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coleção Relações Internacionais R I O  MINISTÉRIO DAS RELAÇÕES EXTERIORES Ministro de Estado Secretário-Geral Embaixador Luiz Alberto Figueiredo Machado Embaixador Eduardo dos Santos FUNDAÇÃO ALEXANDRE DE GUSMÃO Presidente Embaixador Sérgio Eduardo Moreira Lima Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais Diretor Embaixador José Humberto de Brito Cruz Centro de História e Documentação Diplomática Diretor Embaixador Maurício E. Cortes Costa Conselho Editorial da Fundação Alexandre de Gusmão Presidente Embaixador Sérgio Eduardo Moreira Lima Membros Embaixador Ronaldo Mota Sardenberg Embaixador Jorio Dauster Magalhães e Silva Embaixador Gonçalo de Barros Carvalho e Mello Mourão Embaixador Tovar da Silva Nunes Embaixador José Humberto de Brito Cruz Ministro Luís Felipe Silvério Fortuna Professor Francisco Fernando Monteoliva Doratioto Professor José Flávio Sombra Saraiva Professor Antônio Carlos Moraes Lessa A Fundação Alexandre de Gusmão, instituída em 1971, é uma fundação pública vinculada ao Ministério das Relações Exteriores e tem a inalidade de levar à sociedade civil informações sobre a realidade internacional e sobre aspectos da pauta diplomática brasileira. Sua missão é promover a sensibilização da opinião pública nacional para os temas de relações internacionais e para a política externa brasileira. Organizadores: Corival Alves do Carmo Érica C. A. Winand Israel Roberto Barnabé Lucas Miranda Pinheiro R I O  Brasília – 2013 Direitos de publicação reservados à Fundação Alexandre de Gusmão Ministério das Relações Exteriores Esplanada dos Ministérios, Bloco H Anexo II, Térreo 70170-900 Brasília–DF Telefones: (61) 2030-6033/6034 Fax: (61) 2030-9125 Site: www.funag.gov.br E-mail: funag@funag.gov.br Equipe Técnica: Eliane Miranda Paiva Fernanda Antunes Siqueira Gabriela Del Rio de Rezende Guilherme Lucas Rodrigues Monteiro Jessé Nóbrega Cardoso Vanusa dos Santos Silva Projeto Gráico e Capa Daniela Barbosa Programação Visual e Diagramação: Gráica e Editora Ideal Impresso no Brasil 2014 R382 Relações internacionais : olhares cruzados / Organizadores: Corival Alves do Carmo [et al]. – Brasília : FUNAG, 2013. 623 p. - (Coleção relações internacionais) ISBN: 978-85-7631-492-9 Trabalhos apresentados no II Seminário Internacional de Pesquisa e Extensão e Relações Internacionais. 1. Relações internacionais. 2. Política internacional - teoria. 3. Economia internacional. 4. Relações internacionais - América Latina. 5. Segurança internacional - América do Sul. 3. Política externa - Brasil. 4. Política externa - teoria. I. Carmo, Corival Alves do. II. Série. CDD 327 Bibliotecária responsável: Ledir dos Santos Pereira, CRB-1/776. Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional conforme Lei nº 10.994, de 14/12/2004. rAymond Aron: dos limites do ConHeCimento HistóriCo à teoriA dAs relAções internACionAis1 Eduardo Mei Doutor em História pela UNESP (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho) (2009), pós­graduado em Filosoia (UNICAMP, 1987­2003) e graduado em Ciências Sociais pela UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas) (1986). Atualmente é professor de Sociologia do curso de Relações Internacionais (RI) da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (FCHS) da UNESP (Universidade Estadual Paulista). Atua principalmente nos seguintes temas: Sociologia e História da 1 Neste texto, retomo parte de minha tese de doutorado: Teoria da história e relações internacionais: dos limites da objetividade histórica à história universal em Raymond Aron. Franca: Unesp, 2009. Disponível em: <http://www.franca.unesp.br/poshistoria/emei.pdf>. 53 Eduardo Mei Guerra e das Relações Internacionais; Raymond Aron; relações civil­ ­militares; Teorias das Ciências Histórico­Sociais, neokantismo e historicismo; Teoria da Estratégia. É membro do Grupo de estudos de Defesa e Segurança (GEDES) da UNESP e iliado à Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED). 54 H á 30 anos – em Paris, no dia 17 de outubro de 1983 – falecia o ilósofo, sociólogo e publicista francês Raymond Aron. Intelectual renomado e protagonista dos principais debates políticos do pós­guerra, deiniu­se a si mesmo como um “espectador engajado” (ARON, 1981). Aron iniciou sua carreira como ilósofo, defendendo em 1938 uma tese de doutorado que, ao inal da vida, ele mesmo ajuizou obscura e controversa (ARON, 1986, pp. 130­1). Refugiado em Londres durante a Segunda Guerra Mundial, sob a pressão das circunstâncias, iniciou sua carreira de analista da conjuntura na revista gaullista La France Libre. Os artigos, publicados entre 1940 e 1944, foram compilados em três livros em 1944 e 1945 e, posteriormente, reunidos nas Chroniques de Guerre, em 1990. Com o im da guerra e o início da chamada Guerra Fria, Aron afastou­se provisoriamente da academia e iniciou uma longa carreira de editorialista na imprensa francesa que durou até 1981. Semanalmente, ele redigia um comentário sobre a política