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A IGUALDADE DESIGUAL
THE UNEQUAL EQUALITY
MARIA BERENICE DIAS
Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Pós-graduada e mestre
em Processo Civil pela PUC–RS, Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de
Direito de Família – IBDFAM
SUMÁRIO: 1. Introdução. – 2. Os direitos chamados humanos – 3. O direito
desdobrado em gerações – 4. O direito humano à sexualidade – 5. O direito a uma
família – 6. O direito à homoafetividade – 7. As uniões homoafetivas – 8. A igualdade
e a justiça.
RESUMO: O princípio da igualdade é um dos sustentáculos do Estado Democrático
de Direito. Correlacionadas entre si, a liberdade e a igualdade foram os primeiros
direitos a serem reconhecidos como direitos humanos fundamentais e passaram a
servir de parâmetros para direitos outros, que se desdobraram em gerações, a fim
de garantir respeito à dignidade da pessoa humana. O sistema jurídico assegura
tratamento isonômico e proteção igualitária a todos os cidadãos no âmbito social.
Na presença de vazios legais, a plenitude do reconhecimento de direitos é
implementada pela igualdade. Omitindo-se o legislador em regular situações dignas
de tutela, as lacunas precisam ser colmatadas pelo Judiciário, que não pode negar
proteção jurídica nem deixar de assegurar direitos sob a alegação de ausência de
lei. Precisa assumir o juiz sua função criadora do direito. A identificação da
semelhança significativa que permite a aplicação da analogia também se funda na
igualdade. Outro não pode ser o princípio a ser invocado para se reconhecerem
direitos aos segmentos alvos da exclusão social. Preconceitos e posturas discriminatórias, que tornam silenciosos os legisladores, não podem levar também o juiz
a calar-se. Imperioso que ele reconheça direitos às situações merecedoras de
proteção, pois não pode se afastar do dever de fazer justiça. As uniões entre pessoas
do mesmo sexo, ainda que não tuteladas expressamente nem na Constituição Federal
nem na legislação infraconstitucional, existem e fazem jus à tutela jurídica. A ausência
de regulamentação impõe que, invocando-se o princípio da igualdade, as uniões
homoafetivas sejam identificadas como entidades familiares no âmbito do Direito de
Família. A natureza afetiva do vínculo em nada o diferencia das uniões heterossexuais, merecendo ser reconhecido como união estável.
PALAVRAS-CHAVE: Igualdade, orientação sexual, união estável, isonomia.
ABSTRACT: The principle of equality is one of the pillars of a Democratic State of
Law. Liberty and equality were the first rights to be recognized as fundamental human
rights and began to serve as parameters for other rights, which developed over
generations to ensure respect for human dignity. The legal system ensures equal
treatment and protection for all citizens on a social level. Where there are legal gaps,
full recognition of rights is implemented based on equality. If the legislator is remiss
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in regulating situations meriting legal protection, the gaps must be bridged by the
Judiciary, which cannot deny legal protection or fail to uphold rights, alleging the
absence of law. The Judiciary needs to accept its role as a creator of rights. Meaningful
similarity that allows for the use of analogy is also based on equality. There is no
other applicable principle that allows us to recognize the rights of segments that have
been the victims of social exclusion. Prejudice and discriminatory practices, which
silence legislators, cannot also lead the judges to keep quiet. It is imperative that
the Judiciary recognizes rights in situations meriting protection, since it cannot abdicate
its duty to serve justice. Unions between persons of the same sex, even if not expressly
protected in the Federal Constitution or legislation of a lesser order, exist and are
entitled to legal protection. According to the principle of equality, the absence of
regulations requires the identification of homosexual unions as family entities under
Family Law. The intimate nature of the bond in no way distinguishes it from
heterosexual unions and it deserves to be recognized as a “stable union”.
KEYWORDS: Equality, sexual orientation, stable union, equal protection under the law.
Recebido para publicação em agosto de 2003.
O jurista que não identifica a justiça com o que é dado avaliará
o direito desigual como direito injusto. Se procurar atingir com
seu trabalho a justiça, deverá procurar dar o que é de direito
aos que não carecem de ajuda e, aos que dela carecem, o que
lhes falta.
Friedrich Muller1
1. Introdução
A igualdade é almejada por todos e em
todos os tempos. Está proclamada nas
Declarações de Direitos Humanos no mundo
ocidental e, no Brasil, é consagrada no
limiar do ordenamento jurídico, pela Constituição Federal, que assegura, já em seu
preâmbulo, “o exercício dos direitos sociais
e individuais, a liberdade, a segurança, o
bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade
e a justiça como valores supremos de uma
sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos (...)”.
Erigido o respeito à dignidade da pessoa
humana como cânone fundamental de um
Estado Democrático de Direito,2 é a igualdade o princípio mais reiteradamente invocado. De modo expresso,3 é outorgada
específica proteção a todos, vedando discriminação e preconceitos por motivo de
origem, raça, sexo ou idade.
Também ao elencar os direitos e garantias fundamentais, é a igualdade a primeira
referência da Carta Magna. O art. 5.º
começa dizendo: “Todos são iguais perante
a lei, sem distinção de qualquer natureza
(...)”. Esse verdadeiro dogma é repetido já
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(Artigos)
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A IGUALDADE DESIGUAL
no seu primeiro inciso,4 ao proibir qualquer
desigualdade em razão do sexo.
Como bem explicita Konrad Hesse:
“Igualdade jurídica formal é igualdade diante da lei (art. 3.º, alínea 1,
Lei Fundamental). Ela pede a realização, sem exceção, do direito existente,
sem consideração da pessoa: cada um
é, em forma igual, obrigado e autorizado pelas normalizações do direito,
e, ao contrário, é proibido a todas as
autoridades estatais não aplicar direito
existente em favor ou à custa de
algumas pessoas. Nesse ponto, o
mandamento de igualdade jurídica
deixa-se fixar, sem dificuldades, como
postulado fundamental do estado de
direito”.5
No entanto, de um fato não se pode
escapar: ainda que buscada de maneira
incansável, a igualdade não existe. De nada
adianta a Lei Maior assegurar iguais direitos a todos perante a lei, dizer que os
homens e as mulheres são iguais, que não
se admitem preconceitos ou qualquer forma de discriminação. Enquanto houver
tratamento desigualitário entre homens e
mulheres e a homossexualidade for vista
como crime, castigo ou pecado, não se
estará vivendo em um Estado Democrático
de Direito que respeita a dignidade humana, tendo a igualdade e a liberdade como
princípios fundamentais. Mesmo tendo
havido uma acentuada evolução da sociedade, a igualdade formal ainda não se
tornou material, real.
As normas constitucionais que consagram o direito à igualdade proíbem discriminar a conduta afetiva no que respeita à
inclinação sexual. “Com efeito, a discriminação de um ser humano em virtude de sua
orientação sexual constitui, precisamente,
(Artigos)
uma hipótese (constitucionalmente vedada)
de discriminação sexual.”6 Rejeitar a existência de uniões homossexuais é afastar o
princípio insculpido no inc. IV do art. 3.º
da Constituição Federal, segundo o qual é
dever do Estado promover o bem de todos,
vedada qualquer discriminação, não importa de que ordem ou tipo seja.
