類ト稱す可キモノ、顯レシ地
fisiologia humana
desenvolvimento humano
hereditariedade humana
mudanças da humanidade
comparação entre humanos e animais próximos
relação com animais extintos
o que chamamos de humano, o tempo inicial
o que chamamos de humano, o local inicial
人類住居ノ變遷
mudanças da habitação humana
貝塚
kaizuka, montes de conchas (sítio arqueológico
de matriz de conchas)
土器塚
montes cerâmicos (tipo de sítio arqueológico)
土器石器靑銅器
穴居
横穴
塚穴
原始墳墓
文字ノ歴史
言語ノ血統
國語ノ性質
方言
俚歌童謠
家族組織
部落組織
原始學術
cerâmica, líticos e artefatos de bronze
moradia em caverna
túneis
sepultamentos
tumbas primevas
história da escrita
famílias de línguas
natureza da língua nacional
dialetos
cantigas de ninar
estrutura familiar
estrutura/sistema buraku/vilas
estudo das origens/primitivos
Quadro 1. Itens de pesquisa em ordem original de apresentação publicados
na Jinrui Gakkai Hōkoku (1886, p. 37). (continua)
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原始宗教
religiões primitivas
原始工藝
indústria primitiva
原始運輸法 (舟車ノ類)
formas primitivas de transporte (tipos de veículos
de navegação)
原始漁獵
原始商業
原始農業
衣食住沿革
裝飾
風俗習慣
器具沿革
人類ノ區別
人類ノ移住
人類ノ頒布
其他是等ニ類スル事件
caçadores-coletores primitivos
comércio primitivo
agricultura primitiva
história das vestimentas, alimentação e moradia
ornamentos
hábitos e costumes
história dos utensílios/instrumentos
diferenciação/classificação humana
migração humana
distribuição da humanidade
outros casos similares
Quadro 1. Itens de pesquisa em ordem original de apresentação publicados
na Jinrui Gakkai Hōkoku (1886, p. 37). (final)
Os itens listados mostram o interesse dos pesquisadores nas dimensões biológica, social, cultural e linguística humanas, tanto no passado quanto no presente,
dialogando com o que viria a ser chamado de quatro campos da antropologia,
a saber, antropologia (atualmente antropologia biológica), arqueologia, etnologia (atualmente também como antropologia social ou cultural) e linguística.
Como corolário, entendendo que essa listagem de itens de pesquisa também se
encontrava em diálogo com o cenário internacional acadêmico, a proposição
de Franz Boas em 1904 (Hicks, 2013) sobre os quatro campos indica muito mais
um esforço de organizar a prática antropológica em voga do que uma inovação
propriamente dita. No que pese o avanço paradigmático exercido por Boas ao
sistematizar com maior clareza os caminhos de atuação e por conseguinte especialização (nos Estados Unidos, mas reverberando no mundo), nota-se que o início da antropologia é marcado pela busca em compreender e capturar o sentido
Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 28, n. 62, p. 293-315, jan./abr. 2022
Shōgorō Tsuboi e o início da antropologia japonesa
da categoria “humano”. Destarte, os esforços se concentram em caracterizações,
descrições, registros e classificações, da diversidade dos corpos às diferentes formas de organizar e se realizar no mundo ao longo do tempo e do espaço. Nessa
conjuntura, não seria uma abordagem holista, mas sim um cenário amplo no
qual as diversas questões são colocadas em diálogo e como peças de um quebra-cabeça. É possível notar nas publicações que cada pesquisador transita por
temas correlatos, já em um caminho de especialização de sua atuação.
Com papel proeminente, Tsuboi publicou de forma profícua na revista da
associação, com mais de 300 artigos e notas de pesquisa. Exímio orador, suas
palestras realizadas nas reuniões foram compiladas e publicadas pelo jornalista e etnógrafo Kanori Inō (1867-1925), também membro da associação (Nakao,
2005; Yamashita; Eades; Shimizu, 2018).
Tsuboi publicou artigos e textos abordando tanto a dimensão biológica
quanto a cultural humana, com uma certa atenção no debate sobre a origem
da cultura japonesa e populações do arquipélago japonês. Segundo Low (2012),
Tsuboi argumentava que o estudo sobre as origens deveria ser conduzido pelos
próprios japoneses e não por estrangeiros. Nesse sentido, seu posicionamento
trazia elementos que compactuavam com a crescente agenda nacionalista no
cenário político japonês, embora não participasse dela nem se colocasse contra
o diálogo internacional.
Arqueologia japonesa por japoneses
O final do século XIX e início do XX no Japão é marcado por um movimento
pendular de aproximação e distanciamento do Ocidente, ora buscando parcerias e legitimação, ora o rechaçando e rejeitando. De acordo com Ikawa-Smith
(1982), esse pêndulo ideológico seguiria de forma cíclica até o ápice do nacionalismo, no qual a política imperialista no período das guerras mundiais abafaria
qualquer sentimento pró-Ocidente. De fato, o recrudescimento dos sentimentos nacionalistas levou gradativamente a uma onda severa de censura, desde
ações institucionais, como pesquisadores sendo processados publicamente por
suas teorias e publicações, em alguns casos sendo afastados de seus cargos, a
assassinatos cometidos por fanáticos nacionalistas, com suas ações justificadas como arroubos românticos da juventude (Buruma, 2004).
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Assim, temas caros à ideologia imperial se mostravam cada vez mais perigosos. As tumbas antigas, kofun (古墳), eram o único tipo de sítio arqueológico
que por lei só poderia ser estudado mediante autorização dupla: do Ministério
da Educação em consulta com o Ministério da Casa Imperial (Edwards, 2005).
Nessa conjuntura, parte significativa dos kofun registrados tinha sido relacionada e atribuída a algum membro da genealogia imperial, até mesmo a imperadores míticos das primeiras crônicas japonesas. No Período Kofun (século IV
a século VII), marcado pelo ápice da construção e complexidade das tumbas,
a escrita ainda não tinha sido adotada no Japão. Todos os registros históricos,
que podem de alguma forma ajudar a indicar a identidade do proprietário de
cada kofun, são posteriores, sendo o mais antigo, Kojiki,2 do século VIII. Assim, a
identificação como propriedade ou não da Casa Imperial respeitava sobretudo
a agenda ideológica.
Tsuboi, em 1886, ainda como aluno, foi enviado pela universidade para escavar duas tumbas no Parque Ashikaga, na Prefeitura de Tochigi (Edwards, 2005;
Okamura, 2020). Tsuboi atuou para além do que era esperado, analisando a
estrutura de cada construção e a disposição do acompanhamento funerário,
em vez de apenas coletar artefatos. A publicação dos resultados de sua pesquisa (Tsuboi, 1888), na revista da associação, causou grande impacto nos estudos sobre kofun e, segundo Okamura (2020), também nos métodos e técnicas
de escavação e pesquisa em geral. Intitulado como relatório de escavação, contém o detalhamento do sítio, metodologia usada e cultura material encontrada,
contando ainda com ilustrações técnicas de próprio punho. Na Figura 2, é
possível ver como exemplo algumas das ilustrações da cultura material encontrada, como lâminas de espadas de diversos tamanhos e vasos de cerâmica fragmentados, contando ainda com ilustrações técnicas de próprio punho. Tsuboi
teria feito uma das primeiras, e poucas, análises sobre estratificação social e
hierarquia no Período Kofun, antes da Segunda Guerra (Mizoguchi, 2013).
2
Kojiki (古事記, Relatos de Fatos Antigos) é o registro escrito mais antigo do Japão, compilado em
712 a partir de relatos orais, versando sobre a criação do mundo por ação dos deuses, a origem
divina da família imperial e a subsequente consolidação e expansão do império (Mietto, 1995).
Dessa forma, é uma obra que organizou um discurso centralizado no poder imperial com legitimação religiosa.
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Shōgorō Tsuboi e o início da antropologia japonesa
Figura 2. Exemplo de ilustração presente no “Relatório de escavação do kofun
de Ashikaga”, respectivamente, página 358 com ilustração de lâminas de espadas
e página 369 com ilustração de artefatos de cerâmica (Tsuboi, 1888).
Apesar do sucesso em estudar outras tumbas, de 1887 a 1890, Tsuboi acabou
sendo alvo do controle estatal ao escavar uma tumba que teria ligação com a
Casa Imperial. Conseguiu escapar sem sofrer consequências ao se desculpar e
redigir uma carta prometendo que jamais voltaria a escavar uma tumba com
essa ligação. De fato, Tsuboi cessou seus estudos sobre kofun, retornando apenas no final de sua carreira. Com essa interrupção, voltou-se com mais afinco
aos estudos sobre sítios arqueológicos do tipo kaizuka e a origem japonesa,
temas relativamente seguros e distantes da agenda imperial.
Tsuboi afirmava a prerrogativa do estudo sobre o Japão por japoneses como
resposta direta à atuação de Edward Morse (1838-1925), zoólogo norte-americano responsável pela primeira escavação arqueológica científica no Japão
em 1876 (Reis; Rodrigues-Carvalho, 2017). Morse lecionou na Universidade de
Tóquio, por um período curto, de 1877 a 1879. Reconhecendo o que deveria ser um
sítio de matriz de conchas (kaizuka, similar ao que conhecemos no Brasil como
sambaqui e internacionalmente como shell mound ou shell midden) próximo
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à estação de trem Ōmori, reuniu esforços para conduzir a escavação. Publicou
algumas obras descrevendo o que foi encontrado, tendo como principal marco
o tipo de cerâmica, o qual descreveu como “marcado por corda”. Essa descrição
tornou-se a denominação tanto do tipo de cerâmica como posteriormente do
período ao qual pertenceria, o Período Jōmon (c. 12.000 AP – c. 2.300 AP). Assim,
Morse deixou uma marca indelével na aurora da antropologia e arqueologia
japonesa.
Não obstante o início da prática científica arqueológica no Japão, Morse
não formou profissionais na área nem se envolveu claramente com o que ainda
se configurava como uma comunidade de antiquarianistas japoneses com
interesse sobre o passado do arquipélago. O legado de Morse nas primeiras
décadas após a escavação de parte do Ōmori Kaizuka foi um ponto crucial em
suas publicações: a conclusão que desenvolvera, com base nos remanescentes
humanos encontrados, sobre a prática de canibalismo (Morse, 1879).
Tsuboi e seus contemporâneos, como Ryūzō Torii (1870-1953), debateram
essa questão tornada incontornável. Tsuboi (1887-1888), em artigo sobre o que
é um kaizuka, cita diretamente a análise de Morse dentro de um panorama no
qual também cita casos de consumo de inimigos na Nova Zelândia, e como na
Austrália, Nova Caledônia, Fiji, Salomão e Niam Niam ossos humanos podiam
ser encontrados jogados em montes de descarte. Torii (1898-1899), ao publicar sobre o sítio Fukiage Kaizuka, também traçou comparações com os achados de Morse. Torii agradece em seu texto os comentários feitos por Tsuboi e
outro membro da associação, o professor de anatomia e antropólogo Yoshikyio
Koganei (1859-1944). Em ambos os artigos o discurso é contido e sem demonstração de julgamento de valor, sem deixar transparecer claramente o conflito
sobre o tema. Torii deixa transparecer, no entanto, no uso de pronomes possessivos (que trazem para si uma ligação) em relação às populações pretéritas do
arquipélago, uma narrativa comum à época, seja de uma certa continuidade
desde tempos imemoriais, seja de uma relação afetuosa com o passado. Em
relação ao último caso, essa postura fica mais evidente na publicação de Boseki
Yamagami, na qual cita como comumente as populações antigas são vistas
como caçadores selvagens com flechas envenenadas, caçando cabeças e praticando canibalismo, mas esse não seria o caso da população da Idade da Pedra
do arquipélago japonês. Yamagami, caracterizando essa população como “nossa”
(dos japoneses), afirma que seriam diferentes, com várias técnicas e avanços,
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e com aparência afável, como poderia ser visto nas estatuetas de cerâmica, dogū
(土偶), do Período Jōmon (Yamagami, 1902-1903).
Ainda nas primeiras décadas da revista, o tema do canibalismo foi também
abordado em uma perspectiva etnológica, com publicação de exemplos ao
redor do mundo, dentro do debate de caracterização de diferentes populações
humanas vivas, a partir de seus hábitos e costumes, e respectivo nível na hierarquia humana que se buscava construir. Por exemplo, Sōzō Imai publicou um
artigo dedicado de forma abrangente sobre canibalismo, definindo endo e exocanibalismo, listando grupos praticantes e citando inclusive exemplos do território brasileiro: botocudos, tupis, tupinambás, tapuias, guaranis, mundurucus e
xavantes (Imai, 1903-1904, p. 392-393). Imai categorizou níveis de confiança em
relação aos relatos sobre canibalismo, colocando os ainus como no tipo quatro,
de presença de vários relatos, mas que demandavam aprofundamento da pesquisa e verificação.
Destarte, canibalismo, como elemento caracterizante de um estágio hierárquico inferior, era tratado com naturalidade no tocante a populações estrangeiras, mas como um tema potencialmente conflituoso quando relacionado
às populações pretéritas do arquipélago japonês. A reação a essa hipótese
dependia da medida em que tais populações eram incluídas ou excluídas da
narrativa sobre a origem da sociedade japonesa, em que medida faziam parte
da narrativa identitária. Nesse sentido, canibalismo era entendido enquanto
uma categoria caracterizadora de um dos estágios mais inferiores numa “hierarquia de civilizações” global e, como conseguinte, elemento com valor negativo e pejorativo.
Tsuboi incentivou que membros da associação pesquisassem e fizessem
relatos sobre diversos temas, principalmente sobre sítios arqueológicos do tipo
kaizuka (Reis, 2015). Entre as várias pesquisas que conduziu mais especificamente no campo arqueológico, o maior destaque que perdura é a descoberta
de um tipo diferente de cerâmica, em 1884, encontrado no Mukogaoka Kaizuka,
a qual denominou de yayoi (em referência ao local, o bairro Yayoi em Tóquio).
A partir da cerâmica yayoi, Tsuboi identificou que pertenceria a um período
específico diferente, posterior à cerâmica jōmon e anterior a cerâmica do
Período Kofun (Okamura, 2020).
Assim, Tsuboi deixou um rico legado para a construção da arqueologia (pré-histórica principalmente) não só com as pesquisas realizadas, mas também
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com a formação de novos profissionais e a promoção da expansão e aprofundamento das pesquisas ao exortar que seus pares investissem em temas elencados na pauta da Jinrui Gakkai. Entre os vários pesquisadores orientados por
Tsuboi destacam-se Ryūzō Torii e Kosaku Hamada (1881-1938).
Torii foi um dos pioneiros da etnologia e arqueologia japonesa atuando no
exterior, tendo realizado diversos trabalhos etnográficos tanto no arquipélago
quanto no continente, sendo o primeiro a fotografar a população nativa de
Taiwan em 1896. Os registros etnográficos e fotográficos que produziu se encontram atualmente sob a guarda do Museu Nacional de Etnologia (Osaka). Torii
também se envolveu com os debates sobre a origem japonesa, tendo as suas
hipóteses, principalmente sobre um ancestral comum para a população japonesa e a coreana, capturadas e apropriadas, à sua revelia, pela agenda colonizadora japonesa para justificar a invasão e ocupação da Coreia (Edwards, 2005;
Matsumoto, 2020).
Kosaku Hamada, considerado um dos pais da arqueologia japonesa, fundou
o primeiro departamento de arqueologia em 1916, assumindo como primeiro
professor de arqueologia da Universidade de Tóquio. Hamada também foi responsável por publicar o primeiro livro didático de arqueologia (Edwards, 2005;
Tomii, 2020).
Ainda, segundo Okamura (2020), Tsuboi pode ser considerado um precursor
da arqueologia pública no Japão. Publicando textos de divulgação para leigos
e ministrando palestras públicas, por vezes em parceria com a loja de departamentos Mitsukoshi, Tsuboi conseguia atingir um público para além da universidade e dos limites da comunidade acadêmica.
Korobokkuru, etnogênese e jinshu
Em meio ao debate sobre as origens da cultura e população japonesa, diversos pesquisadores se debruçaram sobre a questão: qual seria a população mais
antiga ou originária do arquipélago japonês. Tendo como referência a matriz
ocidental de organização do passado, alguns também buscavam entrever quem
seriam os “indígenas” do Japão. A contribuição de Tsuboi para esse debate foi
trazer a hipótese dos korobokkuru (koro-pok-guru ou ainda koropokkuru) como
os habitantes originais. Presentes nas lendas ainus, os korobokkuru teriam
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sido uma população de baixa estatura, morando em habitações escavadas em
terra, e, segundo algumas histórias orais, até inimigos dos ainus (Landor, 1893,
p. 83). Nishimura (1917) os descreveu como uma raça de anões, que navegavam
em canoas feitas de grama, similares às embarcações feitas com pele de foca
(baidarka) pelos “esquimós”, e às embarcações dos ainus, que teriam usado até
um passado recente o mesmo tipo de embarcação feita a partir de pele.
Morse, em suas publicações sobre Ōmori Kaizuka, já teria apresentado a
hipótese de uma população pré-ainu, que teria sido substituída pelos ainus.
Em 1887, foi iniciado o debate entre Tsuboi e Mitsutaro Shirai sobre o tema.
Enquanto Tsuboi argumentava em favor da hipótese sobre os korobokkuru, Shirai afirmava que os indígenas seriam os próprios ainus (Omoto, 2018). Nesse
sentido, para alguns autores, os ainus seriam também remanescentes vivos de
um passado primitivo.
Segundo Askew (2002), nesse período o debate sobre a etnogênese da população japonesa partia de uma sutil fundamentação no que seria a “teoria da
nação miscigenada”, kongō minzokuron (混合民族論), influenciada principalmente por autores estrangeiros como Heinrich von Siebold (1852-1908) e John
Milne (1850-1913). Todavia, para os japoneses, essa heterogeneidade se encontraria em tempos pretéritos, nos primórdios da formação da população japonesa, de forma que a argumentação de uma homogeneidade no tempo presente
se sustentasse. Assim, mesmo com a presença de minorias étnicas, como os
ainus e os povos de Ryūkyū3 (Okinawa), prevalecia no imaginário a ideia de
uma “raça homogênea”, verdadeiramente japonesa, superior a outras raças,
argumento que validou a agenda colonizadora frente a populações entendidas
como inferiores, tanto no arquipélago japonês como no continente. Em particular aos ainus, sua caracterização como Outro, primitivo porém inserido de certa
forma na sociedade japonesa em prol da unificação de um território nacional,
foi alvo de programas de assimilação dentro de uma política entendida como
civilizatória (Roth, 2005).
3
O Reino Ryūkyū foi independente até 1609, quando foi invadido pelo daimyō de Satsuma. Os
soberanos de Ryūkyū continuaram governando, sob controle de Satsuma, até o final do xogunato. Em 1879, no Período Meiji, foi completamente anexado ao território japonês, sendo
renomeado como uma prefeitura, atual Okinawa, e alvo de um processo de assimilação, com
a introdução da língua japonesa como língua franca e outros aparatos estatais japoneses em
detrimento das tradições locais, até mesmo na agricultura (Allen, 2009).
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Milne foi um dos primeiros a apontar os korobokkuru como um dos possíveis povos originários do arquipélago japonês. Tsuboi, por sua vez, focou nos
korobokkuru como o único povo originário, que teria sido substituído pelos
ainus, que por sua vez teriam sido empurrados para o norte do arquipélago
pelos ancestrais dos japoneses modernos. Nesse sentido, Tsuboi apontava
a hipótese de mais de uma onda migratória no processo de povoamento do
território. A princípio, tanto a argumentação de Tsuboi quanto a de Shirai
não encontravam suporte nas pesquisas realizadas até aquele momento. No
entanto, os estudos de Koganei com remanescentes humanos pretéritos alimentaram a argumentação dos ainus como a população originária. Segundo
Omoto (2018), Tsuboi e Koganei viam os ainus de forma completamente diferente. Para Koganei, os ainus eram uma raça inferior, tendo a extinção como
seu destino final, desaparecendo por completo. Tsuboi entendia os ainus como
vítimas de preconceito, negando a visão de inferioridade e afirmando que seu
baixo status social e pobreza eram resultado da falta de oportunidade de uma
educação adequada. Ainda de acordo com Omoto, Tsuboi teria se unido a um
grupo de voluntários para a construção de uma escola em Hokkaido.
Tsuboi continuou debatendo em prol da hipótese dos korobokkuru até o seu
falecimento. Como seu maior defensor, sua ausência significou o declínio e o
fim dessa hipótese, prevalecendo a teoria dos ainu como descendentes da primeira população a povoar o arquipélago japonês.
Destarte, entre argumentos científicos e ideológicos sobre diferentes populações, Tsuboi primeiramente se posicionou contra o uso da categoria jinshu,
(人種). De larga aplicabilidade na época e frágil delimitação, jinshu podia ser
empregado para se referir a “raça […], nação, grupo étnico, classe ou habitante”
(Yonaha, 2003, p. 96-97). Para Tsuboi, essa ambiguidade tornava jinshu um
conceito cientificamente sem sentido. Ainda segundo Yonaha (2003), Tsuboi
optou pela antropologia ao invés da etnologia por buscar estudar a sociedade
humana como um todo, sem subcategorias.
A etnologia foi introduzida no Japão primeiramente como jinshugaku,
focando no estudo social dos grupos humanos com uma perspectiva de diferenciação de raças. Nesse sentido, estava atrelada a gradual entrada do darwinismo social no Japão, elemento útil para a agenda imperialista e as políticas
colonialistas. Jinshu, em sua ambiguidade, se espalhara pelo imaginário social
da época, sendo adotado em larga escala. Por exemplo, o conflito entre Japão
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Shōgorō Tsuboi e o início da antropologia japonesa
e Rússia era entendido como jinshu-senso, guerra entre raças, e conflitos com
outros grupos (tendo em vista a expansão da colonização de parte do continente pelo Japão) como jinshu-mondai, problemas raciais.
Com a crescente popularização da categoria jinshu, se tornando de certa
forma incontornável, Tsuboi propôs que fosse traduzida exclusivamente e apenas como raça, delimitando claramente seu escopo. Yonaha argumenta que
essa “racialização” da categoria jinshu teria como intuito desconstruir os elementos latentes de darwinismo social imbuídos de forma difusa. Tsuboi via
as diferenças entre raças como “pequenas lacunas em uma árvore da família
humana” sendo “apenas problemas relativos e que não deveriam ser exagerados” (Yonaha, 2003, p. 96-97).
A etnologia no Japão seria consolidada e formalizada enquanto campo e
comunidade científica somente na década de 30 do século XX, com a criação
da Sociedade Japonesa de Etnologia em 1934 (Nihon Minzoku Gakkai), reformulada como Associação de Etnologia em 1942 (Minzokugaku Kyokai) e recentemente renomeada como Sociedade Japonesa de Antropologia Cultural em
2004 (Nihon Bunka Jinrui Gakkai). Assim, foi em período posterior à atuação de
Tsuboi que a etnologia japonesa foi delimitada claramente como minzokugaku
em vez de jinshugaku. Todavia, ambas as categorias eram usadas na época de
Tsuboi, por vezes de forma difusa e ambígua, mas gradativamente caminharam
para uma certa delimitação, sendo jinshu equivalente à raça e minzoku à etnia.
Embora a perspectiva de Tsuboi em relação aos ainus escapasse de uma
agenda dita civilizatória, dialogava com os ideais em voga internacionalmente
de exibição daqueles entendidos como diferentes. Seu primeiro contato com
esse cenário foi ainda como aluno, visitando a Exposição Universal realizada
em Paris em 1889. Nesse sentido, a pedido do organizador do Pavilhão Acadêmico da Humanidade, atuou como colaborador emprestando materiais
antropológicos e etnográficos dos ainus e povos de Ryūkyū (Omoto, 2018). Essa
colaboração é ainda duramente criticada uma vez que a exposição seguia a
agenda imperialista civilizatória pela qual os grupos ditos inferiores deveriam
ser controlados e assimilados.
As minorias étnicas no Japão continuam até o presente lidando com os
desdobramentos da agenda imperialista do final do século XIX e início do
século XX. Os ainus só foram reconhecidos recentemente como uma população
indígena (senjū minzoku) em 2008. Segundo Siddle (2009), uma das razões seria
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política, em relação à disputa por território ao norte com a Rússia, na qual o
reconhecimento do direito original dos ainus poderia enfraquecer a soberania
japonesa nesse conjunto de ilhas. No tocante aos povos de Ryūkyū, a ocupação
inicial japonesa foi conduzida de forma colonial mesmo com a transformação
oficial em uma prefeitura. O pós-guerra para Okinawa foi marcado fortemente
pela ocupação comandada pelos Estados Unidos e, mesmo com o retorno da
soberania japonesa em 1972 (Allen, 2009), a presença de bases militares estadunidenses continua como uma mácula para a população local. Diferentemente dos ainus, os povos de Ryūkyū continuam não sendo reconhecidos pelo
governo japonês como indígenas (Normile, 2021).
Da mesma forma, residentes coreanos (zainichi kankokujin) enfrentam preconceito, em certos momentos institucionalizados, desde a ocupação japonesa
do território coreano (Gottlieb, 2006). A comunidade nipo-brasileira também
enfrenta cotidianamente, assim como todas as demais comunidades de descendentes ou de imigrantes em território japonês, os elementos coloniais que
perduram no imaginário social, difusos em uma narrativa hegemônica de uma
homogeneidade biológica e cultural da sociedade japonesa.
Considerações finais
O legado de Shōgorō Tsuboi é multifacetado: como liderança ao fundar a
Jinrui Gakkai, ao nortear e incentivar as pesquisas da nova comunidade científica de antropologia, ao buscar definir e delimitar a antropologia enquanto
campo científico no Japão, formando e inspirando novos antropólogos japoneses. Todavia, sua participação ativa, principalmente na montagem do Pavilhão
da Humanidade, em Osaka em 1903, traz-nos a questão, sem resposta clara
possível, sobre em que medida compactuava com o imperialismo do Estado
japonês. O pavilhão contou com a exibição de representantes vivos de minorias
étnicas, principalmente ainus e de Taiwan, da mesma forma que exposições
em diversos outros países faziam e continuavam fazendo. Embora não fosse
uma estratégia original ou inédita, a exibição de pessoas contribuía para o discurso de hierarquização de grupos humanos, em uma perspectiva internacional, e como corolário, em uma perspectiva nacional, para a dominação daqueles
tachados como primitivos.
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Shōgorō Tsuboi e o início da antropologia japonesa
Em que pese a atuação de Tsuboi contra o preconceito de seus pares em relação aos ainus e demais minorias étnicas, é necessário considerar as consequências de sua colaboração em exibi-los, mesmo tendo sido bem intencionada ou
como apenas uma replicação do modelo de exposição antropológica internacional em voga. Uma das críticas públicas mais duras, porém uma das poucas com
viés humanista, foi veiculada pelo jornal Nihon, durante a realização da exposição em 1903. O autor, mencionado apenas como Professor Takebe, criticou o
critério que teria sido usado para selecionar quem poderia ser exibido, uma vez
que a exposição pretendia apresentar toda a diversidade humana, com um mapa
indicando a distribuição das diferentes raças humanas. Nesse sentido, Takebe
(apud Ziomek, 2014, p. 510, tradução minha) questionou a ausência de ocidentais:
“Se perguntarmos por que isso não aconteceu, é devido ao fato de que os ocidentais são pessoas civilizadas? Será que se eles são ocidentais, nós os respeitamos, e
se eles são indianos ou turcos, não importa se os exibimos?” Considerando ainda
a exibição de japoneses em exposições europeias, a crítica de Takebe evidenciava
a relação assimétrica entre a antropologia ocidental e a antropologia japonesa.
No prefácio de Notes on the ancient stones implements of Japan, Takahira
Kanda (1884, p. I), primeiro presidente da Jinrui Gakkai, apresenta como objetivo
do livro “to furnish to Western scholars materials for the study of the Archaeology of Japan and to hear the result of their study”. O que poderia ser apenas
mais um objetivo de divulgação revela de fato o norte e o dilema que guiaria
as primeiras décadas da antropologia no Japão, ora em diálogo com o Ocidente,
ora em busca de afirmar uma identidade e autonomia acadêmica própria.
Assim, a construção da antropologia no Japão foi movida por um anseio de
se colocar lado a lado com as demais potências acadêmicas no mundo, recusando uma posição subalterna e afirmando a prerrogativa dos japoneses de
estudar a si mesmos. Ao mesmo tempo, imersa em uma conjuntura histórica
de recrudescimento do nacionalismo, censura e política imperialista, a antropologia japonesa e a atuação dos primeiros antropólogos foi em certa medida
incentivada, capturada e utilizada em prol da invasão e colonização de outras
nações, e da contínua aculturação e assimilação das minorias étnicas dentro
do arquipélago japonês. Nesse sentido, apesar das particularidades culturais
e sociais, da trajetória histórica japonesa, o início da antropologia como ciência no Japão reverbera uma conjuntura compartilhada por diversas nações, da
qual consequências e efeitos ainda ecoam até hoje.
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Recebido: 26/03/2021
Aceito: 04/11/2021
|
Received: 3/26/2021
Accepted: 11/4/2021
Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional
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Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 28, n. 62, p. 293-315, jan./abr. 2022
Artigos
Articles
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71832022000100010
Ernesto De Martino e o percurso italiano
da antropologia
Ernesto De Martino and the Italian path
of antropology
Cristina Pompa I
https://orcid.org/0000-0003-4961-8349
cris.pompa@gmail.com
I
Universidade Federal de São Paulo – Guarulhos, SP, Brasil
Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 28, n. 62, p. 317-349, jan./abr. 2022
Cristina Pompa
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Resumo
Ernesto De Martino foi uma figura central no panorama europeu dos estudos etnológicos, filosóficos e histórico-religiosos da primeira metade do século XX, mas é quase
desconhecido no mundo lusófono. O artigo pretende ser uma introdução ao pensamento do estudioso italiano, cuja obra está sendo redescoberta nos últimos anos pela
antropologia norte-americana e francesa, enquanto antecipadora de temas e problemas contemporâneos. Após uma análise do debate travado com as escolas europeias
de pensamento – não apenas antropológico – da primeira metade do século, são explorados alguns conceitos centrais no pensamento do autor, elaborados a partir das contribuições da filosofia e da psicanálise. A última parte do artigo apresenta brevemente
as etnografias realizadas entre as comunidades camponesas do sul da Itália, que mostram os itinerários conceituais, políticos e etnográficos inusuais de uma antropologia
“periférica”.
Palavras-chave: Ernesto De Martino; antropologia da religião; historicismo; antropologia italiana.