internacional, ensejando uma longa relexão que se consubstanciaria nas suas obras sobre as relações internacionais. Além disso, Aron dedicou­se a vários outros temas: política, ideologias, sociedades industriais, economia. Provavelmente por isso, como disse um estudioso, “a amplitude da obra de Raymond Aron sempre desesperou os comentadores” (HOFFMANN, 1983). Destarte, nestas breves páginas, meus objetivos são necessariamente limitados: 1) traçar­lhe uma sucinta biograia intelectual; 2) apresentar os elementos essenciais da sua teoria das relações internacionais; 3) expor os elementos ilosóicos que 55 Eduardo Mei fundamentam essa teoria. A biograia intelectual faz­se necessária para situar tanto a dedicação de Aron ao estudo das relações internacionais quanto a sua relexão ilosóica. Pode parecer estranho, à primeira vista, que a teoria das relações internacionais anteceda suas bases ilosóicas – como um edifício construído sem alicerces. Com esta escolha, espero não desalentar, já nos primeiros passos, os leitores com a árida relexão ilosóica que orienta a produção intelectual de Aron, iniciando o excurso pelos caminhos mais brandos e deixando o terreno escorregadio e acidentado para o esforço inal. I. Raymond Aron nasceu em Paris, em 1905; foi o terceiro ilho de uma abastada família judia assimilada e, desde tenra idade, testemunhou os debates apaixonados sobre o caso Dreyfus. Seus ancestrais eram industriais do ramo têxtil da Alsácia e seu pai, professor de direito na Escola Superior de Ensino Comercial e na de Ensino Técnico. Tendo feito seus estudos iniciais com brilho, em 1924 Aron ingressou em Filosoia na Escola Normal Superior, panteão da intelectualidade parisiense na qual fez amizade com Jean­Paul Sartre entre outros. Aron foi um ardoroso paciista (ARON, 1982, p. 28) até a ascensão do nazismo, no início da década de 1930, e socialista até 1947. De fato, “em 1925 ou 1926”, Aron aderiu à quinta seção parisiense da Séction Française de l’Internationale Ouvrière (SFIO), “para contribuir pela melhoria das classes desfavorecidas” (ARON, 1983, p. 53; SIRINELLI, 1984). Em um artigo publicado em 1926, intitulado “Ce que pense la jeunesse universitaire d’Europe. France”, Aron é taxativo: suas simpatias iam para o Partido Socialista. J.­B. Sirinelli resume o posicionamento de Aron: “contra a guerra, ‘mal absoluto’ – insistimos – o principal ‘meio de luta’ é a ‘entente internacional da classe operária’” (apud SIRINELLI, 1995, p. 61). Cinco anos 56 Raymond Aron: dos limites do conhecimento histórico à teoria das relações internacionais depois, em resenha ao livro Au-delà du marxisme, de Henri de Man, Aron pondera que o socialismo deve “voltar a ser uma realidade espiritual”, “considerar como seu dever supremo salvar os valores e a própria humanidade do desastre” e “realizando uma internacional verdadeira, […] impedir uma nova guerra” (apud SIRINELLI, 1995, p. 98). Cinco décadas depois, Aron observaria […] meu sistema de valores espontâneo, aquele que ingenuamente me levara ao Partido Socialista, permaneceu o mesmo. Simplesmente, o mundo mudara e minhas opiniões se adaptaram à realidade. Procurei servir aos mesmos valores em circunstâncias diferentes e por ações diferentes. Sinto que fui iel a mim mesmo, a minhas ideias, a meus valores e a minha ilosoia. Ter opiniões políticas não signiica ter deinitivamente uma ideologia, mas tomar decisões justas em circunstâncias que se alteram. Não estou querendo dizer que não me enganei mais ou menos frequentemente. Mas não traí meus valores e minhas aspirações de juventude. (ARON, 1982, p. 208) Essas observações servem­nos para desfocar a imagem que a maioria tem de Aron como conservador e cético. Aron concluiu sua licenciatura em Filosoia com a monograia “La notion de intemporalité dans la philosophie de Kant: Moi inteligible et liberté”, orientada por Léon Brunschivicg e, depois de prestar o serviço militar, dirigiu­se, em 1931, à Alemanha para dar continuidade aos seus estudos. O impacto da ascensão do nazismo sobre ele será brutal. Só então, diante do antissemitismo crescente do regime nacional­socialista, ele reconhecerá sua condição de judeu. É, portanto, num contexto de grave crise econômica e política que Aron entrará em contato com a obra de Max Weber e o neokantismo “historicista” alemão. A Alemanha ainda fervilhava com o conlito dos métodos [Methodenstreit] (FREUND, 1965, 57 Eduardo Mei p. 6) das chamadas Geisteswissenschaften que se iniciara no im do século XIX. O contato com esse debate levou­o a afastar­se da postura ilosóica de Léon Brunschivicg (LEBRUN, 2001, p. 74), seu orientador de tese que, embora também professasse o neokantismo, concebia­o como uma ilosoia estritamente intelectualista, que descurava da relexão política. Weber, ao contrário, desvenda­lhe as especiicidades e os riscos da política. Já em 1935, Aron registra sua admiração pelo mestre alemão: A originalidade e a grandeza de Weber concerne primeiramente ao fato de que ele foi e quis ser, simultaneamente, homem