“A relação entre a proteção da
dignidade da pessoa humana e a orientação homossexual é direta, pois o
respeito aos traços constitutivos de
cada um, sem depender da orientação
sexual, é previsto no art. 1.º, inciso 3.º,
da Constituição, e o Estado Democrático de Direito promete aos indivíduos, muito mais que a abstenção de
invasões ilegítimas de suas esferas
pessoais, a promoção positiva de suas
liberdades.”7
2. Os direitos chamados humanos
A sociedade politicamente organizada
assegura à pessoa humana direitos subjetivos gerais. A busca de realização integral
de todo o direito subjetivo sofre os reflexos
da convivência social. Para que melhor se
assegurem direitos a certos sujeitos ativos
contra um, alguns ou todos os sujeitos
passivos, em função de um objeto, valor ou
bem, existem critérios didáticos que buscam sistematizar a evolução contínua dos
direitos do homem e do cidadão, aos quais
hoje se prefere chamar direitos humanos.8
“Os direitos humanos revestem as
relações jurídicas por elas enlaçadas
de condições teleológicas e axiológicas específicas, para realizar nos sujeitos dessas relações a humanidade
comum de todos os sujeitos: a comunidade humana.”9
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Cabe lembrar que a divisão dos direitos
em gerações não quer dizer que se trata de
uma sucessão de direitos em conflito, nem
revela incompatibilidade de sujeitos e objetos. O incessante processo de socialização
por que passou o Estado contemporâneo
ensejou um crescimento contínuo e a ampliação subjetiva e objetiva dos direitos. A
igualdade juntamente com a liberdade são
os princípios fundantes dos direitos humanos.
3. O direito desdobrado em gerações
A doutrina, na tentativa de classificar os
direitos humanos, desdobra-os em gerações. Ainda que se deva pôr em xeque a
existência de gerações de direitos, a separar
direitos que tiveram uma evolução contínua, não há dúvida de que a história dos
direitos humanos começou com a afirmação da liberdade como valor fundamental
da sociedade política, obra do liberalismo,
na passagem do século XVIII para o XIX.
Os direitos consagrados pela Declaração francesa de 1789 passaram a ser considerados a primeira geração de direitos.
Voltada para as relações sociais em geral,
busca garantir o próprio indivíduo, libertando todos e cada um do absolutismo de
um ou de alguns. Originariamente, foram
os súditos que buscaram se libertar do
absolutismo do monarca e seus agentes.
São direitos individuais quanto à titularidade, tendo por objeto a liberdade. A tentativa
foi de, estritamente em função do interesse
comum, admitir restrições aos direitos
subjetivos tão-só por meio da lei, por ser
expressão da vontade geral. Visando à
preservação da liberdade individual, caracterizam-se os direitos de primeira geração
como imposição de limites ao Estado,
gerando-lhe obrigações de não-fazer.
Já os direitos de segunda geração têm
por objeto assegurar o direito à igualdade,
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no sentido de equalizar a sociedade. Surgiram a partir da Constituição de Weimar,
de 1919. São chamados direitos sociais,
positivados como direitos econômicos,
sociais e culturais, visando a igualar os
desiguais na medida em que se desigualam.
Buscam o adimplemento de obrigações de
fazer pelo Estado, atitudes positivas para
superar a mera igualdade formal de todos
perante a lei, herança da primeira geração.
É a busca da igualdade material, igualdade
de oportunidades, ações e resultados, entre
partes ou categorias sociais desiguais, para
garantir a participação efetiva da cidadania,
por meio de políticas públicas.
Na passagem do Estado liberal para o
Estado social de direito, cuja plenitude
jurídica é o Estado democrático de direito,
surgem os direitos de terceira geração.
Sobrevindos à Segunda Guerra Mundial,
quando o gênero humano se mostrou técnica e moralmente capaz de se autodestruir,
o que suscitou a solidariedade de todos os
indivíduos e categorias da sociedade humana diante de uma possível destruição das
condições necessárias à vida do próprio ser
humano. Os direitos de solidariedade querem garantir não só o indivíduo contra o
indivíduo, mas a humanidade contra a
própria humanidade, genericamente considerada. Têm por finalidade assegurar a
dignidade humana pelo implemento de
todas as condições gerais e básicas que lhe
são necessárias, postas como direitos difusos de toda a humanidade. Na busca de um
Estado de direito pleno, produzido pela
conversão de todos os direitos fundamentais em direitos humanos difusos e integrais, cuja titularidade sujeite todos os
indivíduos da espécie humana e cujo objeto
compreenda todos os valores da dignidade
humana.
Nessa terceira leva, aparecem direitos
difusos quanto à titularidade subjetiva e,
quanto ao objeto, direitos de solidariedade.
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(Artigos)
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A IGUALDADE DESIGUAL
Com eles, a evolução dos direitos humanos
atinge o seu ápice, a sua plenitude subjetiva
e objetiva: são direitos humanos plenos, de
todos os sujeitos contra todos os sujeitos,
para proteger todos os objetos que condicionam a vida humana, fixados em valores
ou bens humanos, patrimônio da humanidade, segundo padrões de avaliação que lhe
garantam a existência com a dignidade que
lhe é própria. São os direitos humanos por
excelência, integrais, a promover a integração de todos os sujeitos e objetos da
humanidade. Traduzem o humanismo íntegro: a humanidade, em toda a sua plenitude,
subjetiva e objetiva, individual e social,
segundo Sérgio Resende de Barros.10
4. O direito humano à sexualidade
“Os temas da sexualidade são
envoltos em uma aura de silêncio,
despertando sempre enorme curiosidade e profundas inquietações, com
lenta maturação por gravitarem na
esfera comportamental, existindo tendência a conduzir e controlar seu
exercício, acabando por emitir-se um
juízo moral voltado exclusivamente à
conduta sexual.”11
A sexualidade integra a própria condição humana. Ninguém pode realizar-se
como ser humano, se não tiver assegurado
o respeito ao exercício da sexualidade,
conceito que compreende a liberdade sexual, albergando a liberdade da livre orientação sexual.
Ao serem visualizados os direitos de
forma desdobrada em gerações, evidenciase que a sexualidade é um direito do
primeiro grupo, do mesmo modo que a
liberdade e a igualdade, pois compreende
o direito à liberdade sexual, aliado ao
direito de tratamento igualitário, independente da tendência sexual. Trata-se, assim,
(Artigos)
de uma liberdade individual, um direito do
indivíduo, sendo, como todos os direitos de
primeira geração, inalienável e imprescritível. É um direito natural, que acompanha
o ser humano desde o seu nascimento, pois
decorre de sua própria natureza.
Também não se pode deixar de considerar a livre orientação sexual como um
direito de segunda geração, dando origem
a uma categoria social que pode ser considerada hipossuficiente, a merecer proteção
diferenciada. É pressuposto e causa de um
especial tratamento dispensado pelo Direito. A hipossuficiência não é de ser identificada somente pelo viés econômico. Assim,
devem ser reconhecidos como hipossuficientes todos os segmentos alvo do preconceito ou discriminação social. A hipossuficiência social leva, por reflexo, à deficiência
de normação jurídica, deixando à margem
ou à míngua do Direito certos segmentos
sociais. Não se pode deixar de incluir nessa
categoria os homossexuais, por serem socialmente e, por reflexo preconceituoso,
juridicamente hipossuficientes.
Igualmente o direito à sexualidade avança para ser inserido como um direito de
terceira geração. Esta compreende os direitos decorrentes da natureza humana, mas
não tomados individualmente, porém genericamente, solidariamente, a fim de realizar
toda a humanidade, de maneira integral,
abrangendo todos os aspectos necessários
à preservação da dignidade humana. Impositivo enxergar o direito de todo ser humano de exigir o respeito ao livre exercício
da sexualidade. É um direito de todos e de
cada um, que deve ser garantido a cada
indivíduo por todos os indivíduos. Portanto, é um direito de solidariedade, cuja
exclusão não permite que a condição humana se realize, se integralize.
A sexualidade é um elemento integrante
da própria natureza humana, seja individu-
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MARIA BERENICE DIAS
almente, seja genericamente considerada.
