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Cineclubismo e Censura em Portugal 1943-65 (2013)

Cineclubismo e Censura em Portugal (1943-65)1 Paulo Cunha (CEIS20-UC/CIMJ) O movimento dos cineclubes é um objecto de estudo particularmente complexo na história do cinema português. As múltiplas contradições e omissões na(s) história(s) do movimento dos cineclubes e a falta de investigações históricas sobre a génese e crescimento deste fenómeno tem dificultado o seu estudo de uma forma mais integrada. Como alerta Paulo Jorge Granja, a historiografia sobre os cineclubes e o movimento cineclubista em Portugal “ – até há bem pouco tempo, quase sempre escrita na primeira pessoa –, costuma eludir ou só muito superficialmente abordar vários factos cujo conhecimento nos parece indispensável a uma melhor compreensão da história do movimento dos cineclubes em Portugal” (Granja, 2006, p. 6). Muito mais do que um simples movimento cinéfilo, o movimento cineclubista desempenhou, durante o Portugal estadonovista, um importante papel de resistência cultural e mesmo de oposição política à ditadura vigente, e a sua evolução ajuda a compreender com maior alcance as mutações sócio-culturais e politico-ideológicas de Portugal no pós-Segunda Guerra Mundial. Os dados aqui reproduzidos procuram apenas caracterizar sumariamente o movimento e enquadrá-lo nas problemáticas culturais e artísticas transversais que marcaram esse período. 1. Génese, crescimento e repressão (1943-1947) À semelhança do que aconteceu no resto da Europa, também em Portugal as primeiras associações cinematográficas de espectadores surgiram ainda durante o cinema mudo, com a criação no Porto e em Lisboa, em 1924, de duas instituições homónimas: Associação dos Amigos do Cinema. De acordo com as pesquisas de Paulo Jorge Granja, os antecedentes embrionários do movimento cineclubista conheceriam novos episódios no início dos anos 30, Comunicação apresentada no II Congresso Internacional História e Literatura nos cinema em espanhol e português, Centro de Estudos Brasileiros da Universidad de Salamanca, Salamanca, Espanha, 2013. Participação custeada pelo projeto de investigação Censura e mecanismos de controlo da informação no Teatro e no Cinema. Antes, durante e após o Estado Novo, coordenada por Ana Cabrera. Financiamento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (PTDC/CCI-COM/117978/2010). Centro de Investigação Media e Jornalismo. 1 com a identificação de alguns projectos planeados e/ou concretizados tais como: Cine-Clube de Portugal (Lisboa, 1931), Cine-Clube de Portugal (Faro, 1931), Cineclube Movimento (Porto, 1933), Cine Clube Português (Coimbra, 1933), Sociedade Portuguesa de Cinematografia (Lisboa, 1933); ou os clubes de cinema de amadores como a Secção de Cinematografia do Grémio Português de Cinematografia (1932), a Associação dos Amadores Cinematográficos de Portugal (1932) ou o Grupo Único dos Amadores de Cinema de Portugal (1934) (Ibidem, pp. 8-11; pp. 16-30). No entanto, o movimento cineclubista só se considera iniciado em Portugal com a fundação do Belcine – Clube de Cinema da Parede, em 1943, e com a constituição, em Abril de 1945, do Clube Português de Cinematografia (CPC/CCP), no Porto. Esta nova geração de cinéfilos denota um forte entusiasmo cinéfilo e político e prova que afinal o público português não era tão mau como muitos pretendiam afirmar. Este movimento agregava sobretudo estudantes universitários, “gente de cultura e animação, de um modo geral gente para quem o cinema é algo mais que um projecto cinéfilo”. Reconhecendo a capacidade do cinema de análise e reflexão política, social e cultural, “intransigentes e entusiastas, os cineclubistas são combatidos, mas a sua actividade influencia outras actividades e outros núcleos, interessando