político e cientista […] O historiador pesquisa no passado as evoluções únicas nas quais os homens engajaram seu destino. A política é a teoria e a arte das escolhas sem retorno. […] Nem a ciência nem a realidade impõe nenhuma lei; a ciência incapaz de profecia ou de visão total deixa ao homem uma total liberdade; cada um decide por si. (ARON, 1961b, pp. 81-2) Sob a inluência de Weber e do neokantismo “historicista” alemão, Aron redigirá sua tese de doutorado, uma versão daquilo que Dilthey denominara “Crítica da Razão histórica”. Na tese, intitulada “Introduction à la philosophie de l’histoire: Essai sur les limites de l’objectivité historique”, Aron desferiu uma severa crítica ao positivismo durkheimiano, então dominante na academia francesa, propugnando os “limites da objetividade histórica”. Todavia, sua versão da ilosoia da história ensejava uma relexão sobre a “história universal”, como procurarei mostrar na parte III deste texto. Entrementes, desde 1936, Aron achava que os aliados perderam todas as chances de deter Hitler e que a guerra era inevitável (ARON, 1982, pp. 38 e ss.). Pouco tempo depois da defesa de sua tese de doutorado em 1938, às vésperas da Anschluss, 58 Raymond Aron: dos limites do conhecimento histórico à teoria das relações internacionais Aron é convocado para defender a França da ameaça alemã. Após o rápido malogro francês, Aron resolve que, devido à sua condição de judeu, seria mais seguro refugiar-se na Inglaterra. Em Londres, engaja-se no La France Libre, publicando análises e artigos do “esforço de guerra” francês. O fracasso do liberalismo econômico, a crise das democracias ocidentais, e a guerra deflagrada por um regime totalitário fundado no princípio da superioridade racial impunham severas reformas. De fato, segundo Aron, […] seria preciso aproximar o capitalismo tal como ele evoluiu, do comunismo tal como ele será considerando os homens que historicamente tem a chance e o fardo de realizá-lo. Mas o segundo termo nos escapa. Entre as previsões fragmentárias e a totalidade futura, subsiste uma margem imensa, a da ignorância, e talvez da liberdade. (ARON, 1986b, p. 412) Durante a guerra, Aron mantém a crítica do capitalismo de mercado, defesa da democracia e condenação dos regimes totalitários. É o que se lê no artigo “Burocratie et fanatisme”, publicado em 1941: Exige-se, e amanhã exigir-se-á da administração estatal que assegure um emprego total da mão de obra disponível, que impeça o escândalo da queima de sacas de café ou de trigo ao lado de milhões de seres insuficientemente nutridos. Na fase de reconstrução, ou seja, por um período extremamente longo, o Estado terá de dirigir parcialmente, e além desse período, terá ao menos de controlar a vida econômica. A democracia política deverá se adaptar a essa situação, tão diferente daquela na qual ela nasceu, ela terá ao mesmo tempo de manter a burocracia eficaz e lhe fixar limites, “terá de salvar o essencial disto que não se renuncia a denominar direitos do homem. (ARON, 1990, pp. 464-5). 59 Eduardo Mei O reformismo e a defesa de um regime socialmente mais justo pairavam sobre um impasse que perdurará até 1947. O avanço do Estado de Bem­estar social na Europa ocidental e a socialização forçada do Leste europeu deiniriam as escolhas e decisões de Aron no pós­guerra. Ao término da guerra, Aron recusa uma cadeira de Sociologia em Bordéus para dedicar­se ao publicismo, primeiramente no jornal Combat, em seguida no Le Figaro. Nesse período, ele dedica­se a compreender as guerras do século XX, notadamente em Le Grand Schisme (1948) e Les Guerres en chaine (1951) e reúne copiosos artigos publicados em jornais e revistas em livros de combate ideológico contra o que ele julgava ilusões dos simpatizantes do bolchevismo: Polémiques (1955) e L’opium des intellectuels (1955). Somente em 1955 ele retornará à universidade, assumindo por meio de concurso uma cadeira de Sociologia na Sorbonne. De volta à academia, sua produção intelectual será intensa. Os cursos ministrados sobre as sociedades industriais e As etapas do pensamento sociológico (1967) são publicados na década de 60. Datam também dos anos 60 e 70 seus consagrados estudos sobre as relações internacionais: Paix et guerre entre les nation (1962); République impériale. Les Etats-Unis dans le monde 1945-1972 (1973); Penser la Guerre, Clausewitz, 2 tomos (1976). Nos anos 80, Aron publica Le Spectateur engagé (1981) e Mémoires. 