Abstract
Ernesto De Martino was a central figure in the European panorama of ethnological,
philosophical and historical-religious studies in the first half of the 20th century, but
he is almost unknown in Portuguese-speaking world. This article aims to introduce
his work, which, has been rediscovered in recent years by North American and French
anthropology, as an anticipator of contemporary issues and problems. After an analysis of the debate with European schools of thought – not just anthropological – of
the first half of the century, I explore some central concepts elaborated from the contributions of philosophy and psychoanalysis. The last part of the article briefly presents De Martino’s ethnographies on the peasant communities of southern Italy, that
show the unusual conceptual, political and ethnographic itineraries of a “peripheral”
anthropology.
Keywords: Ernesto De Martino; anthropology of religion; historicism; Italian
anthropology.
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Ernesto De Martino e o percurso italiano da antropologia
Introdução1
Ernesto De Martino foi um dos intelectuais mais complexos e instigantes do
século XX: entre etnologia e história das religiões, entre fenomenologia e historicismo, entre filosofia e psicanálise, suas pesquisas constituem ainda hoje
uma fonte de reflexão crítica a respeito da abordagem histórico-antropológica
da religião e do ritual.
O trabalho do estudioso italiano, falecido em 1965, não alcançou no
século XX o devido reconhecimento no campo da antropologia, por razões que
remetem parcialmente à pouca abrangência da(s) língua(s) utilizadas pelo autor,
que escrevia preferencialmente em italiano e alemão, ou à situação periférica
e francamente “atrasada” da antropologia italiana, dominada por décadas pelo
folclorismo ou pela antropologia física. Mais determinante para o isolamento
de De Martino, que preferia falar em “etnologia” ou em “história das religiões”
do que em “antropologia”, justamente por causa da herança pesada da antropologia física, foi a profundidade da reflexão que transpira também na linguagem
rica de ecos filosóficos. A opção historicista marcada pelo diálogo intenso (e
tenso) com seu mestre Benedetto Croce, mas também com a fenomenologia heideggeriana e com o existencialismo de Jaspers, encontravam pouco interesse –
se não uma aberta hostilidade – na antropologia europeia da época. Finalmente,
o interesse pela análise da cultura camponesa do sul da Itália relegou frequente
e apressadamente sua obra ao campo marginalizado dos estudos de “folclore”.
A própria escolha dos interlocutores privilegiados no debate com as correntes de pensamento antropológico ou histórico-religioso (a escola histórico-cultural alemã ou a fenomenologia da religião), a pobreza do diálogo com as
escolas francesa e britânica – liquidadas simplesmente como anti-históricas
ou, last but not least, a recusa do diálogo com a sociologia, impediram uma
compreensão integral do trabalho do estudioso napolitano. O isolamento de
De Martino naquele que foi chamado seu “historicismo heroico” (Pasquinelli,
1981) deve-se, mais simplesmente, a uma reflexão que cada vez mais aparece
1
Agradeço aos membros do projeto “Crise da presença e reintegração religiosa” pelas estimulantes contribuições à redação deste texto. Agradeço também à Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de São Paulo pela bolsa concedida nos anos de 2015-2016, para realizar a pesquisa na
Itália que deu origem a este trabalho.
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como demasiado adiantada com relação à antropologia de seu tempo, mostrando intuições que, vistas retrospectivamente, apontam para debates
candentes na contemporaneidade, até mesmo além da antropologia: a centralidade das noções gramscianas de hegemonia e subalternidade, a ênfase no
corpo enquanto lugar do sujeito, a performatividade do ritual e, sobretudo, a
ideia de fluidez entre sujeito e objeto e a crítica à naturalização dos conceitos, historicamente construídos, de “realidade” e de “natureza”. Evidentemente,
De Martino não utilizou esses termos, mas construiu uma linguagem peculiar,
nem sempre de compreensão imediata, cunhando expressões conceitualmente
densas, como a de “crise da presença e resgate cultural”, “de-historização institucional”, “regime protegido”, “etnocentrismo crítico”, conceitos esses que tentarei abordar, pelo menos em parte e de forma preliminar, nas páginas a seguir.
O século XXI tem redescoberto Ernesto De Martino, não apenas na Itália,
mas na Europa e fora dela. Além de uma quantidade de artigos e livros em
inglês, francês, espanhol, alemão e japonês sobre as teorias demartinianas
(Berrocal, 2009; Charuty, 2009; Fabre, 2013; Farnetti; Stewart, 2012; Feixa,
2008; Ferrari, 2012; Zinn, 2015) foram retraduzidas e republicadas algumas
das obras mais densas de sua vasta produção. Na França, após um período de
esquecimento que seguiu o entusiasmo por De Martino de parte da antropologia francesa (notadamente aquela mais distante do estruturalismo e próxima
dos interesses de pesquisa do autor, bem como do existencialismo),2 o diálogo
tem sido recuperado a partir do final da década de 1990 (Charuty, 2017; Dossier:
Ernesto De Martino, 1999; Fabre, 1999) e, sobretudo, com a publicação de La fin
du monde: essai sur les apocalypses culturelles (De Martino, 2016). Trata-se não
apenas da tradução, mas da reorganização de La fine del mondo (De Martino,
1977a), livro postumamente publicado em italiano em 1977, a partir de inúmeras fichas de leituras críticas e reflexões originais a respeito dos “apocalipses
culturais” produzidos pelos movimentos proféticos dos povos oprimidos pela
colonização, numa visão comparativa com a própria crise da modernidade ocidental. Essa edição francesa foi, por sua vez, retraduzida para o italiano e publicada em 2019 (De Martino, 2019).
2
A publicação de três livros do autor, entre 1966 e 1971, foi incentivada por Michel Leiris e Alfred
Métraux. Para uma análise das complexas relações entre a antropologia francesa e Ernesto
De Martino, cf. Fabre (1999), Bergé (2001), Maccauro (2016) e Pizza (2017).
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Ernesto De Martino e o percurso italiano da antropologia
Nos Estados Unidos, a publicação, em 2015, de Magic: a theory from the South
(De Martino, 2015), tradução de Sud e magia, de 1959, marca o reconhecimento
da contribuição de De Martino no campo dos estudos pós-coloniais, dos cultural studies e dos subaltern studies. De resto, já a partir da década de 1990, a
antropologia americana, em sua guinada fenomenológica e reflexiva, descobriu
De Martino (Saunders, 1993), e a tradução americana de La terra del rimorso, de
2005, ganhava a introdução de Vincent Crapanzano (De Martino, 2005a).
Ernesto De Martino é traduzido e estudado no mundo hispânico e latino-americano graças às traduções espanholas de algumas de suas obras,3 mas é
praticamente desconhecido no mundo lusófono,4 ao qual poderia oferecer uma
contribuição importante, não apenas para a historiografia das antropologias
“periféricas” europeias, mas sobretudo como bagagem conceitual útil para pensar de uma forma original fatos “religiosos”, principalmente, como tentarei
apontar no final do artigo, o pretenso “reencantamento do mundo”, a chamada
“volta do sagrado” e outras expressões sintéticas que tentam dar conta das adesões a várias denominações religiosas, a despeito da suposta secularização do
mundo contemporâneo.
Apresentar algumas das ideias de Ernesto De Martino, mais de 50 anos após
sua morte, portanto, não quer ser apenas uma homenagem a uma figura importante e pouco conhecida no panorama antropológico do século XX, nem uma
peça a mais no mosaico das antropologias mundiais. Tampouco as recentes
(re)descobertas do autor italiano por parte do mainstream anglo-saxônico e
francês tornariam necessário, por si só, um alinhamento por parte da tradição lusófona. Trata-se, antes, de uma aproximação a uma reflexão teórica e
metodológica peculiar surgida em um tempo e um lugar específicos, mas ainda
3
La tierra del remordimiento foi publicada em 1999 em Barcelona (De Martino, 1999). El mundo
mágico teve uma primeira tradução em 1985, pela editora da Universidade Autônoma do México,
e uma segunda edição argentina, em 2004, com o longo posfácio de Silvia Mancini (De Martino,
2004). Uma coletânea de textos sobre a cultura popular foi organizada e editada também em
Barcelona em 2008 (De Martino, 2008).
4
Sobre o autor, há apenas um pequeno livro publicado recentemente no Brasil e já fora de circulação (Trindade, 2015). Outras breves referências estão inseridas em geral em trabalhos de
história das religiões (Agnolin, 2013; Isaia, 2013; Massenzio, 2005), de antropologia ou sociologia da religião (Agnolin, 2005; Barbara, 2002; Pompa, 1998, 2009; Ribeiro, 2015), de história
social (Cruz, 2021; Pires, 2020; Tassinari, 2019), de cultura popular (Tabucchi, 2011) e, finalmente,
de etnopsiquiatria (Pagliuso, 2012).
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em boa parte válida, por sua originalidade, para lançar luz sobre problemas
contemporâneos.
Na impossibilidade de enfrentar aqui a complexa problemática do sentido
histórico e filosófico da “opção historicista” que levou De Martino a se posicionar de forma talvez excessivamente crítica em relação à maior parte das
escolas antropológicas do seu tempo, limitar-me-ei apenas a apresentar alguns
aspectos do intenso debate travado pelo autor com as formas de pensamento
desenvolvidas na Europa na primeira metade do século XX. Em seguida, tentarei introduzir alguns conceitos centrais no pensamento do autor e em seu
trabalho etnográfico no sul da Itália, relevantes ainda hoje, creio, para trazer
novas ideias para a abordagem etnográfica da religião e do ritual.
O ambiente intelectual italiano no início do século XX
Até o começo do século XX, a Società Italiana di Antropologia e Etnologia
reunia estudos bastante ecléticos, pautados pela biologia e pela medicina da
antropologia física, pela já consolidada tradição de pesquisas arqueológicas e
pré-históricas e pela vertente filológica e literária dos estudos das tradições
populares, sucessivamente denominada folclore, alinhada às ideias dos grandes coletores de contos populares do romantismo europeu.
A etnografia, seja por escassez de material de origem colonial (afinal a experiência colonial italiana durou apenas algumas décadas), seja pelo pendor pós-unificação de origem filológico-romântica de “recuperar” e “nobilitar”, do ponto
de vista literário, as tradições populares regionais, exerceu-se basicamente junto
às populações rurais. Mas, além desses interesses filológicos e colecionadores,
as condições miseráveis das massas camponesas do sul da Itália suscitavam
também interesses propriamente políticos nos governos posteriores à unificação de 1870, preocupados com o “atraso” econômico e social da região, gerador
de rebeliões camponesas que frequentemente desembocavam no brigantaggio,
o banditismo italiano (Hobsbawm, 1969). A questione meridionale, como foi chamada, constituiu o objeto das preocupações do pensamento socialista, até chegar
à reflexão de Antonio Gramsci. Nessa base, como veremos, Ernesto De Martino
faria da etnografia das “plebes rurais” a componente central do trabalho antropológico nacional, como fruto do engajamento do pesquisador nas questões sociais.
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Ernesto De Martino e o percurso italiano da antropologia
A cena intelectual italiana da primeira metade do século XX, porém, foi
dominada pela gigantesca figura de Benedetto Croce. Expoente do idealismo
historicista de derivação hegeliana, o filósofo distinguia “ciências dos conceitos”
das “ciências descritivas”, reeditando de uma forma muito italiana, advinda do
pensamento de Gianbattista Vico, a distinção alemã entre ciências da natureza
e ciências do espírito.
A crítica de Croce à historiografia iluminista e positivista se estendia
também às ciências sociais baseadas nas generalizações e caracterizadas por
aspirações nomotéticas e objetivistas. Assim, era negado qualquer valor ao
comparatismo e à coleta documental, enquanto práticas ordenadoras e classificatórias, desprovidas da capacidade de oferecer a compreensão porque
não pautadas pela filosofia. Em suma, a crítica era contra todas as relações de
causalidades, típicas das ciências naturais, que quando aplicadas aos eventos
humanos se tornariam “naturalizantes”, como no caso da sociologia, ou providencialismos, com clara referência à religião (Clemente, 1985).
Croce não negava todo valor a essas práticas de conhecimentos, mas as tornava apenas auxiliares da única verdadeira forma de conhecimento, que é a “história como pensamento e como ação”, lugar da afirmação imanente do espírito,
da liberdade e do desenvolvimento civilizacional. Essa noção de história iria
pautar o pensamento da escola de história das religiões de Raffaele Pettazzoni,
com a qual se conecta e se confunde a antropologia de Ernesto De Martino, em
seu distanciamento da filologia, do positivismo e da fenomenologia religiosa.5
Por outro lado, porém, Croce nunca reconheceu como discípulos antropólogos
e historiadores das religiões por duas razões fundamentais: em primeiro lugar,
por seu fechamento teórico à ideia de religião como objeto legítimo de reflexão,
porque essa não constitui uma “categoria do espírito”; em segundo lugar pelo
feroz preconceito eurocêntrico para com os “povos primitivos” e as plebes rurais,
considerados não dotados de ação histórica mas apenas de naturalidade animal,
postura essa, no entender de Vittorio Lanternari (1997), própria do clima colonialista da Europa inteira e compartilhada pelo grande mestre, Hegel.
A figura de Benedetto Croce foi central no panorama intelectual italiano da
primeira metade do século XX, até porque constituiu a única voz de ressonância
5
Para uma análise recente da obra de Pettazzoni e do caráter profundamente antropológico da
escola de história das religiões, cf. Pompa (2020).
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europeia do pensamento laico e antifascista no período da ditadura. Mas a
postura do filósofo, seja pela aversão radical à sociologia e às outras ciências
“naturalísticas”, seja pela perspectiva individualista e etnocêntrica, seja, finalmente, pela negação do valor autônomo da religião, influenciou negativamente
o desenvolvimento da antropologia e da história das religiões na Itália, apesar
de, ou justamente por, constituir sua base teórica historicista. A essa postura
se deve também, uma vez instituída a disciplina, da qual Ernesto De Martino
seria o máximo expoente, a ausência por parte dela, como veremos, da interlocução com a sociologia tanto na vertente durkheimiana quanto na weberiana.
Da mesma forma, Croce menosprezava os estudos etnológicos, tanto os
de marca positivista quanto aqueles orientados por uma perspectiva historicista individualizante, pois estes tinham por objetos exatamente aquelas massas incultas e selvagens que não poderiam exercer as atividades do espírito.
O mesmo juízo crítico, salvando apenas a “poesia popular” nos termos estéticos
da produção do espírito individual, aplicava-se aos chamados “estudos demológicos”, ou folclóricos, também porque baseados numa metodologia documental
objetivista e colecionadora, destituída, para Croce, de sentido histórico.
Apenas na década de 1940, um jovem membro do círculo filosófico de Croce,
Ernesto De Martino, iniciaria uma abordagem historicista da etnologia e das
tradições populares, distanciando-se rapidamente do mestre a partir da influência de Gramsci e da necessidade de um engajamento político frente às condições de subalternidade social das massas rurais. Tanto no caso de Pettazzoni
quanto no de De Martino, o impulso originário derivado da postura filosófica
laica e historicista crociana constituiria o caminho para uma abordagem original do fato religioso, a ser entendido e resolvido apenas em termos históricos.
O próprio objeto da reflexão (a religião, “os povos primitivos”), porém, distanciaria definitivamente os autores do idealismo crociano.
Filosofia, etnologia, história
Possivelmente por causa de sua formação filosófica, De Martino elaborou sua
posição em muitos textos teóricos, mesmo desvinculados de pesquisas específicas. É possível, portanto, acompanhar a formação e o desenvolvimento de
seu pensamento, com atenção particular para os trabalhos críticos com relação
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Ernesto De Martino e o percurso italiano da antropologia
às escolas antropológicas e histórico-religiosas, desenvolvidas na Europa na
primeira metade do século XX.
O livro de 1941, que traz o título significativo de naturalismo e historicismo na
etnologia, exemplifica bem a batalha historicista em nome da qual o autor propunha uma reforma do saber etnológico, mediada pelo historicismo de Benedetto Croce. Seu ambicioso (como ele reconhecerá mais tarde) projeto é abrir
a etnologia à história a partir do campo específico do religioso, do mito e da
magia. Mas há também no livro a proposta oposta e especular, que é também
um programa político: abrir a metodologia crociana, já que ela própria sugere
um “contínuo comércio com novos problemas históricos”, ao maior dos problemas históricos da civilização ocidental, o do mundo primitivo:
O incremento de uma metodologia da história é entregue à possibilidade
de testá-la interiormente, na compreensão de mundos históricos novos, em que
sua eficácia ainda não foi experimentada. Uma etnologia historicista representa justamente uma experiência desconhecida para a metodologia crociana.
(De Martino, 1997, p. 59).6
Encontramos, até mesmo nesse primeiro trabalho mais “crociano”, o desafio
para a filosofia de Benedetto Croce, de cujo restrito círculo De Martino participara e a quem ele próprio sempre declarou sua dívida intelectual, por ter
sido a única possibilidade, na Europa assolada pela “barbárie” nazifascista, de
“soletrar aquele discurso elementarmente humano impossível noutros lugares,
às vezes até na própria família” (De Martino, 1980b, p. 134). O desafio, e o início
do afastamento com relação a Croce, que menosprezava as ciências sociais, a
etnologia e os próprios “selvagens”, está no lugar dado à etnologia e ao papel
dos “primitivos” na construção de um humanismo que, com o nome de “humanismo etnográfico”, permanecerá em toda sua obra.
O capítulo dedicado à demolição da noção de prelogismo de Lévy-Brühl é
particularmente significativo, porque é um ataque a toda a escola sociológica
de Durkheim: aqui, talvez, possamos entender o silêncio, ou, pelo menos, a falta
6
A tradução de todas as citações é de minha responsabilidade.
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de diálogo mais direto de De Martino com a escola francesa.7 Apesar do interesse pela noção de “não unidade” do sujeito primitivo, que com certeza exercerá
influência nas sucessivas reflexões demartinianas a respeito das “duplas personalidades” ou da identificação do “eu” com o “mundo” dos trabalhos sucessivos,
De Martino critica o “naturalismo” e, basicamente o “anti-historicismo” implícito nos pressupostos filosóficos de Lévy-Brühl e de toda a escola durkheimiana:
Não é lícito, nem por um instante, quebrar esse nexo dialético na dupla hipóstase
de um indivíduo fora da história e de uma sociedade que pressiona o indivíduo
por fora […] A escola sociológica francesa quebra, nas duas hipóstases mencionadas, o processo concreto do espírito que progride infinitamente em suas infinitas
individuações, e imagina um indivíduo abstrato, obrigado a repetir, em seus atos,
o que a mentalidade coletiva manda. Escapa assim o incremento que a tradição recebe da consciência individual, e se determina uma orientação essencialmente anti-histórica. (De Martino, 1997, p. 86).
O anti-historicismo, apesar do nome, é também, para De Martino, o pecado
capital da escola histórico-cultural alemã, que ele analisa em profundidade em
outro capítulo do livro. A história da escola alemã é pura cronologia, sucessão
de fatos, distinta da filosofia da história, isto é, crocianamente, de sua qualificação valorativa mediante as categorias do espírito (“o bom”, o “belo” o “verdadeiro”, o “útil”). O risco no qual a etnologia alemã incorre, é, mais uma vez, a
naturalização:
A escola histórico-cultural presume poder elaborar uma historiografia distinta da
filosofia e limitada à ordenação espaço-temporal e causal dos fatos. Nós sustentamos que historiografia e filosofia formam idealmente uma unidade e que os fatos
históricos dos quais se busca a ordenação espaçotemporal e causal não estão ainda
(ou não estão mais) na esfera da compreensão historiográfica e são assimiláveis aos
fatos brutos dos procedimentos naturalísticos. (De Martino, 1997, p. 173, grifo meu).
7
Vale lembrar aqui que, mesmo a partir de uma postura crítica, De Martino contribuiu para a
difusão na Itália do pensamento da escola francesa, pois, quando diretor da chamada collana
viola da editora Einaudi com Cesare Pavese, apoiou a tradução e a publicação em 1951 de textos
de Durkheim, Hubert e Mauss sob o título de Le origini dei poteri magici.
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Ernesto De Martino e o percurso italiano da antropologia
A escolha de um historicismo baseado em uma filosofia da história pouco
próxima às aspirações de objetividade, típicas da antropologia da época, foi
provavelmente uma das razões da falta de interlocução com outras escolas
antropológicas contemporâneas, notadamente o culturalismo americano e
o estrutural-funcionalismo britânico. Com efeito, apesar do conhecer e citar
diligentemente nomes e obras e, às vezes, utilizá-las como fontes etnográficas,
De Martino insere os autores americanos na linha da escola alemã, via Boas e
Kroeber, e a eles, portanto, se aplicam as mesmas críticas. Também, o autor foi
sempre profundamente contrário ao relativismo cultural, típico da escola americana, assim definido, no famoso artigo “Promesse e minacce dell’etnologia”:
Trata-se de uma ameaça, não de uma promessa, se a relação com o éthnos se
resolve num frívolo défilé de modelos culturais, empurrados para a passarela da
“ciência” por um apátrida frígido em papel de antropólogo, infinitamente disponível aos possíveis gostos culturais. (De Martino, 1980b, p. 153).
Quanto à antropologia britânica, embora Malinowski seja citado como fonte
etnográfica em muitos textos, o funcionalismo é liquidado também com palavras severas:
O funcionalismo puro entende limitar a pesquisa etnológica à determinação
das funções de cada elemento cultural no organismo do qual faz parte, sem
se preocupar com as perspectivas cronológicas mais ou menos hipotéticas […].
Do atomismo, do cronologismo e do causalismo da escola histórico-cultural,
passa-se aqui a uma organicidade que male olet [cheira mal] ao biologismo e que
de qualquer maneira sofre para se dilatar na dimensão histórica: por esta via, o
ponto de chegada é Spengler, não Vico. (De Martino, 1997, p. 217).
O autor mais trabalhado do funcionalismo é, mais uma vez, um alemão,
Wilhelm Mühlmann, e Radcliffe-Brown é citado em nota de rodapé, considerado mais “moderado” quanto ao fechamento para a história. Interessante
notar, contudo, que De Martino não nomeia em lugar algum Evans-Pritchard,
cujo interesse pela história e, sobretudo, cujos trabalhos sobre um tema tão caro
ao autor como a magia (o livro sobre a bruxaria entre os azande é de 1937), mereceriam talvez – como foi justamente notado (Lewis, 1997) – alguns comentários.
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Como no caso de Pettazzoni, a obra De Martino, até mesmo essa primeira
profissão de fé crociana, suscitou críticas negativas por parte do historicismo idealista, que, teoricamente, é seu ponto de partida. O que podemos notar aqui é que,
mesmo se o engajamento político de De Martino ficará claro só no pós-guerra,
com a militância no partido socialista e, depois, comunista, a ruptura com o historicismo de Croce já é anunciada nesse primeiro trabalho, pois a própria proposta de testar a metodologia historicista no campo etnológico é claramente
uma denúncia do caráter elitista dessa filosofia, que deixa fora do domínio do
pensamento povos e classes “subalternos”. De Martino lança um convite ou um
desafio ao idealismo historicista para reinserir os subalternos no curso da história que os deixou marginalizados, e, assim, testar sua própria eficácia filosófica. Esse programa estará claro, do ponto de vista da ruptura epistemológica, em
Il mondo magico, mas desenvolver-se-á plenamente nas chamadas “obras meridionalistas” dos anos de 1950 e 1960, a partir da influência de Gramsci.
O historicismo está também na base da leitura crítica de outras correntes
de pensamento – antropológicas e não – que, na Europa da primeira metade do
século XX, abordam a questão do sagrado. É importante acompanhar a análise de
De Martino para entender o momento cultural – mas também político – em que
seu pensamento se coloca, e identificar seus interlocutores. Vários ensaios escritos na década de 1950 são centrais para colocar o autor no panorama dos estudos
europeus de religião que ele traz para o debate com seu historicismo. O fio que
articula essas reflexões é a batalha contra o que ele define “irracionalismo”.
A crítica de De Martino à fenomenologia religiosa, à qual ele opõe o “historicismo absoluto” (De Martino, 1953-1954), é uma profunda reflexão sobre as raízes
culturais dessa corrente de estudos; reflexão essa, a meu ver, válida ainda hoje
para as pesquisas de antropologia da religião no Brasil, em que Mircea Eliade,
máximo expoente da fenomenologia religiosa, ainda exerce uma influência
notável. O autor situa o húmus cultural da fenomenologia religiosa na confluência dos pensamentos que caracterizam a vida cultural alemã do século XX: a
teoria da Erlebnis (a experiência) de Dilthey, a fenomenologia de Husserl e sua
adaptação à religião por Max Scheler, a tradição do caráter autônomo e irracional da experiência religiosa de R. Otto e, finalmente, alguns temas do existencialismo de Heidegger e Jaspers. De Martino reconhece o esforço hermenêutico
da compreensão (as referências a Dilthey são frequentes) da especificidade da
experiência religiosa, não redutível, como faz o intelectualismo positivista,
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Ernesto De Martino e o percurso italiano da antropologia
a uma ciência infantil ou a uma philosophia inferior (De Martino, 1953-1954,
p. 24). A crítica, porém, aponta para a substancial identidade entre o objeto e o
sujeito do conhecer, no momento em que este se limita a “reviver” a experiência do sagrado, visto como potência que se manifesta.
A fenomenologia da religião renuncia a procurar a gênese inteiramente
humana, assim como as razões históricas que levam o homo religiosus a resolver o devir na repetição de um modelo meta-histórico. O trabalho de compreensão pode acontecer somente com
a reintegração de todas as abstrações provisórias […] na sólida e dramática concretude de um certo mundo cultural surpreendido no ato de escolher e produzir valores. (De Martino, 1953-1954, p. 13, grifo do autor).
Essa noção da “produção de valores”, tomada emprestada da filosofia de Croce,
estará no cerne de toda a produção demartiniana, justamente em aberto contraste
com a perspectiva fenomenológica do pensamento mítico ou religioso como um
“ser tomado” pela experiência do “numinoso” e como uma desvalorização da história e do profano, para mergulhar no sagrado como “repetição do idêntico”.
“Presença”, crise e resgate cultural
As críticas à fenomenologia religiosa retornam em “Mito, scienze religiose e civiltá
moderna”, de 1959, em que, contudo, De Martino não deixa de encontrar estímulos
intelectuais fecundos no movimento de revalorização do religioso, característico
do primeiro pós-guerra, que ele critica duramente em outros trabalhos enquanto
perigosamente “irracionalista” (De Martino, 1957, 1980b). Esses estímulos vêm de
autores pertencentes a várias áreas disciplinares (ciências da religião, etnologia,
sociologia e, sobretudo, psicanálise) que, segundo o autor, partilham do reconhecimento das profundas motivações existenciais do sagrado, do mítico e do simbólico.
A partir de uma narrativa de Freud a respeito da compulsão à repetição, o
autor frisa a diferença entre a repetição compulsiva enquanto impossibilidade
de sair da situação traumática (o retorno do passado) e “a repetição ativa e resolvente mediante um simbolismo aberto” (De Martino, 1980a, p. 89). Este segundo
caso remete ao simbolismo mítico-ritual da vida religiosa: aqui, De Martino cita
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Malinowski e a narrativa trobriandesa de um mito como repetição dos tempos
primordiais. O autor recorre também a Jung e Kerényi e à ideia do mito como
“modelo do passado” para enfrentar o presente e, naturalmente, ao Eliade do “mito
do eterno retorno”, que aponta para a “ontologia arcaica” que resolve o decorrer
da história numa série infinita de novos começos. Outras citações são tiradas
da obra de Cazeneuve (1958), que estabelece uma clara analogia entre repetição
compulsiva da cena traumática e repetição ritual do rito primordial.
Inesperadamente, em um autor que propositalmente deixa de lado a escola
sociológica francesa e tachará mais tarde o estruturalismo de “anti-histórico”,
aparece a análise da “eficácia simbólica”, com a famosa analogia entre xamã
e psicanalista, no trabalho de ab-reação. O mérito de Lévi-Strauss, segundo
De Martino, está em ter mostrado que o simbolismo mítico-ritual não diz respeito apenas ao “passado perdido”, como no caso da repetição do mito das origens de Eliade, mas constitui uma ponte entre o psíquico e o somático. Está
posto aqui o tema da “realidade dos poderes mágicos” que constituiu o centro
interpretativo de Il mondo magico.
Ainda uma reflexão sobre o papel de Jung na identificação do símbolo como
momento resolutivo, e não sintoma, da crise psíquica, esclarece o papel que a
psicanálise pode desempenhar na análise dos fatos míticos e rituais:
Foi sobretudo mérito de Jung ter ressaltado o dinamismo do “símbolo”, ou
seja, seu caráter de ponte que abre a passagem da crise para a reintegração, do
passado que volta de maneira cifrada e irrelativa8 ao presente que na decisão
responsável determina passado e futuro do sintoma fechado, isolante, para a
abertura ao mundo dos valores culturais. (De Martino, 1980a, p. 110).
Não obstante a crítica ao último Jung que, no desenvolvimento de seu
pensamento acabou por se fechar “no mundo dos arquétipos”, reaproximando-se por essa via ao “numinoso” de R. Otto, é exatamente esta a perspectiva que
De Martino utiliza em seu trabalho: a dialética crise/resgate, ou crise/reintegração.
8
Deixo propositalmente esta expressão, como outras da terminologia demartiniana, por falta de
uma tradução adequada. Aqui “irrelativo”, “irrelato” remetem ao estado psicopatológico em que
não há possibilidade de relativização cultural e histórica (ou seja, o poder de discernimento) de
certos elementos e, portanto, eles se apresentam de forma “não relativa”, absolutamente “naturais” e angustiantes, como no caso do luto ou do “delírio de fim de mundo”.
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Ernesto De Martino e o percurso italiano da antropologia
Assim, a religião se torna uma técnica protetora da “crise da presença”, em que a
analogia entre nexo mítico-ritual e terapia psicanalítica constitui a chave de leitura para a o fato religioso em termos de “resgate” e “reintegração cultural” da crise.
Já em “Fenomenologia religiosa e storicismo assoluto”, ao incorporar e, ao
mesmo tempo, ultrapassar a ideia de Van der Leeuw do caráter “vital” e “existencial” do religioso, De Martino utilizara a noção de “presença”, apontando
para o risco da “crise” desta:
Entra assim em jogo aquele domínio do vital humano que é a presença individual
como centro de decisão e escolha, para além do puro vital, ou orgânico, ou corpóreo, ou animal, ou seja, a unidade do indivíduo como possibilidade de desdobrar
todas as potências operacionais que fazem do homem, o homem. (De Martino,
1953-1954, p. 15, grifo meu).
