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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL CLAUDIO AUGUSTO PINTO GALVÃO ALGUNS COMPASSOS Câmara Cascudo e a Música (1920/1960) São Paulo/SP 2010 CLAUDIO AUGUSTO PINTO GALVÃO ALGUNS COMPASSOS Câmara Cascudo e a Música (1920/1960) Tese apresentada ao Programa de PósGraduação em História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo como requisito necessário para a obtenção do título de Doutor em História. Orientador: Prof. Dr. Marcos Silva São Paulo/SP 2010 CLAUDIO AUGUSTO PINTO GALVÃO ALGUNS COMPASSOS Câmara Cascudo e a Música (1920/1960) Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo como requisito necessário para a obtenção do título de Doutor em História. Data de Aprovação: ____/____/___ BANCA EXAMINADORA _________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ _________________________________________________________ São Paulo/SP 2010 Catalogação na Publicação Serviço de Biblioteca e Documentação Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Galvão, Claudio Augusto Pinto. Alguns compassos: Câmara Cascudo e a música (1920-1960) / Claudio Augusto Pinto Galvão; Orientador Marcos Antônio da Silva. – São Paulo, 2010. 373 f. ; il. Tese (Doutorado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Departamento de História. Área de concentração: História Social. 1. Memória cultural – Rio Grande do Norte. 2. História da música – Rio Grande do Norte. 3. Música popular. 4. Música folclórica. I. Título. II. Silva, Marcos Antônio da. CDD 780.420981 RESUMO Luís da Câmara Cascudo publicou uma vasta obra centrada no homem brasileiro visto pela ótica da etnografia, do folclore e da história. Muito se tem escrito e estudado sobre seu legado. Embora não tenha escrito nenhum livro tratando especificamente sobre música, verificase em seus escritos uma grande preocupação pelo assunto e constantes menções, estudos e comentários. Detalhes de sua biografia indicam como a música estava presente em sua vida e, principalmente, o quanto se dedicou ao estímulo aos musicistas de sua terra e à ajuda e incentivo às instituições musicais da cidade de Natal. A atividade de Câmara Cascudo como musicólogo é praticamente desconhecida, pois este aspecto de sua vida ainda não havia sido devidamente estudado. O propósito deste trabalho é trazer um pouco de luz sobre o assunto. Palavras-chave: Luís da Câmara Cascudo. Memória cultural do Rio Grande do Norte. História da música no Rio Grande do Norte. Música popular e folclórica. ABSTRACT Luís da Câmara Cascudo published a vast amount of work focused on the Brazilian man as seen from the optics of ethnography, folklore and history, and much has been written and studied on his enormous legacy. Although he has not written any book dealing specifically with music his concern on the subject is clear from his writings, as can be noticed on frequent references, studies and comments. Details of his biography show how music was present in his life and, particularly, how and how much he devoted himself both to encouraging musicians and to support musical institutions from his home land. All of Câmara Cascudo‟s activities as a musicologist is in fact unknown for certainly this aspect of his life has not been properly acknowledged in the specialized literature. The purpose of this paper is to shed some light on this subject. Keywords: Luís da Câmara Cascudo. Cultural memory of Rio Grande do Norte. History of music in Rio Grande do Norte. Popular and folk music. HOMENAGENS ESPECIAIS Ao Prof. Dr. Eurípedes Simões de Paula Em meados da década de 1960, o Prof. Eurípedes, docente de História Antiga e Medieval da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, convidou-me para me matricular no doutorado em sua disciplina, assegurando sua assistência docente, o acesso ao material de estudo necessário e, inclusive, a certeza de me hospedar em sua residência durante a realização do curso. Motivos pessoais e familiares me impediram de fazê-lo, privando-me de me tornar o primeiro doutor em História do meu estado. A lembrança de sua atitude ainda hoje me sensibiliza, assim como me emociona recordar o seu trágico desaparecimento. Ao Prof. Dr. Marcos Antônio da Silva Em 2006, o Prof. Marcos Silva sugeriu que me matriculasse na Pós-Graduação da mesma Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Assim como fizera o Prof. Eurípedes, há quarenta anos, assegurava-me o necessário apoio, orientação e, até mesmo, a possibilidade de alojamento em sua residência. Havendo aceitado o seu convite e no momento da conclusão deste trabalho, não há como deixar de ligar sua generosa atitude com o honroso convite do Prof. Eurípedes Simões de Paula, apesar de tanto tempo já passado. HOMENAGENS IN MEMORIAM A Alexandre Américo de Caldas Brandão, pianista, compositor, o primeiro e único professor de piano do menino Cascudinho. Certamente, as bases musicais que lhe proporcionou foram decisivas para a abertura e o desenvolvimento da compreensão e visão musical que haveria de possuir, indispensáveis para a realização de sua obra. A Oswaldo de Souza, pianista, compositor que, certamente, foi o primeiro a observar e se admirar com a destreza musical do jovem Cascudinho. Guardando na memória fatos e cenas de sua adolescência, prestou valiosos depoimentos que se tornaram indispensáveis para a melhor compreensão da música em Câmara Cascudo. Ajudou-o, inclusive, na grafia musical das melodias folclóricas que coletava. A Gumercindo Saraiva, folclorista, violinista, que foi o primeiro a compreender e dar forma a mais uma faceta da produção intelectual cascudiana. Pesquisando fatos e escritos diversos, publicou em 1969 Câmara Cascudo, musicólogo desconhecido, enquadrando pela primeira vez o escritor em uma atividade até aquele momento não percebida. A Zila da Costa Mamede, autora da monumental Luís da Câmara Cascudo: 50 anos de vida intelectual – 1918-1968 (1968), um levantamento minucioso de toda a obra cascudiana. Sem a consulta a essa obra, todo e qualquer estudo e pesquisa sobre o tema se torna difícil e exaustivo. O acesso a essa publicação foi uma ajuda indispensável para este trabalho. HOMENAGENS EMOCIONAIS Ao meu pai, Augusto Carlos Galvão, apreciador de modinhas, o qual me levava para assistir a retretas da Banda de Música da Polícia Militar do RN. Em um domingo à tarde, subiu comigo ao coreto de uma praça natalense para eu ver os instrumentos de perto. Deslumbrei-me com o bombo... À minha tia, professora Marcina Pinto Barroca. Lembro dela – eu muito criança – contando-me “histórias de trancoso”, as quais ilustrava cantando as partes musicais. Muitas delas encontrei recentemente na leitura da obra de Luís da Câmara Cascudo, recolhidas e documentadas. À minha mãe, Claudina Pinto Galvão, pianista na juventude, que tomou a iniciativa de me entregar, já adolescente, a uma professora particular de música e, depois, de me matricular no Instituto de Música do RN. AGRADECIMENTOS Ao professor Marcos Antônio da Silva, por ter me convencido a me matricular neste doutorado e por me acompanhar, com uma tolerância maior que sua competência, como tarimbado orientador. Aos professores Marinalva Vilar de Lima (UFCG) e José Geraldo Vinci (USP), componentes da banca do Exame de Qualificação para Mestrado, pelos comentários e indicações esclarecedoras. Aos professores Antônio Rago Filho (PUC-SP) e Airton Cavenaghi (Universidade Anhembi/Morumbi), componentes da Banca do Exame Qualificação para Doutorado, pelas oportunas observações e pelo incentivo. Ao Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, que, por seu arquivo de periódicos, tornou possível o acesso aos textos necessários a este trabalho. Destaco especialmente a colaboração das funcionárias Antonieta Freire de Sousa e Maria Lúcia da Silva, bem como da pesquisadora professora Ana Verônica Oliveira Silva, que muito colaboraram, com amizade e competência. \ Ao Arquivo Público do estado do RN, igualmente rico arquivo de periódicos do estado, particularmente ao arquivista José Salvino Sobrinho pelas atenções recebidas. Ao Acervo Ludovicus – Instituto Câmara Cascudo, principalmente à sua diretora administrativo-financeira Daliana Cascudo Roberti Leite, pelas preciosas informações e indispensável apoio. Sumário 1 ORA (DIREIS) OUVIR CASCUDO! (INTRODUÇÃO)..................................................................... 12 2 COMBATES COTIDIANOS (ARTIGOS NA IMPRENSA PERIÓDICA) ............................................ 14 2.1 O LIVRO DAS VELHAS FIGURAS......................................................................................... 15 2.2 AS “ACTA DIURNA” ........................................................................................................... 15 2.3 TEMAS ABORDADOS......................................................................................................... 17 2.3.1 Memória musical ....................................................................................................... 17 2.3.2 Instrumentos musicais ............................................................................................... 31 2.3.3 Música e poesia popular ........................................................................................... 35 2.3.4 Formação de músicos e de público ........................................................................... 40 2.3.5 Diálogos com outros pesquisadores ......................................................................... 44 2.3.6 Música e crenças populares ..................................................................................... 48 2.3.7 Música e festas populares ......................................................................................... 50 2.3.8 Músicos eruditos estrangeiros .................................................................................. 53 2.3.9 Músicos eruditos brasileiros ...................................................................................... 57 2.3.10 Músicos populares brasileiros ................................................................................. 65 2.3.11 Música e história ...................................................................................................... 77 2.3.12 Música e tecnologia................................................................................................. 85 2.3.13 Instituições musicais................................................................................................ 87 2.3.14 Música e folclore ...................................................................................................... 90 2.3.15 Música e folguedos populares ................................................................................. 92 2.3.16 Música... Considerações pessoais ............................................................................ 93 2.3.17 Música de outros lugares ........................................................................................ 98 3 INTERTEXTUALIDADES (LIVROS) ............................................................................................ 107 3.1 ORGANIZAÇÃO, INTRODUÇÃO E NOTAS ......................................................................... 232 3.2 INTRODUÇÃO E NOTAS ................................................................................................... 233 3.3 NOTAS ............................................................................................................................. 236 3. 4 PREFÁCIOS ...................................................................................................................... 244 3.5 POSFÁCIOS ...................................................................................................................... 246 4 PALCO ILUMINADO (BIOGRAFIA MUSICAL) ........................................................................... 247 4.1 PRIMEIRO PALCO ILUMINADO ........................................................................................ 247 4.2 ÁLBUM DE MODINHAS .................................................................................................... 248 4.3 CÂMARA CASCUDO E O PIANO ....................................................................................... 249 4.4 CASCUDO, O VIOLÃO E A SERENATA ............................................................................... 259 4.5 CASCUDO E AS INSTITUIÇÕES MUSICAIS......................................................................... 266 4.5.1 “Musicalerias” e o Grêmio Feminino de Natal ......................................................... 266 4.5.2 O Instituto de Música do Rio Grande do Norte........................................................ 267 4.5.3 Cascudo e a Sociedade de Cultura Musical .............................................................. 270 4.5.4 Revista Som .............................................................................................................. 271 4.5.6 Cascudo e uma orquestra para Natal ....................................................................... 272 4.6 Câmara Cascudo em diversas ocasiões .......................................................................... 273 4.6.1 Cascudo, Waldemar de Almeida e as modinhas ..................................................... 275 4.6.2 Cascudo e a música sertaneja .................................................................................. 279 4.6.3 Abertura das estradas e a invasão no sertão musical .............................................. 280 4.6.4 Cascudo e a música fora do seu estado ................................................................... 284 4.6.5 Cascudo e Villa-Lobos ............................................................................................... 289 4.6.6 Cascudo e Mário de Andrade: correspondência musical ........................................ 291 4.6.7 No silêncio da noite .................................................................................................. 323 5 GRAND FINALLE MA NON TROPPO (CONCLUSÕES) ............................................................... 329 REFERÊNCIAS ............................................................................................................................. 333 APÊNDICE .................................................................................................................................. 343 ANEXOS ..................................................................................................................................... 350 12 1 ORA (DIREIS) OUVIR CASCUDO! (INTRODUÇÃO) Ora (direis) ouvir estrelas! Certo Perdeste o senso! (Olavo Bilac) O nome Cascudinho era familiar desde a minha infância, devido a referências, comentários sobre suas atividades, visitas de minha mãe como profissional e amiga da família. Menino ainda, via nele uma pessoa comum, sem diferença das demais. Tempos depois, quando estudante de História na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (cursei a graduação entre 1959 e 1962), fui recebido por Luís da Câmara Cascudo para uma breve consulta. Não posso recordar quantas vezes retornei à sua presença, sendo sempre recebido com a boa vontade e simpatia que lhe eram peculiares. Quanto à relação de Cascudo com a música, lembro-me, em uma frisa do Teatro Alberto Maranhão (Natal/RN), dele assistindo ao concerto de um violonista espanhol, na década de 1960. Dias depois, fui convocado pelo presidente do Clube do Violão do Rio Grande do Norte: Cascudo havia telefonado, dizendo que estava querendo ouvir violão. Tocamos para Cascudo, eu e o pessoal do clube. Tornei-me docente do curso de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte em 1963, e me aposentei como professor adjunto dessa instituição em 1991, tendo merecido o título de professor emérito em 1997. Durante esse período de trabalho na UFRN, tive a oportunidade de seguir cursos de pós-graduação na Universidade de Louvain, na Bélgica, entre 1971 e 1972, e obtive o Certificado de Especialização em Études Médiévales, com a monografia Genealogia dos Condes de Flandres. Antes, conquistei certificado similar no Centro Regional de Pesquisas Educacionais do MEC (USP), em 1963, na área de Recursos Audiovisuais, com a monografia Cinema e Educação. No início da década de 1980, comecei minha leitura sistemática e a coleta de dados dos antigos periódicos do Rio Grande do Norte: foram surgindo muitas crônicas de Cascudo, entre elas, algumas sobre temas musicais, o que despertou curiosidade e atenção redobrada para o assunto. 13 Da mesma época é a pesquisa que realizei sobre a modinha no Rio Grande do Norte e o projeto sobre a história da música no estado1. Sobre as modinhas do estado, era indispensável ouvir Cascudo. Fui por ele recebido e senti seu entusiasmo sobre o assunto, tanto que a entrevista foi continuada várias vezes por iniciativa dele mesmo. Por sorte, foi possível gravar tudo o que disse e nesse relato está muito de sua história pessoal relacionada com a música. Esses encontros levaram à abertura de mais um tema de pesquisa: a história de Cascudo pela ótica musical, cujo objetivo seria o levantamento de sua participação pessoal nas atividades musicais de seu tempo, sua influência na evolução da vida musical da cidade de Natal e, principalmente, o levantamento e a análise de seus escritos sobre o assunto. Outra importante fonte de informações foi o compositor e folclorista Oswaldo de Souza (1901-1985). Durante as entrevistas para a redação do livro Oswaldo de Souza: o canto do Nordeste2, tive a oportunidade de ouvir do musicista inúmeros relatos sobre Cascudo (de quem era amigo desde a juventude), com ênfase para episódios relacionados com a música. Daquela publicação, constam dois escritos de Cascudo sobre ele, a serem relacionados mais adiante. Luís da Câmara Cascudo sempre foi estudado em seus campos considerados maiores (Etnografia, Estudos Literários, Folclore, História), mas pouco se escreveu sobre as suas relações com a música. Considerando que a sua atividade como musicólogo não estava ainda devidamente explorada, propus-me a abordar esse tema com o objetivo de indicar mais um caminho a pesquisas aprofundadas, que certamente alargarão no futuro ainda mais os horizontes de sua grande obra. 1 2 GALVÃO, Claudio. A Modinha Norte-Rio-Grandense (2000). GALVÃO, Claudio. Oswaldo de Souza: o canto do Nordeste (1988). 14 2 COMBATES COTIDIANOS (ARTIGOS NA IMPRENSA PERIÓDICA) É do conhecimento geral que Luís da Câmara Cascudo iniciou sua vida literária escrevendo artigos para o jornal A Imprensa, que entrou em circulação a 7 de setembro de 19143 e era de propriedade de seu pai, o comerciante Francisco Cascudo. O jovem escritor de 19 anos4 teve sua estreia na edição de 18 de outubro de 1918, iniciando uma coluna intitulada “Bric-à-Brac”, que continha uma crônica sem título na qual comentava obras literárias de Leal de Souza”. Após trinta e sete artigos sobre assuntos diversos, publicou “A Decadência da Serenata”, a 18 de dezembro de 1918, o primeiro dos seus artigos musicais, que abordava alguns temas de sua predileção: a música popular (modinha) e a serenata, e mais fatos comuns e contemporâneos de sua infância e adolescência em Natal. Atestam a precoce atenção para esse gênero musical as cópias que fez à mão de letras de modinhas com a respectiva menção aos autores em um livro de folhas em branco datado de 1912 – aos 14 anos, portanto5. A partir de 1918, o jornal A Imprensa foi a principal via de escoamento de seus escritos. Posteriormente, publicou em outros periódicos. É muito irregular e variável o volume anual dessas publicações. Do ponto de vista do conteúdo musical, esses escritos apresentam: – tema exclusivamente musical abordando pessoas, fatos e instituições; – enfoque em pessoas, fatos e instituições não exclusivamente sobre música, mas que tratam secundariamente de assuntos musicais. As publicações em A Imprensa se apresentam em forma de crônicas livres e outras compondo a coluna “Bric-à-Brac”. Havendo A Imprensa deixado de circular em 1927, já no ano seguinte iniciava longa colaboração no jornal A República e mais outros periódicos locais (como o Diário de Natal e a revista Som), além dos nacionais. Em A República6 (colaboração a partir de 6 de setembro de 1928), estão inicialmente oito crônicas da coluna musical “Musicalerias” (I a VIII, de 1928 a 1933). 3 Não foi possível ser encontrado em Natal nenhum exemplar do primeiro número de A Imprensa. A data acima está citada em LEMOS, Thadeu Villar de. O coronel Cascudo (1967). 4 Luís da Câmara Cascudo, nascido em 1898, completaria 20 anos a 30 de dezembro daquele ano. 5 Assunto a ser abordado na biografia musical constante do presente trabalho. 6 A República teve seu primeiro número a 10 de julho de 1889, com a atribuição de órgão oficial do Governo do Estado, desligando-se dessa função em 1932, com a publicação do Diário Oficial. Permaneceu fora de circulação por alguns períodos e teve seu último número a 27 de fevereiro de 1991. Ver FERNANDES, Anchieta. História da Imprensa Oficial do Rio Grande do Norte (2007). 15 Seguem-se crônicas livres, e a primeira delas sobre assunto musical traz o título “A Música e as Superstições” (24/01/1929). Publicou uma longa série – as “Acta Diurna” – que foi intercalada por crônicas livres e outros novos títulos de colunas: “Biblion”, “Biblioteca”, “Autores e Livros”, “Notas de História”, “Acta Dominical”, “Bilhetes de Portugal”, “Cidade do Natal”, “História & Estórias”. Câmara Cascudo ainda publicou suas crônicas no Diário de Natal e em O Poti7 entre os anos de 1947 e 1955. 2.1 O LIVRO DAS VELHAS FIGURAS Com esse título, o Instituto Histórico e Geográfico do RN iniciou em 1977 a publicação de numerosos escritos de Câmara Cascudo (era sócio benemérito da instituição). Foram publicados 10 volumes (o último data de 2009) constando de crônicas originárias das “Acta Diurna” e outras séries, em um total de 699 escritos. Um verbete do Dicionário Crítico Câmara Cascudo detalha o assunto8. Já a partir do segundo volume foram acrescentados outros temas às figuras humanas sugeridas pelo título, que bem poderiam fazer parte de outra série de publicações. 2.2 AS “ACTA DIURNA” Cascudo dedicou uma crônica à explicação de seu título geral. Em “Que quer dizer „Acta Diurna‟” (A República, 03/08/1943), explica: Acta Diurna era uma espécie de jornal diário, uma folha onde os acontecimentos eram fixados pelas autoridades de Roma, para conhecimento do povo. Pregavam-na a uma parede num dos edifícios do FORUM. Sobre a manutenção do título original, justifica: ACTA DIURNA significa, no latim, ações, obras, feitos, façanhas. DIURNA é o que se pratica sob o sol, no espaço de um dia, ou diariamente. E, aprofundando suas razões: Dei-lhe o batismo latino porque a intenção cultural é honrar o passado, nas suas lutas, alegrias, tragédias e curiosidades. E, se matéria nova aparece, comentada, é ainda o desejo de conservá-la no tempo para os olhos amigos de 7 Começou a circular com o título Diário, a 18 de setembro de 1939. Passou a se chamar Diário de Natal a partir de 29 de janeiro de 1945, quando se tornou membro dos Diários e Rádios Associados. Mantém atualmente a mesma denominação. O Poti era o título da edição dominical do Diário de Natal. Ver MELO, Manoel Rodrigues de. Dicionário da imprensa no Rio Grande do Norte 1909-1087 (1987). 8 GALVÃO, Claudio. “O livro das velhas figuras” (2003). 16 alguns leitores fiéis, nas páginas tradicionais d‟A REPÚBLICA, o mais velho dos jornais conterrâneos. Nas “Acta Diurna”, Câmara Cascudo abordou os mais variados temas. Os assuntos musicais são muito numerosos, e todos que foram encontrados estão comentados e relacionados na tabela constante deste trabalho. Cascudo comenta, em espaço na maioria das vezes à altura de uma lauda, personagens, instituições, eventos. A forma de crônica, possibilitando leitura breve em sua maior parte, é responsável pela popularidade que teve a publicação, como também pela sua longevidade. Em crônica datada de novembro de 1965 e intitulada “Era uma vez um livro”, é o próprio Cascudo que apresenta a história daqueles escritos e indica o ano de 1938 como o início da série publicada nos jornais A República e, anos depois, no Diário de Natal. Assim os define: É um documentário de figuras do Rio Grande do Norte. Prata da casa. O tempo traiu a memória do escritor, pois a presente pesquisa localizou a primeira da série a 15 de setembro de 19399. Traiu também quando restringe os escritos a figuras do Rio Grande do Norte, a personagens humanos, portanto. Na verdade, o seu horizonte foi ampliado e alcançou personagens nacionais e internacionais, como também passou de fatos locais a temas universais. Grande foi o número das “Acta Diurna” que versava sobre personagens da música do estado, entre as quais havia uma íntima ligação, uma sintonia de emoções que só se verificaria de músico para músico. Embora havendo escrito sobre nomes locais pertencentes a outras áreas artísticas, foi no campo musical que parece haver buscado, encontrado e destacado o maior número de personagens. Mesmo que fosse necessário pesquisar o teor de todas as publicações, não seria arriscado afirmar que as crônicas sobre assunto musical estão decerto entre as mais numerosas. A sequência da publicação das “Acta Diurna” foi algumas vezes descontinuada. No dia em que reiniciou a publicá-las, ainda no jornal A República (02/12/1958), explicou, em crônica daquele dia intitulada “Ecce Iterum Acta Diurna”, que estava retornando a pedidos de leitores e por insistência de amigos que o intimaram inapelavelmente. 9 Essa informação não consta MAMEDE, Zila. Luís da Câmara Cascudo: 50 anos de vida intelectual 1918/1968. (1970). 17 De todas as seções que tenho mantido, durante mais de uma década, Acta Diurna foi a que se derramou mais longe, determinando outras e transcrições longínquas, sugestões para trabalhos. Foi a que me obrigou a maior número de pesquisas difíceis, caçadas de meses e meses para informações que o leitor passava os olhos num minuto e nunca poderia julgar o trabalho que elas significavam. É nas “Acta Diurna” que se encontra a maioria dos escritos pesquisados na parte que se segue. 2.3 TEMAS ABORDADOS 2.3.1 Memória musical A primeira crônica sobre assunto musical escrita por Câmara Cascudo teve como título “A Decadência da Serenata” (18/12/1918), publicada por A Imprensa, jornal de propriedade de seu pai. O jovem cronista, aos vinte anos, abordava alguns dos campos preferidos entre suas preocupações intelectuais – a modinha e a serenata – que o acompanhariam por toda a sua vida. Entre outros detalhes lamenta o declínio das serenatas que tanto caracterizaram a Natal de fins do século XIX: Desapareceu o grande berço de inspiração popular, a pátria dos violões, o mundo das canções e modinhas atiradas a plenos pulmões, sob a paz tranquila das noites de lua. Aponta como uma das causas dessa situação a ausência do poeta Ferreira Itajubá (1876-1912), autor de vários poemas que foram transformados em modinhas seresteiras: Ferreira Itajubá era a alma das serenatas do seu tempo. Em seguida, descreve brevemente as partes componentes da serenata, que não se limitavam apenas à prática musical: havia a alimentação do grupo – “a ceia de peixe” – e ainda “a bebida, a algazarra das anedotas”. Cabe lembrar que a realização das serenatas era uma atividade masculina endereçada ao sexo feminino ou a um grupo familiar. O palco natural do seresteiro era a rua deserta: Pelas estreitas ruas, a luz macia da lua aveludava os telhados e pelo lageamento esburacado das calçadas, com os violões empinados, a serenata passava. Note-se a mobilidade do grupo não se limitando a um lugar apenas e deslocando-se por várias ruas e outros bairros. A visão clássica do seresteiro cantando sozinho na rua deserta não é, portanto, tão frequente, pois era 18 costume a continuação da serenata na parte interior da casa homenageada, a convite de seus donos que, honrados pela deferência, ofereciam bebidas e comidas. A mais surpreendente revelação de Cascudo ocorre quando descreve uma serenata a bordo de um barco que singrava sereno as águas do Rio Potengi: Doutra vez pelo rio, o bote molemente impulsado ondulava, sob o claro olhar das estrelas, as modinhas subiam aos céus, por entre o odor das brisas do nordeste. A realização de serenatas fluviais na velha Natal não tem sido devidamente referida pelos estudiosos da matéria, e essa citação parece ser o único testemunho do fato10. A serenata se afigura nesse artigo de Cascudo como memória da cidade, naquele momento, em fase de desaparição. Além dos seresteiros, fica evidente a predileção de um público de admiradores e apoiadores – os destinatários, suas famílias, a comunidade em geral – por essa instituição tão tradicional. “Ferreira Itajubá”, publicado em A Imprensa (31/07/1921), é o primeiro entre vários textos posteriormente publicados por Câmara Cascudo abordando a vida e obra do poeta Manoel Virgílio Ferreira Itajubá (Natal, 21/08/1875-Rio de Janeiro, 30/07/1912). Esse mesmo texto está reproduzido em Joio, segundo livro publicado em 1921, comentado na parte em que este trabalho se refere aos seus livros. No que concerne ao teor musical dos escritos de Câmara Cascudo, o presente artigo nada traz de considerável nem se refere aos seis poemas de Itajubá que foram musicados e se tornaram modinhas muito apreciadas nos saraus e serenatas da velha Natal11. Uma encenação teatral em Natal em meados do século XIX foi abordada por Cascudo em algumas oportunidades: em duas crônicas com o título “Teatro Campal”, publicadas em A Imprensa, a 20 e 23 de maio de 1920; em capítulo do seu livro Histórias que o tempo leva... (1924), reproduzindo a crônica de 20 de maio, anteriormente citada; e em A República (“Acta Diurna”, 29/11/1939), com o título “Um teatro campal em dezembro de 1858”. A crônica relata episódios da encenação por um grupo de amadores da peça “Camila nos subterrâneos ou Os salteadores do Montenegro”, de Camilo Fredereci. Cascudo descreve com detalhes o ambiente daquele dia 25 de dezembro, uma noite de 10 Durante as entrevistas e pesquisas para a redação de A modinha norte-rio-grandense, realizadas por longo período e abrangendo muitas pessoas, não houve sequer uma menção dos entrevistados a semelhante procedimento. Ver GALVÃO, Claudio. A Modinha Norte-Rio-Grandense (2000). 11 Mais informações e partituras em GALVÃO, Claudio. A Modinha Norte-Rio-Grandense (2000). 19 luar, em um sítio na periferia da cidade – hoje um bairro quase central. No capítulo de Histórias que o tempo leva... (1924) encontra-se minucioso resumo do enredo de todos os atos da peça. A presença de elementos musicais se verifica em duas passagens. Na primeira, um detalhe curioso: não havia na cidade uma moça que enfrentasse os preconceitos da época e arriscasse sua reputação ao aceitar o papel feminino da peça. Um rapaz aceitou o encargo, mas a música que cantava foi dublada por uma mulher, a conceituada atriz Maria Epiphania (também focalizada por Cascudo em uma crônica e referenciada em outras), que havia participado da mesma encenação dez anos antes. No livro citado, Cascudo transcreve o texto cantado: Oh! Quão triste é meu fado, / Nasci para a desventura; etc. A música desse texto, informa, era de autoria de Lourival Açucena, figura alvo de muitos de seus escritos. A segunda referência é a seguinte: Minutos antes descobriram que não havia música. Bate daqui, bate dacolá, José Macabeu de Vasconcelos lembrou-se que tinha um realejo-de-corda. Correu para casa e trouxe o instrumento. Deu-lhe corda e o realejo espalhou as doces melodias serenas na noite tropical e divina. É somente o que de menção ao musical contém essa crônica que, como tantas outras, constitui-se uma preciosa memória da velha cidade do Natal. Com a “Acta Diurna” (A República, 29/03/1940) intitulada “Nossas Modinhas”, Cascudo inicia uma série de artigos laudatórios e estimuladores sobre a iniciativa do pianista Waldemar de Almeida de recolher melodias e acompanhamentos das modinhas cantadas na velha Natal, material que se encontrava na oralidade. Imagina o vasto trabalho que tinha pela frente, pois contava com a colaboração de Chico Botelho, um velho seresteiro (que seria tema de uma “Acta” anos após) que – dizia – conhecia mais de trezentas modinhas. A música das nossas modinhas, em sua maior porcentagem, foi escrita no Rio Grande do Norte. Raras vieram de fora. Era trabalho da maior importância para a memória musical do estado. Cascudo evoca, em “Como dançavam nossos avôs em Natal” (“Acta Diurna”, A República, 13/04/1940), os mais antigos bailes de que se tem conhecimento como 20 realizados em Natal, nos anos de 1862 e 1868, e fornece preciosas informações sobre as danças e seus detalhes. Por ele, sabe-se que as festas eram sempre iniciadas pela quadrilha francesa, com 5 partes. No baile de 1862 se dançou o solo inglês, espécie de quadrilha com 4 e 6 pares, dança aristocrática, com saudações, curvaturas e salamaleque. É em 1860 o domínio da valsa e a schottisch apareceu depois da Guerra do Paraguai em Natal. A polca chegara antes, mesmo durante a luta, mas não era muito apreciada. Em mais detalhes sobre a evolução das danças, informa: Depois de 1880 a valsa, a polca, o schottisch eram repousos entre as quadrilhas. O solo inglês desaparecera antes de 1870 e o lanceiros não resistiu muito tempo. Já não o conheciam nos bailes republicanos12. Finalmente, uma preocupação com as melodias componentes das danças: E as músicas? Muitas foram compostas aqui mesmo. Sumiram-se no esquecimento, na indiferença, no pouco caso. É mais uma lição sobre a música em nossa história regional, em uma época em que os padrões europeus dominavam o ambiente dos salões aristocráticos. Diversas “Actas Diurnas” de Cascudo têm como subtítulo “Respondendo”; nelas, atendia pedidos de informações de seus leitores. Na publicação de 05/01/1941 em A República, responde sobre o poeta paraibano Osório Paes e informa que as modinhas “Palidez” e “Deus fez do orvalho a lágrima das flores” (“O bálsamo das dores”) são de sua autoria. Mais uma vez, acontece a sobreposição do poeta ocultando o nome compositor. “O bálsamo das dores” não tem compositor identificado. De “Palidez” sabe-se o nome do autor da melodia, o paraibano Camilo Ribeiro dos Santos.13 Um personagem, que viveu nos começos do século XIX, é destacado pelo cronista devido a sua inventividade e habilidade na mecânica, arquitetura e hidráulica: Miguel Rodrigues Viana (“Acta Diurna”, A República, 17/01/41). Esse personagem construiu, em 1862 ou 1864, a mais linda casa em léguas derredor. Para essa casa, informa: Creio ter sido o comprador do primeiro piano naquela zona inteira. O 12 Encontra-se no original publicado a palavra schottisch precedida do artigo definido masculino e, também, no feminino. 13 Mais informações sobre as duas modinhas e suas partituras em GALVÃO, Claudio. A Modinha NorteRio-Grandense (2000). 21 instrumento foi trazido suspenso, em vigas de ferro, com vários comboieiros, como uma raridade. Miguel Viana afinou-o. Constituía uma das supremas atrações artísticas. Então, descreve o multifacetado personagem em atividades menos técnicas: Sem mestre, aprendeu francês e música. Cantava modinhas e tocava rondós melodiosos ao violão. Numa festa religiosa, indo a música do Assu, dirigida por Julião Vanderlei, houve um debate musical entre os dois durantes horas e horas. Uma vez montou uma espingarda desmontável, dotada de estrutura nova e original, e mandou-a ao Imperador D. Pedro II, recebendo o título de Cavaleiro da Imperial Ordem da Rosa. Dados sobre Trajano Leocádio de Medeiros Murta, proprietário de Engenho “Pavilhão”, situado no município de Nísia Floresta, que viveu na primeira metade do século XIX, estão na “Acta Diurna” “O Velho Trajano do „Pavilhão‟”. (A República, 19/04/1941). Informa sobre a casa-grande do engenho, destacando os bens materiais que possuía. Antecedendo a uma mínima informação musical o cronista pintou, baseado na realidade, um detalhado quadro contemplado em imaginação: As festas duravam dias, reunindo a mocidade dos arredores, os ricos donos de engenhos, as senhoras ilustres, com rossagantes saias de tafetás, rodadas e com anquinhas, os bustos cobertos de trancelins de ouro e „alegrias‟ de coral, curvavam-se nas mesuras aristocráticas das „quadrilhas imperiais‟, executadas pela orquestra do Professor Belém. O Professor Francisco Belém está referido por Manoel Ferreira Nobre em “Breve Notícia da Província do Rio-Grande do Norte”, publicada em 1877. Na segunda edição da “Breve Notícia”, publicada em 1971, o historiador Manoel Rodrigues de Melo, em notas sobre o assunto, informa sobre a descendência do Professor Belém. Em uma série de longas crônicas com o título “Dendê Arcoverde” (“Acta Diurna”, A República, 10/05/1941), Cascudo aborda a vida atribulada de um das mais discutidas figuras pertencentes à família dos Albuquerque Maranhão. Descreve, na terceira delas, a solenidade da missa quando do falecimento de um irmão do personagem: 22 No sétimo dia veio a orquestra [banda de música?] de São José de Mipibu, dirigida por Joaquim Barbosa Monteiro, para tocar durante a missa fúnebre. Graças a essa fonte, foi possível um pequeno detalhe sobre a vida musical da região: Joaquim Barbosa Monteiro, que faleceu aos 85 anos em São José de Mipibu a 7 de outubro de 1907 [...].14 O tema de “Xavier da Silveira”, crônica livre publicada em A República, 24/12/1942, já foi comentado em “Antônio Elias”, “Acta Diurna” em A República, 22/06/1941 e em “Uma Modinha de Xavier da Silveira” (“História & Estórias” em A República, 05/07/1956). Entre outros assuntos, aborda a apresentação em uma serenata, da modinha “Vem!” (mais conhecida como “As Andorinhas”), letra de Joaquim Xavier da Silveira, pai do segundo governador republicano do Rio Grande do Norte, Joaquim Xavier da Silveira Junior. O autor da melodia e organizador da serenata chamava-se Antônio Elias Álvares de França, funcionário do governo estadual e autor de diversas outras melodias seresteiras15. É a parte musical da crônica intitulada. Em uma crônica cheia de otimismo, rememora o dia da criação de uma banda de música para meninos, que se efetuou em um salão do Grupo Escolar Frei Miguelinho, iniciada a partir das aulas de música do mestre Gabriel Gomes da Silva, passados 25 anos do dia da publicação de “Charanga do Alecrim”. (“Acta Diurna” em A República, 15/10/1943). Relaciona cada um dos meninos componentes da formação inicial. Em julho de 1919, a charanga foi anexada à Associação dos Escoteiros de Alecrim, tornando-se Banda dos Escoteiros do Alecrim e passando a ser presença constante nas datas cívicas e religiosas do local. Havendo recebido o instrumental por iniciativa do Governador Joaquim Ferreira Chaves, as aulas passaram a ter a colaboração dos mestres Manoel Florentino de Albuquerque e José Sinésio Freire. É mais uma instituição que teve o seu tempo útil, prestou serviços e se dissolveu nas contendas da modernidade. A crônica leva, mais uma vez, à certeza de que a vinculação de grande parte dos conjuntos musicais com a proteção do governo muito estimula tais atividades que, assim como a referida, produziu tantos benefícios sociais. É de se lamentar a perda de uma tradição que tão bons frutos proporcionou. 14 15 O mesmo personagem é referido por Antônio Fagundes, em História de Canguaretama (em preparo). Detalhes e partitura em GALVÃO, Claudio. A Modinha Norte-Rio-Grandense (2000). 23 O Padre Arêas (“Acta Diurna”, A República, 28/03/1944); nessa crônica, em que comenta a vida do padre Antônio Francisco Arêas, diz: Alguns versos seus, musicados vieram aos nossos dias, no repertório modinheiro das serenatas. Faz apenas uma breve referência à modinha “Lamúrias”, versos de sua autoria16. Cascudo inicia a crônica livre “Nortista incurável”, publicada em A República, 12/05/44, relatando um fato que aconteceu com um tio dele, em 1896, no interior de Pernambuco, durante um almoço que ocorreu em sua homenagem, ocasionando uma grande reunião de família na casa-grande de um engenho. Um dos parentes o saudou e, para completar a homenagem, pediu que os presentes cantassem uma modinha brasileira bem conhecida. Todos cantaram “O poeta e a fidalga”, de Segundo Wanderley. A pessoa que contou essa história a Cascudo é um profundo conhecedor das coisas do Nordeste, por isso ele o trata por “nortista incurável”. O relato confirma a popularidade nacional do poema do potiguar Segundo Wanderley, tema já tratado por Cascudo em outras crônicas. É de se lamentar a omissão do nome do compositor Heronides de França, a quem o cronista conhecia pessoalmente, o qual foi alvo da expressão de sua admiração, embora nada tenha escrito sobre ele17. Na crônica “Uma Orquestra para Natal” (“Acta Diurna”, A República, 8/11/1945), deplora que a cidade do Natal não tenha nenhuma orquestra erudita, como já acontece nos estados vizinhos do Ceará e da Paraíba. Procura estimular e incentivar os músicos da cidade para a organização de uma orquestra: Deixo ficar o apelo. Um apelo que servirá de teste aos nossos amadores e semi-profissionais. São incontáveis suas cobranças de uma orquestra para a cidade e evidente o esforço para levar adiante a cultura local. Cascudo transcreve, na “Acta Diurna” “Música e Músicos” (A República, 17/11/1945), uma carta que lhe endereçou o pianista Paulo Lira, provocada por uma recente “Acta Diurna”, em que sugere a formação de uma orquestra de amadores para Natal. Paulo Lira, músico profissional, recorda os bons conjuntos musicais que a cidade teve e lamenta o seu desaparecimento. A falta de estímulo por parte dos poderes “Lamúrias” tem melodia de autoria de Joaquim Severino Silva. Dados e partitura em GALVÃO, Claudio. A Modinha Norte-Rio-Grandense (2000). 17 Partitura e dados sobre “O poeta e a fidalga” em GALVÃO, Claudio. A Modinha Norte-Rio-Grandense (2000). 16 24 públicos e o respectivo estabelecimento de conjuntos economicamente estáveis seriam a origem do problema. Apresenta, de forma realista e sincera, uma ampla cadeia de motivos que fazem compreender as razões da inexistência de uma orquestra na cidade. Na verdade, sem profissionalismo, nenhum esforço teria êxito, mesmo entre artistas. Noutra ocasião, comenta que quando da nomeação de D. Joaquim Antônio de Almeida como primeiro bispo de Natal, foi composto um hino em sua homenagem, poema de Gotardo Neto e musicado por Luís Carlos Wanderley. O hino foi cantado no dia da chegada do bispo, 11 de junho de 1911: As meninas do catecismo cantaram-no duas vezes na mesma noite. À porta da igreja do Bom Jesus, quando o bispo se paramentava, e diante da catedral antes do Te Deum, informa em “Há um Hino Episcopal?” (“Acta Diurna”, Diário de Natal, 01/06/1948). O cronista lamenta que o hino não tenha sido mais cantado, nem o seu poema incluído na edição da obras do poeta, publicada dois anos depois. A falta do necessário registro é a principal responsável pela perda de boa parte da memória da cidade. A letra e a melodia desse hino foram, por sorte, recolhidas pelo autor desta pesquisa e aguardam publicação. Voltando ao tema das modinhas e transparecendo sua apreensão com o estado de oralidade em que se encontravam suas melodias, em sua “Acta Diurna” “Para Salvar Nossas Modinhas” (A República, 13/01/1949), cita o nome de diversos poetas nacionais e locais que tiveram poemas musicados por autor natalense. Nós possuímos modinheiros de primeira ordem. Tivemos meia porção de rapazes que “botaram solfa” que ninguém esquece no sentido da beleza e da graça. E adianta o nome de alguns desses compositores populares: Heronides de França, Antônio Elias, Cirineu de Vasconcelos, Sinésio Freire, Olímpio Batista, o grande Eduardo Medeiros, Carolina Wanderley, vinte outros, têm suas composições confiadas apenas à memória popular. Sua preocupação era plenamente justificada: As músicas jamais foram publicadas e, na maioria dos casos nunca sequer foi escrita, como as lindas solfas de Heronides França e Olímpio Batista. 25 Muitos tocaram violão “de ouvido” e esta produção deturpa-se passando-se de voz em voz, de garganta em garganta, umas mais fiéis, outras mais irrespeitosas pela ignorância. E termina com um apelo, ao mesmo tempo sentimental e objetivo: Precisamos ouvir e gravar ou grafar as nossas modinhas tão lindas e recordadoras. Elas são legítimos documentos da vida intelectual de um povo. No momento em que publicou essa “Acta Diurna”, Waldemar de Almeida já havia abandonado o projeto de coleta e grafia das modinhas do estado, iniciado tempos atrás e por demais estimulado por Cascudo. Não foram poucas as vezes em que reafirmou a importância dessa tradição no Rio Grande do Norte. Tal pesquisa somente foi realizada cerca de 50 anos depois18. A “Serenata do Pescador”, canção mais conhecida como “Praieira”, é certamente a mais popular das canções de autor local. O poema de Othoniel Menezes, musicado por Eduardo Medeiros, foi considerado “Canção tradicional da cidade” por Decreto Lei n. 12, de 22 de novembro de 197119. Cascudo relata pormenores da concepção do poema e posterior nascimento da melodia, informando detalhes sobre a primeira vez em que foi cantada em público. É uma importante descrição da exegese da canção, onde mais uma vez destaca a relação literatura/música. É a “História da Praieira”, contada na crônica da série “Cidade do Natal”, publicada em A República, 20/01/1949. A crônica “Identificação de “Um sonho”, de Segundo Wanderley” (“Cidade do Natal”, A República, 23/02/1949), objetiva comentar o poema como tal. Cascudo inicia dizendo: É um dos poemas mais populares de Segundo Wanderley. Heronides de França, creio, é o autor da melodia deliciosa que o espalhou nas gargantas sereneiras de outrora. Vez por outra ainda reaparece e agrada sempre. Uma muito breve menção ao compositor – a quem conheceu pessoalmente e declarou admiração – bem que complementaria a parte memorialística do texto20. 18 GALVÃO, Claudio. A Modinha Norte-Rio-Grandense (2000). Cidade do Natal, noiva do sol. Natal: Câmara Municipal do Natal (1981). 20 Partitura de “Um sonho” em GALVÃO, Claudio. A Modinha Norte-Rio-Grandense (2000). 19 26 Cascudo aborda na crônica “O vizinho pianista” (“Acta Diurna”, Diário de Natal, 18/05/1950) uma situação corriqueira, mas que certamente era comum em Natal e outras cidades brasileiras: a situação do incômodo ocasionado pelo tocar um instrumento no âmbito residencial. Refere-se especialmente aos exercícios técnicos, monótonos e repetidos, necessários à preparação técnica de quem toca um instrumento. Diz ele: Imaginemos exercícios teimosos, horas e horas, para lá e para cá, o mesmo trecho repetido obstinadamente até a exaustão. Então, pode-se imaginar a situação causada por esses estudos realizados em residências comuns, em geral casas conjugadas, sem forro nos tetos, sem nenhum isolamento acústico. Imagine-se a situação de alguém que, mesmo gostando de música, fosse forçado a ouvir tais exercícios e repetições de peças em momentos que convinham apenas a quem estava tocando, enquanto os vizinhos liam, estudavam, realizavam um trabalho que exigia atenção, estavam doentes ou mesmo queriam simplesmente repousar. O cronista imagina uma situação ainda mais difícil e o faz incluindo um pouco de malícia e bom humor: quando o pianista, em vez de peças melódicas “menos agressivas ao ouvido”, prefere a música dita “moderna”. Deve ser um inferno melódico, se o homem não for devoto da música disfônica, politonal, na classe dos modernos que parecem estar fazendo pouco da paciência do auditório... É o momento em que relata um fato que decerto estava acontecendo em Roma quando escrevia essa crônica: o Primeiro Ministro da Itália morava vizinho a uma Condessa que era pianista e gostava de estudar e exibir-se em horas em que o ministro necessitava de silêncio para o seu trabalho. E havia outro motivo para lhe infernar a vida: Quando a pianista não está no piano está com o radio do volume aberto no tipo comum e habitual com que o brasileiro sabe ouvir. Não era fácil a situação do Ministro que [...] não se encontra confortável para pensar, nessa balbúrdia e de reclames comerciais cretinos. Dando continuidade à estória, relata que foi feita uma abordagem inicial, mas os pedidos não foram atendidos. Os outros vizinhos, também incomodados, fizeram queixas aos tribunais, mas a situação se tornou ainda mais parecida com o acontece no Brasil: O tribunal condenou a Condessa, mas esta apelou. E continua... Em um escrito aparentemente corriqueiro, encontra-se um mundo de informações sobre usos e costumes próprios de um tempo, situações que praticamente não mais existem nem podem se repetir. 27 Na crônica “Uma Modinha de Xavier da Silveira” (“História & Estórias” em A República, 05/07/1956), figura o relato da história da modinha “Vem”, mais conhecida como “As andorinhas”. O poema era da autoria de Joaquim Xavier da Silveira, pai de Joaquim Xavier da Silveira Junior, paulista, o segundo governador nomeado para o Rio Grande do Norte no início do período republicano (governou de 10 de março a 19 de setembro de 1890). A melodia foi composta por Antônio Elias Álvares de França, que era funcionário do Palácio do Governo, tornando-se uma das mais queridas nas velhas serenatas natalenses. Tratou do mesmo tema através da abordagem do compositor na crônica “Antônio Elias”, comentada também neste trabalho. Outra vez, focaliza o ambiente palaciano da música em Natal. Cascudo recorda o musicista Luigi Maria Smido, que em duas oportunidades residiu em Natal. Em “Lembrando Smido” (“História & Estórias”, A República, 09/08/1956), registra que, entre 1903 e 1908, contratado pelo governador Alberto Maranhão, ensinou na Escola de Música e regeu a orquestra do Teatro Carlos Gomes, a banda de música do Batalhão de Segurança (Polícia Militar) e diversos outros conjuntos. Retornando a Natal em 1922, permanecendo até 1923, regeu a orquestra do mesmo teatro, ensinou na Escola Doméstica, apresentou recitais. Relembra partes de sua vida pessoal e musical. São valiosos aportes para a memória musical do estado que, nesse período, foi enriquecido por figuras transplantadas de fora que trouxeram novos conceitos de ensino e participação em grupos orquestrais. Cascudo apresenta em “Paula Barros e sua rua” (“História & Estórias”, A República, 01/09/1956) os poucos detalhes que ainda pôde salvar da vida do militar Francisco de Paula Barros, que tem seu nome em uma rua da parte velha de Natal: Sobre Paula Barros disse-me [um informante] ter sido um Alferes do Exército, rapaz estimado por todos, tocando violão e cantando modinhas, e que partira, antes da Guerra do Paraguai, para o Sul e morrera na campanha, combatendo. É mais uma informação que atesta a frequência da atividade musical amadora. Descrevendo em “Felinto Manso” (“Acta Diurna”, A República, 23/01/1959) detalhes da vida de Felinto Elísio Manso Maciel (falecido em 1958), informa: [...] músico (tocava clarineta) no 34 Batalhão de Infantaria. A cada pequena informação 28 como essa, reforça-se a visão que se tem sobre a atividade musical amadora e até profissional na Natal do século XIX. Natal, do meu tempo de rapaz era a cidade dos pianistas. Pianistas de ouvido. Assim, Cascudo inicia essa memória “Lá Menor, Dó Maior” (“Acta Diurna” em A República, 24/03/1959) sobre os pianistas amadores da cidade. Quase todos os rapazes tocavam piano de ouvido. Um piano em cada residência, quase. Constituíam a “música” dos bailes improvisados, os “assustados”, com água fria e cerveja quente. Inesquecíveis. Em seguida, recorda o nome daqueles seus contemporâneos, destacando as peculiaridades de cada um. Havia também os de segunda classe, diz, nomeando alguns e incluindo-se entre eles: e o infra assinado. Era um tempo em que não havia escolas de música e em que dominavam os professores particulares. Os estudos mais adiantados exigiam muito trabalho, tempo e dedicação. Era comum abandonar-se o instrumento e, aproveitando-se do seu parcial domínio inicial, debandar-se para o campo da improvisação, da música “de ouvido”. “Prelúdio em Louvor a Carlos Lamas” (“Acta Diurna”, A República, 09/05/1959) é uma homenagem ao chileno que, após longa permanência em Natal, se mudava para o Rio de Janeiro. Comerciante de artigos musicais e cônsul do Chile, era violinista amador e um apaixonado pela música. Fez renascer e desenvolver-se a Sociedade de Cultura Musical e participou do grupo que criou a Rádio Educadora de Natal, a primeira do gênero na cidade. O texto incide, portanto, sobre uma memória musical que tem caráter tanto local quanto internacional, evidenciando a amplitude do debate sobre o tema. Imagine-se o quanto de recordações eclodiram em Câmara Cascudo ao encontrar, como relata, o livro Canções populares do Brasil, de Júlia de Brito Mendes, editado em 1911. Ali estão as letras das mais populares modinhas cantadas no Brasil do momento, que lhe provocaram evocações, lembranças, emoções. Relembra o gramofone de sua residência, a pilha de discos da Casa Edson, os velhos cantores da cidade, os nossos poetas e compositores modinheiros, o ambiente da cidade de Natal de seu tempo de rapaz. Uma página de evocações e saudades é “Lendo um Livro de Canções”. (“Acta 29 Diurna”, A República, 19/11/1959). Observa-se como a memória musical remete para diferentes suportes (discos, poetas e compositores, a cidade). Dessa vez, comenta a popularidade em todo Brasil da modinha “O poeta e a fidalga”, que relata ter ouvido cantar nos mais distintos lugares e pelos mais diversos intérpretes. Revela, entretanto, não saber quem é o autor da música. O violonista e seresteiro Heronides de França – que ele conheceu pessoalmente – é o responsável pela melodia21. Não é comum uma canção nascida nas distantes “províncias” alcançarem repercussão além de suas fronteiras. É esse o maior destaque da crônica “O Poeta e a Fidalga‟, de Segundo Wanderley”. (“Acta Diurna”, A República, 11/06/1960). Junto com a atribuição de autoria, portanto, surge a alegria pelo sucesso nacional de autores locais. Cascudo evoca, na crônica “A modinha do poeta infeliz” (“Acta Diurna”, A República, 12/07/1960), uma modinha que embalou sua esposa e seus filhos, quando crianças. Ouviu-a em dezembro do ano passado, numa festinha familiar, uma moça cantou uma modinha sentimental, muito aplaudida: Nas horas tristes ao cair da tarde Meu peito arde com saudade e dor: Então relembro as ilusões passadas, Horas magoadas, transpirando amor... Segue comentando a vida do autor dos versos, sem referência à sua música: Sei a história de quem escreveu essa modinha, versos e música. Como ela ainda é cantada, aqui deixo a crônica infeliz de seu desventurado poeta, o Dr. Júlio Apolônio Vaz Curado (1848-1892), pernambucano, elegante, fino, com bigodes atrevidos e cabeleira romântica. A partitura e letra de “O poeta e a fidalga” estão em GALVÃO, Claudio. A Modinha Norte-Riograndense (2000). 21 30 Curioso evidenciar-se a presença de canção tão antiga em uma reunião familiar no final da década de 1950.22 A crônica intitulada “Amor esdrúxulo” (“Acta Diurna”, A República, 28/06/60) inicia com uma referência a um trecho do livro de Leonardo Mota, No tempo de Lampião (Rio de Janeiro, 1930), em que o autor relata que, estando em São Gonçalo dos Campos, no sertão da Bahia, ouviu uma serenata, na qual um dos seresteiros cantava um poema todo montado em palavras proparoxítonas. Mesmo estando muito deturpado, foi identificado pelo pesquisador como sendo “Amor esdrúxulo”, de Segundo Wanderley. Cascudo lembra que o autor estudou medicina na Bahia e que o poema deve datar de 1881/1882. O verso berrado pelo cantor baiano é uma delícia. Primeiro porque prova a popularidade da produção poética, tornada modinha e ainda cantada 20 anos depois da morte do poeta, sabida de cor no interior da província onde ele residira de 1880 a 1889. E nunca mais lá voltara... Esclarece que Segundo Wanderley não a destinou a outra finalidade senão fazer rir a seus colegas do curso médico e amigos que já conquistara na Bahia. E conclui: Certo é que, tantos e tantos anos depois, Leonardo Mota excursionando pelo sertão da Bahia, numa cidadezinha do interior, ouve, numa noite de luar, a voz anônima do homem do povo, de um operário sapateiro, a homenagem sincera e bárbara à memória do grande poeta norte-rio-grandense. “A Modinha do Poeta Infeliz” (“Acta Diurna”, A República, 12/07/1960) traz a indicação do nome do autor, em mais uma contribuição para a memória musical23. Pelas crônicas que Cascudo publicou, pode-se verificar a divulgação do piano, até mesmo entre os homens, na Natal dos inícios do século XX. É o que demonstra em “Átila Garcia”. (Diário de Natal, 05/06/1962). A figura evocada, conhecido cirurgião dentista da cidade, é destacada pelos seus dons de pianista amador. Atila tocava piano. O texto evocado por Cascudo é muito semelhante ao que pertence à modinha “Ao morrer do dia” publicado com partitura em GALVÃO, Claudio. A Modinha Norte-Rio-Grandense (2000). A estrofe por ele transcrita não está entre as cinco recolhidas de fonte popular fidedigna. 23 Partitura e letra em GALVÃO, Claudio. A Modinha Norte-Rio-Grandense (2000). 22 31 Vinha sempre à nossa casa, acordar o meu “Pleyel”. E tocava as peças inesquecíveis para mim. 2.3.2 Instrumentos musicais O artigo “Violão, Voz da Raça” (Revista do Centro Polimático, n. 2, agosto de 1920) transcreve o texto de uma conferência realizada por Luís da Câmara Cascudo no Teatro Carlos Gomes, Natal, no dia 19 de janeiro de 1920, em benefício das Escolas Operárias, do Centro Operário Natalense. Trata-se de um trabalho de juventude, no qual o autor parece preocupar-se mais em demonstrar cultura intelectual do que abordar a informação e a memória, como haveria de fazer depois. A descrição do violão é mais poética do que objetiva e a linguagem é rebuscada, apropriada mesmo para conferência erudita. Não há referências à prática do violão em Natal, mas permeiam menções que começam com gregos de lira ao braço à flor amorosa de três raças tristes, passando por citações e personagens da antiguidade clássica, renascimento, romantismo... A conferência parece seguir normas comuns a esse tipo de espetáculo na época, por vezes com entrada paga, fazendo grande sucesso no meio social e literário brasileiro dos anos 191024. Nesse artigo, há demonstrações de erudição e quase nada de história. Aliás, o mestre, que tanto gostava de violão, deixou de comentar muitos temas violonísticos bem natalenses. A posterior instalação do Clube do Violão e o início do ensino regular (por música) não foram registrados nem comentados por ele. Em longo artigo sob título “Instrumentos Musicais dos Negros no Norte do Brasil” (A República, 27/09/28), Câmara Cascudo aborda com detalhes a temática da música negra no Brasil e procura descrever os instrumentos musicais que embasavam a sua arte. Os Banguelas, Cabindas, Quiloas, Rebolos, Minas, Moçambiques, Angolas, Congos, Cosengues e Monjolos, sacudidos nos porões da escravaria, trouxeram para o Brasil e seu canto, as suas danças, as suas superstições. Em comparação com a música indígena, muito mais rica em instrumentos de sopro, o negro tinha como base a percussão, e é bastante numeroso e variado o arsenal de que dispunha. Sua influência no que haveria de se tornar música brasileira é BRITO BROCA, José. A vida literária no Brasil – 1900 (2005). MACHADO NETO, A. L. Estrutura social da República das Letras (1973). 24 32 indiscutível, marcando decisiva presença em manifestações populares como o carnaval, sem esquecer de sua especial importância nas manifestações religiosas católicas, através de Congadas, Moçambiques e Dança do Espontão, dentre outras, e afro-brasileiras, como o Candomblé. Cascudo alcança também as festas negras, onde seus cantos e ritmos marcados pela percussão eram presença indispensável. Daí passa a descrever cada instrumento, acentuando-lhes a variada sonoridade e enfatizando a rusticidade dos materiais empregados e a notável improvisação na sua confecção. Conclui com lembranças dos sons que ainda ouviu quando criança em Natal. É certo que haja nesse artigo uma retomada de temas presentes em Sílvio Romero (Cantos populares do Brasil), que depois Câmara Cascudo editaria e prefaciaria25. Mário de Andrade, no “Ensaio sobre a música brasileira”, evita falar em “música negra” (branca ou indígena também), prefere “música brasileira”, atitude que também, em outro sentido, manifesta-se em sua rapsódia Macunaíma e indica a dimensão nacional desse projeto estético modernista, superando os critérios de raça ainda tão presentes em Romero26. Cascudo esclarece (“O Cavaquinho é Brasileiro?” Som, n. 12, 16/10/1939) uma dúvida que lhe nasceu de uma leitura de Eduardo Prado (Coletâneas, 1904), em que o autor afirma – seguindo a observação de Balbi – que o cavaquinho era invenção do brasileiro Joaquim Manoel. Penetrando no assunto, chega a conclusões e oferece informações históricas sobre a origem do instrumento. Digna de nota é a posição assumida pelo pesquisador que, contrariando uma crença que beneficiava o seu país, retira dele o posto de pátria do cavaquinho, devolvendo a Portugal, seu legítimo dono, a verdade que lhe pertence. Localizando o livro de Adrien Balbi, Essai statistique sur le royaume de Portugal et d‟Algarve (Paris, 1822), encontra a informação sobre Joaquim Manoel, mulato do Rio de Janeiro: renommé surtout par jouer parfaitement d‟une petite viole française de son invention, apellé cavaquinho. Insatisfeito, procura Guilherme de Almeida (“A música no Brasil”, Rio de Janeiro, 1922): o mulato é citado como notável executor e não se refere a uma sua provável invenção. O “Dicionário Musical” (Isaac Newton, Maceió, 1904), também consultado, nada refere quanto à sua origem. Mais 25 ROMERO, Sílvio. Cantos Populares do Brasil (1985). ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre a música brasileira (1962). ANDRADE, Mário. Macunaíma (1997). Gilda de Mello e Sousa enfatiza a grande importância da música na rapsódia Macunaíma. SOUSA, Gilda de Mello e. O tupi e o alaúde (1979). 26 33 resumido ainda é Cândido de Figueiredo. Entrando pessoalmente no assunto, informa: O cavaquinho, também com este nome em Portugal, é de origem da ilha da Madeira, onde o chamam de “Braguinha”. E, em conclusão: O cavaquinho é português, nacionalizado pelos nossos sereneiros. Instrumento de modinha e samba, jamais ultrapassou seu limite, valorizado nos “conjuntos” convencionalmente “malandros” da música carioca. Nessa incursão histórica, o autor explora a origem do instrumento sem ufanismo nacional. Ao mesmo tempo, evidencia uma forte matriz lusa para o debate sobre aspectos da nacionalidade. “Ressurreição do Piano” (“Acta Diurna”, A República, 29/09/1945) pode ser considerado um dos artigos de Cascudo portadores de um título indicando um tema musical que, na realidade, não trata propriamente de música. É mais uma apreciação sociológica em que comenta o fato de o piano estar modificando um hábito secular ao tomar o lugar das conversas em família. Em vez das velhas palestras de outrora, abriase o piano, como a um instrumento de suplício, e a menina de casa ia tocar, “para exibir o quanto sabia”. Começa citando Ribeyrolles27, um visitante do Rio de Janeiro que, em inícios do século XIX, comentara haver o piano assassinado a arte de conversar: é esse o tema central da crônica. Comentando a chegada do “rádio e da radiola”, critica o programa do rádio por não se poder escolher o que se vai ouvir. Argumenta que a sucessão dos programas e a inacessibilidade da escolha tornam a conversa impossível. Para lutar contra isso, vislumbra uma opção: O piano, na lembrança imprevista, numa saudade que é legítima defesa, está ressuscitando. Já reaparece enfrentando a tonitruante fecúndia radiolesca. Adotando um comentário de Lyn Yutang (não indica a obra), chega a concluir que o rádio seria uma maravilha se não fossem “os programas”. O rádio impõe sua programação já feita; o piano, entretanto, pode ser programado. Para amenizar o problema, sugere a solução do retorno ao velho hábito e justifica: [...] o piano reivindica a vantagem de ter os programas do tamanho da paciência ambiental. 27 RIBEYROLLES, Charles. Le Brésil pittoresque ou Brasil pitoresco: histoire, description, colonisation, accompagné d‟un album de photos, panoramas, paysages et costumes de Victor Frond (1861). O autor esteve no Brasil a partir de 1858, exilado por Napoleão III. Nasceu em Martel, França (1812), e faleceu no Rio de Janeiro (1860). 34 Qual será o instrumento musical mais popular no Brasil? Voto pelo violão. Assim inicia Câmara Cascudo em “Gosta de Violão?” (“Acta Diurna”, A República, 19/05/1948), versando sobre um instrumento que não tocava, mas muito admirava. Comenta a presença do violão em todos os ambientes, em todas as classes sociais e econômicas. Destaca, igualmente, sua importância na área erudita e o nome de seus intérpretes internacionais mais conhecidos: [...] com essas credenciais, instrumento sagrado pelas mãos de uma Robledo, um Barrios, um Segovia, um Llobet, um Tarrega, um Sors, vivendo todos os clássicos, todos os românticos, todos os modernos, o violão, proletário e aristocrático, bebedor de champanhe e de cachaça, tem seu devotos, seus amigos, seus fiéis, em todas as classes sociais do mundo. Entretanto, voltando ao tema da formação clássica, lamenta a inexistência de estudos regulares do instrumento em Natal, pergunta e cobra: Nesta cidade do Natal mais de mil pessoas tocam o violão. Quantas por música? Quantas realmente sabemos recursos e valores do instrumento popularíssimo? Quantas moças e rapazes desejariam saber tocar o violão? Por que ainda não foi possível interessar a um professor de violão para fique na cidade, ensinando, elevando, vulgarizando o musical violão? Após mencionar o nome de Amaro Siqueira, introdutor do violão clássico em Natal, sonha com um recital em grande estilo: Já ouvimos e aplaudimos um Amaro Siqueira. Imaginemos uma exibição violonística de seis, oito, dez bons alunos. E conclui: Se gosto, gostas, gostamos, do violão, por que não dotá-lo de ensino regular? Em longo artigo denominado “Origem da Cuíca” (A República, 24/05/1949), comenta a história desse instrumento e nega que seja criação africana. Esclarece sua origem árabe, trazida para o Brasil pelo negro escravo. Afirma: A cuíca, que julgamos africana, foi efetivamente trazida para o Brasil pelos escravos bantos, mas estes já a tinham recebido dos árabes. Informa não haver encontrado nenhuma referência à cuíca entre os ciganos nas recentes pesquisas que fizera para anotar “Os ciganos” e “O cancioneiro dos ciganos”, 35 de Melo Moraes Filho, a serem reeditados. Nada de cuíca em centos e centos de páginas de algumas dezenas de autores. Essa é mais uma de suas abordagens da formação cultural do Brasil em que destaca, além do legado português-africano-indígena, uma pequena, mas muito popular e tornada brasileiríssima contribuição, dessa vez árabe via africanos – a nossa indispensável carnavalesca cuíca. 2.3.3 Música e poesia popular O escravo alforriado Fabião Hermenegildo, mais conhecido como Fabião das Queimadas, é o mais famoso dos cantadores norte-rio-grandenses que, ao estilo dos trovadores medievais europeus, divulgava as velhas gestas regionais em forma de canções. Cascudo relata, no longo artigo “Fabião das Queimadas” (A República, 02/08/1928), seu encontro com o cantador: Ao primeiro pedido, tirou a rabeca dum saco. Colocou-a no peito à velha maneira dos troubadours. Arranhou notas ásperas. E cantou. Pena que se tenha detido apenas nos aspectos literários do que ouviu com ouvidos de folclorista, sem apresentar nenhum comentário à parte musical. A caracterização do cantador é feita em uma evocação dos trovadores medievais, referência clássica para uma tradição de poesia e de identidade regional ou nacional. A ênfase no literário, portanto, é intensa. Esse personagem é retomado em Vaqueiros e Cantadores (primeira edição em 1939), valorizado no plano qualitativo (o cantador se apresentou para o Governador do Estado e seus convidados no Palácio do Governo). É digno de nota o fato da aceitação de um artista negro no meio da elite política e cultural potiguar28. Em outra crônica, recorda os nomes dos grandes acompanhadores de modinhas de seu tempo de rapaz, citando as canções mais populares, os sucessos seresteiros do momento (“Acompanhamento de Modinha”, “Acta Diurna”, A República, 26/04/1940). Igualmente, lamenta o desaparecimento desses musicistas, que desempenham tão importante papel na execução desse tipo de canção, acompanhada tanto ao piano como ao violão. Refere-se a alguns membros da família Albuquerque Maranhão, chefes 28 CASCUDO, Luís da Câmara. Vaqueiros e Cantadores (1968). 36 políticos prestigiados, a elite socioeconômica do estado, que também se destacavam pelo gosto pela modinha e adequação no acompanhamento. Encerra sua crônica lembrando Waldemar de Almeida, que está salvando as modinhas, a ouvir alguns cantores do passado, que muito podem contribuir para seu trabalho de recuperação musical. Era uma chula de Joaquim Lourival de Melo Açucena, letra e música, popularíssima em toda província. Significava uma pequenina sátira inofensiva, desabafo de eleitor provincial, desiludido e desencantado, em rimas simples que depressa se tornaram inseparáveis das serenatas de outrora. Assim explica Cascudo o motivo da “Acta Diurna” intitulada “A „Política‟ de Lourival Açucena”. (A República, 18/10/1942). Açucena (1827-1907) é o mais antigo poeta de que se tem notícia no Rio Grande do Norte. É, também, o primeiro que se conhece a musicar ele próprio os seus versos. Esse poema, datado de 1884, foi incluído posteriormente no livro póstumo Versos, de Lourival Açucena, reunidos e publicados pelo próprio Câmara Cascudo29. Impressiona a atualidade do tema, mesmo se tratando de versos escritos em pleno período imperial. As críticas que contém bem poderiam ser aplicadas aos dias atuais. A linha mestra do longo poema é a resposta que dá o poeta ao seguinte questionamento: Por que deixei a política? A reprodução de duas quadras pode ser o bastante para a percepção do clima da obra: Prometem ao pobre povo Um governo angelical, A terra da promissão, Um paraíso ideal... Porém, quando grimpam Cessam as cantigas E tratam somente De suas barrigas. E nem mais conhecem Aquele bom moço Com quem já viveram 29 CASCUDO, Luís da Câmara (Org.). Lourival Açucena: versos (1927). 37 De braço ao pescoço... Infelizmente, mesmo popularíssima em toda a província conforme afirmou Cascudo, não foi possível encontrar quem soubesse cantar a melodia de A Política, o que impossibilitou o seu resgate 30. Detalhe curioso da história de Lourival Açucena é que lhe havia sido prometido apoio para tornar-se deputado provincial, o que nunca foi cumprido. A razão de tal atitude foi que o chefe político local [...] lhe tinha garantido um lugar na Assembléia mediante a condição do Sr. não cantar no coro, pois, como se expressou, achava indecente um deputado feito mestre de orquestra. Mas o Sr. não tem feito outra coisa senão cantar e tocar nas igrejas, na rua, em toda parte31. Tal incidente provocou a vingativa composição, decerto a mais antiga crítica política de que se tem notícia no estado. Estes versos tornaram-se populares em todo Brasil e foram transcritos em diversos jornais portugueses do tempo32. Câmara Cascudo transcreve em sua “Acta Diurna” “Um Soneto Musical” (A República, 10/09/1943) o texto de um poema publicado na revista natalense Oásis, de 17 de junho de 1896. Embora o tema seja o dilúvio universal e o título “Soneto Lírico”, é extremamente criativo ter o autor (nunca identificado) iniciado cada verso com o nome de uma nota musical. O mais impressionante é que essas notas estejam em escala ascendente e, em seguida, descendente: são sete notas subindo a escala e sete descendo, o que se encaixa perfeitamente nas 14 estrofes de um soneto. Vê-se aí um Câmara Cascudo leitor-autor, com as antenas direcionadas para tudo o que acontecesse no campo musical. Na “Acta Diurna” “Cego Cantando e Vendendo Folhetos em Currais Novos” (A República, 13/11/1943), Câmara Cascudo evoca os cegos cantadores, figuras comuníssimas nos sertões do nordeste. Diz ele: 30 Algumas das melodias de Lourival Açucena tem suas partituras em GALVÃO, Claudio. A Modinha Norte-Rio-Grandense (2000). 31 CASTRICIANO, Henrique. “Lourival e seu tempo (VI)” (1965, p. 204). 32 CASTRICIANO, Henrique. “Lourival e seu tempo (VI)” (1965, p. 209). 