O inter-relacionamento entre Análise e Interpretação musical em
peças para piano de Olivier Messiaen e Almeida Prado
Maria Lúcia Pascoal - Universidade Estadual de Campinas, Unicamp, Brasil.
Adriana Lopes da Cunha Moreira - Universidade de São Paulo, Usp, Brasil.
Olivier Messiaen
Durante sua maturidade, o compositor Olivier Messiaen (1908-92) recordava que a
admiração e apreço pela exuberância da natureza e pelos cantos dos pássaros remontavam aos seus
quatorze ou quinze anos de idade, época em que anotou o canto de um pássaro pela primeira vez
(Samuel 1994: 33).
A partir da composição de Le Merle Noir para flauta e piano, em 1951, na qual formulou o
material que estrutura a composição com base em suas anotações ornitológicas, Messiaen
intensificou essa prática. Passou a realizar pesquisas de campo periódicas e sistemáticas, que
consistiram na notação, gravação e comparação de segmentos melódicos e contrapontísticos,
principalmente heterofônicos, formulados a partir da percepção dos cantos de pássaros por ele
reconhecidos e cientificamente catalogados. 1
A obra Petites Esquisses d’Oiseaux para piano é formada por seis peças. Foi composta
durante o verão de 1985 e estreada durante um concerto do Ensemble Intercontemporain no dia 25
de janeiro de 1987, organizado por Pierre Boulez. Por um lado, Messiaen a considerava uma
associação de pequenos “esboços” dos cantos de pássaros comuns nos jardins de La Sauline, tanto
pela constituição enxuta, que inclui o canto de apenas um pássaro por peça, como pela grafia a
lápis, prática incomum do compositor. Por outro, Yvonne Loriod percebia nessa obra “um novo tipo
de pianismo, poético e sublime” (Hill & Simeone 2005: 353).
1
Após uma visita que fez à propriedade do ornitólogo Jacques Delamain, próxima à floresta em St-Germain-en-Laye,
nos dias 14, 15, 18 e 20 de maio de 1952, Messiaen passou a anotar em cadernos (cahiers) todo canto de pássaro e
paisagem percebidos visual, auditiva e musicalmente. Após 1953, contou com o auxílio da pianista Yvonne Loriod, sua
segunda esposa, para a gravação dos cantos. Comentou que considerava a anotação feita a partir da gravação mais
exata, porém menos artística em relação à anotação realizada ao vivo, sendo que em alguns casos ouvia um pássaro
dezenas de vezes, até que as variantes de seu canto pudessem ser condensadas em um solo que fosse compatível com a
peça que estava sendo composta (Hill & Simeone 2005: 201-9).
1
Almeida Prado
Entre 1970-73, o compositor brasileiro Almeida Prado freqüentou a classe de Olivier
Messiaen como ouvinte, no Conservatório de Paris, tendo sido na mesma ocasião aluno de
harmonia, contraponto e análise de Nadia Boulanger e Annette Dieudonée. Atualmente, a
importância da obra de Almeida Prado faz-se marcar não apenas pela qualidade e pela
inventividade, como também pelo domínio técnico e por sua vasta e ininterrupta produção,
composta por aproximadamente 350 obras (Moreira 2002: 34, 38-9).
Sua obra pode ser dividida em quatro fases precedidas pelas composições da infância, de
acordo com as técnicas composicionais utilizadas.
Cinco temáticas principais coexistem em sua obra: mística, ecológica, astrológica, afrobrasileira e livre. Esta última inclui os 16 Poesilúdios (Moreira 2002: 43-53).
O piano
“(...) O piano, que a priori parece ser um instrumento destituído de timbres é, precisamente
devido a essa deficiência em sua personalidade, um instrumento que conduz à indução de timbres,
e o timbre não advém do instrumento, mas do pianista. Então o piano é tão expressivo quanto o
pianista o for. E porque eu amo o piano, (...) sou conduzido a criar não melodias de timbres, mas
melodias de complexos de timbres” (Messiaen. In: Samuel 1994: 55-6).