movimentos ideológicos diferentes pela mesma preocupação transformadora” (Pina, 1977, p. 62). O ano de 1946 seria particularmente activo no que diz respeito ao cineclubismo, registando-se o surgimento de três novos cineclubes: Círculo de Cinema de Lisboa, (CCL), Círculo de Cultura Cinematográfica – Cine-Clube Universitário de Coimbra (CCC), Clube de Amadores da Arte Cinematográfica (Lisboa). No ano seguinte surgiriam mais dois: Lusocine Clube (Lisboa, da fusão do Clube de Amadores da Arte Cinematográfica com a União de Cineastas Amadores) e Cine-Clube Olhanense. Mas desde cedo que a PIDE seguia atentamente as actividades de alguns dos mais activos animadores dos cine-clubes, nomeadamente por actividaees políticas ligadas a movimentos da oposição ao regime, como Partido Comunista Português (PCP), o Movimento de Unidade Democrática (MUD) ou o Movimento de Unidade Democrática Juvenil (MUDJ). No Porto, para além de Manuel de Azevedo, que como vimos já tinha sido várias vezes detido por suspeita de pertencer ao PCP, José Borrego seria um dos primeiros dirigentes cineclubistas a despertar a atenção das autoridades devido ao seu activismo político, por ser um dos responsáveis da célula do MUD na Escola de Belas Artes do Porto, e acabaria preso a 13 de Abril de 1947. Em Coimbra, Rui Grácio, um dos principais dirigentes do CCC e membro da Comissão Central do MUDJ, seria também detido a 17 de Abril de 1947. As detenções de José Borrego e Rui Grácio integravam-se numa vaga repressiva mais vasta, que o regime, recomposto depois da remodelação governamental de Fevereiro, levaria a cabo, entre Março e Maio de 1947 contra o MUDJ (Granja, 2006, pp. 99-101). Já antes das detenções de Grácio e Borrego, vários outros cine-clubistas seriam referenciados pela PIDE pelo simples facto de participarem em iniciativas ou assinarem petições do MUDJ e do MUD — como aconteceria, por exemplo, com Costa Campos e Nataniel Costa, do CCL, e Manuel de Azevedo e Virgílio Pereira, do CPC/CCP. Mas a acção policial que “maior impacto teria no movimento dos cineclubes, até porque visaria directamente o cineclube que à data mais sócios teria [aproximadamente 2 mil sócios], ocorreria a 31 de Janeiro de 1948, com o assalto à sede do CCL e à detenção de vários dos seus dirigentes e sócios [António Ferreira Pinto de Carvalho, João António da Silva, José Ernesto de Sousa, Manuel Isidro Pousal Domingues, Carlos Vieira, Humberto Pereira e Hélder David Meneses].” (Ibidem, pp. 101-102). Embora a PIDE não conseguisse provar cabalmente qualquer “actividade subversiva” no CCL, nem provar que o CCL se tinha desviado do “objectivo de cultura e divulgação cinematográfica” com que tinha sido criado ou estabelecer qualquer ligação com o PCP, esta acção repressiva integrava-se numa acção mais vasta, que haveria de culminar na ilegalização do MUD em Março desse mesmo ano. No caso do CCL, o assalto à sua sede parece, também, relacionar-se com a suspeita de que os seus membros estariam a duplicar circulares clandestinas para a campanha do candidato oposicionista Norton de Matos ao cargo de Presidente da República (Ibidem, p. 102). Mas haveria também consequências para o movimento cineclubista: “em pouco tempo a repressão do Estado acabaria por abater-se sobre os cine-clubes, extinguindo dois deles e acabando por colocar indirectamente em causa a existência dos restantes. / A extinção e repressão dos cine-clubes far-se-ia, no entanto, a coberto da censura, pouco ou nada transpirando para opinião pública. / (…) / Com o movimento dos cine-clubes destroçado, apenas o CPCCCP continuaria em actividade, escudado na sua inscrição na FPCE [Federação Portuguesa das Colectividades de Educação e Recreio do Distrito do Porto] e, depois de Julho de 1948, no reconhecimento dos seus Estatutos pelo Governo Civil daquela cidade” (Ibidem, pp. 105-106). 