Sem liberdade sexual, sem o direito ao livre
exercício da sexualidade, o indivíduo humano – e, mais amplamente, o próprio
gênero humano – não se realiza, do mesmo
modo que ocorre quando lhe falta qualquer
outra das chamadas liberdades ou direitos
fundamentais.
Aída Kemelmajer de Carlucci comunga
do mesmo entendimento.
“El derecho a la libre determinación de cada uno es considerado hoy
un derecho humano. La circunstancia
de que no este mencionado en el
catálogo que contienen los tratados
nacionales e internacionales sobre
derechos humanos no significa que no
exista. Así como existe un derecho a
la libre determinación de los pueblos,
existe un derecho a la libre determinación del individuo. El derecho a la
orientación sexual como derecho a la
libre determinación de cada uno aparece, cronológicamente, dentro de estos
derechos de la tercera generación,
cuando después de la segunda guerra
mundial se toma conciencia de las
discriminaciones contra esto grupo de
personas; sin embargo, desde el punto
de vista de su esencia, es un derecho
que puede ser ubicado entre los derechos de la primera generación porque:
– Está íntimamente conectado a los
derechos a la privacidad, a la libertad
individual, al derecho de asociación,
etc.
– No tiene costo económico (inexpensive): cuesta muy poco permitir
que las personas capaces decidan ellos
mismos con quien compartir sus sentimientos y deseos: permitirles el
derecho a expresarse y a organizarse,
etc.
– Es esencialmente justiciable;
permitir que alguien no sea discriminado por su orientación sexual no es
una acción extravagante, exótica.
Por esto se ha dicho que, en realidad, el derecho a la orientación
sexual no es algo revolucionario, sino
estrictamente conservador.”12
5. O direito a uma família
No âmbito das relações familiares, evidencia-se a tendência de engessar os vínculos afetivos segundo os valores culturais
dominantes em cada época. Por influência
da religião, o Estado limitou o exercício da
sexualidade ao casamento, como uma instituição inicialmente indissolúvel, que regula não só as seqüelas de ordem patrimonial, mas a própria postura dos cônjuges,
impondo-lhes deveres e assegurando direitos de natureza pessoal.
O vínculo que nasce por vontade dos
nubentes é mantido após a solenização do
matrimônio independente e até contra a
vontade dos cônjuges. Mesmo com o advento da Lei do Divórcio, a separação e o
divórcio só são deferidos após o decurso
de determinado prazo ou mediante a identificação de um culpado. Quem não tem
motivo para atribuir ao outro a culpa pelo
fim do casamento não pode tomar a iniciativa do processo de separação, o que
evidencia a intenção do legislador de punir
quem simplesmente não mais quer continuar no casamento.
A família consagrada pela lei tinha um
modelo conservador, uma entidade matrimonializada, patriarcal, patrimonializada,
indissolúvel, hierarquizada e heterossexual. Pelas regras do Código Civil de 1916,
os relacionamentos que fugissem ao molde
legal, além de não adquirirem visibilidade,
estavam sujeitos a severas sanções. Chama-
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dos de marginais, os vínculos afetivos
extramatrimoniais nunca foram reconhecidos como família. Primeiro se procurou
identificá-los com uma relação de natureza
trabalhista, e só se via labor onde existia
amor. Depois, a jurisprudência passou a
permitir a partição do patrimônio, considerando uma sociedade de fato o que nada
mais era do que uma sociedade de afeto.
Mesmo quando a própria Constituição
Federal albergou no conceito de entidade
familiar o que chamou de “união estável”,
resistiram os juízes em inserir o instituto
no âmbito do Direito de Família, mantendo-a no campo do Direito das Obrigações,
apesar dos protestos da doutrina.
“Os conflitos decorrentes das entidades familiares explícitas ou implícitas devem ser resolvidos à luz do
Direito de Família e não do Direito
das Obrigações, tanto os direitos pessoais quanto os direitos patrimoniais
e os direitos tutelares. Não há necessidade de degradar a natureza pessoal
de família convertendo-a em fictícia.”13
A dificuldade de as relações extramatrimoniais serem identificadas como verdadeiras famílias revelava a verdadeira sacralização do conceito de família. Mesmo
inexistindo qualquer diferença estrutural
com os relacionamentos oficializados, a
negativa sistemática de estender a estes
novos arranjos os regramentos do direito
familial, nem sequer por analogia, mostrava a tentativa de preservação da instituição
da família dentro dos padrões convencionais.
O Direito de Família, ao receber o
influxo do Direito Constitucional, foi alvo
de uma profunda transformação. O princípio da igualdade ocasionou uma verdadeira
(Artigos)
revolução ao banir as discriminações que
existiam no campo das relações familiares.
“Num único dispositivo o constituinte espancou séculos de hipocrisia e preconceito.”14 Foi derrogada toda a legislação que
hierarquizava homens e mulheres, bem
como a que estabelecia diferenciações entre
os filhos pelo vínculo existente entre os
pais, além de alargar o conceito de família
para além do casamento, deixando este de
ser o seu único traço diferencial.
Outorgando a Constituição Federal proteção à família, independentemente da
celebração do casamento, vincou um novo
conceito, o de entidade familiar, que albergou vínculos afetivos outros. É meramente
exemplificativo o enunciado constitucional
ao fazer referência expressa à união estável
entre um homem e uma mulher e às
relações de um dos ascendentes com sua
prole. “O caput do art. 226 é, conseqüentemente, cláusula geral de inclusão, não
sendo admissível excluir qualquer entidade
que preencha os requisitos de afetividade,
estabilidade e ostensibilidade”, conforme
afirma Paulo Luiz Lobo.15
Pluralizou-se o conceito de família, que
não mais se identifica pela celebração do
matrimônio. Não há como afirmar que o art.
226, § 3.º, da Constituição Federal, ao
mencionar a união estável formada entre um
homem e uma mulher, reconheceu somente
esta convivência como digna da proteção do
Estado. O que existe é uma simples recomendação em transformá-las em casamento. Em nenhum momento foi dito não
existirem entidades familiares formadas por
pessoas do mesmo sexo. Exigir a diferenciação de sexos do casal para merecer a
proteção do Estado é fazer distinção odiosa,16 postura nitidamente discriminatória
que contraria o princípio da igualdade
ignorando a existência de vedação de diferenciar pessoas em razão de seu sexo.
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Dito impedimento discriminatório não
tem exclusivamente assento constitucional.
Está posto na Convenção Internacional dos
Direitos Civis e Políticos, na Convenção
Americana de Direitos Humanos e no
Pacto de San Jose, dos quais o Brasil é
signatário. Como preceitua o § 2.º do art.
5.º da Constituição Federal,17 são recepcionados por nosso ordenamento jurídico os
tratados e convenções internacionais objeto
de referendo. Ante tais normatizações, a
ONU tem entendido como ilegítima qualquer interferência na vida privada de homossexuais adultos, seja com base no
princípio de respeito à dignidade humana,
seja pelo princípio da igualdade.18
A orientação que alguém imprime na
esfera da sua vida privada não admite
restrições a quaisquer direitos. “Pior do que
o não-reconhecimento é a discriminação”,
como lembra Sérgio Resende de Barros,
referindo que do direito ao afeto humano
decorre o direito de repelir o desafeto, tal
como do direito ao exercício sexual deflui
o direito ao celibato.19
6. O direito à homoafetividade
A regra maior da Constituição brasileira
é o respeito à dignidade humana, servindo
de norte ao sistema jurídico nacional. “A
dignidade humana é a versão axiológica da
natureza humana.”20 Esse valor implica
dotar os princípios da igualdade e da
isonomia de potencialidade transformadora
na configuração de todas as relações jurídicas.