“(...) Eu sou um compositor muito tímbrico. Você não pode tocar minha música sem pensar no
timbre, sem procurar efeitos de ataque (...). É como Messiaen. Você não pode tocar ‘Catalogue
d’Oiseaux’ como se toca Beethoven ou Bach” (Almeida Prado. In: Moreira 2002: 74-5).
Considerações iniciais
O objetivo deste trabalho é investigar nos caminhos da análise as possíveis decisões para
uma interpretação musical. Na procura de uma ligação entre essas duas atividades, considera como
o processo da compreensão estrutural da peça poderá agir no produto final. Desta forma, apresenta
análises de aspectos da estrutura nas peças para piano Le Rouge Gorge, da coleção Petites Esquisses
d’Oiseaux de Olivier Messiaen e Poesilúdio nº4 da coleção 16 Poesilúdios, do compositor brasileiro
Almeida Prado. Como se tratam de peças do final do século XX, entende-se como estrutura a
própria narrativa, a formação do discurso (Dunsby 2002: 82).
Técnicas de análise
Como bases teóricas para as análises, foram utilizadas - de maneira não ortodoxa, nem
excludente - as técnicas de análise: Teoria dos conjuntos (Lester 1989; Boss 1992; Oliveira 1998 e
Straus 2005) e Análise de vozes condutoras, através de sínteses em gráficos (Salzer 1982).
2
Processo da análise
Segundo o conceito de Christopher Hasty, de que estruturas produzem articulações formais
em uma peça e se constituem em algo a ser descoberto a partir da percepção musical auditiva
(Hasty 1981: 55-9), foram seguidos os seguintes passos durante a análise:
(1) Percepção auditiva da peça e leitura ao piano, quando os diversos domínios estruturais puderam
ser observados;
(2) Anotação de considerações relativas a essas percepções;
(3) Seleção dos conjuntos considerados relevantes;
(4) Observação das variações desses conjuntos e seu relacionamento com o material total;
(5) Seleção dos domínios: tempo, rítmica, dinâmica, extensão do piano, ressonância, textura e
timbre (Messiaen 1966; Berry 1987 e Kostka 2006);
(6) Análise de uma interpretação da peça de Messiaen;
(7) Interpretação da peça de Almeida Prado.
Le Rouge Gorge, para piano, de Olivier Messiaen
Pisco de Peito Ruivo
A composição da peça Le Rouge Gorge é motivada pelo canto do Pisco de Peito Ruivo, 2
cuja diversidade, sinuosidade, agilidade e habitat foram associados a sete conjuntos de classes de
alturas (C1, C2, C3, C4, C5, C6 e C7, comp. 1, 2, 4, 12, 15 e 55, na Fig. 1) e variações (C 1.1 e C
1.2, comp. 3 e 5, Fig. 1).
2
Pássaro da ordem Passeiformes e da família Turdídeas, o Erithacus rubecula (nome científico) atinge 14 centímetros
de altura e sua longevidade é de 13 anos. Encontrado na Europa, norte da África e Oriente Médio, freqüenta regiões
arborizadas, matas, florestas, parques e jardins, assim como regiões urbanas mais isoladas. É conhecido por Rougegorge
Familier, Magnon Foireuse, Magnon Fouroule (francês); European Robin (ingês); Pisco de Peito Ruivo (português).
http://www.oiseaux.net/oiseaux/passeriformes/rougegorge.familier.html (Acesso em 09/11/2005).
3
Figura 1: Conjuntos formadores da peça: C1 a C7 e variações de C1 (comp. 1-5, 12, 15 e 55).