2. Ressurgimento e reorganização (1948-1954) Em 1948, Manuel de Azevedo publicaria um livro intitulado O Movimento dos Cineclubes onde fazia uma cineclubista e um relatório panorâmica na sua do movimento internacional participação, enquanto delegado representante de quatro cineclubes portugueses, no I Congresso da Federação Internacional dos Cineclubes (Pelayo, 1998, p. 86). Simultaneamente, a publicação deste livro poderia ser também encarada como uma “prova de vida” do movimento cineclubista português, procurando através do mercado editorial um mediatismo para o movimento. Depois da repressão de 1948, só muito lentamente o movimento dos cineclubes voltaria a dar sinais de vitalidade. O CPC/CCP continuava a ser o único em actividade oficial, mas em 1949 nascia, aparentemente das cinzas do extinto CCC/CCUC, o Clube de Cinema de Coimbra (CCC). Nesse ano e no seguinte, Paulo Jorge Granja também sinalizou algumas notícias de que também em Olhão, Mirandela, Castelo Branco, Faro e Lisboa se tentariam criar novos cineclubes. Em Lisboa, por exemplo, existem referências concretas a três tentativas: “a de um Cine-Clube Popular, dirigido pelo jornalista e realizador Gentil Marques, e patrocinado pelo Diário Popular; a de um CineClube de Lisboa, aparentemente ligado à organização dos Festivais do Cinema Europeu no Ateneu Comercial de Lisboa de 1948 e 1949, e, finalmente, a de um Centro Cultural Cinematográfico, ligado a um programa da Rádio Renascença intitulado ‘A Arte das Imagens’.” (Granja, 2006, pp. 107-108). O movimento começa a reconstruir-se a partir de 1950: ABC Cine-Clube de Lisboa, fundado por Carlos Carvalho a 1 de Novembro de 1950, apresentaria a sua primeira sessão apenas a 14 de Abril de 1951; também em Lisboa, o Clube Imagem, criado a 20 de Junho de 1951, por iniciativa da revista com o mesmo nome, inicia a sua actividade; em Março de 1952 aparecia o Cine-Clube Universitário de Lisboa (CCUL), aparentemente por iniciativa de um grupo de estudantes do ensino superior; o Cine-Clube de Rio Maior (CCRM), o primeiro cineclube a surgir fora de uma das três principais cidades, inicia a sua actividade a 24 de Julho de 1952, e funda a revista Visor; em Coimbra, em finais de 1952, depois da prolongada inactividade do CCC, surge o Círculo de Cultura Cinematográfica/Cine-Clube Universitário de Coimbra, promovida por um grupo de estudantes universitários ligados à Mocidade Portuguesa (Ibidem, pp. 109-113). Infelizmente, o ano de 1953 ficaria marcado pela suspensão da revista Imagem, e do seu Clube Imagem, uma publicação que reproduzia as orientações estéticas predominantes entre os cineclubes: “a PIDE interromperia uma sessão no cinema Capitólio, que tudo leva a crer ter sido organizada pelo CI ou por elementos próximos deste Clube, acabando por prender Vasco Granja, um dos seus principais dirigentes. Aparentemente, a sessão, em que se projectava o filme Il Cammino della speranza (O Caminho da Esperança, 1950), de Pietro Germi, destinava-se a recolher fundos para presos políticos, numa iniciativa indirectamente ligada ao PCP” (Ibidem, p. 120). Em Lisboa, também o CCUL suspenderia as suas actividades, em finais de 1953 e, no Porto, um dos dois únicos cineclubes legalizados, também sofria a sua primeira tentativa de silenciamento por parte das autoridades, tendo visto proibidas três das palestras que habitualmente organizara (Ibidem, pp. 121-122). Em 1954, contrariando o policiamento ideológico da polícia política do Estado Novo, o movimento ganha um novo alento, com o reatamento das actividades no Cine-Clube Imagem (anterior Clube Imagem) e no CCUL, e com o surgimento do Cineclube de Estremoz e do Cine-Clube Universitário do Porto (Ibidem, pp. 123-124). Na noite de 19 de Dezembro de 1954, a