A sociedade que se proclama defensora
da igualdade é a mesma que ainda mantém
uma posição discriminatória nas questões
da sexualidade. Nítida é a rejeição social
à livre orientação sexual. A homossexualidade existe e sempre existiu, mas é
marcada por um estigma social, sendo
MARIA BERENICE DIAS
renegada à marginalidade por se afastar dos
padrões de comportamento convencional.
“Por ser fato diferente dos estereótipos, o
que não se encaixa nos padrões, é tido
como imoral ou amoral, sem buscar-se a
identificação de suas origens orgânicas,
sociais ou comportamentais.”21
Em virtude do próprio preconceito, tenta-se excluir a homossexualidade do mundo
do Direito. Mas à intolerância social devese contrapor a higidez dos conceitos jurídicos. Imperativa sua inclusão no rol dos
direitos humanos fundamentais, como expressão de um direito subjetivo que se insere
em todas as suas categorias, pois ao mesmo
tempo é direito individual, social e difuso.
O direito à homoafetividade, além de
estar amparado pelo princípio fundamental
da isonomia, cujo corolário é a proibição
de discriminações injustas, também se alberga sob o teto da liberdade de expressão.
Como garantia do exercício da liberdade
individual, cabe ser incluída entre os direitos de personalidade, precipuamente no
que diz com a identidade pessoal e a
integridade física e psíquica. Acresce ainda
lembrar que a segurança da inviolabilidade
da intimidade e da vida privada é “a base
jurídica para a construção do direito à
orientação sexual, como direito personalíssimo, atributo inerente e inegável da pessoa
humana.”22
Qualquer discriminação baseada na
orientação sexual do indivíduo configura
claro desrespeito à dignidade humana, a
infringir o princípio maior imposto pela
Constituição Federal. Infundados preconceitos não podem legitimar restrições a
direitos, o que fortalece estigmas sociais
que acabam por causar sentimento de
rejeição e sofrimentos.
“Ventilar-se a possibilidade de
desrespeito ou prejuízo a um ser
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(Artigos)
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A IGUALDADE DESIGUAL
humano, em função da orientação
sexual, significa dispensar tratamento
indigno a um ser humano. Não se
pode, simplesmente, ignorar a condição pessoal do indivíduo (na qual,
sem sombra de dúvida, inclui-se a
orientação sexual), como se tal aspecto não tivesse relação com a dignidade
humana.”23
Firmando a Constituição a existência de
um Estado Democrático de Direito, o núcleo
do atual sistema jurídico é o respeito à
dignidade humana, atentando nos princípios da liberdade e da igualdade. A proibição
da discriminação sexual, eleita como cânone fundamental, alcança a vedação à discriminação da homossexualidade, pois diz
com a conduta afetiva da pessoa e o direito
de orientação sexual.
A identificação da orientação sexual
está condicionada à identificação do sexo
da pessoa escolhida em relação a quem
escolhe, e tal escolha não pode ser alvo de
tratamento diferenciado. Se todos são iguais
perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, aí está incluída, por óbvio, a
orientação sexual que se tenha.
As normas legais precisam adequar-se
aos princípios e garantias que identificam
o modelo consagrado pela Carta Política
que retrata a vontade geral do povo. O
núcleo do sistema jurídico, que sustenta a
própria razão de ser do Estado, deve garantir muito mais liberdades do que promover invasões ilegítimas na esfera pessoal do
cidadão.
7. As uniões homoafetivas
A dimensão metajurídica de respeito à
dignidade humana impõe que se tenham
como protegidos pela Constituição os
relacionamentos afetivos independentemen(Artigos)
te da identificação do sexo do par: se
formados por homens e mulheres ou só por
mulheres ou só por homens. Ainda que,
quase intuitivamente, se conceitue a família
como uma relação interpessoal entre um
homem e uma mulher tendo por base o
afeto, necessário reconhecer que há relacionamentos que, mesmo sem a diversidade
de sexos, são cunhados também por um elo
de afetividade.
Preconceitos de ordem moral ou ética
não podem levar à omissão do Estado. Nem
a ausência de leis nem o medo do Judiciário
servem de justificativa para negar direitos
aos vínculos afetivos que não tenham a
diferença de sexo como pressuposto. É
absolutamente discriminatório afastar a
possibilidade de reconhecimento de uniões
estáveis homossexuais. São relacionamentos que surgem de um vínculo afetivo,
gerando o enlaçamento de vidas com desdobramentos de caráter pessoal e patrimonial, estando a reclamar um regramento
legal.
Reconhecer como juridicamente impossíveis ações que tenham por fundamento
uniões homossexuais é relegar situações
existentes à invisibilidade e ensejar a consagração de injustiças e o enriquecimento
sem causa. Nada justifica, por exemplo,
deferir uma herança a parentes distantes em
prejuízo de quem muitas vezes dedicou
uma vida a outrem, participando na formação do acervo patrimonial. Descabe ao juiz
julgar as opções de vida das partes, pois
deve se cingir a apreciar as questões que
lhe são postas, devendo centrar-se exclusivamente na apuração dos fatos para encontrar uma solução que não se afaste de um
resultado justo.
“As uniões homoafetivas são uma
realidade que se impõe e não podem
ser negadas, estando a reclamar tutela
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MARIA BERENICE DIAS
jurídica, cabendo ao Judiciário solver
os conflitos trazidos. Incabível que as
convicções subjetivas impeçam seu
enfrentamento e vedem a atribuição
de efeitos, relegando à marginalidade
determinadas relações sociais, pois a
mais cruel conseqüência do agir
omissivo é a perpetração de grandes
injustiças.”24
Descabido estabelecer como pressuposto a distinção de sexos para a identificação
da união estável. Dita desequiparação, arbitrária e aleatória, se evidencia como
exigência nitidamente discriminatória. O
próprio legislador constituinte reconheceu
igualmente como entidade familiar, merecedora da proteção do Estado, a comunidade formada por qualquer dos pais e seus
descendentes. Ante tal abertura conceitual,
nem o matrimônio nem a diferenciação dos
sexos ou a capacidade procriativa servem
de elemento identificador da família. Por
conseqüência, não há como só ver como
entidade familiar a união estável entre
pessoas de sexos opostos.
Não se diferencia mais a família pela
ocorrência do casamento. Também a existência de prole não é essencial para que a
convivência mereça reconhecimento e proteção constitucional, pois sua falta não enseja sua desconstituição. Se prole ou capacidade procriativa não são essenciais para
que a convivência de duas pessoas mereça
a proteção legal, não se justifica deixar de
abrigar, sob o conceito de família, as relações homoafetivas. Excepcionar onde a lei
não distingue é forma de excluir direitos.
Passando duas pessoas ligadas por um
vínculo afetivo a manter uma relação duradoura, pública e contínua, como se casados fossem, formando um núcleo familiar à semelhança do casamento, independentemente do sexo a que pertencem, não
há como deixar de identificar ambas as
situações como geradoras de efeitos jurídicos. Em face do silêncio do constituinte
e da omissão do legislador, deve o juiz
cumprir a lei e atender à determinação
constante do art. 4.º da Lei de Introdução
ao Código Civil. Na lacuna da lei, ou seja,
na falta de normatização, há que se valer
da analogia, costumes e princípios gerais
de direito. Nada diferencia tais uniões de
modo a impedir que sejam definidas como
família para ensejar – enquanto não existir
um regramento legal específico – a aplicação analógica das regras jurídicas que
regulam as relações que têm o afeto por
causa, ou seja, o casamento e as uniões
estáveis.