Muito foi escrito (Berardini, 2015; Cases, 1973; Cherchi; Cherchi, 1987; Ferrari, 2012;
Pástina, 2005; Signorelli, 2015; Zanardi, 2011, entre outros) a respeito do conceito
de “presença”, ou o “ser aí”, e das influências filosóficas que o determinaram, certamente muito longe do historicismo idealista de Benedetto Croce. É consenso
atribuir a origem do conceito ao Dasein heideggeriano. O próprio De Martino é
explícito nesse sentido em uma página dos escritos filosóficos, em que a “presença”
[…] deve ser entendida no sentido de Dasein9 e precisamente como “presentificação emergente”, “ethos do transcendimento”,10 “energia que ultrapassa a situação”,
“intencionalidade em ato”, “ser-no-mundo”,11 operacionalidade segundo formas
de coerência cultural, abertura à intersubjetividade e ao relacional, movimento
no interior de um horizonte de origem e destino, participação projetante à sociedade em desenvolvimento e à história em caminho de uma época. (De Martino,
2005b, p. 94).12
9
Em português, o Dasein heideggeriano é traduzido com “ser aí”. Esta é a tradução que utilizarei
quando De Martino fala em “Esserci”, onde o “ci” indica propriamente o locativo, o “aí”.
10 Utilizo o próprio termo de De Martino, transcendimento, porque este, significando o ato de transcender, ou seja, ultrapassar no valor, não pode ser traduzido com o termo “transcendência”.
11 Todas as expressões entre aspas são as traduções italianas dos termos de Heidegger.
12 Trata-se de anotações, provavelmente do ano de 1962, conservadas no arquivo De Martino e
publicadas em 2005, nas comemorações dos 40 anos da morte do autor.
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É preciso notar, contudo, que aqui não há apenas uma derivação heideggeriana,
e sim uma multiplicidade de referências filosóficas (como, evidentemente, o
historicismo de Croce) e histórico-religiosas (como Pettazzoni), ou até fenomenológicas (Van der Leeuw, Eliade) mediadas, sobretudo, pelo trabalho etnográfico realizado nos anos de 1950 e 1960. Vários autores apontam para o fato de
que há uma clara superação de Heidegger, na medida em que se, para Heidegger, a condição de “queda” do ser (Verfallen) é inscrita na própria existência
como sua condição, para De Martino a possível queda (a “perda da presença”)
está fundamentalmente ligada a condições históricas específicas de existência,
aquilo que ele chama “o mundo mágico”.
Trata-se da passagem entre um horizonte ontológico e um horizonte historiográfico (Cherchi; Cherchi, 1987), de uma reformulação do conceito de Geworfenheit, o “ser lançado no mundo”, pois se, para Heidegger, a “queda” é uma
condição permanente do próprio ser, para De Martino, o risco de “não ser” está
ligado a condições externas e traz consigo a possibilidade de sua superação
(Massenzio, 1995).
Mais uma vez, é a partir do recorte histórico que De Martino assimila e trabalha conceitos e temas que pertencem a tradições que não fazem da história
– pelo menos no sentido que De Martino atribui à história – seu centro gravitacional, como no caso de Heidegger e da fenomenologia.
Nesse sentido o “radicalmente outro”, o ganz Andere de R. Otto, não é o
sagrado em si, mas o risco de perda da presença, de não mais “ser aí”. O sagrado,
com suas instituições específicas, é o instrumento de controle e resolução da
crise, como explica uma bela página de Sud e magia, em que encontramos a
transfiguração, via psicanálise, dos conceitos de Heidegger e Otto, dobrados,
porém, à exigência antropológica de remeter as experiências existenciais aos
mudos culturais em que elas se formam:
O conceito de “perda” ou de “crise” da presença liga-se estritamente com o de
“momentos críticos da existência”. Trata-se de momentos decisivos nos quais à
peremptoriedade de “fazer passar” uma situação segundo uma regra humana
contrapõe-se a potência (desumana) daquilo que passa por si, sem e contra o
homem: é nesses pontos nodais do devir que pode surgir o risco de não poder objetivar a situação crítica em nenhuma forma de coerência cultural. (De Martino,
1977b, p. 92, grifo do autor).
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Ernesto De Martino e o percurso italiano da antropologia
Três elementos caracterizam esse aspecto técnico da reconfiguração religiosa da alienação:13 a instituição de um modelo de representação e comportamento, o caráter tradicional desse modelo, a reabertura aos valores profanos da
existência que esse modelo permite:
Os momentos críticos recorrentes que em determinado regime de existência
devem ser necessariamente ultrapassados, são – mediante a vida religiosa – suspensos da trama do devir e ocultados em sua historicidade, pois são dados como
já ultrapassados numa passagem exemplar acontecida na meta-história do mito
e reiterável na ação ritual: assim, mediante o “como si” técnico desta sacra simulatio ou pia fraus, a efetiva passagem histórica dos momentos críticos dá-se num
regime de proteção. (De Martino, 1977b, p. 93).
A noção de repetição de um modelo mítico, ou de suspenção do tempo, ou, finalmente, de “ocultamento da história” pareceria coincidir com a ideia de Eliade
do “eterno retorno” enquanto terror da história. Mas para De Martino a pia fraus
da reiteração do modelo mítico é apenas temporária, mediadora, instrumental
à reabertura do tempo e dos valores profanos:
Em virtude dessa mediação, o representar mítico e o comportamento ritual permeiam-se de sentido e valor, e a história que foi tecnicamente ocultada num
sistema de símbolos retoma seu caminho rumo à consciência […] conforme a
concreta potência humanística e cultural dos mundos históricos singulares.
Todo o movimento dialético da recuperação religiosa é dominado por uma técnica fundamental que pode ser formulada conceitualmente como técnica de
de-historização institucional dos riscos de alienação atuais ou possíveis e de
reintegração cultural da de-historização. Tal técnica protege da de-historização
irrelativa, sem horizonte de cultura, que acontece na alienação radical, ou perda
da presença. (De Martino, 1977b, p. 94).
O nó central dessa posição é o caráter dialético da relação entre o sagrado e
o profano, ou seja, um percurso oposto ao da fenomenologia religiosa que
13 O termo alienação, usado frequente pelo autor, refere-se à ideia de “tornar-se outro”, “ser agido
por” e não tem relação com a noção marxista.
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programaticamente desvaloriza o profano, carregando apenas o sagrado de
positividade. Esse conceito já estava explícito em “Fenomenologia religiosa e
storicismo assoluto”: a de-historização não é “salvação da existência humana”,
como para os fenomenólogos em sua identificação com a consciência religiosa,
mas “salvação do risco vital de não ser aí na existência histórica” (De Martino,
1953-1954, p. 20).
Da mesma forma, o tema aparece em “Mito, scienze religiose e civiltá
moderna”, justamente quando o autor explicita em que sentido a etnologia
religiosa pode beneficiar-se dos instrumentos psicanalíticos. Aqui, ele mostra
como a técnica ritual marca para operadores e participantes um rebaixamento
dos níveis de consciência de vigília, mediante tambores, movimentos e palavras repetidas, etc., de maneira a estabelecer um estado de comunicação com
o inconsciente, que permite a recuperação de memórias e valores, não apenas
individuais, mas coletivos, socialmente compartilhados, ou, melhor, onde o
individual encontra sentido no coletivo:
O símbolo mítico-ritual funciona como um plano meta-histórico de reabsorção da
proliferação histórica do devir: as situações críticas recorrentes num determinado
regime existencial e os riscos de crise que estas implicam são dessa forma reconduzidos à repetição de um idêntico símbolo inaugural de fundação meta-histórica,
um símbolo em que tudo já foi decidido in illo tempore por numes ou heróis. […]
Mas, enquanto isso, mediante esta pia fraus reabrem-se, de fato, os trabalhos e os
dias que são ligados ao viver civil. (De Martino, 1980a, p. 113, grifo do autor).
É central, portanto, a distinção entre “de-historização irrelativa” e “de-historização” institucional. A primeira indica a perda da dimensão histórica e da
capacidade de objetivação do real, o ser absorvido na ingens sylva da natureza,
o heideggeriano “ser lançado” no mundo, sem possibilidade de resgate cultural,
enfim, é a “perda da presença”. A segunda é o dispositivo cultural – variável conforme as sociedades, as épocas históricas e os “regimes de existência” em que
indivíduos e grupos experimentam diferentes tipos de crises – que permite controlar e recuperar simbolicamente a crise (De Martino usa o termo “replasmar”),
numa dimensão “protegida”, na qual o simbolismo mítico-ritual reitera o ato
fundador das origens e, portanto, a resolução prototípica. Dessa forma, são recuperados valores coletivos que dão sentido à vida profana e à dimensão histórica
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Ernesto De Martino e o percurso italiano da antropologia
do viver. Nesse sentido, profundamente histórico, deve ser entendida a função
da repetição do modelo mítico, dentro desse regime de-historicizado. A repetição do mito não é a “fuga da história” do homem arcaico (e também moderno)
de Mircea Eliade, mas medeia a reintegração dos valores humanos e históricos,
a própria possibilidade de ser no mundo, de estar na e de fazer a história.
Os textos analisados constituem a sistematização teórica da antropologia
religiosa de De Martino e apresentam os conceitos eminentes em volta dos
quais ele construiu toda sua proposta analítica, no quadro da sua opção por um
historicismo “ampliado”. Esses conceitos estão presentes em todas as obras do
estudioso, começando por aquele que é considerado, com razão, o mais contundente de seus livros e que ele mesmo, em obras posteriores, tentou, de alguma
maneira, moderar: Il mondo magico (De Martino, 1948), publicado em 1948.
A partir do problema etnológico da “realidade dos poderes mágicos”, chega-se a
questionar o próprio conceito, historicamente construído no interior do pensamento ocidental, de “realidade”, pois esta, no mundo mágico, não é um dado,
mas um problema, uma dimensão a ser construída (condenda, diz De Martino,
do latim condere, fundar) mediante as práticas mágico-religiosas.
No espaço destas linhas, seria temerário tentar apresentar o conteúdo dessa
obra e as complexas polêmicas que acompanharam sua publicação, em 1948,
bem como sua reedição francesa, em 1999.14 Deixo essa empreitada para outra
ocasião, juntamente com a reflexão sobre o citado trabalho, póstumo, sobre os
apocalipses psicopatológicos e culturais (De Martino, 2019), focando a atenção,
nas próximas páginas, nas obras baseada em trabalho de campo, que têm como
objeto etnográfico precisas instituições culturais e religiosas entre as camadas
populares do sul da Itália: a lamentação fúnebre, a magia e o “tarantismo”.
A trilogia meridionalista e a pesquisa de campo
Na cultura italiana contemporânea, pelo menos antes do movimento que, há
cerca de dez anos, promoveu a releitura crítica da obra completa do autor,
14 O extenso e articulado posfácio de Silvia Mancini (2004) suscitou uma viva controvérsia nas
páginas de L’Homme (Charuty, 2001; Mancini; Méhust, 2002) a respeito da vertente “etnometapsíquica” do trabalho de De Martino, impossível de enfrentar aqui.
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e fora dos circuitos dos estudos antropológicos e histórico-religiosos, Ernesto
De Martino é conhecido como um estudioso de “tradições populares” e, até,
como folclorista. Isso por causa de três obras impactantes, publicadas entre
1958 e 1961: Morte e pianto rituale nel mondo antico (1958), Sud e magia (1959)
e La terra del rimorso (1961) (cf. De Martino, 1975, 1977b, 1996).
Nessas obras, a noção de risco da presença e os mecanismos culturais de
superação estão colocados num quadro etnográfico e histórico preciso: o sul
da Itália. As reflexões teóricas que, no Mondo magico tinham se apoiado em
fontes secundárias e em uma etnologia de gabinete, adquirem nas monografias “meridionalistas” uma consistência etnográfica nunca alcançada antes na
Itália. O interesse de De Martino se concentra agora no trabalho de campo
entre as que Croce definiu como “plebes rústicas”, colocando temas aparentemente menores, folclóricos ou até “exóticos” (a lamentação ritual, a magia
cerimonial, o tarantismo) no quadro dos grandes temas filosófico-existenciais:
a crise da presença, o ser no mundo, o “éthos do transcendimento”, a “replasmação no valor”, a “energia moral”.
A grande virada de De Martino, como apontam muitos autores (Clemente,
1985; Dei; Fanelli, 2015; Lanternari, 1997, entre outros) não é antropológica, é
política e se dá com o trabalho de militância, primeiro no partido socialista,
depois comunista, em que acontece seu encontro com os camponeses do
Mezzogiorno:15
[…] justamente por causa do engajamento político para transformar o presente
numa realidade melhor, começou a tomar corpo um engajamento de natureza
diferente, o do melhor conhecimento do presente a transformar. Nessa perspectiva, a própria investigação etnológica começou a configurar-se numa nova
dimensão. (De Martino, 1980b, p. 138-139).
A atividade política aproximou-o de camponeses que, ao lado da luta política pela terra, cultivavam os elementos mágicos “arcaicos” que constituíam
um “escândalo” tanto para a burguesia conservadora quanto para a própria
esquerda italiana. Essa aproximação do mundo “subalterno”, e este é o segundo
15 Literalmente “meio-dia”, o termo indica em italiano, o sul da Itália e seus problemas históricos,
econômicos e sociais de subdesenvolvimento.
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Ernesto De Martino e o percurso italiano da antropologia
elemento promotor da virada, coincidiu com a publicação, em 1948, dos Cadernos do cárcere de Antonio Gramsci, cujas reflexões sobre o folclore orientariam
boa parte da antropologia italiana para a análise dos mecanismos de produção
de subalternidade, revolucionando os agonizantes estudos de folclore. Estes
últimos tinham já sofrido uma irresistível sacudida pela publicação, em 1945,
do livro de Carlo Levi Cristo si è fermato a Eboli, misto de investigação e romance
de um intelectual antifascista burguês – como De Martino – que, exilado pela
sua atividade política na região mais pobre da Itália do sul, a Lucânia, descobre
as massas rurais oprimidas por uma burguesia latifundiária violenta e arrogante, sua miséria e seu mundo de bruxarias, seu “mundo mágico”:
Nós não somos cristãos – eles dizem – Cristo parou em Eboli. Cristão quer dizer,
em sua linguagem, homem (nós não somos cristãos, não somos homens mas
animais, animais de carga, e menos ainda do que animais). (Levi, 1945, p. 3).
Será essa Lucânia miserável, junto com a Apúlia dos “atarantados”, o campo de
pesquisa etnográfica de De Martino, onde o autor tentará articular o projeto
de uma etnologia historicista com o empenho político, articulação que pode
ser acompanhada no famoso artigo “Intorno a uma storia del mondo popolare subalterno”, de 1949, cuja adjetivação já mostra a dívida para com Antonio
Gramsci. O texto, “denso e radical, quase um pequeno panfleto, recolhe as sugestões da obra gramsciana no quadro de uma perspectiva crítica plenamente
antropológica” (Pizza, 2013, p. 91), enfrenta a temática da “irrupção na história
das massas populares” marcando também a “irrupção” de Gramsci nos estudos
de tradições populares que terão, então, uma profunda inflexão, dando origem a
uma série de trabalhos marcados pela dialética hegemônico/subalterno, devedores da leitura que Ernesto De Martino fez do marxismo gramsciano.
Nesse texto temos de novo uma leitura da história da antropologia, de Tylor
a Malinowski, de Frobenius a Padre Schmidt, cujo “naturalismo” anti-histórico
que vimos em Naturalismo e storicismo tem agora uma razão de ser muito clara:
o fato de a etnologia ser a expressão da sociedade burguesa que “naturaliza” o
dominado para fins de exploração:
O humanismo circunscrito da “civilização ocidental” é inerente à própria estrutura da sociedade burguesa; justamente porque a propensão desta sociedade
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é que Cristo não vá além de Eboli, que o mundo além de Eboli apareceu como
a-histórico. (De Martino, 1949, p. 412).
Gramscianamente, a postura de De Martino oscila entre a visão da cultura
popular enquanto barbarização da cultura que a filosofia da práxis precisa
“educar” (De Martino, 1949, p. 420) e o potencial emancipatório dessa mesma
cultura, vista como “folclore progressivo” (De Martino, 1949, p. 421).16 O que está
claro, porém, é o caráter totalmente histórico de todas as práticas populares e
a necessidade, em sede analítica, de uma “historização das formas culturais do
mundo popular subalterno” (De Martino, 1949, p. 422). A partir dessa visão da
história dos dominados se desenvolvem as obras “meridionalistas”, em que são
colhidos os dramas históricos específicos da “crise da presença” e de seu resgate.
Morte e pianto rituale nel mondo antico, de 1958 (De Martino, 1975), é um grandioso afresco sobre a instituição religiosa da lamentação fúnebre que, começando com a etnografia do ritual na Lucânia, estende a comparação ao mundo
mediterrâneo contemporâneo e, depois, antigo, até o enxerto do cristianismo
na estrutura “pagã”. Aqui é testada a eficácia dos instrumentos interpretativos
elaborados por De Martino, em primeiro lugar a dialética “crise da presença/
resgate” e, depois, os conceitos de “de-historização” e de “nexo mítico-ritual”.
A “crise da presença” aqui é constituída pelo luto que traz consigo o risco de
“passar com o que passa”, de ser arrastado na dimensão da morte como naturalidade absoluta, como incapacidade de superação da dor e vontade de aniquilamento: não mais agir, mas “ser agido”, não objetivar, mas tornar-se objeto.
A etnografia expõe situações de luto em contextos de estrema pobreza do
mundo rural, principalmente aquelas nas quais o falecido é o marido, o pai,
enfim, o sustento da casa e da família. Tais situações determinam crises nas
quais a dor da perda é também a dor de perder a própria possibilidade de sobrevivência. Perder a presença é “perder o mundo”, no sentido mais imediato.
A lamentação funerária está no centro de um conjunto de rituais, encontrados em todo o mundo popular euro-mediterrâneo (movimentos, automatismos,
cantos repetidos). Os mecanismos culturais de recuperação da crise constituem
16 A perspectiva emancipatória, que informava o engajamento político e a adesão ao marxismo
de De Martino, previa o desaparecimento das práticas mágico-religiosas, com a libertação das
massas camponesas de sua condição de opressão.
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Ernesto De Martino e o percurso italiano da antropologia
técnicas de de-historização institucional e de superação da situação lutuosa,
mediante a repetição de modelos paradigmáticos e de comportamentos institucionalizados que permitem a recuperação do éthos das memórias e dos afetos.
A comparação com o mundo antigo leva a descobrir um nexo profundo
e orgânico da morte do indivíduo com a morte do deus (Osíris, Adônis, Átis)
ligado à vegetação e à colheita. O novo nascimento desses deuses é o horizonte
meta-histórico do ritual, configurando como “já dada” a superação da morte da
vegetação, do deus, da pessoa querida e até, como no caso da civilização egípcia, do rei. Com o advento do cristianismo, a resignação de Maria tornou-se o
exemplum paradigmático da dor pela perda da pessoa querida, enquanto a ressurreição de Cristo configurou-se como superação da morte já dada e definida
para sempre. Por um lado, então, o conjunto fúnebre antigo perdeu seu sentido
e foi reabsorvido numa ordem significativa nova; por outro lado, esse conjunto
ritual se manteve no mundo popular camponês em suas formas técnicas de
resolução da crise do luto.
Está clara aqui a identificação de um processo histórico que pode ser acompanhado ou reconstituído mediante documentos arqueológicos, iconográficos,
literários, teológicos, em que o objeto “residual” da lamentação fúnebre mostra
sua razão de ser. A um folclorismo estéril que “recolhe” objetos enquanto sobrevivências, De Martino opõe conjuntos mítico-rituais em funcionamento:
Os modos da crise do luto do mundo camponês lucano, sobretudo entre as
mulheres, aproximam-se sensivelmente aos modos espetaculares da crise do
luto do mundo antigo […]. A investigação propõe-se, portanto, examinar como,
de uma forma ainda observável, o rito da lamentação insere-se na crise e
como ainda desempenha sua função reparadora e reintegradora. (De Martino,
1975, p. 72).
O percurso metodológico apresenta várias etapas: a literatura psicanalítica
ajuda a descobrir os elementos psíquicos que podem identificar a “crise da presença” na ocasião do luto; a etnografia descreve a funcionalidade operacional
dos mecanismos rituais de reintegração; a comparação identifica, por um lado,
a difusão mediterrânea do conjunto ritual e completa, por outro, a descrição
lucana com elementos congruentes que esta não possui, ou não possui mais;
finalmente, a análise histórica do conjunto em suas manifestações clássicas
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descobre sua dimensão múltipla e global, com seu nexo entre a morte individual, a vegetação e a realeza. Da mesma maneira, a análise histórica mostra sua
decadência com o advento do cristianismo, mas mostra a razão de ser de sua
manutenção em certas regiões.
A história, então, é o pano de fundo no qual os dispositivos religiosos são
analisados; esse tema histórico da tensão entre cristianismo e práticas rituais “pagãs”, entre história cristã e histórias locais enquanto dialética histórica
entre duas maneiras de resolver crises, aparece com mais vigor em Sud e magia,
de 1959,17 que De Martino convida explicitamente a ver em conjunto com a obra
anterior, como fruto de sete anos de pesquisa de campo, iniciada em 1952.
O livro acompanha etnográfica e historicamente o tema da fascinazione,
ou fascino, ou seja, a fascinação ou encantamento, com todas suas práticas ou
definições (inveja, mau-olhado, feitiço). Reforça-se o paradigma interpretativo,
centrado na dialética crise/resgate, ligada a condições específicas da existência
de determinados lugares, no caso, as massas camponesas da Lucânia, em que a
magia é uma “técnica protetora” do risco de perda da presença:
O sentido histórico das técnicas protetoras da magia está nos valores que tais
técnicas reabrem, ao se enxertar em momentos críticos de um regime de existência determinado, e se manifesta, portanto, apenas se considerarmos aquelas técnicas como momento de uma dinâmica cultural perceptível no interior
de uma civilização singular, uma sociedade particular, uma época definida.
(De Martino, 1977b, p. 83, grifo do autor).
Mas tem algo a mais: De Martino mostra que a alternativa entre “magia” e
“racionalidade” – com a construção do privilégio da segunda e da marginalização da primeira – foi o núcleo constitutivo do desenvolvimento da civilização
ocidental. Assim, Sud e magia pretende inserir as práticas “mágicas”, identificadas na etnografia, no quadro histórico mais amplo de uma “história religiosa
do Sul”, ou seja, em um contexto em que elas não apenas não contrastam, mas
compartilham espaços e valores com a classe culta ilustrada. Esta última, em
17 O livro, certamente o mais lido e traduzido do autor, ganhou em 2015 duas novas edições: uma
italiana, acrescida com textos preparatórios inéditos e um amplo arquivo fotográfico das expedições na Lucânia, e uma americana, pela tradução de Dorothy Zinn (DeMartino, 2015).
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seu apego semissério à magia enquanto ideologia, permanece afastada e, de
certa forma, isolada da corrente racionalista mais ampla que caracteriza o laicismo iluminista, apesar da presença de grandes nomes das “luzes” europeia.
Nesse sentido, o autor antecipa aquela ideia de “circulação” entre culto e popular que será central nas pesquisas de história cultural de várias décadas depois,
como no caso de Carlo Ginzburg, que nunca deixou de se referir a De Martino
como uma das grandes inspirações de seus trabalhos.
A pesquisa sobre simbolismo mítico-ritual e práticas mágicas no Mezzogiorno, como vimos, responde à necessidade de conciliar a investigação etnológica com o engajamento político. Mas, no plano mais estritamente teórico,
Sud e magia representa também o encontro entre a exigência de identificar
a dimensão histórico-social dos fenômenos do “folclore” mágico-religioso e
aquela, inversa e simétrica, de devolver o papel central da dimensão religiosa
na questione meridionale (Dei; Fanelli, 2015, p. XI).
Em apêndice a Sud e magia aparecem algumas notas intituladas “Intorno
al tarantolismo pugliese”. É o prelúdio da última e mais compacta monografia
“meridionalista”: La terra del rimorso, em que o trabalho de campo e a pesquisa
histórica articulam-se em torno dos pressupostos teóricos das obras anteriores.
Confirma-se o caráter de técnica protetora contra o risco psicopatológico de
“não ser no mundo” que os rituais possuem, com uma maior atenção ao caráter
performativo do ritual, cuja etnografia é realizada com cuidado, mostrando a
complexa articulação dos códigos corêutico, musical e cromático.
Resumidamente, o “tarantismo” é conjunto mítico-ritual pelo qual certos
comportamentos catatônicos ou convulsivo (estados de crise psicopatológica
aguda que atinge principalmente mulheres camponesas cujos “regimes de
existências” são particularmente precários) são atribuídos à mordida de uma
aranha: a “tarântula”. Essa “doença” só pode ser curada por músicas específicas,
tocadas por instrumentistas especializados que precisam “reconhecer” a tarântula que está possuindo a pessoa e tocar “sua” música, que faz o possuído dançar ininterruptamente. Além dos rituais domésticos, o conjunto do tarantismo
prevê também rituais públicos, a serem realizados em determinados períodos
do ano, em uma capela na vila de Galatina, dedicada a São Paulo, sob cujos auspícios se realiza a prática de cura.
O livro é um longo percurso entre o “escândalo” do ritual “pagão”, passando
pela crítica às interpretações psiquiátricas do tarantismo enquanto “psicose
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coletiva”, até chegar à identificação do drama que encontra seu sentido nesse
simbolismo e na reelaboração camponesa das formas hegemônicas do catolicismo. O percurso é o mesmo das outras obras: do dado etnográfico para a
identificação da “crise da presença”, daí para a comparação e a contextualização histórica do nascimento e do desenvolvimento do conjunto mítico-ritual,
mediante uma cuidadosa análise documental, para voltar à compreensão do
dado etnográfico enquanto sistema operacional funcional para um “drama histórico” específico.
Mais potentemente do que nas obras anteriores, a abordagem de De Martino
coloca assim as bases para o desenvolvimento da etnopsiquiatria e da antropologia médica na Itália. Poder-se-ia dizer que ele inaugura uma “antropologia do
corpo”, ao analisar a questão da construção do “eu” corporal nas mulheres empenhadas na dança de possessão, ao mesmo tempo sintoma e prática de cura de
um estado psíquico específico, provocado pela mordida da aranha mítica. Também, é preciso lembrar, na expedição na Apúlia de 1959 – assim como aquela na
Lucânia de que se originou Sud e magia – o uso pioneiro das técnicas cinematográficas, que produziram documentos extraordinários, ainda hoje preciosos,
inaugurais de uma antropologia visual na Itália: a impressionante gravação do
ritual doméstico de possessão da “atarantada”, bem como do rito público na
capela de São Paulo, está disponível na internet (cf. La Taranta, 1962).
Para além das aquisições específicas do trabalho, porém, a peculiaridade
de La terra del rimorso está na pesquisa de campo, realizada entre 1953 e 1959.
Podemos caracterizar esse trabalho por dois elementos: por um lado, a escolha
metodológica da interdisciplinaridade e, por outro, a orientação epistemológica para o “humanismo etnográfico” que, em outras ocasiões, ele irá chamar de
“etnocentrismo crítico”.
A interdisciplinaridade da equipe de De Martino nas expedições etnográficas foi uma característica de seu trabalho no sul da Itália, que alcançou a
expressão mais completa em La terra del rimorso, em que trabalharam juntos
um psiquiatra, uma psicóloga, um musicólogo, una socióloga e, em algumas
ocasiões, uma jovem antropóloga, além de um fotógrafo. As razões da escolha
multidisciplinar são identificáveis na percepção cada vez mais acentuada do
papel das condições econômicas e sociais, e das psicológicas, em que se dá o
problema antropológico, sem desembocar no determinismo. A característica da
equipe é a recusa da justaposição de competências diversas, mas a articulação
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destas numa linguagem antropológica comum, ou, como ele próprio diz, de
“unificação metodológica”, que é, evidentemente, histórico-religiosa:
[…] cada colaboração interdisciplinar entre humanistas e naturalistas é destinada ao insucesso se o uso complementar das respectivas competências não
for precedido explicitamente pela escolha de uma perspectiva dominante.
(De Martino, 1996, p. 37).
Na volta do campo, em que foram utilizados vários instrumentos, da observação participante à aplicação de questionários, das entrevistas abertas às fechadas, da história de vida ao registro fotográfico, fílmico e sonoro, os materiais
eram analisados e interrogados a partir do “concreto problema histórico” que
orientava a pesquisa.
A etnografia direta dos “concretos problemas históricos” proposta por
De Martino, suportada pela opção historicista mediada pelo marxismo gramsciano, devia produzir um outro fruto, que é a própria reflexão sobre o trabalho
de campo. Curiosamente, essa reflexão sobre o lugar e função da etnografia
antecipa, mais uma vez, de décadas o debate a respeito da pretensa objetividade da observação. Se a objetivação “positivista” (de Spencer e Gillen, por
exemplo) acabava por deixar o objeto da pesquisa “tão insignificante, cifrado
e casual quanto o pesquisador”, a etnografia moderna deve qualificar os dois
termos do encontro etnográfico, “quem viaja para conhecer e quem é visitado
para ser conhecido” (De Martino, 1996, p. 19).
Ao Lévi-Strauss de Tristes trópicos são dedicadas as primeiras páginas de La
terra del rimorso, a propósito de sentido profundo da viagem etnográfica que o
antropólogo francês discute, ao falar da etnografia como produto do “remorso”
do Ocidente. Mas, se para Lévi-Strauss o trabalho do etnólogo é o fruto da escolha radical que implica o questionamento do sistema no qual nascemos e crescemos, para De Martino
entretanto, da nossa civilização, da civilização moderna não podemos, durante
a viagem etnográfica, estar dispostos a pôr em causa tudo da mesma maneira,
justamente porque esse relativismo extremo nos tornaria – sob a aparência de
uma disponibilidade ilimitada – estúpidos e incompreensivos. […] Podemos
avaliar todas as propostas apresentadas pelo homem para viver em sociedade
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à condição de nunca colocar entre parênteses a proposta humanista dentro da
qual estamos, e que é nossa tarefa levar adiante incessantemente, quaisquer que
sejam os “encontros” do nosso viajar. (De Martino, 1996, p. 21).