38 Neste outubro, vindo de [da cidade de] Caicó, durante minutos ouvi, na feira de [da cidade de] Currais Novos, manhã de uma segunda-feira bonita, um cego cantando e vendendo folhetos de versos populares. Essa atividade é antiga e clássica, e não vou citar a Homero, cego, cantando as rapsódias pelas estradas da Grécia, povoada de deuses. Após uma breve incursão na história mais remota desses trovadores, conclui: Tivemos e temos grandes cantadores cegos, invencíveis na improvisação, soberanos no desafio, reis nos ritmo dos martelos agalopados, príncipes na carretilha, imperadores nas colcheias. É o Cascudo sertanejo, tantas e tantas vezes manifestado. Uma grandiosa tradição pouco conhecida, pouco divulgada e menos valorizada em um país de admiração por títulos bizarros e valores estrangeiros; não imaginaria ele que a atualidade – sessenta anos após esse seu escrito – apagaria mais ainda os vestígios dessas e de outras manifestações tão legítimas de nossa cultura. Não poderia fazer melhor do que estabelecer uma conexão com a tradição clássica, com usos e costumes da velha Grécia, felizmente ainda valorizados. Cascudo inicia relatando na “Acta Diurna” “A Reserva dos Cantadores” (A República, 31/01/1945) um episódio acontecido quando Lord Bekford estava em Lisboa, no tempo de Dona Maria I. Referindo-se ao luxo e ao conforto de que ele desfrutava, um frade loio – pertencente à Congregação de São João Evangelista – teria dito: O inglês é tão rico que os próprios talheres de prata são de ouro!. Aproveitando o sentido dessa expressão, direciona-se aos cantadores nordestinos: Os nossos cantadores, esquecidos pelos estudiosos no Brasil, um dia merecerão frase semelhante ao espanto louvaminheiro do frade [...]. O pior cantador é quase excelente. Enfatiza o seu pensamento ao afirmar que o maior poeta negro do Brasil é o cantador Inácio da Catingueira, e não Cruz e Souza, que era branco por dentro. Enfocando os poetas sertanejos (como o fez no escrito precedente), indica as maravilhas de uma literatura oral assombrosa de recursos, de imagens, de curiosidades, de imprevistos, de originalidade. E afirma, ainda enfático: Nenhum documentário estrangeiro suporta o confronto. Recorda que muito da literatura clássica grega e romana ainda vive no sertão, trazida pelo colonizador europeu e mantida pelo 39 isolamento secular a que foram reservadas as distantes regiões do interior nordestino: [...] continuando o vocabulário rico e sonoro que se perdeu nos lábios dos letrados, permanecendo clássico no sertão e artificial para o escritor. Essa crônica data de janeiro de 1945. Caberia indagar se tal repositório cultural ainda permanece vivo, considerando-se que o progresso encurtou as distâncias e introduziu, no sertão antes virgem, elementos modificadores e estranhos àquele ambiente. Citando nominalmente inúmeros eruditos internacionais que documentaram sua cultura e os indicando como exemplo, diz, voltando ao seu país: Toda essa reserva um dia será convocada e, feliz a geração de estudiosos que a revelar ao Brasil mental. Conclui, regozijando-se pelo que foi feito e lamentando o que se perdeu: Um dia um grupo olhará o material reunido por Silvio Romero, Pereira da Costa, Leonardo Mota, reunindo ainda mais, o estudará, lamentando o que se perdeu pela vaidade e o que morreu por incúria... Nove anos mais tarde, seu amigo e conterrâneo Oswaldo de Souza empreenderia com sucesso uma pesquisa musical pela região do médio Rio São Francisco, oportunidade em que recolheu mais de 400 exemplares do mais autêntico e original folclore daquela região. Parte desse material foi publicada em dois volumes pelo Conselho Federal de Cultura, com o título “Música folclórica do Médio Rio São Francisco” (v. 1, 1979; v. 2, 1980). O terceiro volume nunca foi publicado33. A polícia do Rio de Janeiro, então Distrito Federal proibiu que se cantassem três músicas de carnaval, depois de haverem sido impressas, gravadas e divulgadas. Cascudo, na “Acta Diurna” “A Letra das Músicas Carnavalescas” (Diário de Natal, 18/02/1948), reconhece a pobreza, mediocridade e vulgaridade das letras de muitas músicas carnavalescas: Meia dúzia de idiotas, (pertenço a essa meia dúzia) há anos e anos vem lutando contra a vulgaridade criminosa das letras que sujam as músicas de carnaval, músicas sempre deliciosas de graça melódica: vivazes, sugerindo movimento, alacridade, bom humor. Em outras crônicas, já havia abordado o assunto. Sugere até a criação de um órgão de censura para as letras, antes da divulgação... 33 SOUZA, Oswaldo de. Música folclórica do Médio Rio São Francisco (v. 1, 1979; v. 2, 1980). Detalhes da viagem e pesquisa em GALVÃO, Claudio. Oswaldo de Souza: o canto do Nordeste (1988). 40 2.3.4 Formação de músicos e de público A crônica “Por que não teremos um Centro Musical?” (A República, 03/05/1928) é a primeira em que Cascudo ataca diretamente o problema da ausência de estruturas musicais que sustentassem tal atividade em Natal. Queixa-se do marasmo musical: bandas militares apenas quando chegam autoridades ou para solenidades oficiais, raros recitais eruditos por artistas visitantes. Dispara uma pergunta: Por que os elementos esparsos não se reúnem e lutam pela educação artística de Natal? Evoca o Centro de Cultura Musical do Recife como modelo e passa às sugestões: Um Centro com diversos grupos distintos de amadores, com suas alunasmestras que, mês em mês, dissessem, com as duas mãos em cima de um teclado, coisas diversas dos nossos Alô boy, Tea for two, For me and my girl; para vinte ou cinqüenta sócios teimosos em ter uma cidade a sério. [...] Nós não podemos mandar vir o violinista Manen nem o pianista Cortot? Usaremos a prata da casa. Chama a atenção para a existência de muita gente de boa qualidade sendo tolhida pela timidez. É, então, que se dirige diretamente ao musicista italiano Thomaz Babini (residente em Natal desde 1908 e casado com uma potiguar), enaltecendo-lhe as qualidades de violoncelista e professor de piano, e sugere ser ele o único capaz de liderar o movimento. Há uma preocupação com as bases formais do ensino da música (leitura, diversidade), diferente das tradições populares. O ensaio posterior de Mário de Andrade, “Evolução social da música no Brasil”, datado de 1941, demonstra preocupações similares, chegando a se referir à música possível no período colonial como submissa aos batepés irremediáveis da nossa tapuiada34. O escritor potiguar já registra uma invasão de música estrangeira (títulos em inglês) no gosto local, em que a educação musical aponta para uma elevação de nível e uma produção específica. A menção a alunas-mestras enfatiza a predominância feminina nessa atividade – talvez relacionada a uma maior disponibilidade de tempo livre para a prática musical. 34 ANDRADE, Mário de. Aspectos da música brasileira (1975, p. 19). 41 Mário de Andrade, no discurso de paraninfo do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, comenta os limites do ensino de música no Brasil, evidenciando que as discussões de Câmara Cascudo fazem parte de uma reflexão mais ampla em termos da cultura brasileira35. A primeira das crônicas com o títutlo de “Musicalerias” (A República, 01/06/1928) escritas por Cascudo não traz sua assinatura. O autor se esconde sob o pseudônimo de Nitchewo, mas o teor do escrito não deixa dúvidas quanto à sua autoria. Tem como subtítulo “A ideia do professor Thomaz Babini” e descreve um encontro com esse violoncelista residente em Natal realizado na redação do jornal A República, bem como a conversa que tiveram. A idéia proposta era: Um Centro Musical Feminino que reúna não somente as alunas do curso Babini, mas outros elementos que desejem participar neste trabalho de arte e de bondade artística. É digna de nota a não inclusão do sexo masculino no projeto. Seria o corpo discente de Babini composto exclusivamente por mulheres? O apelo que se faz é direto e muito claro: “Convidamos as senhoras e senhoritas que se interessem pela música” (grifo do autor). Enfim, Nitchewo se torna Cascudo quando diz: Babini e eu ficamos cheios de esperanças. Sugere, portanto, que a música é mais ocupação das mulheres (talvez pelo maior tempo disponível para o diletantismo). Assim mesmo, evidencia preocupações com uma ampliação da atividade, em um universo público superior ao que as aulas de Babini já alcançavam. Vale lembrar que a mulher que, na época, tocava um instrumento musical, era mais valorizada como candidata ao casamento, estabelecendo-se certa relação com o dote feminino. Nesse sentido, o raciocínio parece se dirigir mais para mulheres de um nível social médio ou alto. Na segunda “Musicalerias” (A República, 14/06/1929), o autor demonstra plena euforia com a ideologia de progresso reinante durante a administração do governador Juvenal Lamartine (1928/1930) e sente ares de modernidade na Natal de 1929: Com 35 ANDRADE, Mário de. “Cultura musical: oração de paraninfo – 1935” (1975). 42 Aéro-Club, avião, trens diários, três cinemas, bonde elétrico, luz razoável e auto corredor temos outra impressão de modernidade. E segue enumerando instituições e serviços que elevavam o padrão de vida da cidade. Então, pergunta: Mas por que será que este impulso não chega até a música? Retornando à carga, acrescenta: Não há em toda uma cidade de quarenta mil habitantes um só núcleo de amadores musicais. Não considera, nesse artigo, portanto, os músicos populares tradicionais como “amadores musicais”. Busca algo mais formal na música – escrita, desenvolvimento de uma técnica apurada – que só poderia se desenvolver através de instituições permanentes e tecnicamente orientadas. Conclui com a pergunta já feita e ainda não respondida: Por que não se fará um Círculo de Cultura Musical? O cronista, em “Musicalerias V” (A República, 23/10/1929), aborda, pela primeira vez, o nome de um musicista erudito de origem local e comenta seu recital. Waldemar de Almeida – que tantas vezes haveria de ser tema de seus escritos –, depois de experiência musical em Rio de Janeiro, Paris e Alemanha, apresentou a 20 de outubro o seu concerto no Salão Róseo do Palácio do Governo de Natal. O programa constou de uma primeira parte com obras de Chopin e, na segunda, de autores diversos. Cascudo comenta à maneira dos cronistas musicais cada música executada, descendo a detalhes e pormenores: O Sr. Waldemar de Almeida deu-me a impressão de um ótimo temperamento musical. Estudo impessoal, correto, bem educado, consciencioso, límpido. Estuda, toca bem, expressa bem. Mais adiante, diz: O Sr. Waldemar de Almeida pode ser tido como uma expressão inteligente, que se bastará. Não escondo a segura confiança que tenho em seu nome e no seu futuro. Com essa afirmação, antevia um dos mais importantes nomes do futuro musical do Rio Grande do Norte e estimulava sua evolução. O escritor demonstrava, assim, seu entusiasmo com uma pessoa nascida no estado, residente em Natal, mas portadora de formação erudita e modelos cosmopolitas. Sua sensibilidade já o via como capaz de atuar localmente. O fato de sua audição haver sido realizada no Salão Nobre do Palácio do Governo e não no Teatro Carlos Gomes indica o ambiente elitista em que esses eventos 43 eram eventualmente realizados. Destaque-se que o recital era uma homenagem ao governador Juvenal Lamartine. A 6ª crônica com o título de “Musicalerias” (A República, 13/11/1929) traz a boa notícia da primeira audição do Grêmio Feminino de Natal. Tomou forma a sugestão de Cascudo através do trabalho do professor Thomaz Babini. Em 9 de novembro daquele ano, suas integrantes apresentaram-se no Salão Róseo do Palácio do Governo, todas mulheres, como já indicava a denominação. Pelo menos uma instituição musical nascia na cidade, entretanto, para breve sobrevida, havendo realizado poucas apresentações. Considere-se o fato de que, assim como a audição referida no item anterior, essa também se realizou no Palácio do Governo. É oportuno lembrar a personalidade elitista direcionada para o diletantismo sem o menor objetivo de formação do músico profissional. A crônica “Musicalerias VII” (A República, 26/04/1930) tem como subtítulo “Curso Waldemar de Almeida”. Novamente, Cascudo se põe na posição de crítico musical para comentar a apresentação dos alunos (um homem entre os participantes!), realizada a 21 de abril daquele ano. A cada comentário, sente-se a intenção de oferecer palavras de estímulo aos jovens musicistas. Essa foi a terceira audição do “Curso Waldemar de Almeida”, que se tornaria a mais longeva das instituições musicais de Natal. Ela evidencia, portanto, a plena atuação de Waldemar de Almeida na cidade, consolidando o projeto anteriormente anunciado por Luís da Câmara Cascudo. Já em “Canto Orfeônico”, publicado na revista natalense Som (n. 2, 16/09/1936), Cascudo identifica a prática musical do canto em conjunto como um elemento educador por excelência, formador do gosto pela música e estimulador de sensibilidades. Vivia-se o momento em que o Brasil recebia grande impulso inovador graças à ação monumental de Villa-Lobos e aos apoios recebidos do governo do país. A vinculação com o nacional e o folclore demonstra idênticos caminhos seguidos por Mário de Andrade e VillaLobos. A publicação de “Normas pianísticas”, de autoria do pianista Waldemar de Almeida, ensejou comentários de Cascudo na recensão constante da “Acta Diurna” que tem o título do livro, publicada em A República (11.06.1941). Começa afirmando: O Sr. 44 Waldemar de Almeida é o primeiro norte-rio-grandense que sistematizou o ensino de música em Natal. Em seguida, recorda como era insatisfatório o ensino musical na Natal dos começos do século XX, relembra a Escola de Música criada em 1908 – o primeiro ano do segundo mandato do governador Alberto Maranhão (1908-1912) – fechada pelo seu substituto e comenta: Tivemos o mesmo professor, o mesmo saudoso Alexandre Brandão, mártir das nossas vadiações. Indicando a profundidade do relacionamento com o autor descreve duas de suas peculiaridades: Esse grave maestro Waldemar foi tocador de valsas e two-steps e um dos melhores assobiadores da cidade. Refere-se aos seus familiares e a relação deles com a música. Menciona os cursos que tivera no Instituto Nacional de Música no Rio de Janeiro, depois na França e Alemanha, e o seu retorno a Natal. Comentando “Normas pianísticas”, afirma: É o livro indispensável e também insubstituível, o primeiro na espécie para atender as curiosidades e também as necessidades do ensino dessa disciplina. 2.3.5 Diálogos com outros pesquisadores Câmara Cascudo registra, no texto “Musicalerias IV” (A República 16/10/1929), que Mário de Andrade lhe enviara um recorte do Diário Nacional, tratando da participação do pesquisador paulistano, através de trabalho remetido no Congresso de Cultura Popular que se reuniu em Praga. O tema desse trabalho era “Influência Portuguesa nas Rodas Infantis do Brasil”. Esse artigo é um comentário sobre o tema e suas variantes. Essa notícia evidencia a afinação do estudioso potiguar com o pensamento de Mário de Andrade e também indica vieses europeus do debate modernista no Brasil, seja no tema, seja no espaço de sua divulgação original. O cronista transcreve um trecho da História da Música, de Renato de Almeida, no qual se encontram referências que conferem importância excepcional ao Bumba meu boi: O Bumba-meu-boi é o folguedo brasileiro de maior significação estética e social e bem merece uma forma artística duradoura36. Cascudo recorda que Mário de Andrade havia sugerido a Luciano Gallet uma suíte para orquestra, utilizando os motivos musicais do Bumba-meu-boi, talqualmente fizera, noutro processo, o russo Mussorgski, com o seu Tableaux d‟une Exposition, 36 ALMEIDA, Renato de. História da música (1958). 45 cada quadro sugerindo uma expressão musical. Tal projeto não pôde ser realizado devido ao falecimento de Gallet em 1931. É o teor de sua crônica “Bumba-Meu-Boi”. (“Acta Diurna”, A República, 17/09/1943). Na “Acta Diurna” “Oneyda” (Diário de Natal, 05/05/1948) Cascudo focaliza a obra da pesquisadora Oneyda Paoliello de Alvarenga (1911-1984). Oneyda é uma pequisadora em quem podemos confiar cem por cento, afirma com convicção. O grande trabalho realizado na área da música brasileira é apenas destacado por uma de suas obras: Oneyda está fazendo um trabalho magnífico de dedicação, de clareza, e de segurança mental. Das mãos lhe sai o que melhor podemos desejar. Um exemplo é essa MUSICA POPULAR BRASILEÑA,37 edição mexicana, livro de informação precioso e que alto serviço presta a quem o lê. Uma carta de um professor estrangeiro que pedia a Cascudo inúmeras e variadas informações sobre a música brasileira levou o escritor a múltiplas considerações. Imaginando o quanto de trabalho seria necessário para atender ao pedido, comenta que poderia fazê-lo facilmente graças a um autor brasileiro: Renato de Almeida e sua História da Música Brasileira. Diga-se, também, serenamente, que este livro é único na bibliografia especializada. É sobre o que versa a crônica livre “Santo de casa é que faz milagre” (A República, 04/02/1950). São muito numerosas as referências e as citações sobre o particular amigo Renato de Almeida e sobre seus trabalhos. Na crônica “Contribuição para o estudo da modinha” (“Acta Diurna”, Diário de Natal, 26/03/1962), apresenta comentários a respeito da publicação do livro com esse título, publicado por Eunice Evanira Pereira Mendes, e aproveita para apresentar algumas considerações referentes à matéria, que sempre gozou de sua particular simpatia. O trabalho foi publicado na “Revista do Arquivo”, Prefeitura do Município de São Paulo – Divisão de Arquivo Histórico, São Paulo, 1959. 37 ALVARENGA, Oneyda. Musica popular brasileña (1947). 46 Em artigo intitulado “Mário de Andrade”, publicado no Boletim de Ariel (Rio de Janeiro: junho de 1934, n. 9), Cascudo faz um comentário de todos os livros publicados por Mário de Andrade até aquela data. Quanto aos livros sobre música, inicia com o Ensaio sobre a música brasileira, publicado em 1928. Começa relacionando o livro com a viagem do autor: A documentação melódica, em sua proporção maior, sai do Norte e aqui Mário sambou os melhores sambas e gritou entusiasmado nos melhores cocos. É o primeiro ensaio sobre a música brasileira feitos sobre quem sabe música e recolhe material por mão própria. A documentação impressa é insignificante porque o Ensaio sobre a música brasileira é uma revelação de riqueza folclórica. Em seguida, passa a comentar o Compêndio de história da música brasileira (1929) e sua segunda edição, em 1933. Assim, Cascudo se pronuncia, enfático: Pela primeira vez alguém escreve uma história absolutamente pessoal, estridentemente livre, com uma capacidade de análise e um poder de síntese que o velho Lavignac38 desconheceu irremediavelmente. O destaque especial de Cascudo é a forma como Mário se expressou, indicando irreverências à sisuda gramática de Eduardo Carlos Pereira. Modinhas imperiais (1930) recebeu um breve comentário em que Cascudo utiliza apenas três breves linhas com menções elogiosas. Mais adiante é a vez de Música doce música, de 1934. É uma coleção de crônicas sobre assuntos musicais publicados no Diário Nacional de São Paulo. Resume seu apreço pela publicação dizendo que ela é indispensável na livraria de qualquer músico e de qualquer que suspeite gostar de música. Recorda os dias passados em viagem pelo interior do Rio Grande do Norte: Mário anotou tudo, cantigas de cegos, ritmos de marcha, paisagem, tipos, versos, cantoria. Aproveita para registrar um fato curioso: De tanto andar atrás de Bumba-meu-boi ou zambês, pegou o apelido de Doutor do boi, e, nas ruas, os homens do povo apontavam-no sorridentes: “Aquele é o doutor que veio de São Paulo estudá o boi...” E era mesmo. Refere-se ao sonhado Na pancada do ganzá, onde, segundo Cascudo, nós teremos uma surpresa para os estudiosos da música brasileira. 38 Cascudo se refere a Alexandre-Jean Albert Lavignac (1846-1916), compositor e musicólogo francês, autor de obras teóricas, com a Encyclopédie de la musique. 47 A crônica “Desafio africano”39 focaliza um dos temas preferidos e mais comentados pelo escritor. Revela, especialmente, o clima de entendimento nem sempre concordante que existia na sua relação literária com Mário de Andrade. Inicia abordando o assunto com muita cautela, tomando habilmente o renomado sociólogo Roger Bastide, professor da Universidade de São Paulo no período de 1938 a 1984, como seu aliado para a questão do desafio nordestino, que já havia provocado debate com o pesquisador paulistano, como aconteceu com o artigo “Vaqueiros e cantadores” (datado de 11-II-940), constante de O empalhador de passarinhos, livro que Mário publicou em 1944. O estudioso francês publicou um livro em que considera que o desafio não era comum na África. Cascudo diz que tomou conhecimento não através da publicação, mas através de um artigo que Mário de Andrade lhe remetera, intitulado “O desafio brasileiro”, publicado no Estado de São Paulo a 23 de novembro de 1941. Nesse artigo, Mário comenta o problema do desafio. Cascudo havia assegurado antes que não tinha desafio na África, da forma como ocorre no Nordeste do Brasil. Mário tem um entendimento diferente, aceitando a ocorrência africana do desafio. Cascudo, por sua vez, opta por outras origens da atividade trazida pelos portugueses. É mais um capítulo na história dos debates entre os dois pesquisadores, que não concordavam em todas as ocasiões. Cascudo informa que Mário apresenta o depoimento de alguns autores que optam pela presença do desafio na África, os quais ele não aceita. Esses desafios, diversos e não endossando matéria contrária ao que disse, são recentes e incaracterísticos. Figuram como canto de trabalho ou pormenor cerimonial. Continua: Não lhes encontro em caráter de pugna em versos, de luta verdadeira, cantador contra cantador, constituindo eles próprios o cerimonial, o centro de interesses para a curiosidade ambiental. A partir desse ponto, Cascudo comenta os autores que leu sobre o assunto afirmando que em nenhum deles encontrou referência à ocorrência do desafio na África da forma como acontece no Nordeste brasileiro. Então, assume uma posição bem peculiar: Que poderia eu fazer? Depois dessas leituras? Escrevi que o desafio de improvisação, acompanhado musicalmente, como tínhamos no Brasil, não 39 Cópia do original, com indicação de publicação no Diário de Notícias (28/12/1941). Acervo Ludovicus – Instituto Câmara Cascudo, Natal/RN. 48 havia n‟África. Pelo exposto o prof. Roger Bastide, aceitando minha afirmativa, estava pisando terra segura porque eu a fora examinar e bater por todos os meios. E ainda reforça: Que poderia eu fazer em face de tanta gente ilustre negando a existência dessa luta em versos? Alegria maior teria em registrar-lhe a vida e mostrar que a solidariedade negra ao desafio era um encontro de hábitos dentro de sua literatura oral. Lembra, ainda, que nenhum estudioso do negro no Brasil faz referência à ocorrência do desafio entre eles. Encerra dirigindo-se a Mário, o que mostra ainda mais as origens de suas convicções: Assim, ao brilhante mestre paulista, informo que a frase sobre o desafio africano não foi leviana nem individualmente escolhida. Representou a soma de quanto me foi possível ler, na província e na Biblioteca Nacional, quando vou ao Rio de Janeiro. Um desafio atual nas terras africanas, filmado, gravado, fixado, surgiria para mim como uma assimilação de habilidade dos brancos feita pelo negro. Não era possível que o desafio, querido e tradicional como uma dança ou um canto, deixasse de ser vivido e registrado nos grandes atravessadores do continente negro. 2.3.6 Música e crenças populares Na crônica “A música e as superstições” (A República 24/01/1929), Câmara Cascudo aborda o elemento superstição e sua frequência nos mais variados ambientes e atividades humanas. Seu enfoque especial é a conhecida valsa Ramona, que considera tão linda quanto cheia de suavidade. Reforça ainda que A letra da valsa nada tem de trágico. O cronista sustenta não conhecer nenhum exemplo ou comprovação de que essa música tenha causado dano a alguém, apesar de certa lenda que a cerca com esse significado. Na impossibilidade de explicação de tal fato, o cronista lamenta apresentando sua posição contra essa crença: Mas veio a fatalidade supersticiosa manchá-la com um defeito que ela absolutamente não possui: o de trazer desgraças, tragédias, desassossegos. 49 A “Valsa de Ramona” é de autoria de Mabel Wayne. Mesmo com a “má” fa ma que possuía, ela foi gravada por diversos cantores brasileiros. Um exemplo de sua popularidade: a letra de Ramona (tradução de S. Morais) está publicada no n. 1 da revista natalense Cigarra (nov. 1928). É a única vez em que essa revista publica uma letra de música. Outro exemplo: a Casa Americana, de Natal, publicou no jornal A República (26/08/1929) um anúncio oferecendo partituras de diversas músicas, entre as quais está relacionada Ramona. A “Santa Cruz da Bica” continua sendo um local tradicional da cidade de Natal, alvo da veneração popular e festejada anualmente no dia 3 de maio, dia da Santa Cruz. Além das festas profanas, havia a indispensável parte religiosa, que Cascudo busca trazer de um passado já distante, observando que não havia assistência de um pároco. Um dos fiéis tirava o terço cantado pelo povo, com acompanhamento musical. Evoca também fatos e personagens do momento: Também as primeiras cantoras eram duas cegas, famosas pela voz límpida, de extensão notável. Adriana cega, tocava pandeiro, e Maria Rosa Ferreira, violão. Esta última ficou célebre por ter entoado um bendito da chuva, com tanta piedade e força dramática que, terminado o canto, a chuva desabou, interminável. Observe-se, em “Santa Cruz” (“Acta Diurna”, A República, 01/05/1940), o valor atribuído a relatos de fatos que Cascudo não presenciou, mas que pertenciam à memória popular, decerto como tentativa de sua valorização e preservação dessa memória. Apesar do mórbido motivo inspirador, a canção “Vozes de um anjo” era muito popular em Natal nos inícios do século XX. Cascudo comenta o assunto em “Vozes de um anjo” (“Acta Diurna”, A República, 24/05/1942), destaca o nome de Segundo Wanderley, autor do poema, e explica os detalhes de sua criação, inspirada em um fato verídico: é uma carta de uma criança falecida (um “anjo”) a seus pais, tentando consolálos por sua ausência. Note-se a sensibilidade doentia muito comum nos poemas da época. Infelizmente, não se conhece o nome do autor da melodia40. 40 A partitura da canção está em GALVÃO, Claudio. A Modinha Norte-Rio-Grandense (2000). 50 2.3.7 Música e festas populares A “Acta Diurna” “História do carnaval natalense” (A República, 27/01/1960) foi provocada pela publicação do livro de autoria de Eneida “História do carnaval carioca” (Rio de Janeiro, 1958). Cascudo comenta o teor da publicação e destaca, já em 1960, um detalhe que se tornaria bem atual: Naturalmente, o gostoso carnaval de rua, de grupos improvisados, papangús e troças, está murchando e sumindo. Cedendo ante o carnaval oficializado, com desfiles, indumentária de convenção, carnaval para turista ver. Sugere que o exemplo de Eneida tenha continuação. Insinua que Pernambuco, [...] tendo o mais alucinante, telúrico e maravilhoso carnaval de rua, não possui uma história das suas agremiações antigas, foliões desaparecidos, elementos humanos que animavam a vida sonora das ruas do Recife. A respeito de Natal, faz um retrospecto dos velhos carnavais, as ruas onde eram realizados, os foliões, os nomes dos velhos clubes e sugere o nome de um cronista que poderia começar a colher dados para a história do carnaval natalense. Era a ocasião de lembrar nossos compositores esquecidos. Adivinhar onde está muita fotografia preciosa, escondida nas gavetas olvidadas. Músicas e alegrias que tanto merecem ressurreição. Confirmando suas preocupações com a memória da cidade, propõe, ao concluir, a ressurreição dessas músicas dos antigos carnavais de Natal. É essa a primeira vez em que, entre as crônicas examinadas, emprega a palavra compositor. Já a “Acta Diurna” “História do carnaval pernambucano” (A República, 04/02/1960) começa logo abertamente sugerindo: Já era tempo de aparecer uma história do carnaval pernambucano ou do Recife, como a grande Eneida realizou com o carnaval carioca de 1958. Essa crônica ainda é uma consequência da publicação da “História do carnaval carioca” (1958), escrito por Eneida. Indica os itens mais importantes a serem tratados: o passo e o frevo pernambucanos, o estudo da marchafrevo. Menciona: Com as peculiaridades musicais, rítmicas e a riqueza dos “efeitos” dos trombones e pistons, os “trios” ondulantes, “chorados” na fila das clarinetas, tão anteriores ao domínio dos saxofones, está batendo à porta dos pesquisadores para uma divulgação indispensável e uma reivindicação legítima de suas “constantes” pernambucanas. 51 É importante notar o destaque dado por Cascudo nessa crônica de 1960 para a característica básica do carnaval pernambucano, que é ser um carnaval de rua onde estão [...] troças, blocos, ranchos, cordões, clubes [...]. Destaca que ao carnaval de desfiles, de expectação, carnaval assistido e brincado nos recintos fechados, que se vai tornando usual e comum no Brasil inteiro, Recife responde com um carnaval-de-rua, independendo de todas as excitações, autárquico em sua inspiração geográfica, passo e frevo garantindo, sozinhos, o espetáculo da festa biologicamente popular. Cascudo coroa a crônica com a exaltação do compositor pernambucano Nelson Ferreira, pelo fato de haver composto três marchas-frevo com o título de “Evocação” (n. 1, 2 e 3) que ele considera já popularmente consagradas. O detalhe especial que mais tocou o cronista certamente é o fato de essas composições, como o título indica, serem evocações de velhos carnavais pernambucanos: É a cantiga de saudade, homenagem fiel, canto sentimental, saudando, lembrando figuras dos mortos foliões, em plena tempestade ruidosa do carnaval. Conclui com um trecho da “Evocação n. 1”, de Nelson Ferreira: Adeus, adeus, minha gente, Que já cantamos bastante... “Carnaval! Carnaval!” é uma longa crônica (A República, 10/02/1929) em que Cascudo busca, no passado remoto das festas gregas e romanas, ligações com o carnaval do presente. Prossegue com informações sobre o carnaval no Brasil, durante colônia, reinado e Império. O elemento musical começou a ser referido depois do período da Maioridade, quando se observa o início dos bailes reservados. Nas salas dança-se o solo inglês, as mazurcas, as últimas danças portuguesas do século XVIII. No âmbito popular, semelhante processo se verifica com suas variações: E nas praças as tarantelas, cateretês, cocos e sambas. Um interessante relato informa a origem do popular Zé Pereira: 52 O português José Pereira de Azevedo Paredes numa segunda feira de carnaval, teve saudades dos zabumbas minhotos, o troar dos bombos que lá se chama Zé Pereiras. Reuniu amigos. Beberam umas lambadas infindáveis. Suspenderam os bombos na linha da barriga. Saíram. Zig-zig-zig-bum. Zigzig-zig-bum. Estava criado o ritmo. Faltava a música. Criaram-na também. Letra imbecil, ingênua, menineira, vulgar e chocha. Viva o Zé Pereira Que a ninguém faz mal Viva o Zé Pereira No dia de carnaval! Em breve incursão pelas agremiações natalenses, conclui abordando o fim do antigo entrudo, substituído pelos corsos de automóveis, os lança-perfumes, confetes e serpentinas, culminando com os bailes nos clubes sociais: Só o Zé Pereira é que vive, rebentando os tímpanos e peles dos bombos, zabumbando doido. Zig-zig-zig-bum. Zigzig-zig-bum!... Essa crônica bem pode representar uma demonstração do Cascudo historiador, já que o enfoque que direciona é predominantemente histórico. Igualmente, pode-se notar a ambientação do carnaval, em que o autor distingue apenas a tradição europeia, sem se referir, como o faria em outras ocasiões, a elementos originários do indígena e do africano. Cascudo recorda na “Acta Diurna” “O Terço Cantado da Santa Cruz” (A República, 03/06/1948) a festa religiosa da Santa Cruz dos seus tempos de menino, realizada a 14 de setembro: Era diante do cruzeiro da Igreja do Rosário, à noite. Cantavam o terço, vezes com acompanhamento instrumental. Depois, ouvia-se a ladainha, um bendito e um cântico final bem saudoso. Em outra “Acta Diurna” (“Santa Cruz”), focalizou semelhante festa realizada a cada 3 de maio, igualmente com cânticos religiosos, no local chamado Santa Cruz da 53 Bica. Destaque-se o interesse do cronista em manter a memória dos fatos relacionados ao bloco música-religião. 2.3.8 Músicos eruditos estrangeiros É essa a primeira crônica de Câmara Cascudo abordando a música erudita, cujo título é “Beethoven, Senhor dos Ritmos” (A Imprensa, 26/03/1922). Inicia apresentando considerações sobre a vida, a personalidade e a genialidade do compositor e acrescenta: Todo o amante palpita na “Apassionata”, o contemplativo na “Au clair de lune”, o revoltado na “Patética”, o semi-deus na “Nona Sinfonia”. Mais adiante, faz uma breve comparação: Chopin é a tristeza resignada dos místicos. Beethoven é o alarido potente do agitador. Shakespeare da música, conhece toda a alma humana. O infinito se deixou ver. Beethoven diz o indizível. Em certo momento, revela uma faceta da intimidade de seu mundo emocional: De todo o mundo três coisas me atraem e deslumbram: o mar, o crepúsculo e Beethoven. Deus os fez parecidos para que provassem a origem comum. Em um de seus arroubos de entusiasmo, reafirma a sua admiração: Os anos passam multiplicando a sua estatura. Está tão alto que é preciso ficar de joelho para vê-lo e senti-lo. Momentaneamente desligado das coisas da sua terra (“Musicalerias III” – Igor Strawinsky, A República, 05/09/1929), Cascudo comenta o balé “Petrouchka”, desse compositor, na ocasião possível graças a quatro discos de vitrola, o que, na época, significava utilizar gravações em 78 rpm, com irritantes pausas para mudar a face do disco. A conclusão é bem típica de sua maneira de se expressar em relação a novidades de estilo que provocavam polêmicas: Para quem acha Debussy um músico moderno peço a bondade de não ouvir Petrouchka. E dou os pêsames. O escritor evidencia a busca de informação atualizada internacionalmente. Vale lembrar que Igor Strawinsky dialogava com a tradição popular russa (ritmos). Ao mesmo tempo, estava ligado às grandes transformações modernas da música no início 54 do século XX, tendo convidado grandes nomes da modernidade artística para colaborarem em suas criações – Picasso fez cenários e figurinos para alguns de seus balés. O Cascudo musicista era também um homem da modernidade, situado em suas conquistas internacionais. Em um longo artigo biográfico, “Prelúdio sobre Bach” (Som, n. 3, 20/12/1936), Cascudo, entre outros enfoques, compara o caráter do pai da música com alguns grandes nomes que o seguiriam na história da música universal. Não se prende a comentários sobre obras, referindo-se, eventualmente, a algumas delas. A relação dos nomes abordados pelo autor em suas crônicas revela o interesse pelos compositores em geral, passando do erudito ao popular e dos internacionalmente famosos aos modestos musicistas regionais. Verifica-se uma predileção pelos nomes mais atuais. Bach é o único dos antigos compositores que ele aborda. Convém ainda ressaltar a forte amizade entre o autor e Villa-Lobos, no momento em que o compositor vinha desenvolvendo o projeto das “Bachianas Brasileiras”, iniciado em 1930. Luís da Câmara Cascudo aborda a figura do colombiano Alberto de Castilha na crônica que tem por título o nome do músico (Revista Som, Natal, n. 7, 31/01/1938) que, depois de variadas experiências profissionais, fundou um conservatório em seu país e se tornou compositor. A revista Arte, também por ele criada, gozava de grande prestígio. Realizou, ainda, o I Congresso Musical da Colômbia, e sua obra musical é dirigida quase inteiramente ao folclore musical de seu país. Com a descrição e os comentários sobre Alberto de Castilha, parece que Cascudo indica sua vida como exemplo a ser seguido por seu estado e pelo país. A menção ao conservatório por ele fundado reforça a ideia da crença alimentada na importância dessa entidade, felizmente já concretizada em Natal em 1933, com o Instituto de Música do Rio Grande Norte. “Szostakowicz”, publicado em Som (n. 8, 30/04/1938), é um comentário breve não sobre a obra do compositor russo, mas a respeito de sua vinculação com o regime comunista vigente à época. Considera o autor como no máximo um discípulo orgulhoso de Wagner. E conclui: Tudo o que deduzi pela impressão deixada pelo comunista Szostakowicz é que ele representa um temperamento vibrante, apaixonado pela 55 epopéia, pela história guerreira, pela gesta das multidões... guiadas para uma finalidade nacional. Essa abordagem indica a sintonia do cronista em todas as áreas do conhecimento artístico e suas múltiplas facetas e ligações. Nessa crônica, aponta para a conexão da arte com a política, ocorrência comum nos países totalitários, cujo melhor exemplo pode ser encontrado no período hitlerista, quando as expressões artísticas estavam totalmente voltadas para os objetivos e ideais do partido nazista. Vale lembrar que Mário de Andrade também escreveu sobre o autor41. Em mais uma colaboração para a revista Som (n. 8, 30/04/1938), Câmara Cascudo comenta a vida e obra do compositor americano George Gershwin, falecido no ano anterior. Sua abordagem passa pela Rhapsody in blue e por American in Paris, alcança o jazz e o coloca entre os compositores internacionais em evidência na época. Da crônica anterior para essa última, o autor desloca-se da União Soviética para os Estados Unidos e parece veladamente externar sua repulsa pelo regime comunista. A obra de Gershwin, pela vinculação com o popular, posiciona o autor no campo da modernidade, quando busca respaldo na música popular americana. Pode indicar uma observação política de Cascudo ao colocar o compositor americano e seus temas em um ambiente de total liberdade e ausência de imposições políticas. Observe-se ainda que os artigos focalizando Gershwin e Szostakowicz estão publicados na mesma edição da revista, evidenciando o diálogo entre música erudita e música popular. Cascudo comenta que, 20 anos após a morte do compositor, Debussy continua sem discípulos, sem alunos, sem continuadores. Em comentário firme e conclusivo, declara: Não se pode compreender qual a direção da música moderna sem Debussy. E, em uma apreciação final: Debussy como raríssimos, possuiu esse dom de ampliar o nosso poder de abstração, de liberdade, de vôo amplo e doido pelos céus da imaginação. É oportuno notar a preferência do autor pelos eruditos modernos (considera Debussy um clássico) em comparação com uma menor atenção para com os antigos, pois apenas Bach foi alvo de uma crônica sua. Esses comentários estão em “Claude Debussy”, publicado em Som (n. 9, 11/07/1938). 41 ANDRADE, Mário de. “Duas palavras do tradutor Chostacovich” (1945). 56 Cascudo relembra na crônica “Archibald Joyce” (Som, n. 10, 01/1939) o nome e as valsas desse compositor Muitos anos foi o soberano incontestável das valsas perturbadoras, inesquecíveis, emocionantes. As obras do compositor inglês começaram a chegar ao Brasil com a guerra de 1914. O cronista conclui com uma saudosa evocação de seus dias de juventude, quando tais composições eram por demais populares no bailes da velha Natal. O texto evidencia a importante relação local/internacional, bem como os vínculos passado/presente. Embora o autor faça uma campanha pela cultura musical local (formação, apresentação, composição), isso não se confunde com um chauvinismo que ignore tradições internacionais, valorizando-as, quando mereciam. Por outro lado, o texto se reveste de uma evocação sentimental, sempre presente em escritos desse tipo. Em diversas ocasiões, o cronista usa sua coluna para responder a perguntas de seus leitores. Na presente – “Respondendo” – “Acta Diurna” (A República, 17/06/1941), esclarece sobre o filme “A Grande Valsa” e apresenta detalhes biográficos sobre o motivo da produção cinematográfica que focaliza a vida de Johann Strauss Filho e suas composições. É bem evidente sua intenção de levar o conhecimento erudito a níveis sociais mais limitados através de um meio acessível e popular, como o jornal. Cascudo responde aos leitores e põe a erudição ao alcance de todos. Na crônica “Nota de uma velha aula sobre Debussy”, “Acta Diurna” (A República, 04/10/1944), feita com base em apontamentos de uma aula de História da Música no Instituto de Música do Rio Grande do Norte, comenta elementos técnicos da música de Debussy, enfatizando o caráter revolucionário de sua música. É mais uma demonstração de sua erudição, da amplitude de seu campo de visão, bem como da admiração pelo autor, seu contemporâneo, como já demonstrado em outros escritos. O escritor comenta a vida e a obra da compositora francesa Cecile Chaminade, falecida em 1944, na “Acta Diurna” “Uma velha amiga que não conheci”. (A República, 21/03/1946). Evoca os momentos de sua infância e adolescência. Quem estudou piano há uns vinte e cinco anos tocou Chaminade, acrescenta, incluindo-se, ele próprio, entre os intérpretes juvenis da compositora. Um pouco de memória pessoal o faz mencionar sua juventude, quando tocou músicas de autoria daquela compositora, enlaçando História a Memória. 57 No texto “Ralph Vaughan Williams” (A República, 08/06/1948), são comentadas vida e obra do musicista inglês Ralph Vaughan Williams, doutor em música, mestre em composição, professor em Oxford e em Londres, o presidente do International Folk Music Council. Sugere a intenção de relacionar o currículo erudito do maestro com a função exercida nesse Conselho e, assim, destacar a importância do folclore. A “Acta Diurna” “A lição do Maestro Alonso” (Diário de Natal, 12/06/1948) evoca o maestro espanhol Francisco Alonso Lopez, falecido em Madri. Escreveu cem partituras, foi um dos grandes musicadores da zarzuela madrilena. As companhias espanholas trouxeram sua música para o continente americano, espalhando-a e popularizando-a. Descreve a popularidade do compositor, demonstrada pela grandiosidade das homenagens em seu sepultamento. Esses comentários sobre um assunto internacional indicam a diversidade dos assuntos musicais tratados por Luís da Câmara Cascudo e a não exclusividade do tema local. A zarzuela era um gênero mais para o popular-teatral. 2.3.9 Músicos eruditos brasileiros Considerado um dos maiores violinistas brasileiros, Nicolino Milano (Lorena, São Paulo, 25/06/1876 – Lorena, 01/10/1962) foi contratado pelo governo Alberto Maranhão para lecionar violino na Escola de Música que o estado havia implantado. Residiu em Natal de maio de 1909 a abril de 1911. Apresentou-se inúmeras vezes como solista e como participante de grupos de câmera que executavam música de elevado nível. São vagas as lembranças do musicista evocadas por Cascudo, pois tinha apenas 13 anos quando Milano deixou Natal: Quando vim atingir isso que se chama “idade da razão” Nicolino Milano já não reinava. Prevalece a intenção memorialista do autor e a pretensão de evocar uma fase em que a música erudita teve grande repercussão local, graças ao apoio do governador Alberto Maranhão em seu segundo mandato (1908/1914): Governo Alberto Maranhão, época deslumbrante para artistas e poetas. Essas lembranças estão em “Nicolino Milano”, crônica livre. (A República, 04/05/1930). 58 O cronista se posta, mais uma vez, como crítico musical para apreciar o recital em Natal do violinista paulistano Raul Laranjeiras, realizado em sala lotada do Grupo Escolar Antônio de Souza, a 21 de fevereiro de 1933. Na crônica “Musicalerias” VIII (A República, 24/02/1933), informa, como registro especial, que o recitalista teve como acompanhador o futuro pianista Oriano de Almeida, na ocasião com apenas 11 anos de idade. Causa curiosidade a realização de um recital em sala de aula de uma escola – certamente adaptada para o evento –, quando a cidade possuía o Teatro Carlos Gomes, amplamente usado para esses fins. Não há no noticiário dos jornais do dia nenhuma menção à presença voluntária de estudantes, nem sobre a participação deles em alguma promoção educativa da escola que justifique a apresentação naquele local. Mais provável seria imaginar alguma impossibilidade momentânea do teatro da cidade. Cascudo menciona a participação de Oriano de Almeida, menino prodígio que haveria de seguir brilhante carreira de concertista internacional e que depois seria seu aluno de História da Música no Instituto de Música do RN, mantendo sempre amizade e vinculações culturais com seu mestre. Cascudo esteve presente a uma audição íntima de Túlio Tavares, 11 anos, aluno do 6º ano de piano do Instituto de Música do RN e do Curso Waldemar de Almeida, também presente naquela ocasião. Esse encontro foi relatado na “Acta Diurna” intitulada “Túlio Tavares” (A República, 15/06/1933). O recital do jovem pianista se realizou a 1º de julho. Suas palavras são de grande apreço, considerando-se a idade do recitalista, e antevê a melhor acolhida do público que o prestigiar. Túlio foi um dos “meninos prodígios” de que Natal se orgulhava na década de 1930. Vale a pena notar a presença masculina em uma atividade antes predominantemente exercida por mulheres. A atuação do professor e pianista Waldemar de Almeida na cidade – ele mesmo casado e com filhos – em muito contribuiu para a derrubada de antigos preconceitos. Também é importante constatar o interesse do cronista na divulgação dos novos valores musicais da cidade, estimulados pelo prestígio decorrente do seu já reconhecido valor intelectual. Como segunda colaboração para o primeiro número da revista Som (n. 1, 11/07/1936), Câmara Cascudo focaliza a arte de um compositor a quem muito haveria de admirar, “Mignone”. Em meia página sobre Francisco Mignone, expressa sua 59 expectativa pela adesão do compositor ao ambiente musical brasileiro. Ainda na oportunidade, demonstra sua plena vinculação ao modernismo e suas nuances nacionalistas originadas pelo movimento de 1922. Abraçava, portanto, idêntico caminho ao adotado por Mário de Andrade e outros intelectuais, ao enfatizar especialmente a retomada do folclore. Exemplifica, citando a ópera “O contratador de diamantes” que ao jeito sonoro e bonito das óperas italianas [faz incluir] uma congada, viva e livre, agitada e vibrante, batendo, forte e justo, ritmo e imagens bem vinculadas às nossas tradições auditivas. Em breve artigo sobre o compositor Hekel Tavares, “Da canção brasileira” (Som, n. 7, 31/01/1938), abre um leque de elogios e destaques sobre a produção musical do músico alagoano: A canção brasileira, natural, justa, para ser cantada e apresentada aqui e em qualquer parte, está sendo magnificamente “tratada” por Hekel Tavares. Não é lógico exigir mais nada. O que existe é made in Brazil e de excelente qualidade. A ênfase à música brasileira inspirada no folclore foi uma constante nos escritos de Cascudo, que mantém a sua posição e constância às diretrizes do modernismo. A obra de Hekel Tavares parece ser mostrada como uma espécie de exemplo para o Rio Grande do Norte e para o Brasil, bem como uma comprovação da imprescindibilidade dos estudos eruditos – como é o caso desse compositor – para a realização de uma obra “de excelente qualidade”, como mencionado. Cascudo apresenta emocional e ao mesmo tempo objetiva apreciação sobre o sergipano Juvêncio Mendonça (de Oliveira, falecido aos 25 anos em 1939), musicista residente em Natal e casado com a violoncelista Josélia Lettieri, através da crônica “Juvêncio Mendonça”, (A República, 11/02/1940). Nos três trechos transcritos a seguir, pode-se avaliar a admiração que dedicava ao jovem musicista. [...] Numa carta para Renato de Almeida, enviando registros de músicas populares do Reis e Congos, pacientemente seguidas, deu sua opinião sobre a prodigiosa influência do Canto Gregoriano em nossa música tradicional. Juvêncio transportou para notação gregoriana as músicas dos nossos autos, nos trechos mais expressivos, e positivou sua tese. A música sertaneja, por exemplo, carecendo sempre de ritmo, fugindo inconscientemente à 60 quadratura melódica que recebemos dos portugueses, está inteiramente liberta e solta nos âmbitos do gregoriano. O aboio é um canto gregoriano, dando-se esse nome às fórmulas orientais da música de gênero sem ritmo obrigatório na divisão do compasso. Renato Almeida disse-me a forte admiração que lhe causara a página despretensiosa e natural de Juvêncio, numa simples carta íntima. [...] Compôs dezenas de sonatas, impromptu, noturnos, mazurcas, scherzos. Seus minuetos, pavanas, barcarolas são intensamente românticas, aristocráticas, impressionantes. [...] Juvêncio Mendonça, em composições sacras, deixou obra vultuosa. Duas Missas (4 vozes e 2 vozes com orquestra), Canon Infinito (4 vozes), Alla Vergine del Cielo (cantada a 3 vozes), acrósticos, Ave-Marias, Salve Reginas, elevação a um canto em grego (Hosper o Helios), um canto em tupi (Maria Tupana Manha), recordação dos seu tempo de estudos em Manaus, são os mais notáveis na série. Não há notícia das partituras dessas composições. Provavelmente, estão em poder da família da esposa, que se transferiu para o Rio de Janeiro. Voltando ao tema das modinhas com a “Acta Diurna”, “Waldemar de Almeida e as modinhas” (A República, 18/04/1940) tem como enfoque o trabalho de coleta e grafia musical das velhas canções potiguares, o qual foi iniciado pelo referido musicista. Esse artigo apresenta as características da modinha, sua história e os instrumentos que a acompanham. Evoca sua evolução no tempo, pois pertencia aos salões e à produção mental superior, literatizada, feita por poeta sabedor de ritmos, e seguro nas rimas certas. A popularização ocorreu através da serenata, destacando o papel do violão como substituto do piano no acompanhamento do cantor. Conhecedor do assunto, Cascudo prevê para o pesquisador um problema certamente impossível de resolver com a simples indicação na partitura dos costumeiros sinais de expressão (os italianíssimos dolce, dolcisimo, perdendosi...): expressar o “jeito”, a maneira particular de interpretar, própria do modinheiro: A dificuldade máxima de Waldemar de Almeida reside em manter no piano, sob a exigência da 61 escriturística musical, aquele infixável e irreal acento romântico que haloa as nossas modinhas posto em relevo notável pelo violão. Cascudo não esconde sua expectativa e confiança no êxito do trabalho: Quando, publicado o álbum, for possível tocar e cantar as velhas modinhas, ressuscitando os perdidos acentos que os violões tangidos por dedos que já se desfizeram enchiam de sonho e de lembrança, tenha-se presente o que de impossível foi vencido, o que de imponderável foi registrado, o que de fluido e vago pôde ser materializado no pentagrama. Essa é mais uma expressão de sua preocupação com a garantia da permanência desse patrimônio a ser proporcionada pelo registro escrito. O pesquisador não concluiu e nada publicou sobre a pesquisa iniciada. Na crônica “Fala Waldemar de Almeida” (“Acta Diurna”, A República, 05/05/1940), Câmara Cascudo transcreve uma carta que lhe foi enviada pelo pianista, por ele muitas vezes louvado devido ao trabalho que executava ao “ressuscitar” velhas canções de autor local. Em sua carta, o musicista se mostra na obrigação de revelar: [...] por ninguém saber que, se vibrei a primeira picareta no túmulo em que dormem esquecidas as nossas modinhas, foi a “mando” teu que, neste caso, és o benemérito administrador do cemitério onde dormem “É belo ver dormir a natureza”, “Perdão, meu Deus, perdão”, “Longe, bem longe”, “Carregando a minha cruz” etc. Ainda nessa carta, o pianista informa haver concluído a modinha n. 1: “Ser noivo”, versos de Antônio Soares e música de Evangelina Barros. Câmara Cascudo foi, então, o mentor de um importante trabalho iniciado, mas, infelizmente, não levado à frente pelo pesquisador. A “Acta Diurna” “Waldemar de Almeida (Normas pianísticas)”, publicada em A República, em 11/06/1941, é uma recensão sobre o livro Normas Pianísticas, no qual esboça, em largos traços, detalhes da vida musical de Waldemar de Almeida e estende 62 elogiosa apreciação sobre a publicação, destacando seu valor didático e continuando o apoio à atividade pedagógica-musical exercida em Natal pelo pianista. O jornal A República (23/11/1941) transcreve a crônica “Oswaldo de Souza”, publicada no Diário de Notícias do Rio de Janeiro, na qual Cascudo comenta um recital em que ouviu composições de Souza interpretadas pela cantora Maria Sylvia Pinto. Infelizmente, não indica o local onde se realizou a apresentação. O repertório de Oswaldo de Souza tem o conteúdo e a inspiração folclórica indispensáveis para atingir o gosto musical e a preferência do etnógrafo. Ninguém melhor que Cascudo para comentar e elogiar o trabalho do compositor, rico em elementos recolhidos da cultura popular. Originário da formação erudita obtida no Instituto Nacional de Música do Rio de Janeiro, o musicista optou por voltar a suas raízes culturais e, ao fazê-lo, aliava-se ao bloco de modernistas encabeçados por Villa-Lobos, Mário de Andrade e o próprio Cascudo42. Amaro Barreto era membro da prestigiosa família dos Albuquerque Maranhão, que dominou a política do Rio Grande do Norte durante vários anos – ou até séculos, se pensarmos em seu poder desde a colônia. Diferentemente dos irmãos, optou pela música (juntamente com o irmão Cipião), tornando-se pianista e estudando na Europa (“Amaro Barreto, o Maestro”. “Acta Diurna”, A República, 30/10/1943). Esteve muitas vezes em Natal para recitais de piano e acompanhando outros instrumentistas. Foi o primeiro musicista norte-rio-grandense a obter semelhante destaque. Essa memória de Cascudo reforça a suposição de que a música erudita naqueles tempos era acessível apenas às classes economicamente privilegiadas. Essa hipótese é confirmada pelo alto custo na aquisição de um piano, instrumento caracterizador desse nível musical. Talentos originários de classes populares teriam sido sufocados por tais razões? Amaro Barreto passou a residir no Rio de Janeiro, onde se tornou professor do Instituto Nacional de Música, vindo a falecer em 1922. Na “Acta Diurna” “O Maestro Waldemar” (A República, 20/09/1944), Cascudo apresenta dados biográficos do pianista Waldemar de Almeida, enfatizando o detalhe de ter abandonado o mister de intérprete para abraçar a missão de professor no Instituto de 42 GALVÃO, Claudio. “Oswaldo de Souza e o Movimento Modernista de 1922” (1995). 63 Música do Rio Grande do Norte, fundando, em Natal, o Curso Waldemar de Almeida e a Sociedade de Cultura Musical. A dedicação ao ensino é a marca maior da atividade do musicista e sua mais importante contribuição à cultura do Rio Grande do Norte. Cascudo enaltece a beleza da música do Hino à Bandeira do Brasil e lamenta o falecimento de seu autor, o maestro Francisco Braga. Destacando suas qualidades como músico, lamenta o fato de, mesmo sendo uma glória nacional, ele ter morrido pobre e humilde: Era homem fundamentalmente brasileiro, acolhedor e honesto, trabalhando sempre e morrendo pobre. Tão pobre que, depois de mais de meio século de esforço diário, ele, a glória viva da música orquestral, o primeiro regente, o discípulo amado de Massenet, não possuía uma casinha e o Governo da República ofereceu-lhe sessenta mil cruzeiros. Sessenta mil cruzeiros são um mau negócio para qualquer comerciante de meia força. Constituiu a maior Soma de dinheiro que Francisco Braga recebeu pouco antes de morrer. Assim, deplorou em “Música do Hino „Bandeira do Brasil‟”. (“Acta Diurna”, A República, 21/03/1945). Em outra “Acta Diurna”, publicada no Diário de Natal (12/09/1947) com o título “Até Deus precisa de sinos”, relatou o seguinte fato: no ano 1940, Leopold Stokowsky, um dos mais famosos regentes internacionais do momento, durante uma turnê no Rio de Janeiro com uma orquestra americana, revelou que nunca ouvira falar em Carlos Gomes, que nós julgamos mais conhecido que a luz do sol. E comenta a necessidade de divulgação: Americanos e ingleses, com produção industrial e cultural que dispensa corretagem em qualquer praça, mantêm seus adidos culturais e econômicos. Nós achamos que é despesa dispensável. Não é a primeira vez que o autor defende a publicidade como necessária ao êxito de um trabalho cultural. Ele próprio deve ter usado no início de seu trabalho esse recurso conforme mostram as correspondências com importantes intelectuais do Sudeste, como Monteiro Lobato e Mário de Andrade. Depois, a notoriedade se encarregou de fazê-lo procurado. 64 Joaquim Scipião de Albuquerque Maranhão, violinista, irmão do pianista Amaro Barreto, membro de tradicional família de políticos do Rio Grande do Norte. foi figura de evidência em Natal até a terceira década do século XX. Destacou-se como solista, regente, professor e diretor do Teatro Carlos Gomes durante a gestão de seu irmão, governador Alberto Maranhão. É o tema de “O Maestro Cipião”. (“Cidade do Natal” (XIII), A República, 17/02/1949). Na (“Elegia Pró Villa-Lobos”, “Acta Diurna”, A República, 20/11/1959), Cascudo homenageia o maestro de quem fora amigo, quando de seu falecimento: Agora é possível e lentamente medir-se o tamanho do gigante imóvel para sempre na História da Música. Podemos calcular a extensão dessa força impetuosa e sonora quando ela deixa de produzir e de agitar-se no mundo. O padre norte-rio-grandense Cromácio Leão (Canguaretama, RN, 1886-Jaboatão dos Guararapes, Pe. 1951), pároco em Jaboatão dos Guararapes/Pe, mantinha uma escola e uma banda de música de estudantes. Era regente e compositor de grande número de obras, algumas gravadas e a maior parte delas inédita. Recordo o musicista, o compositor, o devotado amigo da música instrumental. Em outubro de 1926 ouvi suas composições, regidas por ele mesmo e executadas por um conjunto de amadores de sua paróquia, rememorou em “Padre Cromácio Leão”. (Diário de Natal, 26/06/1962)43. Cascudo e Oswaldo de Souza foram fraternais amigos desde os tempos da juventude e partilhavam os mesmos ideais culturais nacionalistas. Na crônica “Oswaldo de Souza e o Folclore Musical” (Correio Brasiliense, 17/10/65; republicada na Tribuna Popular, Rio de Janeiro, 5/01/67), Cascudo destaca a atuação desse musicista como pesquisador de melodias folclóricas: Oswaldo de Souza andou ouvindo e registrando o folclore musical de São Paulo, litoral e planalto; Minas Gerais, região norte, Diamantina, Alagoas, Delmiro Gouveia, imediações de Paulo Afonso; Bahia em diversas zonas. Em 1949 recolheu no médio Rio São Francisco mais de 500 documentos 43 PEIXOTO, Daniel. Padre Chromacio: mística & música (1976). 65 musicais, pesquisando ainda as populações fixadas em dois afluentes, Corrente e Rio Grande. Oswaldo de Souza foi, ainda, destacado compositor, com obras impressas e gravadas por intérpretes de renome44. 2.3.10 Músicos populares brasileiros Em “Arsênio Pimentel” (“Notas de História”, A República, 29/08/1930), Câmara Cascudo evoca (desde suas origens portuguesas) a família de Arsênio Celestino Pimentel e a vida agitada e aventuresca do personagem. Formado em Medicina, em Coimbra, decidiu viver no Brasil, chegando ao Rio Grande do Norte em 1873. O detalhe de interesse musical dessa crônica é que o personagem tocava piano e, certamente, possuía dele conhecimentos avançados, pois ensinava o instrumento: Ainda vivem exalunas de piano, informa Cascudo. Pimentel faleceu em 1916. Tornou-se mais uma figura antiga da cidade evocada pela lembrança sentimental concretizada em registro histórico. É interessante observar, nessa crônica, a frequência com que profissionais pertencentes a áreas bem diversas (no caso de Arsênio Pimentel, uma profissão prestigiada: médico) dedicam-se a atividades musicas e tocam instrumentos. (Republicado com o título de O velho Arsênio, na “Acta Diurna”, A República, 09/04/1942). Cascudo externa sua admiração e seu entusiasmo pelo duo de violonistas norterio-grandenses “Irmãos Carolino” – Antônio e Enéas Carolino –, que, retornando de uma excursão pelas capitais nordestinas, anunciavam uma apresentação em Natal. (“Já ouviu os Carolinos?”, A República, 30/10/1932). O programa de sua festa é uma das mais completas documentações folclóricas que um violonista levou a efeito. Observa o cronista um detalhe importante: Pela primeira vez tentou-se em violão a música descritiva. E não esconde sua opinião sobre o duo: Os Carolinos são, queiram ou não queiram, duas afirmativas indeclináveis da inteligência patrícia. Termina com um apelo veemente e sentimental: Ajudem, senhores e senhoras, estes dois caboclos a levar para longe a garridice dos nossos temas musicais e a graça ingênua e capitosa dos nossos ritmos bárbaros e maravilhosos. 44 GALVÃO, Claudio. Oswaldo de Souza: o canto do Nordeste (1988). 66 O repertório do duo constava de músicas populares em geral, principalmente composições de Antônio Carolino e melodias recolhidas do folclore local, associando-se ao movimento de valorização do folclore que se expandia na década de 1930, bem como à música regional nordestina, tão prestigiada nos centros culturais do sul do país. Posteriormente, o violonista Abelardo Botelho substituiu Enéas no duo, que realizou vitoriosas apresentações em diversas cidades, inclusive o Rio de Janeiro. Musa canta vida boêmia de Lourival Açucena, poeta árcade, improvisador e seresteiro, batedor de violão, tenor de serenata, vate palaciano e trovador popular. Assim Cascudo inicia seu longo artigo (“Lourival Açucena”, A República, 12/01/1939) sobre o considerado mais antigo poeta conhecido dentre os nascidos no Rio Grande do Norte. O cronista tenta, a vol-d‟oiseau, uma panorâmica biográfica do poeta e descreve também episódios em que se evidenciam fatos musicais. Esse escrito compõe o volume Versos (de Lourival Açucena), que Cascudo organizou e fez publicar em 1927, no centenário de nascimento do poeta45. Um detalhe que Cascudo não percebeu, ou não valorizou, foi que o personagem era igualmente compositor, autor das músicas apostas em vários dos poemas que compunham seu repertório46. É um exemplo da associação entre literatura e música, presença muito constante na cultura do RN. Câmara Cascudo descreve a agitada vida política de José Leão Ferreira Souto, cujo nome titula uma crônica. (“Acta Diurna”, A República, 9/11/1939). O destaque maior são os serviços que prestou ao Rio Grande do Norte. Refere-se brevemente ao livro por ele escrito, Aves de Arribação, que traz o poema do mesmo nome, musicado por Deolindo Lima47. Essa ocorrência não é citada pelo cronista, e tudo indica que seu poema musicado foi o único fato musical da vida de José Leão Ferreira Souto. É um exemplo do predomínio da literatura sobre a música, que parece dar mais lastro intelectual para o personagem. 45 CASCUDO, Luís da Câmara (Org.). Lourival Açucena: versos (1927). As partituras das melodias não grafadas no tempo de Lourival Açucena (Natal, 1827-1907) que ainda foram possíveis de recolher da informação oral atual estão em GALVÃO, Claudio. A Modinha Norte-RioGrandense (2000). 47 A partitura foi publicada em GALVÃO, Claudio. A Modinha Norte-Rio-Grandense (2000). 46 67 Na crônica “Tenente de Milícias Manoel Joaquim Açucena” (“Acta Diurna”, A República, 19/11/1939), Cascudo destaca a figura alvo do texto por ele ter sido o introdutor do “Fandango” em Natal e, também, por ser o pai do poeta Lourival Açucena. Era uma figura típica do boêmio da época: Sendo luar, Manoel Joaquim gastava as horas lentas cantando, violão ao peito, doces queixas de amor e saudades amarguradas. Após seu falecimento em 1855, Cascudo chega a uma conclusão: Desta forma contamos sua figura como um dos nossos primeiros sereneiros, tenores de plenilúnio, divulgando versos de longe, aqui musicados. Um detalhe parece se evidenciar: Manoel Joaquim ensinou o filho a tocar violão e a cantar modinhas. Lourival Açucena substituiu o pai nas noites enluaradas da velha Natal. Essa é mais uma crônica em que o autor, novamente, manifesta intenções memorialistas. Vale ressaltar a ênfase à tradição familiar na manutenção de práticas culturais em Natal do século XIX. “João de Tapitanga” (“Acta Diurna”, A República, 15/12/1939) é mais uma crônica que recorda a vida de uma “velha figura” da sua cidade. João Emerenciano China, é assim descrito: Tapitanga não aprendeu senão a tocar violão, cantar modinha, não ter medo de coisa alguma e andar, como judeu errante, por todos os recantos da pátria. No texto, está evidenciado o grau de boemia do personagem, talvez até certa irresponsabilidade, com toques de marginalidade frente aos padrões da época. Isso se acentua quando Cascudo contrasta a biografia de João com as de um de seus irmãos e de um sobrinho, formados em Medicina na Bahia. Saindo de Natal, andou pelo Rio de Janeiro, Niterói e Curitiba – onde faleceu sem voltar a seu estado –, acentuando a transitoriedade de seus pousos e sendo comparado ao judeu errante. É mais um poeta boêmio a emergir do anonimato, graças à evocação do cronista. Cascudo evoca Miguel Vieira de Melo (“Miguelzinho da Gamela”, “Acta Diurna”, A República, 24/12/1939, republicada em 14/03/43), aleijado que, por ser conduzido em uma gamela, ganhou esse apelido. Embora vivesse em Genipabu, uma praia muito distante (naquele tempo) da cidade do Natal, era conhecido por sua cultura literária e por seus dotes musicais Escreveu muitos poemas e mesmo cânticos sacros, em latim, entoados na Matriz, indica o memorialista. E completa, informando: Cantou muitos versículos do 68 Novo Testamento, musicando salmos e escrevendo hinos que espalhavam pelas capelinhas de toda a costa norte da província. Informantes de Cascudo disseram-lhe que Miguelzinho da Gamela (falecido em 1856) era autor de muitos pastoris que ouvimos ainda. Quanto à sua provável produção musical, com toda certeza nunca escrita, arremata: Também compusera músicas sacras para Tantum Ergo, Ave Maria, Ladainhas, Credos, e assim como toda uma missa. E pergunta: Onde estão estes originais? Irrevogavelmente perdidos para nós. É importante a menção à autoria de pastoris, missas, hinos religiosos que se tornaram tradicionais, hoje apagados pelo esquecimento devido ao não registro musical da época. Em muitos de seus textos, Câmara Cascudo acentua a importância do registro musical escrito na memória da obra musical, sempre prejudicada pela oralidade. A indicação dessa autoria de autos populares contribui para superar a visão romântica de obra supostamente anônima e criada por um povo difuso, crítica que já se configurava em Mário de Andrade48. Em outra vez, relembra a figura de Antônio Cavalcanti de Albuquerque Maranhão (“Cavalcanti Grande”, A República, 21/02/1940; Bando, n. 16, abril de 1950), boêmio e cantor, acompanhando-se ao violão em modinhas sentimentais. E, com quarenta anos de serenatas, Cavalcanti Grande só sabia acompanhar em dois tons: – ré maior e lá menor. A precariedade de recursos para o acompanhamento indica o frágil conhecimento técnico do violão, o que não se tornou obstáculo para sua atividade e consequente popularidade como músico. É mais uma figura popular ligada à música evocada pela memória e saudade do cronista. Augusto Carlos de Melo L‟Eraistre, filho de francês e nascido no Pará, em 1854, residiu em Natal a partir de 1880, falecendo nessa cidade em 1900. Advogado, jornalista, professor, tem os fatos mais importantes de sua vida comentados por Cascudo. Infelizmente, o cronista nada destaca de sua vida musical na “Acta Diurna” “Dr. L” Eraiste”. (A República, 22/12/1940). Entre outras atividades, foi um dos fundadores do Clube Carlos Gomes, em 1892. Pianista, teve oportunidade de apresentar sua arte em muitas ocasiões49. Não será fácil encontrar uma explicação para essa 48 49 ANDRADE, Mário de. Danças dramáticas do Brasil (2002). GALVÃO, Claudio. História da Música no Rio Grande do Norte (em preparo). 69 omissão, considerando o destaque que Cascudo costumava dar às atividades musicais paralelamente desenvolvidas por profissionais de outras áreas. Areias Bajão pertenceu ao grupo de poetas sereneiros, príncipe das peixadas, senhores de todos os plenilúnios, fazendo a cidade adormecida despertar aos sons mais doces dos melhores violões e vozes lindas. Assim Cascudo retrata a figura João Francisco de Areias Bajão, em “O Poeta Bajão” (“Acta Diurna”, A República, 15/01/1941), personagem falecido em 1865. Acrescenta que possuía uma voz quente, extensa e doce, barítono espontâneo. Acometido de uma doença que lhe paralisou as pernas, não se sentia impedido de participar das serenatas de seu tempo: De cima do jumento, numa naturalidade a um tempo adorável e cômica, tocava violão, cantava, fazendo o coro nos “cocos” repinicados ou a “segunda voz” nas modinhas bonitas, surdeando os bordões nas “falsas” melodiosas. Informa ainda Cascudo que Areias Bajão escreveu muita poesia e musicou muito verso alheio. Tudo desapareceu. E pergunta: Onde se perdeu o caderno de poesia de Areias Bajão? E a solfa das chulas, modinhas e lundus, cantados em todo Natal? Pelas informações de Câmara Cascudo, tem-se uma ideia do quanto se perdeu da memória musical do estado pela falta do necessário registro. Ao rememorar a vida de mais uma “velha figura” do Rio Grande do Norte, Câmara Cascudo acrescenta, em “A Morte do Capitão Urbano” (“Acta Diurna”, A República, 21/01/1941), valiosas informações musicais: O capitão Urbano Fernandes Barros, entre outras excelências, era melômano. Tinha vários filhos e quase todos tocavam instrumentos, dando expansão ao instinto musical. Alípio, no bandolim, Antônio, no violino, Felix, na flauta, Francisco, no oficleide, José, no saxofone, Afrodísio e Evangelina, no piano, obrigavam os natalenses a um sereno ante a residência paterna. Paulílio, de toda a irmandade, era o único que se limitava a escutar, quando os manos enchiam os ares de melodias saudosas. Destaca-se o detalhe do “sereno”, momento em que se ficava na rua, nas imediações da residência onde se realizava a reunião dos músicos, usufruindo-se do recital familiar, suprindo a carência de diversões e passatempos da velha cidade dos fins 70 de século XIX. Igualmente, ressalta-se a indicação sobre a formação e exercício musicais no ambiente familiar, tornando-se o divertimento mais comum nas noites iluminadas ainda a candeeiros. Boêmio, sereneiro contumaz, incapaz de resistir ao sortilégio de um luar bem claro, duma modinha bem cantada e duma aguardente bem aljofrada, Antônio Elias deixou histórias que Natal repetiu muito. Assim Cascudo inicia a descrição de seu personagem e aspectos de sua vida, registrados na “Acta Diurna” “Antonio Elias”. (A República, 23/06/1941). Cantador de modinhas, sabia musicá-las deliciosamente. É o autor de uma das mais lindas solfas que possuímos. Trata-se da melodia que pôs no poema “Vem!”, cujo autor era o pai do Dr. Joaquim Xavier da Silveira Junior, paulista, governador nomeado do Rio Grande do Norte, no início do período republicano. A canção, mais conhecida como “As andorinhas”, tornou-se muito popular nos fins do século XIX e início do século XX. Sendo ele funcionário do Palácio do Governo, passou a gozar de prestígio e regalias, enfatiza o relato. A história dessa canção foi abordada na crônica “Uma Modinha de Xavier da Silveira”, já comentada. Além da informação histórica proporcionada, considera-se a posição ocupada pela modinha na esfera da elite social e política, ao contrário da outra forma musical contemporânea, o lundu, que era popular, folgazão e sensual50. Na “Acta Diurna” “O Pai de Lourival Açucena” (A República, 16/01/1943), Câmara Cascudo insiste em ressaltar, como o fez em outros escritos, a herança musical recebida pelo primeiro poeta e compositor-cantor de modinhas conhecido no Rio Grande do Norte – Lourival Açucena – do seu pai, tenente de Milícias Manoel Joaquim de Melo Açucena. Esse último prestou, em sua opinião, dois benefícios culturais ao estado. Além da popularização do Fandango na cidade do Natal (tema de uma crônica aqui comentada), enfatizou a influência musical que teve para com o filho. Era grande tocador de violão, cantador de modinhas, sereneiro fanático pelas noites de luar. Ensinou o filho a tocar o instrumento, insinuando-o nos meios modinheiros de então. Não há a menor dúvida sobre a importância da iniciação e do ensino familiar naqueles tempos de ausência de escolas especializadas. 50 Partituras de várias melodias de Antônio Elias Álvares de França estão publicadas em GALVÃO, Claudio. A Modinha Norte-Rio-Grandense (2000). 