“A equiparação das uniões homossexuais à união estável, pela via analógica, implica a atribuição de um
regime normativo destinado originariamente a situação diversa, ou seja,
comunidade formada por um homem
e uma mulher. A semelhança aqui
presente, autorizadora da analogia,
seria a ausência de vínculos formais
e a presença substancial de uma comunidade de vida afetiva e sexual
duradoura e permanente entre os companheiros do mesmo sexo, assim como
ocorre entre os sexos opostos.”25
A aversão da doutrina dominante e da
jurisprudência majoritária a socorrerem-se
das leis que regem a união estável ou o
casamento tem levado singelamente ao
reconhecimento de uma sociedade de fato.
Sob o fundamento de evitar enriquecimento injustificado, invoca-se o Direito das
Obrigações, o que acaba subtraindo a
possibilidade da concessão do leque de
direitos que existem na esfera do Direito
de Família.
Revista Brasileira de Direito Constitucional, N. 2, jul./dez. – 2003
(Artigos)
61
A IGUALDADE DESIGUAL
O exercício da sexualidade, a prática da
conjunção carnal ou a identidade sexual
não é o que distingue os vínculos afetivos.
A identidade ou diversidade do sexo do par
gera espécies diversas de relacionamento.
Assim, melhor é falar em relações homoafetivas ou heteroafetivas do que em relações homossexuais ou heterossexuais. Mas
desimporta a identificação do sexo do par,
se igual ou diferente, para se emprestarem
efeitos jurídicos aos vínculos afetivos, no
âmbito do Direito de Família. Atendidos os
requisitos legais para a configuração da
união estável, necessário que sejam conferidos direitos e impostas obrigações independentemente da identidade ou diversidade de sexo dos conviventes.
A orientação sexual adotada na esfera
de privacidade não admite restrições, o que
configura afronta à liberdade fundamental,
a que faz jus todo ser humano, no que diz
com sua condição de vida. Presentes os
requisitos legais, vida em comum, coabitação, laços afetivos, divisão de despesas,
não se pode deixar de conceder às uniões
homoafetivas os mesmos direitos deferidos
às relações heterossexuais que tenham idênticas características.
O tratamento diferenciado a situações
análogas acaba por gerar profundas injustiças. Como bem adverte Rodrigo da Cunha
Pereira, “em nome de uma moral sexual
dita civilizatória, muita injustiça tem sido
cometida. O Direito, como instrumento
ideológico e de poder, em nome da moral
e dos bons costumes, já excluiu muitos do
laço social”.26
“Uma dimensão dúplice da dignidade manifesta-se enquanto simultaneamente expressão da autonomia da
pessoa humana, vinculada à idéia de
autodeterminação no que diz com as
decisões essenciais a respeito da pró(Artigos)
pria existência, bem como da necessidade de sua proteção (assistência)
por parte da comunidade e do Estado,
especialmente quando fragilizada ou
até mesmo quando ausente a capacidade de autodeterminação.”27
Totalmente descabido continuar pensando a sexualidade com preconceitos, isto
é, pré-conceitos, ou seja, com conceitos
fixados pelo conservadorismo do passado
e engessados para o presente e o futuro. As
relações sociais são dinâmicas. Não compactuam com preconceitos que ainda se
encontram encharcados da ideologia machista e discriminatória, própria de um
tempo já totalmente ultrapassado pela história da sociedade humana. Necessário é
pensar com conceitos jurídicos atuais, que
estejam à altura de nosso tempo.
A homossexualidade é um fato que se
impõe e não pode ser negado, estando a
merecer a tutela jurídica, a ser enlaçado
como entidade familiar, fazendo-se necessário mudar valores, abrir espaços para novas
discussões, revolver princípios, dogmas e
preconceitos, pois não se pode falar em
homossexualidade sem pensar em afeto.
O estigma do preconceito não pode
ensejar que um fato social não se sujeite
a efeitos jurídicos. Não se pode impor a
mesma trilha percorrida pela doutrina e
pela jurisprudência nas relações entre um
homem e uma mulher fora do casamento,
que levou ao alargamento do conceito de
família por meio da constitucionalização da
união estável.
Se duas pessoas passam a ter vida em
comum, cumprindo os deveres de assistência mútua, em um verdadeiro convívio
estável caracterizado pelo amor e respeito
mútuo, com o objetivo de construir um lar,
inquestionável que tal vínculo, independentemente do sexo de seus participantes,
Revista Brasileira de Direito Constitucional, N. 2, jul./dez. – 2003
62
MARIA BERENICE DIAS
gera direitos e obrigações que não podem
ficar à margem da lei.
Não é ignorando a realidade, deixandoa à margem da sociedade e fora do Direito,
que irá desaparecer a homossexualidade.
Impositivo é visualizar a possibilidade do
reconhecimento de uma união estável entre
pessoas do mesmo sexo. Como diz George
Teixeira Giorgis:
“De fato, ventilar-se a possibilidade de desrespeito ou prejuízo de alguém, em função de sua orientação
sexual, seria dispensar tratamento indigno ao ser humano, não se podendo
ignorar a condição pessoal do indivíduo, legitimamente constitutiva de sua
identidade pessoal, em que aquela se
inclui”.28
Mais do que uma sociedade de fato,
trata-se de uma sociedade de afeto, o
mesmo liame que enlaça os parceiros heterossexuais. Bem questiona Paulo Luiz
Lobo: “Afinal, que ‘sociedade de fato’
mercantil ou civil é essa que se constitui
e se mantém por razões de afetividade, sem
interesse de lucro?”.29
Enquanto a lei não acompanha a evolução dos usos e costumes, as mudanças de
mentalidade, a evolução do conceito de
moralidade, ninguém pode – e muito menos
o podem os aplicadores do Direito – fechar
os olhos, assumindo uma postura preconceituosa ou discriminatória, para não enxergar essa nova realidade, tornando-se
fonte de grandes injustiças. Descabe confundir as questões jurídicas com as questões morais e religiosas.
8. A igualdade e a justiça
A garantia da justiça é o dever maior do
Estado, que tem o compromisso de asse-
gurar o respeito à dignidade da pessoa
humana, dogma que se assenta nos princípios da liberdade e da igualdade.
O fato de não haver previsão legal para
específica situação não significa inexistência de direito à tutela jurídica. Ausência de
lei não quer dizer ausência de direito, nem
impede que se extraiam efeitos jurídicos de
determinada situação fática. A falta de
previsão específica nos regramentos legislativos não pode servir de justificativa para
negar a prestação jurisdicional ou de motivo para deixar de reconhecer a existência
de direito merecedor da tutela jurídica. O
silêncio do legislador deve ser suprido pelo
juiz, que cria a lei para o caso que se
apresenta a julgamento. Clara, a determinação do art. 4.º da Lei de Introdução ao
Código Civil. Na omissão legal, deve o juiz
se socorrer da analogia, costumes e princípios gerais de direito.
O movimento libertário que transformou a sociedade e mudou o conceito de
família também emprestou visibilidade aos
relacionamentos homossexuais, ainda que
o preconceito faça com que essas relações
recebam o repúdio de segmentos conservadores. Mas a homossexualidade existe,
sempre existiu; e em nada se diferenciam
os vínculos heterossexuais e os homossexuais que tenham o afeto como elemento
estruturante.
O legislador intimida-se na hora de
assegurar direitos às minorias alvo da
exclusão social. A omissão da lei dificulta
o reconhecimento de direitos, sobretudo
diante de situações que se afastam de
determinados padrões convencionais, o que
faz crescer a responsabilidade do juiz. No
entanto, preconceitos e posições pessoais
não devem fazer da sentença meio de punir
comportamentos que se afastam dos padrões aceitos como normais. Igualmente
não pode ser invocado o silêncio da lei para
Revista Brasileira de Direito Constitucional, N. 2, jul./dez. – 2003
(Artigos)
63
A IGUALDADE DESIGUAL
negar direitos àquele que escolheu viver
fora do padrão imposto pela moral conservadora, mas que não agride a ordem social
e merece a tutela jurídica.