A “proposta humanista” de Ernesto De Martino, na qual o encontro etnográfico é estímulo e fundamento de um humanismo ampliado, só pode se dar na
perspectiva histórica, pela qual qualquer manifestação cultural remete a um
“drama histórico” específico, de uma sociedade ou de um grupo, em busca de
um resgate frente ao risco de “perda da presença”. E esse drama, como o próprio
autor mostrará em La fine del mondo, não pertence apenas às sociedades com
precários regimes de existência, mas constitui um risco antropológico permanente, ainda mais agudo na sociedade moderna, em que a experiência trágica
das duas guerras mundiais, os fantasmas do Holocausto e o terror atômico
radicalizavam uma crise expressa na ideia do fim, do homem e do mundo: um
“apocalipse sem escaton”, em suas palavras.
Por isso, os instrumentos analíticos demartinianos podem constituir, hoje,
uma sugestão potente, tanto na reflexão premente sobre o problema do fim
do mundo (Danowski; Viveiros de Castro, 2014; Krenak, 2019; Stengers, 2009)
quanto na abordagem das manifestações históricas de novos dramas, que se
explicitam na procura, cada vez mais frequente na sociedade contemporânea
aparentemente “desencantada”, de sistemas religiosos que oferecem “curas”
para os males do corpo e da alma: das igrejas evangélicas à renovação carismática, do neoxamanismo new age às curas espíritas. Ao olhar para as práticas rituais das diversas denominações, percebemos a centralidade dos estados
alterados de consciência (aquilo que De Martino definia como “de-historização institucional” e “regime protegido”), em cujo âmbito se dá a possibilidade
de reconfigurar os riscos de perda da presença a partir de valores culturais
compartilhados e, com isso, voltar para o devir histórico como produtores de
história. Para além das noções de “fé”, de “crença”, de consciência, de escolha
ideológica, Ernesto De Martino e seu arcabouço conceitual, elaborado em outro
momento e lugar, centrado na ideia de religião como “técnica protetora” contra
o risco de perda da presença, sugerem-nos novos caminhos para pensar problemas urgentemente nossos.
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Recebido: 31/03/2021
Aceito: 01/07/2021
|
Received: 3/31/2021
Accepted: 7/1/2021
Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional
This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License.
Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 28, n. 62, p. 317-349, jan./abr. 2022
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Artigos
Articles
http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71832022000100011
Anahuac o la producción social de la
diferencia: un episodio en la configuración
histórica de la antropología en México
Anahuac or the social production of difference:
an episode in the historical configuration
of anthropology in Mexico
Alfredo Nava Sánchez I
https://orcid.org/0000-0002-8777-8696
alfredonavasanchez@ufsj.edu.br
I
Universidade Federal de São João del-Rei – São João del-Rei, MG, Brasil
alfredonavasanchez@ufsj.edu.br
Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 28, n. 62, p. 351-383, jan./abr. 2022
Alfredo Nava Sánchez
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Resumen
Este artículo tiene como propósito analizar en Anahuac: or Mexico and the Mexicans,
ancient and modern de Edward B. Tylor, una forma de producir conocimiento que, en
sus argumentos y en su exposición, resulta ajena a las formas contemporáneas de
la antropología, pero que, por otra parte, revela las condiciones sociales y políticas
de su emergencia como disciplina científica. Al contrario de la criba utilizada por la
mayoría de trabajos que han estudiado Anahuac, por la que se ha omitido o justificado
la perspectiva “políticamente incorrecta” del libro, mi intención es destacarla como
una forma histórica de la producción del conocimiento antropológico. No como una
denuncia maniquea de la historia de la antropología, sino como un ejercicio propiamente histórico en el que el desconcierto con el que hoy recibimos los argumentos de
Tylor sirve para introducir una diferencia y un límite que distingue pasado y presente
de la antropología.
Palabras clave: historia de la antropología; producción de la diferencia; antropología
en México; capitalismo.
Abstract
The aim of this paper is to analyze a way of producing knowledge in Edward B. Tylor´s
Anahuac: or Mexico and the Mexicans, ancient and modern, that, in its arguments and in
its exposition, is foreign to contemporary forms of anthropology, but which, on the
other hand, reveals the social conditions and policies of its emergence as a scientific
discipline. Contrary to the filter used by most of the works that have studied Anahuac, by which the “politically incorrect” perspective of the book has been omitted
or justified, my intention is to highlight it as a historical form of the production of
anthropological knowledge. Not as a denunciation of the history of anthropology, but
as a proper historical exercise in which the confusion with which we receive Tylor’s
arguments today serves to introduce a difference and a limit that distinguishes past
and present of anthropology.
Keywords: history of anthropology; production of difference; anthropology in Mexico;
capitalism.
Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 28, n. 62, p. 351-383, jan./abr. 2022
Anahuac o la producción social de la diferencia
Para Ana Díaz Álvarez (In memoriam)
Introducción
A mediados del siglo XIX, Edward B. Tylor, uno de los “padres de la antropología”, visitó México y el resultado de ello se plasmó en el libro Anahuac: or Mexico
and the Mexicans, ancient and modern. Su paso por el país latinoamericano fue un
tanto fortuito, dice la historiografía (Stocking, 1987, p. 156-157), porque se derivó
de un encuentro casual en Cuba con otro británico: Henry Christy, empresario,
coleccionista y cuáquero como Tylor. De hecho, bajo el impulso de alimentar su
colección de objetos “etnológicos”, la idea de visitar México había sido idea original del propio Christy. Por su parte, Tylor se habría convertido en un viajero constante después de la muerte de sus padres y de un breve, aunque extenuante, lapso
como encargado de los negocios familiares. Su encuentro con Christy se habría
producido en este contexto, en donde una “inclinación antropológica” aún no
era evidente, pues –como sugiere Stocking a partir de la correspondencia intercambiada entre Tylor y su hermano Alfred– después de un año en los Estados
Unidos, su plan era instalarse definitivamente ahí por motivos empresariales.
Teniendo como referente Anahuac, George W. Stocking aseguraba que el viaje
a México bajo la guía de Christy había sido fundamental para que Tylor consolidara su interés por el conocimiento antropológico y esbozara algunos elementos que serían esenciales en sus reflexiones posteriores. Esto sería perceptible
en la sistematización de la información de los apéndices finales del libro o en
el empleo de una perspectiva de análisis comparada, cimentada en una visión
arqueológica, producto de las orientaciones de Christy, y que ampliaría sus
indagaciones sobre filología y mitología (Stocking, 1987, p. 157-158). Autores más
recientes reiteran estas conclusiones sobre el primer libro de Tylor (Appiah, 2018,
p. 293-294; Soar, 2017, p. 144-151; Strenski, 2015 apud Astor-Aguilera, 2017, p. 116) y
adicionan otros elementos identificables posteriormente en su obra, como algunos vinculados con su teoría de la cultura, la importancia de la historia para
definir las civilizaciones (Astor-Aguilera, 2017, p. 118-122) o la anticipación del
trabajo de campo como eje de la producción del conocimiento antropológico.
A pesar de estas consideraciones sobre lo que representaría Anahuac en la
trayectoria intelectual de Tylor, el libro no ocupa un lugar importante en lo que
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se consideran sus aportes más notables. Cuando se trata de esto, se citan sobre
todo dos textos: Researches into the early history of mankind and the development
of civilization de 1865 y Primitive culture de 1871 (Barnard; Spencer, 2010, p. 751).
Y hablando de la historiografía de la antropología, dista mucho de ser una de
las fuentes más utilizadas para estudiar e ilustrar sus orígenes en el siglo XIX.
Inclusive, como algunos antropólogos mexicanos han identificado, la obra tampoco tiene un sitio destacado dentro de la propia historia de la antropología en
México. El proyecto colectivo más ambicioso en este sentido, La antropología en
México (García Mora, 1987), lo refiere en su bibliografía pero no existe ninguna
mención de la presencia de Tylor en el país. Claudio Lomnitz (2005, p. 173) propone que tal vez esto se explique por la pésima imagen que el británico exhibe
de México en su libro. Mientras que Leif Korsbaek (2007, p. 30-31) –el traductor
de la única versión en español, publicada en 2007– dice que Anahuac no puede
considerarse un texto científico ni de antropología, pero sí un libro de viajes en
donde es posible entender que, en alguna medida, México tuvo algo que ver en
la transformación de Tylor en antropólogo.
En términos formales, Anahuac es particularmente un libro de viajes. Los doce
capítulos que lo componen están ordenados según las jornadas emprendidas por
Tylor y Christy desde su llegada a Cuba, su larga estancia en México y su regreso a
Inglaterra. Entremedio sobresale la atención dedicada a los sitios arqueológicos, al
análisis de las “antigüedades” y, en general, a la “civilización azteca”. Sin embargo,
esto no está separado y tratado en un solo capítulo, sino diluido entre otros varios
temas a lo largo de la obra: la política mexicana del momento, el clima, la religión cristiana, la arquitectura, los insectos y varios otros temas. Entre estos temas
resultan relevantes las reflexiones de Tylor, en una línea más reconociblemente
“antropológica”, sobre la sociedad mexicana. De forma particular, la oposición
entre los grupos que la componen, su historia y la relación que toda ella mantiene
con la que se encuentra al otro lado de su frontera norte, la estadunidense.
Por otra parte, Anahuac no es un libro por completo ajeno al medio antropológico actual. En este sentido no se trata de una obra silenciada, pero sí complicada de abordar. Los pocos historiadores y antropólogos que la han tomado
en serio han tenido que eludir los diversos pasajes racistas1, etnocentricos
1
Resulta complejo hablar de una ideología racista consolidada, de circulación plena y masiva
durante la mitad del siglo XIX. Como bien recuerda uno de los dictaminadores anónimos →
Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 28, n. 62, p. 351-383, jan./abr. 2022
Anahuac o la producción social de la diferencia
y clasistas para destacar aquello que se acopla más a los postulados contemporáneos de la antropología. Uno de esos antropólogos –activo en Estados Unidos y con orígenes mexicanos– escribió que Anahuac era un libro políticamente
incorrecto para 2017 pero que a pesar de esto el pensamiento teórico y metodológico de Tylor era inevitable (Astor-Aguilera, 2017, p. 120-121).
Si se piensa en la dificultad que significa lidiar hoy con esos argumentos
racistas y clasistas, tan contrarios a los criterios que actualmente rigen la práctica de la antropología, cierta extrañeza y ambigüedad podrían definir mejor a
Anahuac y al propio Tylor. Dentro de la historiografía hegemónica de la antropología, todavía hoy persisten las polémicas sobre el papel que habría tenido
en los “orígenes científicos” de la disciplina. ¿En dónde clasificar al británico?
¿Como un precursor de “gabinete”? ¿Es posible hablar de antropología sin trabajo de campo? Y si no, ¿habría que situarlo en una etapa “primitiva” o “imperfecta” de ella? Interrogantes a las que podría agregarse, desde el presente, ¿si es
posible hablar de una antropología con argumentos racistas?
Desde esta misma perspectiva, podríamos incrementar la extrañeza que
América Latina genera dentro de aquella perspectiva historiográfica, que en la
mayoría de las historias de la antropología tiene un lugar secundario y marginal. Estas historias centran privilegiadamente el espacio de su emergencia
en África y definen como su motor esencial al colonialismo europeo, particularmente el británico. Pero los argumentos que Tylor sostiene en Anahuac nos
recuerdan que detrás de ese colonialismo estaba la expansión del capitalismo
y que, en este sentido, tanto la antropología cuanto el colonialismo no eran de
ninguna manera fenómenos exclusivos de la incursión del imperio británico
en el continente africano, sino obra también de sus comerciantes y empresarios instalados en el americano.
Considerando esa extrañeza como un dato histórico y un problema sobre
la identidad de la antropología, este artículo tiene como propósito analizar
en Anahuac una forma de producir conocimiento que, en sus argumentos y en
su exposición, resulta ajena a las formas contemporáneas de la antropología,
pero que, por otra parte, y según el papel que –no sin polémicas– una narrativa
→
de este artículo, no fue sino entre 1919-1923 que el término “racist” fue incluido en el Oxford
English dictionary. Con todo, esto no quiere decir que el término no fuera utilizado antes con un
sentido ya de distinción y clasificación social.
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histórica hegemónica ha dado a Tylor, revela las condiciones sociales y políticas
de su emergencia como disciplina científica. Al contrario de la criba utilizada
por la mayoría de trabajos que han estudiado Anahuac, separando, omitiendo o
justificando la perspectiva “políticamente incorrecta” del libro, la intención es
destacarla como una forma histórica de la producción del conocimiento antropológico. No como una denuncia maniquea de la historia de la antropología,
sino como un ejercicio propiamente histórico en el que el desconcierto con el
que hoy se reciben los argumentos de Tylor sirve para introducir una diferencia
y un límite que distingue pasado y presente dentro de la disciplina.
Junto con ello, Anahuac permite colocar un énfasis especial en los vínculos
entre las redes de las élites locales y británicas en México y la posibilidad misma
de la investigación antropológica. Sus protagonistas, Tylor y Christy, son presentados bajo la calidad de viajeros y empresarios, lo cual también podría asombrar
en una lectura contemporánea, pero que en el libro funciona con la mayor de las
naturalidades. Lo cual nos recuerda que América Latina fue un espacio fértil para
los viajeros que mezclaban el interés científico y estético con los planes empresariales (Pratt, 2010, p. 268-316). Las redes sociales y políticas que articularon la
expansión e instalación del capitalismo en el continente, en algunos casos, fueron
las mismas que posibilitaron la emergencia de las “ciencias sociales” en la región.
La narrativa hegemónica de la historia de la antropología
y sus contingencias
El paso de Tylor por México abre la cuestión sobre el papel que habría tenido
el subcontinente latinoamericano en la formación del campo antropológico. Al
día de hoy, la historiografía hegemónica le otorga un papel poco relevante. En
un sentido diferente, su hilo se concentra en describir la práctica de los primeros antropólogos, todos europeos, sobre todo en el espacio africano o australiano.
Resulta expresivo de ello la división propuesta en el índice de un libro editado
por Henrika Kuklick (2008) en el que, por un lado, están las “major traditions”:
la “norteamericana”, la británica, la de “lengua alemana” y la etnología francesa. Mientras que en otro estarían los “neglected pasts”: las escuelas nórdicas,
los museos holandeses, la antropología rusa y la arqueología china. A propósito
de esta distinción podría plantearse una más –no explicitada en A new history of
Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 28, n. 62, p. 351-383, jan./abr. 2022
Anahuac o la producción social de la diferencia
anthropology– en la que también suele aplicarse una etiqueta nacional o regional
y que, en buena medida, determina aquella clasificación. Se trata de la distinción
entre los territorios –naciones o regiones– del ejercicio de la disciplina, es decir,
aquellos de los que provienen los sujetos que “producen” conocimiento, y los que
sirven de campo de observación, los espacios que han servido de objeto de estudio.
Más recientemente, historiadores importantes de la disciplina, como la
misma Kuklick, han asumido que las formas y los contenidos de este discurso
están en el centro de un campo de disputas en el que se expresan hegemonías
y confrontaciones sobre el sentido del pasado que identifica a la antropología.
Kuklick (2008), en su introducción al libro colectivo A new history of anthropology, reconoce que las características históricas que la han definido –entre ellas,
la elección de sus pioneros– refieren una jerarquía y una hegemonía articuladas internacionalmente, en las que se expresarían las disputas entre diferentes “escuelas nacionales” por imponer su perspectiva sobre el pasado. Así, hasta
muy entrada la segunda mitad del siglo XX, el punto de vista anglosajón, conformado por la mirada inglesa y estadounidense, habría instalado una hegemonía
en el recuento del origen y desarrollo de la antropología como campo científico.
De la misma manera, para la antropóloga estadounidense, serían productos históricos lo que define como “pecados originales” de la disciplina, particularmente sus vínculos con los sistemas coloniales. Matiza, sin embargo, que
en algún sentido este rol coercitivo y de intromisión de los antropólogos en
las sociedades estudiadas –que en más de un caso originó un proceso destructivo para ellas– se explicaría por un impulso proveniente desde la “Edad de
las exploraciones” y que se mantendría hasta el día hoy (Kuklick, 2008, p. 5).
Pero no solo los errores serían explicados –y justificados, parecería querer decir
Kuklick– por la historia, posturas más progresistas y cambios positivos respecto a esos orígenes obscuros estarían explicados e incluidos en dicho proceso
histórico –algunos de ellos tan radicales como la inclusión de una antropología
nativa o una militancia por la causa de las sociedades antes objetivadas.
Si bien habría que reconocer cierta autocrítica en la reflexión de Kuklick –
pues sin duda alguna ella misma habría participado de la conformación de esa
perspectiva anglosajona hegemónica– también habría que subrayar sus límites.
A pesar de reivindicar una postura desde la historia y, en algunos casos, desde
un análisis político, Kuklick parece contradecirse cuando, por un lado, supone
implícitamente la “unidad” de la antropología a partir de los parámetros de los
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antropólogos “euro-americanos”2 y, por otro, excluye de las contingencias históricas a la propia disciplina y, por extensión, sus contenidos, teorías y metodologías. De hecho, es lo que la antropóloga llama el “obituario de la disciplina”
propuesto por James Clifford –un cuestionamiento a la uniformidad y continuidad de la antropología–, lo que le lleva a asegurar que las disciplinas científicas no tienen caracteres fijos y que, “innegablemente”, ha sido un “núcleo
transcultural” lo que ha permitido que, a pesar de tantas mudanzas, la antropología perdure como campo de conocimiento delimitado (Kuklick, 2008, p. 2).
Llama la atención la reacción hostil de Kuklick a los planteamientos de
Clifford (2008), que –sin proponer de hecho la “muerte” de la disciplina– se presentan sobre todo como una serie de críticas y matices a la idea de un conocimiento antropológico puro, al mismo tiempo que una reivindicación de una
hibridez que para él caracterizaría la antropología contemporánea. Así, frente a
ese supuesto diagnostico mortal de la antropología, Kuklick contrapone un argumento por el que aseguraría una continuidad sin fin, pues lo que identifica como
su “núcleo” identitario –su cualidad de cruzar entre culturas– parecería referir
una dimensión ideal que transcendería los cambios de sus prácticas e intercambios teóricos y metodológicos, tema central de la discusión del artículo de Clifford.
Por otra parte, lo cierto es que este punto de vista está presente en la mayoría de las historias de la disciplina, generando, en términos de su contingencia
histórica, diversas paradojas, contradicciones y matices reiterados. Un ejemplo
notable es la ambigüedad y oscuridad para definir sus orígenes. Tema esencial
para este trabajo si se piensa que esa narrativa le atribuye a Tylor haber sido uno
de los “padres fundadores” o “pioneros” de la antropología (Hylland; Sivert, 2001,
p. 16-44). Bajo el manto protector de los colonialismos capitalistas europeos, particularmente del británico, es consenso situar tales origenes entre el final del siglo
XVIII e inicio del XIX. No obstante, es aquí en donde comienzan las explicaciones,
las correcciones y los matices, pues esas mismas historias suelen hablar también
de proto-antropologías o –proponiendo una contradicción evidente– de la antropología antes de la antropología (Liebersohn, 2008) para referir periodos anteriores
a esos siglos. Esto último permite identificar nuevamente ese núcleo definitorio
del que hablaba Kuklick que, inclusive, trascenderia a la antropología misma.
2
Ejemplos de antropólogos latino-americanos y asiáticos no existen.
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Anahuac o la producción social de la diferencia
En esta línea habría que entender los varios matices y adjetivos aplicados
para describir la práctica antropológica dentro del propio siglo XIX, los cuales
sirven para subrayar cierta imperfección o “incompletitud” de la antropología
en el periodo: “de amateurs”, “de no profesionales”, “de gabinete”. Varios artículos se han generado ante la interrogante de si los practicantes de este “tipo de
antropología” son dignos o no de tales distinciones (Kuklick, 1997; Sera-Shriar,
2013; Stocking, 1992). Por lo que resulta por completo pertinente preguntarse
¿cuándo y dónde comienza la antropología completa, sin adjetivos?
El lugar ambiguo de Tylor en la historiografía
Michel de Certeau entendía la historia como una disciplina reflexiva que funcionaba a partir de la arbitrariedad de los límites, “necesarios y negados”, por los
que la actividad del propio historiador introducía la diferencia entre un pasado
y un presente (Certeau, 1993, p. 52-53). Organizada a partir de un eje teleológico
–podríamos decir, vertical–, que tiene como modelo implícito la antropología contemporánea y por el que se separan las prácticas no antropológicas de las que anticiparían o fundarían la disciplina, esta división ha guiado la historia hegemónica
de la disciplina generando diversas discusiones o ambigüedades. En el centro de
ellas ha estado la figura de Tylor y de otros “pioneros” de la antropología del siglo
XIX. De un lado, teniendo en cuenta esos otros géneros de su escritura –ajenos a
los parámetros actuales–, así como ciertas prácticas o ausencias epistemológicas
de la producción de sus trabajos, se les ha situado en una etapa previa o menos
científica de la disciplina antropológica. Por otro, cuestionando esta división, se
ha querido ver en la práctica de los “antropólogos de gabinete” la evidencia de un
ejercicio científico no muy distinto al de los futuros antropólogos de campo.
Acerca de la primera perspectiva, y partiendo de una serie de criterios para
establecer el paso de un conocimiento “popular y esotérico” a uno “especializado”, Kuklick define los elementos sociales y epistemológicos de naturalistas y
amateurs de la primera mitad del XIX de los que se derivaría el ejercicio propiamente científico de los primeros antropólogos. En términos epistemológicos,
tales elementos serían la delimitación de áreas y herramientas de análisis en
las que el trabajo de campo o del estudio in situ sería fundamental para organizar reflexiones teóricas. En este caso, una diferencia notable para Kuklick
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entre las prácticas de los naturalistas y las que definirán posteriormente a los
antropólogos será la distinción de los “objetos de estudio”. Para ella existe una
diferencia cualitativa, y definitoria en el caso de la identidad de la antropología, entre estudiar insectos y plantas y analizar el comportamiento de seres
humanos. Y alrededor de los aspectos sociales de esas mudanzas analíticas,
encuentra otra distinción importante entre las reflexiones antropológicas de
gabinete de los gentlemans y el ejercicio incomodo y riesgoso que implicaba la
observación in situ de sociedades alejadas de las condiciones de vida aristocrática. Finalmente, estas diferencias habrían generado un conflicto social entre la
autoridad aristocrática y la que proporcionaría la universidad a los individuos,
varios de ellos burgueses o pequeño burgueses, adscritos a ella (Kuklick, 1997).
Por su parte, en años recientes, Efram Sera-Shriar ha propuesto relativizar
esta frontera entre “antropólogos de gabinete” y propiamente científicos, argumentando que las características enumeradas por Kuklick pueden ya identificarse en los primeros, con lo que, más que una ruptura, entre ellos habría una
continuidad práctica y epistemológica. A partir de la crítica de Simon Schaffer
acerca de una historia de la antropología construida alrededor de mitos, SeraShriar asegura que los naturalistas del siglo XIX no eran observadores pasivos,
teorizando en sus oficinas alrededor de materiales descontextualizados por
haber sido colectados por terceros. En un momento en donde financiar investigaciones antropológicas de tiempo completo era imposible sin tener otras
ocupaciones, la situación privilegiada de aristócratas y –tendríamos que agregar a partir de Tylor– empresarios les permitía realizar este tipo de emprendimientos fuera de sus países y de la “comodidad de su medio social”. Ejemplos
de ello serían personajes como Alexander von Humboldt, Charles Darwin o el
propio Edward Tylor con sus viajes a México y Estados Unidos. Por otra parte,
el colonialismo no habría sido un factor del cual se tendría que separar tan
radicalmente el desarrollo epistemológico de la disciplina, pues –sostiene SeraShriar (2013, p. 33-34)– si no fuera por las exploraciones (y explotaciones, podría
también decirse) de “otros mundos” las reflexiones antropológicas no podrían
haber ocurrido y posteriormente perfeccionadas delante de nuevos escenarios.
Por último, al ser el trabajo de campo, si no el elemento esencial, uno de los
criterios centrales de la identificación de la antropología como ciencia, SeraShriar (2013, p. 37) defiende la complejidad en las “observaciones” y los juicios
realizados por el análisis de los “antropologos de gabinete”, que –según él– no
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Anahuac o la producción social de la diferencia
estarían tan alejados de los planteados, por ejemplo, por Malinowski en Los
argonautas del Pacífico Occidental. Con algunos matices, esta misma reivindicación fue colocada por George W. Stocking (1992) para subrayar la existencia
de una práctica antropológica que no siempre tuvo en el trabajo de campo su
rasgo epistemológico determinante.
Una lectura de Anahuac: or Mexico and the Mexicans, ancient and modern bajo
criterios distintos de los que organizan la perspectiva de las posturas historiográficas antes referidas deja ver en ellas el problema sustancial que implica
silenciar lo que queda fuera del esquema hegemónico que define a la antropología como ciencia. En otras palabras, fuera del criterio vertical por el que
la práctica contemporánea moldea su propio pasado y que, para aludir a los
ejemplos citados, expurga los rasgos que no responden a la identidad impuesta
desde esa contemporaneidad. En este sentido el ejercicio historiográfico remite,
como sugería Michel de Certeau, a una relación social particular y a las disputas que la organizan. Así, mientras que para Kuklick, Tylor y sus contemporáneos no dejan de ser antropólogos “amateurs” o de “gabinete”, para Sera-Shriar
son antropólogos ya completos y fundadores plenos de la ciencia antropológica.
Sin embargo, una lectura a partir de un criterio horizontal, es decir, que considere todo el contenido de esos trabajos y no excluya los rasgos discrepantes
de la idea tradicional de antropología, deja ver, por un lado, las contradicciones del esquema hegemónico y, por otro, las contingencias, discontinuidades
y arbitrariedades de la idea de una ciencia antropológica homogénea y sin discordancias. En esto Anahuac es un excelente ejemplo de ello.
Desde cierta perspectiva, sus páginas muestran el lenguaje y las descripciones de un libro de viajes que, buscando animar la curiosidad del lector, detallan
las peculiaridades y los rasgos propios y “extraordinarios” del espacio visitado.
Sus referencias a la guerra civil por la que atravesaba México le proporcionaban un cierto aire periodístico a su introducción. Pero al mismo tiempo que
estos matices existen, en el texto también podrían subrayarse otros que lo relacionarían con una “observación científica” o con los inicios de una “práctica
etnográfica” (Sera-Shriar, 2011). Por ejemplo, la tabla que muestra los itinerarios
de los dos viajeros en su pesquisa de las “antigüedades mexicanas” –según el
valor epistemológico que por esos años tenían los restos materiales– muestra
la delimitación de un objeto de estudio. En una línea semejante podría considerarse la propia visita de Tylor a los lugares de estudio y los intercambios con
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sus habitantes, que algunos autores han definido como una observación in situ
de los objetos de estudio –entiéndase, indios, mestizos y objetos– que supondría ya un tipo de trabajo de campo (Sera-Shriar, 2011). También el detalle de
las reglas y las condiciones que, por un lado, posibilitaron la escritura del libro
y, por otro, lo destacaban de otros estudios sobre el “pasado mexicano” darían
cuenta de cierta rigurosidad científica.
Con lo cual, Tylor dejó testimonio de ámbitos contextuales, sociales y políticos, centrales en la formulación de sus argumentos: el periodo temporal de
su viaje –del mes de Marzo a Junio de 1856–, la serie de conflictos bélicos que
acontecían en algunas regiones del país y, en medio de ellos, la suerte que él
y su acompañante – el coleccionista Christy– habían tenido al encontrar una
pequeña tregua que les había permitido “realizar excursiones a ruinas y lugares
extraordinarios”, así como para “examinar la colección nacional de antigüedades y otros objetos de interés” (Tylor, 1861, p. V3).
Además de estas circunstancias, una que llama la atención por su reiterada
presencia a lo largo del libro es el auxilio y orientación que recibió de varias
personas del lugar. Representó un elemento tan fundamental de su visita, que
al inicio de su texto dedica a sus anfitriones y asistentes en el país americano
un reconocimiento por la ayuda y hospitalidad recibidas durante tres meses,
sin las cuales –según Tylor– ningún otro viajero, en tan corto tiempo, podría
haber conocido lo que él y su compañero de viaje exploraron y descubrieron de
México. El británico no solo se refería a la ayuda práctica para moverse en una
geografía desconocida, sino también al papel que esas personas tuvieron para
corregir sus observaciones acerca de los mexicanos.
Articulaciones aristocráticas
En un artículo dedicado al viaje de Tylor a México, Sera-Shriar (2011) afirma que,
además de influir en sus reflexiones posteriores, las descripciones de Anahuac
reflejan ya las preocupaciones y el compromiso del antropólogo con su objeto
de estudio, en buena medida, debido a que tiene como sustento analítico una
3
Todas las traducciones de las citas son propias.
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Anahuac o la producción social de la diferencia
“investigación de campo”. Para ilustrarlo, propone, entre otros ejemplos, una de
las descripciones “reflexivas” del británico por las que se demostraría su empatía con los “no europeos”, específicamente acerca de la opresión a la que los
indios eran sometidos por los blancos en México. Se trata de un cuadro en el
que Tylor da cuenta de un “indio moreno de la costa” que servía como soldado
en Veracruz –el puerto marítimo más importante de México en la época–,
[…] vestido con unos harapos que alguna vez fueron un uniforme, descalzo, bastante sucio y armado con un viejo fusil de chispa. Sinceramente, eran tan malo
de ver, y seguramente su condición era peor de lo que mostraba que, sin duda
alguna, había sido forzado de servir en contra de su voluntad, con lo que odia con
todo su corazón a los blancos y a su forma de actuar. Seguramente desertará en
cuanto tenga oportunidad y, aunque difícilmente será una gran perdida para el
servicio, contribuirá con su granito de arena al sentimiento de odio que ha ido
aumentando durante muchos años entre los indios morenos contra los blancos
y los mestizos. (Tylor, 1861 apud Sera-Shriar, 2011, p. 4).
Pero contrariamente a lo que Sera-Shriar busca demostrar, Anahuac no exhibe
ni propone un análisis empático con la condición de opresión de los indios, y
tampoco expresa la perspectiva del individuo de ciencia que, desde su autonomía, expresaría la “verdad” detrás de lo observado. De hecho, en el texto de Tylor
pueden identificarse varios gestos que difícilmente podrían definirse como
empáticos con la vejación de los indios, y sí como crudamente indiferentes a
ella y, peor todavía, como alentadores de la misma. De hecho, existe en ellos
una perspectiva pragmática orientada por el criterio de racionalizar la explotación de los recursos y las personas.