71 Na “Acta Diurna” “Foster e Noel Rosa” (A República, 29/11/1944), Cascudo compara as vidas do compositor americano Stephen Collins Foster e de nosso Noel Rosa, ambos falecidos muito jovens. Enfatiza a quantidade de homenagens que recebeu o músico americano em seu país e a ausência de bibliografia que se verificava, naquela época, em relação ao compositor brasileiro: Onde está um pequeno álbum com as músicas, os choros, chorinhos, sambas de Noel Rosa, um retrato, uma breve biografia que leve aos ouvidos alheios a prova do quanto era doce, comunicativa e original a sua música de pobre? A expressão “música de pobre” certamente remete a uma comparação entre as economias dos países onde viveram os dois compositores. Destaca-se, mais uma vez, sua cobrança de atenções e atitudes. O songbook de Noel Rosa somente nasceria quarenta e sete anos após51. Cascudo comenta, na “Acta Diurna” “Catulo” (A República, 16/05/1946), a apresentação de um coral francês no Teatro Municipal do Rio de Janeiro e destaca uma parte do programa: O mais lindo número, inesquecido e tempestuosamente aplaudido, foi o „Luar do sertão‟, de Catulo da Paixão Cearense. Em seguida, a respeito de comentários sobre a vida e obra do poeta, conclui: Não há música e letra mais espalhada pelo mundo. É a canção mais conhecida nos continentes, nos idiomas diversos, a mais cantada, citada, amada, aplaudida. Não há conjunto orfeônico, japonês ou canadense, holandês ou russo, que não haja cantado e bisado o “Luar do Sertão”. A polêmica apadrinhada por Villa-Lobos, que reivindicava a autoria da música para João Guimarães Teixeira, o violonista “João Pernambuco”, ainda não havia sido deflagrada e Catulo, na ocasião, faturava sozinho a popularidade nacional da canção. Na “Acta Diurna” intitulada “Martins de Vasconcelos” (Diário de Natal, 12/01/1948) Cascudo recorda José Martins de Vasconcelos, nascido no Apodi e tendo sua base de ação intelectual em Mossoró (Rio Grande do Norte) que, nessa última cidade, teve destacada participação musical, mesmo sem ser músico profissional e exercendo atividades literárias. Dele, diz apenas: Sabia música, compunha. Musicou. Este outro personagem não era, igualmente, um profissional da música, como em geral não eram também todos os intérpretes da época. Por diletantismo [...] cantava as modinhas sentimentais de outrora, letras de Castro Alves e de Casimiro de Abreu, de 51 CHEDIAK, Almir (Produtor). Noel Rosa (1991). 72 Gonçalves Dias e de Fagundes Varela. Cantavas as solfas inesquecíveis de Heronides de França, de Cirineu de Vasconcelos [autores locais]. “Luís Ávila”: este é o tema da presente “Acta Diurna” (A República (13/05/1948, 21/05/1959). Nela, bem clara, visualiza-se a tradição da prática da música por diletantismo, o que ocorria principalmente pela indisponibilidade de meios de profissionalização (rádio, orquestras, gravadoras...). Cascudo evoca o nome de José Augusto Soares de Araújo, seu contemporâneo, acadêmico de Medicina falecido no Rio de Janeiro, em 1922. Era poeta, pianista, conversador, espirituoso, cantando modinha, gostando de serenata, irônico e sentimental. E recorda de seu amigo [...] as valsas, as composições, as improvisações ao piano. Assim se expressa em “José Soares”, “Acta Diurna”, A República (20/07/1948). Antes de sair de Natal, José Augusto exerceu bastante influência nos meios musicais da cidade. Deixou composições para piano, impressas e manuscritas52. Câmara Cascudo relembra Cirineu Joaquim de Vasconcelos e evoca trechos de sua biografia na crônica “O Velho Cirineu” (“Cidade do Natal”, A República, 11/01/1949; “Acta Diurna”, Diário de Natal, 11/07/1959). Depois, recorda: O poema “Desalento”, de Auta de Souza, foi musicado por Cirineu de Vasconcelos. Numa linda solfa que ainda não morreu nas lembranças de nossa terra. Cirineu não era músico profissional, mas teve participação destacada na vida musical da velha Natal53. O cronista evoca o médico Vicente Andrade, nascido em Macaíba/RN, especialista em radioterapia no Ceará e musicista amador desde os tempos de estudante. Sua admiração pelo médico levou-o a tratá-lo como “O Grande Vicente Andrade”. (“Acta Diurna”, Diário de Natal, 18/03/1949). Havendo organizado um grupo de jazz, lembra que os “boinas-verdes” de Vicente viajaram o Brasil inteiro, semeando músicas, cantando, espalhando bom humor, alegria serena, esperança. Vicente soprava vinte instrumentos e manejava o arco nos demais. Piston, saxofone, 52 Detalhes sobre o compositor em GALVÃO, Claudio. Música e Músicos do Rio Grande do Norte (em preparo). 53 GALVÃO, Claudio. A Modinha Norte-Rio-Grandense (2000). 73 trompa, fagote, clarinete e também violino, violão, bandola, bandolim. Corda e sopro. Entendia. E não esqueçamos a percussão, a bateria alucinada que sacudia até as pedras do calçamento. Sim, piano. E compunha letra e música. Abriu uma época inteira, inesquecível, gloriosa. Certamente não era o único, mas foi um companheiro entre os primeiros. Um percurso com uma história real, cheia de beleza e de vitalidade. Além do destaque à capacidade musical do personagem, é importante notar a abordagem que nessa ocasião faz sobre o jazz e sua difusão através das jazz bands (similares a atuais bandas de rock?), indicadoras da modernidade, cosmopolitismo e mais intensa influência norte-americana naqueles anos pós-guerra54. Entre as incontáveis figuras do passado de sua terra e de uma época distante que Cascudo evoca, está José Antônio Areias, mestre barbeiro, professor de violão, compadre de meu pai, era uma das minhas admirações de menino. Este é um dos personagens que o escritor recorda com mais apreço e emoção. Em suas lembranças, evocadas em “Zé Antonio” (A República, 01/09/1949), Cascudo o descreve com o violão ao peito, gemendo as cordas, dando acordes plangentes, fazendo acompanhamentos incríveis, dando sucessão de “falsas” que assombravam os companheiros de serenata. Era um artista. Após recordar os membros de sua família, destaca o fato de ele ter sido irmão do padre Antônio Francisco Areias, poeta conhecido na cidade do Natal, e de João Francisco Areias Bajão – o “Poeta Bajão” –, os quais também mereceram crônicas da série “Acta Diurna”, registradas neste trabalho. E continua a desfilar suas lembranças: Tocava horas e horas sozinho, para ele mesmo, saboreando os efeitos, pondo a língua de fora, embevecido com as soluções melódicas imprevistas, brotadas de seus dedos hábeis. Solava e compunha. Compunha valsas e um gênero que ninguém recorda mais, o rondó. Para terminar, aquele toque poético tão comum em suas crônicas evocativas: Ele e Heronides de França foram violões de respeito, príncipes das serenatas, solistas 54 GALVÃO, Claudio. Música e Músicos do Rio Grande do Norte (em preparo). 74 aclamados. O reino era breve como a sonoridade das velhas modinhas que o tempo levou. Mais uma vez, a memória predomina e fornece importantes informações sobre a vida e a sociedade dos fins do século XIX e inícios do XX, quando se destaca o diletantismo refinado oriundo de uma refinada formação familiar, e deixa clara a relação música-literatura, muito comum na época. “O capitão Fócio, um poeta esquecido” (“História & Estórias, A República, 25/09/1956) é uma crônica que versa sobre Fócio Joaquim do Rego Barros, capitão da Guarda Nacional, comandante do Corpo de Polícia da Província do Rio Grande do Norte durante 24 anos, de 1861 a 1885. Cascudo apresenta e comenta dados sobre a vida militar do personagem e informa que o capitão Fócio foi poeta, transcrevendo um de seus poemas, datado de 1861. Há uma pequena informação ligada à música: relata que a casa onde morava estava sempre provida de boas bebidas para os amigos seresteiros. Tocava violão e cantava modinhas apaixonadas. Como já houve oportunidade de verificar, Cascudo sempre que pode – e essa ocorrência é muito freqüente – desce a detalhes sobre o lado artístico das figuras que comenta, destacando-lhes a tendência poética, musical e, na maioria das vezes, seresteira. Isso atesta uma constância de comportamentos, ressalta constantes hábitos e atitudes cujo conhecimento se torna indispensável à visualização de um passado cultural. Em crônica da série “História & Estórias”, publicada em A República em 15 de abril de 1957, o escritor volta a um de seus temas mais gratos, enfocando a figura do poeta de quem havia publicado – havia trinta anos – a coletânea Versos (1927), primeira edição póstuma de Lourival Açucena. Em “Lourival Açucena – Serenata e Modinha”, Cascudo aproveita a referência inicial ao mais antigo poeta e compositor do estado para mais uma viagem sentimental ao mundo da modinha e da serenata, tema de sua predileção, outras vezes abordado em suas crônicas. Ainda encontrei seus derradeiros vestígios nos três primeiros lustros do século XX, informa. Segue-se uma descrição apaixonada acerca do ambiente do momento, das peculiaridades da serenata e, especialmente, do violão indispensável e seu desempenho original e apropriado, que também sumiu em meio à modernidade: Esses grandes violões seresteiros valorizavam uma noite de luar, competindo com as vozes sonoras e altas dos cantores que o tempo 75 levou para sempre. Enfatizando a relação literatura-música, a referida crônica traz evocações do passado e da tradição estadual. O flautista Luís Carlos Lins Wanderley Filho é evocado na data de seu centenário de nascimento. Professor do Instituto de Música, da Escola Normal, compositor, participante de todas as orquestras de seu tempo, componente dos conjuntos musicais que animavam os bailes da cidade, era nome de destaque no cenário musical de Natal. É o tema da crônica “Centenário de Lucas Wanderley”. (“Acta Diurna”, A República, 23/04/1959). “Otacílio” (“Acta Diurna”, A República, 12/05/1959) é a figura evocada na presente crônica. Trata-se de Otacílio Pereira Cavalcanti que, entre outros detalhes de sua vida, é destacado como professor de música do Ateneu Santanense e, como era de esperar, criou uma banda local. Deu solfa a muitas modinhas [...]. Cascudo recorda detalhes da vida de Alcides Brunetti Cicco, a mais destacada figura da arte do canto lírico no Rio Grande do Norte, na “Alcides Brunetti Cicco”. (“Acta Diurna”, A República, 20/06/1959). Apesar de não ter realizado grandes projetos como cantor, teve a oportunidade de criar diversas escolas de canto, que produziram algum resultado55. Neste escrito lamenta o falecimento de uma figura muito popular da velha Natal, Francisco de Assis Botelho. É ele o motivo da “Acta Diurna” “Chico Botelho” (A República, 01/09/1959). O homem que trazia de cor o mais extenso e completo documentário das modinhas passadas. Perdeu-se o arquivo incomparável de quase todas as cantigas sentimentais do século XIX, as solfas capitosas e coleantes, os efeitos melódicos as „falsas‟ que encantavam nossos avós sereneiros. Voltando ao gênero modinha e sempre contribuindo para a memória, informa, em outra crônica já comentada, que o mesmo Chico Botelho estava sendo a fonte 55 GALVÃO, Claudio. Música e Músicos do Rio Grande do Norte (em preparo). 76 fornecedora para a pesquisa e grafia musical das modinhas de autores locais empreendida por Waldemar de Almeida, infelizmente não realizada. José Victoriano de Medeiros era oficial da Polícia Militar, conhecidíssimo como boêmio e seresteiro. Cascudo descreve-o em “Victoriano de Medeiros” (“Acta Diurna”, A República, 10/11/1959) como: Acompanhador de sereneiros, tocador de violão, autor de modinhas e sambas, não tomava uma gota de álcool. Ficava uma noite inteira ao lado dos amigos, absorvido pela magia violoneira e o encontro das vozes românticas, sem cansar-se e sem abandonar o posto, mas abstêmio como se tivesse feito um voto, forma de renúncia absoluta. Este é um bom testemunho de que boemia nem sempre é sinônimo de bebedeiras e que, assim como é verdadeiro o Ars gratia artis, pode existir a música pela própria música. Em “Modinhas de Catullo Cearense” (“Acta Diurna”, A República, 4/06/1960), Cascudo comenta as suas impressões sobre Catullo da Paixão Cearense, nas três vezes em que esteve com ele no Rio de Janeiro. Tece elogios aos seus livros de poemas, mas, A minha paixão era pelo modinheiro, o cantor da lírica coletiva, espantoso poeta da linguagem bravia, das imagens tumultuosas, malucas, preciosas e banais, mas invulgares, envolventes, inesquecíveis. E aquelas músicas maravilhosas e típicas, feitas intencionalmente para os “efeitos” violonísticos, as modulações, os recursos modais, as “lindas falsas de tom”, e preparações, todo aparato sedutor e venenoso que fica soando perenemente na lembrança sereneira do Brasil. O musicista e compositor Eduardo Medeiros foi o último representante da fase da modinha e da serenata em Natal. Nascido em 1887, faleceu em 20 de junho de 1961. Persistente em seus conceitos de memória, acervo documental e preservação material, Cascudo comenta o ato de entrega à Prefeitura de Natal, pela família do musicista, um ano depois de seu falecimento, das partituras originais e dos instrumentos que lhe 77 pertenceram. Eduardo Medeiros foi um dos nossos grandes compositores tradicionais, afirma em “Valorizando a Prata da Casa”. (Diário de Natal, 19/06/1962). 2.3.11 Música e história A primeira publicação da revista Som, editada em Natal entre 1936 e 1948, já traz um artigo de Cascudo, que haveria de participar de quase todas as suas edições. Nesse primeiro número mergulha em um assunto tipicamente local que goza de sua preferência pessoal: a música popular, especialmente a modinha. (“Modinhas e Modinheiros de Natal”, Som n. 1, 11/07/1936). Começa afirmando a impossibilidade de um estudo da microliteratura norte-riograndense sem uma atenção especial para a modinha local e para o cantador de modinhas, um elemento poderoso para a criação literária. O modinheiro não foi somente durante anos e anos a expressão intelectual única, mas, essencialmente, o estímulo para a produção poética. O prazer em ter um poema musicado, transformado em canção e cantado nas serenatas era um estímulo dos mais importantes à produção literária. Apoia-se em Mário de Andrade (“Modinhas Imperiais”) para afirmar a origem culta e palaciana das modinhas e relata com detalhes a predileção que os antigos presidentes de província (e nomeia numerosos deles) tinham pelos modinheiros locais, levados a cantar na “Casa de Governo”, nas residências de praia e sítios aprazíveis da cidade. Finaliza relacionando os primeiros, os mais antigos “violões” conhecidos na cidade, indo até a geração mais próxima à sua. Esse escrito está indicado como sendo um capítulo do livro inédito História da Literatura Norte-Rio-Grandense, nunca publicado. Cascudo enfatiza o vínculo que a música popular mantinha com a literatura, certamente por ser esta portadora de maior consideração devido à sua origem mais intelectual, enquanto o músico popular carecia de formação teórica e se baseava, em sua maioria, na intuição e na imitação. O apoio de autoridades era importante apenas pelo prestígio e reconhecimento que conferiam. A descrição de um baile oficial realizado em Natal no ano de 1868 é uma deliciosa peça literária, na qual Cascudo esbanja seu talento e graça para escritos desse tipo. (“O Baile de 1868”, A República, 01/10/1939). Trata-se do baile organizado para 78 homenagear o recém-nomeado Presidente da Província do Rio Grande do Norte, Manoel José Marinho da Cunha, que tomou posse em 1º de setembro de 1868. Relata o cronista: O baile realizou-se. Não há detalhes das músicas. Deve ter sido “aberto” com uma “quadrilha imperial”, gravemente dançada e superiormente errada pelos natalenses. Depois, valsas. E outra quadrilha. Depois um “lanceiros”. Mais uma quadrilha e outra valsa e possivelmente um aristocrático solo inglês. Esta é uma das raras oportunidades, na vasta série de crônicas, em que o autor lança mão da fantasia e imagina o cenário de um baile naqueles tempos distantes. Junto a informações históricas que englobam nomes, lugares, datas e fatos reais, encontram-se referências decerto colhidas da tradição oral, como os detalhes da moda e a vestimenta usada, as frutas que foram servidas e a bizarra informação da chegada, vinda do Recife, de dez arroubas de gelo, visto pela primeira vez na cidade. É quando incorpora o papel de criador literário e visualiza um salão de baile, onde se encontram damas vestindo saias tufadas, corpetes justos, decotes de taça, penteados altos, golas finas de cambraias. Ao lado delas, estão homens vestindo casacas com abas curtas, coletes bem abertos, camisas pregueadas, gravatas fofas, colarinhos engomados duros – os “come-queixo” –, calças apertadas. Parece estar presente no salão, observando cada detalhe. Cascudo voltará ao assunto com a crônica “Como dançavam nossos avós em Natal”, em 13 de abril de 1940. O texto organiza-se pelo viés de historiador, quando elabora uma história imaginária, porque não há informações sobre a música e outros detalhes explorados. Ao mesmo tempo, personagens e datas são indicados com precisão, o que retira o escrito de um universo exclusivamente fantasioso ou ficcional. Em uma série de crônicas, Câmara Cascudo aborda o tema do teatro em Natal. Na quinta crônica da série, “Teatro em Natal (V) Teatro Santa Cruz”, comenta sobre o Teatro Santa Cruz, desabado em 1894. (“Acta Diurna”, A República, 21/08/1940). Após as costumeiras informações históricas, a parte de música: Nas noites de representação a música de seu Câindo (Cândido José de Melo) que era a mesma de seu Carneiro (Francisco Xavier Carneiro dos Anjos) passava tocando o “dobrado” inseparável “Quinze dias de viagem”. Na plateia, ao chegar o Presidente da Província, 79 a “música” executava compassos duma marcha ou então do “Quinze dias de viagem”. Ao iniciar-se o espetáculo, aparecia no palco um painel representando o imperador sob as palmas dos assistentes e ao Som do Hino Nacional regido por José Fernandes Barros, que tocava requinta. São valiosas as informações históricas que, ao mesmo tempo, enfatizam a tradição musical da cidade. “A Visita Episcopal de 1882” (“Acta Diurna”, A República, 01/09/1940) focaliza a visita de dom José Pereira da Silva Barros, bispo de Pernambuco, a quem estava subordinada a Província do Rio Grande do Norte. Cascudo baseou-se nas notícias do jornal Correio do Natal e em um relato redigido e publicado por Luiz Carlos Lins Wanderley, com o título “Visita Episcopal do Exmo. Rvm. Dr. D. José Pereira da Silva Barros a Algumas Paróquias do Rio Grande do Norte”. Interessado muito mais nas informações gerais sobre os fatos ocorridos, o cronista despreza os eventos musicais e registra apenas: Em Goianinha, seguido pela “música” mipibuense [...]. Numerosas foram as ocorrências nas quais a música esteve presente, mas não foram registradas pelo cronista56. Apesar disso, esse é um valioso registro que ajuda a entender melhor a cena musical além da capital. Cascudo noticia um auspicioso evento da Sociedade de Cultura Musical: a inauguração de sua sede social e a posse da nova diretoria. Ele próprio recebeu, entre outros, o título de sócio honorário da instituição. À noite, no Teatro Carlos Gomes, ocorreu recital com inauguração de seu piano de cauda e, na segunda parte, a primeira apresentação da orquestra da instituição, velho sonho que o cronista via realizado. É o que trata em “Uma nota de música” (A República, 4/08/1950): um momento de vitória e comemorações pelos pequenos êxitos, tão justificadamente grandes para o momento que vivia. Em “Bandas de Música do interior” (“Acta Diurna”, A República, 3/09/1959), o cronista deplora que ainda não se tenha feito um estudo sobre as referidas agremiações: Mas, não há, e já devia haver, um trabalho geral de pesquisa, reunindo a história esparsa de todas essas agremiações, indicando à simpatia coletiva quanto fizeram pelo patrimônio musical os esquecidos ou pouco sabidos “músicos do interior”. Entretanto, 56 GALVÃO, Claudio. História da Música no Rio Grande do Norte (em preparo). 80 reconhece a dificuldade para a elaboração e a execução de um projeto de memória das bandas de música devido à falta de atrativo ou compensação para semelhante trabalho: Quem é que vai interessar-se pela história das bandas de música do Rio Grande do Norte? Ninguém tem tempo para essas coisas dispensáveis e gratuitas. Não dá nome, ressonância, prestígio. Indiretamente, esse seu texto é um primeiro passo para esse projeto de memória das bandas. Em sua crônica intitulada “A gaita, dinheiro”, publicada na “Acta Diurna” de 19 de março de 1959 no jornal A República, Câmara Cascudo já havia focalizado o nome desse instrumento musical como sinônimo de dinheiro no Brasil, sem apresentar nenhuma referência musical. No escrito “Prelúdio de Gaita”, publicado por uma revista portuguesa (Revista de Etnografia, 1965), faz uma abordagem mais extensa e completa, trata da sinonímia acima, mas penetra no terreno da música. Sobre a presença da palavra no linguajar comum, explica: Nenhum instrumento musical possui a projeção vocabular da gaita no ambiente popular. Nenhum outro tem maior número de aplicações na linguagem do povo. Depois de comentar algumas das significações do vocábulo, passa à parte musical: Gaiteiro, o tocador de gaita, valendo jovial, jocundo, folgazão, faceto, divertido. Era a gaita indispensável animadora dos bailos de Portugal quinhentista, anterior e posterior. É o mais citado nos autos de Gil Vicente. Não podia haver folgar sem ele. Ainda em épocas distantes, informa: De gaita foi o primeiro concerto que os portugueses ofereceram aos brasileiros tupiniquins no domingo, 26 de abril de 1500. E, transcrevendo trecho da Carta de Pero Vaz de Caminha, comenta: Passou-se, então além do rio Diogo Dias, almoxarife que foi de Sacavém, que é homem gracioso e de prazer; e levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se com eles a dançar, tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam, e andavam com ele muito bem ao Som da gaita. Em seguida, Cascudo retorna ao tema gaita-dinheiro, comenta a origem da palavra e volta ao terreno musical: A gaita aqui referida é a flautinha vertical, reta, com três, quatro e cinco orifícios. Seria a inicial dos instrumentos de sopro ao lado dos cornos e dos búzios, pais das cornetas e buzinas, milenares e contemporâneas. 81 Incursionando ainda mais no terreno da antropologia cultural, acrescenta: Também reivindico para a gaita, a humilde gaitinha popular ibérica, e ameríndias, africanas, oceânicas, derramadas pelo mundo, a prioridade de ter sido o primeiro instrumento musical fixado em desenho humano em pleno magdaleniano. Esclarecendo as razões do seu apelo, comenta a crença, no começo do século XX, de que o instrumento mais antigo conhecido era a harpa de Lagash, num baixo relevo do palácio de Telloh (Suméria). Tal crença foi invalidada devido à descoberta ocorrida em julho de 1914 de uma caverna na França, pertencente ao período madaleniano do paleolítico superior. Na caverna de Trois-Frères, Ariège, França, está o feiticeiro soprando a primeira gaita vertical conhecida no mundo [...]. Conclui, dizendo: Para um prelúdio de gaita, é bastante. Cascudo teve acesso ao jornal O Recreio, edições de setembro e dezembro de 1861, no qual o jornalista Francisco Otílio Álvares da Silva descreve a visita do Presidente da Província, Pedro Leão Veloso, ao interior, a quem Silva acompanhou, como funcionário da tesouraria provincial. Em todos os lugares por onde passou, Francisco Otílio cantou modinhas acompanhando-se ao violão. Era pai de Heronides Álvares de França, um dos mais famosos compositores de modinhas de Rio Grande do Norte. Não é essa a primeira vez que o cronista aborda a ligação entre as maiores autoridades do lugar – os presidentes da província – e os cantores populares que, muitos deles, ocupavam altos postos no governo local, indicando a interação que já existia entre a elite (na maioria das vezes, oriunda de outras províncias) e a música regional. É o que aborda em “Jornada Presidencial de 1861”. (“Acta Diurna”, A República, 20/03/1942). O encontro do antigo documento permitiu a Câmara Cascudo localizar no tempo alguns folguedos populares de conteúdo musical: é o caso da “Postura” da Câmara Municipal do Natal, datada de 14 de julho de 1830, na qual se prevê o pagamento de licenças para a realização desses folguedos. Assim, indica o pesquisador, em “Espetáculos públicos de outrora” (“Acta Dominical”, A República, 06/12/1942), o material que localizou: Como vêem, os divertimentos eram abundantes e mais variados que os modernos. Revisem o número dos brinquedos para gente grande: – farsas de máscaras, comédias, cavalhadas, dança de corda, painéis circulados de fogo 82 artificial, contradança, bailes, presépios e fandangos. Não podemos apontar atualmente um número que se aproxime ao existente em 1830. Apresentando componente musical, têm-se indicados contradança, bailes, presépios (lapinhas) e fandangos. Diz Cascudo que não se menciona Pastoris, nem Chegança. Pastoris são da época da guerra do Paraguai, ou mais claramente, de 1870 em diante. Digno de atenção é o controle mantido pela administração municipal, sem justificar nenhum outro motivo de preocupação (como a ordem social), mas objetivando unicamente a arrecadação de recursos. É o que esclarece o caput do texto: [...] que a Câmara possa autorizar espetáculos públicos no seu Município mediante uma módica contribuição para as rendas e despesas da mesma Câmara [...]. Assim, conforme prevê o Art. 1º de tal Resolução, não se podia apresentar um destes brinquedos (farsas de máscaras, comédias, cavalhadas, dança de corda, painéis circulados de fogo artificial) sem preceder licença desta Câmara pela qual pagará trezentos e vintes réis por cada um dos ditos espetáculos que quiser apresentar. A mesma importância deveria ser paga por quem quisesse apresentar contradança, bailes, presépios e Fandangos, diz o Art. 2º. Como não podia deixar de acontecer, está prevista (Art. 3º) a punição dos prováveis infratores: Que o autor de cada um dos espetáculos sem preceder a licença seja condenado em dois mil réis, ou um dia de cadeia, e o duplo na reincidência que seja contada da terceira vez em diante. Explica cada brinquedo e dança referidos no texto. Essa é uma de suas mais preciosas crônicas, pela riqueza de detalhes e informações. Cascudo relembra o sucesso da chegada e apresentação pública do fonógrafo em Natal, com amplo noticiário jornalístico e alarde pela novidade quase milagrosa naquele distante 1895. “Música ao longe” é o tema da “Acta Diurna”. (A República, 03/02/1943). Mais tarde, em 1900, seria exposto na cidade o zonofone, aparelho já bastante aperfeiçoado em relação ao fonógrafo. Informa que, em 1907, o sertão não conhecia esse tipo de instrumento. Relata que, entre 1910 e 1912, realizou viagens ao sertão do Rio Grande do Norte e da Paraíba, levando um zonofone em sua bagagem, o que causou o maior espanto e admiração entre os humildes sertanejos. Termina confirmando a popularidade do rádio naquele ano de 1943 e sua presença nos mais distantes rincões do interior nordestino: Hoje o rádio está 83 nas principais fazendas. Não há novidades para o vaqueiro. Noitinha, vai para a casa do patrão ouvir notícias. Além disso, ouvia músicas, aprendia sonoridades e modismos, conhecia ritmos para ele exóticos, mas sedutores, deixando-se inocentemente penetrar e anexar novidades que haveriam, lamentavelmente, de modificar a sua cultura. Em outros escritos, responsabiliza claramente o rádio e o disco por algumas importantes transformações culturais sofridas pela região. Para sua sorte, não tomou conhecimento dos avanços da televisão, que em seu tempo ainda não estava tão aperfeiçoada e difundida... Cascudo conta a história da “Canção do Expedicionário”, música de Alda Caminha e letra de Luís Peixoto, vencedora de um concurso instituído pela Rádio Tupi do Rio de Janeiro. Na “Acta Diurna” intitulada “Canção do Expedicionário”, (A República, 23/11/1945), informa que a canção que foi posteriormente adotada e divulgada pelos meios de comunicação e, por isso, aceita pelo público da época é outra, com letra de Guilherme de Almeida e música de Spartaco Rossi. Informa ainda ter ouvido a composição interpretada pela própria compositora e que o hino foi gravado em disco Continental n. 15347-B, cantado por Manoel Reis com a Banda do Batalhão de Guardas. Para arrematar o assunto, informa ainda a oficialização como Hino da Força Expedicionária Brasileira através do Aviso n. 520, publicado no Diário Oficial de 2 de março de 1945, poucos meses antes da vitória aliada na segunda Guerra Mundial. Nessa crônica, aborda o gênero musical cívico, patriótico, digno de atenção no que se refere à autoria e interpretação, como qualquer outro. Após o costumeiro preâmbulo – nessa oportunidade, uma reunião de estudiosos, com a presença de Cascudo, ocorrida no Rio de Janeiro –, vem o eixo do escrito “Opinião dos mestres” (“Acta Diurna”, A República, 03/09/1947), quando relata: Depois o escritor ensinou-me que devíamos a dança de roda, para adultos, também aos africanos. Perguntei se os portugueses não a tinham conhecido e praticado. Não. Só a praticaram depois que o africano escravo chegou a Portugal. Arrisquei (pertenço ao número dos que a dança de roda era, fisiologicamente, dança coletiva e devia existir em qualquer parte onde tivesse existido o homem). 84 O escritor sorriu, superior: São opiniões. A dança de roda, a dança de círculo, é negra. Não concordando com a afirmação, preferiu não polemizar. Veio outra conversa, fomos jantar. E o tempo passou. Relata, em seguida, o encontro de dados que confirmaram o seu entendimento: Ontem vi os trabalhos arqueológicos de França e Inglaterra, a cópia dos relevos do homem da pedra polida deixado no solo com a sua presença. Rastros, vestígios de armas, arrastamento de peças de caça. Lá estão as danças de roda. O círculo imenso dos pés fortemente firmados nos calcanhares em torno do dançarino, ou sacerdote evocador, que ficava no centro. A dança de roda é eminentemente coletiva porque todos podem participar de sua execução. Fiquei pensando no amigo. Ele escreveu essa opinião? Reaparecerá em livro? Ficará ensinando... errado. Cascudo sempre demonstrou grande apreço pela dança em todos os seus aspectos, como bem o demonstrou nas numerosas crônicas e em outras publicações aqui comentadas. Um dos salões do palácio do governo foi transformado, pelo governador Alberto Maranhão, em espaço para grandes eventos. Ficou conhecido como Salão Róseo do Palácio. Ali a orquestra divulgou música clássica, de câmera e dançante. Corbiniano Vilaça cantava trechos de óperas de Rossini, Massenet, Verdi, Leoncavallo, Puccini. Nicolino Milano vibrava o violino, a “Ronde des lutins”, de Bassini, o concerto em ré menor, de Wieniavski. Depois começavam as danças, as valsas de Strauss e de Waldteufel, quadrilhas de Millocker, pas-de-quatre de Bose e de Chillemont, músicas deliciosas de Nicolino, as valsas bonitas da moda. Muitos anos depois, o som das máquinas de escrever havia substituído os instrumentos musicais. Cascudo lamenta a perda da tradição ao ver esse cenário, de cultura e nobreza, transformado em vulgar dependência de repartição pública. Foi o que escreveu em “O Salão Róseo do Palácio”. (“Acta Diurna”, A República, 18/06/1948). 85 O artigo “Eu me confesso” (Som, n. 17, 11/07/1948) é uma autoanálise, uma verdadeira declaração de amor à música. Nele, Câmara Cascudo se posiciona em relação aos escritores de seu estado: Eu me confesso ser o mais antigo namorado de Euterpe de todos os jornalistas militantes neste Rio Grande do Norte. Cedendo algum espaço ao jornalista Eloy de Souza, continua: [...] fico sozinho com os meus trinta anos de “batente” desde A Imprensa, em 1918, até os dias de agora, fiel a uma missão teimosa e facilmente ignorada. Descreve dois tipos de personagens, indispensáveis em uma campanha pela música: Primeiro, o homem que sabe música e que a pode transmitir aos seus alunos. E indica o nome do pianista e professor Waldemar de Almeida, responsável por um produtivo curso de piano. O outro tipo é o que prestigia com sua presença. Não toca instrumentos. Mas não é possível manter-se ambiente de cultura musical sem esse elemento tranquilo, amável, pronto a solidarizar-se, infalível na sua poltrona nas audições. É a interação artista-público, vista da maneira peculiar ao escritor, que confere mais uma vez suas arrancadas em prol de Euterpe, amor velho e bem novo no coração. Além do seu autoelogio, aproveita para reiterar homenagens ao pianista Waldemar de Almeida e ao trabalho que ele realizava em Natal. 2.3.12 Música e tecnologia Na crônica “O „Sono-Films” e as orquestras nacionais” (A República, 11/06/1930), Cascudo aborda o problema que os músicos de todos os países civilizados começavam a sentir: com a invenção do cinema sonoro, tornavam-se desnecessárias as orquestras que animavam as cenas mudas de outrora. Daí, o desemprego em massa de grande número de músicos, muitos dos quais tinham nesse trabalho sua única fonte de renda. Depois de se referir à mesma situação em países da Europa e comentar as soluções por eles adotadas, expõe sua opinião firme e realista: [...] os músicos de cinema arriscam de passar fome... e fome no Brasil, porque uma produção estrangeira tomou-lhes o lugar onde ganhavam o pão. Esse escrito revela sua muito oportuna preocupação com os problemas sociais que ocorriam, consequências de inovações tecnológicas trazidas pela modernidade. Ele evidencia a preocupação com a música como trabalho, em diferentes lugares no mundo moderno (cinema, gravação). 86 Sempre atento às novidades que a modernidade oferecia, Câmara Cascudo expressa sua desilusão para com o rádio como elemento que muito poderia colaborar com a educação em todos os sentidos. Admirador da música popular, lastima: O samba tem sua função e sua beleza segura. Mas sem auxílios de espírito e com as finalidades meramente “emissoras”, sem direção, sem escolha de linguagem e de moral, o rádio está, como o esporte, deseducando e preparando uma boa dúzia de futuros “gozadores”. A preocupação do cronista, expressa em “Rádio deseducador” (Som, n. 5, 11/07/1937), toma a direção do rumo da música popular que, já naquele tempo, sofria o desvirtuamento de sua qualidade inerente: atacada pela arte de baixa qualidade que invadia – e logo dominaria – os programas radiofônicos, que passavam, assim, a divulgar um mau produto e a deseducar em vez de educar. Note-se que em 1937 Natal ainda não tinha uma estação de rádio, direcionando a audição dos que possuíam os ainda caros aparelhos de rádio à sintonia das emissoras do sul e, principalmente, das estações da cidade do Recife. Autoridade para essa posição possuía de sobra. Em 1935, havia participado da diretoria da Rádio Clube de Natal, a qual não chegou a funcionar. Em janeiro de 1939, fundava-se uma nova empresa de radiodifusão, em que consta seu nome como Diretor Cultural. Passo decisivo foi dado com a fundação, em 4 de março de 1940, da Sociedade Anônima Rádio Educadora de Natal S.A., da qual Cascudo participava como Diretor Cultural. Afinal, inaugura-se a Rádio Educadora de Natal, em 30 de novembro de 1941, e continua Cascudo a colaborar e a participar de programas. São apropriadamente pertinentes suas preocupações e expectativas críticas e, ainda mais, uma previsão para o futuro – o risco da modernidade –: a técnica sem espírito se implantava no rádio, chegava para ficar e atingiria a televisão logo em seguida. A relação do escritor com o rádio envolve, portanto, expectativas e críticas. Em “O Fandango no Broadcasting” (“Acta Diurna”, A República, 05/08/1943), comenta a iniciativa de Joaquim Caldas Moreira, presidente na ocasião da Federação dos Folguedos Tradicionais, ao divulgar o Fandango através da única emissora de rádio da cidade, a Rádio Educadora de Natal. Esclarece aos que não valorizam os autos populares e apresenta um modelo estrangeiro: 87 Se os norte-americanos possuíssem um auto como o Fandango, todo dançado, cantado e declamado, com mais de duzentos anos, tendo uma música maravilhosa de melodia, sugestão e beleza evocadora, estudariam esse auto em filmes, discos, resumos e programas, como uma obra anônima, em tudo merecedora de apoio do público, em cujo seio ela nasceu e vive, através dos anos e das indiferenças. A preocupação pela formação musical nacional está, mais uma vez, presente. Cascudo expressa sua impressão pessoal sobre a música do Fandango: maravilhosa de melodia, sugestão e beleza evocadora. Cascudo comenta que o cantor Jimmie Davis foi eleito governador do estado norte-americano da Louisiana: Sua Excelência, cantando com sua orquestra de montanheses, representando no cinema e gravando discos de vitrola, já ganhou cerca de cinco milhões de cruzeiros. Sua campanha foi praticamente baseada na música: Durante a campanha eleitoral, Jimmie Davis cantou trezentas vezes e fez o menor número possível de discursos. Mais uma vez, destaca e sugere as virtudes da música quando inteligente e engenhosamente utilizada nas mais variadas circunstâncias. É o tema de “O Cantor Jimmie Davies”. (“Acta Diurna”, em A República, 22/03/1945). O filme À noite sonhamos – biografia de Chopin – recebe críticas pertinentes em “Chopin no Cinema”. (“Acta Diurna”, em A República, 06/11/1945). Acentuando a importância da memória preservada pelo cinema, cobra veracidade e reclama das deformações e desrespeitos à verdade em benefício do êxito frente ao público: O Chopin, que Cornel Wilde revive, apareceu completamente distanciado de sua verdadeira história. Nesse sentido, Cascudo expressa atenção para a memória no cinema. 2.3.13 Instituições musicais A Sociedade de Cultura Musical do Rio Grande do Norte foi criada pelo pianista Waldemar de Almeida no dia 4 de junho de 1932, durante a 14ª audição do seu “Curso Waldemar de Almeida”. (“Sociedade de Cultura Musical”, A República, 21/01/1934). 88 Embora tendo de passar por uma fase inicial de inatividade, Cascudo, que participava de sua diretoria, sempre teve para com a instituição as melhores palavras de apoio e esperança de pleno funcionamento. A instituição haveria de prestar importantes serviços à música no estado e seria a mais longeva das congêneres que apareceram. A presença do pianista Waldemar de Almeida na cidade e seu entusiasmo pela música e por sua terra, aliados ao esforço individual, foram os fatores responsáveis pela consolidação de uma instituição pública que prestou inestimáveis serviços. O tema dessa crônica já foi comentado em vários escritos. Natal conseguiu produzir pianistas de bom nível, mas não tinha ainda uma orquestra: Estamos precisando de Waldemar de Almeida para o nascimento e para a conservação de um pequeno núcleo de orquestra, semente da futura orquestra sinfônica, constituído de amadores. Prossegue com uma pergunta: Não foi possível espalhar o piano em Natal? O mesmo verificar-se-á com a orquestra. “Para uma Orquestra de Amadores” (“Acta Diurna”, Diário de Natal, 03/03/1950) enfatiza a atuação de Waldemar de Almeida e seus cursos de piano, mas afirma que a direção maior seria o patamar orquestral. Cascudo parte para detalhes, decerto, na esperança de mostrar a semelhança que existia entre Natal e qualquer outro ambiente social. Lembra a cidade de Doluth, nos Estados Unidos, que possui uma orquestra que é o orgulho local. Começou numa garagem. E os seus elementos eram um mineiro, um alfaiate, um médico, um jornalista, um pintor de paredes, um dentista, um impressor, um comerciante de imóveis, um cirurgião e cinco donas de casa. O maestro organizador, Walter Lange, era dono de uma papelaria. Essa orquestra lutou desesperadamente contra a indiferença e conseguiu impor-se. Todas as glórias musicais do mundo têm solado com os homens da orquestra de Doluth e trazido renome e orgulho para a cidade, além de recompensas materiais. Esses músicos tiveram formação semelhante às suas congêneres americanas, as orquestras da Sociedade Artístico Musical (1936-1937) e da Sociedade de Cultura Musical (1950-1951). Talvez o cronista não quisesse apontar a diferença entre o público dos dois países, já que, nos Estados Unidos, eles possuíam a base educacional necessária para o apoio e a manutenção de uma instituição com aquelas finalidades. 89 Cascudo termina indagando: Natal não merecia ter uma? E por que não tem? Aí está um teste. A resposta poderia ser: bem que merecia, mestre; acontece que não havia público devidamente preparado para consumi-la e mantê-la. Então... Com a transferência do pianista Waldemar de Almeida para o Recife, o Instituto de Música, por ele dirigido e que já sofria problemas, entrou em crise. Cascudo recorda os primeiros tempos da escola, havendo ele próprio participado do movimento de criação, em 1933. Mais de dez anos fui balbuciante professor de História da Música, revela. Manifesta a esperança de que os problemas se resolverão e de que o estabelecimento retornará às suas finalidades: O Instituto vai reassumir a sua missão essencial em difundir o ensino musical em preços acessíveis e populares, de espalhar o encanto da beleza melódica, de divulgar sobre a ferocidade da hora presente as divinas compensações da vida musical. Mesmo sentindo o problema do rompimento da associação Waldemar de Almeida/Instituto de Música, o velho batalhador pela música de seu estado não perdia suas esperanças na ressurreição da instituição que acompanhava desde 1933. É o que manifesta em “O Instituto de Música Viverá”. (“Acta Diurna”, Diário de Natal, 26/03/1952). Mais uma vez Cascudo marca sua presença apoiando uma instituição que nascia na cidade com pretensões de tornar-se sistemática: a Escola de Bailado Olga Hipólito. O Curso de Balé da Professora Olga Hipólito (título divulgado pelos jornais da cidade) apresentou-se a 5, 8, 9 e 13 de novembro de 1952, tendo a última apresentação objetivo filatrópico.57 O cronista contribuiu para o êxito do empreendimento com palavras de incentivo: Pelo milagre do ritmo, pela eurritimia dos movimentos, pela graça nítida das atitudes que evocam e fixam, numa felicidade incomparável, episódios artísticos, ou interpretam a alma, essência e motor divino, da inspiração musical, os olhos comtemplarão, acordados e vivos, o que não foi possível a Shakespeare, o sonho de uma noite de verão... O títutlo da crônica, “Repitam o milagre das rosas!...”, relaciona o caráter filantrópico de um dos eventos com um milagre acontecido em Portugal acontecido com Santa Isabel, rainha daqule país. Iniciando com um breve histórico do fonógrafo e do gramofone em Natal, Cascudo passa a comentar um programa transmitido pela Rádio Nordeste, chamado GALVÃO, Claudio. Teatro Carlos Gomes – Teatro Alberto Maranhão: cem anos de arte e cultura (2005). 57 90 “Museu do Disco”. Esse programa tinha como base a discoteca do colecionador Grácio Barbalho, considerada uma das maiores do Brasil na área das gravações em 78 rpm da fase elétrica. “Ouvindo o Museu do Disco” (“Acta Diurna”, A República, 17/01/1960) é um elogio à perseverança e à tenacidade do pesquisador, bem como à sua iniciativa de levar ao público seu acervo através da amplitude de um programa radiofônico. 2.3.14 Música e folclore A crônica “Comentando” (A Imprensa, 02/12/1921) é uma abordagem crítica ao livro Ao Som da Viola, de Gustavo Barroso, já comentado na parte referente aos livros de autoria de Câmara Cascudo, por haver sido reproduzida em seu livro Joio (1924). A crônica “Registo Bibliográfico”, é uma recensão à 1ª edição de Cantadores, de Leonardo Mota58 (A Imprensa, 22/01/1922), tem importância especial entre os escritos cascudianos, pois revela seu precoce interesse pela cultura popular já aos 24 anos, no início de sua carreira literária. Tanto é que inicia seu comentário destacando o reaparecimento dos estudos sobre folclore e se refere a Ao Som da Viola, de Gustavo Barroso (1921), livro sobre o qual havia publicado no ano anterior à crônica “Comentando” (A Imprensa, 02/12/1921). Isso aconteceu antes de 1929, alterando um pouco a idéia que se tem de que seu direcionamento para aquele campo apenas se verificou após a presença de Mário de Andrade em Natal (dezembro de 1928 a janeiro de 1929) e por influência do pesquisador paulistano. As contribuições ao folclore estão na moda. Depois de tanto tempo de in ércia e esquecimento, o sertão reaparece distribuindo assuntos e espalhando brochuras a granel, diz, festejando a volta do tema à atenção dos estudiosos. Mas o sertão do seu tempo já não era o mesmo de que lhe falavam seus ancestrais e que ainda alcançara quando criança. [...] No sertão o progresso matou a originalidade dos costumes e da vida. O reconhecimento desse fato está presente em muitos de seus escritos: Os velhos instrumentos de vagos sueltos sertanejos, o violão sonoro, o harmônio “acochador” de quadrilhas, esmoreceram ante o roufenho gorgolejo do gramofone buzinando tangos remedos e modinhas disfônicas. Como sempre costuma fazer, estabelece uma comparação entre o seu sertão contemporâneo e o antigo e lamenta as mudanças ocorridas: 58 MOTA, Leonardo. Cantadores (1921). 91 O ambiente dos cantadores, o ambiente romântico de desafios e lunduns, as serenatas, as histórias estranhas, o baile roncando, a rifas, as semanas santas originalíssimas, os satíricos anônimos, sertão de amor livre e poderoso está vivendo, quase nas comédias regionais e nos versos de Catulo Cearense. Os cantadores decrescem, acrescenta, lamentando a diminuição do número dos violeiros legítimos e originais. Cita os nomes dos antigos cantadores que ainda viviam no RN da década de 1920 e destaca Fabião das Queimadas, já abordado e muito citado em outras crônicas: [...] Fabião das Queimadas, robusto nonagenário, forte e possante como um tronco de pau d‟arco [...]. Em pleno comentário ao livro, insiste em um ponto essencial: há o cantador original, autêntico, mas também há o cantador improvisado, recheado de cultura livresca: Verdadeiro poeta é o trovador de rabeca, de viola, de violão, improvisando na sombra fresca das latadas, sem conhecer livros, escolas, estilos e métrica. Insistindo na excelência do cantador autêntico e original, diz: Estudou, estragou. O traço verdadeiramente característico no cantador é a sua cultura por intuição, as imagens, o ritmo bárbaro e impressionante dos martelos, emboladas e desmanchas. É que eu sinto a poesia do sertão quando ela vem da alma do sertanejo e nunca do seu cérebro. Infelizmente, não há menção à parte musical. O texto se prende apenas ao cantador como poeta. Em escritos futuros, haveria de abordar esse particular. Cascudo escreveu 40 anos depois o prefácio à 3ª edição de Cantadores (1961), que será comentado posteriormente. Raquel de Queiroz, em artigo com o título “Cantadores, de Leonardo Mota” (O Cruzeiro, 25/11/1961), faz referência ao prefácio de Cascudo e comenta o que ele disse. Tudo indica que “Proteção da Alegria Popular” (A República, 17/03/1929) foi a primeira crônica em que Câmara Cascudo investiu diretamente no tema dos folguedos populares, enfatizando a obrigatoriedade de sua proteção e seu estímulo pelos poderes públicos. Após um arrazoado, no qual mostra o comportamento de outros países nesse campo, lamenta que o nosso povo não tenha o hábito da conservação da tradição. 92 Enfoca especialmente o Bumba-meu-boi, os Congos e a Chegança. Nada comenta sobre sua parte musical, mas registra uma promessa: Não falei no elemento melódico. Não falei no elemento rítmico. São infinitos de riqueza e de colorido, de simplicidade e de impressionante sugestão. Depois falar-se-á nisto. Cumpriu o prometido! Em artigo publicado no jornal A República (22/12/1938) sob título “Os nossos autos populares devem viver”, Cascudo descreve e enaltece a atuação de países da Europa no que se refere à proteção e ao apoio às manifestações folclóricas e focaliza um comportamento comum em seu tempo: nós atacamos pela indiferença e ferimos pelo ridículo os autos que ainda de todo não morreram. Presa de “santa ira”, investe: Povo que nega o passado não tem futuro. O artigo é uma longa descrição das características dos autos populares natalenses: No Rio Grande do Norte os autos populares são muitos. Naturalmente há neles muito de documentação etnográfica, social, pictórica, musical, rítmica, etc. E conclui, saudoso de um tempo que ele próprio viveu: São esses os nossos autos. Todos velhos, com história, com emoção, com passado. Para ouvi-los reuniam-se os nossos avós, sisudos, e compenetrados, esperando a Missa do Galo, na Matriz de Nossa Senhora da Apresentação. Embora no escrito antecedente (“Proteção da Alegria Popular”, 1929) Cascudo tenha abordado também o tema do folclore, essa é mais uma crônica em que demonstra sua ação objetiva na defesa dos autos populares. Naquele ano (1938), com certeza já havia escrito e preparava a publicação de Vaqueiros e cantadores, a ser lançado no ano seguinte.59 2.3.15 Música e folguedos populares Em “O Fandango em Natal” (“Acta Diurna”, A República, 23/10/1942), o autor apresenta dados sobre a história do Fandango, auto popular muito prestigiado na cidade do Natal do passado, e o localiza no tempo: Em Natal, a mais antiga reminiscência indica como tendo sido a primeira representação do Fandango, num tablado erguido na Rua Grande (Praça André de Albuquerque) na noite de Natal, esperando a Missa do Galo, num dos anos entre 1812 e 1816. Dos Fandangos a que assistiu, apenas rememora a música deliciosa, romântica e enternecedora. Referindo-se a um Fandango 59 CASCUDO, Luís da Câmara. Vaqueiros e Cantadores (1968). 93 apresentado em dezembro de 1916 e janeiro de 1917, diz apenas: Trinta homens tomaram parte, cantando com vontade, dançando com força. A orquestra era de quatro músicos. Um quarteto que encheu todas as medidas. Decerto, mais informações musicais não cabiam em uma crônica meramente informativa, por isso registrou apenas o que era possível no momento. Cascudo mais uma vez valoriza a tradição popular e destaca o detalhe tão comum aos folguedos populares: a presença de elementos sacros e profanos intimamente enraizados. Assim, comenta na crônica “Dança do Espontão” (“Acta Diurna”, Diário de Natal, 26/06/1947): É uma dança guerreira, com instrumentos de percussão, executada em honra da Santa ou de um pecador que o grupo deseje homenagear. Prossegue oferecendo mais detalhes do folguedo popular do Seridó norterio-grandense e apela para as autoridades locais: Os senhores prefeitos municipais podiam ambientar com simpatia o único, o derradeiro bailado, dança militar e religiosa que possuímos. A defesa da tradição, portanto, se deu contra o risco de perda e em defesa de enraizamentos sacros e profanos. Essa é uma das raras oportunidades em que exprime seu contentamento com algumas reações favoráveis que observou em relação a folguedos populares que têm na dança o seu enfoque principal. Relata diversas apresentações e a boa acolhida recebida: Vistos e relatados os acontecimentos observados por mim ultimamente nesta cidade do Natal, estamos de parabéns. A mentalidade subiu muito em compreensão, comenta em “Valorização social do folguedo popular”. (“Histórias & Estórias”, A República, 03/07/1956). Seu destaque maior é a observação da mudança de mentalidade em relação ao pensamento de alguns escritores de cerca de cinquenta anos passados. O assunto mereceria uma pesquisa mais aprofundada para verificar se havia alguma relação com o período da administração do prefeito Djalma Maranhão, iniciada em 1 o de fevereiro de 1956, e que muito apoiou esse tipo de manifestação cultural. 2.3.16 Música... Considerações pessoais Na “Acta Diurna” “O Canto e a palavra” (A República, 11/05/1943), Cascudo apresenta algumas situações singulares: no Rio de Janeiro, durante uma apresentação de 94 canto orfeônico regida por Villa-Lobos, um locutor falava descrevendo o que estava sendo cantado. Ao que parece, tinha boa intenção – comenta –, mas atrapalhava o que estava sendo ouvido. Em seguida, relata que em Natal, na realização de uma cerimônia de páscoa dos militares, aconteceu um caso semelhante: Os organizadores do programa puseram os locutores, profano e sagrado, em cima das emissões sonoras do orfeão do “Colégio Marista”, o melhor que possuímos, regido pela incomparável disciplina do maestro Waldemar de Almeida. O comentário insiste em destacar como os cantos foram prejudicados pela inoportuna intervenção dos locutores que, de vez em quando, atrapalhavam o desenrolar da música. É nesse momento que Cascudo emite sua opinião e demonstra o seu apreço pela expressão musical do canto, sobrepondo, na referida ocasião, sua capacidade de comunicação à palavra pura e simples dos sermões religiosos: Respeitemos a pureza e a expressão ampla do canto. Não haverá maior projeção, mais poderosa influência, maior apelo ao espírito que o canto. A unção espiritual nos vem mil vezes mais facilmente pelo canto do que pela veemência tribunícia do sermão. Quando a palavra humana é fraca, descolorida e tênue, o canto domina, arrebata e convence. Lembra como o canto foi usado na época da catequese: Foi a vitória de Nóbrega e Anchieta. Para concluir: Sugiro, humildemente, a necessidade de separar os dois elementos indispensáveis e divinos. Cada um deles no momento próprio. Sem confundilos. O Canto e a Palavra são inseparáveis. Não os misturem porque não dá certo... A crônica “Assobiar”, publicada na revista Bando (1950), inicia com comentários sobre o assobio através dos tempos. Assobio, instrumento musical da área geográfica universal, deve ter sido o primeiro instrumento de sopro que produziu sonoridade melodiosa, isto é, dentro de um registro normal da escala cromática. Se a palma-de-mão é o mais velho instrumento de percussão, o assobio é a inicial da orquestra em sopro. 95 Em seguida, passa ao estudo do assobio, comentários sobre o assobio nos mais diversos países e através dos tempos. Voltando ao lado musical, Cascudo aprofunda sua observação: Musicalmente o assobio é habilidade individual. Vez por outra aparece um assobiador excepcional, nos teatros ou cassinos. Houve-os outrora famosos. No Brasil cita-se o mulato criado do Conselheiro Nabuco de Araújo que assobiava óperas inteiras e de que fala Batista Pereira (FIGURAS DO IMPÉRIO E OUTROS ENSAIOS, 118-9, seg. ed.) e também Wanderley Pinho lembrou Luiz Dominguez nas recepções do Barão de Cotegipe, assobiando melodias, cercado de damas estáticas e acompanhado ao piano por Artur Napoleão (SALÕES E DAMAS DO SEGUNDO REINADO, 164). Mas há ainda outra documentação oficial vinda do assobio. Ouvi-lo é anotar a popularidade, permanência ou deformação de certas músicas. Sentir como elas passam ou ficam na memória coletiva. E como se transformam na execução de cada intérprete anônimo. Também é um encanto ouvir, bruscamente, trechos de modinhas antigas, de cantigas que julgávamos mortas no tempo. Vezes, depois de muita banalidade, reaparecem alguns compassos de autos populares. Fandangos. Bumba-meu-boi. Chegança. Congos. Lapinhas de outrora que os Pastoris interesseiros mataram. Não tenho um professor de universidade norte-americana ou européia para dizer a importância do assobio como documento social e memória geral e anônima, revelando os vários processos de conservação, fixação, modificação de temas melódicos. Se esses trechos reaparecem indicam simpatias, persistências ou reminiscências, conforme a idade do assobiador. É o assobio como o desenho nas paredes dos muros e dos recantos privados: – um depoimento positivo para o conhecimento da psicologia coletiva. Quanto detalhe passa despercebido ao apressado leitor comum e como é notável a capacidade de observação de um escritor, “leitor profissional”, como se considerava Câmara Cascudo, portador de visualização microscópica até nos mais amplos horizontes... A “Acta Diurna” “Dez sambas, duas marchas e um artigo” (A República, 9/2/1944) é uma das mais originais e pitorescas crônicas dentre todas as que foram lidas 96 na preparação do presente trabalho, principalmente por mostrar Cascudo em sua intimidade, com seus problemas, ansiedades do dia a dia e, o mais curioso, em crise com a música. O cronista relata que, havendo recebido uma solicitação do jornal A Manhã, do Rio de Janeiro, deveria escrever um artigo sobre a República Dominicana, visto que em 27 de fevereiro seria o primeiro centenário de sua independência. Era, pois, um artigo encomendado, um trabalho para o profissional Cascudo, que precisava escrever para garantir o seu ganha-pão. Esse fato descreve, então, detalhes do escritor em plena atividade: havendo se preparado mentalmente para o assunto, aprontou a máquina datilográfica e quando ia começar: Um rádio, aberto em pleno volume de voz, berra, atordoador: Prá mostrar que braço é braço! Eu conquistei Sicília!60 Como era de se esperar, a música atraiu a sua atenção, já que mencionava a conquista da Sicília. É bom lembrar que se vivia em plena segunda guerra e que a cidade onde se desenrola a cena era Natal, a mais importante base brasileira durante o período. Com isso, segue o escritor na tentativa de preparar o artigo; manuseia a bibliografia e, novamente: Com pandeiro, ou sem pandeiro! Trá-lá-la-laaaaaaa. Eu... brinco! Já meio incomodado, comenta: Cinco rádios estão cantando a mesma canção que se populariza. Mesmo assim, volta ao que tencionava fazer: Vamos ao trabalho, que tenho mais? Sim! Ele menciona uma série de livros quando: Com dinheiro ou sem dinheiro Trá-lá-la-laaaaaaa... “Cecília”, marcha de Roberto Martins e Mário Rossi, gravada por Gilberto Alves para o carnaval de 1944. Cabe destacar que a ilha de Sicília havia sido tomada aos alemães pelos aliados em agosto do ano anterior. 60 97 Eu... briiiiiiiiiiiinco!61 Cascudo já parece irritado por precisar trabalhar e não poder brincar: E deve brincar, se pode. Com pandeiro e sem dinheiro, brinca-se, mas preciso escrever hoje. Vamos ao apelo. Que devo consultar! Cita diversas obras: Junto os livros. Disponho-os à mão. Vou começar. E o rádio, de novo: Um passo do caruá A – a – a – a!62 Ao que parece, começa a redigir apesar do apelo irresistível da música carnavalesca: Os dedos dançam no teclado da máquina. Enfim, reconhece a sua incapacidade de resistir à inclinação que sentia. O pensamento esvoaça, indeciso. O vocabulário fica desmilinguido. A República Dominicana não pode fixar-se na minha atenção. Agora são marchas-frevos arrepiando nervos. Vencido pela música, finalmente se entrega: Fecha-se a máquina. Sem dinheiro, sem pandeiro, sem vontade, eu paro... Assim, interrompeu a sua tentativa de trabalhar em época de carnaval, com tanta música no ar... “A interjeição no acalanto” (“Acta Diurna”, A República, 15/10/1944) é mais uma das tentativas de Cascudo de descobrir algo que decerto ninguém lembrou de saber: o porquê de a interjeição, da vogal repetida, ser tão comum nos acalantos brasileiros. Começa definindo acalanto: Canção de ninar, lullaby inglesa, berceuse de França, kalebka na Polônia, Wiegenlied alemã, cancion de cuña da Espanha, monodias do berço. Possuem uma interjeição, na maioria dos exemplos, para ser prolongada, imitando o movimento sonoro do embalo, a bolandas, o ir-e-vir da caminha ou da rede brasileira até que o menino adormeça. Os dois versos anteriores são da marcha “Eu brinco!”, de Pedro Caetano e Claudionor Cruz, gravada por Francisco Alves para o carnaval de 1944. 62 “O passo do caroá”, frevo de Nelson Ferreira e Sabastião Lopes, carnaval de 1942. 61 98 Dorme Nen-nem Senão a Cuca vem. Papai está na roça, Mamãe logo vem! U – u – u – u – uuuuu – uuuuuuu? Diante disso, Cascudo procura nos livros a resposta para a seguinte pergunta: De onde recebemos e qual a origem remota dessa interjeição? Cita diversos autores, começando por Gil Vicente, para localizar a origem das interjeições, concluindo: O nosso u – u – u – uuuu é legitimamente o Ru u u u do século XVI [...]. Encerra dizendo: A interjeição, onomatopéia que deu nascimento ao verbo arrular, poderá ter vindo, pela Espanha moura, de fontes orientais. É uma sílaba que se canta com uma ou várias notas, provindo de herança longínqua, reminiscência melismática, ainda visível nos nossos aboios do Nordeste do Brasil. A modernidade oferece uma infinidade de recursos eletrônicos sofisticados para levar uma criança ao sono. A canção de ninar na voz da mãe parece estar destinada ao fim. Quem foi embalado à maneira antiga ficou indelevelmente marcado pelo singelo momento. Os adultos do futuro terão belas recordações e saudades de um “acalentador eletrônico”? 2.3.17 Música de outros lugares Em consequência de uma viagem ao Rio de Janeiro, Câmara Cascudo escreveu para o jornal A República alguns artigos com o título “Bilhete do Rio”. No artigo intitulado “O Coral dos Estudantes da Universidade de Yale” (A República, 31/07/1941), relata suas impressões sobre a apresentação daquele Grupo de Canto – na companhia ilustre do Sr. Renato de Almeida –, realizada na Escola Nacional de Música, no dia 03 de julho. O conjunto, regido pelo maestro Marshall Bartholomew, era composto por vozes masculinas, apenas alunos das mais diversas áreas daquela universidade, nenhum deles estudante de música, os quais não recebiam nenhuma remuneração pelo que faziam. É grande o entusiasmo com que comenta o programa, 23 números fora as repetições – 99 inclusive três composições de Villa-Lobos cantadas em português, finalizando com os hinos nacionais brasileiro e americano, especialmente por se tratar de um conjunto amador, composto de estudantes universitários, e apresentar um nível tão elevado. Em uma indireta referência às diferenças culturais entre estudantes brasileiros e americanos, pergunta se os universitários cariocas deverão seguir o exemplo do conjunto ou entregar a totalidade da vibração ao futebol? Mais uma grata impressão de sua viagem ao Rio de Janeiro: a visita à Escola de Samba do Portela, na noite do dia 6 de julho, comentada em “A Escola de Samba do Portela”. (“Bilhete do Rio”, A República, 03/08/1941). A convite da Sociedade dos Amigos da Cidade do Rio de Janeiro, numerosa comitiva, incluindo estrangeiros, dirigiu-se para a sede da instituição, localizada na Estrada do Portela, bairro de Oswaldo Cruz. Cascudo não esconde sua admiração ao descrever os detalhes do que viu e ouviu: os cantores, como e o que cantavam, os instrumentos de percussão que acompanhavam esses cantores, os dançarinos, seus movimentos e passos. Registra as reações do público (e dele próprio) quando alguns visitantes entraram na roda de samba. Com pensamento voltado para a sua terra, na manhã do dia seguinte, evoca a necessidade da manutenção e valorização dos bailados coletivos e comenta: Hoje, enquanto soam os sinos cristãos chamando para a missa dominical, lembrei-me de perguntar por que nós, do nordeste, não devemos manter a tradição coreográfica desses bailados coletivos. Na crônica “A Noite dos Velhos Chorões” (“Bilhete do Rio”, A República, 7/08/1941), mais um episódio daquela viagem ao Rio de Janeiro: em companhia de Renato de Almeida, Joaquim Ribeiro, Sílvio Júlio, Basílio Itiberê, visitou um grupo de “chorões” no Encantado, que reuniu os melhores veteranos do choro carioca, os generais do “Choro da Cidade Nova”. Estava presente na ocasião Alexandre Gonçalves Pinto, autor do clássico O Choro. O conjunto compunha-se de violão, cavaquinho, trombone e bandolina (uma espécie de bandola, com oito cordas metálicas). No programa, eram apresentados valsas e tangos saudosos de Callado e Ernesto Nazareth. Registra a presença de um instrumento por ele desconhecido: o “harmônio-flauta”, um teclado com um fole posterior e timbre de sanfona. Comentouse, na ocasião, que o “harmônio-flauta” era o mesmo “triple”, da Colômbia. O próprio Cascudo o conhecia, com o mesmo nome, “ukalele” venezuelano e que era como o 100 “rajão”, da Ilha da Madeira. Voltamos, sem querer, solfejando “Apanhei-te, cavaquinho...”. Cascudo comete um engano no final, decerto alvo de uma traição da memória. O “ukelele” e o “rajão” são instrumentos de corda, o primeiro com quatro e o segundo com cinco, não conferindo com a descrição do “harmônio-flauta”. O cronista já abordou esse tema em “O cavaquinho é brasileiro?” (Som, n. 12, 16/10/1939; Fronteiras (Recife, 11/1939, n. 12, p. 5). O cronista abre o seu coração para o samba brasileiro em “Eu gosto de Samba” (“Acta Diurna”, A República, 04/01/1942), mas deplora a má qualidade das letras da maioria do que se ouve. E investe contra o que considera prejudicial ao samba: Esses versos latrinários escondem-se dentro de uma música deliciosa, contagiante, música que ondula, faísca, estremece e se irradia de nós mesmos numa antecipação de solidariedade rítmica. Todo o prestígio, todo o encanto, toda a maravilhosa popularidade do samba é a sua música. O que se deve combater é a letra, o enchimento podre que entumece de vícios uma das modalidades mais expressivas da melodia brasileira. Considere-se que o escritor presenciava uma fase em que a música popular brasileira vivia ainda os grandes momentos dos grandes compositores e intérpretes, mas já pressentia a eclosão das vulgaridades que começavam a se multiplicar. Em uma generalização rigorosa, conclui: Eu gosto do samba. Vamos indo para o carnaval. A letra do samba é que eu não topo... (grifo do autor). Em outro escrito, noticia a fundação no Rio de Janeiro, através da “Acta Diurna”, “Escola de Música Sacra (I)” (A República, 30/04/1943), da Escola de Música Sacra, sob a direção de Frei Pedro Sinzig: Aparece em hora magnífica para reforçar o bom combate contra a desvirtuação do canto religioso, orientando-o, limpando-o das impurezas, do péssimo quilate que se mistura ao ouro puro da intenção moral. E justifica sua preocupação com as misturas originárias do despreparo dos compositores: Comumente ouvimos música profana, com as cores melódicas de modinhas populares, entoada, com a maior seriedade deste mundo, no recinto divino pela realização do culto. Em conclusão, almeja a multiplicação da iniciativa e enfatiza a pureza musical 101 que deve ser obtida por meio de estudo e formação clássica, evidenciando tensão com misturas culturais. Cascudo volta a um assunto que diz ser constante em suas aulas como professor de História da Música do Instituto de Música de Rio Grande do Norte: os textos musicais sacros ouvidos nas igrejas, que não são sacros em sua essência. Dir-se-ia música sacra que não era nem sacra nem música. Informa, na crônica “Escola de Música Sacra (II)” (“Acta Diurna”, A República, 11/09/1943), que já se verifica em Natal um movimento destinado a sanear a música ouvida nas igrejas, higienizando o ambiente sagrado. Em seguida, transcreve o currículo da Escola de Música Sacra sob a direção do Frei Pedro Sinzig, que funcionava no Conservatório Brasileiro de Música do Rio de Janeiro, e sugere um entendimento entre as associações católicas da cidade no sentindo de mandar uma senhorita de Natal para frequentar esse curso. Enfatizando a necessidade de formação musical para a manutenção de conjuntos desse tipo, parece imaginar que isso poderia materializar-se, embora precariamente, com o envio de um candidato para participar do curso a se realizar no Rio de Janeiro. Por que indicar uma senhorita? Não seria esse tipo de atividade apropriada para homens? Observe-se também que o sacro é reduzido ao católico. Com a “Acta Diurna” “Trabalhos portugueses de etnografia e folclore” (A República, 08.10.1943), Cascudo apresenta sua resenha sobre o livro de Joaquim Ribeiro dos Santos Junior “Cantares vianeses e o folclore da Galiza”. No que concerne a assuntos musicais comenta a dança dos pretos em Cerviçais, descreve a coreografia e observa que a indumentária é aproximada aos cucumbís baianos. Em suas evoluções procedem à coleta de esmolas para festas religiosas e usam instrumental que é sempre de percussão. Há, ainda, menção a duas danças outras portuguesas – o “Coreto”, de Valverde, e o “Chocalheiro” de Vale do Porco, no Minho – que também se assemelham a algumas manifestações brasileiras, inclusive quando os participantes, igualmente, pedem esmolas para as festas do Menino Jesus. Na crônica intitulada “Os Estudos de Carlos M. Santos” (“Acta Diurna”, A República, 17/10/1943), estão comentários sobre dois livros do jornalista e musicólogo português, residente na Ilha da Madeira: Tocares e Cantares da Ilha (1937) e Trovas e Bailados da Ilha (1942). O autor aborda especialmente alguns elementos comuns ao Brasil e àquela ilha. Um deles é a herança brasileira do cavaquinho, já estudada na 102 crônica “O cavaquinho é brasileiro?”, publicada na revista Som (1939) e em Fronteiras (1939) na qual conclui que a origem do instrumento tão brasileiro é madeirense. Com relação ao outro instrumento madeirense citado – o rajão –, Cascudo acredita que ele deu origem ao rojão nordestino. Continuando, refere-se a um baile da Ilha da Madeira chamado “Chama-Rita”, associando-o à “Chimarrita” de nossos estados do sul, indicando, inclusive, uma diferença rítmica entre a dança original e a que existe no Brasil. Inclui, ainda, considerações sobre a viola de cordas de arame, comum na Madeira e no Brasil. Mais uma vez Cascudo recorreu a exemplos de outros países na busca de modelos viáveis para a sua terra (“Folclore musical nas universidades.” Rio de Janeiro, Diário de Notícias, 23 de abril de 1944). Havia criado a Sociedade Brasileira de Folclore a 31 de abril de 1941 e estava, três anos após, em plena luta pela divulgação de suas idéias. Nada como uma comparação com os Estados Unidos, país cuja cultura é tradicionalmente aliada à ciência e tecnologia, mostrando o que se fazia por lá na área da música folclórica, tão pouco conhecida e valorizada no Brasil. Assim começa a sua exposição: Nos Estados Unidos, a música folclórica procurada na multidão do “popular-tradicional”, é estudada sob dois aspectos: – o folksong e a balada escocesa. Em seguida, passa enumerar as universidades americanas que privilegiavam o estudo do folclore indicando, inclusive, os títulos dos cursos e o que eles estudam em matéria de folclore musical. Cita nominalmente as universidades: Berkeley, Colúmbia, Harvard, Indiana, Novo México, New York (Washington Square College) e New York State College for Teachers, Carolina do Norte, Pennsylvania, Princeton, Richmond, Carolina do Sul, Tenesse e na Universidade de Washington. Complementa sua informação indicando os nomes dos professores, o título e o conteúdo das disciplinas, e como são realizados os estudos. Parece tentar mostrar a viabilidade da iniciativa entre nós: Os métodos são simples. Discoteca, bibliografia na proporção do interesse ambiental. Nenhum juramento de fidelidade a uma determinada origem. Tudo pode ir-se modificando ao passar dos documentos e das descobertas. Não querer “provar” coisa alguma. Expor, elucidar, acompanhando a evolução do que convencionamos chamar estilos. 