pretexto de uma retrospectiva do cinema português, o Cineclube do Porto exibiu o filme Aniki-Bobó e homenageou Manoel de Oliveira. Nesse momento, para a generalidade da sociedade portuguesa, Oliveira era um industrial com 46 anos, antigo praticante de automobilismo e de ginástica, que tinha também desenvolvido, em tempos, uma carreira de realizador de cinema entre 1931 e 1942. No ano seguinte, o Cineclube de Estremoz fazia uma homenagem semelhante e, em 1957, publicaria uma obra com textos de vários autores intitulada Manuel de Oliveira. A reacção do público cinéfilo, e do cineclubista em particular, foi bastante positiva, ao mesmo tempo que a crítica começava a questionar os critérios de atribuição de subsídios públicos do SNI. Mesmo antes do prémio internacional conquistado por O Pintor e a Cidade em Cork (1957) e da excelente recepção em Paris e Veneza no mesmo ano, o reconhecimento público de Manoel de Oliveira tinha começado com as homenagens dos cineclubes. De resto, este reconhecimento da família cineclubista também terá contribuído para que o cineasta portuense retomasse a sua actividade cinematográfica, que se encontrava suspensa desde AnikiBobó (1942). 3. Confronto e silenciamento (1955-1959) No início de Março de 1955, o veterano cineasta Leitão de Barros dedicava uma crónica no Diário de Notícias (1-III-1955, p. 5) à emergente “rapaziada dos cineclubes”, a quem atribuía um papel “activo e pujante” na renovação estética do cinema português. Esta “rapaziada dos cineclubes” pertencia a uma geração cinéfila bastante diferente das anteriores, uma geração com um forte entusiasmo cinéfilo e político, assim como um significativo desejo de renovação e inovação. Em 1956, Nuno Portas assinou um artigo no Diário de Lisboa (2-X-1956, p. 10) onde pretendia esclarecer alguns aspectos em relação ao público do fenómeno cinematográfico. Afirmando que “não há um público, mas públicos”, o crítico apresenta quatro categorias distintas: “a) um subpúblico do pequeno aglomerado da nossa Província que consome o filme porque os bonecos falam português […]; b) um público primário para quem o cinema é o divertimento que faz esquecer o dia-a-dia e ao qual exige que não faça pensar, que lhe dê a passagem para uma ilusória fuga à existência […]; c) um público primário exigente, que influenciado pela Imprensa e por outros factores, pede já ao filme ‘qualidade técnica’, e ‘problemas’, ‘realismo’, mas ao qual falta uma base cultural que lhe permita separar o trigo do joio […]; d) um público exigente que integra o cinema na cultura, responde por esse país fora ao esforço do cineclubismo e tende a contagiar novas camadas”. Após uma década de existência, o movimento cineclubista conheceria um fulgor sem precedentes, sendo criados dezenas de cineclubes em diversos pontos do país e os primeiros cineclubes nas antigas colónias ultramarinas: 1955: Cineclubes de Castelo Branco, de Oliveira de Azeméis, de Aveiro, de Vila Real de Santo António, de Viana do Castelo, de Santarém, de Viseu, Clube de Cinema de Braga, Secção de Cinema do Círculo Cultural Escalabitano, Secção de Cinema do Conselho Cultural da Assembleia de Vale de Cambra, Cultura, Desporto e Turismo. 1956: Setúbal, Faro, Figueira de Foz, Tortosendo, Espinho, Olhanense, Torres Vedras, Centro Cultural de Cinema (Lisboa), Leiria; Beira (Moçambique), Huambo (Angola) e Benguela (Angola). 1957: Beja; Lobito (Angola), Moçâmedes (Angola) e Lourenço Marques (Moçambique). 1958: Guimarães, Santiago do Cacém, Régua, Católico (Lisboa); Luanda (Angola) e Quelimane (Moçambique). 1959: Bombarral, Moura, Universitário de Cinema (Porto, 2.