50 ans de rélexion politique (1983). Além dessas obras, a bibliograia de Aron conta com inúmeras obras póstumas e livros com compilações de artigos, contabilizando 600 artigos acadêmicos e cerca de 4.000 artigos de jornal (COLQUHOUN, 1986, p. 2). Notavelmente, uma relexão sobre as relações internacionais perpassa todas elas. II. A guerra e suas consequências atraíram a atenção de Raymond Aron para as “relações internacionais”. A ilosoia da existência 60 Raymond Aron: dos limites do conhecimento histórico à teoria das relações internacionais histórica aroniana culmina numa relexão sobre a humanidade em devir – a limitada objetividade histórica revelando­se paulatinamente na aventura humana sobre a Terra. No pós­guerra, a análise da política internacional ensejará o estudo da alternância de paz e guerra entre as nações. Destarte, no Tableau de la diplomatie mondiale en 1958, Aron pondera que “ainda que esteja há muito tempo em uso, a expressão ‘diplomacia mundial’, aplica­se com exatidão ao real apenas depois de 1945” (ARON, 1958, p. 85). No século XIX, havia uma economia mundial, mas não uma diplomacia mundial. A guerra de 1914­18, não foi mundial, embora seus efeitos reverberassem no mundo inteiro por meio dos impérios coloniais europeus. A guerra de 1939­45, inicialmente dividida em duas frentes distintas e relativamente autônomas, tornou­se uma delagração mundial apenas no inal de 1941, com a entrada dos EUA no conlito, marcando “a uniicação efetiva das hostilidades e, do mesmo modo, do campo diplomático” (ARON, 1958, p. 86). Só então é possível falar numa “diplomacia total” (ARON, 1958, pp. 85­94) e em uma “história universal”, pois a “uniicação do campo diplomático” é acompanhada da “difusão de certas formas de organização técnica ou econômica” – isto é, da mundialização das sociedades industriais (ARON, 1961, pp. 336­7). O homem assiste atônito à “aurora da história universal” (ARON, 1961, pp. 305­45). A compreensão da aventura humana envolveria, portanto, uma relexão sobre as relações internacionais. Em suma, a “aurora da história mundial” enseja uma relexão sobre as relações internacionais. Paz e guerra entre as nações (1962) tornou­se uma obra de referência no estudo das relações internacionais, embora tenha sido considerada desde seu lançamento obra densa e difícil, principalmente entre aqueles que detêm a hegemonia na área: os estadunidenses. A obra divide­se em quatro partes: “teoria”; “sociologia”; “história” e “praxeologia”. A “Teoria” estabelece as 61 Eduardo Mei bases conceituais do tema, inspirando­se em Clausewitz e Weber, Aron formula as bases ideal­típicas de sua relexão. A “Sociologia” e a “História” inspiram­se em Weber. A “Sociologia” considera os “elementos suscetíveis de se reproduzir” ou regularidades. O esforço aí consiste em recusar qualquer perspectiva monocausal (economicista ou geopolítica, por exemplo) e visa ponderar “probabilisticamente” os possíveis efeitos de regularidades como o espaço, o número, a população, os recursos, etc. A “História”, por sua vez, considera a originalidade ou o especíico de cada conjuntura. Essa conjunção leva a um cálculo de probabilidades que, entretanto, deixe uma margem de liberdade aos atores políticos. Como ponderara na Introduction à la philosophie de l’histoire, O homem de ação utiliza simultaneamente a sociologia e a história, já que pensa sua decisão ao mesmo tempo numa situação única e global e em função de elementos suscetíveis de se reproduzir, portanto isoláveis. As regras elementares tornam previsíveis as consequências do evento que a ação do indivíduo vai introduzir na trama do determinismo. Mas a singularidade da situação deixa lugar para a iniciativa e para a inovação, ao mesmo tempo em que ela precisa as regularidades parciais. O homem de ação exige tanto essas regularidades quanto esses acasos. Sem estes, ele seria reduzido ao papel de executor do destino. Sem aquelas, ele seria livre mas cego e, por conseguinte, impotente. (ARON, 1986b, p. 292) Examinadas as perspectivas a partir dessa análise sócio­ ­histórica, Aron examina na “Praxeologia” as opções que restam à ação, mormente dos chefes de Estado, diplomatas e militares. O propósito de Aron em Paz e guerra é “elaborar a teoria de um subsistema social” (ARON, 1972, pp. 349­72). O seu foco são as relações interestatais e, portanto, poderíamos dizer que Paz 62 Raymond Aron: dos limites do conhecimento histórico à teoria das relações internacionais e guerra é uma teoria dessas relações, uma teoria do subsistema “relações interestatais”. De fato, ele pondera, já em 1967 (ARON, 1972, p. 361), que poderiam objetar que sua obra se aplica apenas às relações interestatais e, quando muito, nos momentos de crise, e que ele confundira o subsistema interestatal com o subsistema internacional. Porém, Aron procura dissipar essa confusão, pois ele considera as relações interestatais o essencial das relações internacionais: No que concerne aos milênios de história das sociedades complexas, a deinição teórica que escolhi parece-me mais próxima da realidade, mais conforme a experiência, mais instrutiva e mais fecunda. Toda deinição que não reconhecesse o caráter especíico das relações internacionais devido à legitimidade do recurso à força por parte dos atores, negligenciaria simultaneamente um dado constante das civilizações – constância cujos efeitos têm sido imensos no curso da história – e a importância humana da atividade militar. (ARON, 1972, p. 361). Até os seus últimos escritos, Aron se ocupará em justiicar essa escolha teórica. Para deinir a especiicidade das relações