103 Em relação aos currículos, às matérias de estudo, destaca: Note-se os cuidado com são estudados os assuntos originais ingleses, especialmente a balada da Escócia, omnipoderosa, ainda maior que a influência negra. Finaliza com um apelo semelhante ao que tantas vezes fez: Nós do Brasil, nessa fase de reajustamento educacional e lógico, podíamos acabar com o exílio da literatura oral e popular nos programas colegiais. Era tempo, meu Bom Jesus do Bomfim, do estudante brasileiro ir-se aproximando do Povo do Brasil, em suas cantigas, em suas histórias, em suas superstições, em sua diária, comum e gloriosa normalidade. O foco da “Acta Diurna” “Canções populares japonesas” (A República, 20/02/1946) é a publicação pela American Folc Lore Society do livro Japonese peasant songs, dedicado inteiramente à reprodução de cantos dos japoneses de Kuma, uma aldeia em Suye, no Japão. O que admira o cronista é que a publicação tenha sido feita nos Estados Unidos, que vinha de recente guerra contra o Japão, havendo o trabalho tido a melhor recepção pela crítica especializada. Tudo indica que se trata de uma atividade integrante do esforço de pós-guerra destinado a revitalizar através da arte as muito abaladas relações entre Japão e Estados Unidos. Poderia ser entendido como um recado ao Brasil para seguir tal exemplo com sua própria música? No caso, metaforicamente, a guerra era interna – contra as próprias tradições populares nacionais... Estou olhando duas gravuras, diz Cascudo na “Acta Diurna” intitulada “Swing e fome”. (Diário de Natal, 14/07/1947). Na primeira, um rapaz e uma mocinha dançam swing, desarticulados e alegres, sacudindo pernas e mãos como se os quisessem atirar para bem longe do corpo. O autor aborda nessa crônica as consequências do final da Segunda Guerra Mundial na América e na Europa. Ao presente comentário interessa apenas focalizar a imagem do casal dançando o swing, que simbolizava a situação da América, cuja população não sofrera sequelas como se verificavam na Europa, salientando as diferenças que ocorriam entre os dois continentes. O cronista faz um comentário sobre o ritmo americano: 104 Não vamos proibir o swing porque ele sempre foi dançado. Está espalhando suas hostes diabólicas, puxando os nervos para a agitação rítmica, dança de mocidade real. Não era possível dançá-la outrora; no tempo das roupas graves, hirtas, cerimoniosas. O swing e o boogie woogie dizem a distância das duas concepções de ritmo no tocante à sua interpretação coreográfica. Usando uma imagem musical – a dança –, busca salientar diferenças sociopolíticas entre os dois povos. Durante uma de suas visitas a Portugal, Câmara Cascudo remetia para o Diário de Natal uma série de crônicas com o título “Bilhetes de Portugal”, abordando aspectos e fatos de sua viagem. Na crônica intitulada “O Fado” (Diário de Natal, 24/09/1947), descreve uma noitada em Lisboa e aproveita para algumas considerações sobre esse gênero musical. Começou ouvindo o fado a bordo do navio em que viajava, em pleno Atlântico. Mas ainda não é o fado. Fado só na Alfama, na Mouraria, na Madragôa, na boca das varinas e dos cholos, dos fufias de voz queimada, melena escorrida e queixo azul, como no quadro de Malhoa. Em Lisboa, teve a oportunidade de ver e ouvir o fado verdadeiro graças ao apoio de amigos: [...] levaram-me para ouvir o fado autêntico no seu derradeiro reduto civilizado, mas em tudo verídico e limpo de influências. Relata homenagens que recebeu em um desses locais. E, em um fim de noitada irretocável: Pela madrugada [...] levam-me para ver os recantos celebrados nos versos do fado, Sé Velha, ruas melancólicas, Nossa Senhora do Monte com seu alpendre na frente olhando o sono de Lisboa... Na crônica “O Grupo „Polifonia‟ de Mário de Sampaio Ribeiro” (“Acta Diurna”, Diário de Natal, 10/01/1948), Câmara Cascudo aborda, inicialmente, o musicista e demonstra sua admiração pelo trabalho e pela cultura do regente português, a quem conheceu pessoalmente em Lisboa. Em seguida, descreve os momentos de encanto pessoal ao assistir a uma apresentação do coral “Polifonia”– no momento, era identificado como conjunto orfeônico –, que lhe foi particularmente feita. Não há por que não imaginar o quanto de ideias e projetos brotavam em sua mente, sonhando em ver coisas, como as que presenciava, serem viabilizadas em seu país e em sua terra natal. 105 Câmara Cascudo comenta em outra ocasião um artigo de uma revista, no qual se afirma pequena a variedade de danças em Portugal. Contestando, em “Danças regionais portuguesas” (“Acta Diurna”, Diário de Natal, 28/01/1948), relaciona a multiplicidade de danças que testemunhou em Portugal. Aborda, ainda, as danças populares brasileiras e o pouco de influência que tiveram dos colonizadores, atribuindo-as ao indígena e, muito mais, ao elemento negro. Nesse particular de nossa herança cultural, opta pela sequência negros, indígenas e portugueses como a mais verdadeira ao considerar-se a influência na gênese das danças populares brasileiras. Em uma nova crônica, o escritor faz a descrição do encontro que teve em Montevidéu com Gerardo Matos Rodriguez, autor do famoso tango “La cumparsita” (“La cumparsita”, A República, 11/05/1948). Comenta a popularidade internacional da composição e relata sua conversa com o compositor, que demonstrou simpatia pela música brasileira e, em particular, admiração por uma delas da qual, na ocasião, não lembrava o nome. A pedido, cantarolou a melodia, logo identificada: era “Tico-tico no fubá”... Na medida em que aborda o alcance da disseminação de uma música argentina originária de compositor uruguaio, remete ao prestígio internacional de uma música brasileira, obra de Zequinha de Abreu, um modesto pianista do interior paulista, detentora de idêntica posição no gosto e prestígio mundiais. Ainda outra vez, Câmara Cascudo refere-se ao “conjunto orfeônico” “Polifonia”, que ouviu em Lisboa, sob a regência do maestro Mário de Sampaio Ribeiro. O título dessa crônica é o lema do grupo, “Pro Deo, Pro Patria, Pro Arte” (“Acta Diurna”, A República, 26/06/1948), e remete imediatamente ao momento vivido em plena era salazariana com conhecido lema Deus/Pátria/Arte. Comenta a audição a que esteve presente, realizada no Museu de Arte Antiga de Lisboa, exprimindo sua admiração por tudo que viu e ouviu. Indiretamente, a crônica associa-se à admiração de Cascudo por aquele regime político e sua prática cultural. Há mais uma crônica sobre o grupo português “Polifonia”, que exprime seu entusiasmado comentário sobre o conjunto e o trabalho de seu regente, Mário de Sampaio Ribeiro. Nessa, que traz como título o nome do conjunto “Ecce Iterum Polyphonia” (A República, 01/07/1948), apresenta o programa do recital composto de músicas de Arkedelt, Victoria, Bach e Mozart. Se visualizou um modelo para o Brasil assim ele não o demonstrou, pois a grande ênfase era o trabalho desenvolvido pelo 106 conjunto e seu maestro: Creio que entre as palmas talvez soasse o estridor dos aplausos distantes e brasileiros desse velho admirador de Mário de Sampaio Ribeiro. Na crônica “Concurso Internacional de Canções e Danças Populares” (“Acta Diurna”, Diário de Natal, 06/05/1949), comenta a realização em Madri, no mês de julho, desse evento que permite a participação apenas de trabalhadores e não de profissionais da música. Os operários, mestres, oficiais, aprendizes são os únicos que participarão da luta folclórica e terão direito aos prêmios. Eram vinte e nove provas compostas de uma peça de livre escolha e uma obrigatória. Lembremo-nos desse espetáculo sugestivo. Uma massa coral composta de operários cantando VERBUM CARO de Ceballo, do século XVI, ou TENEBRAE FACTAE SUNT, de Tomás Luis de Victoria, e os coros mistos entoando o AMEM do oratório “O Messias” de Haendel. Ou as operárias e operários cantando Mozart, Verdi, Saint Saënz, Bizet, Donizetti, Falla, Turina, debaixo de aplausos. Essa é a visão atual e viva da integração trabalhista do trabalhador. Cascudo político conclui: Esse concurso, organizado pela obra sindical espanhola “Educação e Descanso”, mostra em que nível cultural vive o operário contemporâneo onde a propaganda soviética o diz escravizado, faminto, explorado e furioso para matar e vingar-se... Assim como o fizera em relação ao grupo português e ao salazarismo, Cascudo aproveita a atividade espanhola para expressar admiração pelo franquismo, fazendo tábula rasa do totalitarismo que marca essa experiência em escala similar ao stalinismo, que ele rejeita. 107 3 INTERTEXTUALIDADES (LIVROS) Alma patrícia (1921)63, primeiro livro publicado por Luís da Câmara Cascudo, inclui comentários sobre a obra literária de autores potiguares, entre eles Segundo Wanderley, Ferreira Itajubá e Auta de Souza. Esses poetas tiveram grande número de seus versos transformados em modinhas que gozaram de grande prestígio nas serenatas e saraus da cidade do Natal dos fins do século XIX e inícios do XX. São, por isso, destacados aqui. Segundo Wanderley teve em vida diversos livros publicados, mas, após seu falecimento em 1909, amigos fizeram editar Poesias (1910), uma seleção de seus poemas. Em Alma patrícia, Cascudo apresenta uma rigorosa análise da obra literária de Segundo Wanderley, chegando, em alguns momentos, a ser contundente. Nenhuma referência musical foi encontrada no texto, embora o poeta tivesse dez de seus poemas musicados, os quais desfrutavam de grande popularidade. Também uma parte da peça teatral A louca da montanha tinha um trecho musicado. Anos mais tarde, Cascudo escreveu numerosas crônicas sobre o autor, nas quais se percebe a ausência do rigor inicial. O maior número de referências foi para o poema “O poeta e a fidalga”, pelo qual não esconde sua admiração, pois, ao haver se tornado uma modinha, desfrutou de popularidade nacional. O próprio Cascudo relata tê-la ouvido cantada em diferentes lugares e interpretada por diversos cantores. Assim, relata em “„O poeta e a fidalga‟, de Segundo Wanderley”. (“Acta Diurna”, A República, 11/06/1960). Da mesma maneira, manifesta-se em “Nortista incurável” (A República, 12/05/1944) e em “Nova edição das „Poesias completas de Segundo Wanderley‟” (“Cidade do Natal”, repetindo a história da popularidade de “O poeta e a fidalga”, A República, 12/01/1949). Sobre poemas musicados de Segundo Wanderley, escreveu, ainda, “Vozes de um anjo” (“Acta Diurna”, A República, 24/05/1942); “Amor esdrúxulo” (“Acta Diurna” A República, 28/06/1960); e “Identificação de „Um sonho‟, de Segundo Wanderley” (“Cidade do Natal”, A República, 23/02/1943), crônicas já analisadas no presente trabalho. Finalmente, Cascudo aborda em sua crítica o autor de peças teatrais. Ao referirse a Natal em camisa, omite qualquer menção musical, mesmo em se tratando de uma 63 CASCUDO, Luís da Câmara. Alma patrícia: crítica literária (1921). As datas que se seguem aos títulos citados nos textos correspondem às primeiras edições. Nas notas de rodapé, estão as datas de edição dos livros utilizados, que podem, algumas vezes, ser primeiras edições. Algumas obras não tiveram outras edições. 108 revista (de costumes locais) e, por conseguinte, de uma peça musicada. O fervor purista do jovem escritor não se deixou abalar pelo grandioso sucesso causado pelos tipos populares da cidade, revestidos das melodias de José Bernardo Borrajo, que se apresentaram no palco do Teatro Carlos Gomes sob a responsabilidade da renomada Companhia Dramática Apolônia Pinto, nos dias 15,17 e 29 de agosto e 14 de setembro de 1907. Há de se compreender o ímpeto com que o jovem de 23 anos, impregnado de vasta cultura literária, investiu contra o que não considerava ser de boa qualidade. Não é esse, entretanto, o objetivo deste trabalho. Neste momento, parecer ser suficiente mostrar o ambiente cultural em que vivia e até imaginar que, ao ainda precoce escritor, as manifestações musicais populares não podiam alcançar o nível das literárias, não merecendo, assim, nivelar-se em um escrito seu. Ao contrário do que verificou com o poeta Segundo Wanderley, no capítulo “Auta de Souza”, Cascudo faz transbordar a sua admiração pela jovem poeta, falecida aos 25 anos, em 1901. Dezoito poemas musicados, conhecidos e cantados pela velha Natal, não tiveram do jovem crítico literário a menor menção64. Amigo íntimo dos irmãos da poetisa, Cascudo teve acesso a detalhes de sua vida e publicou depois Vida breve de Auta de Souza (1961), a ser comentado adiante65. Cascudo conheceu pessoalmente Ferreira Itajubá, embora fosse muito criança quando o poeta faleceu, em 1912. O livro póstumo desse último escritor, Terra Natal, publicado em 1914, mereceu grandes elogios do crítico iniciante, mas os seis poemas ali incluídos e tornados canções de grande popularidade em Natal não foram mencionados66. O lado mais popular do poeta e referências à sua vida boêmia aparecem na crônica publicada em A Imprensa (31/07/1921), conforme será comentado no texto referente ao livro Joio (1924) e abordado na parte concernente às crônicas. Aprofundando-se em detalhes sobre a vida do poeta, Cascudo o descreve, em Alma patrícia, como um boêmio portador de comportamento social pouco elogiável. O autor deste trabalho apresentou um arrazoado em que tentou, baseado em fatos comprovados da vida do poeta, amenizar as cores carregadas com que foi pintado anteriormente pelo jovem crítico67. 64 GALVÃO, Claudio. O cancioneiro de Auta de Souza (2001). CASCUDO, Luís da Câmara. Vida breve de Auta de Souza (1961). 66 Mais informações e partituras em GALVÃO, Claudio. A Modinha Norte-Rio-Grandense (2000). 67 GALVÃO, Claudio. A Modinha Norte-Rio-Grandense (2000). 65 109 Histórias que o tempo leva... (da História do Rio Grande do Norte) (1924)68 é o segundo livro publicado por Câmara Cascudo. Entre os seus capítulos, não há nenhum que verse inteiramente sobre música, mas foram encontradas duas breves menções a assuntos musicais que merecem ser consideradas. Em “Um teatro campal em 1868” (p. 195-204), relata a encenação de uma peça teatral – Camila nos subterrâneos ou Os salteadores do Montenegro –, realizada em um sítio nos arredores de Natal. Cascudo relata minuciosamente as passagens de cada um dos atos e se refere a alguém cantando os versos: Oh! Quão triste é meu fado, / Nasci para a desventura; etc. Informa que esses versos, que constam do segundo ato, foram cantados por um personagem masculino, mas dublados pela atriz Maria Epifânia, que ficava oculta nos bastidores. Relata que a música era da autoria de Lourival Açucena, sobre quem muitas vezes escreveu. Informa ainda que a mesma peça já havia sido encenada em 1858 por outro grupo de amadores, entre eles a atriz que, dez anos após, dublou os tais versos. Relata também o episódio do realejo de corda, que resolveu o problema da falta de música para aquele momento. Na parte “Notas”, do mesmo livro (p. 230), Cascudo informa que “Teatro Campal” foi publicado em A Imprensa, de 20 e 23 de maio de 1920. Zila Mamede69, por sua vez, indica que o primeiro desses artigos é o que está republicado em Histórias que o tempo leva... (da História do Rio Grande do Norte) (1924)70. O capítulo “Os macacos do governador Povoas” (p. 106-110) descreve as excentricidades de Sebastião José de Melo Povoas, Presidente da Província do RN71. Relata a história curiosa desse político que tinha por mania criar macacos. Um pequeno e único detalhe musical: Melomaníaco, como todo fidalgo português, reunia, uma vez por outra, no palácio, tudo o que era tocador de violão, cavaquinho, viola e guitarra. Cascudo refere-se à introdução do fandango no RN, ocorrida durante a gestão do Presidente Povoas, embora sem citá-lo nas crônicas já aqui comentadas: “Tenente de Milícias Manoel Joaquim Açucena” (“Acta Diurna”, A República, 19/11/1939) e “O Pai de Lourival Açucena” (“Acta Diurna”, A República, 16/01/1943). 68 CASCUDO, Luís da Câmara. Histórias que o tempo leva... (da História do Rio Grande do Norte) (1924). 69 MAMEDE, Zila. Luís da Câmara Cascudo, 50 Anos de vida intelectual, 1918-1968 (1970). 70 O mesmo tema tratado por Cascudo em “Acta Diurna” está comentado na parte referente às crônicas. 71 Governou a Província do RN no período de 22 de janeiro de 1812 a 16 de novembro de 1816. CASCUDO, Luís da Câmara. Governo do Rio Grande do Norte (1939). 110 Terceiro livro publicado por Luís da Câmara Cascudo – Joio (1924), tem como subtítulo “Páginas de literatura e crítica”72. Traz dois capítulos cujos títulos sugerem algum conteúdo musical. O primeiro deles, “Ao som da viola” (p. 99-102), refere-se ao livro do mesmo nome, da autoria de Gustavo Barroso. “Ao som da viola” foi anteriormente publicado com o título “Comentando”, no jornal A Imprensa (02/12/1921), e em 1924 é incluído no Joio. Já foi registrado na parte referente às crônicas de Câmara Cascudo que o conteúdo desse escrito indica um já precoce empenho do autor pela cultura popular, o que contraria as afirmações de que tal interesse somente se origina em 1939, quando da publicação de Vaqueiros e Cantadores. “Ao som da viola” é bem nosso, substitui em parte o descaso dos intelectuais norte-rio-grandenses pelo folclore. Diante dessa afirmação, constata-se claramente o interesse do autor pela cultura popular, mesmo antes de 1939. Uma abordagem minimamente musical se verifica quando se refere ao cantador norte-rio-grandense Fabião das Queimadas, alvo de muitas referências futuras: Quando li “Ao som da viola” lembrei-me de Fabião das Queimadas, o menestrel negro, o octogenário menino e amoroso de cantar. A última encarnação de alegria viva de uma raça. Fabião desaparecendo, perderemos a messe interessante das suas reminiscências, versos, emboladas e martelos, sátiras, motejos e racontos, louvações e narrativas, tudo se apagará com a verve do velho vaqueiro e não teremos, num livro de arte, este símbolo admirável do sertão sofredor e paciente. Depois de vastos comentários de cunho literário, encontra-se uma menção musical mais direta ao descrever o vaqueiro: [...] o cantador de viola enfeitadas de fitas e ramos de alecrim [...]. E nada mais foi abordado sobre música. O texto em que comenta o Terra Natal (1914), livro póstumo de poemas de (Manoel Virgílio) Ferreira Itajubá, é quase totalmente direcionado para a face literária da obra. Dessa forma, está inserido no capítulo “Ferreira Itajubá” (p. 106-108). O autor, entretanto, teve grande número de poemas musicados por compositores populares e 72 CASCUDO, Luís da Câmara. Joio: páginas de literatura e crítica (1924). 111 transformados em “clássicos” da modinha norte-rio-grandense73. O texto é uma reprodução da crônica “Ferreira Itajubá”, publicado em A Imprensa (31/07/1921). Cascudo conheceu pessoalmente o poeta. Era ainda criança quando ele, que faleceu em 1912 (Cascudo tinha 14 anos incompletos), frequentava a residência do seu pai, o Coronel Cascudo. Alguns trechos do referido escrito trazem conteúdo musical. É de se sentir a ausência de maiores informações sobre a relação poeta-música, que o escritor tão de perto conhecia. Mesmo assim, o apresenta como: Sereneiro, cantor de modinha, tocador de violão, amigo das ceiatas, das morenas de olhos negros, tristonhos e cismarentos, todos os pequenos vícios e as grandes virtudes, guardavam-se nele como num receptáculo natural e lógico. Ao comentário de que, havendo sofrido muito, Itajubá teria descansado, Cascudo contrapõe dizendo que, em vez de descansar como morto, o poeta preferiria [...] o palor das noites enluaradas e de violão peito, fazendo surdiar os bordões inspirados, cantar as tranças negras da sua preferida, em serenata ruidosa sob o lampadário das estrelas inúmeras. Ferreira Itajubá teve seis poemas tornados canções de grande popularidade em Natal. Viajando o sertão (1934)74 resultou de uma viagem feita por Câmara Cascudo ao sertão norte-rio-grandense no mês de maio de 1934, em companhia de outros intelectuais. Seus escritos sobre essa experiência foram publicados no jornal A República, constando de dez crônicas, entre maio e junho do mesmo ano. Ainda em 1934, foi publicada a primeira edição, que traz os escritos já publicados em jornal. Sua primeira manifestação sobre música dá-se como consequência da visita a um baile na povoação de Paraú. Onde estão as danças do sertão de outrora? A valsa Viana (varsoviana), a mazurca, a polca em que a gente pulava que era um gosto, o xotes, abrindo e fechando, como um leque, a quadrilha estridente, sempre errada, com o parmarcante xistoso, puxando fogo, dando berros de comando: – balancê, trevecê, seu lugar, preparar para o garranchê, segue o quadro, caminho da 73 74 GALVÃO, Claudio. A Modinha Norte-Rio-Grandense (2000). CASCUDO, Luís da Câmara. Viajando o sertão (1975). 112 roça, faz o xis, galope vexado, olha a chuva... Onde pairam estas danças que dancei? Agora é o fox, sincopado, arrítmico, disfônico, a marchinha pernambucana escritos nos nervos elétricos dos moços, o choro carioca, lento, dengoso, remorado e sensual. (p. 20). No capítulo “Música sertaneja” (p. 49-52), Cascudo inicia expondo sua discordância e lamentando as mudanças ocasionadas com a chegada da modernidade: Música sertaneja, no sentido expresso do termo, nunca existiu. Para dançar, dançam o que se dança no litoral. Valsas, xotes, quadrilhas, tangos, agora maxixes, fox, rags e até rancheiras que adaptaram às corridinhas da saudosa polcapulada. Sua opinião é que: A impressão geral da música sertaneja só se pode ter ouvindo cantadores. Acusando a chegada do progresso pela perda da originalidade e despersonalização da música sertaneja, reitera: A improvisação nos bailes é diminuta e as vitrolas acabaram matando, numa percentagem séria, a facilidade criadora do sertanejo em temas musicais. À página 50, comenta o “desafio” sertanejo: O desafio não é uma espécie musical. É um gênero. Tem várias partes, como uma suíte, diferindo de ritmos e de tipos melódicos. Aborda, ainda, seus elementos componentes, como a colcheia, a carretilha, o martelo, alcançando, também, as formas poéticas das letras. Quanto aos instrumentos utilizados, afirma: Um cantador famoso não se serve da viola senão nos intervalos das frases recitadas. [...] A viola é de pinho, com seis cordas duplas de aço, afinada por quartas, com dez e doze trastos no braço. No capítulo “Decadência da „cantoria‟” (p. 52-54), volta a deplorar o declínio da originalidade musical sertaneja existente em tempos anteriores: O sertão perdeu seus cantadores. A vida transformou-se. As rodovias levam facilmente as charangas dum para outro povoado. As vitrolas clangoram os foxs de Donaldson e de Youmans. Conclui manifestando sua esperança: O cancioneiro satírico, o cancioneiro heróico, o cancioneiro lírico do sertão, ainda esperam o seu codificador. [...] E a música? E o ritmo? A dança, com suas modificações, influências e metamorfoses? E pensar que Câmara Cascudo expõe essas queixas no distante 1934... 113 A vida e obra de Ermanno Stradelli, que dedicou sua vida aos estudos etnográficos da região amazônica, é o motivo de Em memória de Stradelli (1936)75. Cascudo comenta o trabalho por ele realizado, destacando o Vocabulário da Língua Geral, Português-Nheengatu e Nheengatu-Português. A obra abrange não apenas a parte idiomática, mas também penetra em particularidades dos usos e costumes das populações indígenas que estudou. “Enciclopédia Ameraba” (p. 75): Descreve o Vocabulário da Língua Geral, Português-Nheengatu e Nheengatu-Português, escrito por Stradelli e publicado na Revista do Instituto Histórico Brasileiro (1928-1929). Ao abordar o universo vocabular, indica que o autor se refere a instrumentos de guerra e musicais. Stradelli descrevendo as danças [...] indica que o autor também registrou elementos musicais (p. 81). O denso volume de informações contidas em O Marquês de Olinda e seu tempo: 1793-1870 (1938)76 não está restrito apenas à biografia de Pedro de Araújo Lima – o Marquês de Olinda –, eminente personagem da política brasileira, mas é, igualmente, um acurado painel onde se desenrola a história do Brasil imperial. Nele, o autor amplia seu foco para pessoas e fatos do Brasil e de outros países, justificando o termo “e seu tempo”, que complementa o título. Um exame mais detalhado da obra indicou uma referência musical no capítulo XI (p. 319 e seguintes) – o último do livro –, no qual Câmara Cascudo dedica algumas páginas para comentar a vida social e econômica da época: O engenho, no recôncavo baiano e zona açucareira pernambucana, foi um fator de sociabilidade, de elegância e de conforto. É no interior dos engenhos nordestinos que vai ser destacado o elemento social responsável por uma cultura fortemente telúrica e amplamente rica em substância. O escravo africano passa a receber inesperado destaque no conteúdo de uma obra que tratava de altos políticos, nobres e damas da sociedade imperial. A escravaria vasta povoava as senzalas em pombal, centros de folguedos africanos que o amo tolerava e mantinha, irradiava as festas típicas, a sátira mestiça dos Bumba-meu-boi, a monotonia langue e romântica das Cheganças 75 76 CASCUDO, Luís da Câmara. Em memória de Stradelli (1967). CASCUDO, Luís da Câmara. O Marquês de Olinda e seu tempo: 1793-1870 (1938). 114 que remembravam as lutas de mouros e cristãos n‟água azul do Mediterrâneo, os rimances sem fim do Fandango, não mais dança da península mas um auto, os deturpados autos populares das Lapinhas e Pastoris. Uma informação enriquece o relato e aproxima os tão afastados componentes da cadeia social: Além dessas o senhor financiava as orquestras negras. Era a vez dos ganzás e puítas roncadores, dos mangonguês pequenos e dos gongáes77 imensos. O quadro esboçado se fecha com: E nas noites do Natal, S. João e Reis a escravaria estrondava os atabaques até madrugada clara. Escrito basilar da obra cascudiana, Vaqueiros e Cantadores (1939)78 tem como bases, em primeiro lugar, as lembranças do autor quando de suas andanças pelo sertão em dias de uma infância sertaneja, despreocupada e livre. Nessa fase, a memória do futuro escritor acumulou grande número de fatos de forte apelo emocional. Resumo neste livro quinze anos de minha vida, diz, no prefácio. Uma segunda etapa, estando já decidido e assumindo a sua missão de pesquisador do folclore, consistiu na coleta organizada e sistemática de dados, bem como na manipulação dos elementos há tanto preservados em sua memória. Tratando especificamente da poesia cantada em suas mais variadas ramificações, aborda, predominantemente, o aspecto “literário” das manifestações. Acrescenta, entretanto, aprofundados comentários sobre o elemento musical e, de forma pioneira, importantes ilustrações musicais de muitos dos temas que aborda. É bem clara a sua definição da melodia do canto do desafio (p. 152): O desenho musical se desenvolve automaticamente por impulsão do ritmo poético ou por sua única necessidade declamatória. É um acessório. Mais à frente, reforça: O canto de improviso do sertanejo se tem pobre o desenho é porque é um detalhe, uma forma, do essencial que é o recitativo, único 77 É certamente um engano a grafia dessa palavra. Esse instrumento musical negro não consta do seu Dicionário do Folclore Brasileiro (5. ed.), onde se encontra gonguê, que deve ter sido a intenção do autor. 78 CASCUDO, Luís da Câmara. Vaqueiros e Cantadores (1968). 115 centro-de-interesse para o auditório, ainda que seja como entonação irregular e obediente aos caprichos pessoais de cada executor. Câmara Cascudo está tratando, portanto, de uma manifestação folclórica composta de poemas e seus componentes, como os temas, rimas, métricas, influências, herança histórica. A parte musical que os emoldura está sempre presente, mas é simplesmente complementar. O documentário recolhido por Luís da Câmara Cascudo seria por ele distribuído em três partes. Vaqueiros e Cantadores traria o estudo da parte poética. Previa outro(s) trabalho(s), versando sobre a parte religiosa. O terceiro estudo sobre as artes populares prometia com suas letras, danças e solfas, o que, infelizmente, não aconteceu. Após 140 páginas dedicadas à história e à teoria da poética do cantador, Cascudo passa a analisar os instrumentos musicais por ele utilizados. Conclui pela predominância da viola e da rabeca, estudando suas características formais. Aprofundando a função do instrumento durante o canto, conclui: Na cantoria não há acompanhamento musical durante a solfa. Os instrumentos executam pequenos trechos, antes e depois, do canto. Um exemplo desse procedimento está na partitura à página 150. Este trecho musical que ouve as cantorias, rápido e sempre em ritmo diverso do que foi usado no canto, tem como função oferecer o tempo de espera para o outro cantador armar os primeiros versos da resposta improvisada. E evoca os prelúdios e poslúdios com que os rapsodos gregos desviavam a monotonia das longas histórias contadas, igualmente longas, na sua maioria, entre os bardos sertanejos. Diferentemente do rapsodos gregos e dos trovadores medievais (p. 149), o cantador nordestino independe do acompanhamento. No fim de cada pé, findando cada linha do verso, dá um arpejo na viola ou um acorde na rabeca. Terminada a estrofe, executa-se o pequeno trecho referido, enquanto o outro cantador prepara a resposta ou a continuação da cantoria. 116 O pequenino trecho executado depois de cada cantador cantar (sextilha, décima etc.) chama-se rojão ou baião. A partitura da página 150 ilustra e exemplifica a afirmação acima79. A presença do pandeiro ou ganzá não é das mais constantes, comparando-se à viola ou à rabeca. Inácio da Catingueira cantava sob a moldura de um pandeiro. Chico Antônio, elevado à glória por Mário de Andrade, acompanhava-se apenas de um ganzá, porém vivia no agreste e não no sertão. Uma interessante referência a instrumentos musicais encontra-se no Desafio entre o cego Aderaldo e José Franco, impresso por Aderaldo e transcrito por Cascudo (p. 227-232). À página 230, canta Aderaldo: Flauta e flautim Flautim flauta Muita gente alta Toca bandolim Brada o cavaquim Saxe e bombardão Trompa e violão Violão e trompa Grita os cabras rompa Entra o rabecão. Os instrumentos acima mencionados jamais fizeram ou farão parte do Desafio. Ainda no capítulo “Canto e acompanhamento”, Luís da Câmara Cascudo detémse, ainda, sobre a voz do cantador sertanejo: [...] não se sabe que som é aquele, acima ou abaixo dos diapasões, sem graves, com agudos estridentes; uma voz roufenha, mas duma resistência admirável, indo, após seis e oito horas de canto, aliadas ao esforço de improvisar ou de repetir decorações de poemas complexos e mais atender ao acompanhamento, a um estado de frescura que para outros corresponderia ao desfalecimento. (p. 151). 79 Há um pequeno engano no compasso 15: as três primeiras notas não são três semicolcheias e sim uma colcheia e duas semicolcheias. 117 Manifesta, ainda, a dificuldade de posicionar a voz dos cantores nordestinos na classificação tradicional de tenor, barítono e baixo. O som característico emitido pelo sertanejo cantador não tem semelhante em nenhuma parte do país. Tal fenômeno pode ser observado entre os cantores country norte-americanos, os conjuntos tradicionais gaúchos e as recentes “duplas sertanejas” do centro-sul brasileiro. Embora soando pouco agradável aos ouvidos mais exigentes ou a ele pouco habituados, o timbre áspero, alto, tem um ímpeto agressivo de combate corpo-a-corpo. E a melodia que se canta? Vezes é uma solfa secular que se mantém quase pura. Noutra, a linha do tema melódico se desfigurou, acrescido de valores novos e amalgamado com trechos truncados de óperas, de missas, de “baianos” esquecidos, do tempo-em-que-vintém-era-dinheiro. (p. 96). Mais adiante (p. 97), continua a comentar o som emitido pelo cantador: O cantador, como o rapsodo, canta acima do tom em que seu instrumento está afinado. Abusa dos agudos. É uma voz, dura, hirta, sem maleabilidade, sem floreios, sem suavidade. Cantam soltamente, quase gritando, as veias entumecidas pelo esforço, a face congesta, os olhos fixos para não perder o compasso, não o compasso musical que para eles é quase sem valor, mas a cadência do verso, o ritmo, que é tudo. Em seguida, diz: Nenhuma preocupação de desenho melódico, de música bonita. Monotonia. Pobreza. Ingenuidade. Primitivismo. Uniformidade. A partir da página 189, segue-se a transcrição de alguns exemplos do folclore poético regional e a partir da página 108 comenta a xácara da “Bela Infanta”. Das diversas fontes e versos referidos, nenhum publicou música, afirma Cascudo. Cita a fonte de quem obteve a melodia (Maria Leopoldina Freire) sem identificá-la. Essa solfa foi entregue ao maestro Waldemar de Almeida, que a registrou musicalmente, estando a parte musical inserida à página 211. Informa que essa mesma melodia foi utilizada pelo citado maestro em seu “Acalanto da Bela Infanta”, integrante do conjunto de peças para piano intitulado “Paisagens de leque” (p. 208). 118 Comparando as solfas obtidas através de diversas fontes, chegou à conclusão: Tive assim a alegria de ser o primeiro a revelar uma música de quatro ou cinco séculos. Em seguida, vem a transcrição de uma sétima sertaneja, na qual se evidencia a solfa do “Redondo-Sinhá”, conforme a cantava o famoso Fabião das Queimadas. Complementando, inclui dois compassos da solfa80. Os fragmentos da xácara do “Chapim Del Rei” não mereceram a valorização de maior atenção do mestre Cascudo, que não se detém em maiores considerações nem transcreve a solfa (p. 219). Em mais nenhum exemplo está presente qualquer comentário musical de importância. Entre os cantadores famosos biografados por Cascudo, evidencia-se o nome de Fabião das Queimadas81, decerto o mais famoso dos poetas-cantadores sertanejos do Rio Grande do Norte. No final do prefácio (p. 11), o autor destaca a paciência e obstinação do maestro Waldemar de Almeida, ao escrever os trechos musicais incluídos no livro. É o primeiro a fixar música de cantoria sertaneja em sua mais absoluta naturalidade. Sua inesgotável teimosia conseguiu o que seria impossível a muitos, ressalta Cascudo. Não fornece detalhes de como foi feito o trabalho. Não se tem notícia de que Waldemar de Almeida teria ouvido as melodias no local de origem. Tal façanha teria sido igualmente destacada por Cascudo. É mais provável que o próprio pesquisador, havendo memorizado, tenha cantado ou tocado ao piano as melodias para ele, que escreveu as músicas, em seguida. Qualquer que tenha sido o processo, o resultado é que, pela primeira vez no estado, essas melodias foram registradas na pauta musical. Estão publicadas as seguintes melodias: 1 – Solfa do “Boi-Surubim” (p. 88). 2 – Solfa de uma “tuada” de negros cantada por uma ex-escrava, que lhe informou ser a mesma cantada por negros postados em círculo, acompanhado de palmas, enquanto uma negra dançava no meio (p. 119). Cascudo insiste, ainda (p. 97): 80 O compositor potiguar Oswaldo de Souza harmonizou a melodia em 1942, nela encaixando versos de Sylvio Moreaux, no que resultou “Protesto”, para canto e piano, publicado pela Ricordi Brasileira (São Paulo) e gravada por Ely Camargo no LP “Canções da minha terra” (CMG 2 v. 1). 81 Cascudo publicou vários escritos sobre Fabião das Queimadas, conforme está indicado na tabela anexa à dissertação. 119 Demais, o sentimento musical sertanejo não é elemento que prepondere em su‟alma. Um índice é ausência de música própria para cada espécie de cantoria. No momento de cantar improvisa-se uma, qualquer, por mais inexpressiva que seja servirá para ritmar o verso. Não se guarda a música de “colcheias”, “martelos” e “ligeiras”. A única obrigação é respeitar o ritmo do verso. Case-se este com qualquer música, tudo o mais estará bem. O sertanejo não nota o desafinado. Nota o arritmismo. 3 – Para ilustrar o incipiente acompanhamento aposto ao canto das cantorias, Cascudo insere à página 150 o melhor exemplo do seu livro, no qual se podem observar a linha melódica do canto, os acordes da viola que se posicionam ao término de cada verso e, finalmente, o rojão ou baião, executado pelo instrumento ao fim de cada estrofe82. 4 – À página 153, encontram-se dois exemplos musicais: um “martelo” de dez pés e a solfa da “ligeira”. 5 – A xácara da “Bela Infanta” está presente em três versões na página 211. 6 – O último exemplo (p. 219) é a solfa do Redondo-Sinhá, que se segue à transcrição da sátira sertaneja, em sextilhas, conforme cantava Fabião das Queimadas. Ao todo, são sete os exemplos musicais de Vaqueiros e Cantadores. Antologia do folclore brasileiro (1944)83, embora reúna textos de diferentes autores desde o período colonial, assumiu forte cunho autoral na obra de Câmara Cascudo, uma vez que faz um balanço informal de seus interesses na área até então e projeta campos de pesquisa que o autor desenvolveria posteriormente. Luís da Câmara Cascudo apresenta nesse trabalho uma vasta compilação versando sobre o folclore brasileiro, recolhida de fontes a partir do século XVI até o século XX e abrangendo cronistas, viajantes estrangeiros e estudiosos brasileiros. Foram cinquenta e quatro autores compulsados, e os textos oferecem uma ampla visualização do tema. 82 No compasso 15, corrija-se: ao invés de três semicolcheias, considere-se uma colcheia e duas semicolcheias. 83 CASCUDO, Luís da Câmara. Antologia do folclore brasileiro (1944). 120 O livro é dedicado aos cantadores e violeiros, analfabetos e geniais e às velhas amas contadeiras de histórias maravilhosas. As partes que contêm referências musicais estão indicadas, seguidas dos títulos dos capítulos. SÉCULOS XVI-XVII-XVIII: OS CRONISTAS (p. 13-53) 1 – LÉRY, Jean. Viagem à Terra do Brasil. São Paulo: Martins, 1941. p. 28-30. – “Dança de guerra dos tupinambás”. 2 – SOUZA, Gabriel Soares de. Tratado descritivo do Brasil em 1587. São Paulo: Brasiliana, 1938. p. 31-32. – “Que trata das saudades dos tupinambás e de como choram e cantam”. 3 – D‟EVREUX, Ivo. Viagem ao norte do Brasil. Rio de Janeiro: [s.n.], 1929. p. 36-37. – “Cantando para caçar formigas”. 4 – PEREIRA, Nuno Marques. Compêndio narrativo do peregrino da América. Rio de Janeiro: 1939. p. 46-47. – “Os calundus baianos”. – “O demônio cantando modinha”. – “Danças e mascaradas nas procissões”. VIAJANTES ESTRANGEIROS (p. 57-126) 1 – LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. São Paulo: Martins, 1942. – “Canto de trabalho”, p. 60. 2 – FREIREYSS, Georg Wilhelm. Viagem ao interior do Brasil. Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, São Paulo, 1907. – “Batuque”, p. 65. 3 – KOSTER, Henry. Viagens ao nordeste do Brasil. São Paulo: Brasiliana, 1942. – “Dança de índios, negros e escravos no Jaguaribe”, p. 66-67. 121 4 – TOLLENARE, L. F. Notas dominicais. Revista do Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano, Recife, n. 16, 1904. – “O lundu sedutor”, p. 72-73. 5 – MARTIUS, Karl Friedrich Philipp von. Viagem pelo Brasil. Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 1938. – “Danças dos puris” (p. 81). – “Festas populares do Tejuco, Distrito Diamantino, Minas Gerais, 1818” (p. 8286). – “Mouros e cristãos em Ilhéus” (p. 86-87). 6 – WALLACE, Alfred Russel. Viagens pelo Amazonas e Rio Negro. São Paulo: Brasiliana, 1939. – “Histórias cantadas pelos negros de Mexiana” (p. 95). – “A dança da cobra” (p. 96). – “Música do diabo” (p. 97-98). SÉCULOS XIX E XX: OS ESTUDIOSOS BRASILEIROS (p. 129-502) 1 – MORAIS FILHO, Alexandre José de Melo. Festas e tradições populares do Brasil. Rio de Janeiro: H. Garnier, 1901. – “A véspera de Reis (Baía)” (p. 186-199). – “Os cucumbis (Rio de Janeiro)” (p. 199-207). 2 – ROMERO, Silvio. Cantos populares do Brasil. Rio de Janeiro: Alves & Cia, 1897. – “Vista sintética sobre o folclore brasileiro” (p. 223-241). 3 – QUERINO, Manoel Raimundo. Costumes africanos no Brasil. Rio de Janeiro: [s.n.], 1938. – “A festa da mãe d‟água” (p. 258-261). 4 – COSTA, Francisco Augusto Pereira da. Folclore pernambucano. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, 1908. – “Noite de São João” (p. 278-283). 5 – BRASIL, Antônio Americano do. Cancioneiro de trovas do Brasil central. São Paulo: Monteiro Lobato, 1925. 122 – “Seis danças goianas: O maribondo; Dança do Tapuio; O vilão; A candeia; A piranha; A canoa” (p. 487-490). 6 – GALLET, Luciano. Estudos de folclore. Rio de Janeiro: Carlos Wehrs, 1934. – “O índio não contribuiu para a formação da nossa música atual” (p. 491-492). – “Os índios eram músicos antes da descoberta” (p. 492-494). – “A disposição musical, aproveitada pelos jesuítas. Ensino da música religiosa” (p. 494-496). – “Destruição da música primitiva” (p. 496-497). – “Observações sobre o indígena descoberto recentemente” (p. 498-499). – “A música moderna dos índios” (p. 500-501). – “Conclusões” (p. 501-502). Do ponto de vista musical, esse texto de Luciano Gallet é a parte mais importante da Antologia do folclore brasileiro, não só pela especificidade do tema, como também pelas conclusões a que chega. O exame de Os melhores contos populares de Portugal (1944)84 revelou quatro contos populares, nos quais se encontram referências musicais. “O príncipe das palmas verdes” (p. 46) No decorrer desse conto, a heroína tenta levar para o príncipe o remédio de que ele necessitava. Estando mal vestida, não a permitem entrar no palácio. Porém, mostram-lhe a janela do quarto onde ele dormia. A moça foi para baixo e cantou [transcreve uma quadra] [...]. Cantou três vezes. Como sempre, há no conto um final feliz; e o príncipe se casa com sua salvadora. “O surrão” (p. 149) É a história da moça que foi raptada e posta dentro de um saco de couro. Ela era obrigada a cantar, sob ameaça de ser surrada com um bordão. Em certa cidade, o crime foi identificado e a moça retirada do surrão cheio de imundícies. Ao exibir-se para recolher dinheiro, a voz não sendo ouvida, castigou o saco com o seu bordão, que estourou, denunciando-o. Em nota final, Cascudo indica variantes desse conto em 84 CASCUDO, Luís da Câmara. Os melhores contos populares de Portugal (1944). 123 diversos países, como um conto africano dos negros de Iüruba, em que o personagem é uma tartaruga prisioneira, que canta dentro de um tambor. “A madrasta má” (p. 261) Cascudo retoma o conto tão conhecido no Nordeste, dessa vez em sua identificação portuguesa: a menina foi enterrada viva pela madrasta como castigo por haver deixado o passarinho picar um figo de uma figueira, que estava sob a sua guarda. O conteúdo musical do conto se verifica quando, sobre a menina enterrada, nasce capim; ao sentir que o capim (seu cabelo) estava sendo cortado, canta um lamento conhecido também em sua melodia. Identificada, a menina é salva e a madrasta castigada. Em nota, o autor indica outras versões e informa: [...] registei versão do Rio Grande do Norte, com o versinho cantado, fixando a música no meu Contos Tradicionais do Brasil. É o conto “A menina enterrada viva”, comentado na obra citada. “As três maçãzinhas de ouro” (p. 262) Mantendo certa semelhança com o registro anterior, esse conto relata a história de alguém que foi morto por seus irmãos, pelo fato de possuir três maçãzinhas de ouro. Enterrado em um monte, sobre sua sepultura nasceu uma cana. Um pastor a cortou para fazer uma flauta. Ao ser tocado, o instrumento cantava referindo-se a ele como pastor. Passando a flauta para um carvoeiro, já se referia ao novo dono e assim por diante, até chegar aos pais, permitindo a localização do cadáver. Após o conto, segue-se a nota do autor, na qual diversas variantes são indicadas, em todas elas a referência musical anotada. O autor inicia a obra Contos tradicionais do Brasil (1946) com uma exposição teórica sobre os contos em todo o mundo e inclui o relato de inúmeros textos, recolhidos das mais variadas fontes e organizados conforme sua natureza. Em alguns deles, foram encontradas interessantes referências musicais85. “Os compadres corcundas” (p. 31) A música é parte integrante do primeiro conto dessa seleção: um rapaz pobre sofria muitas humilhações por causa de sua corcunda. Uma noite, estando no mato, ouviu vozes, pessoas dançando e cantando. Aproximando-se, cantou ele próprio um verso, complementando o que havia ouvido. Localizado, foi levado para o meio daquelas pessoas estranhas que se mostravam cobertas de riquezas. Pediram para que 85 CASCUDO, Luís da Câmara. Contos tradicionais do Brasil (1946). 124 vendesse o verso que fizera, mas ele o doou e não quis receber pagamento. Em retribuição, foi-lhe retirada a corcunda e presenteado com um saco de riquezas. Chegando à cidade, relatou tudo a um amigo, também corcunda, porém rico. O corcunda rico, presa de ambição, resolveu fazer o mesmo para poder enriquecer mais. Mas, durante o encontro com o misterioso povo, cantou um verso cujo conteúdo religioso não agradou. Foi, por isso, castigado, sendo-lhe instalada a corcunda que fora do amigo na parte da frente de seu corpo, ficando então com duas corcundas. O tema do conto é a ambição, mas o elemento que possibilita o seu desenrolar é a música, na forma de uma canção, de um verso cantado. “A princesa de Bambuluá” (p. 35-43) O personagem de maior evidência no conto é um rapaz chamado João. A certa altura, Para distrair-se, João abriu a bruaca, tirou um violino e substituiu as cordas comuns por cordas encantadas que a princesa lhe havia dado. Música tocada nessas cordas fazia toda a gente dançar. Todos os que ouviam a música eram levados a dançar, inclusive uma empregada do palácio real que por ali passava. Notando a sua demora, mandaram emissários reais que, igualmente, foram levados à dança. Por fim, veio o rei pessoalmente ver o que acontecia e também entrou na dança. Tudo cessou quando o violinista parou de tocar. O rei convidou, então, o músico a tocar um baile no palácio. A princesa identificou no tocador o seu antigo noivo, a quem ela havia dado as cordas mágicas, e tudo termina com o final feliz da maioria dos contos. Esse conto, recolhido de um morador da praia de Areia Preta, em Natal, encontra-se em versão semelhante no capítulo “„The Dancing Gang‟ no Brasil”, que o pesquisador recolheu de Gerdener, em Viagens no Brasil, e está publicado em Anubis e outros ensaios (1983; 1. ed. em 1951), comentado adiante. “Maria Gomes” (p. 77-82) A “parte musical” desse conto ocorre quando a personagem principal, perdida em uma floresta, encontra uma casa: Maria rodeou a casa, entrou por uma larga porta e viu que as paredes estavam cheias de instrumentos de música e havia uma rede armada a um canto. A moça segurou um violino e tocou, tocou, tocou. De repente apareceu uma mesa coberta de iguarias fumegantes e apetitosas. 125 O restante do conto se desenrola como resultante desse ato de tocar violino. Passaram-se muitas semanas. A moça tocava música durante o dia, arranjava a casa, limpando-a. Não via pessoa alguma. Apenas a voz misteriosa dirigia o serviço. A narrativa transcorre e termina sem mais referência musical. “Cantador de modinhas” (p. 338-341) Esse conto se passa no tempo em que os bichos falavam: [...] e havia de tudo, até cantadores de serenatas e tocadores de violão. Os personagens são o cachorro, cantor, e o gato, violonista. Em meio às serenatas, nasce a discórdia: o gato, embora exímio violonista, tomava-se de ciúme porque o cachorro, grande cantor, centralizava as atenções. Uma noite, em plena serenata, o gato iniciou o seu plano: Este convenceu ao amigo sentimental que a sua voz ficaria muito melhor se a boca fosse rasgada nos cantos até perto das orelhas. O ambicioso cachorro começou, ele próprio, a operação de rasgar a boca à faca. Ao primeiro corte, começou a uivar. Incentivado pelo gato, cortou mais. Depois de recuperado da operação, foram à primeira serenata: em vez de cantar, o cachorro uivava e latia. Prejudicado, declarou guerra ao gato. Assim, por motivos musicais, nascia a rivalidade entre o cachorro e o gato. “Toca por pauta” (p. 353-357) Um pescador chamado Narciso sempre visualizava, em suas pescarias, a aparição de um jovem com um violão. E o que mais admirava era o violão que o rapaz conduzia consigo. Um violão com apenas quatro cordas, faltando o ré e o dó. Mais adiante, perguntou ao moço o motivo por que o violão contava com a ausência de cordas, o ré e o dó. O amigo ficou curioso com a pergunta e não respondeu. Alguém lhe sugere dizer à visagem que vai acrescentar uma letra aos nomes das cordas que faltam ao seu violão. Aparecendo a visagem, pediu ao moço para botar uma letra antes das duas cordas de seu violão. Ao saber que a letra seria o “c”, a visagem caiu n‟água e não mais apareceu: a letra “c” levou a formar a palavra “credo”, o que sugere ser um ente maligno. Em nota, Cascudo ressalta a classificação desse conto e sua referência em seu Vaqueiros de cantadores. Registra: O ter pauta, contrato com o diabo para cantar bem ou tocar maravilhosamente viola, é comum nas memórias do sertão brasileiro. E o mito de Paganini? Vale lembrar que o violão não possui nenhuma corda afinada em dó... “A menina enterrada viva” (p. 384-386) 126 O exame do conhecido conto da menina que foi enterrada viva pela madrasta e canta: Capineiro de meu pai! / Não me cortes os cabelos... traz a única partitura do texto, com treze compassos e indicação da letra. Há evidente engano na grafia musical nos compassos 3 e 4, nos quais os acentos poéticos não coincidem com os acentos musicais, o que não invalida, entretanto, a preservação da melodia. “A música dos chifres ocos e perfurados” (p. 403-405) O último conto incluído na seleção relata a ocorrência de rebanhos de veados nas matas de Mamanguape, Paraíba, de onde provêm sons musicais de sensível beleza. Os veados velhos mostram vinte e três chifres ocos e perfurados como flauta. O vento sopra com uma suavidade de nordeste. E faz arrancar os sons mais sentidos de uma orquestra completa que toca [...]. Em nota, refere-se à semelhante ocorrência encontrada em um escrito de Gustave Flaubert. Em Geografia dos mitos brasileiros (1947)86, o autor emprega uma divisão de texto contendo títulos, subtítulos e seções. O primeiro item aqui abordado é “Mitos primitivos e gerais” (indígenas – europeus – africanos) (p. 39-213), cujo subtítulo é Jurupari (p. 51-77). Estudando esse personagem da crença indígena, informa: Religião subentendia rito, cerimônias, liturgia. Assistindo às danças, cantos e reviravoltas, o catequista convenceu-se de presenciar uma seita de contorcionistas e endemoninhados sob o maracá estrugente do Pagé. Descreve a tática do Padre Manoel da Nóbrega: Orava e pregava aos catecúmenos e indiaria simpatizante, cantando e saltando, com o maracá estridente na forte mão que os santos óleos haviam sagrado para sempre. Abrindo o título “Maracás” (p. 58), Cascudo perpassa vasta relação de autores que, a seu tempo, comentaram a presença e prestígio do instrumento: Quando estudaram o tosco ritual dos Pagés o que primeiro feriu a curiosidade européia foi o infalível maracá, sacudido furiosamente pelos empenachados feiticeiros amerabas. O título seguinte, “Instrumentos sagrados do culto de Jurupari” (p. 62), analisa tais elementos componentes do culto religioso indígena. Mereceu maior destaque e 86 CASCUDO, Luís da Câmara. Geografia dos mitos brasileiros (1976). 127 descrição a trombeta típica. Numerosos fatos ilustrativos, inúmeras citações e vasta bibliografia completam o estudo. Segue-se o capítulo “Saci-Pererê” (p. 99) com o tópico: “Saci, ave”. Estuda um pássaro com esse nome. Na página 103, inclui duas partituras que reproduzem o canto do Saci. A primeira tem apenas um compasso e está indicada como originário de Max zu Wied-Neuwied, Beiträge zur Naturgeschichte von Brasilien (1830). A segunda partitura tem dois compassos e teve origem em S. Nogueira de Lima, Depoimento in O Saci-Pererê – resultado de um inquérito, 1917. No capítulo “Ciclo da angústia infantil” (p. 167), o primeiro mito estudado é o Tutu, assim descrito: TUTU é um animal informe e negro que aparece nas cantigas de embalar. [...] Sabe-se apenas que, à sua simples menção, as crianças fecham os olhos e procuram adormecer sob o império do medo. O Tutu vive nos lábios das amas de todo Brasil. Abordando a variações do mito, refere-se ao tutu-marambaia ou tutu-marambá e cita (p. 168): Numa cantiga de peneirar, registrada por Alexina de Magalhaes Pinto (Cantigas das crianças e do povo, p. 68), encontro: Começou... peneirar Chiquinha, Começou... peneirar Chiquinha, Chuva de marambaia, Começou... peneirar. Em seguida, cita Lavanère, Cantigas do Nordeste (Revista do Instituto Histórico de Alagoas, 1937). Apresenta uma pauta de oito compassos, sem indicação da letra correspondente. No capítulo referente à Cuca, descreve a figura do mito e diz: Figura em todo Brasil nas canções de ninar. Cita diversos autores e deles algumas quadrinhas de cantigas de adormecer sem acrescentar partituras. Na página 176, no subtítulo “Documentário”, apresenta uma quadra e respectiva pauta de oito compassos, transcrição de Durma, nenê, Senão a Cuca vem. 128 Papai foi à roça, Mamãe logo vem. Em seguida, transcreve uma partitura com cinco pautas de quatro compassos cada, sob a indicação: Versão nordestina da Cuca, em que os mesmos versos têm uma forma musical mais completa. Não há indicação de fonte pelo autor. No capítulo “Mitos secundários e locais” (p. 216-310), Cascudo trata de um mito do Rio Grande do Sul (p. 219): o Angoera, o indígena que, batizado, denominou-se Generoso. São muitos os relatos das “atividades musicais” desse alegre habitante do além: Quando se deixava uma viola no relento ouviam-na sonar, débil mas harmoniosamente. Era Generoso que se divertia... Generoso não assombrava ninguém. Estava presente nas horas alegres, nos “pagos”, sapateando nos bailes, riscando bordões de violas e, às vezes cantando mesmo, uma copla, a mesma sempre que sua inteligência retivera, há séculos, e ali trazia na mais desnorteante das memórias regionais. Em seguida, descreve o mito: Generoso era índio guarani, de nome Angoera. [...] Era um homenzarrão atlético mas sisudo, calado e taciturno. Guiou os padres para a serra quando vieram do Uruguai. Os jesuítas batizaram-no. Ficou sendo Generoso. Mudou, com a água lustral, o feitio carrancudo. Ficou folgazão, alegre, doido por danças, cantos e saltos ritmados. Cascudo transcreve um trecho de J. Simões Lopes Neto em Lendas do Sul (sem referência). Nele a descrição da morte de Generoso e o relato de que a sua alma passou a entrar nas casas dos desconhecidos e se divertia de diversas formas. [...] e se achava dependurada uma viola, fazia sonar o encordoamento para alegrarse com a lembrança de suas cantigas, de quando era vivo e cantava... E muitas vezes – até o tempo dos Farrapos –, quando se dançava o fandango nas estâncias ricas ou a chimarrita nos ranchos do pobrerio, o Generoso intrometia-se e sapateava também, sem ser visto; mas sentiam-lhe as pisadas, bem compassadas, no rufo das violas... e quando o cantador do baile era bom 129 e pegava bem de ouvido, ouvia, e por do Generoso repetia esta copla, que ficou conhecida como marca de estância antiga: sempre a mesma... Eu me chamo Generoso, Morador em Pirapó: Gosta muito de dançar Co‟as moças de paletó... Na página 247, Cascudo aborda o mito amazônico do Cavalo Marinho. Após um estudo sobre a origem do mito a partir da mitologia greco-romana, informa que chegou ao Brasil através dos portugueses: Nadou derredor das caravelas portuguesas e veio, vencendo o Mar Tenebroso, até o Brasil. Aqui se infiltrou nos contos, nas porandubas amerabas, nos autos populares. Nos velhos Bumba-meu-boi havia o Cavalo Marinho que, esquecido do embalo das ondas clássicas, dançava nos terreiros das fazendas, ao som de violas de arame e de rebecas obstinadas: Cavalo Marinho Dança no terreiro, Que o dono da casa Tem muito dinheiro... Sobre a Cobra Norato (p. 254), informa: Como todos os seres fabulosos das águas, Honorato era grande dançarino e costumava aparecer inoptinadamente nos bailes ribeirinhos, encantando a todos pela sua elegância. Desaparecia para surgir, cinqüenta léguas adiante, noutro baile, com igual sucesso. Numa mesma noite dançara em Abaeté e meia hora depois estava em Baião. Na página 263, aborda o mito paranaense “Os filhos de Chico Santos”. Tem relação com os tangarás, pássaros dançadores. 130 O caboclo Chico Santos tinha vários filhos, desempenados e fortes trabalhadores, doidos por bailes, fandangos e rodas. Viviam dançando. Durante a Semana Santa não se puderam conter e dançaram animadamente. Adoeceram todos de varíola e, um a um, morreram. E cada um que ia morrendo tomava a forma do Tangará, o pássaro dançarino. E ficaram dançando, cada manhã, em rodeios e reviravoltas, cantando a mesma toada, até que Nosso Senhor tenha compaixão deles todos e os leve para o céu. Na obra História da cidade do Natal (1947)87, Cascudo comenta as fontes de diversão da sua terra, valendo-se do texto “Postura da Câmara Municipal”, de 14 de julho 1830, que regula os divertimentos na antiga cidade. No capítulo “Divertimentos” (p. 293-8), refere-se aos entretenimentos da antiga cidade, entre eles os musicais: contradanças, bailes, presépios e fandangos. Esse assunto já foi abordado na crônica “Espetáculos Públicos de Outrora” (“Acta Dominical”, A República, 06/12/1942). Mais particularmente sobre danças, o assunto foi alvo de duas “Acta Diurna”: “Como dançavam nossos avós em Natal” (Bando, n. 15, 03/1950; A República, 13/04/1940) e “O Baile de 1868” (A República, 1º/10/1939), já comentadas na parte referente às publicações cascudianas em periódicos. Além das citações, quase não há detalhes sobre a parte musical. No capítulo “Musa, Canta os Poetas, Escritores...” (p. 370-385), da mesma forma que na matéria anterior, a música recebe concisas menções. São citados diversos nomes, acrescentando-lhes breves palavras meramente indicativas de sua história. Quem tocava um instrumento não era consequentemente considerado músico; era um poeta que, em geral, musicava versos e se acompanhava quando cantava esses versos. Os poetas ficavam na classe popularesca dos improvisadores e dos modinheiros, versos que eram musicados e cantados na serenata, acompanhados pelos violões sonoros. A ausência de teatros, escolas de música, músicos profissionais (a não ser os militares) levava a música para uma categoria secundária, sempre vinculada e subordinada à poesia que transformava em canção. Embora cite a existência de bailes, nada é acrescentado a respeito da música neles tocada. 87 CASCUDO, Luís da Câmara. História da cidade do Natal (1980). 131 Anubis e outros ensaios (1951) é uma seleção de textos em que Câmara Cascudo focaliza matérias destacadas do folclore brasileiro88. Inicia-se com um ensaio que tem o título do livro, “Anubis”, ou o culto do morto. O objetivo desta pesquisa é localizar assuntos musicais em meio aos estudos realizados. Nas p. 16-17, aborda o tema “Velório” e comenta o componente musical do procedimento: Em muitas regiões brasileiras, nordeste, Minas Gerais, São Paulo etc., as mulheres que assistem os velórios cantam as Excelências, orações em versos que ainda em Portugal ressoam [...]. As Excelências são cantadas aos pés do defunto (os “benditos” são entoados no lado da cabeça) e não devem ser interrompidas quando iniciadas porque Nossa Senhora ajoelha-se para ouvilas. Os “benditos” ainda são cantados por toda a parte especialmente nos velórios femininos. No capítulo “O anjo e o pagão” (p. 24-26), descreve: Convidam os vizinhos para virem DANÇAR AO ANJINHO, tocando viola e bailando até ao outro dia [...]. Sobre o mesmo tema, citando Silvio Romero em Cantos populares do Brasil (1897), quando comenta os velórios de anjinhos no Ceará, informa o costume de rezas cantadas e poesias declamadas na ocasião [...]89. Referindo-se às expressões de pedidos de chuva em “Ad pedendam pluviam” (p. 55-62), cita Renato de Almeida no capítulo “Cantigas de chamar chuva”, do seu livro História da música brasileira (1942), em que divulgou cantos para pedir chuva: Renato de Almeida já mostrou a importância dessa colaboração folclórica originária das longas estiagens [...]. Em “História de uma estória” (p. 131-137), comenta uma narrativa muito divulgada no Brasil e suas ocorrências similares em outras épocas e locais (por romanos, africanos, indígenas brasileiros): O assobio, pífano, flauta feita com o osso do inimigo vencido, é elemento universal nas estórias populares. A última abordagem musical de Anubis e outros ensaios encontra-se no capítulo “„The Dancing Gang‟ no Brasil” (p. 139-143). A fonte de informação é de George 88 CASCUDO, Luís da Câmara. Anubis e outros ensaios (1983). Sobre morte e enterros de crianças em tenra idade no Brasil do século XIX, consultar também ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O cotidiano da morte no Brasil oitocentista. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe de (Org.). Império: a corte e a modernidade nacional. São Paulo: Cia. das Letras, 1997 (História da vida privada no Brasil, v. 2). 89 132 Gerdener, Viagens no Brasil (1942). Cascudo desenvolve o conteúdo do relato sobre um botânico inglês que esteve no Brasil no século XIX, passou uma noite de Natal em uma fazenda na Serra dos Órgãos e [...] registrou uma dança realizada pelos escravos, espécie de entremez simples, mas de natural beleza movimentada e sugestiva. Não deu nome ao bailado, verdadeira dança-dramática, mas a conhecemos graças à sua admiração. Transcreve um longo trecho do livro: o enredo se inicia com um rapaz que, durante a noite, na porta da residência de um padre, começa a dançar e tocar viola, uma espécie de guitarra. O padre manda seu empregado para saber a razão da perturbação; o músico dançarino informa que está ensaiando uma nova dança da Bahia. Convidado a entrar na dança, o criado do padre aceita o convite. Na sequência, todos os criados do padre vêm e entram na dança. Enfim, é a vez do padre que, assim como os outros, adere entusiasmado à folgança, mas, em certo momento, acaba a farra e expulsa todos. Refere-se a publicações de outros autores em que figuram histórias com o mesmo tema. O canto e a dança que compõem o relato são a razão deste registro. Câmara Cascudo apresenta em Meleagro (1951)90, os resultados de uma vasta e aprofundada pesquisa sobre o catimbó, atingindo os variados aspectos materiais da atividade e a ação dos seus participantes. A música componente dos rituais é tratada com detalhes, sendo esse livro, talvez, o que mais completamente aborda a parte musical do tema da obra. A primeira referência está no capítulo “Elementos étnicos do catimbó; o cachimbo; instrumentos; a chave simbólica”. É muito breve a abordagem aos instrumentos musicais na página 30; voltará ao assunto no fim do livro. Mais adiante, no capítulo “Mestres invisíveis e suas biografias”, abordando as “linhas” e a música, ao descrever uma “sessão” (p. 164), comenta a abertura e seus cantos de invocação: A linha é entoada pelo “mestre” que invoca um dos mestres invisíveis. Quando este “acosta”, muda o timbre porque já é o próprio invocado o cantor. Às vezes, espontaneamente, alguém inicia a linha de um “mestre”, já “acostado”, sem ter sido chamado. [...] O canto é uníssono. Sem acompanhamento instrumental. 90 CASCUDO, Luís da Câmara. Meleagro (1951). 133 Continuando com a descrição da “linha”, indaga: Essas “linhas” são africanas, portuguesas ou mestiçamente brasileiras? A tendência decerto natural é imposta pelo conteúdo africano da manifestação e Cascudo justifica: Os mais antigos “mestres” do catimbó foram negros e ainda são, em maioria absoluta, mestiços e mulatos. Mas o seu entendimento é: São brasileiras. Brasileiras na acepção de uma soma de elementos diferenciados e fundidos, determinando a música socializada, criada pela colaboração anônima e múltipla da população. Não há permanências de estilos que positivem uma influência decisiva. Aprofundando a análise musical da música do catimbó, completa: A maioria das “linhas” obedece a aos finais tônicos e o ritmo binário segue as tradições populares brasileiras, assim como os cânones clássicos na quadratura da frase melódica. Não há novidades de vulto, disfonias, nem mesmo aquele arrastamento de tom, aquela impostação na emissão da voz, que dava a ilusão de quarto de tom, aliás existentes nas cantigas populares do Minho, fonte de intensa emigração para o Brasil. Câmara Cascudo volta a falar dos instrumentos, agora com maior detalhamento. Lembra a preferência indígena pelos instrumentos de sopro, diferenciando-se do negro, com a primazia da percussão. Comenta os temas “música de negro” e “música africana”, passando a detalhes técnicos da música das “linhas”, como entonação, timbre e ritmo. (p. 166). Complementando o trabalho, faz incluir no seu livro (p. 169-172) doze partituras com as melodias das “linhas” componentes das várias partes de uma sessão de catimbó. Não indica a autoria das transcrições. Luís da Câmara Cascudo91 procura explicar, na introdução a Literatura oral no Brasil (1952), a origem de seus conhecimentos sobre os costumes sertanejos (p. 13). Embora nascido em Natal, eram seus pais de origem sertaneja e lhe proporcionaram longas temporadas de férias no sertão, onde, ainda menino, deixou-se inundar pela cultura local, apreendendo tudo o que podia alcançar e tendo, inclusive, experiências 91 CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura oral no Brasil (1978). 134 musicais: Cantei, dancei, vivi como todos os outros meninos sertanejos do meu tempo e vizinhanças, sem saber da existência de outro canto, outra dança, outra vida. Iniciando seu trabalho, aborda, no capítulo II, entre outros temas: canto e dança; auto popular; danças dramáticas. Na parte referente a canto e dança (p. 35), começa com uma pitoresca definição do nosso povo: Filho de raças cantadeiras e dançarinas, o brasileiro, instintivamente, possui simpatias naturais para essa atividade inseparável de sua alegria. Canto e dança são as expressões de sua alegria plena. Lembra que o brasileiro, em 1500, recebeu dançando o português que, por sua vez, tocou e dançou com eles. Juntando a essas duas expressões a contribuição negra (p. 38), comenta: O canto e dança no Brasil são águas desses três estuários. Serão possíveis as identificações influenciadoras? Podemos determinar os elementos exclusivamente africanos, portugueses e ameríndios? Em matéria musical creio ser um mero cálculo de aproximação. Ao tratar da herança musical brasileira, lembra Mário de Andrade na Pequena História da Música, no Ensaio Sobre Música Brasileira e em Música, Doce Música. Cita, ainda, Renato de Almeida e sua História da Música Brasileira. Depois de comentar as afirmações de Mário de Andrade, inclui uma citação desse autor, concordando com o que acima apresentou: Na realidade, foi de uma complexa mistura de elementos estranhos que se formou a nossa música popular. Segue-se um longo comentário sobre as cantigas do tempo de São João, com transcrição de muitas letras. Infelizmente, nenhuma partitura. Voltando à contribuição africana para a música brasileira (p. 43), expõe: O que há de incalculável e poderoso na música brasileira, recebida de mãos africanas, é a valorização do ritmo, o ritmo antes de tudo, absorvente, sobrenatural, dominador. Todos os viajantes, naturalistas e etnógrafos africanistas celebram o reino do tambor, em tamanhos, timbres e formas incontáveis, e disseram que o canto, o assunto e a melodia, é de efeito subalterno ante o ritmo reinador. No que diz respeito às danças brasileiras, Cascudo (p. 45) apela para a opinião de um velho amigo seu (História da Música Brasileira, cap. VI): 135 Renato de Almeida foi o primeiro a estudar, em seqüência e pesquisa, as danças brasileiras, dividindo-as em Mímicas, Ginásticas e Figuradas, quanto à coreografia, e De roda, Par solto, Par unido e de conjunto, quanto ao número de dançarinos. E acrescenta: Todas as danças populares são acompanhadas de cantos tradicionais. Velha música e versos antigos, vezes renovados e substituídos lentamente. Segue-se (p. 46) longa apreciação sobre as danças populares brasileiras. Sobre as músicas de carnaval, destaca e comenta (p. 48) o frevo e o maracatu pernambucanos. Em seguida, as danças dos autos do período natalino, as parlendas, as danças e cantos infantis. O capítulo III é dedicado à herança indígena. Na página 81, transcreve um trecho de Gabriel Soares de Souza – Tratado Descritivo do Brasil –, em que o autor se refere aos tupinambás e faz extensa descrição da música e da dança que ele teve oportunidade de ouvir. Da mesma forma, o padre Fernão Cardim – Tratado da Terra e das Gentes do Brasil – refere-se aos nossos índios, suas danças, instrumentos e cantores. Cita também Hans Staden – Viagem ao Brasil – e frei Claude d‟Abbeville – Histoire de la Mission des Pères Capucins a l‟isle de Maragnan et Terres Circonvoisines. Esses autores escreveram durante o primeiro século após o descobrimento e foram testemunhas de uma cultura original, diz Cascudo. Tais autores antigos praticamente concordam em suas opiniões (p. 140): As informações coincidem sempre quanto à maneira de cantar, instrumentos e acompanhamento, sopro e percussão, as danças, sempre de roda, nada ginásticas, como as dos africanos. O estudo objetivo da cultura indígena iniciado no século XIX encontrou muitas diferenças e alterações que promoveram a perda do primitivismo original: As cantigas e danças recebiam, há três séculos, influências brancas e negras, ritmos portugueses e orientais, com o canto gregoriano a música sacra, ensinadas aos catecúmenos e neófitos. Concluindo o capítulo, acrescenta: A influência indígena, cantigas de adormecer, cantos de roda; foram morrendo devagar. Muitas ainda duram, estrebuchando nas memórias teimosas dos derradeiros selvícolas. Quando pretendemos substituir-lhes a 136 própria melodia tradicional com envolve o pensamento e a idéia, para fixá-la na dança e nas estórias. Os autores antigos notaram a frequência com que se manifestavam associadas música e solenidades religiosas. No capítulo IX (p. 349), volta a Fernão Cardim, que repete suas informações sobre procissão solene com frautas, boa música de vozes e danças, [...] procissão por ruas de arvoredos muito frescos, com muitos fogos, danças e outras festas, [...] na procissão houve danças e outras invenções devotas e curiosas. Após longas considerações sobre o “desafio”, chega a comentar a parte musical da manifestação e suas particularidades nas diversas regiões do país (p. 361): O “desafio” português que se fixou no Brasil seguiu o processo clássico do acompanhamento musical. [...] No sul e centro do Brasil o “desafio” é o mesmo que em Portugal. No nordeste, inexplicavelmente, o canto é independente do acompanhamento musical. Os instrumentos tocam exclusivamente nos intervalos das sextilhas, quando ninguém está cantando. A voz humana soa isolada durante todo o combate. As violas e rabecas fazem, não um acompanhamento, mas um solo. Na parte do capítulo em que aborda a “Cantiga Social”, seus comentários não incluem a parte musical. O capítulo X está apresentado pelo autor da seguinte forma: 1) Autos populares brasileiros e danças dramáticas. 2) Fandango ou Marujada. 3) Chegança. 4) Congo ou Congadas. 5) Bumba meu boi. São textos extensos e detalhados em sua teoria, nos quais a música tem pequeno destaque. Têm todos alta percentagem de elementos europeus, especialmente no tocante à música. E acrescenta uma informação para os que esperavam mais do aspecto musical: Os nossos quatro autos, com suas variantes, música, coreografia, merecem muito. Aqui dar-se-á apenas uma visão de sua existência. Ao comentar a chegança (p. 430), informa: Ocorrem dois tambores que ruflam incessantemente quase. A música é deliciosa de graça, melodia fácil e linda, brasileira com elementos totais d‟Europa. Na parte referente ao fandango (p. 397-494), transcreve o texto de suas 24 jornadas (partes) sem incluir o texto musical. Breves menções à música estão nas Notas 137 às jornadas (p. 425-427). Na página 430, diz: A música é deliciosa de graça, melodia fácil e linda, brasileira com elementos totais d‟Europa. Todos os elementos estudados na presente obra são reapresentados e revistos em outros trabalhos de Luís da Câmara Cascudo. Câmara Cascudo publicou em 1954 uma seleção de textos de autoria de Pedro Velho de Albuquerque Maranhão, nome de grande destaque na história política do Rio Grande do Norte, sob o título Antologia de Pedro Velho (1954). Fundador (em 1899) e membro da equipe que compunha o jornal A República, publicou nesse periódico grande número de textos sob o título “Artiguetes”, com o pseudônimo de “Nemo”92. A publicação contém também inúmeros textos referentes a discursos parlamentares. Entre os artigos referidos, está a transcrição de uma crônica publicada em A República, na edição de 12 de fevereiro de 1899, intitulada “Cara de músico”. Não há indicação de ser o texto um relato real ou ficção. Destaque-se que, em meio a sisudos discursos parlamentares, outros temas políticos e também outros temas mais leves, como os “Artiguetes”, o organizador não descartou esse escrito, o único tema musical da coletânea. O Dicionário do Folclore Brasileiro, editado em primeira edição em 1956, é uma das indiscutíveis obras-primas de Câmara Cascudo, que assim descreveu esse verdadeiro tour de force: E eu me decidi pelo “Dicionário do Folclore Brasileiro”, mais de 4000 verbetes, feito sozinho, em Natal, viu? Imagine a luta para conseguir uma coisa... eu procurando sozinho e sem orientação porque ninguém se preocupava com isso. Só esse maluco velho, compreendeu?93 A 5ª edição do Dicionário do Folclore Brasileiro (1979 – 1ª edição: 1954)94 – volume utilizado para o presente trabalho – compreende um maciço volume com 881 páginas, tendo duas colunas por página e editado em tamanho de fonte pequeno. É, 92 CASCUDO, Luís da Câmara (Org.). Antologia de Pedro Velho (1954). Entrevista cedida por Luís da Câmara Cascudo ao autor, em 14 de janeiro de 1980, e publicada em GALVÃO, Claudio. A Modinha Norte-Rio-Grandense (2000). 94 CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro (1979). 