As uniões de pessoas com a mesma
identidade sexual, ainda que sem lei, foram
ao Judiciário reivindicar direitos. Mais uma
vez a Justiça foi chamada a exercer a
função criadora do direito. O caminho que
lhes foi imposto já é conhecido. As uniões
homossexuais tiveram que trilhar o mesmo
iter imposto às uniões extramatrimoniais.
Em face da resistência de ver a afetividade
nas relações homossexuais, foram elas
relegadas ao campo obrigacional e rotuladas de sociedades de fato a dar ensejo a
mera partilha dos bens amealhados durante
o período de convívio, mediante a prova da
efetiva participação na sua aquisição.
O receio de comprometer o sacralizado
conceito do casamento, limitado à idéia da
procriação e, por conseqüência, da heterossexualidade do casal, não permitia que se
inserissem as uniões homoafetivas no
âmbito do Direito de Família. Havia dificuldade de reconhecer que a convivência
está centrada no vínculo de afeto, o que
impedia fazer a analogia dessas uniões com
o instituto da união estável, que tem as
mesmas características e a mesma finalidade que a família. Afastada a identidade
familiar, nada mais era concedido além de
uma pretensa repartição do patrimônio
comum. Alimentos, pretensão sucessória,
eram rejeitados sob a alegação de impossibilidade jurídica do pedido.
As uniões homossexuais, quando reconhecida sua existência, eram relegadas ao
Direito das Obrigações. Chamadas de sociedades de fato, limitava-se a Justiça a
conferir-lhes seqüelas de ordem patrimonial. Logrando um dos sócios provar sua
efetiva participação na aquisição de bens
amealhados durante o período de convívio,
(Artigos)
era determinada a partição do patrimônio,
operando-se verdadeira divisão de lucros.
Reconhecidas como relações de caráter
comercial, as controvérsias eram julgadas
pelas varas cíveis. Os recursos igualmente
eram distribuídos às câmaras cíveis que
detêm competência para o julgamento de
matérias cíveis não especificadas.
A mudança começou pela Justiça gaúcha, que, ao definir a competência dos
juizados especializados da família para
apreciar as uniões homoafetivas, as inseriu
no âmbito do Direito de Família e as
reconheceu como entidades familiares.
O Poder Judiciário do Rio Grande do
Sul possui uma estrutura diferenciada. A
divisão de competência por matérias existe
também no segundo grau de jurisdição
entre os órgãos colegiados do Tribunal de
Justiça. Essa peculiaridade evidencia o
enorme significado decorrente do deslocamento das ações sobre uniões de pessoas
do mesmo sexo das varas cíveis para os
juízos de família. Esse, com certeza, foi o
primeiro grande marco que ensejou a
mudança de orientação da jurisprudência
rio-grandense.30
A definição da competência das varas
de família para o julgamento das ações
envolvendo as uniões homossexuais provocou o deslocamento de todas as demandas
que tramitavam nas varas cíveis para a
jurisdição de família. Também os recursos
migraram para as câmaras que detêm competência para apreciar essa matéria.
Ainda assim, proposta a ação trazendo
por fundamento jurídico as normas de Direito de Família, a tendência era o indeferimento da petição inicial. Decantada a impossibilidade jurídica do pedido, era decretada a carência de ação. O processo era
extinto em seu nascedouro, por ser considerado o pedido do autor impossível. Esta foi
a decisão proferida em ação de petição de
Revista Brasileira de Direito Constitucional, N. 2, jul./dez. – 2003
64
herança que trazia como fundamento a legislação que regulou o § 6.º do art. 226 da
Constituição Federal assegurando direitos
sucessórios às uniões estáveis. Era buscada
a aplicação da Lei 8.971/94, invocando os
princípios constitucionais que vedam a discriminação entre os sexos. O recurso31 foi
acolhido por unanimidade de votos, reformando a sentença. Reconhecendo que a
inicial descrevia a existência de um vínculo
familiar, foi afirmada a possibilidade jurídica do pedido e determinado o prosseguimento da ação, para que as partes trouxessem as provas de suas alegações.
Esta decisão, de forma clara, sinaliza o
caminho para a inserção, no âmbito do
Direito de Família, das uniões homoafetivas como entidade familiar, invocando a
vedação constitucional de discriminação
em razão do sexo.
A primeira decisão da Justiça brasileira
que deferiu herança ao parceiro do mesmo
sexo também é da justiça especializada do
Rio Grande do Sul.32 A mudança de rumo
foi de enorme significado, pois retirou o
vínculo afetivo homossexual do Direito das
Obrigações, em que era visto como simples
negócio, como se o relacionamento tivesse
objetivo exclusivamente comercial e fins
meramente lucrativos. Esse equivocado
enquadramento evidenciava postura conservadora e discriminatória, pois não conseguia ver a existência de um vínculo
afetivo na origem do relacionamento.
Como o Direito de Família se justifica
pela afetividade, fazer analogia com esse
ramo do Direito significa reconhecer a semelhança entre as relações familiares e as
homossexuais. Assim, pode-se dizer que,
pela primeira vez, a Justiça viu o afeto e o
invocou como elemento de identificação
para reconhecer a natureza familiar das
uniões homoafetivas. A apelação foi julgada
pela 7.ª Câmara Cível, que tenho a honra de
MARIA BERENICE DIAS
presidir. O relator, Desembargador José
Carlos Teixeira Giorgis, em longo e erudito
voto, invocando os princípios constitucionais da dignidade humana e da igualdade,
concluiu que o respeito à orientação sexual
é aspecto fundamental para a sua afirmação.
Na esteira dessa decisão, que alcançou
repercussão de âmbito nacional, encorajaram-se outros tribunais e, com significativa
freqüência, são divulgados novos julgamentos adotando posicionamento idêntico.
A pretensão de prevenir futuras controvérsias levou um casal de mulheres a fazer
uso da medida cautelar de justificação,
visando ao reconhecimento da convivência
de ambas como uma relação jurídica.
Havendo sido indeferida a inicial, sob a
alegação de impossibilidade jurídica do
pedido, o recurso33 foi provido, por reconhecido que a prova da convivência efetiva
seria da maior importância na eventualidade de ruptura da vida em comum, com vista
à apuração do resultado patrimonial.
Não visualizando justificativa para afastar a declaração judicial da existência da
relação homossexual, foi afirmada a possibilidade do uso da ação de carga eficacial
meramente declaratória. Mesmo inexistindo controvérsia entre as autoras sobre a
existência da relação, restou reconhecido o
interesse de agir com finalidade de prevenir
futuras discussões.34
Na medida em que se consolidou a
orientação jurisprudencial, ainda que majoritária, emprestando efeitos jurídicos às
uniões de pessoas do mesmo sexo, começou a se alargar o espectro de direitos
reconhecidos aos parceiros quando do
desfazimento dos vínculos homoafetivos.
A ausência de herdeiros sucessíveis levou o companheiro sobrevivente a disputar
a herança que, na iminência de ser declarada
vacante, seria recolhida ao município. Essa
singularidade e outro fato pouco comum
Revista Brasileira de Direito Constitucional, N. 2, jul./dez. – 2003
(Artigos)
65
A IGUALDADE DESIGUAL
deu destaque ao julgamento dos embargos
infringentes.35 Havendo ocorrido empate
entre os julgadores, o reconhecimento dos
direitos sucessórios decorreu do voto de
Minerva do Vice-Presidente do Tribunal.