internacionais, Aron parte da deinição weberiana de Estado. O Estado é a instituição que reivindica com êxito o monopólio da violência legítima dentro de determinadas fronteiras. Aron não nega as diiculdades dessa deinição. “A delimitação real é, às vezes, mais difícil que a conceitual”. Essa diiculdade se apresenta nas sociedades arcaicas, naquelas de tipo feudal, nos diferentes agrupamentos que se reservam o recurso à violência, tais como tribo, aldeia, clã, etc. (ARON, 1972, p. 352). Não obstante, a relação entre os vários Estados ou “centros autônomos de decisão” implica o “risco de guerra”, isto é, as relações interestatais desenrolam­se à sombra 63 Eduardo Mei da guerra ou “comportam, por essência, a alternativa da guerra e da paz” (ARON, 2004, p. 18). Embora a “conduta diplomático­ ­estratégica não tenha um im evidente”, Aron considera que “a alternativa da paz e da guerra permite elaborar os conceitos fundamentais das Relações Internacionais” (ARON, 2004, p. 29). Com efeito, do risco de guerra deriva a distinção entre os âmbitos interno e externo do Estado: “Enquanto cada Estado tende a reservar para si mesmo o monopólio da violência, os Estados, através da história, reconhecendo­se mutuamente, reconhecem do mesmo modo a legitimidade das guerras às quais se entregam” (ARON, 2004, p. 18). E derivam também os conceitos pertinentes a cada âmbito, pois, em suas palavras, A distinção entre as duas condutas, diplomático-estratégica duma parte, política de alhures, parece-me essencial, mesmo se múltiplas são suas similitudes. A potência na cena internacional difere do poder na cena interna, porque ela não tem a mesma envergadura, não utiliza os mesmos meios, não se exerce no mesmo terreno. (ARON, 2004, p. 62) Partindo da deinição clausewitziana de guerra, segundo a qual a guerra é a continuação da política com a entremistura de meios violentos, Aron considera o Estado um “centro de decisão”, responsável pela “unidade da política externa” que conjuga a diplomacia à estratégia. Ora, o monopólio da violência legítima, do uso da força combinada à lei, tem como contrapartida a maior ou menor probabilidade de que à dominação política corresponda a obediência dos dominados. Os diferentes “tipos impuros” de dominação legítima e os vários graus de obediência correspondem às diversas proporções em que a força e a lei se combinam historicamente e 64 Raymond Aron: dos limites do conhecimento histórico à teoria das relações internacionais nas distintas sociedades. Daí resultam os diversos tipos de Estado e de regimes políticos (WEBER, 1997, pp. 695 e ss.). Como a responsabilidade da política externa cabe a quem exerce o poder de Estado, “os regimes internos dos atores coletivos constituem uma das variáveis do sistema internacional” (ARON, 1972, p. 358). Em outras palavras, como os âmbitos interno e externo da política são interdependentes, a unidade da política externa se insere num quadro deveras complexo. A trama de relações entre as várias unidades políticas – a ainidade ou oposição, aliança ou hostilidade entre elas, e os vários níveis da capacidade de cada uma de atingir seus objetivos – deine se o sistema internacional é homogêneo ou heterogêneo, bipolar ou multipolar. Embora varie histórica e geograicamente, o risco de guerra não pode ser simplesmente descartado. Os Estados que o fazem delegam a outros a responsabilidade da defesa do território e abrem mão de um recurso da política externa. A conjuntura analisada por Aron em Paz e guerra tinha as seguintes características: unidade do campo diplomático­ ­estratégico; enfraquecimento da Europa, que se tornara refém dos “superestados termonucleares” (EUA e URSS); difusão do tipo europeu de Estado (o Estado moderno, deinido weberianamente); difusão da sociedade industrial; heterogeneidade dos Estados (nos variados graus de regimes constitucional­eleitorais e monopólico­ ­partidários); bipolaridade político­ideológica associada à novidade tecnológica representada pelo armamento termonuclear. As ameaças que pairavam sobre a Europa ocidental, segundo Aron, eram o holocausto nuclear e os blindados soviéticos. Não obstante, o armamento nuclear era um inibidor da escalada da tensão entre EUA e URSS, uma vez que as consequências da utilização do artefato nuclear eram imprevisíveis e os estrategistas consideravam que a guerra nuclear implicaria na destruição mútua dos contendentes – tratava­se da “mútua destruição assegurada”. 