Os contornos e a recorrência tanto dos conjuntos C2, C3 e C5 como das 47 variações
intensificam o movimento da peça. Este movimento agitado é compensado pelo caráter dos outros
quatro conjuntos e 14 variações, cuja composição foi motivada pela apreensão da atmosfera serena
inerente ao meio-ambiente habitado pelo pássaro. Uma vez que o pássaro finaliza as passagens que
canta por sons curtos seguidos por silêncios, grande parte das formas dos conjuntos C2, C5 e C7 é
seguida por pausas gerais. A atribuição da designação conjunto vazio a passagens formadas por
4
pausas gerais (C4, comp. 4) deve-se ao fato destas ocorrências interagirem de maneira motívica
com os outros conjuntos, nos quais a ressonância é predominante. 3
Ao observarmos o substrato numérico decorrente do uso da Teoria dos conjuntos (Fig. 1),
notamos que há uma predominância de hexacordes, heptacordes e octacordes, seja pela formação de
acordes, seja pela permanência da ressonância das alturas executadas através do uso do pedal direito
do piano. Percebemos que a coleção de referência da peça é o total cromático. Finalmente, vemos
que a forma primária desses conjuntos é bastante semelhante - notadamente, o primeiro e o terceiro
dentre os subconjuntos formadores de C1 são conjuntos de transposição equivalente, ou seja,
mantêm o conteúdo intervalar (Straus 2005: 38-44). Essa recorrência quantitativa resulta em uma
regularidade associada à densidade.
Os vetores relacionados aos conjuntos C2, C5, C6 e C7 apontam para uma predominância de
intervalos da classe 1 (2m e 7M), seguida por uma grande ocorrência de intervalos da classe 5 (4J e
5J). Há pouca recorrência do intervalo da classe 6 (trítono). Isso significa que o material cromático
de referência da peça prevalece em relação às outras combinações sonoras.
Em relação ao tempo, observamos que Messiaen segue o conceito de composição amétrica
(em oposição à mensurada) da maneira segundo a qual discorre no livro The Technique of My
Musical Language, ou seja, emprega padrões rítmicos livres, mas precisos e substitui a noção de
pulsação pela percepção de um valor curto multiplicado livremente (Messiaen 1966: 9) (Fig. 2). O
compositor privilegia a escrita das células rítmicas com seus valores exatos, sem recorrer ao uso de
fórmulas de compasso ou pulsação, o que implicaria em um emprego maior de ligaduras e acentos.
O uso da barra de compasso é reservado apenas para indicar períodos e para finalizar o efeito de
acidentes. Tal procedimento é designado primeira notação pelo compositor (Messiaen 1966: 29).
Assim sendo, a diversidade presente nos agrupamentos rítmicos interfere diretamente no equilíbrio
métrico da peça, tornando-o assimétrico. Há ainda um uso motívico do andamento, uma vez que tal
domínio é usado em associação aos diversos conjuntos.
3
Ao ampliarmos nosso olhar, percebemos que a apresentação dos conjuntos ocorre por justaposição, de três maneiras
distintas: o pedal direito pode ser mantido durante a execução de duas formas de conjuntos, de maneira que o segundo
conjunto é executado sobre a ressonância do primeiro (comp. 1-2); um conjunto pode ser executado após o outro, com o
pedal direito sendo trocado a cada mudança de material (comp. 2-3 e 3-4); ou então uma ocorrência de pausas gerais
pode separar duas formas de conjuntos (comp. 4-5).
5
Figura 2: Fusa como unidade de tempo e
agrupamentos em semicolcheias e semicolcheias pontuadas (comp. 1-3 e 12).