ª tentativa), Funchal; Huila (Angola). No entanto, embora já existissem 15 cineclubes activos em meados de 1955, Paulo Jorge Granja defende que, “ao contrário do que se poderia esperar, nada indica que existisse qualquer tipo de acção concertada entre os cineclubes antes dessa data.” A existência de relações pessoas e informais entre alguns dirigentes de diferentes cineclubes é confirmada pela troca de textos para as palestras ou boletins e pela convergência entre algumas posições estratégicas relativamente ao poder político (Granja, 2006, pp. 149-150). O Primeiro Encontro Nacional de Cineclubes, realizado em Coimbra, parece ter sido um momento de viragem, tendo fomentado e potenciado relações formais e regulares. O desejado encontro concretizou-se em Coimbra, a 15 de Agosto de 1955, reunindo um total de 12 dos 15 cineclubes em actividade que representam uma massa associativa de cerca de 10 mil pessoas, mostrando a todos que o movimento atingiu a fase adulta, “capaz de progredir em proporções nunca sonhadas pelos precursores”. Os resultados práticos desta reunião, para além da troca de ideias, foram a formação de duas comissões: a Comissão Representativa, responsável por “solicitar às entidades oficiais auxílios e facilidades”; e a Comissão Consultiva, responsável pela constituição de novos cineclubes e pela cooperação entre os cineclubes existentes por todo o país (Cunha, 2002, p. 32). Após a realização do Primeiro Encontro de Cineclubes, Manuel de Azevedo (CPC/CCP) envolveu-se numa acesa polémica discussão pública com Fernando Duarte (CCRM), a propósito da publicação de um texto, na revista Visor, que propunha a criação de uma Federação Portuguesa de Cineclubes (FPCC) onde estivesse representado o Ministério da Educação Nacional. Em claro desacordo, Manuel de Azevedo defendia um modelo estatutário que visasse claramente uma autonomia política e ideológica dos cineclubes face ao poder centralizador do Estado Novo. Para Azevedo, uma hipotética FPCC teria de ser, “por definição, constituída pelos cine-clubes”, e incompatível com a tutela de quaisquer Ministério ou instituição pública. Em Fevereiro de 1956, depois desta acesa polémica, Manuel de Azevedo vinha alertar para as possíveis represálias oficiais em relação aos cineclubes que se opunham à proposta do CCRM: os estatutos de 15 cineclubes estavam suspensos no Ministério da Educação Nacional, à espera de uma aprovação oficial (Ibidem, pp. 33-34). Um mês depois, o Secretariado Nacional de Informação, em colaboração com a Comissão Consultiva dos Cineclubes, iniciou o processo de criação da FPCC, prometendo respeitar a autonomia, livre-iniciativa e liberdade cultural da Federação e dos seus membros. Manuel de Azevedo foi a primeira voz crítica pública: será que a criação da FPCC “vem inteiramente ao encontro das necessidades dos cine-clubes?” Contrariando algumas expectativas optimistas, Azevedo começava por alertar para o processo de formação dos estatutos da FPCC, entregue a uma Comissão própria “constituída na sua maioria por indivíduos alheios ao cine-clubismo” (Ibidem, pp. 34-35). No fundo, neste debate argumentava-se contra e a favor da regulamentação da actividade cineclubista em Portugal: Fernando Duarte (CCRM) apelava à necessidade de “disciplinar” o movimento, nomeadamente através da FPCC e da “ajuda” da autoridade pública; Manuel de Azevedo (CPC/CCP) defendia a total autonomia dos cineclubes, recusando qualquer espécie de regulamentação pública. Invariavelmente, a posição de Duarte e do CCRM seria irreparavelmente desacreditada perante o movimento dos cineclubes, prevalecendo a unidade da maior parte dos cineclubes em volta da posição de Azevedo e do CPC/CCP, contra a proposta de uma Federação que viesse limitar a autonomia dos cineclubes (Granja, 2006, pp. 167-168). As exigências dos cineclubes sempre foram recebidas com desconfiança pelo Estado, que tratou de tomar as devidas precauções. O regime começou por criar a já anunciada FPCC, dependente do Ministério da Educação Nacional (decreto-lei 40.572, de 16 de Abril de 1956), e suspende os estatutos de alguns cineclubes que se mostraram mais críticos à Federação e à intervenção do regime (Azevedo, 1956, pp. 121-127). Os primeiros artigos do decreto-lei 40.572 não deixam quaisquer dúvidas dos reais objectivos da FPCC: “Art. 3.