O mais recente julgamento do Tribunal
de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul,36
por decisão unânime, determinou a partilha
de bens, reconhecendo como união estável
a convivência pública, contínua, duradoura
e estabelecida com o objetivo de constituir
verdadeira família, por quase cinco anos,
observados os deveres de lealdade, respeito
e mútua assistência entre as partes.
Há que reconhecer a coragem de ousar
quando se ultrapassam os tabus que rondam
o tema da sexualidade e se rompe o preconceito que persegue as entidades familiares
homoafetivas. Houve um verdadeiro enfrentamento a toda uma cultura conservadora e uma oposição à jurisprudência ainda
apegada a um conceito sacralizado de família. Essa nova orientação mostra que o
Judiciário tomou consciência de sua missão
de criar o direito. Não é ignorando certos
fatos, deixando determinadas situações a
descoberto do manto da juridicidade, que se
faz justiça. Condenar à invisibilidade é a
forma mais cruel de gerar injustiças e fomentar a discriminação, afastando-se o Estado de cumprir com sua obrigação de
conduzir o cidadão à felicidade.
A postura da jurisprudência, juridicizando e inserindo no âmbito do Direito de
Família as relações homoafetivas, como
entidades familiares, é um marco significativo. Inúmeras outras decisões despontam
no panorama nacional a mostrar a necessidade de se cristalizar uma orientação que
acabe por motivar o legislador a regulamentar situações que não mais podem ficar
à margem da juridicidade. Consagrar os
direitos em regras legais talvez seja a
maneira mais eficaz de romper tabus e
derrubar preconceitos. Mas, enquanto a lei
(Artigos)
não vem, é o Judiciário que deve suprir a
lacuna legislativa, mas não por meio de
julgamentos permeados de preconceitos ou
restrições morais de ordem pessoal.
Não mais cabe deixar de arrostar a
realidade do mundo de hoje.
Necessário ter visão plural das estruturas familiares e inserir no conceito de
família os vínculos afetivos que, por envolverem mais sentimento do que vontade,
merecem a especial proteção que só o
Direito de Família consegue assegurar.
O caminho está aberto, e imperioso que
os juízes cumpram com sua verdadeira
missão, que é fazer justiça. Acima de tudo
precisam ter sensibilidade para tratar de
temas tão delicados como as relações afetivas, cujas demandas precisam ser julgadas com mais sensibilidade e menos preconceito. Ou seja, com mais atenção aos
princípios de justiça, de igualdade e de
humanismo, que devem presidir as decisões judiciais.
Há muito já caiu a venda que tapava os
olhos da Justiça. O símbolo da imparcialidade não pode servir de empecilho para
o reconhecimento de que a diversidade
necessita ser respeitada. Não mais se concebe conviver com a exclusão e com o
preconceito.
A Justiça não é cega nem surda. Precisa
ter os olhos abertos para ver a realidade
social e os ouvidos atentos para ouvir o
clamor dos que por ela esperam. Mister que
os juízes deixem de fazer suas togas de
escudos para não enxergar a realidade, pois
os que buscam a Justiça merecem ser
julgados, e não punidos.
Referências bibliográficas
BARROS, Sérgio Resende de. Direitos humanos: paradoxo da civilização. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.
Revista Brasileira de Direito Constitucional, N. 2, jul./dez. – 2003
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Jornal O Liberal, Belém do Pará, 22 maio
1999.
NOTAS
1. Revista Brasileira de Direito Constitucional, n. 1, p. 12, jan.-jun. 2003.
2. Inc. III do art. 1.º da Constituição Federal.
3. Inc. IV do art. 3.º da Constituição Federal:
promover o bem de todos, sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras
formas de discriminação.
4. Inc. I do art. 5.º da Constituição Federal:
homens e mulheres são iguais em direitos e
obrigações, nos termos desta Constituição.
5. HESSE, Konrad. Elementos de Direito
Constitucional da República Federal da Alemanha. Tradução de Luís Afonso Heck. Porto
Alegre: Fabris, 1998. p. 330.
6. RIOS, Roger Raupp. Direitos fundamentais e orientação sexual: o direito brasileiro e a
homossexualidade. Revista CEJ do Centro de
Estudos Judiciários do Conselho da Justiça
Federal, Brasília, n. 6, p. 29, dez. 1998.
7. GIORGIS, José Carlos Teixeira. A natureza jurídica da relação homoerótica. Revista da
Ajuris, Porto Alegre, n. 88, t. 1, p. 244, dez.
2002.
8. Foi a grande pressão do movimento
feminista que acabou por alterar essa terminologia, em face da carga de discriminação contida
na expressão “direitos do homem e do cidadão”.
9. BARROS, Sérgio Resende de. Direitos
humanos: paradoxo da civilização. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 40.
10. BARROS, Sérgio Resende de. Direitos
Humanos: paradoxo da civilização. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 406 e ss. Cf. tb.
BARROS, Sérgio Resende de. Três gerações de
direitos. Disponível em: <www.srbarros.com.
br>, no campo “Direitos humanos”.
11. DIAS, Maria Berenice. União homossexual, o preconceito e a Justiça. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2000. p. 17.
12. CARLUCCI, Aída Kemelmajer de.
Derecho y homosexualismo en el derecho comparado. Homossexualidade: discussões jurídicas
e psicológicas. Curitiba: Juruá, 2001. p. 24.
13. LÔBO, Paulo Luiz Netto. Entidades
familiares constitucionalizadas: para além do
numerus clausus. Anais do III Congresso Brasileiro de Direito de Família. Família e cidadania – o novo CCB e a vacatio legis. Belo
Horizonte: Del Rey, 2002. p. 101.
14. VELOSO, Zeno. Homossexualidade e
direito. Jornal O Liberal, Belém do Pará, 22
maio 1999.
Revista Brasileira de Direito Constitucional, N. 2, jul./dez. – 2003
(Artigos)
67
A IGUALDADE DESIGUAL
15. LÔBO, Paulo Luiz Netto. Entidades
familiares constitucionalizadas: para além do
numerus clausus. Anais do III Congresso Brasileiro de Direito de Família. Família e cidadania – o novo CCB e a vacatio legis. Belo
Horizonte: Del Rey, 2002. p. 95.
16. SUANNES, Adauto. As uniões homossexuais e a Lei 9.278/96. COAD, edição especial, p. 32, out.-nov. 1999.
17. § 2.º do art. 5.º da Constituição Federal:
Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou nos
tratados internacionais em que a República
Federativa do Brasil seja parte.
18. RIOS, Roger Raupp. Direitos fundamentais e orientação sexual: o direito brasileiro e a
homossexualidade. Revista CEJ do Centro de
Estudos Judiciários do Conselho da Justiça
Federal, Brasília, n. 6, p. 35, dez. 1998.
19. BARROS, Sérgio Resende de. Direitos
humanos: paradoxo da civilização. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 431
20. BARROS, Sérgio Resende de. Direitos
humanos: paradoxo da civilização. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. p. 418.
21. DIAS, Maria Berenice. União homossexual, o preconceito e a Justiça. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2000. p. 17.
22. FACHIN, Luiz Edson. Elementos críticos do direito de família: curso de direito civil.
Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 95.
23. RIOS, Roger Raupp. Direitos fundamentais e orientação sexual: o direito brasileiro e a
homossexualidade. Revista CEJ do Centro de
Estudos Judiciários do Conselho da Justiça
Federal, Brasília, n. 6, p. 34, dez. 1998.
24. DIAS, Maria Berenice. União homossexual, o preconceito e a Justiça. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2000. p. 17.