A sobreposição de um novo conjunto à ressonância do material anterior gera uma ampliação
na textura-espaço (Berry 1987: 175). Os conjuntos e variações cuja composição foi motivada pelo
canto do pássaro (C2, C5 e C7) fazem uso da textura heterofônica de três maneiras semelhantes,
porém distintas: as duas vozes que formam C2 (comp. 2, Fig. 1) delineiam um contorno sinuoso em
uma disposição espacial na qual prevalecem as distâncias de nona e de sétima; as formas de C5
(comp. 12, Fig. 1) são apresentadas ora heterofonicamente e com amplitude espacial similar às
formas de C2, ora acrescidas de duas ou mais vozes, formando uma textura acordal (Berry 1987:
192-4); C7 (comp. 55, Fig. 1) é composto por dois trinados longos sobrepostos, com amplitude
espacial comprimida (Berry 1987: 184). Os conjuntos C1 e C6 (comp. 1 e 15, Fig. 1) empregam
uma textura acordal e C3 (comp. 4, Fig. 1) possui textura monofônica. Percebemos que as texturas
monofônica, heterofônica e acordal (homofônica) possuem em comum uma conformidade
direcional, rítmica e de articulação, o que gera certa interdependência entre as vozes. Os intervalos
de nona e sétima são predominantes, sendo algumas vezes acrescidos de segundas, quartas e quintas
e isso resulta em uma conformidade tímbrica. Por outro lado, ao serem justapostas, as formas desses
conjuntos díspares produzem uma estratificação na textura (Kostka 2006: 239), que somada à
disparidade intervalar característica da heterofonia predominante contribui para a diversidade da
peça.
A estratificação na textura é ainda intensificada pelo uso individualizado da dinâmica, da
rítmica, do andamento e da extensão no teclado do piano (Fig. 3). Cada forma dos conjuntos
apresentados faz uso de uma intensidade própria, e tais intensidades não são utilizadas em sucessão,
produzindo crescendos ou decrescendos (por exemplo, pp-p-mp-mf-f), o que contribui com a idéia
6
de fragmentação. No entanto, a maneira segundo a qual os estratos da textura são concatenados
contribui com os movimentos progressivo e recessivo.
Todos os conjuntos fazem um uso motívico da textura, o que significa que a textura
apresentada pelo conjunto principal é mantida em todas as variações. Além disso, as formas dos
conjuntos C1, C3, C6 e C7 (comp. 1, 4, 15 e 55, na Fig. 1) fazem um uso motívico da dinâmica, da
rítmica, do andamento e da extensão no teclado do piano, o que significa que todos os domínios
apresentados pelo conjunto principal tendem a ser mantidos em todas as variações (Fig. 3).
Consideramos que o movimento realizado pelos conjuntos – associados à textura, à dinâmica, à
rítmica, ao timbre, ao andamento, à extensão no teclado do piano – faz parte da estrutura do
movimento da peça.
Observamos que os conjuntos cuja motivação extra-musical é originária do canto dos
pássaros (C2, C5 e C7, comp. 2, 12 e 55, Fig. 1) são mantidos na metade superior do teclado do
piano (da média a extremo-aguda), possuem um contorno mais sinuoso e utilizam intensidades na
sua maioria mais proeminentes – o que suscita o uso de um timbre mais brilhante pelo intérprete ao
executá-los. Assim sendo, os aspectos relevantes do timbre são associados à ressonância decorrente
do uso do pedal direito do piano, à região na extensão do piano na qual o conjunto está inserido e ao
tipo de toque escolhido pelo intérprete. Por sua vez, os conjuntos cuja composição foi motivada
pelo meio-ambiente no qual vivem os pássaros (C1, C3, C4 e C6, comp. 1, 4 e 15, Fig. 1) realizam
movimentos mais brandos e determinam pontos de repouso no interior das Seções, suscitando o uso
de um timbre mais macio pelo intérprete. Estes pontos de repouso promovem ondulações do
movimento, auxiliares na manutenção do interesse para o ouvinte. Percebemos que dentre estes
últimos, as formas dos conjuntos 1 e 6 (comp. 1 e 15, Fig. 1) realizam um abrandamento em maior
grau.
Ao associarmos os conceitos de movimento progressivo, estásico e recessivo de Wallace
Berry (Berry 1987: 7) a agrupamentos de conjuntos e variações empregados na peça, reconhecemos
a organização de uma forma. Assim sendo, C1 e variações estabelecem um movimento progressivo
que marca o início das Seções 1, 2, 3, 4 e Codeta (respectivamente, comp. 1-5, 6-33 e 34-52, 53-61
e 62-69); e passagens em andamento moderado ou lento (no final do slide 13) seguidas pelas pausas
de C4 e variações (início do slide 14) produzem um movimento recessivo que abranda e depois
interrompe o discurso, pontuando cada segmento e caracterizando o final das Seções.