º São atribuições da Federação: 1.º Informar e submeter à aprovação do Secretariado Nacional da Informação, Cultura Popular e Turismo os estatutos dos novos cineclubes; 2.º Facultar aos clubes federados informações e apresentar-lhes sugestões tendentes a facilitar a organização das suas sessões; Art. 5.º À comissão organizadora compete: (…) 3. Preparar um projecto de estatutos a submeter à aprovação da Presidência do Conselho. (…) Art. 8.º A criação de novos cineclubes fica dependente da aprovação dos respectivos estatutos pelo Secretariado Nacional da Informação, precedendo parecer da Federação. Art. 9.º Pertencerá ao Secretariado Nacional da Informação a inspecção e fiscalização da actividade dos cineclubes.” De acordo com o texto legislativo, o Estado Novo criava esta estrutura como reconhecimento do crescimento da actividade cineclubista e como movimento com actividades relevantes na educação e cultura. Mas, na prática, esta FPCC era uma clara tentativa de vigiar e condicionar as actividades políticas dos cineclubes e era também uma resposta preventiva a uma ideia que tinha surgido no ano anterior no Primeiro Encontro de Cineclubes. Vários cineclubes indignaram-se e procuraram lutar contra esta legislação, mas a medida teve efeitos rápidos, dando início a um período de perseguição política que levou a uma efectiva vigilância da PIDE sobre as actividades cineclubistas (selecção de filmes, organização de palestras, entre outros), ao encerramento e extinção de diversos cineclubes nos anos seguintes, à proibição do quinto Encontro Nacional de Cineclubes previsto para Torres Vedras (1959), e que pretendia transformar os cineclubes em “simples episódios do circuito comercial de arte e ensaio e sobretudo punha debaixo de controlo o que antes era um movimento disperso e subversivo; depois, já nos anos sessenta, virá o saque das instalações e dos documentos dos cineclubes.” (Monteiro, 2000, p. 308). De acordo com os processos depositados no Arquivo Nacional Torre do Tombo, neste período foram suspensos os seguintes cineclubes: Régua, Santiago do Cacém, Setúbal, Vila Real de Santo António, Castelo Branco, Braga, Funchal, Odemira, Oliveira de Azeméis, Portalegre e Portimão (ANTTSNI-IGAC, cx. 58-59). O recrudescimento da vigilância da Censura e da PIDE – influenciada sobretudo pela candidatura presidencial de Humberto Delgado e outros acontecimentos políticos – levou ainda à detenção temporária de Manoel de Oliveira, José Fonseca e Costa, Vasco Granja, Henrique Espírito Santo e José Manuel Castello Lopes (Pina, 1978, p. 44), assim como as proibições da exibição livre de um filme de formato reduzido (produzido pelo Cineclube do Porto em 1957). 4. Resistência (1960-65) Com um esforço concertado dos seus diversos instrumentos de controlo social e cultural, o Estado Novo lograra, em cerca de duas décadas, esgotar os dois principais focos de oposição à sua política cultural. Apesar das tentativas de “assassinato” – o termo é utilizado por Paulo Filipe Monteiro (2000, p. 308) – do movimento cineclubista pelo Estado Novo, aos anos 60 foram um período de uma resistência longa e discreta, mas presente, de que o surgimento de novos cineclubes é o melhor exemplo: Barreiro, Torres Novas e Portimão em 1960; Uíge (Angola) e Nampula (Moçambique) em 1962. Em 1961, um ano de estagnação do movimento, surgiram alguns apelos à intervenção da Fundação Calouste Gulbenkian, que nesse mesmo ano havia concedido um apoio financeiro