Tal vez el siguiente párrafo sea el ejemplo más elocuente acerca de ello. Pensando en mejorar la productividad de la plantaciones en Cuba –lugar por el que
había pasado antes de llegar a México–, Tylor (1861, p. 16-17) escribió:
Un posible artículo de exportación que examinamos con la mayor precisión
posible fueron los habitantes indígenas. Están ahí. Por varios motivos, el artículo
perfecto para el comercio: morenos, indefensos, fuertes, saludables y trabajadores; y los arroyos y los manglares de Cuba se encuentran solamente a tres días
de navegación. Las plantaciones y las minas requieren cien mil hombres para
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ponerlos a trabajar de lleno, y pueden absorber a indígenas, chinos y negros sin
distinción –a cualquiera que tenga la piel oscura y que sea posible hacerlo trabajar–, podrían tomar a esos yucatecos en la cantidad que fuera, y les pagarían bien.
Y una vez que se encuentren en una plantación de azúcar o dentro de una mina,
hecho los típicos registros falsos y el gobernador haya recibido su onza de oro
por cada uno de ellos para dejarlos pasar, y sus subordinados su tajada, entonces
¿quién los sacaría de nuevo o quién siquiera los encontraría?
El británico apuntó que esta idea se le había ocurrido a él y a Christy cuando
ambos “estaban sentados mirando” cuánto y cuán pesado trabajaban los indios.
En ese momento, y hablando con un “español inteligente”, también supieron
que años atrás esa empresa había sido puesta en marcha por dos comerciantes británicos, y que había fracasado debido a las complicadas condiciones de
transportación y a la resistencia de los propios indios, pues varios consiguieron
escapar antes de llegar a Cuba (Tylor, 1861, p. 17).
No hace falta decir que lo anterior dista de ser un gesto de empatía con la
opresión de los indios. El esquema epistemológico de Anahuac planteado está
compuesto por varios pasajes y expresiones semejantes. Tylor propone conocer
México y sus antigüedades a partir del privilegio que le suponía ser heredero
de empresarios británicos en un país en plena formación e inmerso en constantes disputas bélicas entre fracciones políticas que buscaban imponer su
autoridad. Resulta difícil en este sentido dejar pasar, primero, la experiencia
de Tylor como encargado de los negocios familiares y después como capitalista
en los Estados Unidos. Segundo, el papel económico y político que el imperio
británico tuvo en los procesos de formación de la naciones latinoamericanas
durante el siglo XIX.
A lo largo de este siglo, diversas empresas francesas y británicas invirtieron grandes cantidades de dinero y se establecieron en México (Alatriste, 2011,
p. 6-7). Las inglesas, en particular, se destacaron en la minería, la creación de
bancos y en la importación de diversos bienes (Alatriste, 2011). Varios pasajes
de Anahuac explicitan el vínculo entre los itinerarios de investigación de Tylor
y la presencia de comerciantes y mineros británicos en las regiones visitadas, y
cuando ésta no es evidente, lo es su familiaridad con la élite social del país. De
aquí que la comprensión de sus “observaciones científicas” no pueda ser completa sin resaltar este vínculo, pues su ejercicio y formulación implicaba un
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trabajo colaborativo. Parafraseando a un historiador ingles –Alan Knight–, en
una lógica y articulación que puede ser comparada a la del comercio: “las élites
locales se ocuparon [figurativamente] de administrar la tienda mientras que
los británicos les proveyeron con las materias y el crédito” (Knight, 1999 apud
Fowler, 2018, p. 43; Pratt, 2010, p. 272).
Esta cooperación entre élites se expresa en la organización del itinerario
de Tylor y Christy, cuyo punto estratégico fue la Ciudad de México y el Hotel
Iturbide como lugar de alojamiento. Éste último, antigua e inacabada residencia del que por corto tiempo fuera el primer emperador de la independiente
nación mexicana –el español, Agustín de Iturbide–, se encontraba en la calle de
“Plateros”, que históricamente había sido lugar de las casas de nobles y comerciantes mineros, así como del convento de la orden franciscana, una de las más
importantes aún en el siglo XIX. Según Tylor, sus cuartos eran “confortables”
y en el restaurante de los bajos “todos los días cenaba el hijo de aquel emperador.” A partir de su inauguración como hotel en 1855, comparable –según
Clementina Díaz (1974, p. 134)– con los mejores y más lujosos de Europa y Estados Unidos, se convirtió en un espacio de encuentro de personajes “notables”,
nacionales y extranjeros.
Ese ambiente refinado, pero sobre todo de encuentro de las élites económicas, sociales e intelectuales, marcó el punto de partida de las indagaciones de
Tylor acerca de México:
El cajón lleno de cartas de presentación del señor Christy ha producido una
cosecha inmediata de amistades agradables, cuya hospitalidad es ilimitada. No
somos ociosos, ni mucho menos; y generalmente a un día de trabajo sigue una
cena social y una velada dedicada a registrar los resultados de nuestras investigaciones. (Tylor, 1861, p. 40).
A propósito de algunas celebraciones y costumbres propias del lugar, los dos
británicos seguían la reglas sociales que los identificaban con las “mejores clases”. Durante la Semana Santa, por ejemplo, habían paseado por la ciudad y
seguido con detenimiento la construcción y quiebra de las figuras de Judas con
“trajes de noche”, según lo demandaba la etiqueta del lugar (Tylor, 1861, p. 50). En
esos mismos días, cenaron con “Don José de A.”, a quien Tylor describe como
un hispano-americano educado y con “sentimientos ingleses”, así como buen
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conocedor de la empresa familiar del propio Tylor. El encuentro es presentado como una ventana a las particularidades del medio “mexicano”, desde la
comida servida en la cena hasta el paseo nocturno para atestiguar las maneras
en las que las multitudes celebraban la conmemoración católica en las iglesias.
Mientras tanto, se describe a Christy aprovechando los intervalos para recolectar “curiosidades”, como las semillas de una fruta extraña: el “mamei” (Tylor,
1861, p. 52-53).
Anahuac está construido también por los miembros de las élites locales,
que permiten a los dos viajeros británicos acceder a los lugares, las costumbres y, consecuentemente, a las interpretaciones marcadas por su situación
social. Es sobre todo el producto de la mezcla entre la comparación del viajero
Tylor –que una y otra vez voltea a Europa para dar sentido a lo particular del
lugar– y la mirada local de un grupo dividido entre las formas de la nobleza,
aun persistentes en la figura de terratenientes y grandes comerciantes, y las
de una burguesía que lentamente instalaba una hegemonía cultural en el país.
Es relativamente sencillo identificar a los “informantes” principales de Tylor
dentro de esta franja. La mayoría de ellos están marcados por el “Don”, como
el José de A. mencionado más arriba, y en las páginas siguientes desfilan otros
tantos: Don Pepe, Don Pancho, Don Guillermo, (p. 121, 182, 239), Don Juan, Don
Alejandro (p. 121), Don Antonio, Don Felipe, (p. 198), Doña Juana (p. 245), Don
Miguel Cervantes (p. 282).
Los extranjeros aparecen también como parte de ese grupo privilegiado por
Tylor. El capítulo dedicado a Pachuca y Real del Monte, dos poblaciones próximas a la ciudad de México y cuyas minas eran explotadas por una compañía
inglesa4, permite ver con mayor nitidez la forma en que, bajo la mascara de la
superioridad nacional, el privilegio social y económico sostiene la producción
de diferencia en la escritura de Tylor. Distintos a los españoles o a los “medio
ingleses”, los británicos, en su adaptación al país americano, encarnarían una
presencia civilizatoria comparada con la de los propios locales o de otras naciones. En un pasaje bastante ilustrativo de su metodología, Tylor coloca como
4
“Cuando habíamos pasado una semana o dos en la Ciudad de México, decidimos hacer una
excursión al gran distrito platero de Real del Monte. Algunos de nuestros amigos ingleses estaban partiendo para Inglaterra y habían alquilado toda la Diligencia hacia Pachuca, yendo de
ahí rumbo a Real del Monte, y luego a Tampico, con todas las pompas y circunstancias de una
columna de carretas y una escolta armada” (Tylor, 1861, p. 72).
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formula de su argumento una comparación entre los conquistadores españoles
del siglo XVI y la compañía minera británica del XIX. Flexibilizando cualquier
criterio y especificidad histórica, la conclusión es la superioridad civilizatoria
de los ingleses.
Como por milagro teníamos una carretera buena, una consecuencia sencilla del
deseo de la Compañía del Real del Monte de tener una buena carretera, y que
ellos mismos la hicieron. Qué desafortunados son todos los países españoles en
lo referente a carreteras, pues es uno de los primeros pasos hacia la civilización.
Si uno ha viajado en la Vieja España, es fácil imaginar que los colonos no llevaron consigo ideas muy iluminadas al respecto y, ya que no se les permitió a los
mexicanos mantener comunicación con otros países, es fácil explicar porqué el
país no es transitable para carretas. Pero si el dinero – o solamente la mitad de
él – que ha sido gastado en la construcción y el equipamiento de iglesias y conventos, hubiera sido invertido en la construcción de carreteras, México podría
haber sido un país grande y próspero (Tylor, 1861, p. 76).
Más adelante habla sobre Mr. Bell, representante de la compañía inglesa en
la población de Regla, vecina de Pachuca y Real del Monte. Tylor lo describe
como un personaje con una vida muy peculiar y un tanto curiosa pues ante
varios obstáculos –entre doscientos y trescientos indios que “roban y mienten
sin escrúpulos”, un clima que ronda los extremos a lo largo del día y unas responsabilidades que requieren el máximo de destreza– consigue realizar un trabajo impecable en la mina. Se trata de un hombre tan singular y superior a su
entorno que sus amistades tiene que buscarlas dentro de su entorno familiar,
ya que incluso la élite mexicana más privilegiada tiene un grado intelectual
tan desigual en comparación con un ingles educado que “su sociedad le aburre
completamente y prefiere quedarse solo que hablar con ellos” (Tylor, 1861, p. 79).
Esta última referencia sirve para marcar los límites de las observaciones
de Tylor como producto de su articulación con las perspectivas de las élites
locales y extranjeras. Dentro de su consideración por las primeras, el británico
establece una jerarquía que las distingue de las segundas, particularmente de
las inglesas, y que en el fondo le sirve para autorizar y legitimar su punto de
vista. Ese criterio no es solo de una superioridad técnica y tecnológica de los
británicos, se trata también de las condiciones generales que caracterizarían
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a las sociedades o, mejor, a las naciones. El pasado, el presente, las condiciones sociales, económicas, políticas y las “razas” que componen a las sociedades
deben ser consideradas para marcar sus fronteras y características. Es posible
en este sentido establecer la proximidad analítica que tiene Anahuac con la síntesis que más adelante (1871) va a representar el concepto de cultura formulado
de Tylor (1975, p. 29): “La cultura o civilización, en sentido etnográfico amplio, es
aquel todo complejo que incluye el conocimiento, las creencias, el arte, la moral,
el derecho, las costumbres y cualesquiera otros hábitos y capacidades adquiridos por el hombre en cuanto miembro de la sociedad.” Su diferencia consiste
apenas en el aspecto formal que distingue las descripciones de los conceptos
teóricos. No obstante, ambas tienen el mismo objetivo que es configurar un
criterio de autoridad para producir y, al mismo tiempo, explicar la diferencia.
Este último punto nos recuerda que, más allá de que los juicios expresados por Tylor puedan remitirse a una dimensión de un interés explícitamente
capitalista, el británico pretendía también en su descripción un punto de vista
científico y clasificatorio. En este sentido, si se tomara en cuenta la categorización que Mary Louise Pratt (2010, p. 268-286) hace sobre la literatura de los
viajeros extranjeros en América del Sur durante la primera mitad del siglo XIX,
la perspectiva empleada por Tylor en Anahuac participaría tanto de la que la
autora define como de la “vanguardia capitalista”, identificada con los relatos
de “ingenieros, mineralogistas, criadores, agrónomos y militares”, como de la
mirada científica, “contemplativa y estetizante” empleada por Alexander von
Humboldt.
Lo invisible y la construcción de la diferencia
En varios pasajes de Anahuac Tylor insiste sobre la oposición y lucha entre
“las razas” o las “clases” que componen la población mexicana. Más allá de la
inconsistencia del uso de ambos términos, lo que se mantiene constante es la
descripción de una disputa marcada por categorías, colores y sus propiedades
sociales. La “clase blanca”, junto con los “mestizos”, se mantendría en permanente oposición a los indios “morenos” (browns), debido a los problemas del
idioma y a que “existe poca simpatía entre las dos clases.” En esta oposición los
“blancos” se representarían a sí mismos como la gente de razón, mientras los
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indios, –según Tylor (1861, p. 52-53) dice haber escuchado– “que son meramente
indios, no son gente en absoluto”.
Por otra parte, esta confrontación toma sentido como propiamente mexicana por la descripción de los marcos “culturales” presentados, según la propia definición de Tylor. Como todo libro de viajes, la identificación del lugar
y sus pobladores juega un papel central en Anahuac. La peculiaridad en este
caso es que parecería que lo que identifica esencialmente a México es la fragmentación, las contiendas y los contrastes. “México es uno de los países en el
que el contraste entre la riqueza y la enorme pobreza es más evidente. Ningún
viajero llega al país sin hacer esta observación” (Tylor, 1861, p. 294). “Blancos” y
“mestizos” se oponían y luchaban con los “indios”, un país fuera de control, en
guerra permanente y con gobiernos corruptos; la presencia hegemónica e institucionalizada de la Iglesia Católica junto a la libertad de prensa representan
un enigma insoluble, del mismo tipo que la divergencia entre la “pobreza” y
“vulgaridad” de los indios frente a la “belleza” de los restos de construcciones
antiguas o a la de naturalezas tan peculiares.
La situación social de Tylor, como heredero de empresarios británicos en
un país latinoamericano, era suficiente para que las élites locales le facilitaran informaciones y perspectivas de observación, habría que decir que ésta
también representaba una autoridad, no solo epistemológica en el sentido de
entender sus descripciones y reflexiones como conocimiento, sino también de
los criterios y las formas en las que era comunicada. En un momento en donde
la autoridad epistemológica sobre la realidad no descansaba en la institución
académica, era el lugar en las jerarquías sociales –aceptado tácitamente por los
grupos locales– el que lo proporcionaba. Por eso resulta tan importante subrayar la arbitrariedad de los principios postulados por Tylor para configurar la
imagen de México. La diferencia social imponía ya aquel binomio aún vigente
entre un “sujeto” que piensa y un “objeto” que es estudiado. Esto nos recuerda
que este tipo de observaciones, al mismo tiempo que científicas, eran también
políticas.
La cuestión de los grupos fijos, a veces definidos por Tylor como “razas”
o “clases”, y su relación con una forma particular de ser, ilustra uno de esos
mecanismos por los que el británico presenta y explica la realidad mexicana.
A cada nombre corresponde un color, un lugar social, unas costumbres y una
consideración del grupo opuesto. En un ejercicio explicito de ventriloquia, en
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la descripción de los indios, además de la voz del británico, aparecería también
la de los “blancos” y viceversa, las opiniones de los indios.
El abierto desprecio con el que, durante siglos, los blancos y los mestizos han tratado a los indios no ha ocurrido sin tener consecuencias. La revolución, y la abolición de todas las distinciones legales entre las castas, todavía deja a los indios,
ante la mirada de las razas más blancas, como meras criaturas sin sentido y razonamiento; y si la raza originaria logra alguna vez tener el poder, serán muy duros
con los blancos y sus propiedades en esta parte del país. (Tylor, 1861, p. 198-199).
En el caso de México como país, sus contradicciones –en varias ocasiones Tylor
menciona sus ventajas y aspectos positivos como territorio– son expresadas
según ciertas reflexiones generales, y a veces premonitorias, que no prescinden
de las caracterizaciones de una entidad cuyos rasgos propios eran el producto
de la paradoja que representaba la presencia de elementos calificados como
“civilizados” y la persistencia de lo “primitivo.”
Igual que los grupos antes referidos, y bajo criterios semejantes –en donde
se contrasta el “progreso” con el “primitivismo”, la “racionalidad” con la “ignorancia,” etc.–, México sería el resultado de sus contradicciones internas, que
podrían extenderse a las que resultaban de su comparación con otras naciones. Cuando, en una postura historizante, Tylor alude a su atraso, aparece la
sobrevivencia de la herencia hispánica como argumento, y cuando refiere una
turbia imagen de su presente, el imperio británico y los Estados Unidos sirven
de polo opuesto para mostrar su rezago delante de ellos. A pesar de fundarse
como una nación republicana y liberal, el peso de su “primitivismo”, sus anclajes históricos con el catolicismo ibérico y la lucha a muerte entre las “razas” que
lo componen, colocarían a México como una nación destinada a desaparecer
bajo el avance de los Estados Unidos. Sin lugar a dudas, Tylor sustentaba este
horizonte en las perdidas recientes de territorio de los mexicanos a manos de
los estadunidense y de cierto caos políticos y social derivado de ello (Vázquez;
Meyer, 2017, p. 66-89). En todo caso, para él, el problema mayor de México, pensando en su “clara situación de atraso”, sería ver de qué manera sus habitantes
se adaptarían a las circunstancias civilizadas de sus vecinos. “No obstante, con
seguridad los ciudadanos norteamericanos nunca permitirían que los mexicanos más blancos consigan un nivel de equidad como el de ellos” (Tylor, 1861,
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p. 329). Con su anexión a los Estados Unidos, concluye Tylor, México pasará por
un cambio determinante:
Habrá caminos, e incluso ferrocarriles, cierta seguridad de vida y de propiedad, libertad de opinión, un comercio floreciente, un rápido crecimiento de la
población y una variedad de beneficios. Cualquier mexicano inteligente debería
desear un evento tan ventajoso para su país y para el mundo en general. (Tylor,
1861, p. 329).
En resumen, la única forma en la que México se convertiría en una civilización
sería en su disolución con los Estados Unidos. Seguro de que eso sucedería,
Tylor celebraba haber viajado antes de que las maneras y las costumbres pintorescas de los mexicanos desaparecieran.
Esta disolución y desaparecimiento de México en los Estados Unidos
resulta importante para entender los supuestos que rigen la epistemología del
viajero británico. Perceptibles en su escritura, si se considera como eje principal la comparación, tal cual se ha subrayado antes. Tylor deduce, por ejemplo,
el “primitivismo” de los mexicanos de su comparación con los estadunidenses,
mientras que la “ignorancia” de los indios sería explicita por su contraste con
los protestantes británicos. Pero si en este caso la oposición entre dos entidades definidas tanto por la distancia entre sí –en el tiempo y en el espacio–,
como por la superioridad de una de ellas es inseparable en el análisis de Tylor,
esto no funciona en las imágenes que ilustran el libro. Lo que se exhibía en
ellas era, al mismo tiempo, lo que se definía como “atrasado”, “primitivo”, “irracional” y, en último caso, como “pintoresco” o “exótico” (Ratnapalan, 2008).
América Latina, y en particular México, poseían por aquel entonces las
características de un espacio en donde era posible acceder a lo exótico, a lo
“diferente” de Europa. Pero ni todo en Latinoamérica ni en México era exótico,
las élites sociales eran y aspiraban a la semejanza con Europa o los Estados Unidos. No se ve en esas imágenes retratos de las élites locales o de los informantes
extranjeros del británico, a pesar de que su ayuda –según él– fue esencial para
escribir Anahuac. De acuerdo a las inscripciones que aparecen identificando las
imágenes, están representados indios (Figuras 1 y 2), sitios (Figura 3), costumbres (Figura 4) y objetos. Entre estos últimos se pueden distinguir los contemporáneos (Figura 5) de los que remiten al pasado prehispánico (Figura 6).
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Figura 1.
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Figura 6.
Estas figuras expresan un punto de vista al mismo tiempo cognitivo, social y
político. La “desaparición” de Tylor en las imágenes, pero también de aquellos
que junto con él habrían generado la observación plasmada en Anahuac, configuran en la exhibición de tales imágenes un argumento de lo que debe ser
observado –es decir, conocido– y, después, identificado como diferencia y exterioridad por oposición a lo definido como evidente o cotidiano.
La exhibición de los indios, sus vestidos, sus objetos y sus costumbres es otra
forma de establecer una distancia y producir la diferencia. Al contrario de lo que
pasa en la escritura de Tylor, lo que muestra la imagen no necesita ser comparado
con su contrario para producir una distinción y sus argumentos, pues esa tarea
es dejada para quien lee y mira. Imperceptible en la imagen y en el texto, esta
marca permite suponer el público al que el texto del británico, en el momento de
su publicación, estaba dirigido. Aquel que en la mirada podía diferenciarse y en la
lectura comprender la perspectiva del autor y de los grupos a partir de los cuales
éste elaboraba el reconocimiento de los “estados superiores de la evolución social”.
Del contraste con la superficie del papel, emergía la imagen de lo “pintoresco”. La exhibición de los indios muestra figuras posibles solo como estereotipos. Figuras que, bajo el precepto de una síntesis de las variaciones, buscan
imponer un modelo por el que pueda representarse una colectividad. En algunas de estas imágenes no hay ninguna peculiaridad que las pueda distinguir
como personas: sin nombres, sin contextos, sin movimiento, sin atributos de
individualidad. Varias escenas resultan imposibles como ilustración de la vida
social (Figura 1). En la Figura 1 los modelos están tan juntos que las actividades
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que representan difícilmente podrían ejecutarse. En la Figura 2, además de sus
posiciones, gestos y vestidos, los “indios” están caracterizados sobre todo por el
espacio y los atributos que le dan forma, por ejemplo, el cuadro de la virgen, el
banco en el que uno de ellos se sienta o los objetos en el piso que delimitan la
imagen y condicionan la postura de las dos mujeres.
Esta idea de creación de modelos y síntesis en las imágenes alcanza no solo
a las dedicadas a representar a indios, sino también paisajes y costumbres. Los
sitios están representados por una perspectiva ideal y armónica (Figura 3), en
el mismo sentido que las costumbres son exhibidas a partir de algunos cuantos
elementos –con un carácter estático evidente– que pretendían simplificar las
actividades representadas (Figura 4).
Estas imágenes, que el editor de Tylor recuperó de diversos artistas –algunos desconocidos y otros, como el alemán Carl Nebel, con cierta fama en el
mundo intelectual europeo–, coinciden en términos ideales con el resultado
de la comparación que produce la diferencia en la perspectiva analítica del británico. Como lo mencioné antes, ese resultado es el polo que se origina del contraste con aquello que se define como avanzado o civilizado, y que en la imagen,
por omisión, representa también el punto de vista de Tylor. En términos de la
producción artística de la época, y de sus vínculos con las formas científicas, las
categorías estéticas de lo “pintoresco” y lo que Lorraine Daston y Peter Galison
(2010, p. 55-114) definieron como “truth to nature” forman parte de los caminos
cognitivos y, al mismo tiempo, políticos para conocer –es decir, producir– la
diferencia. Apoyados en postulados clasicistas, ambos conceptos buscaban
conocer y transmitir esa diferencia a través de la imagen como síntesis ideal
de sus variaciones posibles.
Tal cual lo aclaran Daston y Galison para el término “truth to nature”, no se
trata de un observación que pretenda la descripción fiel del objeto –precepto
base de la idea de objetividad–, sino de una selección razonada de los elementos
típicos que caracterizarían al objeto. En una línea semejante, lo “pintoresco” se
entendía como una construcción harmónica del artística por la que se excluían
las variaciones para destacar un ideal estético. Como apunta Pablo Diener (2008,
p. 64), lo “pintoresco” podría entenderse como una guía visual que acompañaba
al viajero en la comprensión de la extrañeza de lo nuevo o la domesticación de
lo desconocido: “El lenguaje artístico suministra un instrumento mediador, que
permite reacomodar la realidad de acuerdo con cánones determinados.”
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Las imágenes de los objetos se alejan de esta composición sintética. En sus
representaciones no los observamos encuadrados en alguna escena social o un
paisaje, no son necesariamente el resultado de una síntesis de sus variaciones o
irregularidades, pues al considerarse bellos o sublimes –para utilizar dos expresiones de la teoría estética de Edmund Burke, en boga en la época (ver Diener, 2008,
p. 63)–, se bastaban así mismos. Algunas descripciones de Tylor dan cuenta de esto.
La máscara de obsidiana es una obra extraordinaria, tomando en cuenta que es
muy difícil cortar este material… El pulido es perfecto y apenas tiene un rasguño.
Por lo menos uno de los escritores antiguos que tratan a México nos da los detalles del proceso de cortar piedras preciosas y pulirlas con teocalli, o “arena de
Dios”… Una máscara fina de lava color café (de la colección del Señor Christy) que
ha sido coloreada, es mostrada aquí (véase la ilustración). Los espejos de obsidiana tienen la misma superficie hermosamente pulida que muestra la máscara
de obsidiana, y también aquellas hachas de nodules de pyrites, cortadas y pulidas,
son dignas de atención. (Tylor, 1861, p. 225-226, traducción propia) (cf. Figura 6).
Según Katy Soar (2017), la influencia de esta perspectiva arqueológica habría
sido esencial para establecer la base de los trabajos más reconocidos de Tylor.
El uso de los objetos y de un lenguaje vinculado a su estudio, en el que la analogía y la comparación eran fundamentales, habrían proporcionado al británico
el fundamento de sus desarrollos teóricos posteriores.
Consideraciones finales
No hay duda alguna de que existen diferencias notables entre Anahuac y los
trabajos posteriores de Tylor. En Anahuac difícilmente se identifica una sistematización temática o un guion en términos de la perspectiva reflexiva utilizada. Aunque una lectura del texto pueda reconocer reiteraciones y elementos
consistentes con un punto de vista particular. No obstante, esta primera obra
de Tylor ofrece lo que Frédéric Regard define como una “curiosa paradoja” por
la cual podrían entenderse en parte sus trabajos posteriores. A saber, la valoración de la sociedad británica a expensas de la antigua civilización azteca pero
también de la España católica. En este punto, según Regard (2006, p. 94-96),
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el papel de la religión seria fundamental para entender las contradicciones
propias de la sociedad mexicana y el riesgo inminente –según lo veía Tylor en
aquella época– de su extinción en manos del dominio protestante de los Estados Unidos. Este papel de la religión como argumento explicativo de una cultura no aparece bien delineado en Anahuac, aunque está sugerido y en espera
de un desarrollo más elaborado que solo se realizará en Primitive culture.
Por otra parte, Henrika Kuklick escribió que, desde su emergencia en el siglo
XIX, la producción del conocimiento antropológico dependió siempre de un
espacio de protección. En un primer momento este fue suministrado por el
estado colonial inglés y después por la institución universitaria (Kuklick, 1997,
p. 51). Lo que deja ver Anahuac es que esa protección también fue provista por
una clase o grupo social específico. En este caso, por la oligárquica mexicana
y la burguesía inglesa instalada en el país latinoamericano. A partir de esto
podría preguntarse si, en medio de la internacionalización capitalista del siglo
XIX, encabezada por el imperio británico, no habría que poner como elemento
primordial de tal protección del desarrollo antropológico ese elemento clasista. La misma Kuklick (1997, p. 52-54) tiene una reflexión al respecto en la
que propone que el cambio de una antropología de “gabinete” y “amateur” a
una “académica” y “científica” estaría ligado también con la transición de la
hegemonía aristocrática en el ejercicio de la práctica antropológica a la de la
pequeña burguesía acuartelada en la universidad. Al respecto, habría que pensar en especificar mejor el binomio que liga la emergencia de la antropología
al colonialismo. En vez de hablar de un colonialismo sin adjetivos, habría que
completarlo con el elemento capitalista que le fue inherente. Algo que serviría,
inclusive, para distinguir otras empresas también coloniales pero con características muy distintas. Por ejemplo, las de las monarquías ibéricas del siglo XVI.
Estas intersecciones muestran la naturaleza política del conocimiento antropológico al mismo tiempo que la marca antropológica de la política en el siglo XIX.
En cuanto a la postura evolucionista y racista del trabajo de Tylor, tales atributos
son muy elocuentes. Cuando el inglés insistía en definir como “exóticas”, “pintorescas” y “primitivas” las condiciones bajo las cuales se reproducía la vida económica
y cultural en México o en Cuba –el tema del primer capítulo de Anahuac– reivindicaba conscientemente el modelo liberal e industrializado del imperio británico.
Sin embargo, no todo en la lectura contemporánea de Anahuac remite a un
extrañamiento. Algunos de sus argumentos, varios de ellos disueltos en las
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Alfredo Nava Sánchez
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imágenes que los ilustran (Figura 2), recuerdan un pasado que no pasa. Observando y comparando esas imágenes con algunas del presente –dos capturas de
un documental de la Secretaria de Turismo para promover la denominación de
la comida mexicana como patrimonio inmaterial de la humanidad (Figura 7)5–
resultan familiares formas y eufemismos con los que se legitiman las diferencias y desigualdades sociales actuales. Esas mujeres, que por una persistencia
de las tipologías que sustentan las identificaciones sociales se distinguen
como “indígenas”, trabajan para producir un exotismo que será consumido por
los turistas, la gran mayoría de ellos blancos. Surge inmediatamente en consecuencia el recuerdo de que la producción de la diferencia inherente a esas
clasificaciones es también el eufemismo de la explotación.
Figura 7.
5
Cf. Gastronomía… (2012).
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Anahuac o la producción social de la diferencia
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Recebido: 21/11/2020
Aceito: 03/09/2021
|
Received: 11/21/2020
Accepted: 9/3/2021
Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional
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http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71832022000100012
Entre reuniones y documentos:
la demanda de acceso al cannabis para
usos terapéuticos en Argentina
Between meetings and documents: the demand for
access to medical cannabis in Argentina
María Cecilia Díaz I
https://orcid.org/0000-0002-3874-3286
mcecilia.diaz@ffyh.unc.edu.ar
I
Universidad Nacional de Córdoba – Córdoba, Córdoba, Argentina
(En posdoctorado – becaria CONICET)
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María Cecilia Díaz
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Resumen
Este artículo analiza modos de colaboración entre activistas cannábicos, legisladores
y asesores entre 2016 y 2017 en Argentina, en momentos en que el uso terapéutico
del cannabis se instaló como tema en la arena pública. Para ello se describen etnográficamente prácticas de documentación y confección de archivos de organizaciones cannábicas; reuniones entre madres de usuarios terapéuticos, representantes de
asociaciones civiles, políticos y asesores; y actividades de redacción y circulación de
proyectos de ley, con foco en la Legislatura de la Provincia de Córdoba. El abordaje se
detiene sobre experticias y conocimientos que hacen a la construcción mutua entre
activistas y agentes/agencias estatales, configurando tramas de una causa política en
las que también participa mi praxis etnográfica.
Palabras clave: activismo; cannabis medicinal; colaboración; documentos.