Percebemos que os momentos de repouso promovidos pelas variações de C3 (comp. 4) e C6
(comp. 15) promovem uma ondulação na frase, provendo novo fôlego e interesse à Seção, uma vez
que após cada ondulação a intensificação do movimento é recobrada.
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Figura 3: Textura, dinâmica, movimento e forma.
Em relação à textura, observamos que a sobreposição de um novo conjunto à ressonância do
material anterior gera uma ampliação na textura-espaço (Berry 1987: 175). Percebemos que as
texturas monofônica, heterofônica e homofônica acordal possuem em comum uma conformidade
direcional, rítmica e de articulação, que gera certa interdependência entre as vozes. Por outro lado,
ao serem justapostas, as formas desses conjuntos díspares produzem uma estratificação na textura
(Kostka 2006: 239), que somada à disparidade intervalar característica da heterofonia predominante
contribui para a diversidade da peça.
A estratificação na textura é intensificada pelo uso individualizado da dinâmica, da rítmica,
do andamento e da extensão no teclado do piano. Cada forma dos conjuntos apresentados faz uso
de uma intensidade própria, e tais intensidades não são utilizadas em sucessão, produzindo
crescendos ou decrescendos, o que contribui com a idéia de fragmentação. No entanto, a maneira
segundo a qual os estratos da textura são concebidos e concatenados contribui com os movimentos
progressivo e recessivo.
Observamos que os conjuntos cuja motivação extra-musical é originária do canto dos
pássaros (C2, C5 e C7, comp. 2, 12 e 55, Fig. 1) suscitam o uso de um timbre mais brilhante pelo
intérprete ao executá-los, por serem mantidos na metade superior do teclado do piano, possuírem
11
um contorno mais sinuoso e utilizarem intensidades na sua maioria mais proeminentes. Por sua vez,
os conjuntos cuja composição foi motivada pelo meio-ambiente no qual vivem os pássaros (C1, C3,
C4 e C6, comp. 1, 4 e 15, Fig. 1) levam ao uso de um timbre mais macio pelo intérprete, por
realizarem movimentos mais brandos e determinarem pontos de repouso no interior das Seções.
Todos os conjuntos fazem um uso motívico da textura, o que significa que a textura
apresentada pelo conjunto principal é mantida em todas as variações. Além disso, as formas dos
conjuntos C1, C3, C6 e C7 (comp. 1, 4, 15 e 55, na Fig. 1) fazem um uso motívico da dinâmica, da
rítmica, do andamento e da extensão no teclado do piano, o que significa que todos os domínios
apresentados pelo conjunto principal tendem a ser mantidos em todas as variações.
Figura 4: Comparação entre o material, a dinâmica, o tempo, a extensão no piano e a textura dos conjuntos.
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Adaptando o conceito de multi-níveis de Wallace Berry (Berry 1987: 13 e 37) ao contexto
em questão - referente à justaposição de conjuntos e à ausência de uma estrutura fundamental consideramos que o primeiro material supracitado, de visibilidade mais proeminente, ocupa a
superfície, ou primeiro plano estrutural, e o segundo material, de visibilidade mais ampla, integra o
segundo plano da peça. Associamos tal conceito a planos gráficos (Fig. 5). Denominamos A o
material que ocupa o primeiro plano estrutural - nomeadamente, os conjuntos escritos em estilo
pássaro, para usarmos a nomenclatura de Messiaen - e subdividimos o material que integra o
segundo plano estrutural da peça, delegando-lhes as letras B e C, de acordo com seu grau de
repouso - respectivamente, de menor repouso (B) a maior apoio (C). A concepção de tais planos é
originária da percepção do movimento estabelecido pela justaposição de conjuntos associados à
textura, à dinâmica, à rítmica, ao timbre, ao andamento e à extensão no teclado do piano.