93 138 certamente, a mais volumosa obra de Câmara Cascudo. Foram resenhados 555 verbetes que podem ser classificados, no que se refere à música, como: – verbetes explícitos: o título indica a natureza musical do conteúdo; – conteúdo implícito: o conteúdo musical está oculto em um título aparentemente alheio às informações pesquisadas; – bibliografia citada pelo autor: está apresentada em maior número e até com detalhes nas primeiras resenhas; depois, considerando-se a extensão do trabalho, passou a ser apenas referida; – muitos títulos possuem indicação de remessa “o mesmo que”. Foram mantidos tais títulos em obediência à organização adotada pelo autor; – transcrições de trechos do próprio autor: são destacadas em itálico. 1 ABOIO (p. 2-5) Cascudo tratou do aboio em diversas obras sobre o folclore e sobre o Nordeste. O texto mais completo, mais detalhado, está no Dicionário do Folclore Brasileiro: Canto sem palavras, marcado exclusivamente em vogais, entoado pelos vaqueiros quando conduzem o gado. Dentro desses limites tradicionais o aboio é de livre improvisação. [...] O canto finaliza sempre com uma frase de incitamento à boiada: eh boi, boi surubim, olá. O aboio inteiro é um canto em vogais. O autor insiste na ausência de palavras, porém algumas expressões típicas podem ser encontradas apenas no concluir, no fechar do aboio. A respeito da palavra aboio, cita Antonil, Riqueza e opulência do Brasil por suas drogas e minas (1923), e Antonio Moraes Silva, Diccionario da lingua portugueza (1813), em que não se encontra a palavra aboio, e o verbete aboiar tem significação diferente. Cita ainda Gonçalo Sampaio, Cancioneiro Minhoto, e Carlos M. Santos, Tocares e cantares da ilha: estudo do folclore da Madeira (1937). Abordando outra vez o problema da fixação musical do aboio, afirma que Carlos M. Santos informa a impossibilidade da notação musical exata e que só a gravação mecânica seria fiel: É identicamente o caso brasileiro. Relata a experiência feita em Natal pelo musicista Juvêncio Mendonça, a quem ele solicitou grafar a música dos aboios, indo o musicista ouvir as fontes no próprio ambiente sertanejo. O estudo defende também a impossibilidade de se escrever a música do aboio. 139 Quanto à grafia da melodia de um aboio, vale a pena comentar que o compositor Oswaldo de Souza incluiu um aboio em sua composição “Retiradas”, usando para tanto um artifício gráfico (não musical) na partitura para indicar a inflexão sonora, partindo da nota inicial até a final do trecho (Partitura editada pela Ricordi Brasileira, 1955). Tal procedimento permitiu a reprodução da melodia do aboio, ensejando a decodificação do trecho e interpretação da obra. Assim ocorreu com a cantora Inezita Barroso, que gravou “Retiradas” e que, no começo de sua carreira, tinha esse aboio como sua característica musical, com o que abria suas apresentações95. 2 ABOIO CANTADO, ABOIO EM VERSOS (p. 5) Cascudo admite a modernidade desse novo tipo de aboio, dizendo: Serão de relativa modernidade porque o aboio nordestino, secular, típico, legítimo, não tinha letra, constando unicamente de uma monodia, apoiada numa vogal, espécie de jubilatione do canto gregoriano, destinada a tanger o gado. Referencia J. de Figueiredo Filho, O folclore do Cariri (1962), que traz um capítulo sobre o aboio em versos, poemas de assunto pastoril, mesmo improvisados. Volta a citar Gonçalo Sampaio, Cancioneiro Minhoto (1940), em que se comenta que, nos trabalhos do campo em Portugal e na região do Minho, é um antigo costume incitar o gado cantando: a isso chama-se aboiar. Cita ainda Luís Romano no artigo Cabo Verde: uma civilização no Atlântico Médio, Aboios (Lisboa, 1967). Volta a acentuar a diferença entre o modelo brasileiro, nordestino, com esse pretenso aboio, que mais considera uma canção de trabalho. Em conclusão, Cascudo reconhece a existência atual de uma manifestação apenas parecida com o aboio verdadeiro. 3 ACALANTO (p. 8) Inicia com a seguinte definição: canção para adormecer crianças. Palavra de caráter erudito, com o mesmo sentido de berceuse, lullaby, canción de cuña. Informa “Retiradas”, letra e música de Oswaldo de Souza, com o trecho do aboio colhido de fonte original, teve a partitura editada pelos editores Friederich Fuchs, Mangioni e Ricordi. Foi gravada por Inezita Barroso no disco de 78 RPM n. 801315, RCA-Victor, agosto de 1954. A mesma intérprete regravou a composição no LP “Vamos falar de Brasil”, gravadora Copacabana, n. 11.016, 1958; reeditado sob n. 40.584. Editada também em minicassete n. 50.584. 95 140 haver sido Luciano Gallet o primeiro a usar a expressão no Brasil. Popularmente, os acalantos são chamados cantiga de ninar. Inclui uma citação de Renato de Almeida, História da Música Brasileira, a respeito de acalanto, na qual afirma que as nossas canções de ninar vieram de Portugal, em sua maior parte. Cascudo lembra que os indígenas brasileiros tinham acalantos. Destaca as formas mais comuns em que se encontra uma sílaba final cantada: á-á-á-á e ú-ú-ú-ú. Em seguida, relaciona um grande número de autores portugueses e sulamericanos, bem como brasileiros, que pesquisaram e escreveram sobre o acalanto. 4 ADARRUM (p. 13) Nas cerimônias de candomblé, em certos momentos, torna-se demorada ou difícil a incorporação de um orixá a uma filha de santo. Quando isso acontece, os músicos procedem a um toque especial, caracterizado pela aceleração dos atabaques. [...] é um ritmo apressado, forte, contínuo, marcado em uníssono por todos os atabaques e pelo agogô e que tem a propriedade de evocar qualquer santo. 5 ADUFE (p. 17) Cascudo descreve esse instrumento: um pandeiro quadrado, oco, de madeira leve, coberto com dois pergaminhos delgados, com um cascavel (guizo) dentro ou soalhas (chapas metálicas do pandeiro) enfiadas em arames perpendiculares, o qual se toca com todos os dedos, exceto com os polegares, que servem para sustentá-lo. Informa que é um instrumento muito usado nas folias do Espírito Santo em Portugal e no Brasil. Apresenta informações de diversos autores, destacando-se o que disse Luciano Gallet em Estudos de folclore (1934) sobre ser um instrumento de procedência africana, adotado no Brasil. Cascudo arremata: É árabe. Certamente africanos e portugueses o conheceram e trouxeram para o Brasil, permanecendo ainda em ambos os continentes. Lembra a semelhança da palavra adufe com o original árabe: adduff. 6 AFOXÉ (p. 18) Cascudo apela para Edison Carneiro, Candomblés da Bahia (1948), a fim de definir o verbete como rancho negro de carnaval, em que os africanos cantavam em 141 língua africana. Apoiando-se em Rossini Tavares de Lima, refere-se à significação do vocábulo afoxé como designando, também, um instrumento idiofone96 que aparece nas cerimônias religiosas afro-brasileiras, sendo atualmente também muito usado nos conjuntos musicais populares. Os mais rústicos são, em geral, feitos de uma cabaça com contas no interior e com um cabo na extremidade; soa ao agitar-se. O instrumento passou a ocupar importante lugar nos conjuntos de música popular. 7 AGOGÔ (p. 19) Instrumento idiofone composto de duas campânulas de ferro, que são percutidas por uma varinha de metal. Uma parte tem entonação diferente da outra. Muito usado nos candomblés da Bahia, em blocos de carnaval e no maracatu pernambucano. Cascudo não se refere à sua utilização na música regional nordestina, na qual recebe o nome de gonguê. Luiz Gonzaga diz haver trazido, entre outros instrumentos, um gonguê dentro do matulão, na sua composição “Pau-de-arara”. Em redor do instrumento, aplica-se uma rede de bolinhas de contas. 8 AGUÊ (p. 21) Cascudo apoia-se em Manoel Quirino, Costumes africanos no Brasil, para descrever o instrumento Cabaça grande, envolta num trançado do algodão, à semelhança de rede de pescaria, tendo presos pequenos búzios nos pontos de intercessão das linhas. Esta rede fica um pouco folgada em torno da cabaça, de modo que, agitada, esta produza ruído, que é aumentado pelo rolar de alguns seixos no interior de instrumento. No mesmo verbete, também cita Renato de Almeida, História da Música Brasileira. 9 AIAPÁ (p. 21) 96 Instrumento idiofone é aquele que o próprio corpo vibra para produzir o som, sem a necessidade de nenhuma tensão. São os instrumentos executados por agitação (chocalho, caxixi e ganzá), por atrito (recoreco), bem como certos instrumentos de percussão. 142 Esse instrumento consta de chocalhos feitos de caroços de frutas secos que, atados no artelho97 da perna direita dos que puxavam as danças, serviam para marcar o compasso; outras vezes, podiam ser amarrados em longas varas para o mesmo fim. Cascudo menciona alguns outros autores, inclusive Hans Staden, Viagem ao Brasil, que relata que os indígenas amarraram em sua perna umas coisas que chocalhavam. Depois começaram as mulheres a cantar e conforme o som dado tinha eu de bater no chão com o pé em que estavam atados os chocalhos, para chocalhar em acompanhamento do canto. Gabriel Soares de Souza, Tratado descritivo do Brasil, comenta que os tupinambás na Bahia possuíam um artefato similar. Diversas outras nações indígenas são também destacadas como possuidoras de tal instrumento. O mesmo procedimento é identificado em outros povos, em México, Romênia, Moçambique. Não seria esse o objeto da morena de Angola que, na composição de Chico Buarque de Holanda, tem um chocalho amarrado na canela? 10 AIDJE (p. 22) Ver rói-rói e zumbidor. 11 ALABÊ (p. 24) É o chefe dos tambores dos candomblés jeje-nagô da Bahia, segundo Donald Pierson, Brancos e pretos na Bahia. Menciona ainda Edison Carneiro, Candomblés da Bahia (Revista do Arquivo Municipal, São Paulo). É o tambor-guia entre os tocadores de atabaques. 12 ALUJÁ (p. 43) Dança negra do Brasil, trazida pelos escravos africanos, conforme Luciano Gallet, Estudos de folclore. Edison Carneiro, Negros bantos, descreve a orquestra tocando uma espécie de marcha, que é o alujá, enquanto os “encantados” fazem a volta, saudando a assistência com os braços unidos sobre o ventre e busto inclinado. João do 97 A palavra artelho pode significar dedo do pé, como também tornozelo, sendo este último termo mais condizente com o que aqui se expõe. 143 Rio, Religiões do Rio, também faz referência ao alujá. Cascudo conclui: Trata-se de dança religiosa, executada exclusivamente nos recintos do culto. 13 AMELÉ (p. 44) Em duas linhas apenas, é feita a descrição do instrumento: o mesmo que piano de cuia, cabaça, xaque-xaque, aguê, este já descrito. 14 ANGOIA (p. 53) Instrumento de percussão: uma cestinha com alça, contendo sementes ou pedrinhas. Segura-se com o polegar e o indicador, batendo-se o compasso com os outros dedos. Também conhecida como caxixi e mucaxixi. 15 ARARA (p. 72) É uma dança muito comum em vários estados do Brasil. Cascudo faz detalhada descrição. Tem esse nome porque um dos componentes, em dado momento, grita: “Arara!”. Nesse momento, trocam-se as damas. Não há no Nordeste e no Sul, música especial para o arara. 16 ARCO MUSICAL (p. 74) Ver berimbau de barriga e urucungo. 17 ARIGAU-BARI (p. 75) Nome de um instrumento indígena do rio Araguaia, Mato Grosso, uma espécie de maracá, com uma empunhadura de corda. Cascudo apoia-se na descrição do Padre Dom Antônio Colbacchini (não indica a publicação). Deduz-se que soa vibrando no ar, num movimento circular, como um berra-boi (berra-boi: verbete a ser comentado adiante). 144 18 ARRASTA-PÉ (p. 76) Baile de inferior qualidade, o mesmo que forró ou fobó. 19 ATABAQUE (p. 83) É descrito como um pau oco com uma pele de animal estendida em uma das extremidades. Sua origem é certamente africana. Usado nas festas religiosas afrobrasileiras: candomblés, macumbas, danças populares, sambas, bambelô, zambê, apresenta diversos tamanhos: o maior teria de 1 metro e meio a 2 metros; o menor, que é percutido a mão, é levado pelo tocador amarrado no cinto. Em Natal, os tambores são chamados de “chama”, por que rara a pessoa desatende o convite do seu ritmo, deixando de entrar no folguedo. Cascudo oferece referências diversas: Renato de Almeida, História da Música Brasileira, e retrocede a João de Barros, Décadas I (livro 3). Passa, em seguida, por Nuno Marques Pereira, Compêndio narrativo do peregrino da América (1728); Gabriel Soares de Souza, Tratado descritivo do Brasil (1587), dentre outros, incluindo estrangeiros. 20 AUAIÚ (p. 85) Descrito como ligas de tornozelos, ornadas de guizos feitos com frutos secos do pequi. Manda ver Aiapá, Gurararás e Maçaquaias. 21 BAGRE (p. 94) Dança da marujada na festa de São Benedito em Bragança, Pará. Baseia-se em um estudo de Bordalo da Silva, no qual se descrevem minuciosos detalhes da dança. Acrescenta: O bagre é uma dança em que o compasso musical é o binário simples, em ré maior sendo o ritmo o mesmo do retumbão, no entanto mais alegre. Conferir marujada e retumbão. 22 BAIANÁ (p. 95) 145 Tido como baile popular, dança de gente pobre, fobó, fungangá; vocábulo popular no sul de Pernambuco. Cita Ascenço Ferreira, O maracatu (1942). Theo Brandão, Folguedos populares de Alagoas (1961), estudou o assunto e Rossini Tavares de Lima, encontrou uma variante no litoral de São Paulo: grupo de homens vestidos de mulher, intitulados “baianas”. Ocorrência também em Natal: as “maxixeiras”, na segunda-feira de carnaval. 23 BAHIANO (p. 95) Descrito como uma dança viva, com coreografia individual. Era o baile do Birico e do Mateus (Rio Grande do Norte) ou de Mateus e Fidélis (Pernambuco) no bumba-meu-boi [...]. Longo verbete. Referências começam com Lopes Gama, O carapuceiro (1842), passando pelo próprio Cascudo, em Vaqueiros e cantadores. 24 BAIÃO (p. 96) Dança popular muito preferida durante o século XIX no nordeste do Brasil. Cita diversos estudiosos, inclui uma partitura com duas pautas e refere-se à divulgação proporcionada por Luís Gonzaga a partir de 1946, nas estações de rádio do Rio de Janeiro. Mostra detalhes rítmicos originários do maestro Guerra Peixe (não indica a fonte). 25 BAILE (p. 97) Cascudo aborda as mais diversas acepções do termo e suas variantes no território brasileiro. Como sempre acontece, estão presentes os relacionamentos com Portugal e comentários sobre as origens. A citação de diversos autores completa o longo verbete. 26 BAIO (p. 98) Dança popular no Piauí. São destacadas as semelhanças com o miudinho, a forma de dançar e detalhes rítmicos. Ver xerém. 146 27 BAIÃO FACEIRO (p. 99) Uma espécie de quadrilha comum em Campos, estado do Rio de Janeiro. Sugere ver mana-chica. 28 BAMBÁ (p. 99) Descrita como dança de negros africanos, tem o seu nome por conta do estribilho que se canta durante a dança. Há grande frequência da palavra com variadas significação nas diversas regiões do Brasil. 29 BAMBAÊ (p. 100) Dança da região de Cajapió e S. Bento (Maranhão), onde ocorre a umbigada. 30 BANQUEQUERÊ (p. 100) Dança de par solto do Rio Grande do Sul, fazendo parte dos fandangos e compreendendo várias danças. Há ocorrência em diversas regiões, apresentando denominações diferentes. 31 BAMBELÔ (p. 100) É decerto um dos menores verbetes desse dicionário, apesar da popularidade da dança na cidade do Natal, o que talvez se explique por desenvolver sua apreciação nos verbetes coco, bate-caixa, jingo e zambê. É uma dança de roda cantada e acompanhada de percussão, comum nas praias do Rio Grande do Norte. 32 BANGULÊ (p. 102) Um tipo de dança de negros. Baseia-se em Macedo Soares, Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. Conferir bendenguê. 33 BANZÉ (p. 104) 147 Dança componente do bailado “moçambique” (Minas Gerais, São Paulo e Brasil Central). Registra ocorrência em Natal, no começo do século XX. 34 BAPO (p. 105) Instrumento musical dos índios bororos. Cita Antônio Colbacchini, I bororo orientali Orarimugudoge Del Mato Grosso (1925). 35 BARABADÁS (p. 105) Descreve como uma dança pertencente à quadrilha mana-chica, Campos, estado do Rio de Janeiro. 36 BATÁ-COTÔ (p. 111) Espécie de atabaque usado por tribo negra, em momentos de guerra. O verbete se baseia em Manoel Querino, “Costumes africanos no Brasil”, e Nina Rodrigues, Africanos no Brasil (1933). 37 BATE-BAÚ (p. 112) Dança de mulheres negras da Bahia. O mesmo que quebra-bunda. Indica Édison Carneiro, Negros bantos. 38 BATE-CAIXA (p. 112) Baseando-se em uma publicação do Conservatório Dramático [Musical] de São Paulo, Folclore Nacional (1946), Cascudo descreve essa dança, indicando ser o mesmo que jongo. Ver jongo. 39 BATE-CHINELA (p. 112) Conferir arrasta-pé. 40 BATE-COXA (p. 112) Descrita como dança ginástica do baixo São Francisco. Cascudo referencia Alceu Maynard de Araújo e Aricó Júnior, Documentário musical nordestino (1957). 41 BATE-PAU (p. 113) 148 Minuciosa descrição dessa dança, típica do vale do Rio das Garças. Cascudo referencia Francisco Brasileiro (monografia sobre o Rio das Garças. Revista do Arquivo, São Paulo, 1951). 42 BATE-PÉ (p. 113) Dança popular, descrita em Luís Martins, “Costumes populares paulistas” (Cultura política, n. 12, Rio de Janeiro, 1942). 43 BATERIA (p. 114) Breve descrição de conjunto de instrumentos de percussão. 44 BATUCADA (p. 114) Descrita como um baile popular, com instrumentos de percussão, palmas, canto uníssono, com ou sem refrão, trajeitando, em gesticulação improvisada, os dançantes. Ver batuque. 45 BATUCAJÉ (p. 114) É um título genérico para bailados religiosos, descrito com base em Artur Ramos, O negro brasileiro, e em Nina Rodrigues, Africanos no Brasil. 46 BATUQUE (p. 114) A descrição desse tipo de dança é uma das mais longas. Grande número de autores e obras é referenciado como apoio. 47 BANDENGUÊ (p. 118) Cascudo cita Macedo Soares sem se referir à obra e descreve o título como: Jongo, dança de negros da Costa, ao som da puíta e cantigas africanas. 48 BENDITOS (p. 118) Define como um canto religioso, no qual predomina a palavra bendito, que inicia o canto. Cascudo menciona Renato Almeida, História da música brasileira. 49 BERIMBAU (p. 120) 149 Descreve o instrumento e traça a sua história desde que foi trazido para o Brasil pelos portugueses, a partir da referência do padre Fernão Cardim, em dezembro de 1583, no Tratado da terra e gentes do Brasil (1925). Cita diversos outros autores e diz: Na Europa o berimbau é de uso geral. O instrumento é feito de ferro ou aço. Toca-se levando o berimbau à boca, prendendo nos dentes e fazendo a lingueta vibrar puxandoa com dedo indicador. 50 BERIMBAU DE BARRIGA (p. 120) É o instrumento típico da Bahia, composto por arco, cabaça, fio de metal, varinha. Em longo verbete, são citados diversos autores e obras. 51 BERNÚNCIA (p. 122) Animal fabuloso componente da dança do boi de mamão, em Santa Catarina. São incluídos versos referentes a ele cantados no auto popular. Aprofunda o exame dos animais fabulosos através de numerosos autores referenciados. 52 BERRA-BOI (p. 123) Ver zumbidor e aidje. 53 BLOCO (p. 125) Cascudo faz a descrição da instituição carnavalesca e informa: Os blocos são sempre acompanhados por um pequeno conjunto musical, saxofone, violões, banjos, pandeiros. 54 BOCHINCHE (p. 125) Em apenas uma linha, descreve: Batuque reles, chinfrim. 55 BOI (p. 127) Apresenta a influência do animal no folclore e nos cantos a ele dedicados. Extensa bibliografia é citada. 56 BOI-BARROSO (p. 128) Ver sarna. 150 57 BOI-BUMBÁ (p. 128) Auto popular típico do Pará e Amazonas, variante do bumba meu boi nordestino: Exibição de um boi de pau e pano, conduzidos por dois personagens – Pai Francisco e Mãe Catirina –, que são acompanhados por dois ou três cavalos e uma orquestra composta de rabecas e cavaquinhos. 58 BOI DE MAMÃO (p. 129) Nome do bumba meu boi em Santa Catarina. Informa participar do folguedo [...] um grupo de cantadores e acompanhados os cantos (todas as figuras têm a cantiga ao som da qual fazem seu bailado) por percussão, chocalhos, reco-recos, pandeiros. Segue-se extensa referência. 59 BOLE-BOLE (p. 136) Descrito como uma espécie de samba na Bahia. Cita Renato Almeida, História da musica brasileira. 60 BOMBO (p. 136) Bumbo, tambor grande, zabumba, bumba. Trazido para o Brasil pelos portugueses, enfoca ocorrências no país de origem e suas manifestações no Brasil. 61 BORÁ (p. 138) Som grave, oriundo do sopro que faz nas mãos fechadas. 62 BORÉ (p. 138) Instrumento de sopro dos indígenas tupis, flauta de cana ou taboca, gaita. Conferir toré. 63 BUMBA MEU BOI (p. 150) Embora o título do verbete seja a denominação mais divulgada, o folguedo popular é também conhecido como Boi Calemba, Bumba (Recife), Boi-de-Reis, BoiBumbá (Maranhão, Pará e Amazonas), Três-Pedaços (Porto da Rua, Porto de Pedras) em Alagoas, Folguedo-do-Boi, Reis-do-Boi em Cabo Frio, Estado do Rio de Janeiro. Em um verbete, talvez o mais longo do dicionário, o autor descreve com minúcias a ocorrência no Brasil desse brinquedo popular e as suas variações, através de uma vasta 151 bibliografia. Sente-se a falta de considerações musicais, que ocorrem em apenas dois breves comentários: [...] e a música bonita, clara e fácil. [...] Final em bailado e canto geral, uníssono, imitando a moenda, o tear, o carroussel, ou em desafios (Belém do Pará). Orquestra, instrumentos de corda. Cascudo comenta a opinião e o menosprezo pelo folguedo de nomes como Silvio Romero e Mello Moraes Filho. Ao final do verbete, emite sua consideração pessoal: [...] Bumba-Meu-Boi, o primeiro auto nacional na legitimidade temática e lírica e no poder assimilador, constante, poderoso. 64 BURRINHA (p. 155) Apresenta o folguedo popular, transcreve versos cantados pelo personagem e informa: A música se compunha de viola, canzá e pandeiro. 65 CABAÇAL (p. 160) É descrito como: Conjunto instrumental de percussão e sopro, tocando marchas, galopes, modinhas, rodas e valsas pelos sertões de Pernambuco, Paraíba e Ceará. Comenta as diferentes formações nos diversos ambientes nordestinos. 66 CABOCOLINHOS (p. 166) O verbete descreve o grupo, reminiscência dos antigos desfiles indígenas, com danças, instrumentos musicais. O autor apresenta, como é frequente, vasta bibliografia. 67 CAIAPÓS (p. 175) O verbete indica uma dança dramática típica do interior de São Paulo, informando ser uma espécie de cabocolinhos. Do ponto de vista musical, diz usar apenas instrumentos de percussão, tambor, caixa, pandeiro, reco-reco, sem usar música e canto. 68 ÇAIRÉ (p. 179) É um canto e dança religiosa na Amazônia, em que é usado um instrumento do mesmo nome: é um semi-círculo de madeira de um metro e quarenta centímetros, contendo dentro dois outros menores, colocados um ao par do outro, sobre o diâmetro do maior. Apresenta muitos detalhes e a necessária bibliografia. 69 CALANGO (p. 181) 152 Baseado em informação de Antônio Gomes Filho (sem referência), informa tratar-se de canto e baile que são realizados isolada ou conjuntamente. [...] O instrumento comum é a sanfona antiga, de oito baixos. 70 CANA-VERDE, CANINHA-VERDE (p. 185) Dança de roda de homens e mulheres, cantando e permutando os lugares, típica do sul e centro do Brasil. Cascudo cita Oneyda Alvarenga, Música popular brasileira (1950). 71 CANDONGUEIRO (p. 186) Citando o artigo de Alceu Maynard de Araújo “O jongo de Taubaté” (1949), o autor apresenta como um instrumento de percussão usado nas danças populares do interior paulista, especialmente nos jongos. 72 CANGÁ (p. 186) Cita Pereira da Costa (Vocabulário Pernambucano): Instrumento músico africano, feito de cana ou bambu. 73 CANTADOR (p. 189) Tratando-se de um dos temas preferenciais do pesquisador, é abordado com riqueza de detalhes e vasta bibliografia. Seria oportuno lembrar uma de suas obras básicas, o livro Vaqueiros e cantadores, que teve sua primeira edição em 1939. 74 CANTIGAS DE NINAR (p. 190) Ver acalanto, já comentado (n. 8). 75 CANTORIA (p. 190) Verbete que sugere a continuação do anterior (cantador) e aborda a disputa poética cantada, o desafio entre os cantadores no nordeste brasileiro. 76 CAPELA (p. 191) Capelas de folhagens que ornam foliões durante as festas juninas e o canto do tradicional “Capelinha de melão, é de São João” deram nome ao conjunto. 153 77 CAPELINHA DE MELÃO (p. 191) Pequeno auto encenado no Rio Grande do Norte na noite ou madrugada do dia de São João, bailado entre cânticos, modalidade de pastoril. [...] Exibem-se em tablado ao ar livre, com orquestra de violão e rabeca, presentemente sanfona, violões e pandeiros. Há uma clarineta solista. 78 CARACAXÁ (p. 194) O mesmo que reco-reco, reque-reque. Feito de um pedaço de bambu e taquara: a madeira é denteada e soa ao se passar uma vareta de madeira ou ferro. 79 CARANGUEJO (p. 195) É descrito como uma brincadeira de roda com cantiga e coreografia próprias. Ocorre em diversas partes do Brasil. 80 CARIMBÓ (p. 196) O verbete possui duas significações. A primeira: Atabaque, tambor de origem africana. Designa, também, uma dança negra de roda, comum no estado do Pará. 81 CARNAVAL (p. 197) Nesse verbete, encontram-se muitas referências à música do carnaval, bem como a indicação de diversos autores e títulos. 82 CARRASQUINHA (p. 199) Descreve a roda infantil popularíssima no Brasil. Transcreve alguns de seus versos. 83 CATACÁ (p. 205) Diz o autor: Consiste em dois pedaços de tabua, ou, mais comumente, de taboca, um dentado e outro não, que o tocador toca fazendo passar mais ou menos rapidamente e com mais ou menos força o pedaço liso sobre o dentado. 84 CATERETÊ (p. 205) 154 Detalhadas informações sobre esse tipo de dança rural do Sul do país, executada ao som de palmas e bate-pés, guiado pelos violeiros que dirigem o bailado. Ampla bibliografia. 85 CATOPÉS (p. 207) Ocorrendo no estado de Minas Gerais, esse préstito dançante é uma modalidade de congos, mas sem enredo. [...] Espetacularmente adornados, desfilam, com lances coreográficos, ao som de pandeiros, reco-recos, sonoros. Estudado por muitos autores, destaca-se aqui Hermes de Paula, Montes Claros (1957), que inclui letra e música dos cantos e acompanhamentos. 86 CAVAQUINHO (p. 211) Descrevendo o instrumento, apresenta uma versão para sua origem. Considerando-o de proveniência portuguesa, mais especificamente da Ilha da Madeira, baseia-se em Carlos M. Santos, Tocares e cantares da ilha (1937). Na crônica “O cavaquinho é brasileiro?” (1939), já comentada neste trabalho, expõe as razões de sua afirmação. 87 CAXAMBU (p. 211) Denomina um grande tambor negro e a dança executada ao som desse instrumento. Encontrado em São Paulo, Minas Gerais e Goiás. 88 CAXIXI (p. 212) É descrito como uma cestinha feita de cipó, cheia de caroços de chumbo e com um fundo de metal. Serve para acompanhamento aos cocos. 89 CHAMA (p. 214) Nome de um instrumento de sopro que imita o som das aves, atraindo-as para os caçadores. 90 CHEGANÇA (p. 218) Trata do auto popular apresentado no período natalino. Informa dados históricos e vasta bibliografia. Quanto à parte musical: A orquestra é composta de instrumentos de percussão, pandeiros (em Maceió), caixa e pequeno bombo (Natal). 155 91 CHEGANÇA DOS MARUJOS (p. 218) Ver fandango. 92 CHICO (p. 219) Descrito como um tipo de fandango, baile rural no Rio Grande do Sul, ocorrendo também em São Paulo. 93 CHIMARRETE (p. 220) Ver fandango. 94 CHIMARRITA (p. 220) É definida com uma das danças do fandango no Rio Grande do Sul e em São Paulo. Estuda sua difusão pelo Brasil e apresenta diversos autores e respectivos títulos. Transcrevendo Rossini Tavares de Lima, Folclore de São Paulo, informa dados musicais: [...] de um lado mulheres e do outro os homens, com o violeiro ao centro. Batem as palmas enquanto o violeiro executa um trecho musical. Depois o violeiro canta uma quadrinha [...]. 95 CHING-CHING (p. 220) É uma dança do período junino, típica de Bragança, Pará, atualmente desaparecida. Assemelhava-se à dança do pau de fita, do sul do país. 96 CHORADO (p. 221) É mais uma dança comum em Bragança, Pará, apresentada durante os festejos de São Benedito. O autor apresenta longa descrição do folguedo e oferece vasta bibliografia. 97 CHORINHO (p. 222) Conferir choro. 98 CHORO (p. 222) O verbete é apresentado em seus três significados: um conjunto de instrumentos, a música executada por esse conjunto e certo bailaricos populares, também conhecidos 156 como assustados e arrasta-pés. [...] Chorão [explica] é o músico que toca nos choros. Completa com a descrição da origem da palavra, a procedência carioca da forma atual e bibliografia sobre o assunto. 99 CHULA (p. 223) Descrição da palavra nas suas significações de canto e dança. Há também diferenças nas diversas regiões do país. O autor relata fatos de seu conhecimento e indica bibliografia. 100 CIRANDA (p. 231) Descrevendo-a como Dança infantil, de roda, vulgaríssima no Brasil e vinda de Portugal, onde é bailado de adultos. Informações objetivas e extensa bibliografia completam o verbete. 101 COCO (p. 237) Baseado na própria observação e na longa bibliografia apresentada, esse extenso verbete estuda pormenores da Dança popular nordestina, cantada em coro o refrão que responde aos versos do tirador de coco ou coqueiro, quadras emboladas, sextilhas e décimas. É canto-dança das praias e do sertão. 102 COMPORTA (p. 242) O verbete designa uma dança portuguesa da segunda metade do século XIX e que se popularizou no Brasil. 103 CONGADAS, CONGADOS, CONGOS (p. 242) É mais um extenso verbete em que esses Autos populares brasileiros, de motivação africana, representados no Norte, Centro e Sul do país são pormenorizadamente estudados e descritos, apresentando uma abundante bibliografia. 104 COQUEIRO (p. 250) Ver coco. 105 CORDÃO (p. 250) 157 São assim identificados os grupos que se reúnem para festejar o carnaval e outras festas religiosas. Não há tipo musical ou dança típica para os cordões. Cantam e dançam como desejam. Acompanha o verbete a necessária bibliografia. 106 CORETO (p. 253) Designa uma reunião em que as saudações são cantadas. Coreto vale dizer pequeno coro. É uma das festas comuns de Diamantina, Minas Gerais. O autor inclui a letra de alguns coretos, incluindo o célebre “Peixe Vivo”. 107 CORRIOLA (p. 257) Descrita como uma dança popular no interior de São Paulo, em que homens e mulheres dançam em roda em movimento de valsa ao som de canto e viola de um mestre. 108 CORTA-JACA (p. 257) Apresentada como um tipo de dança, comum no Rio de Janeiro, na Bahia e em outros estados. 109 CUCUMBI (p. 266) Indicada como uma variante de congos, congadas, quilombos, ticumbi, que está desaparecida, exceto em Sergipe. Recorre a Silvio Romero, Folclore brasileiro (1954): “Cucumbi, instrumento africano”. Já Luciano Gallet, Estudos de folclore (1934), indica como “instrumentos de procedência africana, adotados no Brasil, alguns já fora de uso”. Seguem-se outras referências. 110 CUÍCA (p. 268) Esse instrumento, tão tipicamente brasileiro, é originário da África, de uso dos escravos bantos. O mais curioso é sua existência em países europeus. A bibliografia não é tão abundante como nos verbetes precedentes, e o autor não incluiu a sua crônica “A origem da cuíca”, publicada no jornal A República em 24 de maio de 1949. 111 CURITIBANO (p. 272) Citando Mariza Lira, Migalhas folclóricas (1951), descreve como um tipo de dança de roda aos pares, registrado no Paraná. 158 112 CURURU (p. 274) Nesse longo verbete com vasta bibliografia, define: Uma dança, canto em desafio, relacionados com as festas religiosas no plano de louvação popular, Mato Grosso Goiás, S. Paulo. 113 CUTILADA (p. 276) É um tipo de conjunto instrumental composto em geral de dois pífanos, um bombo e um tambor, comum na Paraíba e em Pernambuco. Informa que um motivo musical recolhido pelo maestro paraibano José Siqueira aparece na sua “Quarta Dança Brasileira”, para grande orquestra. 114 DANÇA (p. 278) Uma minuciosa apreciação sobre essa atividade parte da pré-história e alcança o folclore brasileiro, indicando substancial bibliografia. 115 DANÇA DE CUPIDO (p. 280) Ver jardineira. 116 DANÇA DE SÃO GONÇALO (p. 280) Ver Gonçalo. 117 DANÇA DO ESPONTÃO (p. 280) Ver espontão. 118 DANÇA DO PEIXE (p. 280) O autor descreve como uma curiosa reunião temática de rondas infantis portuguesas e danças indígenas do Brasil Central e Setentrional. 119 DANÇA DO TAMBOR (p. 280) Ver tambor. 120 DANÇA DO TIPITI (p. 280) 159 Diz o autor: O tipiti mesmo é uma dança muito conhecida no Brasil: a dança do pau de fita, comum às populações do interior do Amazonas. Ver ainda pau-de-fita e trançado. Conferir bambaquerê, dão-dão, fandango. 121 DÃO-DÃO (p. 281) Descrita como pertencente ao fandango, é, conforme Renato de Almeida, um grande bailado, comum no Rio Grande do Sul e em São Paulo. 122 DEMANCHE (p. 285) Tipo de instrumento musical do xangô (muleta “sem função visível”) registrado no Recife pelo maestro Guerra Peixe. 123 DESAFIO (p. 287) Longo estudo sobre um dos temas da predileção do autor, pesquisado em diversas outras de suas obras. 124 DESPEDIDA (p. 290) Parte dos autos populares que encerra, em geral, suas apresentações. 125 DOBRADIÇA (p. 294) Tipo de passo realizado pelos dançadores do frevo pernambucano. 126 DODORON (p. 295) Cita Renato Almeida, História da música brasileira, e descreve uma melodia cantada durante a festa de São Gonçalo, no morro de São Paulo, na Bahia. 127 ECU (p. 301) Descrito como um bailado dos candomblés baianos. 128 EMBOLADA (p. 304) É um tipo de canto, improvisado ou não, encontrado nas praias e sertões do Brasil. 129 ENGENHO NOVO (p. 308) 160 O autor descreve como Dança popular nordestina, pertencente aos cocos de ganzá, dançada em roda, soltos ou componentes [os componentes?], cantada a letra no ritmo de dois por quatro, na forma típica da “embolada”, batendo-se as palmas. 130 ESPONTÃO (p. 313) Descreve uma dança ainda existente nos municípios de Jardim do Seridó e Caicó, no Rio Grande do Norte: [...] um grupo de negros com espontões, uma lança e uma bandeira branca, percorre as ruas, ao som de três tambores trovejantes [...]. Não há canto. O autor não incluiu referência à sua “Acta Diurna” intitulada “Dança do Espontão”, publicada no Diário de Natal a 26 de junho de 1947. 131 ESQUENTA-MULHER (p. 313) Dois ou três pifes de taquara, uma caixa, dois zabumbas (bombos médios) e um par de pratos de metal compõem um tipo de conjunto orquestral popular em Alagoas. 132 ESQUINADO (p. 313) Designa uma dança (Norte do Brasil, Espírito Santo, Ceará, Piauí e Maranhão) em que as damas e cavalheiros se aproximam e se tocam de lado. O maestro VillaLobos, informa o autor, aproveitou um tema de um esquinado originário do Espírito Santo em seu “Choro n. 12”. 133 ESQUIPADO (p. 313) Brevemente descrito como um dança rural sulista. Ver fandango. 134 FALSETE (p. 319) Tipo de voz forçada que imita o timbre infantil ou feminino. 135 FANDANGO (p. 319) O autor estuda em longo verbete as variantes do folguedo popular comum em todo o Brasil. Basicamente é um bailado de marujos. 136 FAXINEIRA (p. 323) Ver fandango. 161 137 FERRA-FOGO (p. 326) Baseado em Sagarana, de Guimarães Rosa (1946), transcreve: “Dança velha que os negros tinham de entoar em coro, fazendo de orquestra para o baile dos senhores, no tempo da escravidão”. 138 FOBÓ (p. 331) Conferir arrasta-pé, baianá, samba. 139 FOFA (p. 331) Pequeno verbete que descreve: Dança portuguesa do séc. XVIII que se conheceu no Brasil. 140 FOLE (p. 335) Expressão mais comum no Nordeste, indica a mesma harmônica, sanfona, acordeona, realejo, gaita (Rio Grande do Sul). 141 FOLIA (p. 335) Longo verbete expõe a significação da palavra em seu sentido musical: dança rápida que chegou ao Brasil através dos portugueses, sofrendo mudanças ao longo do tempo e do lugar. 142 FORRÓ (p. 345) Conferir arrasta-pé. 143 FORROBODÓ (p. 345) Descrito como Divertimento, pagodeiro, festança. Anexa diversas significações musicais. 144 FREVO (p. 346) Um longo verbete descreve essa dança de rua e salão, típica do carnaval pernambucano. Detalhes de coreografia, instrumentos, origens da palavra e outros detalhes musicais apoiam-se em longa bibliografia. 145 FUNGADOR (p. 349) 162 Apoiando-se em Luciano Gallet, classifica como um instrumento musical africano trazido pelos escravos para o Brasil, porém não o descreve. 146 GAITA (p. 352) Ver fole. 147 GALLET (p. 353) Refere-se a Luciano Gallet, musicista brasileiro autor de importantes trabalhos sobre o folclore brasileiro. 148 GAMBÁ (p. 354) É descrito como Cilindro de madeira, tapado de um só lado, com couro cru, em que se bate, produzindo um som especial que não é o do zabumba. Seguem-se detalhes que enfatizam as ocorrências no país. 149 GANZÁ (p. 355) É mais um instrumento típico (espécie de maracá) detalhadamente descrito e estudado em sua extensa difusão no país. 150 GONÇALO (p. 364) Inicialmente, parece tratar apenas do santo português que tocava viola. O longo verbete passa a estudar as festas a ele relacionadas, ressaltando os inúmeros e curiosíssimos detalhes musicais. É talvez a derradeira dança como ação religiosa, oferenda litúrgica, que possuímos. Além de informantes pessoais, cita no final farta bibliografia. 151 GONGUÊ (p. 367) Pequeno tambor para danças, zambê, bambelô, etc. Sou som é usado como convite para o fincão. 152 GOTEIRA (p. 367) Na cantoria sertaneja é o mau cantador. 153 GUAIÁ (p. 369) 163 Citando Rossini Tavares de Lima, Folclore de São Paulo, aborda um tipo de chocalho usado pelos negros. 154 GUARAPÁ (p. 369) Conferir engenho novo para essa dança de roda. 155 GUARARÁS (p. 369) Descrito como instrumento indígena que se prende a jarreteiras, usado para marcar o ritmo das danças. 156 GUERREIRO (p. 371) O autor estuda a parte musical desse auto popular típico do estado de Alagoas. 157 GURUFIM (p. 372) Canto de velório negro em São Paulo. 158 GUZUNGA (p. 372) Informa o registro de Alceu Maynard Araújo, ao caracterizá-lo como tambor cilíndrico seguro por uma correia, o que posiciona debaixo da axila do tocador. 159 HAIT-TEATAÇU (p. 373) Instrumento indígena, flauta nasal dos nambiquaras de Mato Grosso. 160 HARMÔNIA (p. 373) Conferir sanfona. 161 HARMÔNICA (p. 373) Ver fole. 162 HERÁ-HERAHUN (p. 373) Instrumento musical de sopro dos indígenas parecis, Mato Grosso. 163 HEZÔ-HEZÔ (p. 373) 164 Ainda um instrumento musical dos parecis: grande trombeta, com embocadura de pistão, possuindo uma formidável caixa de ressonância. 164 IÁ (p. 377) Remetendo-se à varrição, descreve uma dança típica de Santarém Novo, Pará. 165 IAPINARI (p. 377) Personagem de uma lenda da região do Rio Negro, Amazonas: Era grande tocador de membi, tornando-se famoso. 166 ICA (p. 378) Trombeta dos indígenas bororos de Mato Grosso, a qual produz um som grave. 167 ILU (p. 380) Citando Manoel Querino, Costumes africanos no Brasil, classifica-o como um tambor grande. 168 INGONO (p. 382) Tambor de macumba e candomblé e também para danças populares, cocos, zambês, bambelôs. 169 INCELÊNCIAS (p. 386) Ver excelências: orações cantadas nos velórios. 170 INSTRUMENTOS MUSICAIS (p. 386) Longo verbete que aborda os instrumentos musicais em suas variadas características. 171 JÁ (p. 393) Citando Luciano Galllet, informa ser uma espécie de sineta de metal, instrumento musical dos negros. 172 JACARANDÁ (p. 394) 165 Remetendo-se a Renato Almeida, História da Música Brasileira, descreve: Dança rural, em roda, acompanhada por viola [...]. 173 JACUNDÁ (p. 395) Dança tradicional indígena típica do Amazonas. 174 JANEIRA (p. 396) Estuda a ocorrência no Brasil e em Portugal desse tipo de canção que é cantada quando se visita pessoas amigas no primeiro dia do mês de janeiro. 175 JARARACA (p. 400) Tipo de trombeta usada pelos índios parecis, denominando também uma dança popular do interior do Nordeste, muito comum no Rio Grande do Norte. Cascudo informa que essa manifestação faz parte do repertório de dança da Sociedade Araruna, de Natal. 176 JARDINEIRA (p. 400) Dança que ocorre nos estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. 177 JEGUEDÊ (p. 401) Instrumento de percussão dos negros africanos, popular no Sul do Brasil. 178 JONGO (p. 414) Detalha esse tipo de dança muito popular nos estados de São Paulo, Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro. 179 JUCURUTU (p. 417) Inicialmente, é descrito como um tipo de mocho. Indica também: Dança popular desaparecida do Rio Grande do Norte, ainda viva em 1888. Era de roda, com palmas [...]. 180 JUPURUTU (p. 419) Citando Renato Almeida, História da Música Brasileira, e Ermanno Stradelli, Vocabulário da Língua Geral, descreve um instrumento de sopro dos indígenas do noroeste do país. 166 181 KA (p. 423) Tambor dos índios bororos do Mato Grosso. 182 KAIGUETAZU (p. 423) Baseado em Roquete Pinto, diz ser uma flauta dupla dos indígenas parecis. 183 KEN (p. 423) Descrito como instrumento de sopro dos indígenas da raça tupi. O mesmo que torê. 184 LADAINHAS (p. 426) Cascudo faz uma apreciação sobre essa forma de louvor religioso, acrescida de informações sobre sua parte musical. 185 LANGA (p. 429) Danças de roda da região de São Gonçalo, Minas Gerais. 186 LAPINHA (p. 429) Semelhante ao pastoril, apresentando pequenas diferenças. O autor não enfatiza a parte musical do folguedo. 187 LELÊ ou LELELÉ (p. 434) Contradança típica de São Luís do Maranhão, no início do século XX. 188 LINHA (p. 437) No catimbó é o canto privativo do espírito que vai acostar ou está acostado. 189 LOA (p. 440) O verbete é apresentado com o sentido de verso de louvor, geralmente cantado, e também de toada, cantada pelos canoeiros do baixo Rio São Francisco. Cita Isaac Newton, Dicionário Musical (1904). 190 LOKU (p. 442) 167 Descrito como uma espécie de flauta de cabaça, encontrada entre os savajés. 191 LUNDU (p. 446) O autor assim o descreve: Lundum, landu, londu, dança e canto de origem africana, trazidos pelos escravos bantos, especialmente de Angola, para o Brasil. Apresenta extensa bibliografia, inclusive o seu capítulo intitulado “Lundu”, em Made in Africa (1965), publicado posteriormente à primeira edição desse dicionário. 192 MACHETE (p. 451) Descrito como uma espécie de cavaquinho vindo de Portugal, também conhecido como machim, machinho, machetinho. Na ilha da Madeira, chamam-lhe braguinha. Usado no cururu, baile rural de São Paulo. 193 MACULELÊ (p. 451) Bailado guerreiro típico da Bahia. 194 MACUMBA (p. 451) Instrumento de percussão africano. 195 MALEMBE (p. 459) Cântico rogatório dos candomblés de origem banto. 196 MANA-CHICA (p. 464) Identificada como um tipo de quadrilha do estado do Rio de Janeiro. 197 MANA-JOANA (p. 464) Conferir Mana-Chica. 198 MANDADO (p. 464) Conferir fandango. 199 MANGONGUÊ (p. 465) Tipo de tambor muito usado nos sambas de negros de engenho, no tempo da escravatura no vale açucareiro do Ceará-Mirim, Rio Grande do Norte. 168 200 MARABAIXO (p. 470) Dança típica do território do Amapá. 201 MARACÁ (p. 471) Instrumento indígena constituído de uma cabaça, tendo na extremidade uma empunhadura e no interior sementes secas ou pedrinhas. 202 MARACATU (p. 471) Grupo carnavalesco pernambucano, com pequena orquestra de percussão, tambores, chocalhos, gonguê, [...] percorre as ruas cantando, dançando sem coreografia especial. Há uma minuciosa descrição dos conjuntos que se completa com ampla bibliografia. 203 MARCHA (p. 474) Descreve a marcha carnavalesca. 204 MARIA CACHUCHA (p. 476) Refere-se a uma dança típica espanhola, apresentada em alguns lugares do Brasil. 205 MARIBONDO (p. 476) Dança popular em Goiás. 206 MARIMBA (p. 477) Esse verbete descreve um instrumento musical africano que se tornou muito popular no Brasil. Placas de madeira, graduadas em escala musical, soavam quando percutidas por duas baquetas. 207 MARRAFA (p. 478) Descrita como uma dança do fandango conhecida somente na região do litoral fluminense e paulista, principalmente nas cidades de Parati, Ubatuba e Ilha Bela. 208 MARUJADA (p. 479) 169 O mesmo que fandango. A denominação é usada da Bahia para o sul do país. 209 MATRACA (p. 484) Instrumento de percussão feito de madeira, com uma ou mais tábuas (ou argolas de ferro) que se deslocam ao serem movimentadas, percutindo a prancha onde estão presas. 210 MATUNGO (p. 485) Instrumento musical que é uma cuia com ponteiros de ferro num tambor grande. 211 MAXIXE (p. 486) Dança urbana de grande prestígio no Brasil antes da divulgação do samba. 212 MEIA-CANA (p. 489) Uma das danças componentes do baile fandango no Rio Grande do Sul. Referese a fandango. 213 MEIA-CANHA (p. 489) Ver fandango. 214 MEMBÉ (p. 490) Conferir membi. 215 MEMBI (p. 490) Memi, menbé, flauta, assobio, pífaro. É o nome da flauta feita do osso da tíbia, e é troféu de guerra ou de caça, sendo que no primeiro caso é feita de uma tíbia humana. 216 MEMI (p. 490) Ver membi. 217 MILINDÔ (p. 494) Dança de roda semelhante ao coco, mas com algumas diferenças. É uma dança exclusivamente feminina, muito popular no Crato, Ceará. 170 218 MINEIRO-PAU (p. 495) Também conhecida como maneiro-pau, é uma dança de roda cantada com acompanhamento de palmas. 219 MIUDINHO (p. 496) É referido como uma dança e um dos passos do samba. Para ser executada, os dançarinos com o corpo quase imóvel movimentam os pés de uma forma quase imperceptível, em um ritmo rápido e igual. 220 MOÇAMBIQUES (p. 498) O verbete apresenta detalhes sobre esse bailado popular que é típico dos estados de Goiás, Minas Gerais, São Paulo e Rio Grande do Sul, realizado durante os festejos do Divino, Nossa Senhora do Rosário ou São Benedito. 221 MODINHA1 (p. 499) É um longo verbete em que traça uma história dessa forma musical, desde o que de mais antigo se encontra na documentação conhecida. O verbete aborda, ainda, a proposta de Mário de Andrade, no prefácio de Modinhas Imperiais, no qual sugere esse gênero como sendo uma manifestação que partiu do erudito para o popular, ao contrário do que normalmente se verifica, quando o popular é adotado pelo erudito98. 222 MODINHA2 (p. 501) Esse segundo verbete inicia-se da seguinte forma: O Prof. Luís Heitor Correia de Azevedo, da Universidade Nacional (Rio de Janeiro), fixou excelentemente os elementos característicos da modinha99. Apresenta, em seguida, ampla bibliografia sobre o tema. 223 MONGO VELHO (p. 503) Esse tema foi tratado por GALVÃO, Claudio. “Mário de Andrade e a Música Brasileira: as modinhas imperiais” (1997). 99 Cascudo explicita essa colaboração recebida em uma entrevista gravada pelo autor, em 14 de janeiro de 1980, publicada em GALVÃO, Claudio. A Modinha Norte-Rio-Grandense (2000): Consegui que Luís Heitor escrevesse. Luís Heitor está morando em Paris e era, no momento, a maior autoridade cultural da Escola Nacional de Música. É um trabalho inédito, só existe no “Dicionário”, sobre a modinha que eu continuo pensando que veio da chanson, que veio da canção tão popular nos fins do século XVIII. 98 171 Na descrição desse personagem lendário, há uma referência a um “Jongo do Mongo Velho”. 224 MONO (p. 503) Conferir fandango. 225 MONTENELO (p. 503) Refere-se a uma dança também conhecida como Montinelo, popular em Recife no século XIX. 226 MORRADA (p. 505) Ver fandango. 227 MORRO-SECO (p. 505) Conferir fandango. 228 MOCAXIXI (p. 507) Ver caxixi. 229 MUÇURANAS-MARACÁS (p. 509) Cintas de guizos dos indígenas amembés, do Tocantins. 230 MULINHA (p. 513) Manifestação apresentada durante as festas de Reis, na zona do São Francisco. Apoiado em Renato Almeida, História da Música Brasileira, informa os instrumentos que são utilizados nessa festividade: ganzá, viola, pandeiro e um “tamborete” que faz a marcação do ritmo. 231 MULUNGU (p. 513) Além de diversas significações, é citado também como um instrumento musical introduzido no Brasil pelos africanos. 232 MÚSICA POPULAR (p. 514) Longo verbete aborda o tema. 172 233 NAU CATARINETA (p. 521) Auto popular amplamente estudado por Cascudo em outros trabalhos. No final do verbete, encontra-se a única referência musical: Em Natal é conhecida desde 18131815, com solfa inalterável, que diverge das registradas em Portugal e noutras paragens do Brasil. 234 NHÁ-MARUCA (p. 526) Ver fandango. 235 NHANINHA (p. 526) Conferir fandango. 236 NHÔ-CHICO (p. 526) Dança popular realizada ao som de violas e descantes, popular no litoral do Paraná. 237 NINAR (p. 527) Aborda as canções para adormecer crianças. 238 OPANIJÉ (p. 549) Um dos bailados no candomblé jeje-nagô da Bahia. 239 PAGARÁ (p. 568) Cascudo recomenda ver fandango e informa ser uma dança popular no Rio Grande do Sul e em São Paulo. 240 PALMINHA (p. 572) Indica uma dança, espécie de quadrilha rural, comum em Goiás. 241 PANA (p. 574) Instrumento musical dos bororos. 242 PANDEIRO (p. 574) 173 Nesse verbete, são abordadas a origem e a história do instrumento, bem como sua difusão pelo Brasil, enfatizando-se sua utilização pelos cantadores sertanejos. 243 PARAFUSO (p. 580) Movimento coreográfico do frevo pernambucano. Aborda também as variações de significado em outros locais. 244 PARRAXAXÁ (p. 582) O autor descreve como Canto de insulto entoado pelos cangaceiros no intervalo das descargas de fuzis contras os soldados das polícias militares. Tradição milenar encontrada na Ilíada. Provável origem do xaxado. 245 PARTIDO ALTO (p. 583) Espécie de samba (um dançarino solista, um estribilho com quadras repetidas ou improvisadas) dos morros cariocas. 246 PASSADO (p. 584) Ver fandango. 247 PASSO100 (p. 587) Indicado como sendo a coreografia do frevo pernambucano. Transcreve longo trecho de Valdemar de Oliveira, Introdução ao Estudo do Frevo (Contraponto, n. 4, Recife, 1947). 248 PASTORIL (p. 588) Descreve como Cantos, louvações, loas, entoadas diante do presépio na noite do Natal, aguardando-se a missa da meia-noite, em um longo e minucioso verbete. 249 PASTORINHAS (p. 589) Conferir pastoril. 250 PAU-DAS-FITAS (p. 592) 100 Cascudo apresenta dois verbetes para o termo “passo”. Neste trabalho, foi apresentado apenas o verbete relacionado à temática musical. 174 Ver pau-de-fitas. 251 PAU-DE-FITAS (p. 592) Aborda o conhecido folguedo trazido para o Brasil pelos portugueses e informa ainda: No Rio grande do Norte vi o pau-de-fita reduzido ao final do Bumba-meu-Boi, denominado engenho de fita. Conferir ching-ching, trança, trançado e jardineira. 252 PEGA-FOGO (p. 605) Dança cantada e sapateada, figurando no fandango, baile popular no Rio Grande do Sul. Ver fandango. 253 PERERENGA (p. 610) É um tambor, dos médios, usado no Maranhão, para a dança do punga ou dança do tambor. 254 PERICÃO (p. 610) Conferir pericón. 255 PERICÓN (p. 610) Dança popular descrita como fazendo parte do fandango no Rio Grande do Sul. 256 PEZINHO (p. 613) Dança em que os pares, em roda e de mãos dadas, cantam adiantando o pé direito e tocando com a ponta no chão. Comum em Santa Catarina com uma variante no Nordeste. 257 PINHEIRO (p. 618) Dança componente do fandango, no Rio Grande do Sul. 258 PIROLITO (p. 623) Ver fandango. 259 POLCA (p. 625) Minucioso verbete expondo a origem e difusão da dança no Brasil. 175 260 PRANANGUMA (p. 630) Descrito como um instrumento de percussão, do tipo chocalho, encontrado em Santa Catarina. 261 PRATOS (p. 630) Instrumento de percussão participante das orquestras sinfônicas e indispensável nas bandas militares. 262 PREGÕES (p. 631) Refere-se às melodias com que vendedores anunciavam seus produtos. 263 PRESÉPIO (p. 633) Ao descrever o grupo de estatuetas representando a cena do nascimento de Jesus, o autor inclui curiosos detalhes de ocorrências musicais. 264 PUÍTA (p. 641) O mesmo que cuíca. 265 PUNGA (p. 641) Apresentada como uma dança popular do Maranhão, é descrita com numerosos detalhes musicais. 266 PURACÉ (p. 642) Danças cerimoniais indígenas que festejam ocorrências locais. 267 PURACLIARA (p. 643) Nas danças indígenas, o diretor da festa, que dirige as danças e vigia para que tudo proceda de conformidade com os velhos costumes tradicionais. 268 QUADRILHA (p. 645) O autor a descreve como uma grande dança palaciana do século XIX, protocolar, abrindo os bailes da corte em qualquer país europeu ou americano [...]. Aborda detalhes históricos e comenta a popularização da dança no país. 176 269 QUATRAGEM (p. 646) Essa dança é indicada como popular no interior de Minas Gerais, apoiando-se em O seminarista de Bernardo Guimarães (1872) para descrição dos detalhes. 270 QUEBRA-BUNDA (p. 647) Antiga dança goiana, também chamada dança de velhos. 271 QUEBRA-MACHADO (p. 647) Mais uma dança típica do estado de Goiás. 272 QUEHUES (p. 649) Espécie de maracá, usado por algumas tribos indígenas. 273 QUEIMA (p. 649) Refere-se à “queima da Lapinha”, parte componente das lapinhas do período natalino. Apresenta detalhes e variantes de diversos lugares do Brasil. 274 QUERO-MANA (p. 652) Dança sapateada, valsada e acompanhada por violas e batidas de palmas [...], popular no Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo. Ver bambaquerê e fandango. 275 QUERUMANA (p. 652) Conferir quero-mana. 276 QUILOMBO (p. 653) Longo e detalhado verbete sobre a dança considerada sobrevivente dos quilombos, ainda cultivada no estado de Alagoas. 277 QUIMBETE (p. 656) Segundo Luciano Gallet, é uma dança de origem negra em Minas Gerais. 278 QUINDIM (p. 656) 177 Além de um doce popular, a denominação indica uma dança típica do estado do Rio de Janeiro. 279 QUINJENGUE (p. 657) Instrumento de percussão, de origem africana, muito usado em São Paulo. 280 RABECA (p. 659) O autor descreve como Uma espécie de violino, de timbre mais baixo, com quatro cordas de tripa, afinadas por quintas, sol-ré-lá-mi, e friccionadas com um arco de crina, untado no breu. 281 RAMALHÃO (p. 661) Dança popular paulista [...] Fila de homens, defrontando a de mulheres, balanceando, volteando, permutando lugares ao som da viola. 282 RANCHO (p. 662) Além da designação própria da arquitetura popular, diz respeito também a grupos que cantam e dançam na época do Natal: a sua música é o violão, a viola, o cavaquinho, o canzá, o prato e às vezes a flauta. Ampla descrição e bibliografia do termo. 283 RASPADOR (p. 664) Tipo de reco-reco, feito de taquara grossa, componente da Folia de São Benedito do Amazonas. 284 RATOEIRA (p. 664) Dança em que grande número de rapazes e moças forma um círculo, tendo um componente ao meio. Comum em algumas cidades de Santa Catarina. 285 REALEJO (p. 665) Ver acordeom, fole, gaita, sanfona. 286 RECO-RECO (p. 665) Popular instrumento de percussão. 178 287 RECORTADO (p. 665) Dança cantada e sapateada, com acompanhamento de viola, popular em Rio Grande do Sul, São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás. 288 REIS (p. 668) Festas dedicadas aos três Reis Magos, populares na Europa e adotadas no Brasil. Os grupos visitam os amigos ou pessoas conhecidas, na tarde ou noite de 5 de janeiro (véspera de Reis) cantando e dançando ou apenas cantando versos alusivos à data e solicitando alimentos e dinheiro. 289 REISADO (p. 669) É denominação erudita para os grupos que cantam e dançam na véspera e dia de Reis (6 de janeiro). 290 RETORCIDA (p. 671) Dança componente do fandango do Rio Grande do Sul. 291 RETUMBÃO (p. 671) Dança típica paraense, o mesmo que carimbó, corimbó e curimbó. 292 RIBADA (p. 672) Outra dança componente do fandango do Rio Grande do Sul. Conferir bambaquerê e fandango. 293 RIL (p. 672) Originário do reel inglês. Refere-se a uma dança que se divulgou pelo Brasil no século XIX e em princípios do XX. 294 RODA (p. 676) Minucioso verbete, com vasta bibliografia, abordando as danças de roda. 295 RODAGEM (p. 678) Ver fandango. 179 296 RODA-PAGODE (p. 678) Em torno das fogueiras, grupos alegres de adultos de ambos os sexos, de mãos dadas, cantam, saltam-nas, deixam uma fogueira, passam para outra, misturam-se aos grupos. Comum nas festas juninas do Baixo São Francisco. 297 RÓI-RÓI (p. 679) Ver zumbidor. 298 ROJÃO (p. 679) Informando que conheceu a forma velha do rojão, por volta de 1910, no sertão de Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba, descreve: era o pequeno trecho musical, tocado a viola ou rabeca (por ambas, também), antes do verso cantado pelo cantador. O autor acrescenta as diversas significações da palavra, inclusive as musicais. 299 ROLINHA (p. 680) Tipo de dança de roda infantil. 300 ROMANCE (p. 680) [...] Foram poemas feitos para o canto nas cortes e saraus aristocráticos, e não a poesia democrática e vulgar, feita para o povo. Comentando a vinda do romance para o Brasil com os portugueses, permeia diferentes significações da palavra e indica vasta bibliografia. Lembra que, em 1939, publicou uma versão do romance da Bela Infanta, no seu Vaqueiros e Cantadores. 301 RONCA (p. 682) Conferir cuíca. 302 RONCADOR (p. 682) Concorda com Luciano Gallet, que identifica como um instrumento dos negros no Brasil. 303 RONCÓ (p. 682) Instrumento de percussão do sincretismo afro-indígena. 180 304 RUM (p. 683) É o atabaque maior dos candomblés da Bahia. 305 RUMPI (p. 683) Nos candomblés da Bahia é o atabaque médio. 306 SABÃO (p. 685) Dança componente do fandango no Rio Grande do Sul e em São Paulo, popular em Pernambuco, em meados do século XIX. 307 SAIÁ-SAIÁ (p. 687) Baile rural do fandango do Paraná. 308 SAIDEIRA (p. 687) Descrita como a última dança num baile, a despedida. 309 SALU (p. 689) Mais uma dança componente do fandango no Rio Grande do Sul. Conferir fandango. 310 SAMBA (p. 689) Indicando que a palavra provém de semba, umbigada em Loanda, Cascudo estuda esse tipo de dança popular e suas variações e diferenças. Refere-se a “Pelo telefone”, composição de Ernesto Sousa (Donga), que traz impressa, pela primeira vez, a palavra samba. 311 SANFONA (p. 691) O autor cita como o mesmo instrumento a acordeona, gaita-de-foles (no Brasil velho), realejo, fole (nome idêntico ao norte de Portugal), harmônica. É, ainda, gaita no Rio Grande do Sul e pífano, no Nordeste e Norte. 312 SANGAVIRA (p. 691) É descrito como um instrumento de percussão usado no jongo do vale do rio Paraíba do Sul. 181 313 SAPATEADO (p. 695) É referido como originário dos portugueses e africanos (os indígenas não apresentavam semelhante ocorrência), muito comum nas danças populares brasileiras. 314 SARABAGUÉ (p. 697) Dança típica de Carapicuíba, São Paulo, durante as festas da Santa Cruz. Também chamada sarabaqué. 315 SARAMBÉ (p. 697) Dança trazida pelos escravos, segundo Luciano Gallet. 316 SARAMBEQUE (p. 697) Dança popular portuguesa do século XVII. 317 SARAMBU (p. 697) Conferir sarambé. 318 SARANDI (p. 697) Dança humorística de Goiás, correspondendo ao arara, ao vilão da mala, ou ao chapéu. 319 SARNA (p. 698) Dança popular no Rio Grande do Sul em que os pares, ao dançarem, fingem coçar-se. 320 SARRABALHO (p. 698) Outra dança do fandango no Rio Grande do Sul. 321 SARUÊ (p. 698) Um misto das quadrilhas francesa e americana. O nome indica uma corruptela da palavra soirée ou sarau. 322 SAÚDE CANTADA (p. 699) 182 Saudação em versos, cantada nos fins de refeições festivas. Cita os nomes de Lourival Açucena, Evaristo de Souza, Elói de Souza e Tobias Barreto como cultores desse antigo hábito. 323 SCHOTTISCHE (p. 699) Fala da origem e difusão da dança pelo Brasil. Curiosamente, o autor não usa uma só vez a forma xote. 324 SENHOR SAMPAIO (p. 705) Ver fandango. 325 SEPARA-O-VISGO (p. 706) Renato de Almeida descreve como uma espécie de samba na Bahia. 326 SERENATA (p. 707) É o canto e música instrumental executados ao sereno, ao ar livre, diante da casa de quem [a quem?] dedica a homenagem. O autor destaca dois tipos de serenatas: as amorosas, dedicadas às namoradas; e as sociais, homenagens prestadas a alguém. No comentário sobre o tema, retrocede aos romanos antigos. Obrigatoriamente o único instrumento de sopro nas serenatas era a flauta. Os demais, de cordas, o indispensável violão, os cavaquinhos, às vezes o violino e depois o bandolim, solista, nos intervalos, melocomentando a modinha. 327 SERENGA (p. 708) Canto de remeiros quando da festa do Divino Espírito Santo, em Tietê, São Paulo. 328 SERRA, MORENINHA (p. 709) Dança em que os participantes imitam os gestos de dois serradores e puxadores de um serrote, enquanto cantam um estribilho. Gênero popular no sul de Goiás. 329 SERRA-BAIA (p. 709) Dança tradicional entre os ciganos no Rio de Janeiro. Sua fonte é Mello Moraes Filho, Ciganos do Brasil (1886). 183 330 SERRADOR (p. 710) Ver fandango. 331 SERRANA (p. 710) É uma dança do fandango do Rio Grande do Sul. Conferir fandango e bambaquerê. 332 SERROTE (p. 710) Dança popular no Rio Grande do Norte; um tipo de xote. 333 SINH‟ANINHA (p. 714) Ver fandango. 334 SINSARÁ (p. 714) Conferir fandango. 335 SIRINX (p. 714) Mais conhecido como flauta de Pã. Cascudo informa que o instrumento é de uso praticamente universal e que o indígena brasileiro possuía um semelhante que costumava tocar. 336 SIRIRI (p. 714) Denomina, em Mato Grosso, uma ronda infantil e uma dança popular. Refere-se à ocorrência em várias partes do país. 337 SOADA (p. 715) Conferir toada. 338 SOCADOR (p. 715) Instrumento negro, trazido pelos escravos africanos para o Brasil, entre os vinte e cinco enumerados por Luciano Gallet. 339 SOLO-INGLÊS (p. 717) 184 Dança muito comum durante o período da Maioridade e Segundo Império em todo o Brasil. 340 SOM (p. 717) Verbete que trata da essência básica da música. 341 SONIDOR (p. 760) Ver zumbidor. 342 SORONGO (p. 720) Dança africana trazida para o Brasil pelos escravos. Espécie de samba com ocorrência na Bahia e em Minas Gerais. 343 SURIBI (p. 724) É um tipo de trombeta com ressoador, comum entre os índios do Rio Negro. 344 TAIEIRAS (p. 733) Grupo feminino que, vestido tradicionalmente de baianas, acompanhava a festa de Nossa Senhora do Rosário, em Lagarto, Sergipe, na celebração de São Benedito, 6 de janeiro, dançando e cantando. 345 TAMARACÁ (p. 736) Vem do tupi; ita-maracá, maracá de pedra. Corresponde também a um tipo de tambor. Os indígenas assim denominavam os sinos das igrejas. 346 TAMBAQUE (p. 736) Batuque dos pretos em São Paulo durante as festas de Nossa Senhora do Rosário. 347 TAMBOR (p. 737) O autor apresenta um estudo sobre a história do instrumento e sua ocorrência na cultura brasileira. 348 TAMBORIM (p. 737) 185 Pequeno tambor. Foi, com a gaita de sopro, um dos primeiros instrumentos europeus vindos para o Brasil. Na carta de Pero Vaz de Caminha, abril de 1500, menciona-se o tamboril, encantando os tupiniquins, que o ouviam pela primeira vez. 349 TAMBU (p. 737) Instrumento de percussão típico dos jongos do interior de São Paulo. 350 TANGARÁ (p. 738) O autor prende-se ao detalhe curioso do canto e dança desse tipo de pássaro101. 351 TANGO (p. 739) Ritmo musical que ocorria no Brasil e não se popularizou. 352 TANGUINHO (p. 740) Ver corta-jaca. 353 TARÓ (p. 742) Também conhecido como tarol, tambor estreito, de som mais agudo. 354 TATU (p. 743) Além de nome de um animal, é também uma dança do fandango de São Paulo e do Rio Grande do Sul. 355 TEIRU (p. 744) Flauta típica dos índios parecis. 356 TERNO (p. 746) Descrito como um grupo que, durante as festas do Natal e Reis, apresenta o Terno de Natal e o Terno de Reis. As cantigas, nem humorísticas nem eróticas, eram acompanhadas por três instrumentos de sopro, piston, clarineta, bombardino, posteriormente aumentados em número, incluindo percussão, outrora inexistente. O grupo de cantores denominado “Bando de Tangarás”, muito popular na fase inicial do rádio no Brasil, identificava-se com esses pássaros. 101 186 357 TICÃO (p. 749) Conferir fandango. 358 TICUMBI (p. 749) Baile final integrante dos congos ou congada no estado do Espírito Santo. O verbete acompanha bibliografia e minuciosa descrição. 359 TIRANA (p. 753) Há longo verbete sobre esse canto e dança originários da Espanha, trazidos pelos portugueses e espalhados por todo o país. 360 TIRANA-GRANDE (p. 755) Ver fandango. 361 TIRANINHA (p. 755) Conferir fandango. 362 TIRE-O-CHAPÉU (p. 755) Dança de Parati (Estado do Rio de Janeiro). 363 TOADA (p. 755) Aborda os diversos significados da palavra e termina sem uma conclusão: É assunto para ser fixado pelos musicólogos. 364 TONTA (p. 756) Recorre a Renato de Almeida, História da Música Brasileira, para descrever essa dança componente do fandango, no Paraná. 365 TONTINHA (p. 756) Ver fandango. 366 TORÊ (p. 757) Conferir ken. 187 367 TORÉM (p. 757) Indica uma dança do município de Acaraú, Ceará. 368 TORI (p. 757) Instrumento (buzina) dos indígenas parintintins. 369 TORRADO (p. 758) Baseado em Costa Pereira, Vocabulário pernambucano, descreve esse tipo de dança pernambucana. 370 TRANÇA (p. 759) Jogo ou folguedo da trança é um divertimento ligado aos reisados do Natal e Ano Bom. Cascudo inclui os textos cantados pelas participantes. Conferir pau-de-fitas. 371 TRANÇADO (p. 759) Ver fandango, pau-de-fitas. 372 TROCADO (p. 761) Esse termo designa certos movimentos das dançadeiras de São Gonçalo, Minas Gerais. 373 TROCANO (p. 761) É citado também como torocano: instrumento de percussão indígena, espécie de telégrafo e sinaleiro, transmitindo as comunicações de povoação em povoação. 374 TROÇAS (p. 762) Pequenos blocos carnavalescos, às vezes sem cantigas especiais. Cita exemplos em Recife e em Natal, com as maxixeiras102. 375 TROMBETA (p. 762) Instrumento indígena usado nas guerras e festas religiosas. 102 As maxixeiras dançavam executando uma música própria, recolhida e grafada pelo autor. 188 376 TUM-DUM-DUM (p. 764) Dança popular em Bragança, Pará, pertencente ao ciclo de São João e presentemente desaparecida. 377 TURUNDU (p. 765) Nome de uma dança dramática do município de Contagem, Minas Gerais. 378 TURUNDURUM (p. 766) Ver tum-dum-dum. 379 UALALOCÊ (p. 769) Flauta típica dos indígenas parecis. 380 UARAPERU (p. 769) Nome de um instrumento de sopro comum em algumas tribos amazônicas. 381 UARIUAIÚ (p. 770) Tipo de bailado indígena no Amazonas. 382 UATAPI (p. 770) Instrumento musical indígena do Amazonas, feito com um búzio. 383 UBATÁ (p. 770) Instrumento negro trazido pelos escravos africanos para o Brasil. 384 UBATUBANA (p. 770) Conferir fandango. 385 UDECRÁ (p. 770) Espécie de viola usada pelos xerentes e que deve constituir um modelo de inspiração européia. 386 UFUÁ (770) Instrumento musical indígena do Amazonas, trombeta de taquara. 189 387 UIRAPURU (p. 770) Destaque especial para o canto do pássaro. Inclui uma pauta musical com a grafia da melodia. 388 UMBIGADA (p. 774) Descrição de um procedimento coreográfico comum em diversas regiões do Brasil. 389 URUCUNGO (p. 777) O arco componente do berimbau. Explica suas diversas formas. É também conhecido como orucungo, oricungo, uricungo, ricungo, rucungo. Ver berimbau-debarriga. 390 VAI-DE-RODA (p. 781) O autor recorre a uma informação de Mello Moraes Filho, que registrou essa dança portuguesa que era apresentada nas festas de Nossa Senhora da Penha de Irajá, no Rio de Janeiro do século XIX. 391 VALSA (p. 782) Breve história do ritmo que se popularizou no Brasil. No Brasil, no primeiro Império e segundo, a valsa era dançadíssima, e o povo gostou de seu ritmo. 392 VALSAVIANA (p. 782) Refere-se à varsoviana, ritmo europeu que também se popularizou no Brasil. Inclui, como exemplo, uma pauta de oito compassos. 393 VAMONEZ (p. 783) Dança popular no Amapá, Pará, especialmente em Mazagão Velho. 394 VAMOS-NA-CHÁCARA (p. 783) Ver fandango. 395 VAMOS PENEIRAR (p. 783) 190 Espécie de samba na Bahia. 396 VARSOVIANA (p. 785) Conferir valsaviana. 397 VATAPI (p. 786) Também conhecido como vapi, é um tipo de tambor usado pelos indígenas. 398 VELHOS (DANÇA DE) (p. 787) Apoiando-se em A. Americano do Brasil, Cancioneiro de Trovas do Brasil Central (1925), descreve uma dança trazida pelos portugueses, tradicional em Goiás. Acompanha sua evolução em outras regiões do país. 399 VILÃO (p. 789) Descrição de um baile popular em Goiás. 400 VILÃO-DA-MALA (p. 790) Conferir fandango. 401 VILÃO-DE AGULHA (p. 790) Ver fandango. 402 VILÃO-DE-LENÇO (p. 790) Conferir fandango. 403 VILLA-LOBOS (p. 790) Comentário sobre o compositor brasileiro de quem era amigo e admirador. Destaca sua vinculação com o folclore nacional. 404 VIOLA (p. 791) Longo verbete sobre o instrumento e sua difusão pelo Brasil. 405 VIOLÃO (p. 792) Descreve o popular instrumento. 191 406 VOLTA-NO-MEIO (p. 797) Comentários (e indagações) sobre essa dança, popular no Brasil nos inícios do século XIX. 407 XÁCARA (p. 801) Fazendo referência ao Dicionário, de Domingos Vieira, descreve: Romance, seguidilha, que se canta à viola em som alegre [...]. 408 XAQUE-XAQUE (p. 802) Designa algumas espécies de chocalhos. O mesmo que xeque e xeque-xeque. 409 XARÁ (p. 802) Dança pertencente ao fandango do Rio Grande do Sul. 410 XAXADO (p. 802) Dança exclusivamente masculina, originária do alto sertão de Pernambuco, divulgada até o interior da Bahia pelo cangaceiro Lampião (ver) e os cabras de seu grupo. 411 XEQUERÊ (p. 802) O mesmo que xequedé. Conferir xere. 412 XEQUE, XEQUE-XEQUE (p. 802) Ver xaque-xaque. 413 XEQUEDÉ (p. 803) Conferir xere. 414 XERE (p. 803) Designa pelo menos quatro chocalhos metálicos. 415 XERÉ, XERÊ (p. 803) Ver xere. 192 416 XERERÉ, XERERÊ (p. 803) Conferir xere. 417 XIBA (p. 803) Baseado em Silvio Romero, Cantos populares do Brasil, descreve como uma dança popular, sinônimo de samba no Norte e cateretê no Sul. 418 XIQUE-XIQUE (p. 804) Instrumento cuja fonte de informação – revela o autor – não lhe esclarece a forma. Pelo nome, deduz ser um tipo de chocalho. 419 ZABUMBA (p. 807) Descreve esse tipo de bombo e sua divulgação pelo Brasil. Comenta a sua presença em variadas ocasiões. 420 ZAMBÊ (p. 807) Ao contrário do zabumba, que é um tambor largo, o zambê tem a forma mais comprida e é utilizado em diferentes ocasiões. 421 ZÉ-DO-VALE (p. 808) Ao que parece, personagem lendário que provocou o aparecimento de dramatizações cantadas. Variantes das suas melodias foram coletadas. 422 ZÉ-PEREIRA (p. 810) Refere-se à popular cantiga carnavalesca, divulgada por todo o Brasil e originária de Portugal. 423 ZORATELÔ (p. 810) Flauta que produz um som grave, típica dos indígenas parecis. 424 ZUHOLOCÊ (p. 810) Ao contrário do tema do verbete anterior, essa flauta dos parecis produz som agudo. 193 425 ZUMBIDOR (p. 811) O popular rói-rói nordestino possui denominação variada no Brasil e em outros países onde também existe. Na descrição do artefato, Cascudo ressalta o som que emite quando da passagem do ar, ao ser girado circularmente. A venda do zumbidor era comum nas feiras e mercados públicos, mas, diferentemente do rói-rói, seu som era produzido pelo atrito que causava a circulação de um laço de cordão na ponta de uma vareta de madeira, untada com breu. O som era transmitido pelo cordão à peça girante, que o amplificava. 426 ZUNIDOR (p. 811) Conferir zumbidor. 427 ZUZÁ (p. 811) Espécie de chocalho que os indígenas atavam nos tornozelos para soarem como guizos durante as danças. As “histórias” tradicionais do Rio Grande do Norte tinham como enfoque básico os fatos políticos e econômicos. Os sociais, muito raramente, incluíam alguma notícia cultural. Na História do Rio Grande do Norte (1955)103, foram encontradas poucas referências musicais. A primeira, no capítulo X, sobre a Instrução Pública (p. 266), refere-se ao estudo de música instrumental oferecido aos alunos do Colégio de Educandos Artífices (1859)104. A seguinte aborda o relatório do vice-presidente da província do Rio Grande do Norte, Bezerra Montenegro (1878), quando se refere (p. 267), pela primeira vez, ao ensino de piano em uma escola particular105. Em seguida (p. 271), menciona a criação do Instituto de Música do RN, em 1933. No capítulo XX – Notas para a biografia norte-riograndense –, o autor apresenta dados biográficos de conterrâneos ilustres. À p. 502, inclui quatro linhas sobre Heronides Álvares de França, o melhor violão da cidade, o único músico a participar da relação. Mais à frente (p. 512), traz Lourival Açucena visto como poeta, mas complementa: Musicava seus 103 CASCUDO, Luís da Câmara. História do Rio Grande do Norte (1984). RELATÓRIO À ASSEMBLEIA LEGISLATIVA PROVINCIAL DO RIO GRANDE DO NORTE: Presidente Antônio Marcelino Nunes Gonçalves (1859). 105 RELATÓRIO À ASSEMBLEIA LEGISLATIVA PROVINCIAL DO RIO GRANDE DO NORTE: 1º Vice-presidente Manoel Januário Bezerra Montenegro (1879). 