65 Eduardo Mei Passados mais de 50 anos, a conjuntura se apresenta muito distinta. Primeiramente, a bipolaridade político­ideológica evanesceu a partir dos anos 90. A bipolaridade termonuclear foi substituída pela difusão da tecnologia nuclear. As novidades tecnológicas não mais representam um impasse estratégico. Antes ampliam desmesuradamente, em vez de inibirem, as possibilidades da violência militar (bombardeios “cirúrgicos”, guerra cibernética, drones, elevada letalidade dos armamentos leves, etc.). Por outro lado, com muitas restrições podemos falar em unidade do campo diplomático. Durante a Guerra Fria, a bipolaridade ideológica reverberava em todo mundo, e internamente em cada país. Hoje os temas efetivamente globais – aquecimento global, efeito estufa, crise econômica, desregulação inanceira, crime organizado internacional – não alteram substantivamente as agendas nacionais. Enim, as relações internacionais não são mais exclusivamente interestatais; há novos atores em cena e o Estado perdeu parte do seu protagonismo com o avanço do neoliberalismo. Diante de mudanças tão profundas, o que a obra de Raymond Aron nos tem a ensinar? Sem dúvida, uma leitura atenta das suas diversas obras muito nos ensina, desde que deixemos de lado os preconceitos dogmáticos e a esclerose ideológica. A conceituação ideal­típica das relações internacionais, a inspiração em Weber e Clausewitz, a recusa dos dogmatismos monocausais, o exercício de interpretação da conjuntura, são altamente relevantes e atuais para a compreensão do mundo conturbado em que vivemos. A ponderação de que os Estados vivem à sombra da guerra não vale nem univocamente nem universalmente. Cada sub­região do globo tem características próprias que devem ser analisadas sem dogmatismo. Todavia, mesmo tendo tudo isso em conta, a compreensão das relações internacionais não faz jus a Aron se não examinarmos os fundamentos ilosóicos de sua relexão. Proponho­me a analisar seus elementos a seguir. 66 Raymond Aron: dos limites do conhecimento histórico à teoria das relações internacionais III. Segundo Raymond Aron, sua tese de doutorado assenta as bases da sua visão de mundo, a sua “ilosoia da existência histórica”. Em suas Memórias, ele narra a inspiração dessa ilosoia: Como, francês, judeu, situado em um momento do devir, posso conhecer o conjunto do qual sou um átomo, entre centenas de milhões? Como posso apreender a realidade de outro modo que de um ponto de vista, um entre outros inumeráveis? Donde segue uma problemática quase kantiana: até que ponto sou capaz de conhecer objetivamente a História – as nações, os partidos, as ideias cujos conlitos preenchem a crônica dos séculos – e meu tempo? Uma crítica da razão histórica ou política deveria responder a essa interrogação. Essa problemática comportava uma outra dimensão: o sujeito, em busca da verdade objetiva, é imerso na matéria que ele quer explorar e que o penetra, de cuja realidade, enquanto historiador ou economista, ele extrai o objeto cientíico. Adivinhei pouco a pouco minhas duas tarefas: compreender ou conhecer minha época tão honestamente quanto possível, sem jamais perder consciência dos limites do meu saber; destacar-me do atual sem, entretanto, me contentar com o papel de espectador. (ARON, 1983, p. 53) A compreensão da humanidade em devir, isto é, do mundo em que vivemos – por sinal muito conturbado nestes dias –, deve ser coerente com a teoria da história formulada na Introduction. O propósito de formular uma Crítica da Razão histórica leva­o a colocar os limites das ciências histórico­sociais entre margens estreitas: pretende traçar, de um lado, os limites da objetividade histórica, de outro, os limites do relativismo histórico. Assim, Aron ensaia formular uma epistemologia simultaneamente 67 Eduardo Mei antipositivista e antirrelativista (ARON, 1983, pp. 122 e 152; MESURE, 1986, pp. 471­8). Segundo Aron, os positivistas pretendiam atingir a neutralidade cientíica fazendo do conhecimento histórico uma mera coleção de fatos submetidos à pesquisa causal. Contra o positivismo, Aron faz duas críticas principais: 1) Ilusão objetivista: ao negar a ação do sujeito no processo cognitivo, omite o problema da objetividade histórica. Pretendendo simplesmente reproduzir o dado, numa atividade meramente passiva, o positivista não percebe que sua atividade recria o objeto desde o início, quando formula as questões a serem resolvidas pela pesquisa e seleciona o material a ser investigado; 2) Monismo interpretativo: a ilusão objetivista impede o historiador positivista de formular a possibilidade de uma multiplicidade de interpretações, estreitamente ligada à pluralidade de perspectivas. Essa segunda omissão o impede de colocar­se o problema da objetividade histórica: como a pluralidade de interpretações não implica a relatividade e arruína a objetividade do conhecimento? Percebe­ ­se então que o antipositivismo, se praticado irreletidamente, poderia “precipitar a teoria do conhecimento histórico de uma tese objetivista em uma antítese subjetivista e relativista, e inalmente cética” (MESURE, 1986, p. 473). Enfrentado, portanto, o positivismo, coloca­se para Aron a necessidade de superar o relativismo. Na conclusão da Philosophie critique de l’histoire, ao encerrar suas análises das “Críticas da Razão histórica” de Dilthey, Rickert, Simmel e Weber, Aron lamenta seu total fracasso: […] todos nossos autores acabam assim na relatividade da ciência histórica, e nesse sentido a tentativa da Crítica da Razão histórica termina num fracasso. Não se chega a demonstrar, pela relexão transcendental, a