Figura 5: Associação do conceito de multi-níveis a planos gráficos (Seção 3, comp. 34-52).
16 Poesilúdios para piano, de Almeida Prado
A obra 16 Poesilúdios
4
foi composta em dois momentos: 1983 (Poesilúdios 1-5) e 1985
(Poesilúdios 6-16).
O Poesilúdio nº1 foi motivado pelo fragmento poético escrito por Fernando Pessoa. A
inscrição notada no início de cada partitura mostra que a composição dos Poesilúdios n. 2-5 foi
elaborada com base em pinturas específicas, realizadas por artistas plásticos. Os Poesilúdios n. 6-16
possuem o subtítulo Noites. A composição de cada peça é um amálgama da personalidade do
homenageado, de uma obra plástica ou literária, de uma série, ou ainda do total de sua obra (Fig. 6).
4
A denominação Poesilúdio, criada pelo compositor, refere-se à forma que traz “combinações de poesia e prelúdio.
Peças curtas, pictóricas, evocativas de atmosferas e lugares” (Gandelman 1997: 237). O texto transcrito na partitura dos
Poesilúdios 1-5 para piano, editada pela Tonos Musikverlag esclarece: "'Poesilúdio’ é a metamorfose de um prelúdio.
Uma poesia utilizada como base para um prelúdio, sem que o texto seja interpretado pela voz humana (Almeida
Prado)”. "'Poesiludio’ ist die Metamorphose eines preludio. Ein Gedicht dient als Grundlage für ein Präludium, ohne
da der Text von einer menschlichen Stimme wiedergegeben wird (Almeida Prado)”.
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Figura 6: Obras plásticas e literárias que motivaram a composição dos 16 Poesilúdios para piano.
Nos 16 Poesilúdios para piano transparecem a constante busca de Almeida Prado por novas
sonoridades do piano, por nova estruturação formal e sua tendência ao universalismo. As 16 peças
apresentam um agrupamento das diversas tendências contemporâneas: atonalismo, tonalismo,
modalismo, polimodalismo, ritmos irregulares, polirritmia, acentos isolados, variações de
compasso. As possibilidades tímbricas do piano, os diversos tipos de toque, o uso do pedal direito e
as ressonâncias são particularmente explorados nessas peças.
A composição do Poesilúdio nº4 foi motivada pela pintura Sem título que integra a série
Lugar, lugares (exposta em 1987), com a qual a artista plástica Berenice Toledo presenteou o
compositor Almeida Prado (Fig. 7). A peça, escrita no dia 23/10/1983, é dedicada à Berenice
Toledo e às formiguinhas de seus quadros.
Figura 7: Pintura Sem título que integra a série Lugar, lugares, da artista plástica Berenice Toledo.
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Na entrevista concedida no dia 01 de maio de 2002, Almeida Prado comenta:
“O ‘Poesilúdio nº4’ é o mais genial do primeiro ciclo. Tem um coral sólido, terreno, depois as
formiguinhas imitam, respondendo ‘formigamente’, ‘insetamente’, se é que eu posso dizer isso. A
formiguinha dialoga com a pessoa, com o coral. Eu não tenho como ouvir a formiga, então imaginei
assim, também graficamente. Isso só pode ser analisado com a teoria dos conjuntos. É impossível ser
analisado tonalmente ou modalmente. Você o concebeu muito bem. E pode acrescentar um
diminuendo no final do desenvolvimento do material das formiguinhas [c.4, segmento 5], porque o
formigueiro sumiu, mesmo que uma ou outra formiguinha tenham ficado [c.4, segmento 7 e c.5,
segmento 2]. No final, há uma Coda [c.4, segmento 6 até o final], mas interrompida, igual à que
Beethoven faz na Sonata ‘Appassionata’” (Moreira, 2002, pp.79, 121-127).