104 194 versos. Outro poeta, Manoel Segundo Wanderley (p. 515), também tem uma breve menção musical: Alguns versos seus, musicados, foram cantados em todo o Brasil, como “O Poeta e a Fidalga”. O livro faz ainda breves menções à música quando se registra comemorações e solenidades (homenagens à Independência, por exemplo) ou cita espaços reservados a atividades artísticas, particularmente, teatrais. Mais um estudo focalizando o interior do Estado: Notas e documentos para a história de Mossoró (1955)106. Tratando-se de um livro sobre a história de uma cidade, é bem compreensível a forma rápida como focaliza alguns nomes e fatos. Em comparação com a importância dos relatos de fundo político e econômico, os assuntos artísticos, musicais especialmente, são relatados com menores detalhes. O autor menciona a existência da banda de música “Charanga Mossoroense”, dirigida pelo mestre Canuto Alves Bezerra, quando se refere à sua participação na campanha para aquisição do material necessário à construção da torre da igreja matriz da cidade (p. 44). Referindo-se à figura do Presidente da Província do Rio Grande do Norte, Leão Veloso, em viagem descrita pelo poeta Francisco Otílio Álvares da Silva e publicada no jornal O Recreio, Cascudo comenta que ele elogiou as moças gentis e as modinhas ao violão (p. 79). Essa viagem foi alvo de uma “Acta Diurna” com o título “Jornada presidencial de 1861”, publicada no jornal A República e comentada neste trabalho, na parte referente às crônicas do autor. Descrevendo a inauguração do monumento a Liberdade na Praça da Redenção, a 30 de setembro de 1904, indica que se realizou ao som das músicas sonhadoras da “Fenix Mossoroense”, do mestre Alpiniano Justiniano de Albuquerque (p. 104). Como última notícia, encontra-se referência a fatos relativos aos atos de libertação dos escravos em Mossoró. Sobre isso, o autor informa: O escravo João Farias, que era tocador de viola, também refugiou-se em Mossoró (p. 130). Dentre as obras de Cascudo que abordam os municípios norte-rio-grandenses, encontra-se Notícia histórica do Município de Santana do Matos (1955)107. As “notícias 106 107 CASCUDO, Luís da Câmara. Notas e documentos para a história de Mossoró (1955). CASCUDO, Luís da Câmara. Notícia histórica do município de Santana do Matos (1955). 195 históricas” desse município sertanejo do Rio Grande do Norte são, preferencialmente, sociais, políticas, econômicas e religiosas. O autor inclui três referências musicais: 1 – Na página 29, referindo-se à ação do padre Lúcio Gomes Gambarra, informa: [...] fundou uma banda de música, EUTERPE SANTANENSE, dispensando-se de mandar buscar músicos no Acari ou no Assu, como outrora ocorria, dando realce e brilho às festividades religiosas que atraíam os moradores mais afastados e mesmo de outras freguesias. O autor destaca a possibilidade de autossuficiência em relação ao número de músicos na cidade, normalmente suprida, na ocasião, pelos citados municípios de Acari e Açu. 2 – Na página 70, ainda sobre o padre Gambarra, repete que fundou a “Euterpe Santanense, banda de música [...]. 3 – Na página 78, dessa vez referindo-se ao prefeito Manoel Macedo Filho (que administrou o município de 1932 a 1945), diz: Fundou a Filarmônica “Coronel Ovídio Fernandes”, com instrumental adequado e adquirido por [...]. Em mais uma produção focalizando o folclore nordestino – Tradições populares da pecuária nordestina (1956)108, Luís da Câmara Cascudo apresenta dois estudos sobre temas musicais: o aboio e o bumba meu boi. Começando pelo aboio (p. 39-41), define: Canto sem palavras, marcado exclusivamente em vogais, entoado pelos vaqueiros quando conduzem o gado. Dentro destes limites tradicionais, o aboio é de livre improvisação e são apontados os que se salientam como “bons no aboio”. Para ele, essa manifestação, portadora de sensível resultado estético, não é uma particularidade apenas nordestina: O canto dos vaqueiros, apaziguando o rebanho levado para as pastagens ou para o curral, é de efeito maravilhoso, mas sabidamente popular em todas regiões de pastorícia. E apresenta registros de vários autores de diferentes épocas, tanto no Brasil quanto em Portugal. Enveredando nas características do aboio, observa: No sertão do Brasil, o aboio é sempre solo, canto individual, entoado livremente. Jamais cantam versos tangendo gado. Aboio não se repete nunca. Cada aboio é uma improvisação. É coisa séria, velhíssima em uso, respeitada. E levanta a impossibilidade de se grafar a melodia de um aboio. O aboio não tem letra, frases, versos, senão o excitamento final, e este mesmo já 108 CASCUDO, Luís da Câmara. Tradições populares da pecuária nordestina (1956). 196 falado e não mais cantado. A fixação é igualmente impossível pela indivisão dos períodos musicais. Um aboio no pentagrama é um pingüim no Saara. Comenta a tentativa do pesquisador Juvêncio Mendonça, que [...] encontrou a mesma impossibilidade, estudando o aboio, de fixá-lo em compassos. Esse assunto foi abordado na “Acta Diurna” “Juvêncio Mendonça”, publicada em A República e comentada neste trabalho. O lógico seria no ritmo e livre e quironômico do canto gregoriano. Naturalmente as formas e sugestão melódicas para o gado estão espalhadas por todo o mundo. Cita ainda vários exemplos de diversos lugares onde são encontradas formas de aboio. Voltando ao aboio no Brasil, diz: E o nosso aboio? Creio ser a mais legítima presença do canto oriental no Brasil. O processo é o mesmo que no canto gregoriano: ouvimos nas longas vocalizações das jubilationes, os “júbilos”, construídas unicamente sobre uma vogal. São interjeições musicadas, expressando alegria incontida e divina ante a graça do Messias. Destas jubilationes nasceram as seqüências. O aboio é uma jubilatione, tosca, bravia, primitiva. Sobre a origem dessa forma musical, Cascudo afirma: Trouxeram-no os portugueses, não apenas como a toadilhas de aboiar no Minho ou as “boiadas” madeirenses, mas juntamente como os gritos de excitamento em uníssono, dados pelos tangedores. Certo é que o aboio brasileiro é atualmente mais puro, mais legítimo, mais primitivo e próximo às fontes orientais que outra qualquer forma de vocalização utilizada em profissão rural, cantos de arada, cantos sega, etc., vivos na Europa. É importante destacar que o musicista Oswaldo de Souza, velho amigo de Cascudo, compôs a canção “Retiradas”, publicada pelas editoras Friederich Fuchs, Mangioni e Ricordi. Nela, o compositor utiliza um engenhoso artifício para reproduzir um aboio que ouvira no sertão109. A canção “Retiradas” foi gravada pela cantora Inezita Barroso em disco do selo Victor (78 RPM – 1954) em LP do selo Copacabana e também em minicassete da mesma edição (1958). 109 197 Passando ao bumba meu boi (p. 49-62), inicia apresentando as diferentes denominações desse auto popular em diversos locais do Brasil. Em seguida, focaliza-o como uma atividade típica de regiões onde predomina a atividade criadora de gado: É perfeitamente um ato pastoril quanto aos elementos de sua formação, entrevindo vaqueiros, o boi, figuras do campo e das vilas pequenas, ao lado das “damas e galantes”, sérios e graves, unicamente cantando loas de saudação religiosa e sem misturar-se com as facécias hilariantes do auto. A continuação do capítulo compreende um detalhado exame e descrição dos personagens do boi. Não há um enfoque para a música componente do auto popular. A vasta abordagem de Cascudo para o tema da jangada110 (Jangada, 1957) inclui uma breve apreciação sobre a música dos jangadeiros, concluindo pela inexistência de exemplares musicais deles originados. Embora lhes reconheça o gosto e sensibilidade musical, afirma: Não lhe pertence autoria de nenhuma canção popular, espalhada pelo poeta letrado e prestigiada como tendo partido do pescador. Para ele, as canções praianas são originárias de compositores urbanos, simplesmente movidos pela força inspiradora do assunto. Em seguida, reforça: Não conheço cantiga típica de praia feita por pescador. Passando a apreciar a predileção do pescador pela dança, enfoca, como verdadeiro divertimento praieiro, o coco de roda, também conhecido como bambelô. Descreve os únicos instrumentos empregados, improvisada percussão, utilizando-se caixotes de querosene vazios batidos à mão, furiosa, infindável, entusiasticamente, noite inteira, até pegar o sol com a mão. Descreve, ainda, a rude coreografia, relacionando-a à herança africana. Com uma breve referência à parte cantada, conclui sem uma apreciação ao elemento musical propriamente dito. A música dos jangadeiros nordestinos, referida em outra obra de Luís da Câmara Cascudo (Jangada, 1957), é apresentada com mais detalhes e um maior aprofundamento em Jangadeiros (1957)111. 110 111 CASCUDO, Luís da Câmara. Jangada (1957). CASCUDO, Luís da Câmara. Jangadeiros (1957). 198 O primeiro ponto aqui mencionado é o “silêncio”. Não é a pausa – elemento sempre presente e indispensável na música –, mas a necessidade da ausência de sons e ruídos durante o trabalho e seus reflexos nos costumes dos jangadeiros. Assim, afirma: O silêncio é o seu modelador. Pescador é profissional do silêncio. O jangadeiro deve ser imperturbavelmente silencioso dentro da selvagem musicalidade do mar. É o único trabalhador que não pode conversar nem cantar enquanto realiza sua tarefa. Tal comportamento está condicionado pelo trabalho: em alto mar, lançada a rede e os anzóis, qualquer ruído, conversa ou canto espantam e afugentam o peixe. Em seguida, Cascudo relaciona numerosas profissões em que se trabalha cantando, cantigas de estímulo, seus cantos ritmadores do esforço teimoso e duro. Há cantos de trabalho inclusive em grupo, como os mineiros asturianos e os do País de Gales. Alargando o horizonte, afirma que não há poetas pescadores. Toda a sua poesia vive, em potencial intenso, interior, na extensão do silêncio da profissão, embebida de lirismo emocional. Pela própria necessidade da profissão, o jangadeiro se torna pessoalmente lacônico, reservado, bisonho, enquanto o vaqueiro é, ao contrário, descontraído e falador. Daí, uma consequência cultural para o homem do mar: A letra não o entusiasma. Não compreende a sua função fixadora de pensamento. A música, sim, possui rico conteúdo psicológico que o embriaga e sacode, inteiro e completo, nos cocos praieiros durante a noite serena. Continuando a comparação, destaca a menor importância da música para o jangadeiro: Quando a música nada representa para a pletora verbal do sertanejo cantador de desafios, tudo significa para o jangadeiro, como elemento raro de doçura e beleza. Em seguida, passa a comentar os bailes e enfoca modificações através do tempo: Até poucos anos, ao redor de 1910, nas praias, não havia o baile contemporâneo do cavaleiro e dama, enlaçados, dançando juntos. Os jangadeiros só dançavam em roda, o coco praieiro, quase sempre apenas os homens, cantando, rodando, quinze, vinte horas entusiásticas e felizes. Para Cascudo, não há dúvida de que, entre os jangadeiros, O verdadeiro divertimento é o “coco de roda”, a que chamam “bambelô”, e nunca o disseram “samba”. Comentando112 os instrumentos musicais, diz: A orquestra é composta de 199 caixões de querosene vazios, batidos à mão, furiosa, infindável, delirantemente, noite inteira, até pegar o sol com a mão. Continuando, apresenta detalhes da coreografia. Referindo-se aos bailes, explica: A organização do baile é a mesma dos “forrós” urbanos. Baile de quota, quando cada um ajuda com seu quinhão em dinheiro, ou baile de venda, quando o dono da casa assa peixe e tem cachaça que são comprados pelos dançarinos. Voltando à dança típica, complementa: A predileção pelo “bambelô”, “coco de roda”, possuirá suas raízes na própria essência psicológica do jangadeiro. A dança lhe dá quando deseja – o movimento, o convívio com os iguais, a liberdade individual dentro do ritmo coletivo comum, o canto fácil, alto, livre, compreensivo. Mais adiante, uma comparação com o frevo: Como o “frevo” pernambucano, o “bambelô é dança coletiva com a possibilidade lógica da criação individual lúdica. Passa, em seguida, a comentar os folguedos folclóricos do jangadeiro: Uma simpatia natural do jangadeiro é para o “fandango” que para nós não é o baile rural gaúcho, catarinense, mineiro ou paulista, mas a “marujada”, uma série de cantos e danças ao redor de temas náuticos, sobressaindo a cantiga da Nau Catarineta. Como todo enredo é a vida marítima de outrora, com capitão, general, almirantes e marujos, com cenas de tempestade e bonança, havendo o chiste do “vassoura” e do “ração”, o pescador acompanha, deliciado, todo o declamar sem fim do auto, que já ouvíamos no princípio da segunda década do século XIX, nós da cidade do Natal. Evocando lembranças mais antigas, diz: Já não alcancei mais as violas praieiras que meu pai dizia inseparáveis dos domingos jangadeiros. Mas quase todos os jangadeiros amam o violão e sabem cantar, com vozes aceitáveis ou toleráveis, modinhas imemoriais. Acrescenta mais uma afirmação sobre instrumentos musicais: O violão e a sanfona são os instrumentos favoritos. Superstições e costumes: pesquisas e notas de Etnografia Brasileira (1958)113; tratando-se de um livro sobre crenças e costumes populares brasileiros, pouco havia de se esperar de registros musicais. Os poucos elementos encontrados estão em seguida. 113 CASCUDO, Luís da Câmara. Superstições e costumes: pesquisas e notas de Etnografia (1958). 200 No capítulo “Influência africana na lúdica infantil brasileira”, ao comentar sobre um brinquedo infantil (p. 53-54), refere-se à ex-escrava Silvana, que me deu a solfa e letra de uma dança publicada por mim (VAQUEIROS E CANTADORES), ao também ex-escravo Fabião Hermenegildo Ferreira da Rocha (Fabião das Queimadas), cantador famoso e que, trabalhando nos dias santos e feriados, comprara a sua carta de liberdade, alforriara sua mãe uma sobrinha com quem se casara, e mais outro personagem, sem menção musical. Em seguida, no capítulo “O indígena no brinquedo do menino brasileiro” (p. 8384), transcreve um trecho do Padre Fernão Cardim, que informa sobre os bailos e cantos indígenas. Câmara Cascudo inclui em uma única página (202) de Rede de dormir (1983)114, na parte referente à Antologia (inclusão de escritos de outros autores sobre o tema do livro), um texto tendo como título “Toada de vissungo para carregar defunto na rede”, de autoria de Dulce Martins Lamas. Nele, está incluída uma partitura – dois pentagramas apenas – da citada toada que, por sua vez, foi transcrita pelo professor Silva Novo no disco n. 57 da “Relação dos discos gravados no Estado de Minas Gerais”, publicada em fevereiro de 1942 pelo Centro de Pesquisas Folclóricas – Escola de Música, Universidade do Brasil, Rio de Janeiro. É a única parte do livro que faz alusão à música. No livro Atheneu norte-rio-grandense (1961), de pequena extensão (69 páginas), Luís da Câmara Cascudo apresenta um grande trabalho de historiador ao levantar documentalmente o roteiro do primeiro (1833) estabelecimento oficial de ensino do estado, corrigindo alguns dados antes tidos como verdadeiros115. Ao referir-se ao decreto n. 2, do governo da Província do Rio Grande do Norte (datado de 4 de abril de 1893), que estabelece o Curso de Ciências e Letras (seis anos) e o Curso Profissional (quatro anos), informa que as “Letras e Artes” constavam de Francês, Inglês, Latim, Desenho, Música, Ginástica, Evoluções Militares e Esgrimas, além de Português e Literatura Nacional. O professor de Desenho ganhava 1.500 por ano. Os de Música e Ginástica 1.200$, cada. Os demais... 1.800$. 114 115 CASCUDO, Luís da Câmara. Rede de dormir (1983). CASCUDO, Luís da Câmara. Ateneu norte-rio-grandense (1961). 201 Essas disciplinas parecem estar organizadas dentro de uma hierarquia de valores, de importância para a época. Assim, a música, meramente educativa, complementar aos outros conhecimentos, não podia ser traduzida. Vida breve de Auta de Souza (1961)116, biografia da poetisa Auta de Souza (1876-1901) é uma da obras de referência de Luís da Câmara Cascudo. O minucioso transcorrer da sua breve vida, entremeado a pertinentes comentários sobre a obra poética, é o tema de Vida breve de Auta de Souza (1961). Segue-se a indicação dos momentos em que são abordados assuntos musicais. Ao descrever a vida de Auta de Souza em sua juventude (p. 45-47), acrescenta importantes dados sobre a vida musical local, quando informa que ela participava de: Festinhas domésticas, os assustados com danças, quadrilhas, valsas e schottischs, sob infatigável piano tocado por mãos conterrâneas. [...] Tocavam piano Sinhá Viana [...] Nininha Andrade, Iaiá Medeiros, Adele Lyra, tantas. Vez por outra aparecia o velho Arsênio Celestino Pimentel, português dos Algarves, mestre de piano e compositor. Uma de suas valsas, “Cravos e Rosas”, veio até as primeiras décadas do século XX. O velho Arsênio117, exilado de “Maria da Fonte” em Portugal, era o pai do professor Celestino Pimentel, mestre de tantas gerações no Atheneu Norte Rio Grandense. [...] Rapazes e moças diziam versos ao som da “Dalila” ao piano. [...] A orquestra era o piano. Raramente o quarteto esplendoroso, de clarineta, requinta, bombardino e contra-baixo marcador. Nos “assustados” o piano era dominante e daí a insistência nas residências onde havia o instrumento, comprado no Recife e feito em Paris. Os “assustados” na casa de Auta obrigavam instrumentos de sopro, arranjado pelos próprios convidados que se encarregavam de descobrir e arrastar os músicos. [...] As outras [moças] preferiam cantar, cantar modinhas sentimentais como luares. Casimiro de Abreu, Gonçalves Dias, Castro Alves, Junqueira Freire. Solfa, às vezes, de amador local, perdida para sempre. Ou letras de poetas da terra. Lourival Açucena, Areias Bajão, depois de 1890, Segundo Wanderley. E também anônimas, tradicionais, já cantadas antes e depois da guerra do Paraguai. 116 117 CASCUDO, Luís da Câmara. Vida breve de Auta de Souza (1961). Ver comentário sobre a “Acta Diurna” “O velho Arsênio”, na parte referente às crônicas do autor. 202 A maioria dos poemas referidos no texto são apresentados integralmente, somente alguns em partes. O primeiro que recebeu melodia e se tornou canção foi “Ao luar”. Em Angicos escreve um dos poemas mais divulgados “Ao luar” (p. 62). [...] Auta publicou “Ao luar”, no n. 48, do [revista] “Oásis”, de 16 de dezembro de 1896. Em rodapé (p. 63), informa: Musicado o poema, quando a poetisa não existia, canta-se nas serenatas e festas familiares onde há um momento de evocação tradicional. Cascudo não indica a autoria da melodia por Heronides de França (1860-1926), responsável por mais sete melodias para outros poemas de Auta de Souza118. À página 64, refere-se a poemas oferecidos pela poetisa a suas amigas, entre eles está “Meu Sonho”, que tanto se dirigirá ao Céu quanto à terra. Esse texto foi musicado (o autor não foi identificado), mas Cascudo não informa esse detalhe. Referindo-se a mais um poema musicado (p. 66), diz: Na vila de Nova Cruz escreve “Agonia do coração”, outro poema que se derramou em reproduções manuscritas e na imprensa do norte. Anos depois, o maior violonista da época, Heronides de França (1860-1926), daria solfa de irresistível popularidade pela penetrante beleza melancólica da melodia. Da jornada a cavalo para a Serra da Raiz há o “Caminho do sertão” [...], informa na página 66. Curiosamente esse poema tem três versões musicais diferentes, originárias dos compositores Abdon Álvares Trigueiro, Eduardo Medeiros e Deolindo Lima. À página 69, mais uma referência musical: Da “Serra da Raiz” fevereiro de 1898, Auta escreveu “Palavras Tristes”, outro poema de popular predileção. Seria igualmente musicado por Heronides de França e ainda, uma vez por outra, o ouço cantar. O poema citado em seguida é “Ao cair da noite” (p. 72). Embora não mencionado por Cascudo, é igualmente composição de Heronides de França. 118 As partituras musicais das melodias aqui referidas, bem como detalhes e dados biográficos sobre os compositores, estão em GALVÃO, Claudio. A modinha norte-rio-grandense (2000) e em GALVÃO, Claudio. O cancioneiro de Auta de Souza (2001). 203 Podia, alada e familiar, pensar em “Cantiga”, com as insistências sônicas que lembram sugestões simbolistas (p. 108). Esse poema juntamente com “Trança loura” foram musicados em 1985 e 1989, respectivamente, em homenagem à autora. O poema “A Eugênia” (parte dele) está comentado à página 114. Foi também musicado, embora não tenha sido mencionado como tal. Na noite de Natal de 1896 em Macaíba um poeminha “Rezando”, em quadras leves, adoram o Deus-Menino, figura infantil que pedia, na veneração maternal, aconchego e defesa, inerte na inocência recém-nascida [...]. Não se sabe o autor da melodia desse poema (p. 128), também conhecido como “Róseo menino” e transformado pelo uso em música religiosa. Vale destacar que foi publicado por Wagner Ribeiro em Enciclopédia do folclore musical (1965). A melodia é diferente da original. Registro importante é a gravação pela cantora e pesquisadora Maria Augusta Calado no LP “Fontes culturais da música em Goiás – 4 Cantos de Presépio”, Goiânia, 1985, verificando-se que a obra foi encontrada em cidades do interior goiano, sem a indicação da autora. Cascudo não se refere a outros poemas musicados: “Desalento” (música de Cirineu Joaquim de Vasconcelos); “Meu pai”, “Nunca mais”, “Olhos azuis”, “Regina Coeli” (com melodias de Heronides de França), “Teus anos” (música de Cirilo Lopes). “No templo” (autor não identificado) e “Hino” (música de Luís Coelho) são também poemas de Auta de Souza. “Cantiga” e “Trança loura” têm melodia e acompanhamento para piano por Claudio Galvão. No total, foram musicados dezoito poemas de Auta de Souza. Considere-se que Cascudo, ainda criança, foi embalado ao som do canto da própria Auta de Souza... Em Dante Alighieri e a tradição popular no Brasil (1963), o autor registra e comenta os usos e costumes brasileiros que encontram semelhança com temas da Divina comédia. Algumas referências musicais foram localizadas119. No capítulo “A posição de Belacqua” (p. 189), informa: Na antecâmara do Purgatório Dante reconhece Belacqua, cidadão florentino, artífice conhecido e hábil na fabricação de guitarras e alaúdes. O castigo do personagem era pela preguiça ou 119 CASCUDO, Luís da Câmara. Dante Alighieri e a tradição popular no Brasil (1979). 204 mesmo a omissão, não fazer, não agir. É curioso o registro da profissão de luthier que tinha o personagem. Em “A bênção de Matelda” (p. 209), essa personagem de Dante (canto XXVIII, 40, do Purgatório) [...] Surge cantando, dançando, airosa e leve [...]. Mais adiante, continua: Dante ouve cantar o Asperges me, o salmo-50 [...]. Como se percebe, havia no purgatório música e uma alma que cantava e dançava. Na página 253, capítulo “Cinco demônios”, encontra afinidade com o mito gaúcho do indígena Angoera (Generoso após o batismo), a alegre e musical entidade espiritual, que desenvolveu na Geografia dos mitos brasileiros (1976). Um personagem, que está no inferno, utiliza o assobio para se comunicar com outros condenados: é o tema do capítulo “O assovio de Ciampolo” (p. 256). Assim, comenta: Primeiro instrumento musical de sopro. Antes dos tubos de bambu, dos silvos e pios abertos nas costelas e tíbias no alto madaleniano, o homem assoviava. Outras vezes, referiu-se ao ato de assobiar, como na crônica “Assobiar”, publicada em Bando (1950), na qual tece considerações sobre o assobio através dos tempos. Em Anubis e outros ensaios (1951), obra já comentada, o capítulo “História de uma estória” (p. 131137) igualmente retoma o tema do assobio no Brasil e suas ocorrências similares em outras épocas e locais (romanos, africanos, indígenas brasileiros). A última referência musical de Dante Alighieri e a tradição popular no Brasil está no capítulo “A sentença de Francesca de Rimini” (p. 316), cujo tema é a infidelidade conjugal. Na popularíssima canção brasileira “Casa de caboclo” (música de Hekel Tavares, letra de Luís Peixoto) o cantador Zé Gazela, voltando inopinadamente, encontra no quarto o rival Manuel Sinhô, na intimidade de Sá Rita, esposa querida: Tem duas cruz entrelaçada, / Bem na estrada / Escreveram por detrás; / Numa casa de cabôco / Um é pouco, / Dois é bão, três é demais... Já está comentado neste trabalho o breve artigo escrito por Cascudo sobre o compositor Hekel Tavares, sob título “Da canção brasileira”, publicado na revista Som, n. 7, 31/01/1938. 205 A título de curiosidade, cita-se aqui o poema “Meu santo amor”, da autoria de Joaquim Bezerra Júnior, que recebeu melodia e tornou-se uma modinha muito apreciada nas velhas serenatas natalenses. Diz a segunda estrofe: Minh‟alma, borboleta saltitante, / Procura o mel da cândida baunilha. / Estrela de Belém, perdeste a trilha / Qual Beatriz, fanática por Dante120. O único dos capítulos do livro Coisas que o povo diz em que o autor aborda, mesmo que muito brevemente, um termo musical é “Os motivos da gaita” (p. 201)121. Na verdade, a intenção principal é o uso da expressão gaita, e também frauta, com significações diversas (dinheiro, alegria, risada, boa vida etc.). Havia abordado o assunto em outras oportunidades já referidas neste trabalho, como é o caso de “Prelúdio de gaita” (Revista de Etnografia, v. 4, Tomo 2, Porto, Portugal, abril de 1965), dessa vez apresentando conteúdo musical. Há, também, uma “Acta Diurna” publicada em A República (19/03/1959) com o título “A gaita, dinheiro”, em que aborda o mesmo assunto do capítulo, igualmente sem menções musicais. Made in Africa (1965)122 resultou da viagem feita por Luís da Câmara Cascudo ao continente africano, nos meses de março a maio do ano de 1963. A cultura africana é exposta sob acurado exame, enfatizando a herança recebida pelo Brasil, em suas múltiplas facetas e manifestações. A música não poderia deixar de ser alvo da atenção do pesquisador, que se prende a ela em várias oportunidades. “Lundu” (p. 50-53). Cascudo inicia a abordagem dessa manifestação musical afirmando sua presença em Portugal no século XV. Considera difícil localizar a partir de quando a dança apareceu no Brasil e comenta extensa bibliografia. Entre as obras citadas estão: Dicionário da Língua Bunda ou Angolense, explicada na Portuguesa e Latina, de Bernardo Maria de Cannecatim (Lisboa, 1804); Dicionário da Língua Portuguesa, de Antônio Moraes e Silva (1ª ed. Lisboa, 1813); Da conceituação do lundu, de Rossini Tavares de Lima (São Paulo, 1953); Viola de Lereno, de Domingos Caldas Barbosa; Estudos sobre a poesia popular do Brasil, Silvio Romero (Rio de Janeiro, 1888); História do fado, de Pinto de Carvalho (Lisboa, 1903); Música popular brasileira, GALVÃO, Claudio. A Modinha Norte-Rio-Grandense (2000, p. 288). “Meu santo amor”, partitura e poema de Joaquim Bezerra Junior (1890-1957), música atribuída a Hermano Batista. 121 CASCUDO, Luís da Câmara. Coisas que o povo diz (1968). 122 CASCUDO, Luís da Câmara. Made in Africa (1965). 120 206 Oneida Alvarenga (Porto Alegre, 1950); Le folk-lore brésilien, de Barão de Sant‟Ana Nery (Paris, 1889); Viagem ao Brasil (1817-1820), de Spix e Martius. Baseado nesses autores, aborda a história e as características da dança, sua coreografia, instrumentos musicais e, em destaque, os problemas decorrentes da sensualidade dos movimentos, tão agressivos e escandalosos para a época. Ressalta, ainda, o registro de Oneida Alvarenga em Música popular brasileira (1950): Mário de Andrade acentuou (em estudo inédito que me revelou) a importância social dessa ascensão lundu. Antes do lundu, a música, as danças e as festas dos negros eram consideradas um mundo à parte, que o branco escutava e via com condescendência, mas não permitia que entrassem em seu alvo mundo. O lundu foi a primeira forma de música negra que a sociedade brasileira aceitou e por ele o negro deu à nossa música algumas características importantes dela, como a sistematização da sincopa e o emprego da sétima abaixada. Conclui Cascudo: Nunca ouvi mencionar o lundu em Portugal. Desapareceu em Angola. Vive como uma canção no Brasil. “Umbigada” (p. 132-144) Nesse longo capítulo, esmiúça detalhes do gesto da umbigada e procura localizar sua origem no tempo através de vasta bibliografia. Compulsando os autores mais antigos que ofereceram relatos sobre a cultura indígena no Brasil e examinando a descrição de suas danças, afirma não haver encontrado vestígios da umbigada entre eles. Uma exceção notável é a descrição de Von Martius, quando registra uma dança dos índios puris em Minas Gerais, em 1818. Em meio à coreografia tipicamente indígena, foi observada a presença da umbigada, logo esclarecida por um negro, seu intérprete na ocasião, evidenciando a presença de negros entre os referidos indígenas. Estudando a presença do lundu em Portugal, destaca: O brasileiro Domingos Caldas Barbosa (1738-1800) compunha e cantava o meigo lundu gostoso para os ouvidos da Lisboa fidalga de Dona Maria I. Importante, também, é o estudo sobre a origem africana da palavra samba. Ampliando o tema em estudo, afirma: 207 A BATUCADA, O BATUQUE mais favorito e vulgar no Brasil, é vindo de Angola: percussão, um dançarino solista escolhendo o sucessor pela umbigada, depois da exibição coreográfica. A roda dos assistentes entoa refrão, respondendo à toada do tirador, quase sempre um dos tocadores de tambor. É o mesmo Coco, Coco-de-roda, Zambê, o Samba primitivo, Bambelô nas praias do Rio Grande do Norte. Para comprovar a sua intimidade com essa manifestação musical, informa: Em junho de 1964 assisti em Natal o bailado legítimo. Nasci e vivo justamente na região onde Coco, Zambê, Bambelô, são formas permanentes de divertimento popular. “Rosa aluanda qui tenda, tenda...” (p. 175-177) Cascudo evoca os velhos carnavais pernambucanos e suas fortes impressões sobre os maracatus. Em sua viagem à África, procurou e encontrou a tradução da letra que se cantava. Informa: O maestro Hekel Tavares recolheu e deliciosamente harmonizou a melodia inesquecível de Rosa Luanda. Na página 176, fez incluir a partitura que lhe foi enviada pelo musicista, duas pautas apenas da única partitura publicada em Made in Africa. Cascudo inicia Flor de romances trágicos (1966)123 com a premissa (“Preliminar”): Creio que aqui vai ficar um documentário fiel e claro ao derredor de motivos sedutores da lembrança coletiva. Fidelidade dos poetas às determinantes da narrativa, sem nenhuma influência de elementos literários, citadinos e deformadores. É, assim, mais um refletir de uma parte muito típica da cultura nordestina por intermédio de uma mente prodigiosa e sempre voltada para as riquezas da tradição de sua terra e de sua gente. Essa FLOR DE ROMANCES TRÁGICOS comprova, nos limites pessoais de seleção, o registo pela aventura do homem valente não confundido na entidade capitulada no Código Penal. O enfoque é, entretanto, literário, poético, em que são apresentadas poucas referências musicais. Esses romances eram, em sua maioria, cantados e ouvidos em momentos especiais, como as feiras e reuniões familiares. O A. B. C. de Moita Brava, cantava-o meu Pai, vencedor do cangaceiro, e evocador da vida breve do esquecido facínora do oeste norte-riograndense. 123 CASCUDO, Luís da Câmara. Flor de romances trágicos (1982). 208 Também de meu Pai são os pormenores sobre Rio Preto, tidos de Antônio Justino de Oliveira, que o perseguira tenazmente. Versões de José do Vale cantava-as minha Mãe, desde menina. Outras vieram de Eduardo Medeiros (Natal), compositor de solfas populares e que sabia a música bem antiga. Cascudo apresenta suas credenciais e mostra a origem primária de suas informações privilegiadas: É preciso ter ouvido as vozes sertanejas de outrora, cantando as velhas cantigas que as haviam embalado crianças, para sentir a intraduzível e profunda poesia da continuidade sentimental, que nenhum processo mecânico captará. Como o fez em outras ocasiões, deplora o esquecimento imposto pelo progresso da velha e original cultura sertaneja. A parte musical, principalmente, que vivia de boca a boca, nunca levada à pauta musical: Hoje em dia os folhetos da poesia popular são objeto de leitura. [...] Perdeuse o canto porque eram todos entoados ao som de violas ou rabecas, nas feiras e nas festas domésticas, como ainda alcancei no oeste do Rio Grande do Norte, na autêntica cantoria sertaneja; o simples acompanhamento pelo acorde intervalar e o rojão124, valendo interlúdio. Evocando o depoimento de seu pai, Francisco Justino de Oliveira Cascudo (1863-1935) (p. 85), confirma o componente musical desses antigos documentos: Meu Pai lendo a “Cantiga do Vilela” em Leonardo Mota disse-me conhecêla muito por tê-la ouvido cantar na Paraíba (Souza, São João do Rio do Peixe, Pombal, Patos, Teixeira) antes de 1886. Não era idêntica a redação e sim o enredo. Também a ouvira no sertão do Rio Grande do Norte (Augusto Severo, então Campo Grande, Caraúbas, Assu, Pau dos Ferros etc.). É um romance já popular no interior paraibano e norte-rio-grandense há setenta anos. Será um dos mais antigos do gênero. 124 No Dicionário do folclore brasileiro (1979) informa que conheceu a forma velha do rojão, por volta de 1910, no sertão do Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba e o descreve: era o pequeno trecho musical, tocado a viola ou rabeca (por ambas, também), antes do verso cantado pelo cantador. Na obra citada o autor acrescenta as diversas significações da palavra, inclusive as musicais. 209 Folclore do Brasil (1967)125 traz em seu capítulo inicial “Cultura popular e folclore”, traz uma ampla e importante introdução para a compreensão do folclore, seu conceito e seu conteúdo. A abordagem ao tema música já começa na página 16, quando Câmara Cascudo comenta o que ele visualiza como o processo de reajustamento para o folclórico, ou seja, a movimentação de um produto cultural identificado quando se transfere para o seio do folclore. Vão ao folclore pelo lento processo seletivo das decantações instintivas. As músicas populares são um exemplo de frequência muito constante: os meios de comunicação as divulgam no ambiente popular e este as anexa, altera e regionaliza, em um processo que o autor define como inconscientes plágios pela audição inidentificável. As alterações por que podem passar são também por ele reconhecidas: A letra e a música são diversas do autêntico original, mas o folclore se enriqueceu com mais uma “composição” coletiva. No capítulo “Festas tradicionais, folguedos e bailes”, Cascudo inicia fazendo breve comentário sobre as festividades do período do Natal, passando, ainda sucintamente, pela música do carnaval e entrudo. Em seguida, trata do carnaval no Recife, comentando inicialmente a respeito do frevo e descrevendo-o como dança coletiva, espontânea, natural, em que cada bailarino improvisa a sua coreografia, ao som da mesma melodia. Igualmente sem mostrar detalhes da música, comenta o maracatu, no qual não há dança típica nem enredo. Cantam sucessivamente e em uníssono toadas alusivas ao maracatu, louvores ao grupo e à Rainha. Quanto aos caboclinhos, descreve essa dança, na qual os participantes portam arco e flecha que, percutidos, marcam o compasso ao simples bailado. Passando a comentar os folguedos da época do São João, continua seus comentários com escassas referências musicais. Assim, o primeiro destaque é para a dança capelinha, informando: A orquestra era de violão e rabeca, também aparecia a clarineta. Posteriormente é a sanfona, acompanhada pelos violões e pandeiros. Voltando ao ciclo natalino, Cascudo passa ao bumba meu boi, já bastante estudado em outras obras. Na presente, uma curta referência musical: Todo o 125 CASCUDO, Luís da Câmara. Folclore do Brasil (1980). 210 divertimento cifra-se em o dono de toda esta súcia fazer dançar, ao som das violas, pandeiros e de uma infernal berraria [...]. Passando ao fandango, comenta a constância desse auto em várias partes do Brasil. O número das danças incluídas no fandango-baile é interminável. Cada uma delas possui coreografia, letra e solfa [...]. O fandango no Rio Grande do Norte vem em seguida, como objeto de outros escritos e “Acta Diurna” já registrada neste trabalho. O auto é todo cantado, dançado, declamado, continua, acrescentando: A orquestra é invariavelmente de pau-e-corda. Não há instrumentos de sopro. A chegança, por sua vez, tem o seu espaço na obra. É dividido em partes e não há acompanhamento musical ao canto que decorre ritmado pelos tambores, caixas de guerra, em rufos incessantes. Sobre a parte musical, informa, ainda: A música da “chegança” é a mais harmoniosa e bonita em seu conjunto. Já as “Congadas” são ainda menos tratadas no aspecto musical. Entre suas características, indica ser um bailado inacabável, troando os tambores [...]. Em Caicó e Jardim do Seridó, sertão do Rio Grande do Norte, há uma cerimônia alusiva ou semelhante: coroação dos Reis. Informa que é um longo bailado guerreiro, acompanhado a tambor. Refere-se, ainda, à “dança do espontão” (“Acta Diurna” com o mesmo título, já comentada), sem versos e sem canto. Continuando sua apreciação sobre os festejos da natividade (p. 47), passa ao presépio, pastoril e lapinha, explicando a passagem do pastoril para a lapinha que, evoluindo a partir de baile popular, passou a constituir um auto, abrangendo várias jornadas, cada uma com o seu assunto, independente. Sobre as músicas da Lapinha observa: Não se tratava, evidentemente, de simples cantos laudatórios do Natal, Noel, Christmas Carol, Pastorella, Lied, Weinacht, Villancicos, mas cantos intencionalmente ligados a um enredo, constituindo uma jornada, no ato de exibição oral e coreográfica [grifos do autor]. Detalhando, informa: Eram acompanhadas, a princípio, apenas por violões, violas, rabecas, mas depois os conjuntos instrumentais ampliaram-se e apareceram compositores que obtiveram a relativa celebridade regional. Em várias oportunidades, Cascudo se refere a pessoas como autores de jornadas de pastoris e lapinhas. A música ainda será abordada por Câmara Cascudo no capítulo “Dança, Brasil!” (p. 159). Seu enfoque é sempre muito mais dirigido para o aspecto coreográfico do 211 assunto tratado. Como sempre, inicia seus comentários a partir de fatos remotos: indígenas, portugueses e escravos africanos dançavam há muitos séculos. O capítulo trata das danças (inicialmente religiosas), antigas danças de roda, danças do período natalino, danças coletivas (como o frevo pernambucano), sambas, jongo, coco-de-roda e tantas mais. Do período imperial, lembra as quadrilhas e valsas, mais tarde schottish e polcas. Depois, o lundu e o fado, este como dança no tempo de D. João VI, com música sempre tocada em violas. Na página 174, procura enfatizar a herança legada pelo negro: O escravo negro imprimiu na música o ritmo e nas cantigas batuqueiras a solfa que permite, e mesmo determina, o encadeamento infindável, facilitando o prosseguimento ininterrupto da cantiga cujo refrão aparece como uma pausa para o coro. A música coral negra, acompanhando a dança, é essencial pela ausência de instrumentos solistas, dizendo a melodia. Todas as cantigas africanas, quase todas para dançar, ficam sempre dando, quando terminadas, a impressão de incompletas. Funcionam insistentemente como um convite à continuação. E como essa continuação tem na voz humana sua expressão única, a consciência da criação, da colaboração negra no canto, é mais profunda e exteriorizadora do profundo sentimento melódico possuído. As canções “brancas” findam no compasso final. É preciso cantar outra quadra. Para o negro não se recomeça, continua-se. Esse é o caráter essencial da presença africana na dança brasileira; a integração humana no complexo musical pela consciência de sua indispensabilidade. Trata da herança portuguesa nas página 175 e seguintes, mais especificamente do norte de Portugal: Esse Norte é a colméia musical portuguesa, inesquecível para quem a percorreu, devagar. Todas as tarefas rurais realizam-se ao som de cantigas, desgarradas, desafios, os bailes abrindo e fechando as colheitas. As crianças e os velhos, as mulheres e os homens, cantando sempre, mesmo na oração, velório dos mortos, amentar das almas. Centenas de danças que não morrem. 212 Sobre o habitante do norte de Portugal, caracteriza: A gente vivaz, espirituosa, pronta ao remoque, maliciosa e sentimental, que está em Gil Vicente, veio para o Brasil, trabalhar, cantar, dançar, morrer, deixando a raça brasileira sem problemas étnicos, anulados pelo abraço ecumênico do português. A presença portuguesa tornouse uma constante, tradições arraigadas na cultura da nova terra (p. 176): Pandeiro, gaita, atabaque, folias, bailos, festadas. Essas sementes ficaram na Terra Santa Cruz, pouco sabida. Mais adiante (p. 177), volta a enfatizar o legado do africano: Em qualquer paragem onde baterem uma batucada, tambor, pandeiro, cuíca, maracá, reco-reco, não faltará quem apareça bamboleando, riscando os pés, contraindo os ombros, seduzido, arrastado, possuído pelo batuque. Nas 258 páginas de Folclore do Brasil, Luís da Câmara Cascudo aborda os seus temas prediletos, que vão ser reencontrados em diversas de suas outras obras, como se tentasse completar e finalizar o assunto tratado. É sempre grande a sua preocupação com a verdade e seriedade de seus estudos. Obedecendo a essa coerência, assim conclui seu trabalho: É indispensável lembrar-se que, no domínio da Cultura Popular, não há o direito de substituir a verdade pela imaginação. Mouros, franceses e judeus (1984):126 essa publicação reúne e reedita dois trabalhos anteriores: Três Ensaios Franceses (1977) e Mouros de Judeus (1978). São numerosas as referências musicais que contêm. A primeira abordagem do capítulo I, “A Presença Moura no Brasil”, trata do “sarambeque” (p. 20), uma manifestação [...] que Luciano Gallet dizia dança africana aclimatada em Minas Gerais, considero-a possivelmente berbere, variante da SARABANDA, não mais em movimentos lentos e nobres, mas já em Portugal bailada com meneios indecorosos, popular e lasciva, inicialmente privativa das mulheres, índice do requinte mouro em não fatigar-se e ver dançar os corpos juvenis e femininos. [...] Começara o SARAMBEQUE aos pares, como o minueto e a gavota, terminando em círculo, ardente e festivo. A SARABANDA inspirara 126 CASCUDO, Luís da Câmara. Mouros, franceses e judeus (1984). 213 Haendel, Bach, Corelli. O SARAMBEQUE ficou nas composições anônimas e jubilosas. Há menção na página 23 a uma romança cantada no Canadá, versão da Nau Catarineta, denominada courte paille. Na página 25, o autor retorna ao aboio, um dos seus temas mais caros; presente em vários estudos aqui comentados. Inicia relacionando a manifestação com a herança árabe: Misteriosamente (porque não vive noutras regiões de pastorícia brasileira) resiste no Nordeste o ABOIO, documento impressionante do canto oriental, marcado em vogais, ondulante, intérmino, insuscetível de grafação em pentagrama, mas reduzível às notações melismáticas. Longo e assombroso testemunho da legítima melodia em neumas, recordando a prece da tarde, caindo do alto dos minaretes. A origem do aboio nordestino seria o escravo mouro trazido pelos portugueses: Nunca o deparei em Portugal, mesmo pelo Ribatejo, e jamais o registraram no Rio Grande do Sul, de tradicional cultura ganadeira no Brasil. Parece-me ter vindo dos escravos mouros da Ilha da Madeira, trazido o aboiado pelos portugueses emigrantes e não presença direta de elementos criador da monopéia. Carlos M. Santos (Tocares e Cantares da Ilha, Funchal, 1937) é o autorizado informante, comentando esse canto para tanger gado, entoado “numa série de interjeições semelhantes a vocalizes, sendo bastante acentuado o estilo oriental, principalmente na neuma, a extraordinária semelhança com a “mourisca”, donde parece ter saído”. A explicação mais plausível é o nosso aboio originar-se dessa modulação com que os prisioneiros mouros instigavam a boiada em movimento na Ilha da Madeira. Em seguida (p. 27), Cascudo comenta a origem de alguns instrumentos musicais: Convenço-me de que o pandeiro e seus descendentes, mesmo sendo asiático, devem os espanhóis e portugueses aos mouros sua aclimatação. O pandeiro redondo ou retangular, adufe, o tamborim que os tupiniquins ouviram soar pelos marinheiros de Pedro Álvares Cabral em maio de 1500 nas praias de Porto Seguro, foram e são instrumentos inseparáveis dos cantos e danças mouras. Não estavam no Brasil do século XV, como estavam os tambores e 214 trombetas. O português trouxera aquela oferta dos mouros, mouriscos, moçárabes, mudejares, bailarinos e cantadores, quando a Espanha era muçulmana e Portugal quase agareno. O adufe, que Maria, irmã de Moisés, com suas companheiras, tocou e cantou, festejando o afogamento egípcio no Mar Vermelho (Êxodo, 15, 20), era percutido na cidade do Salvador no fim do século XVI e sempre por mão feminina, como ainda ocorre em Portugal na marcha das romarias e folgares do arraial. Como arremate sobre o pandeiro, recorre a um renomado escritor português: De sua popularidade portuguesa e quinhentista, é suficiente e espantoso Gil Vicente, depondo em 1530: Em Portugal, vi eu já Em cada casa pandeiro! A partir da página 35, encontra-se um dos mais competentes textos escritos por Cascudo referente à música brasileira. Inicia prevendo, talvez almejando, uma pesquisa acurada sobre as influências recebidas: Com ouvidos competentes e documentação idônea verificar-se-á um dia a percentagem sensível da música oriental, notadamente moura, na música popular brasileira. Prevê dificuldades pela descaracterização sofrida na ocasião: Não é mais fácil a pesquisa porque a música em conserva, como dizia Georges Duhamel, e os rádios, sacudiram raízes e frondes tradicionais, mudando rumos às soluções melodiosas e à técnica, invariáveis dos “finais” das “modinhas” em arrastados e plangentes smorzandos inesquecíveis na memória auditiva dos coevos. Estabelece uma diferença quantitativa entre os valores nacionais contidos na música de diferentes regiões do país: Falo da música cantada no interior dos sertões nordestinos ainda nos dois primeiros lustros do século XX e não nas capitais, ouvindo “revistas teatrais” e sobretudo os gramofones da Casa Édison, Rua do Ouvidor, 105, Rio de Janeiro. 215 Em seguida, apõe um depoimento testemunhal seguido de uma caracterização do cantar sertanejo nordestino: Quem ouviu as melopéias mouras nos mercados da África Setentrional recorda a impressão do indefinível, do indeciso, do inacabável naquelas lamúrias que terminavam quando julgávamos continuar e continuavam nos momentos de indiscutível finalização. E a voz aguda, seca, vertical, o guincho nos agudos e o ronco nos baixos, emitidos na imperturbável nasalização comum. A disposição do desenho musical sugeria arabescos, intermináveis no sucessivo encadeamento, de efeito surpreendente, mas para nós de uma monotonia acabrunhante e nostálgica, como a paisagem austera e desolada do deserto circunvizinho. Semelhantemente ocorre entre os pretos africanos nas áreas de influência maometana. Heli Chatelain afirmava a dificuldade, em Angola, de um estrangeiro deduzir se o negro canta ou lamenta-se: – For the foreigner it is something very hard to tell whether a native is whinig or singing. Então, examina a música nordestina, igualmente com a autoridade de testemunha presencial, como morador da região em sua infância e, depois, como estudioso e pesquisador: Essas “constantes” eram indispensáveis no velho canto sertanejo de outrora: a entonação intencionalmente lastimosa, a modulação lenta, “molenga” e doce que fazia suspeitar quarto-de-tom, os finais rallentando intermináveis, o timbre nasal, infalível, natural, perfeitamente compreensível. Todo cantador era fanhoso. Recordo meu primo, Políbio Fernandes Pimenta, excelente cantor sertanejo, vindo para Natal prestar serviço militar, nosso hóspede: exigiu meses para adaptar-se ao diapasão normal. Era um oriental, afeito às neumas, livres de compassos maquinais, com o ad libitum de elevar a voz quando o motivo o empolgava ou recorrer a um surdo declamado, querendo salientar a emoção enamorada127. 127 Cascudo não alcançou (sorte a dele!) a proliferação dos duos caipiras do sudeste do país promovidos pela mídia. Encontraria decerto muitas afinidades estilísticas com o que dissera em relação ao Nordeste, 216 Ainda uma vez, afirma sua experiência como observador local: Não é possível conhecer-se o verdadeiro canto sertanejo pela simples leitura da solfa. Solfa escrita seria uma raridade e muitas centenas eram composições locais, transmitidas pela memória sereneira. É bem importante esta conclusão: Não é moura a inspiração musical, mas a maneira de cantar. Em outro momento de testemunha, informa: Outro aspecto dessa música, praticamente apagada e com fundamentos mouros ainda funcionais, era a ausência do contra-canto. As “modinhas” entoadas com o recurso da “segunda-voz” figuravam como ensinadas por gente de fora, moças que haviam estudado nas cidades do litoral, rapazes excolegiais em Natal, caixeiros-viajantes, grandes semeadores das “novidades” 128. Uma pergunta curiosa e intrigante no final dessa sentença: Tradicional era o uníssono. Havia um leve e fortuito contracanto, denominado resposta, feito pelos instrumentos acompanhantes nas serenatas de primeira categoria ou festinhas familiares mais caprichadas. Além do violão, flauta e depois o clarinete. Naturalmente os violões eram os primeiros a responder, pelos bordões.129 Comumente o acompanhamento repetia o motivo melódico no interlúdio, isto é, quando o cantor estava calado. Não é o processo imutável dos medahs, cantores ambulantes, do Marrocos ao Egito? e os sírios e libaneses?130 fato que já manifestava com as velhas duplas caipiras autênticas, do tempo de Alvarenga e Ranchinho, Tonico e Tinoco e outros mais. 128 Não foi muito constante na vida seresteira da cidade do Natal a presença do canto da modinha em conjunto, realizado em uníssono ou apresentando uma segunda voz, conforme ainda hoje se verifica nas serenatas das cidades do interior de Minas Gerais. Ver GALVÃO, Claudio. A Modinha Norte-RioGrandense (2000). 129 Exemplos de acompanhamentos nas modinhas com “respostas nos bordões” estão em GALVÃO, Claudio. A Modinha Norte-Rio-Grandense (2000) e GALVÃO, Claudio. O cancioneiro de Auta de Souza (2001). 130 Excelentes considerações sobre o assunto estão em SOLER, Luis. As raízes árabes na tradição poético-musical do sertão nordestino (1978). 217 Bem oportuna é a hipótese citada: Georges de Gironcourt131 lembra que poderá desaparecer uma técnica musical na região de origem e permanecer viva numa longínqua área influenciada. Formas mortas na Núbia continuaram vivendo na Tunísia ou no Iraque, difundidas pelo Egito, onde o modelo não mais existia. No trecho que se segue, atesta as diferenças musicais entre o litoral e o sertão e procura indicar as causas: Pelo Nordeste brasileiro, as zonas marítimas ou as do hinterland atravessado pelos rios de curso permanente, ponteiros das culturas, diversificaram-se, recebendo influência renovada e sucessiva e daí a variedade dos gêneros cantados e dançados pelo povo, como observou em sua jornada de pesquisa o Prof. Oswaldo de Souza (1949), pelo Rio São Francisco e alguns afluentes, Corrente e Rio Grande, registando mais de quinhentos tipos diferentes de melodias e ritmos132. Nos sertões propriamente ditos, de raras e difíceis comunicações com a orla do Atlântico, onde milhões de habitantes viveram e morreram ser ver o mar e sem movimentos de renovação temática, o processo de entoar, os timbres, a divisão dos compassos, a impostação vocal, resistiram séculos, até que as rodovias, de 1915 em diante, iniciassem o final do isolamento, despejando, tumultuosa e inopinadamente, as sugestões modificadoras de feição irresistível. A História da alimentação no Brasil (1967-1968)133 é uma obra em dois volumes. A única referência musical encontrada no volume 1 está no capítulo “Bebidas inebriantes e alimentos líquidos” (p. 134), que fala do ato de as pessoas cantarem enquanto bebem. Diz Cascudo: Quando bebem assentam-se ao redor dos potes, alguns sobre achas de lenha e outros no chão. As mulheres dão-lhes a bebida por ordem. Alguns ficam de pé, cantam e dançam ao redor dos potes. E no lugar onde estão bebendo, 131 Sem referência. O livro não traz bibliografia. SOUZA, Oswaldo de. Música folclórica do Médio Rio São Francisco (1980). Detalhes da viagem e pesquisa em GALVÃO, Claudio. Oswaldo de Souza: o canto do Nordeste (1988). 133 CASCUDO, Luís da Câmara. História da alimentação no Brasil (1967). 132 218 vertem também a sua água. O beber dura a noite inteira: às vezes, também dançam por entre fogueiras e, quando ficam bêbados, gritam, tocam trombetas e fazem um barulho formidável. No volume 2 dessa obra, no capítulo “Sociologia da alimentação” (p. 62), o autor aborda um assunto raramente comentado: a influência da música brasileira atual (e de outros países) entre os negros da África de hoje. Assim se pronunciou: É que n‟África o negro é o ambiente, o natural, a paisagem humana. O europeu é um hóspede teimoso de vivência, secular na posse, mas sempre estranho pela minoria real. Naturalmente músicas e ritmos europeus e brasileiros perpassam nos batuques e cantos negros. Nos Musseques, ao redor de Luanda, requebra-se o samba como no Rio de Janeiro. Cantigas populares ingleses ficam diluídas nos cantos corais africanos nas áreas do antigo domínio. Ouvem-se “fados” de Lisboa e as marimbas batem o Hino Nacional Português. Mas não tem profundidade [...]. No presente História da alimentação no Brasil (1967), entre as 938 páginas dos dois volumes da obra, Cascudo dedica 24 delas a um assunto musical intimamente ligado à alimentação: o ato de cantar durante o comer e o beber, contido no capítulo “Saúdes Cantadas e Canções de Beber” (p. 346). Começa comentando as canções com que os gregos da antiguidade honravam o deus Baco. Em vista da extensão do escrito, apenas serão enumerados os temas tratados pelo autor. 1 – O ato de cantar durante o trabalho da colheita da uva: [...] as cantigas da vindima que são imemoriais, aparecendo onde as uvas sejam colhidas e pisadas; 2 – As canções de beber, presentes em toda a Europa, cantadas em todos os idiomas; 3 – As canções de beber entre os indígenas brasileiros: são raros os exemplos, cita uma única fonte e conclui: Não conheço outro exemplo. O hábito no Brasil foi trazido da Europa; 4 – Ainda na antiguidade, comenta ocorrências entre os romanos e germânicos; 5 – Passando ao Brasil, transcreve exemplos coletados por autores como Coelho Neto, Mello Moraes Filho e Silvio Romero, não esquecendo uma abordagem à sua 219 cidade do Natal, citandos nomes e exemplos locais. Continua, citando exemplos publicados por Alexina de Magalhães Pinto, Valdomiro Silveira, Manoel Querino, José de Alencar, Alceu Maynard, Mário de Andrade, Aires da Mata Machado, Pereira da Costa; 6 – Há, ainda, um curioso comentário sobre a declamação (não o cantar) de versos dedicados à cachaça (p. 362); 7 – A partir da página 364, estão incluídas sete partituras no “Documentário Musical”, indicando a fonte da coleta: “Como pode viver o peixe” (Alexina de Magalhães Pinto, Minas Gerais), “Peixe vivo” (Rossini Tavares de Lima, São Paulo), “Zum...Zum... Zum... Lá no meio do mar” (Aires da Mata Machado, Minas Gerais), “O papagaio” (Alexina de Magalhães Pinto), “Lá vem seu Juca” (Mário de Andrade, São Paulo), “Primeira bateria” (Paurílio Barroso, Ceará). A última canção, “Ai Dominés, minés, minés!..., foi ouvida e memorizada pelo próprio Cascudo na cidade de Souza, Paraíba, em 1911. Cinqüenta e dois anos depois pude repeti-los em Natal [...]. O único dos capítulos do livro Coisas que o povo diz (1968)134 em que o autor aborda, mesmo que muito brevemente, um termo musical é “Os motivos da gaita” (p. 201). Na verdade, a intenção principal é o uso da expressão gaita, e também frauta, com significações diversas (dinheiro, alegria, risada, boa vida etc.). Havia abordado o assunto em outras oportunidades já referidas neste trabalho, como é o caso de “Prelúdio de gaita” (Revista de Etnografia, v. 4, Tomo 2, Porto, Portugal, abril de 1965), dessa vez apresentando conteúdo musical. Há, também, uma “Acta Diurna” publicada em A República (19/03/1959) com o título “A gaita, dinheiro”, em que aborda o mesmo assunto do capítulo, igualmente sem menções musicais. Memórias e evocações, lembranças de pessoas, fatos e lugares são o campo de O tempo e eu (1968) 135, que inicia com um substancioso relato autobiográfico (p. 17-67). Em “Maestro Alcides Cicco” (p. 178), aborda o mesmo tema da “Acta Diurna” que publicou em A República (20/06/1959). Já o “Maestro Cipião” (p. 182) é o assunto da coluna “Cidade do Natal” (A República, 17/02/1949)136. Nessas duas páginas, 134 CASCUDO, Luís da Câmara. Coisas que o povo diz (1968). CASCUDO, Luís da Câmara. O tempo e eu (1968). 136 Escritos comentados na parte referente às crônicas. 135 220 Cascudo mostra suas reminiscências sobre esses dois nomes da música norte-riograndense, abordados na parte deste trabalho referente às crônicas. São informações objetivas entremeadas de evocações sentimentais de pessoas com quem conviveu. “Romance em mi bemol de Paganini” (p. 283) é um capítulo que focaliza um fato pessoal acontecido com os músicos Delmau e Cugat (não completamente denominados), sem qualquer apresentação em relação a assuntos musicais. Prelúdio da cachaça (1968)137 estuda o mundo de tradições relacionadas com a bebida tão popular no Brasil desde os mais remotos tempos coloniais. O capítulo XII da obra tem o título “Baile” e trata do Baile da aguardente, divulgado por Mello Moraes Filho em Serenatas e saraus (Rio de Janeiro, 1902). Descreve como [...] pequenino Auto participando dos BAILES PASTORIS, cantados e dançados diante dos presépios no ciclo do Natal. Mais adiante, Cascudo continua: Um Guia, espécie de zagal, sentencioso e faceto, e quatro PASTORAS, vivem o breve enredo, girando ao derredor do consumo da grimpana, do codório, irresistíveis. O assunto completa-se no capítulo XIII, “O baile da aguardente”, no qual o autor transcreve o texto literário do citado pequenino Auto. Um período de hospitalização foi “aproveitado” por Luís da Câmara Cascudo para rememorar inúmeros fatos, pessoas e coisas passadas e presentes, registrados no Pequeno manual do doente aprendiz (1969)138. Longe de seu escritório, biblioteca e ambiente de trabalho, confessa haver mergulhado em momentos de tristeza. Certo dia, após haver deixado uma visita no elevador, confidenciou: Volto para a poltrona. Não consigo dissipar o complexo de angústia que me traz lágrimas aos olhos, enevoando-os de saudade e mágoa sem remédio... Entre os assuntos que abordou, alguns têm conteúdo musical. Relatou (p. 50-52) a visita do seu ex-aluno de colégio, o médico Grácio Barbalho. 137 138 CASCUDO, Luís da Câmara. Prelúdio da cachaça (1968). CASCUDO, Luís da Câmara. Pequeno manual do doente aprendiz (1969). 221 O hobby de Grácio é a música popular gravada. Traz-me o seu álbum catálogo, com cerca de dois mil verbetes. Inicia-se em 1927, quando começou no Brasil o sistema de gravação elétrica, a fins de 1940. A maioria dos intérpretes, até 1945. Número do disco, título, casa produtora, cantor, autores, conjuntos acompanhantes, ano de lançamento. Notas explicativas. Mais adiante, acrescenta: O álbum de Grácio Barbalho é um documentário de verismo incomparável, evidenciando a participação intelectual dos compositores do povo, datando a passagem de cada episódio pelo quadrante da atenção coletiva. O “Álbum de Grácio Barbalho” que Cascudo viu deve ter sido a parte que competiu ao musicólogo norte-rio-grandense na publicação, cerca de dez anos depois, dos cinco volumes da Discografia Brasileira (78rpm – 1902-1964), edição da FUNARTE, publicado em 1982. Além de Grácio, participaram do trabalho Alcino Santos, Jairo Severiano, Miguel Ângelo de Azevedo (Nirez). A parte de Grácio deve ter sido apenas o período da gravação elétrica, iniciado em 1927; sua coleção de discos compreende apenas gravações dessa fase, daí ter Cascudo entendido que o livro tinha aquele limite. A publicação inclui a fase mecânica, e os primeiros discos brasileiros são de 1902. Às páginas 53 e 54, relata uma das visitas diárias do compositor Oswaldo de Souza e sua esposa. Descreve o velho amigo: Curso brilhante na Escola Nacional de Música. Mais de cem composições, mais da terça parte gravada, impressa, e boa percentagem cantada em concertos pela Europa e América. Delegado da Diretoria do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional do Rio Grande do Norte, que visitou quase todo, examinando e sabendo o que é digno de conservar, como atestado vivo dos nossos antepassados. Sobre sua esposa, informa: Casou em São Paulo com Maria de Lourdes Friederich França, dos Galvão de França, de Itu, nobreza setecentista de sargentos-mores imponentes. Música, certamente, estava entre os assuntos do momento: Conversa, dentro de minha onda de percepção: Música, lúdica do rio São Francisco onde realizou uma pesquisa feliz, impressão de musicógrafos, 222 intérpretes, presença de Oneyda Alvarenga, apreciações em ritmo binário e sem batuque, confidências sobre os derradeiros retoques no seu discurso de posse na Academia Norte-Riograndense de Letras, onde invocará Tonheca [Antônio Pedro Dantas], o compositor popular, músico da Banda da Polícia Militar, que ele levou ao pódio olímpico de patrono acadêmico, o primeiro no Brasil, ad lucem versus. Oswaldo era amigo de Cascudo desde a juventude. Escreveu sobre ele, que, por sua vez, também foi comentado por Cascudo em vários escritos. Nas páginas 99 a 102 a revelação de uma triste realidade: ouvia com dificuldade e, mais tarde, não mais ouviria. Triste coisa é surdez, escreveu Carlos de Laet. Estou surdo. Ouço, a certa distância, palavras e melodias de forma confusa, irregular, disfônica. Inoperável porque a lesão é no nervo auditivo. Consolo-me com Beethoven compondo. Cascudo tenta tomar partido da situação: o isolamento imposto pela surdez tinha para ele algumas vantagens: Até certo ponto é uma defesa oportuna às eloqüências e ruídos dispensáveis. Um processo imperativo de isolamento, concentração, valorização do mundo interior. Oportunidade de introspecção, análise. Maiêutica aplicada à curiosidade íntima, Distanciada das seduções sonoras, a surdez é uma reveladora de pormenores mentais, antigamente dispersos na tempestade dos sons captados. A pausa e o silêncio também fazem parte da música. Estudando as expressões típicas utilizadas pelo povo, Câmara Cascudo publicou Locuções tradicionais do Brasil (1970)139. Nessa obra, encontram-se cinco exemplares que têm conteúdo musical. “Vá cantar na praia!” Trata-se de uma expressão empregada para despachar pessoas que incomodam com reclamações e insistências (p. 93-94). O ato de cantar na praia em nada 139 CASCUDO, Luís da Câmara. Locuções tradicionais do Brasil (1970). 223 incomodaria o mar, como incomoda o ouvinte. Citando Gil Vicente, o autor acentua a antiguidade da expressão. Uma anterior referência sobre esta locução foi publicada na Revista Brasileira de Cultura (1969) e antecedeu à primeira edição de Locuções tradicionais do Brasil140. Publicada também em separata, constou esse volume de 17 páginas, dele fazendo parte o verbete, “Vá cantar na praia!” “Cantando „Serena Estrela‟” Dizia-se quando alguém ficava desapontado, decepcionado. Informa o pesquisador que esse dito popular teve origem em 1877, quando um político foi derrotado nas eleições e um jornal humorístico publicou sua caricatura cantando ao violão, tendo como legenda: Serena estrela, que no céu não brilha / Gastei meu cobre e levei forquilha. Segundo o pesquisador (p. 129), esse primeiro verso pertencia a um poema sentimental que foi musicado e transformado em modinha que se popularizou durante o período imperial. O autor do poema chamava-se Luís Pereira de Sousa (1839-1884), era fluminense de Cabo Frio. “Serena Estrela”, musicada e tornada modinha de serenata, era cantada em Natal no início do século XX141. “De canto chorado” Abordando o sentido da locução popular Cascudo explica (p. 142) que Trazer alguém de canto chorado é amofiná-lo com insistentes lamúrias, incessante peditório em tom choroso, inacabável, confidenciando desgraças quase sempre imaginárias, destinadas a provocar a piedade rendosa. Indica, também, afinidade com os cânticos entoados durante os cortejos de sepultamento cristão. Identifica-se, ainda, com o canto das carpideiras. “Frevo” Evocando a imagem da dança carnavalesca, agitada e barulhenta, a expressão “frevo” remete a situações similares (p. 162). Emprega-se em geral para identificar um local onde se encontra muita gente em clima de agitação. A própria dança deveria sua denominação ao movimento de um líquido em fervura; ferver se transformou em frever, daí frevo. Transcreve trecho de um poema de Filinto Elísio, ao descrever uma procissão 140 CASCUDO, Luís da Câmara. Locuções tradicionais do Brasil (1970). Sua partitura e poema completos estão em GALVÃO, Claudio. A Modinha Norte-Rio-Grandense (2000). Não foi possível identificar o autor da melodia. 141 224 na Lisboa do século XVIII: A rua entra a ferver de ponta a ponta / com soldados, com frades, com lacaios. “Prelúdio da gaita” Com esse título, Câmara Cascudo aborda (p. 234-236) os inúmeros significados da palavra gaita que integram o idioma do Brasil e Portugal. O verbete é a transcrição de uma crônica com o mesmo título, publicada na Revista de Etnografia (Porto, v. 4, tomo 2, p. 271-275, abr. 1965), já comentada neste trabalho, na parte referente às crônicas da década de 1960. Uma obra definida pelo próprio autor como: Este é o mais íntimo e confidencial dos meus livros. [...] Solilóquios de um velho professor aposentado e no aposento de sua biblioteca. Registro de visitas e pensamentos que o procuraram durante um ano. O ano foi 1969 e os registros partem do dia 1º de janeiro até 31 de dezembro. É o que se encontra em Na ronda do tempo (1971)142. O único registro musical encontra-se na página 141, feito no dia 14 de agosto. A transcrição adiante é integral: Surdo, tendo sido melômano, pianeiro de ouvido, não mais percebo a Música, em clareza e seqüência harmônicas. Recebo-a como uma massa confusa e sonora, indistinta nas células melódicas, sem o entendimento auditivo para o desenho da composição integral. Uma ou outra frase transmite-se, viva e nítida, num milagre comunicativo. Pela divina Lei da Compensação, a Memória guarda e reproduz os trechos outrora familiares, numa restituição generosa e suficiente. Já não podendo ouvir Música, penso-a. A breve análise que faz de seu estado de saúde é incisiva, impressionando e comovendo pela objetividade e estoicismo. Considere-se que tinha 70 anos quando assim se pronunciou. Seu depoimento dispensa, pois, qualquer comentário143. 142 CASCUDO, Luís da Câmara. Na ronda do tempo (1998). Mais detalhes sobre sua surdez estão na biografia constante deste trabalho, os quais foram baseados na entrevista que concedeu ao autor em janeiro de 1980, integralmente publicada em GALVÃO, Claudio. A modinha norte-rio-grandense (2000). 143 225 Brilhante trabalho abordando a vida da sociedade açucareira do Brasil, Sociologia do açúcar: pesquisa e dedução (1971)144 não poderia omitir um comentário sobre as manifestações musicais. No capítulo “Negro de engenho” (p. 194), ao comparar os costumes dos escravos de engenho com os que trabalhavam nas fazendas de gado do sertão, aponta grandes diferenças entre ambos. Comenta que a função de pastoreio do gado produziu um tipo social peculiar, que trabalha sozinho vivenciando uma atividade individualista. Assim, o sertão Deu o violeiro, cantador de desafio, cangaceiro. Exemplifica com os grandes nomes de Inácio da Catingueira, batedor de pandeiro e Fabião das Queimadas, tocador de rabeca. Ambos foram extensamente comentados em outras obras aqui examinadas. Não há indicação de um só nome, de um único destaque artístico individual entre os escravos ou ex-escravos da sociedade canavieira. Referindo-se à atividade açucareira, contrapõe: O Engenho é o canto coral, bailado de roda, palma de mão, dançarino do meio, dando vênia com o pé, cabeça ou umbigada valorosa. [...] O Engenho é coletivo, comunitário, grupal. É o pai do Bumbameu-Boi, convergência de entremezes rudimentares e dinâmicos, e do Maracatú, desfile vistoso e sonoro dos Reis de Angola e Matamba, [...]. Projetou presença incomparável nos carnavais do Recife [...]. “Canta canavial” (p. 227-243) é um longo capítulo inteiramente dedicado à parte musical da sociedade dos engenhos de açúcar. Seria excessivo comentar cada um dos assuntos tratados. Em uma tentativa de apenas indicar os temas e subtemas abordados, bastaria enumerar a dança e o canto coletivos, as canções individuais e tantos mais. Cascudo lamenta a perda de vasto manancial de melodias da época. Exemplifica relatando (p. 238): Todos os versos recolhidos por Silvio Romero tinham solfa. Ofereceu-se, com a família, para cantá-los a um músico, salvando do esquecimento as linhas melódicas. Não apareceu ninguém, o que indignava Luciano Gallet. As toadas foram em 1912 para o outro mundo, com o mestre Silvio Romero. Nem por isso os versos que se vulgarizaram deixam de ser cantados, melodia suficiente e breve, vinda da lembrança ou da imaginação. 144 CASCUDO, Luís da Câmara. Sociologia do açúcar: pesquisa e dedução (1971). 226 No livro de memórias, Ontem (1972)145, que traz como subtítulo Maginações e notas de um professor de província, há algumas breves menções a assuntos que dizem respeito à música. Na página 6, Cascudo recorda que ensinou História da Música no Instituto de Música do Rio Grande do Norte. Refere-se também à aula sobre canto gregoriano ilustrada pela Schola Cantorum Salesiana, que ministrou na Universidade Popular do Rio Grande do Norte, a qual fundara em maio de 1948 (p. 17). A partir da página 10, os assuntos tratados são enquadrados em crônicas devidamente intituladas. Embora tratem de assuntos diferentes, as páginas 11 e 12 trazem três títulos referentes à música: “Adagio sustenuto”, “Smorzando”, “Presto assai”, demonstrando a presença do vocabulário musical no dia a dia. O título “Baliza solitário” descreve Zé de Benvinda, setentão que fora participante de blocos carnavalescos em Natal dos começos do século XX, desfilando pelas ruas da cidade, citadas pelos seus antigos (e já mudados) nomes. É uma emotiva página de saudade e evocação: Zé de Benvinda era dos Vasculhadores! Saiu sozinho com a bandeira! Cantando, gritando, rindo! Sozinho! com a bandeira! Sozinho com a bandeira... Em outra parte (no capítulo “O Professor Celestino Pimentel”), faz referência a Arsênio Celestino Pimentel, velho professor de piano em Natal. Minha sogra fora sua discípula em Macaíba (p. 82). O mesmo personagem foi alvo de uma “Acta Diurna”, em 29/08/1930, conforme mencionado. No capítulo “Zé Areias, pai e tios” (p. 241-245), retorna ao personagem José Antônio Areias Filho e suas relações com a música. Esse assunto foi também tema de sua crônica “Zé Areias” (A República, 1º/09/1949), já referenciada. As crônicas aqui mencionadas estão comentadas neste trabalho na parte referente às publicações em periódicos. Na volumosa obra Civilização e cultura (1973), Luís da Câmara Cascudo (v. 1: 283 páginas; v. 2: 480) trata em profundidade da evolução do conhecimento humano146. 145 146 CASCUDO, Luís da Câmara. Ontem (1972). CASCUDO, Luís da Câmara. Civilização e cultura (1973). 227 A parte que mais interessa aos objetivos deste trabalho está contida no capítulo XII: Religião, Antropofagia, Arte, Lúdica, Dança, Instrumentos sonoros, Canto, Poesia, Teatro, Esportes, Medicina. Após considerações sobre a dança (p. 303-310), que recuam ao madaleniano, ingressa no estudo dos instrumentos sonoros (p. 310-318), igualmente retrocedendo àquele longínquo período. Cascudo adota a afirmação de que o ponto inicial parte de numerosos objetos que, quando soprados, imitavam as vozes dos animais a serem atraídos para a caça, procedimento ainda usado na atualidade. Assim, a evolução desses objetos utilitários teria resultado na flauta, a primeira a se definir. Comenta que, no começo do século XX, a harpa era o instrumento considerado mais antigo, pelo que se podia concluir de um relevo em um palácio sumeriano. Depois (1914), foi achada uma pintura muito mais antiga, originária do madaleniano, na caverna de Trois-Frères, (Arriège, França), em que uma figura toca uma flauta147. Aborda a evolução da concha marinha e do chifre de animais para instrumentos de sopro mais evoluídos, como as trombetas. Em seguida, traça a evolução do tambor desde um provável tronco oco e seco que foi incidentalmente percutido, passa pelos diversos povos que usaram tambores na antiguidade, pelos tipos de tambores, desde os maiores até os tambores portáteis, e também se refere aos povos que não têm histórico de uso de tambores. Conclui com uma abordagem sobre os instrumentos de corda, aceitando que são originários do arco de caça e de guerra. Nas páginas 318-328, ingressa na área do canto. Comenta que, a princípio, ele tinha uma utilidade prática, necessária ao homem, sendo depois incluído, anexado às práticas religiosas. Não era, portanto, inicialmente, uma atividade de divertimento. Comenta que os pássaros não cantam exclusivamente como recurso de atração sexual. O canário prisioneiro canta sozinho. Nenhum biologista me desencanta com a explicação utilitária do canto. Permanecerá com um aspecto obscuro e sugestivo possibilitando interpretação linda em expressão indecifrável do quadro diário e presencial. Comparando-o com o homem, diz (p. 323): Até hoje a atitude de cantar é uma afirmativa imediata, suprema, irrespondível de elevação. Voltando ao exemplo do canário: 147 Na caverna de Trois-Frères, Ariège, França, está o feiticeiro soprando a primeira gaita vertical conhecida no mundo [...]