Abstract
This paper analyzes the way in which cannabis activists, legislators, and advisors collaborated in Argentina from 2016 to 2017 when the use of medicinal cannabis became
a topic of public attention. For this purpose, an ethnographic approach was used to
describe documentation and archiving practices of cannabis organizations; meetings
between mothers of medicinal users, members of civil associations, politicians, and
advisors; and the drafting and circulation of bills, particularly in the Legislature of the
Province of Cordoba. This study focuses on the expertise and knowledge of activists
and state agents/agencies that, along with my ethnographic practice, mutually construct and shape a political cause.
Keywords: activism; medical cannabis; collaboration; documents.
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Entre reuniones y documentos
Introducción1
El presente artículo forma parte de una etnografía realizada entre activistas
que se comprometieron en movimientos y dinámicas de acción colectiva para
la transformación de las políticas de drogas en Argentina, principalmente en
torno al acceso al cannabis para uso terapéutico. A partir del trabajo de campo
llevado a cabo entre los años 2014 y 2018, analicé la formulación de demandas
de regulación del cultivo y los usos de la planta de cannabis con relación a
procesos de construcción y transformación de redes translocales, prácticas de
militancia y discursos.2 Para ese propósito fue crucial considerar las historias
de vida de aquellas personas que mantenían una relación directa con la planta
y con esos movimientos. Dicha relación se encarnaba en trayectorias sociales
distintivas que aparecían nombradas con la voz “activista”.
Aquí me baso en uno de los capítulos de ese trabajo más amplio (Díaz, 2019),
donde analicé formas de vinculación entre activistas cannábicos, legisladores
y asesores. El objetivo de esa labor conjunta era la búsqueda de una regulación para el uso medicinal de la planta de cannabis, cuyo cultivo y tenencia
se encontraban alcanzados por la ley penal.3 Con especificaciones relativas a
1
Mucho antes de convertirse en un artículo, gran parte de este texto fue una ponencia presentada en el 18º Congreso Mundial IUAES de 2018, en el grupo de trabajo coordinado por Antônio
Carlos de Souza Lima y Laura Navallo Coimbra. A ellos les agradezco sus comentarios y
recomendaciones de bibliografía. En el trabajo de campo y la escritura mi agradecimiento
se extiende hacia todas las personas que me guiaron con paciencia por los caminos del activismo cannábico y las rutas administrativas de los proyectos de ley. Gracias especialmente a la
Asociación Edith Moreno Cogollos Córdoba y al Movimiento Nacional Por la Normalización del
Cannabis Manuel Belgrano en la figura de su coordinadora Brenda Chignoli. Agradezco también a María Gabriela Lugones por su lectura atenta y a quienes evaluaron este artículo por sus
generosas sugerencias.
2
La tesis fue dirigida por Luiz Fernando Días Duarte y codirigida por Gustavo Blázquez en el
marco del Programa de Pós-Graduação em Antropología Social, Museu Nacional, Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Durante los años de pesquisa conté con una beca de investigación
provista por la Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
3
La ley de drogas en vigencia al momento de escritura de este trabajo era la Nº 23.737 del Código
Penal (Argentina, 1989). Sancionada en 1989, penalizaba, entre otras conductas, la comercialización, siembra y almacenamiento de plantas, semillas, precursores químicos o materias primas para la producción de estupefacientes (art. 5º), la tenencia para uso personal y la tenencia
simple (art. 14). La norma también establecía medidas de seguridad de carácter curativo
(art. 19) y educativo, estando esta última destinada a consumidores “principiantes” o “experimentadores” (art. 21).
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la autorización de dichas conductas en el ámbito de la investigación científica y médica, la ley Nº 27.350 que contemplaba el uso medicinal se aprobó en
marzo de 2017. Ese episodio, celebrado –y luego criticado– por los actores que
impulsaron los debates legislativos, culminó parcialmente un año de reuniones que se habían extendido por Concejos Deliberantes, Legislaturas, Cámaras
de Diputados y Senadores provinciales, y el Congreso de la Nación. Durante ese
periodo, las acciones activistas se materializaron en la sanción de resoluciones
municipales y la presentación de proyectos de ley provinciales, algunos de los
cuales fueron aprobados incluso antes de la ley nacional.4
Cuando hablamos de demandas de regulación del cannabis nos referimos a
un proceso más extenso que, en la historia argentina reciente, se desarrolló en
dos momentos. El primero, hacia fines del siglo XX, se caracterizó por la configuración de redes de relaciones entre especialistas que trabajaban según el
enfoque de reducción de daños en el marco de organizaciones no gubernamentales e instituciones públicas,5 asociaciones de usuarios de drogas, asociaciones de cultivadores cannábicos y legisladores. Entre 2011 y 2012, estos actores
participaron en audiencias públicas del Congreso de la Nación en las que se
discutieron proyectos centrados en la despenalización de la tenencia de drogas
para consumo personal.6
4
Antes de la ley Nº 27.350 se sancionaron leyes para incorporar el aceite de cannabis al vademécum provincial en Chubut –ley Nº I-588, aprobada el 11/08/2016 (Chubut, 2016), Santa
Fe –ley Nº 13602, aprobada el 30/11/2016 (Santa Fe, 2016)–, Neuquén –ley Nº 3042 aprobada
el 01/12/2016 (Neuquén, 2016)–, Salta –ley Nº 7996, sancionada el 16/12/2016 (Salta, 2017)– y
Mendoza –ley Nº 8962, aprobada el 28/03/2017 (Mendoza, 2017). (Díaz, 2019). Abordar las modificaciones posteriores de esas normativas excedería los alcances del presente trabajo.
5
La reducción de daños (RD) engloba un conjunto de actuaciones que apuntan a evitar las consecuencias perjudiciales del uso de drogas para la salud. En Argentina, las organizaciones de
RD promovieron investigaciones, intervenciones territoriales y tareas de incidencia política
que denunciaban los daños sociales causados por la persecución penal a usuarios de drogas, al
tiempo que posicionaban a dichos usuarios como sujetos de derecho. Inicialmente, su trabajo se
caracterizó por la centralidad de la lucha contra el VIH-sida, la formación de redes de especialistas, y la capacitación de operadores o promotores. En el marco de esas actividades surgieron
las primeras experiencias asociativas de usuarios de drogas (Corbelle, 2016; Inchaurraga, 2002).
6
A fines de la primera década del siglo XXI el panorama parecía favorecer la despenalización de
la tenencia y de las figuras de siembra y cultivo para consumo personal. En 2008, por iniciativa
del Ejecutivo se creó el Comité Científico Asesor en Materia de Control del Tráfico Ilícito de
Estupefacientes, Sustancias Psicotrópicas y Criminalidad Compleja, que debía elaborar informes y asesorar en la elaboración de anteproyectos para la reforma de la ley de drogas (Argentina, 2008). Durante ese mismo año, en la 51° Sesión de la Comisión de Estupefacientes (CND), →
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Entre reuniones y documentos
En tales instancias, como también en acciones para concientizar e informar7
a la población, los y las activistas se visibilizaron al dar la cara o poner el cuerpo
en tanto que “usuarios responsables” (Corbelle, 2016). Las agrupaciones que
emergieron durante la primera década del siglo XXI se caracterizaron por construir sus demandas en torno al uso y cultivo de la planta de cannabis, entendiendo que la autosuficiencia permitía combatir el narcotráfico y desmontar
las políticas prohibicionistas. Sus discursos articulaban el reconocimiento de
la libertad y el respeto por los derechos individuales y humanos.
La demanda de acceso al cannabis para uso terapéutico atravesó este
periodo, y fue impulsada por personas viviendo con VIH que descubrieron
que el uso de cannabis favorecía la adherencia al tratamiento antirretroviral y permitía paliar los efectos adversos de la quimioterapia en los casos de
quienes tenían cáncer. Los activistas que integraban asociaciones de reducción de daños, de usuarios de drogas y cannábicas, vincularon los reclamos
de despenalización con los beneficios de la marihuana para la salud. Encontramos esos posicionamientos en publicaciones y jornadas sobre el tema
(Inchaurraga, 2003), como también en sitios online, casos de litigio estratégico, y en movilizaciones y acciones que se realizaban en el espacio público
(Díaz, 2019).8 Las agrupaciones que se centraron en el uso terapéutico del cannabis y sus derivados (extractos, aceites, cremas), emergieron como redes gracias al impulso de personas que habían llegado a los beneficios de la planta y
sus derivados en una búsqueda por terapias complementarias o alternativas
→
el director ejecutivo de la Oficina contra la Droga y el Delito de las Naciones Unidas (UNODC)
advirtió sobre la necesidad de que las políticas de fiscalización contemplaran la salud y el respeto de los derechos humanos. Por otra parte, en 2009 la Corte Suprema de Justicia de la Nación
dictó el fallo Arriola (Argentina, 2009) que, en la misma línea de Bazterrica (Argentina, 1986),
estableció la inconstitucionalidad de la criminalización de la tenencia de drogas para consumo
personal por entender que se trata de actos privados que no afectan la moral pública. Para un
estudio detallado del contexto y las dinámicas de los debates políticos de entonces, véase
Corbelle (2013, 2016); para un análisis de los proyectos de ley que contemplan la despenalización desde 2009, véase Fusero (2020).
7
A lo largo del artículo opté por emplear itálica para las palabras provenientes del trabajo de
campo y comillas para aquellas referenciadas en la bibliografía.
8
En 2002, la primera edición de la Marcha Mundial de la Marihuana en Argentina fue organizada por la Red Argentina en Defensa de los Derechos de los Usuarios de Drogas (RADDUD) y la
Asociación de Reducción de Daños de Argentina (ARDA). Entre sus reclamos, incluía: “defendamos la investigación científica sobre los usos terapéuticos del cannabis, ayudemos a los enfermos que requieren el uso terapéutico de la marihuana”.
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a la medicina convencional. Tal es el caso de la Red de Usuarios de Cannabis Medicinal (RUCAM) y el Movimiento Nacional Por la Normalización del
Cannabis Manuel Belgrano.
Durante el segundo momento que distinguimos en nuestra periodización,
ese uso particular adquirió notoriedad. En dicha transformación fueron fundamentales las investigaciones científicas que estudiaban el Sistema Cannabinoide Endógeno9 desde hacía treinta años, como también las noticias recientes
que mostraban que algunas familias habían encontrado en los compuestos de
la planta una herramienta terapéutica eficaz para paliar y reducir las crisis epilépticas de pacientes pediátricos (Sobo, 2017).
En Argentina, desde mediados de 2015, la demanda por el acceso a esos
recursos se tornó un “problema social” (Lenoir, 1993) que se expresó en términos de derecho a la salud. Las redes estuvieron integradas por mujeres que se
presentaban públicamente como madres de niños y niñas con diversas patologías –sobre todo epilepsia refractaria a los tratamientos convencionales–,
cultivadores solidarios, usuarios terapéuticos, profesionales de la salud y la
ciencia,10 y legisladores.
Los actores mencionados siguieron el modelo organizativo impulsado
por las asociaciones civiles cannábicas y ocuparon el espacio público junto a
éstas. En ese entramado, comenzaron a participar en la Marcha Mundial de
la Marihuana, manifestación anual que se realiza en varias ciudades del país,
y encabezaron la edición de 2016. De esta manera, en sus prácticas, madres,
usuarias y usuarios terapéuticos acudieron a organizaciones no gubernamentales que contaban con más trayectoria. En esos espacios encontraron apoyo,
contención y, sobre todo, los conocimientos que los activistas tenían acerca
9
El Sistema Cannabinoide Endógeno (SEC) es un sistema complejo que regula la homeostasis
del organismo y que se encuentra en humanos y otros mamíferos. A grandes rasgos, comprende
receptores y cannabinoides internos que actúan como neuromoduladores (Peyraube; Bouso,
2015). Desde la farmacología, la presencia de este sistema permite explicar los efectos producidos por los componentes del cannabis y otras plantas en el cuerpo humano (Russo, 2016).
10 En 2015 se dio a conocer en los medios de comunicación la historia de Marcelo Morante, especialista en medicina interna y profesor universitario que había viajado a Canadá para formarse
en uso terapéutico de cannabis. Entre las actividades que por ese entonces Morante impulsaba con el objetivo de promover el conocimiento y la educación sobre cannabis en Argentina,
se destacaba un proyecto de cultivo en el pueblo que lo vio crecer, General La Madrid, Provincia de Buenos Aires, que contaba con apoyo del intendente y de los habitantes de la localidad
(Morante; Morante, 2017).
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Entre reuniones y documentos
de la producción de derivados de la planta y la movilización política. En todo
el país aparecieron nuevas agrupaciones y se expandieron las redes de usuarios y familiares. Entre las más notorias se encuentran Cannabis Medicinal
Argentina (CAMEDA) y Mamá Cultiva Argentina (MCA).11
El activismo de mujeres en tanto que madres y portavoces de la regulación del cannabis para uso medicinal en nombre de sus hijos e hijas constituye un fenómeno global que atravesó América Latina (Figueiredo; Policarpo;
Veríssimo, 2016; Góngora, 2018; Oliveira, 2016; Rivera, 2019). Con todo, la mayor
visibilidad del uso medicinal de cannabis en Argentina se dio en un contexto
nacional caracterizado por el fortalecimiento de los discursos de “guerra contra
el narcotráfico”.12 Las historias de usuarios y usuarias terapéuticos comenzaron
a replicarse mientras aumentaban las detenciones policiales orientadas al consumo y a delitos menores, perjudicando sobre todo a personas que provenían
de sectores empobrecidos (Darraidou; García Acevedo; Trufó, 2019, p. 134). De
esta manera, los esfuerzos por tornar los múltiples casos de mejoría de salud
gracias a la planta en una causa política tuvieron como contrapunto la continuidad e incluso el agravamiento de la persecución penal hacia los cultivadores (Corda, 2018).
En lo que respecta al objeto de este artículo, la etnografía fue realizada en
numerosos viajes entre la ciudad de Córdoba y otras ciudades de Argentina.
Trabajé principalmente con activistas de la Asociación Edith Moreno Cogollos
Córdoba y con Brenda Chignoli, quien fundó y coordinó el Movimiento Nacional por la Normalización del Cannabis Manuel Belgrano desde 2012 hasta su
fallecimiento en 2019.13 Nucleados en torno a una demanda que comenzaron
11 Si en las formaciones cannábicas predominaban a grandes rasgos los varones cisgénero, en las
agrupaciones de usuarios terapéuticos y sus familiares era más frecuente encontrar mujeres
cisgénero de rango etario y perfil socioeconómico variable. Desde 2015, las organizaciones que
se volvieron más visibles fueron aquellas que lograron movilizar mayores recursos materiales,
sociales y simbólicos para la realización de sus actividades.
12 Estos discursos fueron parte constitutiva de la campaña electoral –y luego del gobierno– de
Cambiemos, alianza que reunió a partidos como Propuesta Republicana (PRO), Unión Cívica
Radical (UCR) y Coalición Cívica ARI, entre otros, y que resultó vencedora en las elecciones
presidenciales de 2015.
13 Cuando la conocí, Brenda tenía 52 años y vivía en las afueras de Córdoba Capital con su compañero. Gran parte de su itinerario activista se desarrolló entre redes de personas viviendo
con VIH-sida, organizaciones de reducción de daños y agrupaciones cannábicas propiamente
dichas. En mi tesis exploro su trayectoria (Díaz, 2019).
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a nombrar cada vez más como de acceso al cannabis medicinal,14 los y las activistas transitaron de manera incesante por oficinas y recintos estatales. En esta
oportunidad nos centramos en el ámbito de la Legislatura de la Provincia de
Córdoba,15 donde ese tránsito implicó la participación en reuniones con legisladores y sus respectivos asesores. Allí se articularon conocimientos especializados sobre cultivo, uso y dosificación de extractos, legislación y jurisprudencia.
En esos encuentros también circularon diversos documentos: cartas e informes,
entre otros tantos textos, que las agrupaciones producían y modificaban continuamente, incorporando sugerencias recibidas; y proyectos de ley que formaban parte de ese trabajo en conjunto.16
Siguiendo a Souza Lima (2012, p. 809) –quien, a su vez, hace una lectura de
Barth (1975, 2000)–, podemos decir que la formación de experticia en torno al
cannabis reconoce “tradiciones de conocimiento” distintivas, esto es, conjuntos
de saber y saber-hacer incorporados y reiterados tanto en prácticas como en la
14 La expresión cannabis medicinal, empleada en años anteriores, ganó mayor presencia con las
agrupaciones que reunían a usuarios terapéuticos y sus familiares, y se volvió una constante
en el discurso de políticos, profesionales de la salud y científicos vinculados con el movimiento
social. Dicha expresión permitió la legitimación de los reclamos y sus portavoces y, a la vez,
fue criticada como parte de las prácticas reflexivas sobre el habla al interior del activismo
cannábico. Así, había quienes consideraban que era redundante, puesto que el cannabis siempre
era medicinal, mientras que otros sostenían que lo correcto era referirse a usos terapéuticos del
cannabis porque permitía incluir otras prácticas por fuera de la medicina convencional y señalar que se trataba de un uso entre otros posibles. Aunque la posición consensuada entre las
organizaciones instaba a bregar por la regulación del cannabis para todos sus usos, lo cierto es que
durante el periodo esos reclamos se aplazaron en favor del acceso a la planta y sus derivados
para uso terapéutico.
15 Las Cámaras de Diputados y de Senadores de la provincia fueron reemplazadas por un cuerpo
unicameral a partir de las modificaciones realizadas en la Constitución Provincial en 2001. Las
reuniones que se analizan en este artículo se llevaron a cabo en el Anexo, un edificio que se
encontraba sobre la calle Deán Funes en el centro de la ciudad de Córdoba, al lado de la Legislatura propiamente dicha y separado de ésta por una galería de venta de libros y revistas. Dicho
edificio contaba con cuatro pisos que albergaban las oficinas de los legisladores, y las salas de
reuniones de las comisiones y los bloques. En 2019 se inauguró la nueva sede de la Legislatura
en las márgenes del río Suquía, hacia el este de la ciudad.
16 Este conjunto de prácticas podría ser localizado en la mancha semántica de las ideas de incidencia política, lobby, cabildeo y advocacy. Los activistas cuyo trabajo acompañé se referían
ocasionalmente a lobby e incidencia, siendo este último término más frecuente en el marco
de organizaciones de RD. En mi pesquisa privilegié las fórmulas “hablar con” y “reunirse con
(determinado político/funcionario/asesor)” para profundizar en tales actuaciones sin atribuirles de antemano una categoría explicativa. A futuro indagaré en los matices entre esas ideas
y las connotaciones negativas que adquieren algunas de ellas.
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Entre reuniones y documentos
interacción entre sujetos. Al ponderar los conocimientos desarrollados por activistas, no solo tienen relevancia aquellos que serían propios de los procesos de
cultivo de la planta de cannabis o la preparación de extractos para uso terapéutico,
sino también los saberes sobre agencias y agentes estatales producidos al calor de
una vinculación sostenida con estos. Aquí se abordan tres tipos de actividades de
colaboración que los y las activistas cannábicos promovieron y cuya reiteración
acompañé etnográficamente: la confección de documentación y archivos, las reuniones con legisladores y asesores, y la elaboración de proyectos de ley.
Prácticas de documentación y archivo en activismos
Hacia comienzos de 2015 participé en reuniones que la agrupación Cogollos
organizaba todos los jueves por la tarde en 990 Arte Club, un reconocido bar cultural de la ciudad. En el primer encuentro al que acudí, una de las integrantes
me mostró un maletín que contenía el archivo de Cogollos: folletos, adhesivos de
diferentes tamaños y hojas con fotos impresas de manifestaciones y otras acciones militantes. La conversación sobre esos materiales hizo que mi interlocutora
rememorara los acontecimientos que aparecían allí, en especial la historia de la
Marcha Mundial de la Marihuana en Córdoba.17 Junto al maletín y a las banderas
de la agrupación que se guardaban en el altillo del bar, había una carpeta virtual
que albergaba una sistematización de las actividades realizadas hasta entonces.
De manera general, el acercamiento a prácticas y sociabilidades entre activistas cannábicos implicó la inmersión en un mundo de materiales físicos y
digitales. Entre ellos, había folletos informativos, panfletos y adhesivos, pensados inicialmente para vehiculizar demandas y llamar a la acción; y otros
documentos como invitaciones a plenarios, órdenes del día y formularios, que
formaban parte de la vida político-institucional interna de las agrupaciones y
que, por ello, se distribuían en una escala más reducida.18 Una impresión similar aparece en la investigación de Pita (2010) acerca de las demandas de justicia por parte de familiares de víctimas de violencia policial en Buenos Aires.
17 Registro de campo, 09/04/2015.
18 Abordé algunos argumentos de esta sección en un debate coordinado por Mario Rufer para la
revista Corpus (Gorbach et al., 2020).
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En las consideraciones metodológicas del trabajo, la autora menciona su
encuentro con “documentos para la discusión, revistas, volantes” (Pita, 2010,
p. 28) producidos por esos actores y destaca el papel crucial que estos desempeñaron en los modos de organizar la protesta.
Siguiendo lo propuesto por Lugones (2004, p. 8-9) en su investigación sobre
expedientes de procesos judiciales referidos a Menores, los documentos son
objetos que circulan y se intercambian y, a la vez, individuos que establecen
relaciones con quienes hacen uso de ellos. Los materiales de divulgación cannábica mediaron la formación de redes de relaciones e intervinieron también
en la función que me fue asignada mientras hacía mi investigación e incluso
después: la de organizar información; registrar acontecimientos; redactar reseñas históricas e informes; y conformar archivos. En estas tareas me incorporaba a un trabajo que los integrantes de las agrupaciones ya habían hecho con
anterioridad: tomaba un conjunto de documentos que había sido pensado para
vehiculizar una demanda y, mediante tareas de ordenamiento cronológico y
clasificación, los volvía insumos que daban cuenta de las actuaciones políticas
de cada organización.
Concebidos de ese modo, los documentos permitían inscribir la historia de
cada asociación en una línea de tiempo más amplia que incluía todas las movilizaciones en pos de la regulación del cannabis, y que posibilitaba distinguir
acciones pioneras, momentos de emergencia de modos de protesta y puntos de
contacto entre los actores. Así, por ejemplo, las agrupaciones tenían cuadernos
y carpetas que incluían sus respectivas historias, folletos de otras agrupaciones,
y una clasificación de la información disponible sobre sus actividades a partir
de descripciones propias y recortes de periódicos y revistas cannábicas.19 Se trataba de prácticas productivas que no reconocían fronteras online y offline, y que
se desplegaban en ambos planos.
La agencia de los documentos puede percibirse no solo en trayectorias de
activistas y/o pesquisadores, sino también en el hecho de que el trabajo sobre
–y con– los archivos –o, más bien, la creación misma de archivos al ordenar los
materiales y construir una narrativa de sí grupal– era crucial en procesos de
19 Las publicaciones a las que hago referencia son THC – La Revista de la Cultura Cannábica, que
apareció en 2006, Haze – Experiencias & Cultivos que fue lanzada en 2010 y Soft Secrets Latam
que circula de manera gratuita en tiendas de cultivo desde 2011.
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institucionalización y búsqueda de reconocimiento (Fraser, 2002; Taylor, 1994).
La creación de asociaciones que desde el nombre remitían al activismo cannábico y localizaban su campo de acción en ciudades específicas o en el país,
tenía por fin la configuración de una visibilidad organizada. Esto significaba la
definición de dinámicas y rutinas de trabajo que podían tornar a los activistas
en interlocutores válidos frente a funcionarios estatales y, de ese modo, facilitar el diálogo y la organización de encuentros que perseguían como objetivo
la reforma de la legislación en materia de drogas. Es decir que tan importante
como mostrarse en tanto usuarios y cultivadores de cannabis era hacerlo de
manera coordinada, en colectivos con nombre, sede, páginas en redes sociales
y una agenda de acciones que pudieran divulgarse. Una de las maneras de formalizar esas relaciones era la constitución de asociaciones civiles.20
Los procesos de institucionalización pueden ser entendidos como “efectos
de estado”, tal como los analiza Trouillot (2001). Entre ellos, se encuentra el
“efecto de identificación”, en virtud del cual los sujetos se reordenan en líneas
colectivas y reconocen a otros como sus semejantes. Y también el “efecto de
legibilidad”, que implica la producción de un lenguaje y un conocimiento para
la gobernanza, y de medios teóricos y empíricos para clasificar y regular colectividades (2001, p. 126). En este sentido, las narraciones sobre la elaboración de
documentos para su presentación en la Inspección General de Justicia (IGJ)
–o en las Inspecciones Provinciales de Justicia (IPJ)– con el objetivo de tramitar la personería jurídica, mostraban cómo los activistas definían las labores
de sus respectivas organizaciones en términos de un objeto social que condensaba sus finalidades y puntos de interés de manera estratégica y asertiva.
Para ello era frecuente recurrir a papeles de organizaciones que ya habían sido
autorizadas, manteniendo determinadas fórmulas y expresiones. En el caso
de Cogollos, sus primeros escritos para solicitar la personería, elaborados en
2008 aproximadamente, se habían basado en los estatutos de la Asociación de
Reducción de Daños de Argentina (ARDA).
La aprobación del trámite no estaba exenta de dificultades –asociadas sobre
todo a la necesidad de costear el trabajo de los “profesionales intervinientes”
20 El Código Civil y Comercial establece que las asociaciones civiles –junto a figuras como las
sociedades, fundaciones, etc.–, son personas jurídicas privadas cuyo objeto no debe ser opuesto
al “interés general o bien común” ni vulnerar valores constitucionales (art. 168).
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(escribanos y abogados)– y reveses, vinculados a la demora por la reformulación
de algún fragmento de los estatutos. Esto ocurría, en un comienzo, porque las
inspecciones rechazaban sistemáticamente el empleo de “cannabis”, tanto en el
nombre como en el objeto social.21 En la cotidianeidad de las agrupaciones, llegar
al final del trámite era un acontecimiento celebrado que en lo sucesivo se traducía en una estructuración de sus tareas como entidades de la sociedad civil y
sujetos políticos, sujetas por tanto a derechos y también a obligaciones y rutinas.
Para los activistas consultados, los papeles de la personería jurídica creaban
un sentido renovado de dedicación y obligaban a una actividad institucional
que permitiera dar cuenta de su operatividad y combatir los prejuicios existentes acerca del uso de cannabis. En una entrevista, un activista que formaba
parte de una organización de Buenos Aires me decía lo siguiente:
Activista.–El grupo creció muchísimo y fue gracias a los papeles en gran medida.
Por el trabajo de todos, pero los papeles te impulsan.
C.–¿En qué sentido te impulsan?
A.–Porque no es un grupo de personas que se juntan así nomás y dicen algo. Es
una asociación civil constituida legalmente, que el estado está respaldando su
estatuto para que lo lleve a cabo. Entonces vos organizás una jornada o hacés
una presentación y no es lo mismo hacerlo siendo una persona jurídica que
siendo un grupo de personas. Más con un objeto controvertido como el nuestro
[…]. Es como que hay que tener muchos cuidados, por eso los papeles te ayudan, le
dan más seriedad a todo. (Entrevista, 15/05/2017; el destacado es mío).
A la vez, la obtención de la personería jurídica suscitaba una mirada retrospectiva sobre la historia de la agrupación, sobre lo hecho hasta el presente, que
compelía a continuar o, de lo contrario, deshonrar y perder la labor realizada
con anterioridad. Esa documentación llevaba incluso establecer diferencias
al interior del activismo, en la medida en que, para algunos, la aprobación de
21 La autorización del Centro de Estudios de la Cultura Cannábica (CECCa) en 2013 abrió el
camino para que otras agrupaciones pudieran incluir referencias a la planta de cannabis en su
nombre legal. Ese acontecimiento estuvo precedido por esfuerzos de organizaciones como la
Asociación Rosarina de Estudios Culturales (AREC) y la Agrupación Marplatense de Cannabicultores (AMC), que entre los años 2011 y 2012 fueron autorizadas como entidades de estudios
culturales y herboristas.
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una organización en tanto persona jurídica era índice de su compromiso con la
causa. De ese modo, el trámite se tornaba un diacrítico para valorar el trabajo
propio y el de los demás.
En ese contexto, otros papeles análogos tales como certificados que los y las
activistas recibían por su participación en jornadas en calidad de oradores o
expositores, también revestían importancia y eran exhibidos –previa enmarcación– en sus respectivas residencias o sedes de las agrupaciones. Entre ellos,
adquirían gran peso los comprobantes que daban cuenta de la participación
en eventos promovidos desde distintas dependencias estatales, en tanto constituían un reconocimiento oficial de unos conocimientos y trayectorias que
tenían como base una situación de clandestinidad e ilegalidad. En la experiencia de Brenda, a quien acompañé durante la mayor parte de mi trabajo
de campo, eran esos documentos los que probaban el carácter inescrutable y
bipolar del estado, ya que reconocía su labor solidaria y la consideraba ejemplar, mientras que perseguía penalmente las actividades de cultivo a las que
se dedicaba con pasión. Esta cualificación de Brenda, además de semblantear
la complejidad de las acciones gubernamentales, permite situar determinados
elementos del activismo –el compromiso, la organización– en la interacción
constante con agentes y agencias estatales.
Tal como distinguen Das y Poole (2008, p. 25), las formas de regulación y
disciplinamiento estatales se realizan y actualizan mediante prácticas escritas entre las que se incluyen relevamientos documentales y estadísticos. El
carácter burocrático del control sobre las poblaciones y su materialidad también llama la atención de Hoag (2011), quien hace extensivas esas prácticas a
las organizaciones de la sociedad civil. En ese sentido, los activismos cannábicos orientaban parte de sus acciones al contacto sostenido con funcionarios y
legisladores, y ello implicaba un trabajo sobre los archivos propios, además de
tareas de investigación y escritura orientadas a la producción de cartas, pedidos, informes y proyectos.
Como vimos, el trabajo de las organizaciones cannábicas conllevaba grandes
esfuerzos de producción escrita que no solo se objetivaban en folletos, volantes y adhesivos, sino también en textos pensados para su publicación, tanto
en perfiles personales y plataformas online, como en medios de comunicación
gráficos y digitales. Puntualmente, con vistas a incidir en la regulación del cannabis para uso medicinal, los textos tendieron a ser construidos privilegiando
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la intervención de personas que tuvieran entre sus capitales habilidades de
investigación y escritura formal, y conocimientos especializados sobre el tema;
ya fueran producto de la formación universitaria y/o la amplia experiencia en
los universos del activismo.