verdade supra-histórica da ciência do passado. (ARON, 1987, p. 306) 68 Raymond Aron: dos limites do conhecimento histórico à teoria das relações internacionais O juízo que Aron faz de Weber em particular merece nossa atenção, haja vista que sem dúvida este foi o autor que mais o inluenciou: “(…) sua doutrina leva, pelas visões de conjunto, a um relativismo absoluto, que exprime um ceticismo radical a respeito de toda ilosoia” (ARON, 1987, p. 289). Os limites dessa solução levaram Aron a tentar formular outras saídas mais satisfatórias. Em 1946, num artigo intitulado “La philosophie de l’histoire” (ARON, 1961), Aron airma: “O relativismo histórico é superado a partir do momento em que o historiador deixa de pretender um distanciamento impossível, reconhece seu ponto de vista e, por conseguinte, coloca­se em posição de reconhecer as perspectivas alheias” (ARON, 1961, p. 21). Todavia, como nota Sylvie Mesure, a superação do relativismo desenvolveu­se na obra de Aron, ao menos de maneira implícita, no sentido da formulação de valores universalizáveis: Na medida em que, contra o positivismo, se reconheceu que o trabalho interpretativo supõe escolhas, decisões inseparáveis dos valores do historiador, a própria possibilidade de reconhecer a uma interpretação uma validade maior do que a uma outra parece suspensa no reconhecimento de alguns valores como suscetíveis de orientar de maneira menos parcial a reconstituição: uma interpretação será tanto mais objetiva quanto ela parecerá orientada para valores que possam em direito ser partilhados pelo conjunto da humanidade. Tal nos parece ser a formulação última à qual a obra de R. Aron conduziu o problema da objetividade histórica. (MESURE, 1986, p. 476) Assim, se a superação do positivismo exige que o pesquisador, ao reconstruir a história, supere a ilusão objetivista e o monismo interpretativo, a superação do relativismo exige 69 Eduardo Mei que essa reconstrução seja pautada não, por assim dizer, por uma curiosidade aleatória, mas que formule questões passíveis de serem consideradas universalmente válidas. A superação do relativismo histórico remete, pois, a uma história universal. A conclusão da história inacabada que é o homem seria a “conciliação da humanidade e da natureza, da essência e da existência” (ARON, 1986b, p. 429). Entretanto, sustentar ilosoicamente a possibilidade dessa superação exigiria um grande esforço intelectual de Aron, a ponto de ele mesmo julgar posteriormente que o resultado não era plenamente satisfatório e que era preciso corrigir o excessivo relativismo atribuído à Introduction (ARON, 1986, p. 167). A superação do relativismo, proposta por Aron na Introduction, desdobrava­se em duas variantes: ou supera­se o relativismo por meio da decisão, corroborada pela relexão mas condicionada historicamente, já que limitada pelo conhecimento sempre parcial que temos da realidade; ou por meio da própria relexão da humanidade em devir como âmbito no qual a superação apresenta­ ­se progressivamente (ARON, 1986b, pp. 401­37). A primeira solução nos leva à pergunta: a “História” que Aron apresenta das relações internacionais ainda é válida? Suas escolhas e decisões ainda se justiicam? As profundas mudanças que se processaram no mundo após a sua morte requerem uma retiicação na sociologia das relações internacionais que ele formulara ou ela ainda permanece aplicável à nova situação? A segunda solução, por sua vez, nos remete novamente à “ideia” de uma história universal. O estudo da alternância de paz e guerra articula­se com as ideias kantianas de paz e de sociedade civil perfeita (o reino do direito), enquanto ins da razão. Cabe, então, indagar se essa articulação confere à relexão aroniana a objetividade histórica possível nos estreitos limites do conhecimento humano. O estudo da alternância de guerra e paz logra superar o relativismo ou manifesta apenas mais 70 Raymond Aron: dos limites do conhecimento histórico à teoria das relações internacionais uma perspectiva (ocidental, francesa e judia) na “pluralidade de interpretações possíveis”? O colapso da União Soviética, e sua reconversão ao modelo ocidental de sociedade industrial, põe im também à bipolaridade. Embora a Rússia seja ainda uma potência nuclear, sua zona de inluência declinou consideravelmente e classiicar o mundo como multipolar parece hoje mais apropriado. Com o im da URSS, os EUA têm, ao mesmo tempo, mais margem de manobra diplomático­ ­estratégica e menos motivação para agir, tendo em vista que não há mais a hostilidade político­ideológica e os dois gigantes do socialismo são hoje economias de mercado. Nesse sentido, a chamada burguesia gerencial faz as vezes dos diplomatas e adidos militares. Teria o sistema interestatal perdido sua primazia nas relações internacionais? Seria o caso de fundamentar a sociologia das relações internacionais em outras bases? O sistema interestatal, a unidade diplomático­estratégica da política externa e o risco de guerra teriam perdido a importância? Talvez não seja