ao Cineclube Universitário de Lisboa. Roberto Nobre, numa extensa carta aberta dirigida ao presidente da Gulbenkian, apelava à intervenção da instituição sobretudo na formação cinematográfica de novos valores e do próprio público, sugerindo a criação de uma escola de cinema, uma cinemateca e uma espécie de “supercineclube” (Diário Popular, 27-VII-1961, pp. 1/5). Fazendo eco a este apelo, Henrique Alves Costa aplaude particularmente a valorização do movimento cineclubista e apela ao apoio da Gulbenkian a este movimento progressivamente fragilizado e torna pública uma diligência anterior promovida por esta instituição à Fundação Gulbenkian: em 1959, o Cineclube do Porto havia dirigido à Gulbenkian uma “documentada exposição” que alertava para a necessidade de uma intervenção directa da Fundação no cinema português (Ibidem, 10-VIII-1961, pp. 1/5). Apesar de percursos distintos, os movimentos cineclubista e neo-realista encontrar-se-iam numa derradeira tentativa de renovar o cinema português. O ambicioso projecto e a concretização da obra Dom Roberto (1962), de Ernesto de Sousa, foi o ponto de encontro e, simultaneamente, a falência dos dois movimentos. Em 1959, sem qualquer espécie de apoio estatal, a revista Imagem promoveu a constituição de uma cooperativa para financiar o projecto do seu director Ernesto de Sousa, apoiado num argumento do escritor neorealista Leão Penedo. Apoiado apenas pelo entusiasmo cineclubista, Dom Roberto foi “o único fruto bacteriologicamente puro da geração cineclubista, ou seja, o único que ficou à margem de qualquer contacto com as esferas oficiais, quer directa quer indirectamente” (Costa, 1991, p. 117). Parece óbvio que o fracasso comercial do filme Dom Roberto está relacionado com o esmorecer do movimento nessa viragem de década. Se o projecto nasceu num momento de euforia dos movimentos cineclubista e neo-realista, nesses três anos que se passaram até à estreia o cenário mudou radicalmente: a revista Imagem desapareceria em 1961, o surgimento de novos cineclubes abrandou e, consequentemente, o número de associados diminuiu. A falta de público cineclubista também ficaria associada ao fracasso comercial do filme Belarmino (1964), de Fernando Lopes. Com uma história de produção totalmente distintas, mas com um jovem realizador com passado cineclubista (foi associado do Cineclube Imagem), o produtor António da Cunha Telles optou por um lançamento do filme junto do circuito cineclubista (Jornal de Letras e Artes, IV-1970, pp. 28-31). Tal como sucedeu com Dom Roberto, também este filme parece ter padecido da falta de entusiasmo que o movimento cineclubista vivia nesses anos de ressaca da perseguição política. Anos mais tarde, Luís de Pina atribuiria esta fragmentação do público cinéfilo, visível desde a década de 1950, ao novo ambiente cultural vivido sobretudo desde as experiências cineclubistas. O desenvolvimento destas experiências desde a década de 1950 marcou o ponto de cisão do público cinéfilo (Pina, 1977, p. 44). A partir da experiência cineclubista, o público de cinema português diminuiu em número mas tornou-se progressivamente mais exigente e mais selectivo com a oferta cinematográfica Para Adérito Sedas Nunes (2000, pp. 33-34), a “modernização” da sociedade portuguesa a partir dos anos 1960 deveu-se a dois factores essenciais: “o grau de urbanização das populações” e “a densidade do escol cultural”. De facto, o espaço social da nova geração cinéfila reflectia as transformações da sociedade portuguesa: concentração urbana, juvenilização da intervenção política e cultural e expansão da formação superior. O imaginário social dos novos cineastas, e consequentemente dos seus filmes, deixa de ser o “pátio das cantigas” e passam a ser as novas Avenidas de Lisboa, espaço onde habitam e convivem