En los mundos que acompañé destaco dos tipos de textos producidos
durante el año 2016: una carta personal escrita y firmada por Brenda, y un
informe que presentaba los avances de la causa, cuya redacción me había sido
encomendada por ella.22 La carta detallaba en primera persona del singular el
camino recorrido en el uso de medicamentos recetados para su cuadro clínico
–con mención de los efectos adversos de los mismos– y el posterior descubrimiento del cannabis. El informe, en cambio, estaba redactado en tercera persona del plural y poseía ciertas marcas textuales como título, notas al pie de
página y referencias bibliográficas que señalaban que se trataba de un documento formal. Entre las informaciones que contenía, se destacaba el análisis de
proyectos de ley realizado por un abogado integrante de Cogollos, y que figuró
por ello como colaborador en la escritura.
El informe describía y ponía en relación un conjunto de acontecimientos considerados hitos de la causa del cannabis medicinal. Se trataba de una
interpretación que seguía lo dicho por mis interlocutores en las entrevistas y
que situaba la emergencia de la problemática en actuaciones de mayor profundidad temporal, impulsadas por asociaciones cannábicas surgidas en
la primera década del siglo XXI. El orden de los acontecimientos descritos
–jornadas, eventos, aparición de nuevas organizaciones, presentación de proyectos de ley– estructuraba el modo en que los y las activistas comprendían
su rol en ese contexto: como promotores de avances progresivos a partir de la
movilización en sus respectivos lugares de residencia, cuyo fin último era
la búsqueda de una ley que contemplara la investigación sobre usos terapéuticos del cannabis, y también el cultivo individual y colectivo de la planta. Así, el
texto daba importancia a la acción de municipios que, por medio de decretos,
resoluciones y expresiones de deseo, le solicitaban al Congreso de la Nación
el tratamiento de una ley que regulara el uso medicinal; y también destacaba
22 Pantaleón (2004) estudia la materialidad de ciertos documentos en el horizonte de los programas de desarrollo social de la provincia de Salta en la década de 1990. Allí describe la carta
como instrumento de carácter tradicional, opuesto al formulario en tanto forma nueva de pedir.
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el trabajo legislativo provincial que pretendía asegurar la importación de aceite
de cannabis y su inclusión en el vademécum de las obras sociales.23
Los documentos que analizamos aquí y su articulación entre archivos activistas constituyen “artefactos etnográficos” (Lowenkron; Ferreira, 2014) que
mediaron las actuaciones de las agrupaciones y su institucionalización, la
configuración de causas y argumentos, y la posibilidad misma de hacer trabajo
de campo. La investigación de Lugones (2004), quien analiza un corpus documental fruto de su propia construcción, constituye una invitación a pensar en
cómo los antropólogos co-creamos los campos en los que estudiamos. Si consideramos con Geertz (2006) que el etnógrafo “inscribe” al poner por escrito un
fragmento del discurso social, la participación en la producción de textos para
la intervención permite observar otros ejercicios de inscripción que impactan
en los repertorios de acción colectiva.24
Producción de acuerdos y límites en reuniones clave
Los actores que demandaban acceso al cannabis para uso medicinal territorializaron sus demandas a través de circulaciones. Una de ellas se dio entre
seminarios y jornadas que apuntaban a educar y llevar información de calidad
23 A la resolución de General La Madrid (2015) le siguieron pronunciamientos realizados a partir
del impulso de madres que habitaban en las localidades de Morón, Villa Gesell (Buenos Aires)
y Comodoro Rivadavia (Chubut), entre otras localidades. Un rasgo en común de esas expresiones de deseo y resoluciones era la inclusión de un artículo que establecía la remisión de
copias a otros municipios –instándolos a desempeñarse como “promotores” de la campaña–, y
a comisiones de Diputados y Senadores de la Nación. Es decir que cada uno de esos documentos
creaba condiciones que habilitaban y ampliaban su circulación. En la actualidad, en el marco
de un proyecto emprendido con Lucía Romero y Óscar Aguilar, me encuentro relevando esos
y otros materiales que dan cuenta de la historia de las iniciativas municipales en favor de la
regulación del uso terapéutico de cannabis.
24 Desde esta perspectiva podemos leer a Tiscornia (2008) cuando analiza su papel en el activismo
de los derechos humanos a partir de un hallazgo en su archivo personal: el afiche de un evento
en el que había participado como expositora. Esto le permite introducir el trabajo del Centro
de Estudios Legales y Sociales (CELS) –que abarca la elaboración de informes, documentos y la
configuración de un archivo–, como también posicionarse en el marco de dicha organización a
través de “la acción política y la investigación antropológica” (Tiscornia, 2008, p. 156). Corbelle
(2016) hace lo propio cuando reconstruye las condiciones que posibilitaron su intervención en
el marco de los debates de despenalización de 2011-2012.
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a un público amplio. Se trataba de eventos que tenían lugar durante los fines de
semana en espacios de gran tamaño, y para los cuales se tramitaba una declaración de interés municipal o provincial. La distribución del espacio seguía el
ordenamiento propio de las conferencias, de modo que solía haber un escenario elevado con mesa y sillas, y butacas para los asistentes. La grilla de expositores –profesionales de la salud y de la ciencia, cultivadores, familiares de
usuarios y usuarias terapéuticos– se divulgaba en volantes y afiches que eran
compartidos en redes sociales y notas periodísticas.
Además de esos seminarios, los y las activistas que acompañé dedicaron
gran parte de su tiempo a la participación en reuniones con políticos y sus asesores. Esto suponía una circulación diferencial protagonizada por un número
reducido de personas cuyo objetivo era la incidencia microscópica en la formulación de normativas. Según la cantidad de participantes, las reuniones tenían
lugar en oficinas de los legisladores o en salas acondicionadas con mesas ovaladas o rectangulares. Ambos espacios solían encontrarse en edificios anexos a
las cámaras donde se celebraban las sesiones legislativas.
En comparación con los eventos abiertos promovidos por las organizaciones y con audiencias y reuniones informativas realizadas en el Anexo de
la Cámara de Diputados de la Nación,25 las reuniones en despachos y oficinas
constituirían el lugar entre bastidores de esa “escena participativa” (Bronz,
2016). Sin embargo, todas estas instancias se vinculaban no solo porque los
activistas formaban parte de ellas –ya sea como expositores, invitados o asistentes– sino porque constituían lugares de formulación de iniciativas ciudadanas. Así, en los seminarios de cannabis medicinal se instaba a entablar diálogo
con concejales y, de ese modo, ampliar las redes de influencia de manera capilar, comenzando por los municipios para continuar por los órganos legislativos
de provincias y nación.
25 El Reglamento de la Cámara de Diputados de la Nación establece en su artículo 114 bis que
es potestad de las comisiones la convocatoria a audiencias públicas y debates virtuales con
la finalidad de conocer la opinión de la ciudadanía sobre temáticas que sean asuntos de su
competencia. Durante el año 2016, acompañé a Brenda a la audiencia convocada por diputados
nacionales del Partido Obrero con motivo de la presentación de un proyecto de ley (16/05/2016)
y a la reunión conjunta informativa de las comisiones de Seguridad Interior, Acción Social y
Salud Pública y Legislación Penal (13/10/2016). Ambas instancias tuvieron lugar en una sala del
Edificio Anexo y en ellas Brenda participó como oradora.
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Entre reuniones y documentos
Los encuentros se coordinaban gracias a contactos provenientes de la militancia político-partidaria de activistas y/o sus allegados, y de las trayectorias
previas de los actores involucrados. Brenda contaba con conocidos de la Unión
Cívica Radical, partido político al que había pertenecido su compañero durante
su juventud; asimismo, articulaba una red propia, gracias a su labor en organizaciones de personas viviendo con VIH-sida, de reducción de daños, y a su
participación en defensa del uso terapéutico de cannabis durante los debates
de 2012. De modo concurrente, una legisladora que la convocó se abocaba puntualmente a asuntos de salud y educación, lo que hacía que su equipo de asesores tuviera entrenamiento en ese tipo de cuestiones y propuestas normativas.
Los acercamientos entre activistas, legisladores y asesores también se facilitaban si estos últimos habían vivido una situación semejante a la narrada
por usuarios terapéuticos y sus familiares. Para hacer avanzar la causa incluso
se aprovechaban contactos ocasionales e inesperados: durante la marcha del
Encuentro Nacional de Mujeres de 2016,26 Brenda se dedicó a juntar firmas en
apoyo al tratamiento de los proyectos de ley presentados hasta el momento;
en esa oportunidad, notó que entre la multitud estaba presente una diputada
nacional por Córdoba y no dudó en plantearle la problemática. En virtud de
ese breve intercambio, luego fue convocada por asesoras de otra diputada en
Buenos Aires.
Las reuniones estaban precedidas por la elaboración de documentos –cartas e informes–, y se engarzaban con la confección de otros documentos –textos
normativos entre los que se incluían proyectos de ley, de declaración y resolución. Era para estos espacios de trabajo interno que se destinaba el informe
mencionado en el apartado anterior, el cual se entregaba en el momento o
se lo describía y se pactaba su envío por correo electrónico. A la secuencia se
incorporaba la planificación de reuniones a futuro y la ampliación de la red
al constituirse los primeros encuentros en referencias o avales para intentar
una aproximación con otros funcionarios. Esas referencias eran operativas no
solo en la relación de estos actores entre sí, sino también en los contextos en
26 El Encuentro Nacional de Mujeres, celebrado anualmente desde 1986, incluye talleres, asambleas y una marcha que visibiliza la convocatoria y las demandas. La edición de 2016 tuvo lugar
en Rosario, Santa Fe. Allí, gracias a una campaña iniciada desde hacía varios años por activistas
cannábicas, se incluyó por primera vez un taller llamado Mujeres y Cannabis. Participé en ese
encuentro acompañando a Brenda y a una activista de Cogollos.
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que se desempeñaban. Así, durante 2016 era usual escuchar a integrantes de
agrupaciones cannábicas decir que habían asesorado en la redacción de un
proyecto o que estaban en contacto con determinados políticos. De manera
complementaria, estos últimos establecían alianzas en apoyo de otros proyectos además del propio y expresaban que se habían reunido con integrantes de
organizaciones específicas o con representantes del movimiento. Ese era uno
de los elementos que proporcionaba anclaje social a la labor legislativa.
Aquí interesa seguir a Schwartzmann (1989, p. 9-10) en su análisis de las reuniones como eventos comunicativos con potencial de reproducirse a sí mismos
a partir, precisamente, del volumen de decisiones, problemas y crisis generados en –y por– ellos. Para los activistas, los encuentros con legisladores constituían “reuniones clave” [key meetings] (Schwarztmann, 1989), esto es, contextos
de acción a los que se les atribuía un estatus especial por sus participantes y
por los temas en discusión. Requerían una preparación que contemplaba la
producción escrita, la selección de vestuario y la elaboración de argumentos.
Además, se volvía necesario tener una amplia disponibilidad horaria porque,
si bien algunas reuniones eran programadas con días de anticipación, otras
surgían intempestivamente y se presentaban como una oportunidad única que
había que aprovechar.
Para acudir a dichos espacios los activistas preveían la participación de un
abanico de actores considerado representativo y distribuían la toma de la palabra de acuerdo con los posicionamientos y roles de cada uno. En los encuentros relevados solían presentarse madres de usuarios terapéuticos, usuarios y
usuarias, cultivadores que producían extractos de manera solidaria y representantes de agrupaciones. Algunas intervenciones se orientaban hacia “lo político,
concreto y conciso”, mientras que otras ofrecían testimonio de casos puntuales.
A manera de ejemplo, antes de entrar a una reunión en el anexo del Congreso
de la Nación, dos activistas de Buenos Aires se sumaron a la comitiva encabezada por Brenda. Uno de ellos propuso algunas pautas previas: él se ocuparía
de los detalles técnicos –artículos de otros proyectos de ley, estado actual de la
persecución policial y judicial a cultivadores en el país– y las mujeres se enfocarían en sus vivencias y experiencias.
Era frecuente que tanto los políticos como sus asesores asumieran un papel
activo en la reunión. Los primeros abrían el encuentro y, junto a los segundos, coordinaban las intervenciones, planteaban posibles cursos de acción
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y cerraban la jornada. La duración de las reuniones era variable y dependía de
la cantidad de participantes invitados. A menudo se realizaban solo con los
asesores, que eran quienes estaban a cargo de las tareas de investigación y
redacción de proyectos, y que por ello tomaban notas de lo dicho.
El tono que primaba entre los actores era cordial y apuntaba a la definición de una metodología de trabajo conjunto, es decir, una serie de acuerdos que
todos respetarían y que serviría para coordinar y calibrar los pasos a seguir.
A medida que la circulación por oficinas se volvía una rutina exasperante, el
tipo de conversación llevaba a reiterar o modificar argumentos. La reunión en
Buenos Aires que describíamos previamente fue realizada en vísperas del plenario de comisiones y de la elaboración de dictámenes para su tratamiento en
la Cámara de Diputados. En ese contexto, los activistas situaron la urgencia de
su situación no ya en el acceso al cannabis, sino en las vulneraciones causadas
por la criminalización del cultivo y la tenencia; mientras tanto, legisladoras y
asesoras insistieron en pedir avales científicos, pronunciamientos de profesionales de la salud y del derecho, y sugirieron a los activistas que conversaran con
otros políticos explicando su situación.
La evaluación del encuentro y la anticipación de sus efectos constituía una
instancia posterior. En lo inmediato, se solía tomar fotografías del grupo que
había formado parte de la reunión. Esas imágenes, en las cuales los activistas
aparecían portando banderas o con vestuario que incorporaba el isologotipo de
sus agrupaciones, eran compartidas en redes sociales junto a un comentario
que describía lo sucedido. De ese modo, funcionaban como un índice de las
actividades colaborativas y del compromiso verbalizado por los actores.
Además de sitios de coordinación de tareas, las reuniones eran situaciones
en las que se establecían límites en las acciones que los participantes estaban
dispuestos a realizar o con las que podían involucrarse de modo personal y
explícito. Las fronteras entre lo posible y lo imposible se producían a través de
comentarios, sugerencias y consejos. Una de sus manifestaciones más visibles
era la diferenciación taxativa que los legisladores establecían entre uso terapéutico y recreativo de cannabis. Esta separación, reafirmada una y otra vez,
ponía de relieve cuáles eran los contornos de la causa que apoyarían, incluso si
esos límites ya habían sido trabajados o enunciados por los activistas. Así, procuraban definir el uso recreativo como parte de otra discusión, otro debate y aclaraban que aquello que los reunía era el cannabis medicinal y no la marihuana,
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distanciando el cuidado de la salud del consumo de drogas. Hacia el final de
una reunión con padres y madres en el anexo de la Legislatura, la legisladora
y su asesora llamaron la atención sobre los puntos en común en los relatos y
sobre la necesidad de establecer pasos concretos:
Legisladora.–Lo que necesitamos es un marco de alianza con la comunidad, con
la sociedad, que esto se instale, que los médicos empiecen a perder el miedo, que
la sociedad empiece a entender de lo que estamos hablando. Yo les cuento mi
experiencia desde la comunicación como legisladora. Me doy cuenta de que hay
un clic cuando yo puedo hablar de “cannabis medicinal” a cuando hablo “que
alguien me explique a mí cómo le decimos a una mamá que ve un hijo convulsionar 70 veces por día y que con el cannabis pasa a convulsionar dos o tres veces,
que alguien me explique por qué no”. Ahí es cuando se hace el clic, cuando la
comunidad empieza a entender de qué estamos hablando. Toda la otra discusión de la marihuana, todo eso se pierde cuando nosotros podemos mostrarle al
otro empáticamente de lo que estamos hablando…
Asesora.–…con testimonios para sensibilizar la problemática. (Notas de campo,
octubre de 2016).
Otra de las distinciones se vinculaba con la reconfiguración de las fronteras
porosas entre estado y sociedad civil (Coronil, 2019; Mitchell, 2006; Vianna,
2013): mientras al primero se le atribuía el rol de “hacer política” –en el sentido
de resolver, regular, controlar–, la segunda aparecía dedicada especialmente a
informar y sensibilizar por medio de testimonios. Desde esos bordes, problematizados una y otra vez, se fijaban y fetichizaban campos de acción propios
y también se reinterpretaban las demandas, es decir, se desplegaba un ámbito
de intervención estatal que podía textualizarse en una normativa o actuación
gubernamental.27
27 Un tipo particular de borde estaba constituido por la falta de competencia de los estados municipales y provinciales para modificar el Código Penal. Las propuestas de ordenanzas que autorizaban la creación de registros locales de cultivadores fueron posteriores a la sanción de la ley
Nº 27.350. En Córdoba, las conversaciones acerca de esas limitaciones tenían como telón de
fondo una representación de la provincia y de su ciudad capital como inherentemente conservadoras y opuestas, por ende, a Buenos Aires y Santa Fe.
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Entre reuniones y documentos
De esta manera, las reuniones pueden ser pensadas a la luz de la idea de
“gestión”, cuya etimología reúne los significados de “gestar” y “gestionar”. Como
propone Souza Lima (2002, p. 16), dicha categoría permite abordar ejercicios de
poder que sirven a la administración cotidiana y material de espacios, colectivos y redes, y poseen una dimensión moral y pedagógica constitutiva. En su
continua reiteración –y sin importar cuán débiles o fragmentarias sean–, esas
acciones gubernamentales enseñan a ser y a hacer, constituyendo simultáneamente subjetividades y formas de sujeción. En esa línea, Lugones (2012, p. 190)
analiza el ejercicio cotidiano de la administración estatal en tribunales Prevencionales de Menores en Córdoba y distingue “formas de aconsejamiento”,
esto es, técnicas administrativo-judiciales de carácter rutinario, persuasivo y
pedagógico, que reproducen desigualdades persiguiendo el bienestar de los
aconsejados.
Trazando un paralelo con los encuentros descritos, podemos decir que el
modo de construcción de autoridad de los funcionarios se cifraba en la enunciación de límites y fronteras, y en el dictado de instrucciones de acuerdo
con la posesión de conocimientos específicos sobre lo que sería el Estado con
mayúscula. Esto se hacía a través de frases en primera o segunda persona del
plural en las que predominaba el modo imperativo o condicional, antecedidas
de comentarios breves acerca de cómo funcionaba realmente el mundo de la
política (“Ustedes lo que deben hacer es”, “nosotros podríamos…”). También se realizaba mediante sugerencias de escritura de cartas, solicitudes e informes que
apuntaban a tornar efectivas las acciones emprendidas desde el activismo, a
la vez que separaban la voluntad de cooperar del funcionario de los resultados
concretos de su intervención.28
A esas operaciones de jerarquización los activistas contestaban oponiendo
no ya su experticia sobre uso terapéutico de cannabis, sino aquella construida
a través del tránsito por dependencias estatales y la lectura de legislación y
jurisprudencia. También fijaban límites respecto de qué debía contener
28 Esto ocurrió en diversas oportunidades. En julio de 2016, una reunión con una concejala y sus
asesores culminó con el dictado de un pedido de audiencia a una comisión del Concejo Deliberante por parte de uno de sus asesores; y con la sugerencia de incluir en el informe el testimonio
de un juez que era padre de un usuario terapéutico y que había participado como orador en
una reunión informativa reciente. Finalmente, la audiencia no se concretó (Registro de campo,
04/07/2016).
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un proyecto para que el movimiento le diera la legitimación social que los políticos precisaban: se trataba, puntualmente, del autocultivo y el cultivo colectivo de cannabis. Mi praxis etnográfica, análoga a la de los asesores durante esa
instancia del trabajo de campo, consistió en acompañar y registrar lo sucedido
en dichos espacios, para luego actualizar los materiales escritos empleados por
las organizaciones.
Trabajos de sensibilización y articulación en proyectos de ley
Allí donde la metodología o las formas de colaboración entre activistas y legisladores se desarrollaron, las actividades conjuntas cristalizaron en la redacción,
presentación y militancia de proyectos de ley. Entre los activistas que acompañé este proceso se dio tanto en el Congreso de la Nación como en la Legislatura de la Provincia de Córdoba. En este último espacio, las reuniones fueron
promovidas por partidos de la oposición al oficialismo y tuvieron como precedente las discusiones que se habían iniciado en órganos legislativos de otras
provincias.29
La elaboración de proyectos de ley en la Legislatura estuvo acompañada
por intercambios de correos electrónicos en los que se perfilaron las estrategias, los acuerdos y los pasos a seguir. De manera general, los proyectos de ley
estaban compuestos de una sección propositiva seguida de los fundamentos
para su sanción, y se movían por una ruta administrativa: se consideraba que
eran presentados cuando ingresaban a Secretaría Legislativa, donde recibían
un número, un sello, se estipulaban sus respectivas comisiones de destino y
eran remitidos a la siguiente sesión de la Cámara. Esa información constaba
en un libro que se le entregaba a cada legislador antes de dicha jornada, en el
que figuraban los “asuntos entrados”. Mediando el recorrido de los documentos, la Comisión de Labor Parlamentaria establecía criterios generales para la
sesión y elaboraba el temario. Una vez en la Cámara, el presidente ponía en
29 Entre octubre de 2016 y agosto de 2017 se presentaron en Córdoba cinco proyectos de ley, cuatro
de declaración y uno de resolución; todos estos, a excepción del último, habían sido motorizados por fuerzas políticas opositoras al partido Unión por Córdoba (Bloque Córdoba Podemos,
Frente Cívico, Frente de Izquierda y de los Trabajadores).
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consideración el diario de sesiones, las versiones taquigráficas y los asuntos
entrados, aclarando que se omitía su lectura por contar con una versión escrita
de los mismos. Con la anuencia de los legisladores, los proyectos adquirían
estado parlamentario y, a partir de ese momento, eran girados a comisiones
según su temática. La primera comisión, conocida como comisión madre en
la jerga, era la más importante, puesto que se ocupaba de tratar el tema central planteado por el proyecto. En el caso aquí reconstruido se trató de Salud
Humana, a la que le siguieron las de Prevención, Tratamiento y Control de las
Adicciones y Legislación General. Una vez que ya tenían estado parlamentario,
los proyectos pasaban a la órbita de la Secretaría de Coordinación Operativa y
Comisiones.30
La vigencia de los proyectos era de doce meses corridos, el plazo estipulado
para que se dieran todos los pasos necesarios a los fines de que se transformaran en leyes. En primer lugar, las comisiones podían tratarlos en una serie de
reuniones. Hacia el final del proceso de discusión se elaboraba un despacho, es
decir, un documento que incluía la versión final del proyecto. En ese momento
era usual la intervención de Legislación General, que se ocupaba de hacer una
revisión de carácter técnico, luego de la cual el proyecto era enviado para su
tratamiento en el recinto. Una vez allí, era sometido a votación. En caso de no
llegar a alguna de esas instancias, debía ser rehabilitado, es decir, presentado
nuevamente para evitar que pasara a archivo.
Desde la perspectiva de legisladores y asesores, impulsar un proyecto era
involucrarse en una acción transformadora, movilizar a sus pares y definir
áreas de actuación en el ejercicio de sus funciones. Ese texto, que en el recorrido del documento aparecía como acción de un legislador particular (“el
proyecto de”), era fruto de una construcción colectiva, realizada por un equipo
de trabajo. Una legisladora que colaboró con el movimiento, por ejemplo, contaba con varios asesores legislativos: uno que se ocupaba de la relación con los
medios de comunicación; dos abogados que se desempeñaban como consultores ocasionales; una asesora que se ocupaba de las tareas administrativas
(y que contaba, a su vez, con dos asistentes); y dos asesoras que se encargaban
de investigar y redactar los proyectos. De estas últimas solo una pertenecía
30 Debo las precisiones sobre estos procedimientos a las orientaciones generosas de Joaquín
Marini (Comunicación personal)
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a planta permanente, esto es, había concursado su cargo y trabajaba todos los
días en la oficina.
El proceso de elaboración de proyectos que tenían que ver con conquistas
de derechos por lo general contemplaba dos vías: correspondía al interés de
quienes integraban el equipo –ya sea el legislador o alguno de sus asesores–, o
provenía de una demanda llevada a la oficina de algún legislador por ciudadanos particulares u organizaciones no gubernamentales. Para una asesora que
entrevisté, esto implicaba que el trabajo era a la vez de escritorio –o de gabinete–
y de costura, puesto que se trataba de propiciar la articulación entre actores.
En ese sentido, era necesario dialogar con todas las personas interesadas en
–y alcanzadas por– un tema específico. En su trabajo de asistencia técnica y
asesoría legislativa, ella procuraba trazar redes a través de las herramientas
conceptuales del enfoque de Desarrollo Económico Local, en el cual se había
entrenado a lo largo de su formación en políticas públicas.
A grandes rasgos, dicho enfoque constituye una tecnología de gobierno que
considera como variables nodales las características del territorio en el que
se promueven iniciativas de desarrollo económico, y que sitúa a los agentes
locales –pertenecientes a sectores públicos y privados– como sujetos claves
en su elaboración.31 Uno de los elementos básicos del enfoque es la movilización y participación de esos agentes en la discusión sobre problemas locales, y
su “animación” por parte de equipos de liderazgo (Albuquerque, 2004, p. 163).
Desde esta perspectiva, la formulación de políticas públicas resultaría de la
producción e incentivo del consenso entre actores con intereses contrapuestos, encontrando sus puntos en común. Esto introducía matices respecto de las
pesquisas activistas, construidas a través del ensamblaje de perspectivas que
concordaban con la reforma de las políticas de drogas en dirección a la despenalización de la tenencia y la regulación del cannabis.
La escritura de proyectos emergía del encuentro entre ambas investigaciones. Así, las operaciones de traducción en reuniones y vía correos electrónicos
modulaban las demandas sociales y buscaban amplificar las articulaciones
31 Promovido por el Banco Mundial sobre todo desde 1980, su expansión coincide con el empleo
del término “governance” por parte de este organismo para señalar un estilo de gobierno que
se caracteriza por “un mayor grado de cooperación e interacción entre el Estado y actores no
estatales al interior de redes de decisión mixtas público/privadas” (Colombo, 2003, p. 131).
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entre actores mediante la convocatoria a referentes locales de las áreas del derecho y la salud. La colaboración en la lectura y corrección de uno de esos textos
permitió abrir espacio para la participación de cannabicultores en tanto integrantes de un organismo que investigaría sobre usos terapéuticos e industriales del cannabis en la provincia.32
Mientras tanto, las rutas administrativas de los proyectos se engarzaban
con iniciativas que apuntaban a darles empuje y que también se coordinaban
en esos espacios. Entre estas, se diseñó una estrategia de medios que incluyó
una nota con un periódico local, enfocada en las narrativas de los familiares
de usuarios terapéuticos y realizada en una sala de reuniones de la Legislatura:
allí, los padres y madres de niños, niñas y jóvenes con distintas enfermedades
que habían participado previamente de los encuentros, contaron sus historias
en primera persona.33 Según la asesora, la posibilidad de que el proyecto completara la ruta administrativa se relacionaba estrechamente con su impacto en
la opinión pública:
Si vos no sos oficialismo, un proyecto lo podés presentar y puede estar toda la vida
durmiendo en el cajón […] Que se trate o no depende de que la opinión pública
pueda instalarlo de manera que alguna persona con poder político –por ejemplo,
en la provincia sería el oficialismo– lo retome como proceso y lo ponga con algún
lobby a funcionar, digamos, cuando vos hacés un laburo apelando a la cohesión
de algún sector o algún espacio de la sociedad civil, tiene que ver con que en realidad pueda tratar de hacer que tu proyecto tenga algún empuje, ¿me explico?
Porque eso te podría garantizar alguna visibilidad, entonces en alguna instancia
sería como un paso de militancia de tu propio proyecto. (Entrevista, 31/07/2018).
De este modo, los textos normativos se insertaron en una trama más amplia de
sensibilización de la ciudadanía. Si bien quienes podían y sabían hacerlo eran
sobre todo los propios usuarios y sus familiares en el marco de organizaciones,
32 El proyecto 20630, presentado el 23/11/2016, apuntaba a crear una “Comisión Provincial Intersectorial de Investigación y Diseño de Estrategias de Intervención sobre producción y usos del
Cannabis” (Córdoba, 2016).
33 La nota fue realizada por Juan Manuel González el 25/10/2016 y publicada el 29/10/2016 en el
periódico Día a Día con el título: “La esperanza de la marihuana médica” (González, 2016).
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los legisladores y asesores proveían saberes propios para amplificar la causa y
mantenerla en agenda por medio de una política de las emociones. Así, estos
actores coincidían en que el cambio cultural y social podía allanar el camino
para el cambio en las leyes.
Boltanski (1993) analiza los modos de compromiso ante el sufrimiento ajeno
implicados en la acción humanitaria y caracteriza las dimensiones afectivas y
argumentativas reunidas en los tópicos de denuncia, de sentimiento y estético.
Con base en esas distinciones, podemos decir que los relatos que tenían como
protagonistas a niños, niñas y sus madres con apoyo de cultivadores, profesionales de la salud y legisladores, operaban según el tópico del sentimiento. En
éste, el estímulo a la acción ponía en juego una “metafísica de la interioridad”
en virtud de la cual el sufrimiento evitable de los desafortunados suscitaba la
compasión de los espectadores (Boltanski, 1993, p. 81). Frases como “El dolor
no puede esperar” y “Yo me pongo en sus zapatos”, que aparecieron en notas
periodísticas y campañas online, hablaban de situaciones domésticas dolorosas y difíciles que se habían transformado de manera drástica con el empleo de
cannabis; y, a la vez, llamaban a otros a actuar con celeridad, asumiendo que las
experiencias de usuarios terapéuticos y sus familiares eran o podían ser propias.
La presencia protagónica de las madres añadió una capa afectiva más a ese
tópico, en la medida en que la figura materna condensaba las tareas de cuidado
y se constituía como autoridad moral que permitía la articulación “entre dolor
personal y causas colectivas, entre sufrimientos y derechos” (Vianna; Farias,
2011, p. 83). Esto se extendía hacia las intervenciones de algunos profesionales de la salud comprometidos con el movimiento, quienes instaban a volver a
una medicina guiada por esas formas amorosas y compasivas de cuidado. En el
trabajo legislativo en Córdoba, el énfasis en el vínculo entre interioridades y en
historias de usuarios y sus madres constituía una vía para divulgar proyectos
impulsados desde la oposición, de manera que sus repercusiones se tradujeran
en mayores oportunidades para su tratamiento en las comisiones y su llegada
a la Cámara.34 La rosca, el conocimiento de qué tuercas y engranajes debían
34 La composición de las comisiones replica el sistema de mayorías y minorías de la Cámara y es
ese juego de fuerzas el que crea las condiciones de posibilidad para que los proyectos entren en
los temarios de sus reuniones semanales. Este rasgo crucial de las actividades cotidianas en la
Legislatura nos permite situar en contexto las dilaciones respecto del tratamiento y la discusión de los proyectos presentados por la oposición.
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ajustarse para influenciar decisiones entre políticos, tenía como contexto más
amplio lo que se difundía en medios de comunicación y plataformas digitales
respecto de una demanda social particular.