. Comentado na parte referente às crônicas. Ver CASCUDO, Luís da Câmara. “Prelúdio de Gaita” (1965). 228 Por que canário canta sem fome, sem amor, sem aparente motivo? Se digo que ele canta porque quer ouvir-se: que a clara e vibrante melodia, de impossível fixação no pentagrama, é um elemento complementar ou essencial ao segredo, ao equilíbrio de sua fisiologia, fisiologia sem dependência de órgãos, satisfação a um apelo cenestético148, será uma opinião, ou melhor, um convencimento. Uma informação que decerto poucos notaram: Não conhecemos um povo sem canções. Canta o esquimó no gelo e o beduíno no deserto. Retorna (p. 326) ao tema da transferência de melodias do erudito para o popular149. Pelo mesmo processo difusivo as melodias emigram e vão gravitar ao redor de assuntos estranhos que se lhes tornam conteúdos. Assim, uma técnica gregoriana do cantochão reaparece num aboio de conduzir gado ou num apelo pescador de chamar os companheiros. Trechos de operetas ficam nos autos populares. Há sempre um movimento incessante de osmose divulgando os motivos musicais cantados. Indaga desde quando a voz seria acompanhada por um instrumento e argumenta que com os primeiros conhecidos (os instrumentos de sopro), não poderia o cantor tocar e cantar ao mesmo tempo. Refere-se a desenhos tumulares egípcios do Baixo Império, onde são encontradas cenas de canto acompanhadas. Na sequência, cita o musicólogo Fétis150, afirmando que, naquela época, os versos eram apenas declamados e os instrumentos que apareciam faziam apenas interlúdios. Puxando para o Nordeste do Brasil, aponta como exemplo o antigo baião, que os violeiros executavam entre um verso e outro e jamais durante. Ao iniciar (p. 329) o capítulo referente à poesia, diz: 148 Denominação comum às impressões sensoriais internas do organismo, que independem da indicação dos sentidos; sensibilidade interna, orgânica. Disponível em: <http://aulete.uol.com.br/site.php?mdl=aulete_digital&op=loadVerbete&pesquisa=1&palavra=cenest%E 9tico>. Acesso em: 27 ago. 2010. 149 Cascudo, em diversos escritos comentados neste trabalho, retomou o tema da passagem do erudito para o popular, como na crônica “Modinhas e modinheiros” (Som, n. 1, 17/07/1936). 150 François-Joseph Fétis (1784-1871) publicou Biographie universelle des musiciens (8 volumes) e Histoire général de la musique. Cascudo não indica em que fonte se baseou, mas certamente foi na segunda obra citada. 229 Naturalmente a dança e o canto são o pai e mãe da poesia. Os mesmos genitores do teatro. Para que o canto tenha comunicação e correspondência humana é indispensável um assunto, tema, motivo, elemento de conteúdo lógico. É preciso levar ao canto uma continuação do interesse humano. Esse interesse foi a poesia. De início não havia canto sem poesia e toda poesia antiga era cantada. A partir desse ponto, envereda na poesia. Há, ainda, uma abordagem musical na página 437 do capítulo “Cultura popular”, o qual se refere às perspectivas que se abrem aos investigadores da música. Com o título O livro das velhas figuras (1974-2009) 151 , o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte iniciou, em 1974, a publicação de uma série de volumes constantes de transcrições de artigos da série “Acta Diurna”, de Luís da Câmara Cascudo. Até o momento, foram lançados dez volumes e o número X foi publicado em 2009152. A maior parte das crônicas que continha conteúdo musical foi comentada neste trabalho, na parte referente à atuação do historiador e folclorista no periodismo. Uma das obras mais diferentes em relação ao conjunto que identifica as características de Cascudo é, certamente, Prelúdio e fuga do real (1974)153. Nela, o autor, fugindo aos temas comuns ao seu universo literário, mergulha em um mundo imaginário e ali encontra figuras destacadas da cultura universal, conversa com elas, troca ideias, discute. A intimidade imaginada revela a vastidão de seus horizontes culturais e a profundidade de seus conhecimentos. Para o objetivo deste trabalho, seria de lamentar a ausência de um grande músico entre os seus entrevistados. O mestre passa ao largo da área musical, registrando apenas no capítulo IV – “Vestris”. Dança inevitável, sua “conversa” com Gaetano Appolino Baldassari Vestris (1729-1808), o florentino que tanto se destacou no cenário da dança na França dos fins do século 151 CASCUDO, Luís da Câmara. O livro das velhas figuras (1974-2009). Essa obra é composta por dez volumes, publicados em editoras diferentes. Todos esses volumes estão especificados nas referências. 152 GALVÃO, Claudio. “O livro das velhas figuras” (2003). 153 CASCUDO, Luís da Câmara. Prelúdio e fuga do real (1974). 230 XVIII. Um dos pontos altos da entrevista ocorre quando o lendário bailarino (falando e pensando como Cascudo o faria) pergunta ao seu companheiro de viagem marítima: – Notara, Monsieur, que a maioria das Danças populares, agora recebidas por todos os salões como convidadas de honra, independe totalmente da música? Dança-se sem ela. Basta o ritmo. Era assim, ou devia ser assim, no Madaleniano. Mais adiante, o bailarino revela seu conhecimento da cultura brasileira: Monsieur tem bom exemplo nas Umbandas e Candomblés, Batucadas e Sambas de Morro, Cocos e Bambelôs, do seu país. Basta assistir a um Carnaval brasileiro ou exibição de Escola de Samba. Monsieur sabe que se cantou, com sucesso: – Com pandeiro ou sem pandeiro, eu brinco!154 Alegria sem música. Por que? O ritmo é produzível por ele mesmo. A música é uma colaboração. Curioso o conhecimento que tem o velho bailarino a respeito de black-bottom, boogie-woogie, rock‟n roll, iê-iê, cake-walker, charleston, fox-trot, ragtime, ritmos de mais de duzentos anos depois, sucessos dos tempos de Cascudo... Nunca um personagem da França rococó conheceu tanto sobre danças brasileiras e coincidiu com o pensamento e as opiniões de seu companheiro de viagem, um visionário pesquisador do século XX... Foram encontradas em História dos nossos gestos (1976)155 referências a numerosos sinais relacionados com a música. A primeira delas, “bater o pé” (p. 21), é definida por Cascudo como Sinônimo de dançar. O pé, solto e breve, percute o solo e cadência [...]. Creio a Batida de Pé como a primeira figura coreográfica registrada no mundo, afirma, referindo-se a alguns desenhos pré-históricos que reproduzem danças. Referindo-se à sua época, diz: Equivalente a Danças é o arrasta-pé, baile improvisado. Retornando ao passado pré-histórico, continua: Creio no bate-pé originando a dança, afirmativa participação intencional sob cadência, fórmula rogatória à Divindade, eficiente, indecisa e via no longínquo Madaleniano. Refere-se à marchinha “Eu brinco!”, de Pedro Caetano e Claudionor Cruz, gravada por Francisco Alves, grande sucesso no carnaval de 1944. 155 CASCUDO, Luís da Câmara. História dos nossos gestos (1976). 154 231 No verbete “umbigada” (p. 28), Cascudo retoma um antigo tema que mereceu diversos comentários em seus escritos. Afirma a origem angolana da palavra em idioma quimbundo: semba. Comenta a ocorrência da umbigada em território africano e, adentrando a música brasileira, conclui: De semba provém samba. Continuando o percurso por diversos países, indica a presença da umbigada em Portugal, que foi o caminho tomado em direção ao nosso país: No Brasil a Umbigada figurava do coco, lundum, sabão, samba. Zambê, catolé, bambelô. Aprofundamento sobre o tema, pode ser encontrado, por exemplo, no Dicionário do Folclore Brasileiro (1979) e em Made in Africa (1965). Na página 43, baseado em informações antigas, esclarece a diferença entre “batuqueiro e sambista”: Os veteranos diferenciam as personalidades distintas. Batuqueiro é o músico de percussão. Sambista é o dançador. Dirigindo-se a Pernambuco, comenta: O passista dos frevos do Recife revela-se pelo Carnaval. É gente moça. Batuqueiro e sambista são temperamentos normais de todo ano. Gente mais velha. Aproveita para repassar o assunto samba e remete-se, mais uma vez, ao Dicionário do Folclore Brasileiro (1979) e ao Made in Africa (1965). No capítulo “O gesto vivo dos balizas mortos” (p. 46), evoca a figura dos balizas dos blocos carnavalescos – o Baliza dos antigos cordões, guia, modelo, animador das evoluções coreográficas nas horas frementes das exibições públicas. Em Ontem (1972), com o título “Baliza solitário”, descreveu Zé de Benvinda, participante de blocos carnavalescos em Natal dos começos do século XX, conforme comentado. Explicando o significado em várias culturas do gesto de bater palmas, envereda em um caminho musical: Foi o método para medir a cadência musical, palmas compassadas, vulgarizando-se como aplauso no teatro, depois de ter sido liturgia no âmbito dos cultos vulgares. É o que se encontra na página 50, verbete “bater palmas”. Buscando informações em um passado já bem distante, procura explicar o sentido da expressão “dando o tom” (p. 50). Recorda a professora que recitava o verso inicial de um canto a ser entoado pelos alunos ao terminar a aula. Usando um artifício poético, imagina que a professora decerto ignorava que o ato de iniciar o canto coletivo era função religiosa e solene na Roma do orador Cícero e do Imperador Augusto. Informa que era da competência do Sumo-Pontífice ou seu substituto cantar o verso para que o hino sagrado fosse repetido pela multidão. Dizia-se praecentio. De importância fundamental para o equilíbrio harmonioso das vozes conjuntas. A desafinação equivalia a um sacrilégio. 232 Em “armar o pé” (p. 69), define o gesto como: Repetir passo de dança, convidando o par. O gesto de “assobiar” (p. 188) já foi abordado em outros escritos. Indicou haver sido o assobio o Primeiro instrumento de sopro. Antes dos tubos de bambu, dos silvos e pios abertos nas costelas e tíbias no Alto Madaleniano, o homem assobiava. Neste trabalho, estão comentados a crônica “Assobiar” (Bando, 1950) e os livros Anubis e outros ensaios (1983), Dante Alighieri e a tradição popular no Brasil (1979) e Dicionário do Folclore Brasileiro (1979), nos quais se encontram, principalmente nesse último, comentários pertinentes ao ato de assobiar. Mouros e judeus na tradição popular do Brasil (1978)156 engloba dois ensaios republicados em Mouros, Franceses e Judeus (1984), já comentados neste trabalho. Superstição no Brasil (1985) é a última publicação de Luís da Câmara Cascudo; nele foram incluídas as obras Anubis e outros ensaios, Superstições e costumes e Religião do povo, já comentadas no corpo deste capítulo. 3.1 ORGANIZAÇÃO, INTRODUÇÃO E NOTAS Luís da Câmara Cascudo sempre demonstrou grande admiração por Lourival Açucena, considerado o primeiro dos poetas potiguares documentalmente conhecido. Versos (1927)157, livro póstumo, único publicado, deve-se ao trabalho de coleta e comentários do jovem pesquisador que, aos 29 anos, iniciava sua carreira literária. O meio ambiente, dados biográficos sobre o personagem e bibliografia disponível estão nas páginas 17 a 30. Há uma curiosa semelhança na vida de Domingos Caldas Barbosa, de quem Cascudo iria publicar poemas, notas e comentários 31 anos mais tarde158, e do seu conterrâneo Lourival, de quem disse: Seus versos se destinavam ao violão ou ao pedido oficial de alguma coisa. 156 CASCUDO, Luís da Câmara. Mouros e judeus na tradição popular do Brasil (1978). CASCUDO, Luís da Câmara (Org.). Lourival Açucena: versos (1927). A “Typographia” d‟A Imprensa pertencia ao Coronel Cascudo, pai do organizador. 158 CASCUDO, Luís da Câmara (Org.). Domingos Caldas Barbosa: poesia (1958). 157 233 Igualmente curioso é o fato de Lourival, responsável por inúmeros poemas de estrutura neoclássica, usar um nome arcádico – Lorênio – de forma semelhante a Caldas Barbosa, o Lereno Selinuntino (nomes de pastores gregos e latinos), nome de membros da arcádia de Roma. O repertório de ambos se compunha de modinhas e lundus. Caldas Barbosa sofria forte oposição por ser padre e poeta-cantor. Lourival não foi eleito deputado à Assembleia Provincial porque Não era decente ver-se um deputado feito mestre de coro, cantando na Igreja, nas ruas... O Sr. continuou da mesma forma, cantando sempre. [...] Quase todas as outras produções eram destinadas ao canto. Músico e cantor, Lourival propagava estridentemente as suas valias. Cascudo, no começo de sua carreira, não parece valorizar o ato de musicar um texto poético, ou talvez ainda não percebesse a importância do criador da melodia de uma canção. Assim, emprega raramente, nesse e em outros escritos, a palavra compositor. Muitos dos poemas que divulgou nesse livro estão anteriormente publicados em periódicos natalenses com a indicação: “Tem muzica do auctor”. A tradição de antigos modinheiros e seus velhos cadernos de “poesias” ainda vivos na década de 1980 indicava claramente a autoria de Lourival Açucena para muitas músicas de seus poemas. Pena que o passar do tempo tenha apagado da memória popular tantas de suas canções e lundus. É de se lamentar que Cascudo, certamente na década de 1920, quando ainda tinha esse material facilmente disponível, não tenha providenciado a cópia das melodias, assim como o fez para os poemas159. Uma breve frase e a definição de uma vida: Durante sessenta anos, governou as serenatas, as ceias e festas íntimas de Natal. 3.2 INTRODUÇÃO E NOTAS Cascudo160 inicia Caldas Barbosa: Poesia (1958) com uma “Apresentação: situação histórica” (p. 5 a 30), em que aborda a vida e obra do padre brasileiro que agitou a vida cultural e social de Lisboa dos finais do século XVIII. Domingos Caldas Barbosa (Rio de Janeiro, 1738 – Lisboa, 1800) apresentava bons motivos para sofrer as 159 Em GALVÃO, Claudio. A Modinha Norte-Rio-Grandense (2000), estão publicadas as partituras de 7 canções de Lourival Açucena, sendo seis de autoria confirmada e uma atribuída a ele. 160 CASCUDO, Luís da Câmara. Domingos Caldas Barbosa: poesia (1958). 234 consequências de posições antagônicas da alta sociedade lisboeta que foi levado a frequentar: era um religioso autor de poesias demasiadamente “mundanas” e as cantava acompanhando-se à viola dedilhada. Além disso, era pobre e mulato. Era comum à sociedade da época a reação de pouca importância ao exercício do que hoje se entende por música popular. A nota 1 (p. 14) já compara Domingos Caldas Barbosa ao poeta Joaquim Lourival de Melo Açucena (Lourival Açucena 1827-1907), que não foi deputado provincial em 1862 porque tocava violão e cantava modinhas nas serenatas. O personagem alvo desse estudo é, basicamente, um poeta que canta sua obra, acompanhando-se à viola. Imediatamente uma questão se impõe: era Caldas Barbosa o autor das melodias que cantava? É bastante evidente o desinteresse, o pouco caso, que também tinham os pesquisadores eruditos do início do século XX pela música dita popular, como se constata em relação a Domingos Caldas Barbosa. A parte literária era o bastante. É de considerar-se que os compositores populares eram na maioria das vezes bons poetas, mas não possuíam formação musical apropriada. O instrumento que os acompanhava era geralmente tocado “de ouvido” e as melodias que criavam, na maioria das vezes possuidoras de valor melódico, nunca eram escritas, sendo divulgadas pela repetição oral. Era esse o caso dos modinheiros brasileiros, como certamente aconteceu com Caldas Barbosa, há mais de duzentos anos. É bem provável que ao público do seu tempo não interessasse saber quem criou a melodia: o importante era o poeta. Na obra em foco, Câmara Cascudo não afirma ser Caldas Barbosa o autor da música de seus poemas. Ao transcrever o poema “Sem acabar de morrer” (Cantigas) (p. 78), acrescenta em nota 31: Foi igualmente, uma das composições prediletas na simpatia popular. A expressão composição não é uma exclusividade do vocabulário musical. Pode bem se referir à composição literária. Um das obras do próprio Caldas Barbosa pode dar a impressão de ser ele o compositor. No poema “Recado” (p. 41), está: “Cantou algumas modinhas? / E que modinhas cantou? / Lembrou-lhe algumas das minhas / Não, não; / Nem de mim mais se lembrou”. Algumas das minhas (modinhas) pode indicar a autoria da música. Entretanto, era comum ainda no século passado o modinheiro designar “minha modinha” a um poema de sua autoria musicado por outra pessoa. O objetivo desse comentário não é descobrir a origem musical das canções de Caldas Barbosa, mas sim as referências de Cascudo sobre o poeta enquanto cantor. 235 Após a edição da obra em foco (1958), documentos inéditos foram descobertos ensejando muitos estudos e novas conclusões. O pesquisador Manoel Morais não credita ao padre mulato nenhuma das quarenta e nove partituras que analisou e publicou161. Em apoio a Domingos Caldas Barbosa como autor das melodias que cantava, vem o musicólogo brasileiro José Ramos Tinhorão, que, no capítulo VI: “O „doce canto‟ do pastor Lereno”, de sua obra Domingos Caldas Barbosa: o poeta da viola, da modinha e do lundu (1740-1800)162, não receia em mencionar diretamente (p. 124) [...] “a grande popularidade alcançada pelo poeta-compositor brasileiro”. A Academia Brasileira de Música não teve a menor dúvida em abraçar o padre mulato e modinheiro entre os seus membros mais prestigiosos. Considerou sua atividade de compositor, valorizou-o suficientemente como cantor e acompanhador de seus poemas e, mais ainda, o serviço que prestou na divulgação da música brasileira nos refinados salões da Lisboa setecentista. “[...] Compunha e cantava modinhas e fazia versos satíricos. Ficou famoso como tocador de viola. [...] Ficou extremamente popular no reino, com suas modinhas e lundus, que apresentava em saraus de casas distintas. Muitas de suas obras apareceram também no livro Viola de Lereno, editado em Lisboa”163. Mereceu ser o patrono da cadeira n. 3”. Cascudo inclui no seu trabalho algumas referências musicais sobre Caldas Barbosa: Nota 11 (p. 43): “Vou morrendo devagar”. Muito popular, era ouvida no interior do Rio Grande do Norte, Paraíba e Ceará entre 1880-1890, testemunho do tenente Cascudo. Em tonalidade menor: Foi uma das modinhas mais populares de Pe. Caldas Barbosa. Meu pai (1863-1935) ouviu-a muitas vezes cantar, violão acompanhado em tonalidade menor, em várias vilas do interior da Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará, entre 1880-1890. Nota 23 (p. 62): “Coração não gostes dela que ela não gosta de ti” (Cantigas). Devia ter-se popularizado em Portugal e no Brasil teve vasta e boa voga. Ainda em 1910 ou 1911 ouvi-a cantar pelo meu tio Francisco José Fernandes Pimenta na vila de BARBOSA, Domingo Caldas. Muzica escolhida da viola de Lereno (1799) (2003, p. 31): “[...] as poesias de Domingos Caldas Barbosa postas em música por vários autores anônimos”. Diz, ainda (p. 48) – Sobre a questão da autoria da música: “[...] colocamos a hipótese de que pelo menos três compositores distintos tenham tido intervenção na sua feitura [...]”. 162 TINHORÃO, José Ramos. Domingos Caldas Barbosa: o poeta da viola, da modinha e do lundu (17401800) (2004). 163 Disponível em: < http://www.abmusica.org.br/>. Acesso em: 13 maio 2010. 161 236 Augusto Severo. Chico Pimenta acompanhava-a em tom maior. A originalidade onomatopaica fê-la inesquecível para a minha memória de menino164. Nota 29 (p. 73): “Amor generoso”: É um dos distantes e legítimos modelos da velha modinha sentimental que dominou até a primeira década do sec. XX. Nota 31 (p. 78): “Sem acabar de morrer” (Cantigas): Foi, igualmente, uma das composições prediletas na simpatia popular. Não seria inapropriado encerrar-se perguntando quem em Portugal colocaria música compatível, em sintonia com a letra, em “cantigas amorosas de suspiros, de requebros, de namoros refinados, de garridices?”165. E os lundus? Poderiam sua sensualidade e requebros voluptuosos ser refletidos musicalmente pelo branco europeu, que nunca viveu no Brasil e que não tem uma só gota de sangue negro a lhe correr nas veias? Cascudo encerra o seu estudo com a demonstração de seu apreço (p. 30): Com a viola, cantando, era a voz sereneira, expressiva e legítima, o primeiro atrevimento, madrugada afoita, anunciando na Europa a lírica do povo do Brasil. 3.3 NOTAS Assim como para Festas e Tradições Populares do Brasil, de Mello Morais Filho, Cascudo se encarregou das anotações que complementam Cantos populares do Brasil,166 trabalho realizado por Silvio Romero no século XIX. São ao todo 95 notas abordando temas gerais, das quais 52 têm conteúdo musical relevante. Capítulo: “Romances e xácaras”. Nota 9 (p. 64): “A nau Catarineta”. Aborda essa xácara portuguesa, seus aspectos históricos e apresenta vasta bibliografia sobre o tema. 164 Durante as entrevistas gravadas em janeiro de 1980 quando da pesquisa para a preparação do livro A modinha norte-rio-grandense (2000), o autor desta pesquisa pediu insistentemente para que Cascudo tentasse lembrar-se da melodia de algumas das modinhas de Caldas Barbosa que ouvira em sua juventude no Rio Grande do Norte. Por mais que se esforçasse não foi possível recordar nenhuma delas. 165 Trecho da carta do Dr. Antonio Ribeiro dos Santos (“Elpino Duriense”, na Arcádia) ao Frei Alexandre da Silva, então bispo de Malaca (antes de 1777). CASCUDO, Luís da Câmara (Org.). Caldas Barbosa: poesia (1958, p. 18). 166 ROMERO, Silvio. Cantos populares do Brasil (1985). 237 Nota 12 (p. 69): “A pastorinha”. Traz a transcrição da parte literária, inclui a bibliografia pertinente a esse romance, cujos fragmentos são cantados como ronda infantil pelo Nordeste brasileiro. Nota 17 (p. 81): “A mutuca”. Refere-se às características desses versos, informando serem ainda populares no Nordeste. Indica Aluísio Alves, que recolheu letra e música do Camaleão e publicou em Angicos. Rio de Janeiro: Pongetti, 1940. Certa essa referência? Nota 18 (p. 83): “Redondo-sinhá”. Comenta esse gênero de cantoria sertaneja e informa haver publicado um exemplo em Vaqueiros e Cantadores (Belo Horizonte: Itatiaia, 1984. p. 266). Por engano do autor ou mais certamente por “erro de imprensa”, a partitura que se encontra na página 213 da 1ª edição (1939) e na página 219 da 2ª (1968) não foi incluída na 3ª edição (1984). Nota 19 (p. 85): “Manoel de O‟ Bernardo”. Indica bibliografia musical no comentário dos versos publicados. Nota 21 (p. 91): “A mulatinha”. Esclarece que os versos publicados estão também em outros autores e acrescenta: Possuo uma variante que era cantada ao violão por meu pai. Nota 27 (p. 109): “Romance Boi Surubim”. Fala que ouviu cantar do romance apenas trechos, numa solfa linda que guardei, Vaqueiros e cantadores, pg. 118, Editora Itatiaia, Belo Horizonte, 1984. Ainda em 1910, no sertão do Oeste do Rio Grande do Norte, meus tios e primos, todos vaqueiros diziam, referindo-se à segurança de uma cerca entrançada: – aqui não passa nem o boi Surubim... E o boi Surubim vivera cem anos antes. Nota 32 (p. 123): “A velha Bizunga”. Informa: Tenho duas versões e a respectiva música. Nota 33 (p. 125): “Sarabanda”. Refere-se à denominação do documento transcrito por Silvio Romero, que preferiu se referir a ela como chula, em consideração a suas características. Aborda a dança européia e refere-se ao seu aparecimento no Brasil. Nota 34 (p. 128): “O sapo cururu”. Essa pequena nota diz apenas: Esta cantiga é uma das mais populares no Brasil e tem sido registada em quase todas as coleções de versos infantis. Capítulo: “Bailes, cheganças e reisados” 238 Nota 36 (p. 135): “Baile da lavadeira”. Menciona a manifestação: O gênero não desapareceu em Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. Dezenas de velhos cadernos registam os dramas que eram esses bailes de outrora. Não registrado no Dicionário do Folclore Brasileiro (1979). Nota 37 (p. 145): “Chegança dos marujos”. Indica a ocorrência desse auto no Nordeste brasileiro, bem como sua bibliografia. Essa manifestação está comentada no Dicionário do Folclore Brasileiro (1979). Nota 38 (p. 149): “Chegança dos mouros”. Longo verbete sobre o auto. Igualmente estudado no Dicionário do Folclore Brasileiro (1979). Nota 39 (p. 154): “Reisado da borboleta, do maracujá e do pica-pau”. Apresenta bibliografia e comenta esse componente das festividades natalinas. Nota 40 (p. 155): “Reisado do José do Vale”. Cascudo indica as variantes e a bibliografia. Não registrado no Dicionário do Folclore Brasileiro (1979). Nota 43 (p. 161): “Reisado Cavalo-Marinho e Bumba meu Boi”. Mantém a descrição de Renato Almeida, em História da música brasileira (1942), e indica vasta bibliografia. Bastante estudado no Dicionário do Folclore Brasileiro (1979). Nota 44 (p. 163): “Versos das Taieras”. Breve descrição. Assunto já comentado em Mello Morais Filho, em Festas e tradições populares do Brasil. O verbete taieras encontra-se no Dicionário do Folclore Brasileiro (1979). Nota 45 (p. 168): “Loas de Natal e Reis”. Apresenta comentário e bibliografia sobre o assunto. Nota 46 (p. 169): “Cantiga do Marujo”. Faz uma breve abordagem. Componente do fandango, tema muito estudado no Dicionário do Folclore Brasileiro (1979). Nota 47 (p. 171): “Xiba”. O autor descreve essa dança também incluída no Dicionário do Folclore Brasileiro (1979). Capítulo: “Versos gerais: origens do português e do mestiço; transformações pelo mestiço” Nota geral sobre o capítulo (p. 175). Cascudo comenta o conteúdo desse capítulo e indica o ano de 1878 como o provável início da pesquisa de Silvio Romero. Ressalta: Era a parte do Cancioneiro do Brasil, o canto lírico, a modinha dengosa, a chula que bulia com os nervos, os recursos sentimentais do povo para cantar e para rir. Focalizava suas observações nas modinhas, lundus e chulas: Esses lundus, essas chulas, essas modinhas foram cantadas por quase todo o Brasil. Mais adiante, lamenta: 239 Infelizmente não foi possível o registo musical. Silvio Romero sabia o tesouro que ia desaparecer e tentou salvar-lhe uma parte. Ninguém ou quase ninguém lembrou-se de repetir a façanha do sergipano. Assim perdemos quase duzentas solfas, uma boa percentagem do século XVIII167. Nota 51 (p. 183): “A laranja madura”. Ao comentar as quadras publicadas por Romero, acrescenta mais uma e justifica: A terceira copla pertence a uma chula outrora muito cantada pelo Nordeste do Brasil. Nota 52 (p. 186): “Fui soldado, assentei praça”. Refere-se à cantiga “Soldado do amor”, de Domingos Caldas Barbosa. Estão publicadas três quadras com a indicação (Sergipe), decerto o local da coleta. Cascudo publicou o texto completo168 (sete quadras e mais uma quadra-refrão, repetida seis vezes). A primeira quadra de Romero só coincide com a publicada por Cascudo em duas estrofes. Da mesma forma, as duas quadras restantes são diferentes. A vasta popularidade dos poemas-canções de Caldas Barbosa pode justificar as adulterações que resultaram numa grande diversidade de textos encontrados: As cópias manuscritas espalharam-no e era cantado por meio mundo. De sua popularidade no Brasil vivem muitas quadrinhas parafraseando a imagem. Nota 57 (p. 198): “Balaio”. Apresenta breve referência a essa dança sapateada muito popular no Rio Grande do Sul, também incluída em Dicionário do Folclore Brasileiro. Nota 60 (p. 210): “Candeeiro”. Cascudo diz apenas: Ainda alcancei o Candeeiro como uma espécie de bailado infantil, dança de calçada nas noites de luar. No Dicionário do Folclore Brasileiro, podem ser encontrados outros significados. Nota 61 (p. 210): “Oh Ciranda, Oh Cirandinha”. Aborda o tradicional bailado português e sua difusão no Brasil. 167 Silvio Romero teve fontes à disposição e, se não sabia escrever música, teria decerto quem, a seu comando, fizesse o trabalho de grafar a melodia das canções cuja letra havia recolhido. Transparece a impressão de que a parte literária era a mais importante e, por isso, indispensável. A grafia musical é mais trabalhosa do que a cópia de um verso e exige conhecimentos técnicos apropriados que nem todos os pesquisadores possuíam. O próprio Cascudo, que conhecia música, não se atreveu a penetrar nesse caminho; as melodias que mantinha na memória foram escritas por amigos musicistas e, ao final, dão a impressão que bem poderiam ser mais numerosas. 168 CASCUDO, Luís da Câmara (Org.). Domingos Caldas Barbosa: poesia (1958). O poema está completo nas páginas 54 e seguintes de “Viola de Lereno”. Na nota 54, referida acima, Cascudo cita “Viola de Lereno” (Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1944, 5. ed.), que foi, decerto, sua fonte original do poema. A primeira quadra é a única publicada em BARBOSA, Domingos Caldas. Muzica escolhida da Viola de Lereno (1799). Estudo introdutório e revisão de Manuel Morais. Lisboa: Estar/Centro de História da Arte, 2003. O texto confere com o publicado por Cascudo. 240 Nota 64 (p. 213): “Chula”. O texto integral da nota é: É um coco de roda, bambelô, muito meu conhecido no velho Natal de 1910. Nota 70 (p. 226): “Fragmentos do Bitu”. Alude à tradicional cantiga e sua ocorrência no Brasil. Nota 71 (p. 274): “Silva de quadrinhas”. Romero publica 556 quadrinhas e Cascudo anota: [...] na maioria absoluta, foi verso cantado e dançado, restos dos bailes dos Fandangos, movimentados e cheios de interesses humanos. Boa parte dos verbetes comentados em Festas e tradições populares do Brasil (1967)169 faz parte do Dicionário do Folclore Brasileiro. Não há menção a essa obra porque ainda não havia sido publicada. A primeira edição de Festas e tradições populares do Brasil é de 1901; a edição seguinte, a primeira anotada por Cascudo, saiu em 1946 (Rio de Janeiro: Briguiet), oito anos antes do Dicionário. São noventa e duas as notas constantes da edição utilizada (1967), dentre elas oitenta e duas são assuntos musicais. Capítulo: “Casamento na roça” Nota 1: “Louvação aos noivos”. Manifestação comum em tudo o mundo e muito encontrada no Nordeste do Brasil. Refere-se a um canto nupcial publicado por Jaime do Cortesão em O que o povo canta em Portugal (Rio de Janeiro: Edição Livros de Portugal, 1942). Nota 2: “Saúdes cantadas”. Cantos nos momentos de brindes, em banquetes, já comentados na História da alimentação no Brasil (1967), capítulo “Saúdes cantadas e canções de beber”. Nota 3: “Chiba”. Nome de uma dança. Ver Dicionário do Folclore Brasileiro (1979). Nota 4: “Chula”. Uma cantiga e dança portuguesa quase desaparecida no Brasil. Ver Dicionário do Folclore Brasileiro (1979). Nota 5: “Batuque”. Ver Dicionário do Folclore Brasileiro (1979). 169 MELO MORAIS FILHO, Alexandre José. Festas e Tradições Populares do Brasil (1967). 241 Nota 6: “Fado”. Mais um documento sobre a origem brasileira do fado. Assunto tratado por Cascudo em diversas oportunidades. Ver Dicionário do Folclore Brasileiro (1979). Capítulo: “O carnaval” Nota 10: Refere-se ao primeiro baile mascarado no Rio de Janeiro, realizado no Teatro São Januário, em 1846. Capítulo: “Noite de Natal” Nota 18: “Chegança”. Acrescenta uma definição: Cheganças eram dança portuguesa do século XVIII, de par solto, extremamente lasciva, excitante e favorita do povo. É um dos temas favoritos do autor, estudado em várias ocasiões. Ver Dicionário do Folclore Brasileiro (1979). Nota 19: “As janeiras”. Longa e minuciosa nota. Consta do Dicionário do Folclore Brasileiro (1979) como “janeira”. Acrescenta um comentário sobre a ação de Mello Morais Filho na manutenção e divulgação das manifestações folclóricas brasileiras. Nota 20: “Canzá”. A nota consta apenas dos nomes canzá, ganzá e maracá. Ver Dicionário do Folclore Brasileiro (1979). Nota 21: “Tabaques”. Assim como na nota anterior, acrescenta: tabaque, atabaque. Identifica o instrumento no Dicionário do Folclore Brasileiro (1979) como atabaque e comenta seus diversos tipos e formas. Nota 24: “Bailes Pastoris”. Indica que é conhecido simplesmente como “pastoris”. Um dos temas mais abordados pelo autor. Ver Dicionário do Folclore Brasileiro (1979). Capítulo: “Véspera de Reis” Nota 25: “Cucumbis”. É mais um tema estudado no Dicionário do Folclore Brasileiro (1979), no qual Cascudo menciona outra vez Luciano Gallet (Estudos de folclore, 1934). Nota 26: “Bumba meu boi”. Cascudo acrescenta outros nomes do folguedo: Boicalemba, Bumba, Boi, Reis. Esse auto brasileiro, único em sua espécie [...], foi devidamente estudado no Dicionário do Folclore Brasileiro (1979). 242 Capítulo: “A procissão de São Benedito no Lagarto” Nota 28: “Congos”. Depois de citar os nomes de alguns pesquisadores do assunto, indica: Sobre o Bumba-meu-Boi, como sobre os demais autos ou bailados dramáticos tradicionais, reservo-me para maior exame, no meu Literatura Oral do Brasil. A primeira edição dessa obra foi publicada em 1952, com o título de Literatura oral. A denominação Literatura oral no Brasil é uma edição de 1978. Valeria a pena acrescentar uma referência de Cascudo nessa mesma nota: Em julho de 1941 conheci no Rio de Janeiro o Sr. Alexandre Gonçalves Pinto que representara o Boi num rancho promovido por Melo Morais Filho. O Sr. Pinto registrou suas reminiscências num volume O Choro, Rio, 1936, 13, lembrando-se ter espatifado a carapaça do boi dando marradas nos assistentes. Nota 29: “Taiêras”. Utiliza a denominação adotada por Silvio Romero – taieiras. Esse termo está comentado no Dicionário do Folclore Brasileiro (1979). Cascudo indica diversos autores que estudaram o tema, destacando Luciano Gallet, que publica a harmonização do canto das Taiêras para uma voz e piano, em seu Canções populares brasileiras. Capítulo: “O sete de setembro” Nota 45: “Capela Imperial”. Cita os nomes dos mestres da Capela Imperial do Rio de Janeiro, a partir de Marcos Portugal (quando ainda era Capela Real). Capítulo: “Festa da Penha” Nota 48: “A cana-verde, a chamarrita, o fadinho, o vai-de-roda”. Diz Cascudo: Todas essas danças são de origem portuguesa, exceto o fadinho, fado, nascido no Brasil e desenvolvido e nacionalizado em Portugal. São verbetes do Dicionário do Folclore Brasileiro (1979) (chamarrita grafada como chimarrita). Destaque para o tema de o fado ser de origem brasileira, muitas vezes comentada pelo pesquisador. Capítulo: “Os cucumbis” 243 Nota 50: “Canzás, os chequerês, os chocalhos, os tamborins, os adufos, os agogôs, as marimbas e os pianos de cuia”. O título da nota de Cascudo é: Ganzá, canzá, maracá. Acrescenta: chequerê, xequerê, xaque-xaque, xeré, xereré, chocalho de cobre. São todos verbetes do Dicionário do Folclore Brasileiro (1979). Nota 51: “Cucumbis”. Longa nota sobre esse auto popular negro, tema devidamente desenvolvido no Dicionário do Folclore Brasileiro (1979). Tema abordado neste trabalho na nota 25. Capítulo: “A Festa do Divino” Nota 54: “Fandango”. É a denominação que possui maior número de sinônimos no Dicionário do Folclore Brasileiro (1979). Capítulo: “A Festa da Glória” Nota 65: “Os cantores castrados vindos para o Brasil com a Família Real”. Cascudo dá informações sobre um deles, o último a falecer no Rio de Janeiro. Capítulo: “Quinta-feira Santa” Nota 73: “O padre José Maurício Nunes Garcia”. Capítulo: “Festa da moagem” Nota 82: “Urucungos”. Apresenta os diversos nomes que tem esse instrumento musical, abordados no Dicionário do Folclore Brasileiro. O mesmo que berimbau. São pouco numerosas as anotações de Cascudo para essas duas obras de Mello Moraes Filho Os ciganos no Brasil (1981, 1ª ed. 1886) e Cancioneiro dos ciganos (1981, 1ª ed. 1885)170, publicadas em conjunto nessa edição de 1981, em nada se comparando ao volume do que escreveu para Festas e Tradições Populares do Brasil, anteriormente comentada. 170 MELO MORAES FILHO, Alexandre José. Os ciganos no Brasil e Cancioneiro dos ciganos (1981). 244 Teria apenas a ser registrada a nota 10 (p. 31), em que se refere ao auto popular “Chegança”. Considerando o conteúdo musical do tema, recomenda: Ver HISTÓRIA DA MÚSICA BRASILEIRA, Renato de Almeida, “Chegança dos Mouros”, 216-225, e bibliografia crítica. 3. 4 PREFÁCIOS Em 2 de dezembro de 1921, Cascudo publicou sua primeira crônica versando sobre a música sertaneja, “Comentando”, em A Imprensa. No mês seguinte (22/01/1922), voltou ao tema publicando, no mesmo jornal, “Registo Bibliográfico”, recensão à 1ª edição de Cantadores: poesia e linguagem do sertão cearense, de Leonardo Mota171. O futuro escritor tinha 24 anos e já demonstrava sua sintonia com a cultura sertaneja do Nordeste. Seu relacionamento com o autor cearense se prolonga bastante, havendo escrito sobre ele em diversas ocasiões. A 3ª edição do livro de Leonardo Mota172 publicou-se em 1961. Sendo o tema da obra uma das maiores preferências de Câmara Cascudo, o prefácio (1960) escrito para a obra revela seu amplo conhecimento da matéria, bem como sua simpatia e participação nos propósitos do autor. Inicia informando que o escritor cearense procurava focalizar a sua obra na figura humana do cantador, pois o cantador estava escondido detrás da cantoria, oculto pela floração. Em geral, os livros sobre o assunto enfocam a obra – sua poesia e, minimamente, sua música –, Mota preferiu o artista: Ninguém sabia, de modo geral, a história deles, como viviam, produziam, decoravam, enfim, a mecânica do desafio. E esclarece a metodologia do trabalho realizado, acentuando a coleta presencial de informações: Leonardo Mota estudou o cantador na intimidade matuta, ouvindo-o no sertão, o que não significava o mesmo que entendê-lo numa sala citadina. Passa, então, o autor a identificar o elemento humano que focalizou: Das dezenas de cantadores ouvidos selecionou cinco, talvez os mais expressivos, naturais e completos como improvisadores e memorialisadores. Os nomes ficaram nacionais. Os cegos Aderaldo e Sinfrônio, Anselmo, Passarinho e Serrador. Referindo-se aos instrumentos, afirma: 171 172 MOTA, Leonardo. Cantadores (1921). MOTA, Leonardo. Cantadores (1921). 245 Os cegos tocavam rabeca e os demais eram violeiros. Tocavam rabeca como os menestréis medievais, pondo o instrumento na altura do peito e não debaixo do queixo. Era uma permanência denunciadora da indiscutível antiguidade. Os violeiros ainda batiam baião intervalar e jamais cantavam acompanhando-se. A voz ressoava sozinha, como no tempo de Teócrito, canto emebeu entre pastores173. Interessou a Leota174 a criatura humana, o derradeiro profissional da poesia no mundo, o cantor compositor, vivendo da cantoria, sem ambiente, sem clima, sem justificação, sem apoio mas tendo seiva popular tão pobre quanto eles, para sustentá-los, compreendê-los, aplaudi-los. Cascudo comenta também a origem portuguesa do desafio, refundido e ampliado nos sertões. A parte musical do acompanhamento é assim descrito: O acompanhamento, paupérrimo, desinteressado, era unicamente o apoio para os finais, as tônicas, enchendo com o rasgado do baião o espaço entre dois versos, trégua para respirar e recompor a continuação na memória. Era esse criador de combates verbais, vagabundo e lírico, sentimental e anônimo a paixão de Leonardo Mota. E a dele, também... Seu entusiasmo pelos sertanejos a quem tantas vezes se irmana cultural e presencialmente o leva a um momento poético: Eram rouxinóis e toutinegras repetindo nas cidades grandes as cantigas distantes dos curiós e xexéus perdidos nos juazeiros e oiticicas longínquas. Aborda, ainda, o problema da condição socioeconômica do cantador: teria ele de ser uma pessoa de baixa condição social e, rarissimamente, branco. Destaca a dificuldade de o cantador ir à cidade – a capital, em geral geograficamente distante do sertão – e, da mesma forma, da sociedade citadina ir ver o cantador. Cita um exemplo bem original, ocorrido com ele próprio: Para ouvir o grande Preto Limão, aí, em 1908, fugi de casa e ganhei castigo. Completa suas considerações acrescentando um exemplo do preconceito existente em seu tempo para com os cantadores sertanejos: 173 174 O tema do canto emebeu e sua influência na cantoria nordestina já foi comentado no presente trabalho. Assim Cascudo chamava Leonardo Mota. 246 Comentou-se rudemente o governador Ferreira Chaves,175 em 1917, creio, ter convidado amigos para ouvirem o cantador Fabião das Queimadas,176 escravo que se alforriara cantando. A idéia fora do poeta Henrique Castriciano (1874-1947), muito criticado também. De 1932 em diante Fabião era meu hóspede e eu alvo de zombarias. Perguntava-se a meu pai porque consentia que sua casa hospedasse um negro vadio, tocador de rabeca, cantador de toadas. Posso, evidentemente, dar meu testemunho e antiguidade de simpatia porque me criara no alto sertão, ouvindo e aplaudindo cantadores. Numa capital era apenas, na melhor expressão, esquisitice, excentricidade, tolice. 3.5 POSFÁCIOS Como não poderia deixar de ser, o enfoque de Cascudo no posfácio de Poesias (1955)177 se dirige quase totalmente à parte literária da obra do poeta Segundo Wanderley (1860-1909). Um relato sobre o poema “O poeta e a fidalga”, musicado e tornado uma modinha muito popular, é a única referência musical do escrito. Diz o autor: Essa modinha viveu todo o Brasil do norte e nordeste, em salão e serenata, divulgada e emprestada a autoria a dez poetas ilustres e inocentes da paternidade. Sua popularidade alcançou palcos e revistas, dezenas de paródias surgiram. Era querida verdadeiramente por todos. Para referendar sua afirmação, repete uma velha história que lhe foi contada por um amigo, quando alguém foi homenageado com um almoço que reuniu toda a família e, no fim da celebração, todos cantaram “O poeta e a fidalga”. Tais relatos foram já comentados na parte referente às resenhas das crônicas de Câmara Cascudo178. O apresentador-biógrafo de Segundo Wanderley demonstra, no presente escrito, bem menor rigor em suas apreciações sobre o poeta que o demonstrado, passados 34 anos, em seu primeiro livro Alma Patrícia (1921). É de se lamentar que o poeta, autor 175 Joaquim Ferreira Chaves, ex-governador do RN, padrinho de batismo de Cascudo. O cantador Fabião das Queimadas (1850-1928) é personagem bastante citado nos escritos de Cascudo. 177 WANDERLEY, Segundo. Versos (1955). 178 Esse relato encontra-se na crônica livre “Nortista incurável”, publicada em A República (12/05/44) e em “Lendo um Livro de Canções” (“Acta Diurna”, A República, 19/11/1959). 176 247 da primeira revista teatral da cidade179 e tendo vários poemas musicados, não tenha tido uma menção de seu apresentador sobre assunto tão conhecido em Natal180. Num balanço geral da vasta obra de Câmara Cascudo em livros (produzida ao longo de extenso período de vida), observa-se a grande importância por ele atribuída à produção musical como parte integrante quer da Cultura Popular (autos, danças e outras tradições), quer como dimensão da Literatura Oral, quer como referência cultural geral. Essa atenção se fez presente em todos os gêneros literários e analíticos que o autor percorreu, do ensaio à monografia, passando por prefácios e edições de textos alheios. Associando esse interesse à produção na imprensa cotidiana, pode-se concluir que a música se manteve como dimensão cultural, expressiva e de sociabilidade sempre presente na reflexão de Câmara Cascudo, parte importante de sua biografia pessoal e intelectual. 4 PALCO ILUMINADO (BIOGRAFIA MUSICAL) “Minha vida era um palco iluminado”. (Silvio Caldas e Orestes Barbosa, Chão de estrelas). A obra intelectual de Luís da Câmara Cascudo tem sido abordada por vários estudiosos que destacaram sua produção em diversas áreas, como Folclore, Antropologia, Etnografia e História. Porém, ainda não foi feito um estudo mais sistemático sobre a sua atividade na área musical, em que se evidenciassem sua prática, sua participação na vida musical da cidade do Natal e, principalmente, os seus numerosos escritos articulados a esse campo de produção artística e cultural. 4.1 PRIMEIRO PALCO ILUMINADO A tentativa de encontrar o primeiro fato da vida de Luís da Câmara Cascudo que indique uma longínqua experiência musical levou a localizar um episódio que bem pode ter sido marcante para despertar as inclinações pelas manifestações culturais populares 179 A revista Natal em camisa, com melodias de José Bernardo Borrajo, foi encenada nos dias 15, 17, 29 de agosto e 14 de setembro de 1907, no Teatro Carlos Gomes (Natal), atual Teatro Alberto Maranhão. 180 Dez poemas de Segundo Wanderley, transformados em modinhas populares, têm detalhes e partituras em GALVÃO, Claudio. A Modinha Norte-Rio-Grandense (2000). 248 na vida do futuro intelectual, pois tudo indica ter sido a primeira vez que se viu, pessoalmente, integrando e tomando parte de grande festejo popular em que a música desempenha papel de destaque. Aconteceu no ano de 1909 (na época, ele tinha apenas dez anos de idade), quando a Divisão Branca, instituição que congregava jovens da sociedade natalense para objetivos recreativos e culturais, participou do carnaval 181. A montagem dos carros alegóricos para o desfile foi realizada nos terrenos da casa do coronel Cascudo182. É o próprio Câmara Cascudo quem, 46 anos depois, recorda o episódio: [...] saí trepado nas alturas de um deles vestido de Apolo, cabeleira loura, quente e cheirando a baratas, e uma coroa de louros de papelão pintado enfiada na cabeça irresponsável. O percurso do desfile, que incluiu as ruas importantes da cidade, está publicado no jornal O Torpedo183, que noticiou o episódio da seguinte forma: O (carro alegórico) – RIO GRANDE DO NORTE – todo enfeitado de encarnado e branco (as cores da Divisão [Branca]) tendo, colocado em posição de honra, um jerimum184, dentro um trovador, um poeta e uma criança levando o estandarte. A criança era a figura central desses comentários, havendo, no futuro, de subir em mais importantes palcos iluminados. Cascudo não se refere a essa lembrança de infância em nenhum de seus escritos posteriores. A única menção ao fato se encontra em uma carta dirigida ao escritor Nilo Pereira, comentada por ele em discurso de posse na Academia Norte-Rio-Grandense de Letras, ocorrido a 31 de agosto de 1955185. 4.2 ÁLBUM DE MODINHAS O mais antigo marco que documenta a atividade musical de Luís da Câmara Cascudo é um álbum de letras de músicas, algo muito comum em uma época em que se costumava registrar as canções em evidência copiando à mão os poemas, mesmo que tal registro não incluísse a notação musical186. O álbum era constituído de folhas pautadas, contendo sendo 61 páginas usadas. Na folha de rosto, encontra-se escrito: 181 Detalhes no jornal O Torpedo – Órgão da Divisão Branca, Natal, ano 1, n. 2, 22 fev. 1909. Na época, a família Cascudo residia (antes de se mudar para a Vila Cascudo) em um casarão onde mais tarde foi construído o Grande Hotel, atualmente ocupado por uma repartição do poder judiciário. 183 ITAJUBÁ, Ferreira. Gracioso Ramalhete, (1993). 184 Ver “Papa-jerimum” em CASCUDO, Luís da Câmara. Coisas que o povo diz (1968). 185 PEREIRA, Nilo. “O fenômeno Itajubá” (1956). Ele cita uma carta de Câmara Cascudo, datada de 11 do corrente. A posse do escritor Nilo Pereira na Academia Norte Rio-Grandense de Letras ocorreu no dia 31 de agosto de 1955. 186 Acervo Ludovicus – Instituto Câmara Cascudo, Natal/RN. Ver Anexo C. 182 249 Livro de Modinhas, lundus, cações [canções], barcarolas, fados e poesias dos mais notáveis poetas brasileiros e estrangeiros. de Luiz Cascudo 12 de setembro de 1912. De acordo com o registro, foi o próprio Cascudo – na época, muito apropriadamente Cascudinho – seu proprietário e primeiro redator. A data indica que o autor tinha 14 anos incompletos. Como curiosidade, registra-se que nele se encontram diversos erros de grafia, sugerindo a ainda imaturidade do futuro intelectual. No livro, foram evidenciadas nove diferentes caligrafias, certamente de pessoas adultas, que preencheram 46 páginas, restando o registro de quinze páginas com a caligrafia de Cascudinho. Como era de costume, esses álbuns ficavam inacabados e eram sempre acrescidos de novos registros. Duas páginas que se encontram no meio do volume foram grafadas pela mão de Cascudinho, mas, pelo maior equilíbrio dos caracteres gráficos, podem indicar que foram introduzidas anos depois das primeiras páginas. Confirma-se, assim, o interesse do adolescente pela música popular, tarefa mais comum a adultos frequentadores de saraus familiares ou serenatas ao luar, evidenciando-se, em especial, sua atração pela modinha, como tantas vezes demonstrou anos mais tarde. 4.3 CÂMARA CASCUDO E O PIANO Cascudo sempre foi um hábil conhecedor do piano, que em muitas oportunidades esteve presente em sua vida, mantendo um constante relacionamento com o instrumento até quando a saúde o permitiu. Aprender a tocar um instrumento fazia parte da educação das famílias do início do século XX. O piano era o preferido, embora mais comum às pessoas de nível econômico mais alto187. O violão, instrumento harmônico, satisfazia parte da população de menor poder aquisitivo. O início do aprendizado, no caso do primeiro, quase sempre se dava em casa, aos cuidados da mãe também pianista. Era um hábito mais comum ao sexo feminino. Os meninos nem sempre se acomodavam à disciplina do estudo regular 187 Sobre a compra de pianos na corte imperial, ver: ALENCASTRO, Luiz Felipe de (Org.). Império: a corte e a modernidade nacional (1997). 250 e, quando não abandonavam a música, continuavam tocando de ouvido, acompanhando instrumentistas e, principalmente, cantores. Em seus escritos posteriores, Câmara Cascudo não se refere à mãe como tocadora de piano. Decerto, não o foi por conta de suas origens sertanejas, que lhe teriam proporcionado costumes diferentes daqueles das cidades maiores. O mais antigo professor de piano do menino Cascudinho chamava-se Alexandre Brandão. No futuro, não escreveu – lamentavelmente – nenhuma “Acta Diurna” sobre seu primeiro professor, e sua única menção a ele está em uma das suas crônicas. Anos mais tarde, ao comentar um livro de autoria do seu contemporâneo, pianista Waldemar de Almeida, disse: Tivemos o mesmo professor, o mesmo saudoso Alexandre Brandão, mártir de nossas vadiações188. Na mesma fase de estudos com o professor Alexandre Brandão, estão os irmãos do pianista Waldemar de Almeida, que tocaram sem se profissionalizar na área, e um notável musicista também não profissional, Garibaldi Romano. O professor Alexandre Brandão189 residiu longo tempo em Natal, onde se casou e teve filhos. Ensinava música, afinava piano e publicou algumas composições para o instrumento. Um bom depoimento sobre esse período da vida de Cascudinho é oferecido por Waldemar de Almeida190, seu colega de estudos pianísticos, confirmando a frequência ao mesmo professor: Tomou lições de piano com Alexandre Brandão e, apesar de não ter muita alegria com o estudo das normas teóricas de música, vencia facilmente os exercícios do primeiro volume de Czerny e teimava em tocar numa hora as sessenta lições do “Pianista Virtuoso”191. Ao que parece, não almejando a carreira musical, Câmara Cascudo satisfez-se com a base teórico-prática que recebera para o piano e desenvolveu largamente a capacidade de fazer os acompanhamentos tão requisitados nos saraus familiares da CASCUDO, Luís da Câmara. “Normas Pianísticas”. (“Acta Diurna”, A República, Natal, 11/06/1941). Alexandre Américo de Caldas Brandão nasceu em Jaboatão/PE em1880 e faleceu em Malhada Vermelha/ CE, em 1923. Maiores detalhes em GALVÃO, Claudio. A Modinha Norte-Rio-Grandense (2000). 190 Waldemar de Almeida foi pianista, professor e compositor. Nasceu em Macau/RN em 24 de agosto de 1904 e faleceu em São Paulo, a 29 de maio de 1975. 191 ALMEIDA, Waldemar. “Luís da Câmara Cascudo no meio da música” (1947, p. 24). 188 189 251 época. Comentando a dificuldade do acompanhamento dos intérpretes de modinhas, Waldemar de Almeida destaca, no citado escrito “Luís da Câmara Cascudo no meio da música”, a habilidade do jovem Cascudinho nessa parte delicada e nem sempre valorizada da música. Relata uma cena em que os cantores e os acompanhadores, ao encontrarem dificuldade com a variedade dos tons e a diversidade dos acordes necessários ao acompanhamento, ficavam, ambos, em situação embaraçosa. Gritavam, então, por Câmara Cascudo, que acudia solene e vitorioso, tomava conta do teclado, dispensava o ligeiro ensaio, mandava o solista iniciar e a modinha saía melodiosa e bem amparada pelos acordes, harpejos e, de vez em quando, pelas “falsas”, acentuadas a propósito, para maior sabor do acompanhamento192. Waldemar de Almeida é ainda quem, havendo colaborado na confecção das partituras que integram o livro Vaqueiros e Cantadores, fornece mais informações sobre os dotes musicais do amigo: Foi esta a razão de não nos surpreendermos bastante quando, colaborando no registro da parte musical do seu “Vaqueiros e Cantadores”, observamos que todos os cânticos, todas as solfas eram cantadas com as diversas modulações, os múltiplos ritmos, sem vacilação, demonstrando uma segurança tonal absoluta193. Em mais um comentário, esse autor tenta desfazer os preconceitos daquela época em relação ao piano ser um instrumento tipicamente feminino: Câmara Cascudo no meio da música é mais um desmentido categórico à afirmativa de muita gente boa, que lê e aprende e cola, além de um anel no dedo, o dístico denunciador de uma grande inteligência: “Piano não assenta bem pra homem”...194 ALMEIDA, Waldemar. “Luís da Câmara Cascudo no meio da música” (1947, p. 24). ALMEIDA, Waldemar. “Luís da Câmara Cascudo no meio da música” (1947, p. 25). 194 ALMEIDA, Waldemar. “Piano não assenta bem prá homem” (1947). 192 193 252 Não há mais informações sobre professores de música do futuro etnógrafo. Cascudo relembrou o professor Francisco Ivo Cavalcanti, um dos seus primeiros mestres, no livro O tempo e eu (1968): [...] falava-me sobre música, pintura, serenatas, relações humanas, literatura recente, declamando versos, solfejando modinhas195. As reuniões que se realizavam em sua residência tiveram importância decisiva para a formação musical do menino Cascudinho. Seu pai era o homem mais rico de Natal e possuía a melhor residência da cidade, a Vila Cascudo – o “Principado do Tirol” –, sempre visitada por literatos, artistas e músicos. Tenores, barítonos, sopranos, pianistas, declamadoras, artistas em excursão, exibiam-se na Vila Cascudo. Sob as árvores de sombra, piqueniques, serenatas, violões famosos, tertúlias, improvisações. Dessa Vila Cascudo planejou-se muita festa vitoriosa e não mais repetida, bailes elegantes e mesureiros, Tea-Tango, Five o’clock, Noite Japonesa, fantasias, assaltos familiares, pesquisas culinárias, planos de renovação literária, apoio à “Semana d‟Arte Moderna”, leitura de originais de poemas de poetas dos Estados vizinhos, euforia, magnificência. Nesse ambiente propício viveu o adolescente Cascudinho. Para ali fui rapazinho de 15 anos e saí aos 34, bacharel, professor, casado e com um filho196. São muito frequentes em seus escritos as lembranças dessa casa onde viveu sua juventude: [...] as festas no “Principado do Tirol”, [...] A Banda de Música do Batalhão da Polícia ia “tocar alvorada” no aniversário de meu pai. [...] Os artistas itinerantes faziam canto e música nos salões do Coronel Cascudo197. Está muito claro o tipo de relacionamento que Cascudo teve com o piano: estudou teoricamente, mas preferiu a utilização prática do instrumento, procedimento geralmente conhecido como “tocar de ouvido”. Era como “pianeiro” e não pianista que ele se definia. Assim, poderia exercer outras atividades e tocar piano como bem gostasse, não se profissionalizando como solista ou professor do instrumento. Em entrevista concedida ao autor desta pesquisa, definiu-se em relação à esposa: Minha 195 CASCUDO, Luís da Câmara. O tempo e eu (1968). CASCUDO, O tempo e eu (1968, p. 64-65). 197 CASCUDO, Luís da Câmara. Meu amigo Thaville: evocações e panoramas (1974). 196 253 mulher é pianista e eu pianeiro. Toco aquelas coisas que você gosta, compreendeu? Eu fui o acompanhador das modinhas198. Na mesma entrevista, amplia um pouco mais a descrição do ambiente musical de sua casa: [...] depois casei com uma menina que fez o curso de piano com Babini199. Minha sogra tocava piano. Foi ela que cantava a célebre modinha “Nas horas tristes, ao cair da tarde”. E as filhas aprenderam. Minha mulher fez o curso e eu era pianeiro. Você imagine que o clima se adapta perfeitamente, não é? Não havia oposição em casa200. Em mais uma ocasião, Cascudo evoca o ambiente musical de sua casa referindose aos eventuais “duos pianísticos” com sua sogra: Minha sogra está com 95 anos. É uma marquesa de fidalguia. Até os noventa tocava piano comigo, a quatro mãos201. Algumas vezes, Cascudo relata fatos que levam a concluir que o seu nível pianístico não era somente a improvisação feita “de ouvido”. Na “Acta Diurna” “Uma velha amiga que não conheci”, traz à lembrança momentos de sua juventude ao comentar a vida e a obra da compositora francesa Cecile Chaminade, falecida em 1944. Quem estudou piano há uns vinte e cinco anos tocou Chaminade, acrescenta, incluindose, ele próprio, entre os intérpretes juvenis da compositora202. Outro excelente depoimento sobre o piano e sua juventude está em uma palestra feita pelo seu amigo, o compositor Oswaldo de Souza203, durante a Semana Câmara 198 Entrevista de Câmara Cascudo concedida ao autor desta pesquisa, realizada nos dias 14, 17 e 25 de janeiro de 1980 e gravada em fita cassete. Está publicada em GALVÃO, Claudio. A Modinha Norte-RioGrandense (2000) e incluída neste trabalho como anexo. 199 Thomazo Babini foi violoncelista, regente, compositor e professor de música. Nasceu em Faenza (Itália). Residiu em Natal até os anos 1940, constituindo uma escola de violoncelo e formando vários talentos do instrumento reconhecidos em nível internacional. Faleceu em Recife. 200 Entrevista de Câmara Cascudo concedida ao autor deste trabalho. 201 Entrevista de Câmara Cascudo a Pedro Bloch em Manchete, n. 619, 29 fev. 1964, republicada em Província 2, Natal: Fundação José Augusto/Instituto Histórico e Geográfico do RN, 1968. 202 “Uma velha amiga que não conheci” (“Acta Diurna”, A República, 21/03/1946). 203 Oswaldo Câmara de Souza foi pianista, compositor e escritor. Nasceu em Natal, a 1º/04/1904, falecendo em 20/02/1995. Conservador do SPHAN, realizou importantes trabalhos no seu estado. Em São Paulo, além de pesquisas musicais, coleta e harmonizações de melodias tradicionais, instalou o Museu de Arte Sacra do Embu (1941), foi restaurador e administrador do Sítio Santo Antônio, em São Roque em 1951 (o qual possuía ermida, casa grande e terrenos circundantes), e restaurou o Sítio do Padre Inácio, em Cotia (1957). Ver: GALVÃO, Claudio. Oswaldo de Souza: o canto do Nordeste (1988). 254 Cascudo, promovida pelo Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte e realizada no período de 24 a 30 de dezembro de 1964204. Oswaldo inicia suas lembranças em uma data em que a família Cascudo passava férias na cidade de Santa Cruz e Cascudinho ainda era estudante de Medicina: [...] Quando o conheci, na minha meninice, Cascudinho gostava de executar a música coreográfica de então, servindo-se do piano com uma habilidade surpreendente, para uma pessoa que, àquela época, não tinha nenhum conhecimento musical. Dotado de bom ouvido, tinha a ousadia de ser um bom intérprete de nossa música popular. Circunstâncias fortuitas nos levaram a passar um inverno em Santa Cruz, isso por volta de 1918 ou 1919. Foi ali que tive oportunidade de ouvi-lo ao piano pela primeira vez. Nossas casas ficavam vis-à-vis. O trecho seguinte revela sua primeira impressão do menino rico, filho do coronel Cascudo, amigo de seu pai, Cícero de Souza205: [...] Costumava ele, todos os dias, à tardinha, quase ao escurecer, brindarnos com um autêntico recital de música popular brasileira. Acabado o jantar, tomava de assalto um velho piano ali existente, e o improvisado executante demonstrava um viço fora do comum ao dedilhar, com segurança rítmica que faria inveja a muito “pianeiro” de Conservatório, os Maxixes e Choros mais em voga na época. Após referências sobre a música brasileira em moda na época, Oswaldo passa a comentar a popularidade do piano e lembra: O “pianismo” grassava com a mesma intensidade com que prolifera hoje o “folclorismo”... Mas a “detestável mania de tocar piano”, – como dizia Mário de Andrade, grassa até hoje. O autor, em seguida, comenta o piano tocado pelo jovem Cascudo: SOUZA, Oswaldo de. “Câmara Cascudo: o musicista” (1969). SOUZA, Oswaldo de. “Câmara Cascudo: o musicista” (1972). 205 Cícero Franklin de Souza era irmão de Antônio de Souza, governador do Rio Grande do Norte nos períodos de 1907 a 1908 e de 1920 a 1924. 204 255 [...] Entretanto o pianismo de Cascudinho era diferente. Através da cativante beleza de suas interpretações, de seu bom-gosto na escolha do repertório, todo ele impregnado de especial sabor brasileiro, chegava-se à conclusão de que era preciso romper com os preconceitos de então que conferiam à música brasileira conceitos pouco lisonjeiros. Não me cansava de admirar aquele jovem completamente liberto que, afrontando a opinião severa da época, executava uma música sadia que tanto me encantava, em vez de estropiar com interpretações ridículas algumas batidas valsinhas de Chopin. Continuando, fala a respeito do tipo de música de preferência de Cascudo: [...] Cascudinho preferia, entretanto, os músicos brasileiros por excelência: – EDUARDO SOUTO, MARCELO TUPINAMBÁ, ERNESTO NAZARETH, SINHÔ e outros compositores caracteristicamente brasileiros que começavam a ter certa voga. Executando Maxixes, Choros e Tanguinhos desses compositores, ele imprimia às peças vibração, ritmo e frescor, tudo na expressão mais pura da música popular brasileira. SAI CINZA, PISANDO EM OVOS, TATU SUBIU NO PAU, QUI SODADE, VAMO MARUCA VAMO, TRISTEZA DE CABOCLO – e tantas outras danças com os títulos mais adoráveis cada qual mais espevitada, eram executadas por ele com boniteza que dava gosto. À medida que a música se desenvolvia, nas passagens de maior brilho, ele fazia harpejos agilíssimos, sem perder jamais o ritmo da música. Com ciência habilidosa e uma acuidade musical digna de nota, equilibrava as sonoridades, fazendo gradações de timbres com muita fineza. Oswaldo insinua que Cascudo tocava “de ouvido” o seu repertório e que era exatamente o arranjo, a forma pessoal, que imprimia a cada peça musical o que mais o impressionava: [...] Suas improvisadas harmonizações possuíam uma perfeição de fatura surpreendente. Observava o processo musical-popular de cada peça, procurando salientá-lo com processos seus. Muitas vezes não se contentava 256 com a execução de uma peça e voltava a repeti-la, sempre deliciosamente, imprimindo à rítmica caráter preciso. Estava destinado a ser um excelente intérprete de nossa música, se tivesse estudado a sério. Cerca de cinquenta anos após os episódios das férias em Santa Cruz, Oswaldo retoma o Cascudo já famoso e consagrado, mas ainda curioso investigador da música brasileira, no momento empregando seus conhecimentos pianísticos como valioso e até imprescindível elemento para os estudos e pesquisas que desenvolveu. [...] Passaram-se anos e pude constatar depois que os arranjos que Cascudinho fazia para certas danças eram de melhor teor musical do que os originais. Dos maxixes e choros executados ao piano passou ele ao estudo das criações populares, à “geografia” do folclore brasileiro. E continua, até hoje, o mesmo observador sereno da música brasileira. Há na obra de mestre Cascudo, aquela mesma objetividade do tocador de maxixes que eu conheci em Santa Cruz, nos meus tempos de menino. [...] Ainda não há muitas semanas esteve mais uma vez em minha casa. Cantarolou, para que eu gravasse várias melodias que complementarão um trabalho seu. Estou grafando carinhosamente cada documento. Essas melodias não se destacam apenas pelo interesse brasileiro, mas notabilizam-se pelo caráter científico do trabalho que ele está elaborando, num momento em que pouco se pensa nisso, salvo um pequeno grupo de pessoas mais esclarecidas que encaram o assunto como objeto de estudo aprofundado da alma coletiva brasileira. Após alguns comentários em que revela sua insatisfação com os rumos pouco brasileiros que vinha tomando a música tida como brasileira, o compositor Oswaldo de Souza volta ao tema principal de sua palestra e reproduz para o auditório as gravações que fez em sua residência: [...] Creio que será grande satisfação para os meus generosos ouvintes e constituirá uma autêntica novidade para todos nós aqui presentes, a demonstração que farei a seguir, das melodias cantadas por mestre Cascudo, gravações feitas por ocasião de uma das visitas que me fez. As melodias 257 registradas constituem para mim verdadeiras preciosidades, relíquias que jamais sairão dos meus arquivos. São apenas quatro documentos e constituem parte dos registros feitos por mim para o trabalho que ele está elaborando206. A palestra se encerra musicalmente, com a esposa de Cascudo cantando uma melodia folclórica, uma “Parlenda” (partitura n. 5): [...] Chegando ao termo desta despretensiosa palestra, antes de concluí-la quero render minha homenagem à dileta esposa do insigne mestre, – D. Dália, – de quem vamos ouvir uma “PARLENDA”, gravada por mim e que estou grafando para o trabalho de Mestre Cascudo a que me referi. Em outra ocasião, Cascudo fez singela apresentação de seu amigo Oswaldo de Souza, quando este e sua esposa Lourdes o visitaram no momento em que o escritor permaneceu internado em um hospital207. Curso brilhante na Escola Nacional de Música. Mais de cem composições, mais da terça parte gravada, impressa, e boa percentagem cantada em concertos pela Europa e América. Delegado da Diretoria do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional do Rio Grande do Norte, que visitou quase todo, examinando e sabendo o que é digno de conservar, como atestado vivo dos nossos antepassados. Vinte e três anos mais tarde – Cascudo já havia partido para a “grande viagem” (como ele se referia) –, Oswaldo recordava os distantes momentos de sessenta anos passados208: Papai costumava passar o inverno em Santa Cruz do Inharé. Em 1918 ou 19, coincidiu que Cascudo estava lá também, numa casa alugada, diante da 206 Oswaldo de Souza fez incluir na publicação de sua palestra as partituras das cinco melodias folclóricas que Cascudo gravara em sua residência: n. 1 – Bumba meu boi (Abertura); n. 2 – Congo (marcha); n. 3 – Toada de Chegança; n. 4 – Toada de Reis; n. 5 – Parlenda. 207 CASCUDO, Luís da Câmara. Pequeno manual do doente aprendiz (1969). 208 “Presença de Cascudo na lembrança de Oswaldo”. Entrevista de Oswaldo de Souza na Tribuna do Norte, Natal, 27/12/1987. 258 nossa. Nessa época não tínhamos intimidade a não ser aquela cerimoniosa, entre as nossas famílias. Cascudo costumava, então, dar audições musicais, fazendo suas próprias harmonizações sobre peças de Ernesto Nazareth, Marcelo Tupinambá e Eduardo Souto, autores de músicas muito em voga naqueles anos. Eu, de casa, ouvia tudo e ficava doido para ir pra casa dele, do outro lado da rua. Me surpreende até hoje que uma pessoa que não sabia música formal harmonizasse tão bem. A música era inata em Cascudo, eis a verdade... [...] eu tinha vontade de me aproximar dele, um rapaz elegante, de polainas e monóculo [...]. A reciprocidade de admiração e respeito pelo valor intelectual era uma constante nessa amizade. O grande traço de união era exatamente o amor e a dedicação à cultura popular brasileira no que havia de mais sensível: sua música e seu folclore. Alguns trechos de uma crônica de Cascudo ilustram bem tal admiração: [...] A colheita musical é bem difícil e perigosa. Difícil porque nem toda a gente escreve música. Perigosa porque nem todo pesquisador é fiel às linhas melódicas registradas. Bem poucos escapam às seduções modificadoras das solfas coletadas. Mesmo sem querer, enfeitam, completam, estragam, falsificam na doce intenção embelezadora. [...] Oswaldo de Souza é diplomado pela Escola Nacional de Música em 1932. Curso sereno, receptivo, anotador realmente útil. Sabe ouvir e escrever as melodias. Não colabora. Não completa. Não enfeita. Não modifica. Mesmo que não perceba a linha melódica na revelação do desenvolvimento temático, conserva-a taqualmente escutou. Pode se confiar na veracidade da informação, imóvel no pentagrama consagrador. Identifica cada informante com as possíveis minúcias. [...] Essa é a sua parte como pesquisador admirável e honesto 209. CASCUDO, Luís da Câmara. “Oswaldo de Souza e o folclore musical”. (Suplemento literário do Correio Brasiliense, 17 out. 1965; republicada na Tribuna Popular, Rio de Janeiro, 5/01/67). 209 259 4.4 CASCUDO, O VIOLÃO E A SERENATA O começo do século XX era a época do violão popular, acompanhador de cantores e instrumentistas ou como solista, tocado “de ouvido”, ainda isento da renovação erudita que se iniciava na Europa. O violão era presença indispensável nos saraus e serenatas. Muito se fala da relação Cascudo/piano e pouco se conhece sobre suas preferências pelo violão. É bem possível que, em suas crônicas, tenha se referido mais a esse instrumento, que não tocava, do que ao piano, que dominava. Não há dúvida de que o seu pai influenciou tanto em sua formação musical quanto na literária. Sertanejo, nascido em Campo Grande/RN, Francisco Justino de Oliveira Cascudo passou a infância e a adolescência no interior do estado e também da Paraíba, adquirindo hábitos e costumes locais, mas rapidamente se adaptando à vida urbana da capital, onde, depois de passagem pelo Batalhão de Segurança (Polícia Militar, entre 1892 e 1900), alcançou o oficialato. Seu destaque maior se dá quando, afastando-se da vida militar e se dedicando ao comércio (a partir de 1900), amealhou fortuna e ampliou seu prestígio. A aquisição do casarão, que transformaria na Vila Cascudo, local de festas e encontros culturais, indica seu bom gosto e, acima de tudo, o pensamento no futuro do filho, pois praticamente tudo o que fazia era em função dele. Na entrevista referida, Cascudo informa: [...] meu pai, que tocava violão. [...] havia um violão em casa, não meu, que eu sempre me dediquei ao piano. Mas nós tínhamos um violão por causa dos violeiros que apareciam. Um violão bom, como temos ainda. Na mesma ocasião, descreve uma visita ao seu pai de um conceituado violonista natalense, Heronides de França210: Eu entreguei o violão a ele e ele saiu-se com uma melodia linda... tirada da modinha que estava cantando. Fazia aquela melodia e depois contracantava. [...] Fiquei, sabe?... enlevado. Fiquei numa cadeira. Papai, que tocava violão, se limitava a olhar para mim. Não fazia mais nada; olhava para mim. E este episódio ficou na minha vida. Parece que eu estou vendo... pequenino, 210 Heronides Álvares de França nasceu em Natal, a 13/09/1860, e faleceu em Recife, em 03/04/1926. Ver GALVÃO, Claudio. A Modinha Norte-Rio-Grandense (2000). 260 grisalho, curvado, sempre olhando para os trastes, pro braço do violão. Era maravilhoso!211 Destaque-se, também, a conferência “Violão, voz da raça”, realizada por Cascudo no Teatro Carlos Gomes (atual Teatro Alberto Maranhão), a 19 de janeiro de 1920, em benefício das Escolas Operárias, do Centro Operário Natalense212. Um dos aspectos da vida da velha cidade que mais sensibilizou o jovem Cascudinho, marcando-o profundamente, foi sem dúvida a serenata. Entre os muitos motivos dessa afirmação, destaca-se o primeiro de seus artigos musicais, escrito aos vinte anos de idade: “A Decadência da Serenata”, publicado em A Imprensa, a 18 de dezembro de 1918, no qual já lamentava o declínio da antiga tradição: Desapareceu o grande berço de inspiração popular, a pátria dos violões, o mundo das canções e modinhas atiradas a plenos pulmões, sob a paz tranquila das noites de lua. Cascudo não foi presencialmente um seresteiro. A infância – doentia e cercada de muitas precauções – impunha-lhe restrições e proibições. Nunca mencionou sua presença em uma serenata. Diz ele na entrevista: Eu era filho único, muito cuidado, de maneira que minha mãe e meu pai não me deixavam seguir na serenata. Se ele não ia até a serenata, a serenata vinha até ele. Volta agora ao tema do prestígio do pai e à importância do ambiente cultural da “Vila Cascudo”: Eu era distinguido em nossa casa do Tirol, com o findar da serenata. A serenata ia amarrar lá em casa. Mesmo depois dos problemas financeiros que resultaram na perda da propriedade213 (o “Principado do Tirol”), onde viveu dos quinze aos trinta e quatro anos, os grupos seresteiros tornaram suas posteriores residências pontos de passagem obrigatórios das serenatas. O trecho seguinte ainda faz parte da entrevista que concedeu ao autor desta tese: Ao meio da manhã, aqui na [Avenida] Junqueira Aires214, os bondes descendo e eles la-la-la-la... [Cantarola] A cara mais... O que eu tenho 211 A repetição faz parte da fala oral de Câmara Cascudo. Texto publicado na Revista do Centro Polimatico, n. 2, agosto de 1920, comentado na parte referente às crônicas. Sobre as conferências como atividades intelectuais, inclusive com entrada paga, nas décadas iniciais do século XX, consultar: BRITO BROCA, José. Vida literária no Brasil – 1900 (2005). MACHADO NETO, A. L. Estrutura social da República das Letras (1973). 