No âmbito do tempo, a indicação de andamento Calmo é mantida do início ao final da peça,
constituindo uma atmosfera tranqüila e contínua. A indicação de compasso é omitida, ficando
subentendido o uso da semínima como unidade de tempo.
A peça possui seis compassos longos (subdivididos em segmentos por barras pontilhadas,
Fig. 8), formando uma seção única seguida por uma Coda (a partir do segmento 5 do c. 4). A
subdivisão por barras pontilhadas indica: alternância do material bipartido, articulação na frase ou
mudança de direção. Messiaen denomina esse procedimento primeira notação.
Figura 8: Tempo e forma.
A textura é estratificada. Os dois materiais justapostos são homofônicos, mas o primeiro é
tratado à maneira coral e o segundo utiliza o acompanhamento por acordes. A oposição de idéias é
valorizada pelo uso bipartido de procedimentos tímbricos: o 1º material (Fig. 9) é associado ao uso
da região média-grave, com o pedal direito sendo trocado a cada mudança harmônica, e o 2º
material (Fig. 10), ao uso da região extremo-aguda, com pedal contínuo. As mudanças na dinâmica
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acompanham a justaposição do material contrastante, variando entre as gradações que separam mf e
ppp, e reservando as intensidades mais leves para o 2º material. A intensidade suave, combinada
com a pulsação lenta, contribui para o estabelecimento da atmosfera calma.
A peça utiliza dois conjuntos e variações, empregados de maneira pandiatônica, ou seja, sem
que exista a formação de progressões harmônicas funcionais ou o tratamento das dissonâncias. As
formas do conjunto 1 (Fig. 9) são resultantes do movimento horizontal das vozes condutoras, que
produzem acordes em sucessão não funcional. A entrada gradativa das vozes produz uma
intensificação na textura, que auxilia no direcionamento até os pivôs (acordes posicionados após as
barras pontilhadas).
Figura 9: Conjunto 1 e variações.
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Figura 10: Conjunto 2 e variações.
A análise das vozes condutoras (Fig. 11) é auxiliar na verificação das estruturas que
garantem a unidade da peça. A linha (a) da análise evidencia a ocorrência de pivôs, utilizados como
pontos de convergência (ver os acordes na cor azul da Figura 11). O conjunto 1 com suas variações
aparecem antes do pivô e o conjunto 2 com suas variações, depois do pivô, de maneira que a
ressonância deste acorde é utilizada como pedal para o conjunto 2. Nota-se que, apesar da
concepção dos conjuntos 1 e 2 possuírem atmosferas muito contrastantes, são inicialmente
formados a partir de vozes condutoras idênticas. A linha (b) reúne os pivôs e a linha (c) os
reorganiza - mostrando as relações cromáticas mediantes estabelecidas entre eles.
Figura 11: Análise das vozes condutoras.
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A concepção dos conjuntos 1 e 2 promove: estratificação na textura da peça; uso seccionado
da dinâmica e do timbre; e equilíbrio, uma vez que a expansão na densidade do conjunto 1 e suas
variações é neutralizada pela densidade constante do conjunto 2 e suas variações.
A inexistência de um centro reforça a ênfase nos acordes pivôs, os quais são independentes
de relacionamentos tonais.
Conclusão
Com base no presente trabalho, pudemos demonstrar que a análise segundo a teoria dos
conjuntos pode ser útil à interpretação de obras compostas durante o século XX, uma vez que a
organização motívica da peça é explicitada.
Partindo da compreensão desse material formativo, o intérprete pode optar por uma
concepção na qual a diversidade é valorizada, através da designação de timbres específicos que
realcem as características individuais de cada conjunto e variações.
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Adriana Lopes da Cunha Moreira – Professora na Universidade de São Paulo, Brasil.
e-mail: adrianalopes@usp.br
Maria Lúcia Pascoal – Professora e Coordenadora do grupo Musicanálise na Universidade
Estadual de Campinas, Brasil.
e-mail: alux@sigmanet.com.br
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