possível nem adequado dar uma resposta categórica a essas questões. Primeiramente, é preciso considerar que com o im da bipolaridade o risco de guerra diminuiu em algumas regiões, mas aumentou em outras. Nas regiões em que o risco de guerra aumentou, a deinição diplomático­estratégica da política externa está na ordem do dia. Porém, em muitos casos, o Estado já não protagoniza a guerra, e os beligerantes buscam não o seu im, mas sua continuidade para “viver da guerra”. A guerra passa a ser um meio de vida e não apenas da política o que nos obriga a reconsiderar a teoria clausewitziana da guerra (MEI, 2013; MÜNKLER, 2005). Nas regiões em que o risco de guerra diminuiu ou pode até ser considerado nulo, parece haver espaço para virtualmente todo tipo de transação internacional. Todavia, não podemos descartar a hipótese de que o esgotamento de recursos naturais essenciais, a fome e diásporas provocadas por distúrbios climáticos ou 71 Eduardo Mei perseguições religiosas turvem esse cenário relativamente pacíico. Com efeito, com o aprofundamento da crise econômica iniciada em 2008, os conlitos se intensiicaram em muitas regiões do mundo. Além disso, embora os tratados internacionais estejam ganhando força, a deinição do Estado como único detentor do monopólio de violência legítima dentro de determinadas fronteiras permanece válida. Porém, se as relações interestatais não perderam sua importância no mundo atual, tudo indica que ao menos perderam sua centralidade: não é mais possível deinir o campo diplomático mundial a partir da hostilidade declarada ou velada entre os dois superestados. Talvez seja demasiado até considerar a existência de um “campo diplomático mundial”, pois embora haja problemas essencialmente mundiais, tais como o aquecimento global e o efeito estufa, seus efeitos, lamentavelmente, ainda são muito débeis na agenda internacional. Em suma, ao que parece, embora a teoria aroniana das relações interestatais ainda seja válida, sua aplicação é atualmente mais limitada. A sociedade mundial tornou­se tão complexa que talvez seja necessário usar de mais cautela ao falar em teoria das relações internacionais. Por outro lado, toda obra de Aron deiniu­se no pós­guerra por “escolhas” e “decisões” que não mais se justiicam. Com efeito, Aron engajou­se, em 1947, pelo bloco ocidental e, abandonando o socialismo, tornou­se mais e mais liberal com o passar dos anos. Ao posicionar­se pelo bloco ocidental, Aron optava pela “democracia” e pelo “pluralismo” em detrimento dos regimes “totalitários” e “monocráticos” impostos pela União Soviética, sempre frisando, entretanto, que se posicionava por um entre dois modelos imperfeitos de sociedade industrial. Entretanto, esse engajamento de Aron ocorre no período que Hobsbawm denominou “era de ouro” do século XX, época em que a industrialização é crescente em boa parte do mundo ocidental, os países semiperiféricos modernizam­ ­se, a Europa se recupera da Segunda Guerra Mundial com o auxílio dos Estados Unidos e os direitos políticos, sociais e econômicos 72 Raymond Aron: dos limites do conhecimento histórico à teoria das relações internacionais avançam. Hoje, ao contrário, assistimos a uma crise econômica brutal que abala os fundamentos ideológicos do neoliberalismo, ao esgotamento de um modelo de exploração intensiva da natureza paralelamente a um contraste abominável entre países devastados pela fome e miséria e uma elite que consome muito mais do que é sustentável do ponto de vista ambiental. É derrisório airmar que o capitalismo ocidental é o sistema econômico menos pior de sociedade industrial ou que as democracias ocidentais (na verdade, plutocracias eleitorais) são os regimes políticos menos piores. A atual conjuntura exige uma severa crítica dos sistemas econômicos e regimes políticos atuais, e não o combate quixotesco aos velhos moinhos e aos fantasmas do passado. A obra de Aron inspira e exige muito mais que sua cômoda classiicação entre os teóricos “realistas” das relações internacionais sugere. A exigência de superação do relativismo nos obriga a criticar as “patriotadas” e ir muito além do prosaísmo das leituras ingênuas e dogmáticas da realidade. Porém, se a formulação teórica dessa exigência parece plausível, como na prática logramos tal superação? Deixo ao leitor que procure uma resposta para essa indagação. referênCiAs ARON, Raymond. La société industrielle et la guerre. Suivi d’un Tableau da la diplomatie mondiale en 1958. Paris: Plon. 1958. ARON, Raymond. “L’aube de l’histoire universelle”. In: Dimensions de la conscience historique. Paris: Plon. 1961. ARON, Raymond. La sociologie allemande contemporaine. Paris: PUF. 1961b. 73 Eduardo Mei ARON, Raymond. “Qu’est qu’une théorie des rélations interna­ tionales?” In: Études politiques. Paris: Gallimard. 1972. Também disponível no sítio: <http://www.persee.fr/web/revues/home/ prescript/article/rfsp_0035­2950_1967_num_17_5_393043>. Último acesso em 25/2/2009. ARON, Raymond. 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