Considerar los proyectos en las tramas que articulan nos lleva a reconocer
que se trata de textos cuyas emergencias y circulaciones no pueden ser interpretadas ateniéndonos solo a lo que dicen o los objetivos específicos a los que
apuntan. Como tales, constituyen medios para la construcción de redes, disputas y estrategias, como también de posicionamientos propios y reputaciones.
De ese modo, su escritura y presentación hacen estado y trayectorias en la gestión estatal, aun si luego no se transforman en leyes. El carácter performativo
de los proyectos y su estrecha vinculación con tareas de sensibilización que
amplían y construyen causas políticas en agenda se observa en el contraste
entre las escasas iniciativas legislativas respecto del uso medicinal del cannabis en años anteriores y la proliferación de propuestas desde 2016.35 En el
ámbito nacional, estas superaron la veintena y siguieron dos tendencias: unas
–procedentes en su mayoría del oficialismo–, apuntaban a regular la investigación científica y médica sobre cannabis; mientras que otras, promovidas
sobre todo desde partidos de la oposición, también contemplaban la despenalización de la tenencia para uso con fines terapéuticos, llegando a incluir el
autocultivo.36
En este sentido, las rutas administrativas de los proyectos también eran
rutas colaborativas que reunían a activistas, legisladores y asesores en actividades coordinadas, no exentas de tensiones y disputas. Como vimos, para
legisladores y asesores consultados, firmar proyectos y presentarlos, así como
ser firmantes de proyectos de otros, eran modos de construir un abanico de
temas en los que se interesaban e intervenían puntualmente, y de trazar
alianzas entre pares incluso por fuera de los partidos políticos. Por otra parte,
35 En contraste con una escasa presencia del tema en la actividad legislativa de años anteriores,
solo en 2016 se presentaron diecinueve proyectos de ley ante la Cámara de Diputados y tres
ante la Cámara de Senadores de la Nación (Díaz, 2019).
36 Como mencionábamos en la introducción, entre 2015 y 2019 el oficialismo a nivel nacional
estuvo representado por Cambiemos. Los proyectos de la oposición fueron impulsados por el
Frente para la Victoria – PJ, Libres del Sur, PTS – Frente de Izquierda y de los Trabajadores y
Partido Socialista. En la diferenciación de los proyectos había, desde ya, algunas excepciones.
Sin ir más lejos, las diputadas con las que Brenda y yo dialogamos con más frecuencia eran de
la UCR y su proyecto incluía el autocultivo.
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la circulación por oficinas y salas de reunión permitía la construcción de reputaciones dentro del movimiento cannábico, en tanto habilitaba la presentación de
activistas como asesores de proyectos de ley y como actores que gozaban de la
confianza de algún político en particular. La inclusión de artículos que creaban consejos consultivos integrados por organizaciones sociales con personería jurídica sancionaba las trayectorias institucionalizadas y formales entre las
agrupaciones.
Aunque los proyectos presentados en la Legislatura de Córdoba no llegaron
a la Cámara durante ese periodo, el trabajo realizado en conjunto por activistas cannábicos y funcionarios se prolongó en el tiempo, de modo que el tema
permaneció en agenda durante unos meses más. Así, en mayo de 2017 esos
mismos activistas fueron convocados para participar como representantes
del movimiento local en reuniones promovidas por las comisiones de Salud
Humana y Adicciones. El objetivo de esos encuentros era examinar la adhesión
de la provincia a la ley nacional recientemente aprobada.37
A modo de conclusión
En este artículo analizamos el trabajo social que construye causas políticas y
problemáticas en agenda, examinando vínculos e interacciones entre activistas por la regulación del cannabis, legisladores y sus asesores. Estos se desarrollaron en –y a través de– tres situaciones cuya reiteración permite comprender
la formación de conocimientos por parte de activistas en tanto integrantes de
organizaciones de la sociedad civil en diálogo con agencias y agentes estatales:
las prácticas que crean archivos y documentos; las reuniones clave con funcionarios que se entraman en labores de investigación, escritura y circulación
institucional; y la redacción y presentación de proyectos de ley que emergen de
esa densa malla de colaboración.
37 En marzo de 2021 el gobernador de la provincia presentó un proyecto de adhesión que fue
girado a las comisiones de Legislación General y Salud Humana. En palabras de activistas y
asesores legislativos, la remisión de un proyecto a un número reducido de comisiones hablaba
de la voluntad política de aprobar rápidamente la propuesta. La sanción de la ley de adhesión
Nº 10.756 se produjo pocos meses después, el 5 de mayo de 2021.
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Así, si los activistas ingresan a los ámbitos legislativos y los transitan, lo
cierto es que gran parte de sus prácticas ya se encuentran atravesadas de antemano por consideraciones acerca de lo que es, puede y debería hacerse desde
el estado. A su vez, esos planos de actuaciones estatales posibles se refuerzan
y modifican en la propia vinculación con funcionarios, legisladores y asesores.
Podemos ver esto en los procesos de institucionalización de las agrupaciones
cannábicas y en el registro de acciones colectivas que se vuelven, por medio de
su ordenamiento cronológico, acontecimientos históricos capaces de certificar
la trayectoria oficial de una organización y, por extensión, de cada uno de sus
integrantes. La demanda de reconocimiento se cifra en estas operaciones de
creación del –y sujeción al– arkhé, y en una relación mutua y constitutiva entre
activismos y estados.
Las actividades abarcaron distintos niveles estatales y movilizaron contactos, estrategias y posicionamientos diferenciales. Así, la participación de
activistas cordobeses en reuniones con políticos y asesores en el Congreso
procuraba transmitir una experiencia del interior, situándola en pie de igualdad con aquellas de otros estados provinciales. Dichas reuniones, tanto en el
Congreso como en el Concejo Deliberante y en la Legislatura de la Provincia
eran instancias en las que se fijaban acuerdos y límites, tanto para las acciones
gubernamentales como para las actuaciones de las organizaciones sociales. Los
consejos por medio de los cuales los funcionarios instaban a respetar las formas y los carriles correctos llevaban a la reiteración o demora de las gestiones, e
impulsaban la circulación insistente e incesante de madres y cultivadores. El
trabajo en común se plasmaba en proyectos de ley y en un conjunto de actividades que contornaban esos textos, tales como notas periodísticas, divulgación
de imágenes fotográficas de los actores en redes sociales y más reuniones para
establecer los pasos a seguir.
En esas circulaciones activistas se construían conocimientos y experticias estatalizantes que no solo incluían consideraciones sobre una adecuada
presentación de sí y modos de articular argumentos, sino también saberes
sobre determinadas normativas y prácticas escritas que atraviesan la acción
estatal. Esto era así tanto para la causa de la regulación del cannabis –cuyos
conocimientos eran compartidos desde diferentes posiciones, profesiones y
oficios entre los cannábicos– como para otros ámbitos y causas sociales. Sin ir
más lejos, Brenda se había formado inicialmente en el activismo de personas
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viviendo con VIH-sida y fue a partir del tránsito por esas redes que logró montar un dispositivo de asesoría en salud y gestión en un hospital público. Allí
informaba sobre las leyes nacional y provincial de VIH, tramitaba pensiones
no contributivas, promovía recursos de amparo y denuncias ante actos de discriminación y conversaba sobre cannabis. De esa militancia previa provenía
gran parte de su red de relaciones.
Más allá de los resultados, esto es, la formulación de leyes que atendieran
los anhelos de los y las activistas, aquí interesa destacar la dimensión productiva de las situaciones descritas para la creación de encuadramientos de formas
de hablar, gestionar, organizar(se) y circular entre oficinas, salones de eventos y
manifestaciones, junto con sus potenciales líneas de fuga. La movilización del
activismo cannábico no culminó con aprobación de la ley Nº 27.350 (Argentina,
2017a), sino que continuó en el reclamo de una reglamentación más amplia
que la sancionada en septiembre de 2017 con el decreto Nº 738/17 (Argentina,
2017b). Esto se vio acompañado de la movilización de investigadores y profesionales de la salud que realizaron tareas de asesoría y divulgación científica en el
marco de organizaciones no gubernamentales, cátedras y proyectos de extensión e investigación universitarios. Tres años después, en noviembre de 2020,
el decreto reglamentario Nº 883/2020 (Argentina, 2020) finalmente incluyó las
figuras de “cultivo para sí” y “cultivo a través de un/a familiar o un tercero”, reivindicadas por las redes activistas que integraban a cultivadores, madres, usuarios y usuarias, profesionales de la salud y la ciencia.
El abordaje antropológico de esas formas de conocer y hacer permite mostrar la imbricación entre modalidades de orientación al mundo racionales y
participativas (Peirano, 2006) que complejizan las relaciones entre lo que se
concibe como “sociedad civil” y “estado”. A la vez, revela zonas de densidad en
torno a las materialidades de las prácticas burocráticas, la importancia de las
emociones en esos procesos y la colaboración de los etnógrafos en la producción de artefactos que resultan centrales para la actividad política de las personas con las que trabajamos.
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Recebido: 18/02/2020 Aceito: 06/08/2020
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Received: 2/18/2020
Accepted: 8/6/2020
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Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 28, n. 62, p. 385-419, jan./abr. 2022
Instruções às/aos autoras/es
Horizontes Antropológicos é um periódico comprometido com as boas práticas e
a ética na gestão dos manuscritos, expressas nas orientações abaixo:
1 – Horizontes Antropológicos publica trabalhos originais/inéditos sob a forma de
artigos e entrevistas, em português, espanhol, francês ou inglês.
1.1 – As/Os autoras/es que tiverem seus trabalhos publicados devem observar o
intervalo de 18 meses, a contar da data da publicação, antes de realizarem a
submissão de um novo artigo.
2 – O número máximo de autoras/es por artigo é quatro. Aceitamos a submissão de somente um trabalho por autor/a para cada chamada de artigos.
2.1 – A submissão de trabalhos deve ser realizada na plataforma SEER (https://
seer.ufrgs.br/horizontesantropologicos) e as/os autoras/es devem obrigatoriamente informar: nome, ORCID, e-mail, afiliação institucional (especificando
cidade, estado e país da instituição). Para assegurar a integridade da avaliação
às cegas pelos pares, as/os autoras/es devem excluir qualquer identificação de
autoria nos textos, inclusive em referências e notas de rodapé. Em arquivos do
Microsoft Office e PDF (Adobe Acrobat), a identificação de autoria deve ser removida das propriedades do documento. Não aceitamos a duplicação de publicação
ou tradução de artigo já publicado em outro periódico ou como capítulo de livro.
2.2 – Caso haja interesse das/os autoras/es, os artigos podem ser disponibilizados
previamente na modalidade preprint em https://preprints.scielo.org/index.php/
scielo/index. Para isso, é necessário o aceite das exigências de conformidade com
a Ciência Aberta (solicite o formulário pelo e-mail horizontes@ufrgs.br). Neste
formulário, as/os autoras/es informam: (a) se o manuscrito é um preprint e, em
caso positivo, sua localização; (b) se dados, códigos de programas e outros materiais subjacentes ao texto do manuscrito estão devidamente citados e referenciados; e (c) se aceitam opções de abertura no processo de avaliação pelos pares.
2.3 – Como expressão de transparência e reconhecimento das diferentes contribuições de pesquisadores, o texto final, no caso de aprovação para publicação, deve informar ao final, de modo preciso, as contribuições específicas de
cada autor/a. As/Os autoras/es também devem especificar formalmente se há
ou não possíveis conflitos de interesse na realização e comunicação de suas
pesquisas.
2.4 – Os artigos devem ter um título que represente de forma objetiva seu conteúdo, ser escritos em espaço duplo e ter até 10 mil palavras, incluindo referências e notas. Caso se trate de artigo sobre pesquisa empírica, o texto pode
chegar a 11 mil palavras e deve apresentar a metodologia empregada: como as
observações foram coletadas; de onde e como as observações foram extraídas,
quais documentos e arquivos foram consultados, em que local e data; quais
perguntas de quais surveys foram analisadas; em que contexto, local e data/
período foi realizado o trabalho de campo; quantas pessoas foram entrevistadas; qual roteiro foi utilizado; qual técnica de observação foi empregada, etc.
Deve ainda explicitar como as observações foram analisadas, quais foram os
métodos e técnicas utilizadas na produção de cada gráfico, tabela, figura, descrição e interpretações defendidas.
2.5 – Os artigos devem vir acompanhados de um resumo escrito em espaço
simples, no mesmo idioma, com até 150 palavras, e de mais quatro palavras-chave, bem como de uma versão em inglês do resumo (abstract), nos mesmos
padrões, com quatro palavras-chave (keywords) e versão em inglês do título. No
caso de originais em inglês, essas informações devem, também, trazer a versão
em português.
3 – O padrão adotado pela revista para citações e referências segue as normas
da ABNT, NBR 10520 e NBR 6023, respectivamente.
3.1 – As notas explicativas devem vir no rodapé da página e as referências
devem vir após o texto, ordenadas alfabeticamente.
3.2 – No corpo do texto, a indicação de referência nas citações diretas deve trazer autor(es), ano de publicação e página(s); nas citações indiretas a indicação
de página é opcional, conforme os modelos:
Segundo Hassen (2002, p. 173): “Há uma grande carência de materiais didáticos nesse campo, principalmente se aliados à ludicidade.”
Sabemos que há “[…] uma grande carência de materiais didáticos nesse
campo […]” (Hassen, 2002, p. 173).
Sabemos da grande carência de materiais didáticos nesse campo (Hassen,
2002).
Sabemos da grande carência de materiais didáticos nesse campo, segundo
Hassen (2002).
ou
Sabemos da grande carência de materiais didáticos nesse campo, segundo
Hassen (2002, p. 173).
3.3 – As citações diretas com mais de três linhas, no texto, devem ser destacadas com recuo e corpo menor de letra, sem aspas, em espaço simples; transcrições das falas dos informantes seguem a mesma norma, conforme o modelo:
[…] regras de comportamento explícitos às quais os indivíduos se referem
conscientemente, e que se fundam sobre justificações ou princípios filosóficos, ideológicos ou políticos, ou sobre o surgimento de novas aspirações
individuais ou coletivas. (Bozon, 1995, p. 124).
3.4 – As referências, no final do texto, devem seguir os modelos:
3.4.1 – Livro (e guias, catálogos, dicionários, etc.) no todo: autor(es), título (em
itálico e separado por dois-pontos do subtítulo, se houver), número da edição
(se indicado), local, editora, ano de publicação:
DUMONT, L. Homo hierarchichus: o sistema de castas e suas implicações.
São Paulo: EDUSP, 1992.
FORTES, M.; EVANS-PRITCHARD, E. E. (ed.). African political systems. Oxford:
Oxford University Press, 1966.
MINISTÉRIO DE SALUD. Unidade Coordinadora Ejecutora VIH/SIDA y
ETS. Boletín de SIDA: programa nacional de lucha contra los retrovirus del
humano y SIDA. Buenos Aires, mayo 2001.
3.4.2 – Parte de livro (fragmento, artigo, capítulo em coletânea): autor(es), título
da parte seguido da expressão “In:”, autor(es) do livro, título (em itálico e separado por dois-pontos do subtítulo, se houver), número da edição (se indicado),
local, editora, ano de publicação, página(s) da parte referenciada:
VELHO, O. Globalização: antropologia e religião. In: ORO, A. P.; STEIL, C. A.
(org.). Globalização e religião. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 25-42.
3.4.3 – Artigo/matéria em periódico (revista, boletim, etc.): autor(es), título do
artigo, nome do periódico (em itálico), local, ano e/ou volume, número, páginas
inicial e final do artigo, data.
CORREA, M. O espartilho de minha avó: linhagens femininas na antropologia. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 3, n. 7, p. 70-96, out. 1997.
3.4.4 – Artigo/matéria em jornal: autor(es), título do artigo, nome do jornal (em
itálico), local, data, seção ou caderno, página (se não houver seção específica, a
paginação precede a data):
TOURAINE, A. O recuo do islamismo político. Folha de S. Paulo, São Paulo, 23
set. 2001. Mais!, p. 13.
SOB as bombas. Folha de S. Paulo, São Paulo, p. 2, 22 mar. 2003.
3.4.5 – Trabalhos acadêmicos: referência completa seguida do tipo de documento, grau, vinculação acadêmica, local e data da defesa conforme folha de
aprovação (se houver):
GIACOMAZZI, M. C. G. O cotidiano da Vila Jardim: um estudo de trajetórias,
narrativas biográficas e sociabilidade sob o prisma do medo na cidade. 1997.
Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1997.
3.4.6 – Evento no todo: nome do evento, numeração (se houver), ano e local
(cidade) de realização, título do documento (anais, atas, resumos, etc., em itálico), local de publicação, editora e data de publicação:
REUNIÃO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA, 21., 1998,
Vitória. Resumos […] Vitória: Departamento de Ciências Sociais/UFES, 1998.
3.4.7 – Trabalho apresentado em evento: autor(es), título do trabalho apresentado seguido da expressão “In:”, nome do evento, numeração (se houver), ano e
local (cidade) de realização, título do documento (anais, atas, resumos, etc., em
itálico), local de publicação, editora, data de publicação e página inicial e final
da parte referenciada:
STOCKLE, V. Brasil: uma nação através das imagens da raça. In: REUNIÃO
DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA, 21., 1998, Vitória. Resumos […] Vitória: Departamento de Ciências Soci-ais/UFES, 1998. p. 33.
3.4.8 – Documento em meio eletrônico: acrescenta-se à referência a descrição
física do suporte (CD-ROM, disquete, etc.); para documentos consultados on-line, indica-se o endereço completo e a data de acesso (dia, mês e ano):
CEISAL – CONGRESO EUROPEO DE LATINOAMERICANISTAS, 3., 2002,
Amsterdam. Cruzando fronteras en América Latina. Amsterdam: CEDLA:
Radio Nederland Wereldomroep. 1 CD-ROM.
ALVES, D. Notas sobre a condição do praticante budista. Debates do NER,
Porto Alegre, ano 7, n. 9, p. 57-80, jan./jun. 2006. Disponível em: http://seer.
ufrgs.br/index.php/debatesdoner/article/view/2767/1382. Acesso em: 5 jun.
2013.
3.5 – Nos textos, evitar o uso de mais de uma fonte tipográfica; usar inicial maiúscula somente quando imprescindível; os recursos tipográficos devem ser utilizados uniformemente:
a) itálico: para palavras estrangeiras, não dicionarizadas e ênfase;
b) aspas duplas: citações diretas com menos de três linhas, citações de palavras individuais ou palavras cuja conotação ou uso mereça destaque;
c) negrito e sublinhado: devem ser evitados.
4 – Imagens que façam parte do artigo (figuras e gráficos inclusive) devem
ser enviadas em formato TIFF (sem compressão) e resolução de 300 dpi no
tamanho final pretendido para a impressão. Largura máxima: 11,6 cm; altura
máxima: 16 cm (ou 1368 x 1890 pixels).
5 – A publicação dos artigos será decidida pelos editores da revista e organizadoras/es do número temático, levando em consideração pareceres de consultores externos.
6 – Para alargar a captação de colaborações, Horizontes Antropológicos faz ampla
divulgação da temática de seus números já programados e respectivas/os organizadoras/es na contracapa de seus números, em seu website (https://www.
ufrgs.br/ppgas/ha), em redes sociais, em blogs especializados e em boletins de
associações profissionais de ciências sociais.
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Instructions to authors
Horizontes Antropológicos is committed to good practices and ethics in the
management of manuscripts, as expressed in the guidelines below:
1 – Horizontes Antropológicos publishes original/unpublished works in the form
of articles and interviews in Portuguese, Spanish, French or English.
1.1 – Authors who have their work published must observe the interval of 18
months, from the date of publication, before submitting a new article.
2 – The maximum number of authors per article is four. For each call for papers,
we accept the submission of only one work per author.
2.1 – The submission of papers must be held in the OJS platform (https://seer.
ufrgs.br/horizontesantropologicos) and the authors must inform: name, e-mail,
ORCID registration number and institutional affiliation (with City, State and
Country). To ensure the integrity of the blind peer review, the authors must
exclude any identification of authorship, including in references and footnotes. In Microsoft Office and PDF (Adobe Acrobat) files, the authorship ID must
be removed from the document properties. We do not accept duplication of
publication or translation of articles already published in another journal or
as a book chapter.
2.2 – If there is interest from the authors, the articles can be previously made
available in the preprint mode at https://preprints.scielo.org/index.php/scielo/
index. For this, it is necessary to accept the requirements for compliance with
Open Science (and request the form by e-mail horizontes@ufrgs.br). In this
form, the authors inform: (a) if the manuscript is a preprint and, if so, where is
allocated; (b) whether data, program codes and other materials underlying the
text of the manuscript are properly cited and referenced; and (c) if openness
options are accepted in the peer review process.
2.3 – As an expression of transparency and recognition of the different contributions to the research, the final text, in case of approval for publication,
must inform at the end, in a precise manner, the specific contributions of each
author. The authors must also formally specify potential conflicts of interest in
their research.
2.4 – Articles must have a title that objectively represents their content, also
be written in double space and have up to 10,000 words, including references and footnotes. In the empirical researches, the text can reach 11,000 words
and must present the methodology: how the observations were collected;
where and how the observations were extracted, what documents and files
were consulted, in what place and date; which questions from which surveys
were analyzed; in what context, place and date/time period the fieldwork was
carried out; how many people were interviewed; which guide was used; which
observation techniques were employed, etc. It must also explain how the observations were analyzed, what were the methods and techniques used in the production of each graph, table, figure, description and interpretations.
2.5 – Articles must contain an abstract written in simple space and with up to
150 words and four keywords, as well as a Portuguese version of the abstract,
keywords and title.
3 – For quotes and references, the journal follows the ABNT (Brazilian Association of Technical Norms) standards NBR 10520 and NBR 6023, respectively.
3.1 – Notes must appear at the bottom of the page (as footnotes). Bibliographical references must appear alphabetically in the end of the text.
3.2 – Direct quotes must appear in the main body of the text and present:
author’s last name, year of publication, page indication. In indirect quotes the
page indication is optional, according to the models:
According to Lancaster (1992, p. 173): “Machismo, in whatever guise, is not
simply a matter of ideology.”
We know that “machismo, in whatever guise, is not simply a matter of ideology” (Lancaster, 2002, p. 173).
We know that machismo is not simply a matter of ideology (Lancaster, 1992).
or
Machismo is not simply a matter of ideology, according to Lancaster (1992,
p. 173).
3.3 – Direct quotes with more than three lines must appear in small print,
without quotation marks, in single-spaced text; transcriptions of interviews
must follow the same format, as in the example:
One view stresses the “vertical” element in faith, the relationship to God;
and it selects certain persons, institutions, objects which in a privileged
way are held to give access to the divine clearly and unmistakably. […] The
other view of the sacred refuses to localize it in the people, places and
things. (Hebblethwaite, 1975, p. 15).
3.4 – Bibliographical references at the end of the text must follow the
guidelines:
3.4.1 – Books, guides, catalogues, dictionaries, etc.: author(s), title (in italics and
separated by a colon from the subtitle, when applicable), edition number (if
indicated), place, publisher, year of issue:
SAHLINS, M. How “natives” think: about Captain Cook, for example. Chicago:
University of Chicago Press, 1995.
FORTES, M.; EVANS-PRITCHARD, E. E. (ed.). African political systems. Oxford:
Oxford University Press, 1966.
MINISTÉRIO DE SALUD. Unidade Coordinadora Ejecutora VIH/SIDA y
ETS. Boletín de SIDA: programa nacional de lucha contra los retrovirus del
humano y SIDA. Buenos Aires, mayo 2001.
3.4.2 – Part of a book (fragment, article, chapter in a collective work): author(s),
title of the part followed by the expression “In:”, author(s) of the book, title (in
italics and separated by a colon from the subtitle, when applicable), edition
number (if indicated), place, publisher, year of issue:
BRUNER, E. M. Ethnography as narrative. In: TURNER, V. W.; BRUNER, E.
M. The anthropology of experience. Chicago: University of Illinois Press, 1986.
p. 139-155.
3.4.3 – Article/paper in journal: author(s), title of article, name of the journal (in
italics), place, year and/or volume, number, initial and final page of the article,
date.
WHITE, H. The value of narrativity in the representation of real. Critical
Inquiry, Chicago, v. 7, n. 1, p. 5-27, 1980.
3.4.4 – Article in newspaper: author(s), title of the article, name of the newspaper (in italics), place, date, section or part, page (if there is a specific section, the
page precedes the date):
TOURAINE, A. O recuo do islamismo político. Folha de S. Paulo, São Paulo, 23
set. 2001. Mais!, p. 13.
SOB as bombas. Folha de S. Paulo, São Paulo, p. 2, 22 mar. 2003.
3.4.5 – Academic production: complete reference followed by the type of document, degree, academic affiliation, place and date as indicated in the document:
GIACOMAZZI, M. C. G. O cotidiano da Vila Jardim: um estudo de trajetórias,
narrativas biográficas e sociabilidade sob o prisma do medo na cidade. 1997.
Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 1997.
3.4.6 – Scientific events: name of the event, number (if there is), year and place
(city), title of the document (annals, acts, abstracts, etc., in italics), place of issue,
publisher and date of publication:
REUNIÃO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA, 21., 1998,
Vitória. Resumos […] Vitória: Departamento de Ciências Sociais/UFES, 1998.
3.4.7 – Paper presented at a scientific event: author(s), title of the paper presented followed by the expression “In:”, name of the event, number (when applicable), year and place (city) where the event occurred, title of the document
(annals, acts, abstracts, etc., in italics), place of issue, publisher, date of publication and initial and final pages of the paper:
STOCKLE, V. Brasil: uma nação através das imagens da raça. In: REUNIÃO
DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA, 21., 1998, Vitória. Resumos […] Vitória: Departamento de Ciências Sociais/UFES, 1998. p. 33.
3.4.8 – Documents in electronic media must be listed under the specific sort
of support (CD-ROM, disk, etc.); for documents consulted on-line the full web
address and date of access (day, month and year) must be indicated:
CEISAL – CONGRESO EUROPEO DE LATINOAMERICANISTAS, 3., 2002,
Amsterdam. Cruzando fronteras en América Latina. Amsterdam: CEDLA:
Radio Nederland Wereldomroep. 1 CD-ROM.
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br/index.php/debatesdoner/article/view/2767/1382. Accessed: 5 jun. 2013.
3.5 – In the main body of the text, authors must follow a consistent typographical style; use capital letters only when absolutely necessary:
a) italics: for foreign words and emphasis;
b) double quotes: in direct quotes with less than 3 lines; in words which
have an unusual connotation and in those which should receive particular emphasis;
c) bold type and underlining should be avoided.
4 – Any illustrations (including diagrams and graphics) must be sent in TIFF
format (without compression), in the final size intended for publication and at
300 dpi resolution. Maximum width: 4.56 inches (11,6 cm); maximum height:
6.3 inches (16 cm) or 1368 by 1890 pixels.
5 – The publication of the articles will be decided by the editors of the journal
and the coordinators of the issue, taking into consideration the peer reviews.
6 – In order to broaden the collaborations, Horizontes Antropológicos makes a
wide dissemination of the theme of its forthcoming issues and of the respective coordinators on the back cover of its printed version, on its website (https://
www.ufrgs.br/ppgas/ha/index.php/en/), on social media, on specialized blogs
and on newsletters of social sciences professional associations.
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Temas dos números anteriores
1995
1 Gênero
2 Antropologia visual
3 Religiões afro-americanas
2002
17 Sexualidade e Aids
18 Arqueologia e sociedades
tradicionais
1996
4 Comida
2003
19 Imigração e fronteiras
20 Antropologia e turismo
1997
5 Diferenças culturais
6 Sociedades indígenas
7 Histórias da antropologia
1998
8 Religião
9 Corpo, doença e saúde
2004
21 Antropologi@web
22 Cultura escrita e práticas
de leitura
2005
23 Patrimônio cultural
24 Antropologia e performance
1999
10 Diversidade cultural e cidadania
11 Música e sociedade
12 Cultura oral e narrativas
2006
25 Antropologia e meio ambiente
26 Direitos sexuais
2000
13 A cidade moderna
14 Relações interétnicas
2007
27 Religião e política
28 Antropologia e consumo
2001
15 Antropologia e política
16 Natureza e cultura
2008
29 Antropologia e arte
30 Antropologia e esporte
Temas dos números anteriores
2009
31 Circulação internacional
32 Etnografias
2010
33 Antropolofia e estilos de vida
34 Antropologia e ciclos de vida
2011
35 Ciência, poder e ética
36 Cultura material
2012
37 Teoria antropológica
38 Saberes e fazeres
2013
39 Antropologia e trabalho
40 Megaeventos
2014
41 Antropologia e políticas globais
42 Sofrimento e violência
2015
43 Diásporas
44 Cultura e aprendizagem
2016
45 Economia e cultura
46 Tecnologias de governo:
etnografias de práticas e políticas
2017
47 Gênero e sexualidade, saberes
e intervenções
48 Antropologia e animais
49 Antropologia, etnografia
e educação
2018
50 Políticas de inclusão
51 Sistemas xamânicos
e novos xamanismos
52 A religião no espaço público
2019
53 Antropologia dos museus
54 Antropologia e emoções
55 Arte e cidade
2020
56 Imitação, simulacro e falsificação
57 Antropologia da biossegurança
58 Antropologia histórica
e povos indígenas
2021
59 Covid-19. Antropologias de uma
pandemia
60 Antropologia da criança
61 Governança reprodutiva
Números de Horizontes Antropológicos
a serem publicados em 2022/2023
Número 63
Negritude e relações raciais
organizado por Denise Jardim, Handerson Joseph, Cédric Audebert
e Osmundo Pinho
Envio de artigos: de 01/02/2021 a 31/05/2021
Número 64
Antropologia e deficiência
organizado por Patrice Schuch, Valéria Aydos, Anahí Guedes de Mello e
Sahra Gibbon
Envio de artigos: de 01/06/2021 a 30/09/2021
Número 65
Antropologia e democracia
organizado por Eduardo Dullo, Katerina Hatzidiki e Leticia Cesarino
Envio de artigos: de 01/10/2021 a 31/01/2022
Número 66
Antropologia e crise ambiental
organizado por Ana Luiza Carvalho da Rocha, Cornelia Eckert e Don Nelson
Envio de artigos: de 01/02/2022 a 31/05/2022
Número 67
Antropologia, artes e política
organizado por Vitor Grunvald, Paulo Raposo e Roger Sansi Roca
Envio de artigos: de 01/06/2022 a 30/09/2022
Submissão de artigos em: http://seer.ufrgs.br/horizontesantropologicos