25. RIOS, Roger Raupp. A homossexualidade no direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado; Esmafe, 2000. p. 122.
26. PEREIRA, Rodrigo da Cunha Pereira.
A sexualidade vista pelos tribunais. Belo Horizonte: Del Rey, 2000. p. 281.
27. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da
pessoa humana e direitos fundamentais. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2001. p. 46.
28. GIORGIS, José Carlos Teixeira. A natureza jurídica da relação homoerótica. Revista da
(Artigos)
Ajuris, Porto Alegre, n. 88, p. 244, t. 1, dez.
2002.
29. LÔBO, Paulo Luiz Netto. Entidades
familiares constitucionalizadas: para além do
numerus clausus. Anais do III Congresso Brasileiro de Direito de Família. Família e cidadania – o novo CCB e a vacatio legis. Belo
Horizonte: Del Rey, 2002. p. 100.
30. Tribunal de Justiça do Rio Grande do
Sul, AI n. 599 075 496, 8.ª Câmara Cível,
Relator: Des. Breno Moreira Mussi, Data do
julgamento: 17.6.1999, Ementa: “Relações
homossexuais. competência para julgamento de
separação de sociedade de fato dos casais
formados por pessoas do mesmo sexo. Em se
tratando de situações que envolvem relações de
afeto, mostra-se competente para o julgamento
da causa uma das varas de família, à semelhança
das separações ocorridas entre casais heterossexuais. Agravo provido”.
31. Tribunal de Justiça do Rio Grande do
Sul, AC n. 598 362 655, 8.ª Câmara Cível,
Relator: Des. José S. Trindade, Data do julgamento: 01.3.2000, Ementa: “Homossexuais.
união estavél. possibilidade jurídica do pedido.
É possível o processamento e o reconhecimento
de união estável entre homossexuais, ante princípios fundamentais insculpidos na Constituição Federal que vedam qualquer discriminação,
inclusive quanto ao sexo, sendo descabida
discriminação quanto à união homossexual. E
é justamente agora, quando uma onda renovadora se estende pelo mundo, com reflexos
acentuados em nosso país, destruindo preceitos
arcaicos, modificando conceitos e impondo a
serenidade científica da modernidade no trato
das relações humanas, que as posições devem
ser marcadas e amadurecidas, para que os
avanços não sofram retrocesso e para que as
individualidades e coletividades possam andar
seguras na tão almejada busca da felicidade,
direito fundamental de todos. Sentença desconstituída para que seja instruído o feito. Apelação
provida.
32. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul,
AC n. 70001388982, 7.ª Câmara Cível, Relator:
Des. José Carlos Teixeira Giorgis, Data do julgamento: 14.3.2001, Ementa: “União homossexual. reconhecimento. partilha do patrimônio.
meação. paradigma. Não se permite mais o
farisaísmo de desconhecer a existência de uniões
Revista Brasileira de Direito Constitucional, N. 2, jul./dez. – 2003
68
entre pessoas do mesmo sexo e a produção de
efeitos jurídicos derivados dessas relações homoafetivas. Embora permeadas de preconceitos,
são realidades que o Judiciário não pode ignorar,
mesmo em sua natural atividade retardatária.
Nelas remanescem conseqüências semelhantes
às que vigoram nas relações de afeto, buscandose sempre a aplicação da analogia e dos princípios gerais do direito, relevados sempre os princípios constitucionais da dignidade humana e da
igualdade. Desta forma, o patrimônio havido na
constância do relacionamento deve ser partilhado como na união estável, paradigma supletivo
onde se debruça a melhor hermenêutica.
Apelação provida, em parte, por maioria,
para assegurar a divisão do acervo entre os
parceiros”.
33. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul,
AC n. 70002355204, 7.ª Câmara Cível, Relator:
Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves,
Data do julgamento: 11.4.2001. Ementa: “Justificação judicial. convivência homossexual. competência. possibilidade jurídica do pedido. 1. É
competente a Justiça Estadual para julgar a
justificação de convivência entre homossexuais,
pois os efeitos pretendidos não são meramente
previdenciários, mas também patrimoniais. 2.
São competentes as Varas de Família, e também
as Câmaras Especializadas em Direito de Família, para o exame das questões jurídicas decorrentes da convivência homossexual, pois, ainda
que não constituam entidade familiar, mas mera
sociedade de fato, reclamam, pela natureza da
relação, permeada pelo afeto e peculiar carga de
confiança entre o par, um tratamento diferenciado daquele próprio do direito das obrigações.
Essas relações encontram espaço próprio dentro
do Direito de Família, na parte assistencial, ao
lado da tutela, curatela e ausência, que são
relações de cunho protetivo, ainda que também
com conteúdo patrimonial. 2. É viável juridicamente a justificação pretendida, pois a sua finalidade é comprovar o fato da convivência entre
duas pessoas homossexuais, seja para documentá-la, seja para uso futuro em processo judicial,
onde poderá ser buscado efeito patrimonial ou
até previdenciário. Inteligência do art. 861 do
CPC. Recurso conhecido e provido”.
34. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul,
AC n. 70005733845, 2.ª Câmara Especial Cível,
Relator: Dr. Luiz Roberto Imperatore de Assis
MARIA BERENICE DIAS
Brasil, Data do julgamento: 20.3.2003, Ementa:
“Apelação cível. declaratória de reconhecimento de união estável. pessoas do mesmo sexo.
Afastada carência de ação. Sentença desconstituída para o devido prosseguimento do feito”.
35. Tribunal de Justiça do Rio Grande do
Sul, EI n. 70003967676, 4.º Grupo de Câmaras
Cíveis de Porto Alegre, Relator: Des. Sérgio
Fernando de Vasconcelos Chaves, Data do
julgamento: 09.5.2003, Ementa: “União estável
homoafetiva. direito sucessório. analogia. Incontrovertida a convivência duradoura, pública
e contínua entre parceiros do mesmo sexo,
impositivo que seja reconhecida a existência de
uma união estável, assegurando ao companheiro
sobrevivente a totalidade do acervo hereditário,
afastada a declaração de vacância da herança.
A omissão do constituinte e do legislador em
reconhecer efeitos jurídicos às uniões homoafetivas impõe que a Justiça colmate a lacuna
legal fazendo uso da analogia. O elo afetivo que
identifica as entidades familiares impõe que seja
feita analogia com a união estável, que se
encontra devidamente regulamentada. Embargos infringentes acolhidos, por maioria”.
36. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul,
AC n. 70005488812, 7.ª Câmara Cível, Relator:
Des. José Carlos Teixeira Giorgis, Data do julgamento: 25.6.2003, Ementa: “Relação homoerótica. união estável. aplicação dos princípios
constitucionais da dignidade humana e da igualdade. analogia. princípios gerais do direito.
visão abrangente das entidades familiares. regras de inclusão. partilha de bens. regime da
comunhão parcial. inteligência dos arts. 1.723,
1.725 e 1.658 do código civil de 2002. precedentes jurisprudenciais. Constitui união estável a
relação fática entre duas mulheres, configurada
na convivência pública, contínua, duradoura e
estabelecida com o objetivo de constituir verdadeira família, observados os deveres de lealdade,
respeito e mútua assistência. Superados os preconceitos que afetam ditas realidades, aplicamse os princípios constitucionais da dignidade da
pessoa, da igualdade, além da analogia e dos
princípios gerais do direito, além da contemporânea modelagem das entidades familiares em
sistema aberto argamassado em regras de inclusão. Assim, definida a natureza do convívio,
opera-se a partilha dos bens segundo o regime da
comunhão parcial. Apelações desprovidas”.
Revista Brasileira de Direito Constitucional, N. 2, jul./dez. – 2003
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