nas diversas tertúlias. O público de cinema nas décadas de 1960-70 passa a ser um público mais culto, com origem nos “cineclubes, grupos universitários, burguesia culta” (Pina, 1977, p. 72). Considerações finais No confronto ideológico vivido no final da década de 50, Paulo Jorge Granja (2006, p. 196) considera que o “confronto até poderá ter sido desejado pelos cine-clubes mais à esquerda como forma de radicalizar posições, confiantes de que a sua concepção de cultura pareceria ser sempre muito mais moderna e, por isso, mais apelativa para as classes médias instruídas que compunham o grosso dos seus sócios.” Do lado do poder, Fausto Cruchinho (2001, p. 341) identifica duas figuras do aparelho estatal como responsáveis pelo silenciamento do movimento cineclubista: César Moreira Baptista, depois de ter desempenhado diversos cargos de responsabilidade intermédia em vários órgãos corporativos, foi responsável máximo pelo SNI/SEIT (1958-73), tendo promovido uma campanha pelo silenciamento do movimento cineclubista e de luta contra outras formas de oposição cinéfila; Bernardo Júdice da Costa é tido como a “eminência parda de Moreira Baptista na luta contra o movimento cineclubista” e como uma figura afecta aos interesses corporativos da actividade cinematográfica, nomeadamente dos distribuidores. Do confronto resultaria um claro prejuízo para o movimento cineclubista. Durante a década de 60 e inícios da seguinte, o movimento cineclubista sobreviveu mas perdeu muita da influência social e cultural que conquistara nos anos 50. Ainda que de forma simbólica, algumas figuras de destaque do movimentos cineclubista – como Henriques Alves Costa, Manuel de Azevedo ou Henrique Espírito Santo – teriam um papel importante no processo de afirmação e reconhecimento do Novo Cinema português. A importância da Semana de Estudos sobre o Novo Cinema Português, organizado pelo Cineclube do Porto em Dezembro de 1967, ou a intervenção de algumas figuras nas discussão pública em torno do que seria a Lei 7/71, tida como uma lei progressista e defensora dos interesses do cinema moderno português, são dois bons exemplos da presença do movimento cineclubista na história do cinema português. Referências bibliográficas ANTT-SNI-IGAC – Arquivo Nacional Torre do Tombo, Fundo Secretariado Nacional de Informação, Subfundo Inspecção-Geral de Actividades Culturais. Diário de Lisboa, Lisboa. Diário de Notícias, Lisboa. Diário Popular, Lisboa. Jornal de Letras e Artes, Lisboa. Azevedo, M. (1956). À Margem do Cinema Nacional. Porto: Cineclube do Porto. Costa, J. B. (1991). Histórias do Cinema. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. Cruchinho, F. (2001). «Os passados e os futuros do Cinema Novo. O Cinema na polémica do tempo». In Estudos do Século XX. Coimbra. 1: 215-240. Cunha, P. (2002). «O Cinema segundo Manuel de Azevedo». Coimbra: monografia escrita para a disciplina Teorias do Cinema. Cunha, P. (2005). «Os filhos bastardos». Afirmação e reconhecimento do Novo cinema português 1967-74. Coimbra: dissertação de mestrado em História apresentada à FLUC. Granja, P. J. (2006). As Origens do Movimento dos Cine-Clubes em Portugal 1924-1955. Coimbra: dissertação de mestrado em História apresentada à FLUC. Monteiro, P. F. (2000). «Uma margem no centro: a arte e o poder do ‘novo cinema’». In O Cinema sob o olhar de Salazar… Lisboa: Círculo de Leitores: 306-338. Nunes, A. S. (2000). «Portugal. Sociedade dualista em evolução». In Antologia sociológica. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais. Pelayo, J. (1998). Bibliografia Portuguesa de Cinema, uma visão cronológica e analítica. Lisboa: Cinemateca Portuguesa. Pina, L. (1977). A Aventura do Cinema Português. Lisboa: Editorial Vega. Pina, L. (1978). Panorama do Cinema Português. Lisboa: Terra Livre.