213 Cascudo se refere brevemente ao motivo da perda da Vila Cascudo no livro O tempo e eu (1968). 214 A Avenida Junqueira Aires é atualmente Avenida Luís da Câmara Cascudo. 212 261 certeza é que Renato Caldas215 estava no meio. Eles estavam fazendo serenata e depois das três começaram a encalhar em botecos, de maneira que o sol nasceu e eles: “E a serenata de Cascudo? Vamos pra casa de Cascudo!” [Ri] É o anedotário da serenata... cantar na porta de Cascudo às sete e meia da manhã. E eu, da varanda... [Faz gestos de “dar bananas”] Mas, acabavam entrando... eram todos íntimos... acabavam entrando e bebendo [Ri]. Cascudo faz também um curioso e bem-humorado comentário sobre os instrumentos componentes da serenata: Um instrumento muito sereneiro era a flauta. Requinta, clarinete, isso não aparecia. Era violão, cavaquinho. Homem não tocava bandolim; era instrumento de moça, de mulher. Eu não sei quem é que me dizia: o bandolim tem aquela coisa abaulada de bunda de mulher [Ri]. Abaulada... assim... você tem a vontade de passar a mão [Ri]216. Um fato relatado pelo próprio Cascudo217 reforça ainda mais sua vinculação à modinha e ao piano. Ocorreu durante uma viagem, em maio de 1935, a São Paulo, para participar do Congresso Nacional Algodoeiro, e ao Rio de Janeiro, na observação de problemas do ensino normal e primário218. Eu fui a um Congresso de algodão, no Rio de Janeiro 219 e estavam uns camaradas importantíssimos, sem dar bola para ninguém. Era o secretário de Armando Salles220, pessoal concentrado. Quando chegou a minha vez, eu apertei a mão dele e disse: “Muito prazer em conhecer o senhor pessoalmente. Seu pai foi governador na minha terra; deixou um grande nome. E mais que um grande nome, uma modinha que foi musicada lá e que ainda se canta”. Aí, acabou-se a pose do homem. Disse: “Qual é a 215 Renato Caldas foi boêmio, poeta e compositor. Nasceu em Açu/RN em 1º/10/1902, falecendo em 26/10/1991. 216 Entrevista de Câmara Cascudo concedida ao autor deste trabalho. 217 Entrevista de Câmara Cascudo concedida ao autor deste trabalho. 218 A República, 09/05/1935. 219 Diferente de sua informação, o evento se realizou em São Paulo, não no Rio de Janeiro. Durante a sua ausência, faleceu seu pai, coronel Francisco Cascudo. 220 Governador de São Paulo na época. 262 modinha?” Aí, ele deixou o resto do povo... eu disse: “As Andorinhas”. E ele: “Professor, o senhor poderia jantar conosco hoje?” À noite estava eu no jantar dele, cantando a modinha e acompanhando ao piano. E a modinha é deliciosa! Aí, juntaram toda a família para ouvirem “a poesia de papai”. E os governadores de Estado e Secretários que tinham ido para o congresso não tiveram nem a metade do meu prestígio; era a modinha [Ri]. E o meu prestígio era a modinha! [Ri]. E o hábito, naquele tempo de cantar acompanhando ao piano. Uma modinha em sol maior, com todas as falsas e relativas, compreendeu? Não houve bola para ninguém. Nas reuniões, quando eu chegava, iam logo me buscar para um lugar melhor [Ri]. Por causa da modinha! [Ri]. Não foi cultura nem nada. Não era nada para eles, secretários de estado e tudo o mais. Mas a modinha entrou e acabou-se. Modinha de... eu já me lembro desse camarada... grande figura da política paulista...221 Em janeiro de 1920, apresentou-se em Natal o famoso violonista brasileiro Américo Jacomino, mais conhecido por Canhoto, acompanhado também ao violão por Luis Buono. Compositor de renome e solista festejado, Canhoto tocou nos dias 22, 23 e 24, no cinema Polytheama; a 26 e 27, no Royal-Cinema; e a 1º de fevereiro, no Teatro Carlos Gomes, participando do “Festival Artístico-Literário de Luís da Câmara Cascudo”. Naquela oportunidade, Cascudo apresentou uma conferência de vinte e cinco minutos sobre o violão. (A República, 02/02/1920). O poeta Jaime dos Guimarães Wanderley relata um fato que confirma o estreito relacionamento de Cascudo com o violão222. Depois de realizada a sua temporada no Teatro Carlos Gomes, no dia imediato, Câmara Cascudo foi ao Hotel Internacional, onde o artista se achava hospedado, em companhia de Luis Buono, e os conduziu à Vila Cascudo, onde os enclausurou durante dez dias. De pronto o “Príncipe” reuniu todos os membros do “Principado” que ficou em ação permanente, 221 Era Joaquim Xavier da Silveira Júnior, governador nomeado do Rio Grande do Norte, com mandato no período de 10 de março a 19 de setembro de 1890. 222 WANDERLEY, Jaime. “O príncipe do Tirol” (1998). 263 durante os dias de hospedagem de Canhoto, sendo nesse período realizadas noitadas de arte e poesia. Em seguida, descreve um curioso momento de boemia em que a serenata era o motivo principal: [...] enchíamos o “fordzinho” de cerveja, conhaque e vermute e desembestávamos pelas ruas em procura da residência das namoradas, que dormiam. Ouvindo a serenata as portas logo se abriam, para receber na intimidade da família homenageada, os boêmios. Que ditosa donzela natalense teria acordado com uma serenata ao som de “Abismo de rosas”, executada pelo próprio Canhoto?!223 O poeta Jaime dos Guimarães Wanderley continua sua história: [...] Antes do regresso de Jacomino Canhoto, Câmara Cascudo, propositando demonstrar-lhe o agrado com que a cidade o acolheu, reuniu, no “Principado”, 37 violonistas, num grande almoço de confraternização e cordialidade. Nesse adjunto artístico, a pedido do “Príncipe”, Canhoto iria selecionar, entre os presentes, o melhor violonista da cidade, aquele que demonstrasse maior técnica e destreza. Depois de observar a execução dos solistas e de executar o ritmo dos conjuntos, o mestre declarou sem reserva, o melhor violonista: Luís, um rapaz modesto, de família humilde, mas conhecedor dos segredos do instrumento. Canhoto despediu-se nesta tarde224. Em prosseguimento, o autor fornece mais informações sobre Cascudo e o violão: Jacomino Canhoto não foi o único artista a estar presente no “Principado” do Tirol. Outros passearam talento e cultura entre as paredes da suntuosa biblioteca e dos salões de serestas. Realizando, certa vez, uma grandiosa “tourné” pelo Brasil, o violonista Agustín, considerado o maior sexacordista do 223 O compositor paulistano Américo Jacomino (Canhoto) nasceu em 12/02/1889, falecendo em 07/09/1928. “Abismo de rosas”, valsa considerada um clássico do violão brasileiro, foi gravada em 1917, com o nome “Acordes do violão”, grande sucesso com o novo título, em 1925. 224 WANDERLEY, Jaime do Guimarães. “O príncipe do Tirol” (1998). 264 mundo, depois de Josefina Robledo, recebeu expressiva homenagem no “Principado do Tirol”, durante um banquete, que lhe foi oferecido pelo “Príncipe”. Ao champagne foi-lhe conferida uma medalha de ouro, “lembrança dos violonistas da cidade do Natal”, saudando-o na oportunidade Cascudinho. O próprio Cascudo tem um fato curioso para contar, envolvendo o violonista paulista: Américo Giacomino [Jacomino] o Canhoto, grande violão brasileiro, e o acompanhador Luís Buono, visitaram Natal em janeiro de 1920, quando eu possuía um automóvel, jornal e 22 anos. Lamentei não haver registrado o nome de um seu amigo morto cujo fantasma acompanhava, cordialmente, o artista. Rodávamos depois das exibições e inopinadamente Canhoto interpelava Buono: – “Viu? É ele mesmo! Atravessou a rua!”225 Agora, citando seu artigo da obra Luís da Câmara Cascudo: depoimentos (p. 24), Waldemar de Almeida confirma, com mais um fato, o relacionamento de Câmara Cascudo com o violão: Agostinho [Agustín] Barrios, o célebre violonista índio, tocou muitos solos acompanhados por Luís da Câmara Cascudo. No trecho acima, Waldemar está se referindo ao célebre violonista paraguaio que esteve em Natal em 1931, realizando dois concertos no Teatro Carlos Gomes, a 28 e 30 de março. Chegando à cidade a 21, já no dia seguinte, Cascudo o acompanhava em uma visita ao jornal A República, recebendo um convite para uma audição dedicada à imprensa, que se realizou na residência de Waldemar de Almeida. No dia 29, ainda na casa de Waldemar de Almeida, os poetas e artistas da cidade prestaram homenagem a Agustín Barrios. Entre muitas manifestações, destacou-se a entrega ao músico de um arco e uma flecha ornamentada com flores naturais pelo menino Orianne (depois Oriano) de Almeida, seguida de entusiasmada saudação em improviso por Cascudo e entrega de uma medalha pela mãe de Waldemar, senhora Corinta de Almeida. Conforme o noticiário do jornal A República (31/03/1932), Barrios agradeceu emocionado. 225 CASCUDO, Luís da Câmara. Religião no povo (1974). 265 Encerrando suas apresentações em Natal, Agustín Barrios realizou um festival de despedidas no dia 30, com a participação de Câmara Cascudo. Muitos anos depois, mais um acontecimento confirma que, apesar do tempo decorrido, Cascudo continuava o mesmo admirador do violão. Estava presente em uma apresentação do violonista espanhol Narciso Yepes, em recital no Teatro Carlos Gomes, realizado a 30 de julho de 1957 e promovido pelo Instituto Brasileiro de Cultura Hispânica e pelo Clube do Violão do Rio Grande do Norte. Dias após, o presidente do Clube do Violão, senhor Arnaldo Pires, procurou o autor deste trabalho (então estudante de violão e integrante do citado clube) para comunicar que Cascudo lhe havia telefonado “solicitando” uma audição exclusiva com o pessoal da instituição. Na noite aprazada, todos tocaram para ele. Sobre uma música executada (“Recuerdos de la Alhambra”, de Francisco Tarrega), o único ouvinte da plateia (Cascudo) comparou as interpretações do concertista e do autor desta tese, comentando detalhes da execução da peça. O violão, entretanto, parece ser o instrumento de seu passado, remetendo-o sempre a uma época que foi muito sua: [...] foi um tempo em que tocar violão... Veja que quadrinha deliciosa: “Quem ama, para dar prova / Deve três coisas cumprir: / Tocar violão, fazer trova / E havendo luar, não dormir” [Ri]. Não é uma maravilha?226 Aos descrever alguns de seus personagens, Cascudo, destacando suas ligações musicais, denomina-os de melômanos. Waldemar de Almeida, em sua já citada crônica227, comenta fato acontecido na época em que Cascudo era diretor da imprensa, colocando-o na mesma qualificação: Sua mania musical fez com que, quando diretor do órgão oficial “A República”, isto há mais ou menos quinze anos, quando em Natal ninguém podia imaginar sequer a possibilidade de Estação Radiofônica, instalasse no seu gabinete um serviço de transmissão musical pelo telefone e às onze horas, meia noite e mais tarde ainda, para fugir às canseiras das responsabilidades, pedia pelo telefone que lhe tocassem Bach, só Bach; o João Sebastião Bach das Tocatas e das Fugas. Todo Natal dormia e a música do Taumaturgo partia pelo fio telefônico para a redação do jornal. 226 227 Entrevista concedida ao autor desta pesquisa. ALMEIDA, Waldemar. “Luís da Câmara Cascudo no meio da música” (1947, p. 24-25). 266 4.5 CASCUDO E AS INSTITUIÇÕES MUSICAIS Desde o início de suas produções intelectuais, Câmara Cascudo estimulou e apoiou atividades musicais diversas, como a criação e manutenção de instituições musicais. 4.5.1 “Musicalerias” e o Grêmio Feminino de Natal No jornal A República, foram publicadas as oito crônicas com o título “Musicalerias” (I a VIII, de 1928 a 1933), as quais, como o nome sugere, eram dedicadas a assuntos musicais. A primeira da série (“Musicalerias I”, A República, 01/06/1928) traz o subtítulo “A ideia do professor Thomaz Babini” e descreve a conversa que teve com o violoncelista italiano residente em Natal, realizada na redação do jornal A República. O tema da conversa era a formação de um Centro Musical Feminino que reúna não somente as alunas do curso Babini, mas outros elementos que desejem participar neste trabalho de arte e de bondade artística. Não deixa de ser curiosa a evidência de uma discriminação da presença masculina em atividades artísticas quando o cronista explicita: “Convidamos as senhoras e senhoritas que se interessem pela música”. (grifo do autor)228. A “Musicalerias II”, publicada um ano após a primeira (A República, 14/06/1929), é um momento de euforia pelo progresso e modernidade da cidade, em que se faz uma pergunta pertinente: Mas por que será que este impulso não chega até a música? Mais adiante, relata: Não há em toda uma cidade de quarenta mil habitantes um só núcleo de amadores musicais. Diante disso, começava a cobrança: Por que não se fará um Círculo de Cultura Musical? As crônicas “Musicalerias III – Igor Strawinsky” (A República, 05/09/1929 – comentário sobre o balé “Petrouchka”) e “Musicalerias IV” (A República 16/10/1929 – diálogo com Mário de Andrade sobre folclore) afastam-se do tema em exame, a participação de Câmara Cascudo nos empreendimentos musicais locais, embora evidenciem a afirmação local de uma atualizada informação musical cosmopolita. Em “Musicalerias V” (A República, 23/10/1929), pela primeira vez, é abordado o nome do musicista erudito de origem local, Waldemar de Almeida, que passaria a 228 Tudo indica que essa discriminação se verificava apenas no campo do piano. Dizia-se: Piano não era instrumento de homem! Muitas instituições musicais anteriores foram compostas principalmente por homens, sem falar nas bandas de música. 267 liderar os empreendimentos musicais da cidade, sempre com o apoio e a participação direta de Cascudo. A “Musicalerias VI” (A República, 13/11/1929) traz a boa notícia da primeira audição do Grêmio Feminino de Natal. Fundado dia 24 de agosto de 1929, seria administrado por Thomas Babini, como diretor técnico, e por Luís da Câmara Cascudo, diretor artístico. A gestação da instituição durou um ano e dois meses, a contar da reunião comentada na “Musicalerias I”. O evento se realizou no Salão Nobre do Palácio do Governo e, como era de se esperar, as executantes eram mulheres. O início da quebra do preconceito e a participação de homens entre os musicistas devem-se a Waldemar de Almeida. O Grêmio Feminino de Natal foi a primeira vitória, o primeiro passo dado graças ao estímulo de Cascudo. A 21 de abril de 1930, realizava-se a primeira apresentação pública dos alunos do Curso Waldemar de Almeida. Esse pianista, que retornava de cursos em Rio de Janeiro, França e Alemanha, portando respeitável bagagem musical, iniciava um memorável trabalho pedagógico que haveria de sustentar até 1950. Para essa e outras iniciativas de sua parte, Câmara Cascudo proporcionou sempre seu apoio, como mostra na crônica “Musicalerias VII” (A República, 26/04/1930), que tem como subtítulo “Curso Waldemar de Almeida”. A 21 de fevereiro de 1933, o violinista paulistano Raul Laranjeiras realizou um recital em sala do Grupo Escolar Antônio de Souza. A “Musicalerias VIII” (A República, 24/02/1933), última da série, informa, como registro especial, que o recitalista teve como acompanhador o futuro pianista Oriano de Almeida, na ocasião com apenas 11 anos de idade. 4.5.2 O Instituto de Música do Rio Grande do Norte A 26 de novembro de 1933, na sede do Departamento de Educação229 e a convite de seu titular, professor Severino Bezerra de Melo, reunia-se uma comissão com o objetivo de discutir a fundação de um conservatório de música em Natal. Entre os presentes, encontravam-se Waldemar de Almeida e Luís da Câmara Cascudo, 229 Os Departamentos de Educação exerciam na época o papel das atuais Secretarias de Educação e Cultura ou Fundações Culturais. 268 incumbidos da tarefa de elaboração dos estatutos. A 2 de dezembro, estava concluída a missão, e o anteprojeto dos estatutos foi enviado ao então Interventor Federal230. A 31 de janeiro de 1933, o Interventor Federal Bertino Dutra assinava o Decreto n. 435, atendendo à reivindicação dos intelectuais da cidade. Passando a funcionar já no primeiro semestre daquele ano, teve como professores Waldemar de Almeida (piano e diretor) e Luís da Câmara Cascudo (História da Música). A título de curiosidade, segue o programa da disciplina231: Programa do primeiro ano de História da Música. 1º - Música. Definição, divisão, elementos, gêneros, espécies. Origem. 2º - Evolução. Ritmo e Som. História do Canto Primitivo. Fonte divina do Canto. Euterpe. Apolo. Orfeu, Anfião. Os “nomoi” gregos e os “rags” indianos. As “linhas” da pagelança. Etimologia. 3º - Voz. Divisão e elementos. Solos e coros. O canto coral primitivo. O domínio do Ritmo. 4º - Instrumentos e sua classificação. Instrumentos musicais no Egito, Judéia, China, Índia, Grécia e Roma. 5º - Características da música grega. 6º - História da escrita musical. A pauta. As Claves. Os acidentes. As notas. 7º - Música cristã. Canto-chão ou Gregoriano. Música popular. Tipos. 8º - A influência de Palestrina (1525-1594). A era dos Bardos, Trovadores e Menestréis. 9º - Aspecto musical do século XVI. A Canção. Progressos musicais. Oratórios. Melodramas. Monteverdi (1567-1643). 10º - A influência da Reforma religiosa e da Contra-Reforma. O Coral protestante. A ópera. O Concerto. 11º - Romance e Madrigal. Ação de Lully (1632-1687). O teatro. 12º - Sonata, Suite e Tocata. A orquestra. Corelli (1652-1713). Scarlatti (1685-1757). 13º - Jorge Frederico Haendel (1685-1739). 14º - João Sebastião Bach (1685-1750). 230 Durante o período que se seguiu à Revolução de 1930, os governadores dos estados passaram a se denominar Interventores Federais. 231 A República, 11/03/1933. 269 15º - Música teatral do século XVIII. Rameau (1683-1764). Gluck (17141787). 16º - Conceito do classicismo musical. Comentários. 17º - Haydn (1732-1809). 18º - Mozart (1756-1794). 19º - O Classicismo Romântico. 20º - Luís van Beethoven (1770-1827). Luís da Câmara Cascudo – Professor. Livro recomendado: Compêndio de História da Música – Mário de Andrade. Edição L. Chiarato. São Paulo. Em janeiro de 1938, matricularam-se 145 alunos no curso de História da Música. Na parte referente à correspondência com Mário de Andrade, são encontradas informações de Cascudo a dois anos de curso, respectivamente no 8º e 9º anos do curso do Instituto232. 30 de outubro 1936 foi um momento muito especial para o Instituto de Música, quando se realizou a apresentação dos primeiros alunos a terminarem seus cursos. Na oportunidade, foram inauguradas quatro novas salas no Instituto, que tiveram como patronos Waldemar de Almeida, Audifax Azevedo233, Luís da Câmara Cascudo e Mário de Andrade. A 10 de julho de 1948, o Instituto de Música anunciava uma novidade que certamente muito alegrou Cascudo: tomava posse da cadeira de violão erudito, recentemente criada, o violonista Amaro Siqueira, em solenidade com a presença do diretor da escola, o próprio Cascudo e muitos cultores do violão. Salvo informação contrária, esse foi o primeiro curso regular de violão erudito a ser implantado por uma instituição oficial no Nordeste do Brasil. Dois meses antes, Cascudo já tratara do estudo do violão erudito, lamentava a inexistência de estudos regulares do instrumento em Natal, fazia insinuações e cobranças na crônica “Gosta de Violão?”. Estava satisfeita sua vontade234. A mudança de residência de Waldemar de Almeida para o Recife causou problemas ao Instituto de Música que, em 1952, iniciava seu retorno à atividade. A 10 232 Carta de Cascudo a Mário de Andrade (13 de março de 1933): Tenho 35 alunos. No 2º e 3º anos de História da Música. (8º e 9º anos do Instituto). 233 Amigo de Waldemar de Almeida durante os estudos do pianista em Paris. 234 “Gosta de Violão?” (“Acta Diurna”, A República, 19/05/1948). 270 de março reiniciaram-se as aulas garantindo-se a prticipação de Cascudo como professor de História da Música. Três eventos posteriores contaram com a presença de Câmara Cascudo. A 2 de abril 1952, no salão de honra da Escola Industrial, ministrou a aula inaugural do ano letivo. A 22 de maio, no mesmo local, Cascudo deu uma aula pública de seu curso de História da Música com o título “Início da música profana, século XI”, contando com ilustrações da renomada violonista argentina Maria Luiza Anido, que se apresentava em Natal na ocasião. Finalmente, no dia 29, ministrou mais uma aula extra do curso de História da Música, dessa vez no auditório do Centro Social da Divina Providência, ilustrada pelo soprano lírico Eunice Silva da Cunha Lima, cujo tema era o canto. Em 10 de junho, a referida professora apresentou um recital de seus alunos. Cascudo estava presente com sua palavra como sempre arrebatada, prestando seu apoio e incentivo. Seu testemunho sobre o tempo em que exerceu atividade de professor de História da Música provoca algumas dúvidas. Teriam sido mais de dez anos, conforme está na crônica “O Instituto de Música viverá”: Mais de dez anos fui balbuciante professor de História da Música235. Ou então: Fui mais de vinte anos professor de História da Música [...], como escreveu em “O Primeiro do mundo”236. Na entrevista que concedeu ao autor, Cascudo diz: Eu fui 25 anos professor de História da Música no Instituto de Música. Já em Ontem (1972), livro de memórias, informa que ensinou História da Música no Instituto de Música do Rio Grande do Norte, sem mencionar por quanto tempo237. 4.5.3 Cascudo e a Sociedade de Cultura Musical A Sociedade de Cultura Musical surgiu em 1932. Já naquele tempo, firmara-se a amizade e a colaboração entre Cascudo e o pianista Waldemar de Almeida. Foi deste último a iniciativa, mas a participação do amigo e conselheiro seria constante. Fundada a 4 de junho, no momento da 14a audição de alunos do Curso Waldemar de Almeida, a diretoria, com mandato de dois anos, teve o Bispo Dom Marcolino Dantas escolhido como presidente. Os dois primeiros anos da sociedade não apresentaram quase nada de concreto. Em 1934, Cascudo publicou a crônica “Sociedade de Cultura Musical”, na qual faz um longo comentário sobre a instituição, destacando a atividade de Waldemar de Almeida. “O Instituto de Música viverá” (“Acta Diurna”, Diário de Natal, 26/03/52). “O Primeiro do mundo” (“Acta Diurna”, A República, 30/03/60). 237 Não há documentos sobre o assunto no Acervo Ludovicus – Instituto Câmara Cascudo. 235 236 271 Na eleição da diretoria, Cascudo é escolhido o segundo vice-presidente e Waldemar o diretor técnico. Em 1936, foi eleito presidente da instituição. Em 1948, em nova fase de atividades na instituição, Cascudo é homenageado como componente do Conselho de Honra, recebendo, em 1949, o título do sócio honorário. Outro fato ilustra um pouco mais a versatilidade de atividades de Cascudo e sua presença em variadas situações: a 22 de março de 1932, chegava a Natal o conjunto musical Tuna Acadêmica Pernambucana. No cais do porto, havia muita gente saudando, a Banda de Música do Regimento Policial Militar tocando vibrantes dobrados e o discurso inflamado de Luís da Câmara Cascudo em nome da classe estudantil. A direção da orquestra estava a cargo de Vicente de Andrade Lima, macaibense, trompetista do conjunto e estudante de medicina em Recife238. 4.5.4 Revista Som Em julho de 1936, Waldemar de Almeida tem mais uma iniciativa. Apoiado por um grupo de amigos, entre eles Câmara Cascudo, criou a revista Som, órgão da Sociedade de Cultura Musical do Rio Grande do Norte. “Marginália – Sobre Mignone” e “Modinhas e Modinheiros de Natal” foram as colaborações de Cascudo para o primeiro número, sendo ali publicadas muitas de suas crônicas. Suspensa a sua circulação desde o ano de 1940, retornava à circulação com o n. 14, em 1947. Essa segunda fase estava sob a responsabilidade de Luís da Câmara Cascudo, como diretor. O idealismo de Waldemar de Almeida, apoiado por Luís da Câmara Cascudo e Gumercindo Saraiva, mantinha viva a revista Som, um dos únicos periódicos brasileiros que, à época, eram dedicados somente à música. A 15 de outubro de 1948, saía o n. 18, não se tendo mais notícia do belo empreendimento. 4.5.5 Cascudo e o início da radiodifusão no Rio Grande do Norte A ideia começa a se esboçar em 1935, quando um grupo de sonhadores tentou organizar a Rádio Clube de Natal, participando Cascudo do Conselho Deliberativo. Fracassado o projeto, fundava-se em janeiro de 1939 uma nova empresa de radiodifusão em que consta seu nome como diretor cultural. Um passo decisivo foi dado com a fundação, a 4 de março de 1940, da Sociedade Anônima Rádio Educadora de Natal S.A., em que Cascudo participava como diretor cultural. Inaugura-se, dia 26 de janeiro Sobre ele escreveu Cascudo: “O grande Vicente Andrade” (“Acta Diurna”, Diário de Natal, 18/4/1949). Veja também GALVÃO, Claudio. Música e músicos do Rio do Norte (em preparo). 238 272 de 1941, a torre de transmissão da emissora, com discurso congratulatório de Cascudo. Finalmente, inaugura-se a Rádio Educadora de Natal, a 30 de novembro desse ano, com Cascudo colaborando e até participando de programas. Assim aconteceu quando, a 22 de outubro daquele ano, integrou, juntamente com Aderbal de França (cronista), Waldemar de Almeida e Maurilo Lira (pianistas), a comissão julgadora que escolheu a primeira cantora para o cast da emissora. 4.5.6 Cascudo e uma orquestra para Natal Orquestras nunca foram o ponto forte da música em Natal. Tímidos e passageiros momentos ocorreram desde o “Club Carlos Gomes” (1892), do segundo governo Alberto Maranhão (1908-1914), com a orquestra organizada durante as festividades do centenário da Independência do Brasil (1922) e as apresentações da orquestra da Sociedade Artístico-Musical (1935-1936), os quais são os exemplos mais antigos239. Recife, cidade maior e portadora de diversos recursos, já possuía sua orquestra sinfônica desde 1930. A vizinha João Pessoa criou sua orquestra sinfônica a 4 de novembro de 1945 e estreava no ano seguinte, sob a regência do maestro potiguar Francisco Picado. Natal continuava com seus pianistas e estudantes de outros instrumentos, sempre amadores e sem perspectiva profissional, exportando valores para outros estados. O espírito melômano de Câmara Cascudo não podia deixar de se incomodar com tal situação. Assim, quatro anos após a criação da Orquestra Sinfônica da Paraíba, começava a batalha com a crônica “Uma Orquestra para Natal”, em que Cascudo deplora a situação e cita o exemplo dos estados vizinhos. Deixo ficar o apelo. Um apelo que servirá de teste aos nossos amadores e semi-profissionais, disse ele, tentando acender as esperanças240. A 3 de março de 1950, Cascudo realiza mais uma investida no projeto da orquestra natalense com a publicação da crônica “Para uma Orquestra de Amadores”. Baseia-se no fato de que Natal havia produzido pianistas de bom nível, mas continuava sem uma orquestra. Enfatiza o trabalho de Waldemar de Almeida e o feliz resultado de seus cursos de piano, que bem poderiam antecipar um trabalho de formação orquestral. Estamos precisando de Waldemar de Almeida para o nascimento e para a conservação 239 240 GALVÃO Claudio. História da Música no RN (v. 1, em preparo). “Acta Diurna” (A República, 8/11/1945). 273 de um pequeno núcleo de orquestra, semente da futura orquestra sinfônica, constituído de amadores241. Cascudo noticia um auspicioso evento da Sociedade de Cultura Musical: a inauguração de sua sede social e a posse da nova diretoria. Ele próprio recebeu, entre outros, o título de sócio honorário da instituição. À noite, no Teatro Carlos Gomes, ocorreu recital com inauguração de seu piano de cauda e, na segunda parte, a primeira apresentação da orquestra da instituição, velho sonho que o cronista via realizado. É sobre esse tema que trata em “Uma Nota de Música” (A República, 4/08/1950): um momento de vitória e comemorações pelos pequenos êxitos, tão presumivelmente grandes para o momento que vivia. Na verdade, o projeto de Cascudo não incluía uma visão empresarial moderna nem a possibilidade de a iniciativa ser encampada pelos poderes públicos. O material humano que sempre admitiu eram os amadores da cidade, diletantes e descomprometidos, não vinculados a compromissos profissionais disciplinadores e permanentes. As orquestras de amadores sempre tiveram breve sobrevivência, como era de se esperar e como faziam prever as experiências anteriores. 4.6 CÂMARA CASCUDO EM DIVERSAS OCASIÕES O prestígio do nome de Câmara Cascudo era a garantia do êxito e da credibilidade dos empreendimentos a que estivesse vinculado. Sua presença em eventos da mais variada natureza confirmam a sua versatilidade, e o que em seguida se descreve são apenas exemplos de popularidade. Em 1930, criou-se um conjunto de música popular intitulado Alma do Norte. No dia 18 de dezembro desse mesmo ano, iniciou suas atividades com uma grande festa no Teatro Carlos Gomes. Na ocasião, Câmara Cascudo falou sobre as nossas modinhas. Em 1931, participava da diretoria como diretor artístico. Na diretoria para o biênio 1932-1933, colaborou como orador. Em seu aniversário do ano de 1933, foi homenageado com uma serenata realizada pelo grupo. Em 1948, criou a Universidade Popular, uma instituição que se constituía na apresentação de aulas públicas a cargo de renomados intelectuais. Não possuía sede, cursos ou currículos. Criada a 1o de maio de 1948, teve sua 20a e última conferência a 241 “Para uma Orquestra de Amadores” (“Acta Diurna”, Diário de Natal, 03/03/1950). 274 20 de outubro do mesmo ano. A 11 de agosto, foi a vez de Cascudo ministrar sua aula, que versou sobre o canto gregoriano, contando com ilustrações musicais a cargo da Schola Cantorum Salesiana de Natal. A 26 de setembro de 1948, fundava-se o Clube do Violão do Rio Grande do Norte. Foram aclamados os nomes que haveriam de compor o seu quadro de honra que constou, entre outros, do pianista Waldemar de Almeida e do escritor Luís da Câmara Cascudo. Como se pode concluir dos resumos das crônicas cascudianas aqui comentadas, numerosos são os escritos em que o autor se preocupa com a divulgação do musicista local e tenta destacá-lo em meio aos valores vindos de outros estados. Como exemplo, considere-se a crônica “Já ouviu os Carolinos?”, em que acentua as virtudes do duo de violonistas potiguares, enfatizando, além da técnica e das excentricidades do conjunto, o conteúdo regionalista de seu repertório. Considere-se o sentido dessas observações feitas em 1932, ainda em plena repercussão da eclosão do Modernismo brasileiro242. Na ocasião das homenagens prestadas em Natal ao compositor Carlos Gomes por seu primeiro centenário de nascimento, Câmara Cascudo, professor de História do Ateneu Norte-Rio-Grandense (colégio estadual), apresentou, no dia 9 de julho de 1936, uma conferência no Teatro Carlos Gomes, focalizando a vida e a obra do grande musicista brasileiro. A 31 de julho de 1949, a Sociedade de Cultura Musical homenageou a memória do musicista norte-rio-grandense Paulino Chaves, professor da Escola Nacional de Música e membro efetivo da Academia Brasileira de Música, falecido um ano antes. Na solenidade em frente à casa onde nasceu o homenageado, momento em que se fixou uma placa comemorativa, nada mais apropriado que a palavra de Câmara Cascudo evocando a vida e a obra do musicista. Com a transferência de Waldemar de Almeida de Natal para Recife, em 1950, o Instituto de Música do RN teve acentuada a decadência que já se verificava. Diversos de seus professores empreenderam um movimento objetivando fazer ressurgir a instituição. O Instituto voltou às atividades em 1952. Entre as promoções que realizou naquele ano, está a comemoração do centenário do compositor brasileiro Henrique Oswald, a 14 de abril, no auditório da Escola Doméstica de Natal, que constou de uma conferência 242 “Já ouviu os Carolinos?” (A República, 30/10/1932). 275 ilustrada apresentada por Cascudo, com a execução de obras do compositor por pianistas da cidade. Pela primeira vez Natal viu e ouviu um recital de alaúde quando, em 7 de outubro de 1955, apresentou-se no Teatro Alberto Maranhão o musicista árabe Tanos Baaklini, numa promoção do Consulado do Líbano do RN e do Clube do Violão. Antes da parte musical, Câmara Cascudo saudou o recitalista e deu uma aula sobre o alaúde e sua música. Foram incontáveis as oportunidades em que o escritor foi convidado e compareceu a eventos como esse, o que comprova sua popularidade e disponibilidade pessoal. O pesquisador Gumercindo Saraiva foi o primeiro a, considerando a atividade musical do escritor, atribuir-lhe o título de musicólogo, ainda não usado pelos estudiosos da obra cascudiana. Em 1969, publicou a obra Câmara Cascudo, musicólogo desconhecido243. Consta a publicação (146 páginas) de uma pequena apreciação biográfica (página 9 a 23). O restante do volume traz crônicas musicais de Cascudo, o qual é pequeno, considerando-se o quanto escreveu sobre o assunto. Deve-se a ele o pioneirismo da atribuição do título de musicólogo, como também o de lançar seu trabalho em forma de livro, ultrapassando os que escreveram sobre o tema apenas na forma de artigos. 4.6.1 Cascudo, Waldemar de Almeida e as modinhas Em diversas ocasiões, Câmara Cascudo demonstrou sua forte ligação sentimental com a música popular brasileira na forma característica da época em que viveu sua mocidade: a modinha, especialmente em sua versão seresteira (tema muitas vezes abordado neste trabalho). O curioso relato a seguir dá a dimensão de sua sensibilidade para com o assunto: reporta-se à sugestão que deu para ser posta em prática durante as solenidades do centenário de nascimento do ex-governador Pedro Velho de Albuquerque Maranhão (1957): Qual é o governador nosso que canta modinha, hein Claudio? Que faz acompanhamento? De maneira que a coisa é tão séria que em 56, no centenário de Pedro Velho, de quem eu tenho a alegria de ter escrito a biografia... era amicíssimo de meu pai, me lembrei, coisa que só sereneiro 243 SARAIVA, Gumercindo. Câmara Cascudo, musicólogo desconhecido (1969). 276 tem essas idéias. Foi um escândalo, não foi possível. Quebrava a majestade do centenário: eu queria botar uns violões em Palácio e um dos nossos sereneiros cantar a modinha de Pedro Velho, na hora em que eu estivesse falando. Quando eu evocasse Pedro Velho cantando a modinha preferida dele, entravam os violões. Eu achava de um efeito lindo. Ninguém votou comigo. Inúmeras vezes, ele manifestou sua preocupação com a manutenção de tão importante memória cultural através do registro escrito dessa forma que, naquela ocasião, era essencialmente oral. Mesmo sem dispor de dados concretos, o escritor já divisava a importância da cidade de Natal como produtora de poemas e melodias que enriqueciam seus saraus e serenatas. No momento que julgou indicado, partiu para a ação, encarregando a pessoa que acreditava ser a mais indicada para realizar o trabalho de coleta e registro musical: o pianista Waldemar de Almeida. Além dos contatos pessoais certamente mantidos, usou a imprensa como meio ideal para manter o público conhecendo o que estava sendo feito e, provavelmente, como elemento para comprometer ainda mais o executor da missão, pela divulgação e pelo estímulo ao seu trabalho. Essa nova ação teve início em princípios de 1940, com a publicação da crônica “Nossas Modinhas”244. O maestro Waldemar de Almeida está fazendo uma obra de caridade, diz Cascudo no início do texto. O musicista já havia começado o trabalho de coleta e grafia musical das modinhas norte-rio-grandenses. Waldemar de Almeida nota a nota está salvando da morte inevitável um dos nossos tesouros de melodia seresteira e de recordação saudosa. O detalhe importante que se evidenciava era: A música das nossas modinhas, em sua maior porcentagem, foi escrita no Rio Grande do Norte. Raras vieram de fora. Como estímulo, cita o exemplo de Mário de Andrade ao publicar Modinhas imperiais245. Voltando ao tema das modinhas com a “Acta Diurna” “Waldemar de Almeida e as modinhas”, Cascudo enfatiza a importância do trabalho de coleta e grafia musical das velhas canções potiguares, iniciado pelo musicista246. Nesse escrito, apresenta as características da modinha, sua história e os instrumentos que a acompanham. Evoca 244 “Nossas Modinhas” (“Acta Diurna”, A República, Natal, 29/03/1940). ANDRADE, Mário. Modinhas imperiais (1930). 246 “Acta Diurna”, “Waldemar de Almeida e as modinhas” (A República, 18/04/1940). 245 277 sua evolução no tempo, pois pertencia aos salões e à produção mental superior, literatizada, feita por poeta sabedor de ritmos, e seguro nas rimas certas. Continua a estimular o trabalho iniciado: Não se tome por mera curiosidade, passa-tempo de professor de piano, divertimento de compositor, tantas horas doadas a uma tarefa que parece singela porque é musical. Não julguem que a simplicidade das modinhas é equivalente à sua grafação. Waldemar de Almeida sabe que as coisas mais diabolicamente difíceis são as mais fáceis, claras e convidativas... Uma semana depois, voltava com a crônica “Acompanhamento de Modinha”247. Lamenta o desaparecimento dos acompanhadores do passado, que desempenhavam tão importante papel na execução desse tipo de canção, acompanhada tanto ao piano quanto ao violão. Refere-se a alguns membros da família Albuquerque Maranhão, chefes políticos prestigiados, a elite socioeconômica do estado, que também se destacavam pelo gosto pela modinha e pelo acompanhamento. Ao encerrar a crônica, volta a incentivar Waldemar de Almeida, que está salvando as modinhas, a ouvir alguns cantores do passado, que muito podem contribuir para seu trabalho de recuperação musical. A crônica “Fala Waldemar de Almeida”, publicada dias depois desta última248, é o documento básico para a compreensão da gênese do processo que agora se comenta. Até o momento, Cascudo creditava a Waldemar de Almeida a iniciativa de realizar o trabalho de coleta e grafia musical das antigas modinhas de autor local, reservando-se o papel de mero estimulador. Recebendo uma carta do musicista, não teve outra solução senão publicar o texto integral do documento. Diante disso, o pesquisador se mostra na obrigação de revelar: [...] por ninguém saber que, se vibrei a primeira picareta no túmulo em que dormem esquecidas as nossas modinhas, foi a “mando” teu que, neste caso, és o benemérito administrador do cemitério onde dormem “É belo ver dormir a natureza”, “Perdão, meu Deus, perdão”, “Longe, bem longe”, “Carregando a minha cruz” etc. 247 248 “Acta Diurna” “Acompanhamento de Modinha” (A República, 26/04/1940). “Acta Diurna” “Fala Waldemar de Almeida” (A República, 05/05/1940). 278 Câmara Cascudo foi, então, o mentor do importante trabalho iniciado. O pianista informa haver concluído a primeira das modinhas pesquisadas, o que parece pouco para mais de um mês de trabalho. Um estranho silêncio afasta o assunto da coleta das modinhas da temática das crônicas cascudianas. Cerca de nove anos se passaram sem mais uma palavra de incentivo e sem notícias do andamento do trabalho. Somente a 3 de janeiro de 1949, Cascudo retorna ao assunto com a “Acta Diurna” “Para salvar nossas modinhas”249, deixando transparecer sua apreensão com o estado de oralidade em que se encontravam as velhas melodias. Cita também os nomes dos principais compositores populares do estado e termina com um apelo, ao mesmo tempo sentimental e objetivo: Precisamos ouvir e gravar ou grafar as nossas modinhas tão lindas e recordadoras. Elas são legítimos documentos da vida intelectual de um povo... Não foi devidamente esclarecido o destino da pesquisa iniciada por Waldemar de Almeida. Sabe-se que recolheu umas poucas modinhas e delas fez harmonizações para canto e piano, sendo algumas cantadas em audições250. Outras foram utilizadas como temas para três das suas composições251. A realização de pesquisa e busca feitas pelo autor deste trabalho junto a familiares do pianista não resultaram na localização de seus resultados. A pesquisa projetada por Cascudo somente foi realizada cerca de 50 anos depois, com a publicação de A modinha norte-rio-grandense252. Malgrado o longo período decorrido e o desaparecimento de muitas e importantes fontes disponíveis no passado, o referido trabalho ainda conseguiu coletar e grafar musicalmente 365 modinhas, entre elas, 201 exemplares de autor norte-rio-grandense comprovado. Apresar do restrito resultado do trabalho de Waldemar de Almeida na coleta das velhas modinhas, é sua a iniciativa de utilizar temas populares e folclóricos como base de muitas de suas composições. Para o seu “Acalanto da Bela Infanta”253, por exemplo, desenvolveu o tema melódico de uma xácara resgatada por Câmara Cascudo e que ele assim descreve na própria partitura: “Acta Diurna” “Para Salvar Nossas Modinhas” (A República, 13/01/1949). GALVÃO Claudio. História da Música do RN (em preparo). 251 ALMEIDA, Waldemar. Acalanto e modinha, Dança e canção da Rua dos Tocos e Paisagens de leque n. 8 – Realejo. Detalhes em GALVÃO, Claudio. A Modinha Norte-Rio-Grandense (2000). 252 GALVÃO, Claudio. A Modinha Norte-Rio-Grandense (2000). 253 N. 7 da série “Paisagens de Leque”, editada por Irmãos Vitale, São Paulo [s/d]. 249 250 279 Esta xácara, de origem portuguesa antiquíssima, foi em Portugal registrada Por Teófilo Braga, no seu “Cancioneiro”, em duas versões: Uma do Porto, com o título de “Conde Alberto” e outra de Beira Baixa, “O conde Alves”. Almeida Garrett recolheu na Beira Baixa outra variante, conhecida como “O conde Yano”. No Brasil, Silvio Romero coligiu uma versão em Sergipe, o “Conde Alberto” e disse existir outra, o “Conde Olario”, título da versão encontrada no Rio Grande do Norte, por Luís da Câmara Cascudo. Pereira da Costa recolheu duas outras variantes. Uma em Goiana, a “Bela Infanta”, e a segunda do Pajeú das Flores, a “Dona Isabel”. Em nenhuma fonte foi recolhida a solfa que Luís da Câmara Cascudo teve a alegria de ouvir e registrar e é a que eu tive o prazer de aproveitar em toda a sua simplicidade para mais esta “Paisagem de Leque”. 4.6.2 Cascudo e a música sertaneja Os diversos escritos de Luís da Câmara Cascudo revelam seu conhecimento sobre a música em suas variadas formas, épocas e estilos, na vertente popular ou na erudita. Particular atenção é despertada por uma significativa variante, a música sertaneja brasileira. É importante destacar como a música do sertão, em Cascudo, eclode no bloco de seus estudos sobre o folclore e parece mesmo ser uma consequência deles. Vale considerar ainda que as bases dessa sua área de conhecimentos têm como origem o contato direto com localidades sertanejas do interior do Rio Grande do Norte pelos períodos de permanência entre elas durante sua infância e adolescência. É o que se pretende demonstrar em seguida com base em algumas de suas publicações. Ele relatou haver passado boa parte da infância e adolescência nos sertões do Rio Grande do Norte e Paraíba, fato que rememora em muitas ocasiões. Teve, portanto, experiência presencial, viu e viveu de perto o sertão nordestino, o que ocorreu entre os anos 1909-1915. Um bom indicativo cronológico pode ser o que disse em Mouros, franceses e judeus (p. 110): [...] sertão nordestino do meu tempo, 1909-1915254. Outra menção está em Caldas Barbosa – Poesia, ao se referir a uma modinha: (p. 62): Ainda em 1910 ou 1911 ouvi-a cantar pelo meu tio Francisco José Fernandes Pimenta na vila 254 CASCUDO, Luís da Câmara. Mouros, franceses e judeus (1984). 280 de Augusto Severo255. Uma pequena diferença encontra-se no texto que escreveu para o disco do cantor Luiz Gonzaga256: Fui menino no sertão 1909-1913. 4.6.3 Abertura das estradas e a invasão no sertão musical Em várias oportunidades, Cascudo lembra sua autoridade em tratar de assuntos sertanejos. Em Flor de romances trágicos257 (1982), setenta anos após tal vivência sertaneja, assegura (p. 16): É preciso ter ouvido as vozes sertanejas de outrora, cantando as velhas cantigas que as haviam embalado crianças, para sentir a intraduzível e profunda poesia da continuidade sentimental, que nenhum processo mecânico captará. Parece ser, entretanto, em Literatura oral no Brasil (1952) que mais objetivamente comenta que, mesmo nascido e residindo em Natal, eram seus pais de origem sertaneja e seguiam o velho costume de passar temporadas em locais distantes do lugar onde moravam. Assim, longos períodos de férias foram vividos no sertão e o menino foi invadido pela cultura sertaneja, que o marcou profunda e permanentemente. Cantei, dancei, vivi como todos os outros meninos sertanejos do meu tempo e vizinhanças, sem da existência de outro canto, outra dança, outra vida, assim afirmou. Uma valiosa informação também se encontra em Tradição, ciência do povo258 que, embora não trate de assuntos musicais, reafirma a sua autoridade para comentar temas sertanejos. Desse modo, declara (p. 30): Pertenço a família do sertão onde vivi e deixei já rapazinho. O material desse depoimento constitui cenário de infância e juventude. Gado, cavalos, vaqueiros, cantadores. Residindo em Natal, a casa de meu pai era o “Consulado do Sertão”, cheia de exilados das caatingas e derrubadas. Como não entender a preferência temática da minha raça? Nos escritos mais antigos, as crônicas, o tema da música do sertão não aparece com frequência e o pouco que se localizou versa sobre a cantoria sertaneja considerada principalmente do ponto de vista literário. É o que se verifica em “Comentando” (sobre Ao som da viola, de Gustavo Barroso), publicada a 21 de dezembro de 1921; em 255 CASCUDO, Luís da Câmara (Org.). Caldas Barbosa: poesia (1958). Texto já citado e comentado. 257 CASCUDO, Luís da Câmara. Flor de romances trágicos (1982). 258 CASCUDO, Luis da Câmara. Tradição, ciência do povo (1971). 256 281 “Cantadores” (sobre a obra do mesmo título de Leonardo Mota), ambos publicados em A Imprensa; e ainda em “Fabião das Queimadas”, em A República, 2 de agosto de 1928. É importante considerar o prestígio de Cascudo e sua intimidade com assuntos sertanejos já no início de sua atividade intelectual refletindo-se fora do Rio Grande do Norte. Assim, a famosa revista carioca Fon-Fon trouxe, em sua edição de 20 de maio de 1922, uma matéria intitulada “Fon-Fon no Rio Grande do Norte”, tratando da amizade entre Cascudo e o famoso cantador Fabião das Queimadas, que é descrito como um cantador satírico, repentista terrível e comentador em verso das vaquejadas e “pegas” de gado bravo. Alegre, motejador, num sadio e espantoso otimismo, é analfabeto e frui as vantagens de assombrosa memória. A reportagem está ilustrada por foto, em que o terno branco de Cascudo contrasta com o negro do rosto do cantador259. Considere-se a data da matéria publicada – 1922 –, muito esclarecedora para os que concordam com a ideia de que Cascudo somente se interessou pela cultura popular a partir da década de 1930, após a passagem de Mário de Andrade por Natal. O primeiro livro “sertanejo” de Câmara Cascudo é Viajando o sertão, editado inicialmente pela Imprensa Oficial do estado do RN, em 1934. Sente-se facilmente o clima de desapontamento do escritor, naquela ocasião, em relação à música que ouviu quando menino. Relata a presença do fox, sincopado, arrítmico, disfônico, a marchinha pernambucana escritos nos nervos elétricos dos moços, o choro carioca, lento, dengoso, remorado e sensual. Desapontado, Cascudo pergunta: Onde estão as danças do sertão de outrora?, enumerando muitas delas. Onde pairam estas danças que dancei? Para o escritor, a chegada da modernidade trouxe a desvantagem da descaracterização musical e respectiva perda da originalidade. As vitrolas substituíam os tocadores tradicionais. À página 50 da obra, ao comentar o “desafio”, aborda importantes elementos musicais. O desapontamento do pesquisador ao constatar a propagação de elementos estranhos levados pela invasão do progresso se verifica também em uma “Acta Diurna” sob título “Música ao longe”, publicada em A República, 3/02/1943. Cascudo relata o pitoresco fato de suas viagens ao sertão entre 1910 e 1912, levando na bagagem um “moderníssimo” zonofone e respectivos discos, que os sertanejos ouviam com espanto e admiração. Informa que entre 1915 e 1920 o zonofone estava instalado nos lugares mais 259 Texto anexo no final deste capítulo. 282 distantes e termina noticiando que até a data em que escreveu a crônica (1943) o rádio já era comum em todo o sertão. Com ele, vinha uma cultura estranha, que chegava para ficar e substituir a tradição. Sua próxima obra sobre a cultura sertaneja foi publicada em 1ª edição em 1939. Vaqueiros e Cantadores se origina, em sua maior parte, de uma infância sertaneja, despreocupada e livre, fruto de suas andanças pelo sertão. Ao comentar a cantoria sertaneja, nota-se a predominância do enfoque ao componente literário, mas o autor acrescenta importantes informações sobre sua parte musical. Assim, trata do acompanhamento (e da independência dele), dos instrumentos musicais (viola e rabeca, principalmente, e o pandeiro e o ganzá, de forma secundária), do ritmo (rojão, baião e vários outros) e do timbre (áspero e roufenho) comum aos cantadores. Do ponto de vista musical, o destaque maior está na inclusão das partituras musicais de sete exemplos de música sertaneja: pela primeira vez no estado tais melodias foram registradas na pauta musical. É o momento de se realçar a colaboração do pianista Waldemar de Almeida. Cascudo destaca, no prefácio da obra, a paciência e a obstinação do musicista na transcrição dos textos musicais: É o primeiro a fixar música e cantoria sertaneja em sua mais absoluta naturalidade. Sua inesgotável teimosia conseguiu o que seria impossível a muitos. É a hora de se recorrer à informação de Waldemar de Almeida sobre o momento da realização desse trabalho. Ele próprio relata: observamos que todos os cânticos, todas as solfas eram cantadas com as diversas modulações, os múltiplos ritmos, sem vacilação, demonstrando uma segurança tonal absoluta260. Um curioso episódio que bem comprova a popularidade dos conhecimentos folclórico-musicais de Cascudo é o recebimento do telegrama, datado de 22 de janeiro de 1973, com o texto seguinte: Querido mestre Solicito querido mestre escrever uma lauda dizendo que pensa de mim como cantador sanfoneiro e também gente PT Humildemente peço urgência, pois texto será contracapa meu novo disco PT Peço enviar Rua Evaristo da Veiga 260 ALMEIDA, Waldemar. “Luís da Câmara Cascudo no meio da música” (1947). 283 20 Rio de Janeiro cuidados Fernando Lobo PT Abraços seu vaqueiro Luís Gonzaga. O autor do pedido era o famoso sanfoneiro Luiz Gonzaga, que assinava como vaqueiro do pesquisador. Cascudo não deixou de atender ao pedido do popular artista, escrevendo o seu texto no mesmo mês de janeiro: LUIZ GONZAGA é uma legitimidade do sertão tradicional. Sua inspiração mantém as características do ambiente poderoso e simples, bravio e natural, onde viveu. Não imita. Não repete. Não pisa rastro de nome aclamado. É ele mesmo, sozinho, inteiro, solitário, povoando os arranha-céus com as figuras imortais do Nordeste, ardente e sedutor, fazendo florir cardeiros e mandacarus, levantando o mormaço dos tabuleiros, através das cidades tumultuosas onde permanece. Fui menino no sertão 1909-1913. Tenho na memória o timbre das grandes vozes infatigáveis, ímpeto de guerrilhas no açodamento dos “crescendo”, nasalamento. Infalível na modulação para “fechar” na dominante. Sertão sem rodovias, luz elétrica, gasolina. Vaqueiros, cantadores. Romeiros de S. Francisco de Canindé, Juazeiro, Santa Rita dos impossíveis. Poeira heróica das feiras e das vaquejadas. Viola no rojão de dois-por-quatro, sanfonas de oito baixos, pobreza milionária na emoção irradiante, Inexplicável alegria das coisas suficientes. LUIZ GONZAGA é um documento da cultura popular. Autoridade da lembrança e idoneidade da convivência. A paisagem pernambucana, águas, matos, caminhos, silêncio, gente viva e morta. Tempos idos nas povoações sentimentais voltam a viver, cantar e sofrer quando ele põe os dedos no teclado da sanfona de feitiço e de recordação. Não posso compará-lo a ninguém. LUIZ GONZAGA é uma coordenada humana que as ventanias urbanas fazem vibrar sem modificação. Não é retentiva, artificialismo, sabedoria de recursos mentais, “aproveitando” o sertão. Ele próprio é a fonte, cabeceira e nascente de suas criações. O sertão é ele, como a Bretanha está no bretão e a Provença em Mistral. Bem logicamente, a sua terra muda a fisionomia pelas mãos de ferro do progresso. Técnicas, máquinas, combustíveis, sonhos novos. Mas, pelo lado 284 de dentro, o homem não muda, como a sucessiva aparelhagem em serviço de seu interesse. LUIZ GONZAGA presta-nos a nós, devotos das permanentes culturais brasileiras, a colaboração sem preço de uma informação viva, pessoal, humana. O sanfoneiro do sertão, brasileiro do Brasil, os que amam terra e gente nativa te saúdam na hora em que tua voz se eleva, vivendo a sensibilidade profunda de tu‟alma sertaneja... Natal, janeiro de 1973261. 4.6.4 Cascudo e a música fora do seu estado Já que foi abordado o assunto Cascudo/gravações musicais, é oportuno mencionar outra curiosa ocorrência. Em 1977, a Companhia Internacional de Seguros patrocinou a gravação, em edição reservada, do LP “Cantares Brasileiros – 1, A Modinha”. São dois discos e um encarte de primorosa elaboração gráfica. Um dos depoimentos que apresenta tem como título “Ouça dois modinheiros ilustres: Adelmar Tavares e Luís da Câmara Cascudo”. A publicação inicia com um texto de Adelmar Tavares extraído do seu livro Trovas e Trovadores. Essa informação consta de nota explicativa que segue ao texto, indicando sua origem. Em seguida, vem o texto de Cascudo, não havendo nenhuma indicação de onde foi colhido. Começa de uma maneira que nem um principiante faria (com uma adversativa: Mas,): Mas, tirante esses dois livros [...]. Uma busca nos textos de Câmara Cascudo revelou que o trecho publicado no encarte dos discos era uma parte da “Acta Diurna” “„Modinhas‟ de Catulo Cearense”, publicada no jornal A República, a 4 de junho de 1960. Os dois livros referidos são obras de Catulo, bem explícitas na citada crônica. A parte publicada no encarte foi colhida do meio da crônica, faltando-lhe o começo e o fim, o que a torna meio sem sentido. A forma como se encontra no disco descaracteriza o escrito anterior de Câmara Cascudo e indica desleixo e pouco cuidado na editoração do LP262. A publicação de No tempo de Almirante263 traz o relato de alguns fatos que demonstram ainda mais o interesse de Cascudo pela música popular: são transcrições de trechos de algumas cartas endereçadas ao radialista carioca Henrique Foreis LP “Luiz Gonzaga”, Odeon, 1973. LP “Cantares brasileiros – 1. A Modinha”. Tapecar Gravações para Companhia Internacional de Seguros. Rio de Janeiro, 1977. 263 CABRAL, Sérgio. No tempo de Almirante: uma história do rádio e da MPB (1990). 261 262 285 Domingues264, mais conhecido como “Almirante”, a quem era atribuída a expressiva qualificação de “a maior patente do rádio”. Pena que o autor não referencie essas cartas265. Uma delas (página 229) foi escrita quando Almirante apresentou um programa sobre o flautista Patápio Silva. Cascudo ouviu em Natal e escreveu para o produtor: Meu pai era um devoto de Patápio Silva, possuindo todos os discos do flautista maravilhoso. Menino, quantas vezes ouvi, espalhados no ar pela bocarra enorme do gramofone reluzente, as sonoridades inesquecíveis, a renda maravilhosa que se tecia na amplidão pela flauta mágica, a única e verdadeira que tivemos. Ontem, com meu filho e minha mulher, acompanhei a evocação dessa figura desaparecida. E, à magia musical de Patápio, reunia-se o encanto do seu grande evocador, a oportunidade verbal, a emoção clara, todos os valores da inteligência, ressuscitando o flautista que fora a minha surpresa de menino. Meu filho doente, com a perna gessada, imóvel, reatou, no tempo, a mesma admiração que aquecera o avô e o pai. Ficou saudoso do grande Patápio, comentando-lhe a vida, repetindo compassos de sua execução assombrosa. Muito dessa força evocadora é você, criador de programas inteligentes, limpos dos vícios da exibição cultural e dos pecados antigramaticais, justos, nítidos, esplêndidos da verve e do brilho. Em outra carta, contida na obra de Cabral (página 232), Cascudo revela ao amigo que para o trabalho com a finalidade de ouvir o seu programa, e aproveita para apresentar o poeta norte-rio-grandense Renato Caldas266: Todas as sextas-feiras, cá estou, deixando a máquina e a papelada, acompanhando o “Aquarelas do Brasil”, ouvindo e gostando do arranjo que articula as melodias mais sugestivas da nossa música tradicional anônima. O maestro Radamés [Gnatalli] obtém vitórias deliciosas. Vez por outra, bato palmas, como no pastoril no Senhor do Bonfim, encanto para os ouvidos e 264 Henrique Foreis Domingues (Almirante) foi radialista e cantor que nasceu no Rio de Janeiro em 19/02/1908, falecendo em 22/12/1980. 265 As cartas de Cascudo para Almirante pertencem hoje ao Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro. 266 Autor já referido. 286 pinicão de saudades suas, vontade de ouvi-lo contar os casos, ressuscitar os tipos, desenhando no ar fisionomias e aspectos, com gestos, entonação e graça inesquecíveis. Mas a carta não é a claque. Tem o destino afetuoso de apresentar a você um dos meus amigos mais velhos, de século e meio, o poeta Renato Caldas, poeta do Açu, terra de poetas, dono de verve, repentista, cantador de emboladas e informador de primeira água de cantadores e cantigas. O Renato vai publicar a segunda edição do livro dele. Você vire para o Renato dois olhos amáveis e queira bem ao bicho. É vivo, sacudido, fibra longa, produto norteriograndense de exportação, com mercado em qualquer parte do mundo. Aí você tem o Renato. Por intermédio dos dois braços desse açuense malandro, mando um abraço daqueles, de tamanduá, deixando você de língua de fora. Conforme se pode observar no trecho abaixo, Cascudo era fã de Jararaca267...! Sim. Diga ao Jararaca que ele nem sabe o número de fans gratuitos por essa zona. Nem queira saber. Mas sexta-feira, perfeitamente, toda gente escutando. Até o Bispo, imagine você... Almirante, outro abraço e todas as vitórias financeiras, morais e particulares. Receba o afeto que se encerra neste peito varonil. Em carta seguinte (p. 324), demonstra seu entusiasmo pela biografia de Noel Rosa, publicada por Almirante268: No tempo de Noel Rosa é um encanto de inteligência, emoção, força evocativa, comunicando saudade. Não há ensaio mais poderoso nem de mais contagiante informação. Li três vezes, deliciado e rosnando desaforos em cima do seu Libório, que se esqueceu do meu nome apesar de dizer-me “notável professor”. Malandro! Quero agradecer, et pour cause, e dizer que fiquei sem o livro porque um meu ex-aluno, agora professor de Bioquímica na Faculdade de Medicina, Dr. Grácio Barbalho, socializou meu exemplar. 267 Jararaca, nome artístico de José Rodrigues Calazans (1896-1977), o qual foi componente da dupla “Jararaca e Ratinho”, sucesso em todo o Brasil em sua época, humorista, cantor, compositor. Ver RODRIGUES, Sônia Maria Braucks Calazans. Jararaca e Ratinho: a famosa dupla caipira (1983). 268 DOMINGUES, Henrique Foreis (Almirante). No tempo de Noel Rosa (1977). 287 O Grácio tem uma linda discoteca de música popular antiga, só antiga, e fez um catálogo magnífico. Noel Rosa e você estão quase completos. Viu o seu (seu, uma conversa, nosso!) Noel Rosa e endoidou. Lá se foi meu voluminho... Surdo de um ouvido, ficando sem o outro, com catarata, hipertenso, estou escrevendo uma História da alimentação no Brasil. [...] Preciso conhecer as preferências alimentares de Almirante, Noel Rosa e mais glórias perpétuas. Será que Vossa Mercê Ilustríssima poderia ajudar-me escrevendo essa “hora da saudade” para o meu livreco? Seria uma colaboração excepcional e saborosa [...]. Cabral menciona outra carta (p. 325), datada de nove anos depois, em que Cascudo se refere ao livro Nosso Sinhô do samba269, biografia do compositor José Barbosa da Silva (Sinhô): No tempo de Noel Rosa, lido pela oitava vez! Acredite se quiser, que encanto de força evocativa, ressuscitando todo o Rio de Janeiro, paisagem humana, clima psicológico, vivência incomparável na transmissão emocional. Já lhe mandei a impressão quando da leitura inicial, mas agora, reassanhei-me vivendo a época que raros compreenderão em sua veracidade sentimental. Que livro, Almirante! Vive a Viúva de Noel Rosa? [...] P.S. – Vou reler o Nosso Sinhô do samba, outro encantamento feiticeiro. Na última das cartas publicadas (p. 338), faz um pedido ao amigo. Observe a curiosidade que manifesta por detalhes da música popular brasileira, revelando o conhecimento que tinha através dos pormenores que menciona: Estou findando um livro, Brazilian Folclore, para um editor de Nova Iorque. Você é citado como bispo novo em diocese rica. No capítulo derradeiro, que estou batucando, trata-se de danças populares, mas aludirei e documentarei 269 ALENCAR, Edigar de. Nosso Sinhô do samba (1981). 288 unicamente as mais gerais e usadas, sem pretensão a uma relação aproximada dessa multidão, notadamente regional. Desejava, Almirante, dois documentos partidos de suas garras: a) uma batucada legítima. Música e letra devem ser sem interesse (?), mas estou precisando de informação limpa e clara, como você sabe dar aos peticionários, jagunços do meu tope e feição provinciana; b) uma embolada. Música e basta uma amostra dos versos, não todos. Apenas refrão e um versinho característico. Esse é o choro... Sim. Uma pergunta que tem engasgado os técnicos e proprietários do assunto. Para você, o que é que diferencia choro de samba, ou, como diz o povo, chorinho de sambinha? Solicito que Vossa Magnificência responda esse peditório, a fim de que o solicitante não fique com os dedos no ar e a máquina aberta num indeterminado compasso de espera. No mais, querido Almirante, receba o afeto que se encerra neste peito não senil. Cabral ainda registra (p. 224) a presença de Cascudo no auditório da Rádio Nacional do Rio de Janeiro, a 25 de abril de 1944, assistindo ao programa “História das danças”. Vale lembrar o elevado padrão e a importância do conteúdo cultural apresentado na época pela maioria dos programas daquela emissora. No mesmo ano de 1944, Cascudo publicou em Natal, no jornal A República, uma crônica sobre Almirante: a “Acta Diurna” “Rádio e boa pronúncia” (27/9/1944) e “História e estórias de Almirante”, na coluna “História & estórias” (A República, 31/1/1957). Pediu a publicação de um songbook com músicas de Noel Rosa na “Acta Diurna” “Foster e Noel Rosa” (A República, 29/11/1944). Em agosto de 1941, esteve outra vez no Rio de Janeiro e de lá remeteu para A República uma série de crônicas intituladas “Bilhete do Rio”, entre elas “Escola de samba da Portela” e “Noite dos velhos chorões” (3 e 7 de agosto, respectivamente). Sobre esse período, recorda: Em julho de 1941 conheci no Rio de Janeiro o Sr. Alexandre Gonçalves Pinto que representara o Boi num rancho promovido por Melo Morais Filho. O Sr. Pinto registrou suas reminiscências num volume O Choro, Rio, 1936,270 13, 270 PINTO, Alexandre Gonçalves. O choro (1978) 289 lembrando-se ter espatifado a carapaça do boi dando marradas nos assistentes271. Explica-se bem o relacionamento emocional de Cascudo com os personagens cariocas da música popular brasileira aqui mencionados. Além das numerosas viagens ao Rio de Janeiro, viveu um ano nessa cidade: Em 1919 estudei Medicina no Rio de Janeiro. Aulas Práticas no pardieiro da Praia de Santa Luzia e as teóricas no palácio da Praia Vermelha, recém-inaugurado272. Ainda sobre o assunto, podem-se levar em consideração as declarações pessoais de Cascudo transcritas a seguir: Ainda conheci Noel Rosa na casa de Almirante [...] quando eu digo que eu vi Noel Rosa, o sujeito diz: “Ah, mestre, que inveja!” Noel Rosa morreu em 1937, eu tinha 39 anos, já era pai de filhos273. Nos meses de março a maio de 1963, fez uma viagem à África, de cujas observações resultaram o livro Made in Africa (1965). Deve ter sido emocionante estar em contato com a pátria de tantos elementos culturais hoje brasileiros, tantas vezes estudados e comentados por ele: [...] estive na África, não no litoral, mas no interior, da Nigéria à Zambézia. O negro africano é especial e essencialmente músico. Nada se faz na África sem o canto. Aqui ir colher feijão não tem importância. O negro não pode colher nada sem que não comece com um baile rural. E, quando acaba a safra, o baile rural termina, com as músicas tradicionais... de percussão. De corda ou sopro eu só conheço no litoral. Fiquei seis meses na África, no interior, mas vivendo a vida negra... me sentando no chão274. 4.6.5 Cascudo e Villa-Lobos O maestro Heitor Villa-Lobos visitou Natal em outubro de 1952, quando estava no auge da fama. Chefiava a Primeira Missão Artística Musical, que se apresentou no Teatro Carlos Gomes, nos dias 11 e 12. Participavam de sua comitiva a cantora Cristina Maristany, o pianista Ivy Improta e um trio composto por Alceo Bochino (piano), Célio 271 MELO MORAIS FILHO, Alexandre José de. Festas e tradições populares do Brasil (1967). CASCUDO, Luís da Câmara. Coisas que o povo diz (1968). Cascudo estudou medicina na Bahia (1918) e no Rio de Janeiro (1919), abandonando o curso em 1920. 273 Entrevista de Câmara Cascudo concedida ao autor. 274 Entrevista concedida ao autor. 272 290 Nogueira (violino) e Iberê Gomes Grosso (violoncelo). Outras passagens por Natal noticiadas por jornais não parecem haver sido nada além de escalas no aeroporto. A amizade entre o escritor e o musicista era anterior, a se deduzir do oferecimento que o maestro lhe fez de uma fotografia sua que Cascudo tinha em uma parede de sua casa e ainda hoje permanece no mesmo lugar: Uma boa testa para levar um Cascudo amigo. Lembrança afetuosa de Villa-Lobos. Rio 10-6-49. No Pequeno manual do doente aprendiz (1969), recordou uma confidência que lhe fez: Villa-Lobos dizia-me que os seus melhores “entendedores” não sabiam música. A compreensão para um músico é a concordância ou discordância com a sua solfa, prévia, pessoal. Certa vez, Cascudo deu interessante explicação sobre sua amizade com o maestro: Quer saber de uma coisa engraçada? Quase sempre meus encontros com VillaLobos eram no estrangeiro. O grande bem que Villa me queria era... porque eu nunca lhe falava de música. E o mais assombroso é que fui, durante vinte anos, professor de História da Música!275 Em sua primeira visita ao Museu Villa-Lobos, a imediata pergunta que o autor ouviu de sua viúva Mindinha foi: Como vai, Cascudo? Quando do falecimento do maestro, Cascudo publicou uma crônica em que, entre outros comentários, afirma: Villa-Lobos, o mais universal dos brasileiros, patrimônio de orgulho, a voz da música nacional na legitimidade da inspiração incomparável, o intérprete das tempestades e das calmarias, dos deuses selvagens e dos mitos sedutores, ressuscitador da mitologia ameríndia, valorizador dos sereneiros, mago uirapuru das soluções melódicas inesquecíveis, deixou sua pátria ainda maior que a recebeu em março de 1887. Ampliou-a por todos os recantos da terra, fazendo-a presente, viva, irresistível276. 275 276 Entrevista de Câmara Cascudo a Pedro Bloch, Manchete, n. 619, 29 de fevereiro de 1964. “Elegia Pró Villa-Lobos” (“Acta Diurna”, A República, 20/11/1959). 291 O gigantismo dos dois os mantinha sempre perto, apesar da distância física que os separava. O que os unia era a comunhão de ideias e ideais. Jogavam em posições diferentes, mas eram titulares insubstituíveis da mesma grande seleção cultural brasileira. 4.6.6 Cascudo e Mário de Andrade: correspondência musical Entre os anos de 1924 e 1944, Luís da Câmara Cascudo e Mário de Andrade277 trocaram intensa correspondência. Os originais desses documentos estão em São Paulo, no Instituto de Estudos Brasileiros da USP (cartas de Cascudo), e em Natal, no Acervo Ludovicus do Instituto Câmara Cascudo (cartas de Mário de Andrade). O acesso ao teor desse material foi possível graças à publicação de Veríssimo Melo278, à dissertação de mestrado de Edna Maria Rangel de Sá Gomes279 e ao Acervo Ludovicus do Instituto Câmara Cascudo. Essencial e definitiva é a obra Câmara Cascudo e Mário de Andrade: cartas, 1924 – 1944, publicada em 2010280. A correspondência teve início quando Mário de Andrade escreveu a Cascudo em 14 de agosto de 1924, agradecendo a remessa da crônica “O Sr. Mário de Andrade”, publicada em A Imprensa (11/06/1924). As últimas cartas do conjunto datam de 12 de junho de 1944 (Cascudo) e 13 de agosto de 1944 (Mário de Andrade). O assunto música começa a ser abordado quando Mário de Andrade, em carta datada de 19 de fevereiro de 1925, diz: Tomei por obrigação botar na rua este ano minha História da Música e o mais tardar no começo do ano que vem há de estar escrita custe isso o que custar. Esse trecho, despertou a atenção de Câmara Cascudo, que lhe responde a 9 de março: Parabéns lhe manda a minha curiosidade vermelha pela História da Música281. Mário Raul de Moraes Andrade (São Paulo, 9 de outubro de 1893 – São Paulo, 25 de fevereiro de 1945). 278 MELO, Veríssimo (Org.). Cartas de Mário de Andrade a Luís da Câmara Cascudo (1991). 279 GOMES, Edna Maria Rangel de Sá. Correspondências: leitura das cartas trocadas entre Luís da Câmara Cascudo e Mário de Andrade (1999). Essa dissertação indica inúmeras falhas na edição organizada por Melo. Até o momento da redação deste trabalho, as cartas de Cascudo ainda não haviam sido publicadas em livro. 280 MORAES, Marcos Antônio de. Câmara Cascudo e Mário de Andrade: cartas, 1924 – 1944 (2010). A disponibilidade desse livro em Natal somente foi possível no mês de outubro do corrente, após a conclusão e fechamento deste trabalho. O seu acesso dispensaria a árdua tarefa empreendida de colecionar e intercalar sequencialmente as cartas referidas e possibilitaria certamente o acesso a valiosos dados e informações, corrigindo e atualizando dados anteriormente publicados. 281 O Compêndio de História da Música, publicado em 1929 e reescrito em 1942, foi editado como Pequena História da Música. 277 292 A 19 de maio, Cascudo informa ao amigo: O interessante é que recebi sua carta hoje, domingo. Passou o dia comigo o sr. Oscar da Silva, pianista, estilisador de temas populares, sinfonista e português. Gostei imenso dele. E mais ainda das lindas coisas que tocou. Especialmente um Stojowsky282 que é o Malazarte fazendo música. O sr. Oscar da Silva tem páginas deliciosas. Ele irá até aí... [...] Em seguida, fez uma revelação inesperada: Agora mesmo ele está tocando Brahms. Eu detesto Brahms283. Em outra oportunidade, Cascudo volta a demonstrar o seu desagrado com uma manifestação musical. Em carta de 22 de agosto, ao referir-se a um português que não conhecia, mas que deveria ir a São Paulo, desabafa: A cidade de Coimbra (detestável fadismo lamuriento...) [...]. Outras vezes, teve simpáticas e emocionadas referências ao fado português (certamente aos menos lamurientos, não coimbrenses), como se pôde constatar na parte referente a suas crônicas musicais. Na carta de 30 de dezembro, encontra-se um problema a ser resolvido. Ao convidar Mário para vir a Natal e ser seu hóspede, Cascudo sugere que ele poderia fazer na cidade uma conferência sobre música. Então, comenta: Mesmo porque eu fui convidado para ensinar história da música. E fiquei pensando que o convidador estava mangando284. Agora o bicho insiste. Eu da história da música conheço dois livros de Mondain, um de Combariem e uma conferência de Mário de Andrade. Ora já viu V. que patifaria? Vamos (o plural é para criar o efeito moral) fundar uma coisa parecida com, com, com um vago e tênue conservatório. Pois aí está outro tema para V. Música do Brasil. Com Villa-Lobos e Tupinambá. (grifos do autor). Não foi possível localizar nenhuma notícia nos jornais de 1925 sobre o conservatório referido por Cascudo. 282 Zygmunt Stojowsky (1870-1946), pianista e compositor polonês. Durante as buscas das referências musicais na obra cascudiana, não foi encontrada nenhuma outra referência a Brahms. 284 Zombando. 283 293 Em seguida, é a vez de Mário, em carta datada de ano bom de 1926, referir-se a um musicista internacional: Quando eu principiei a estudar música aos dezesseis anos, me lembro que entusiasmo eu tinha por Wagner, como defendia Wagner, como gostava entregadamente e sem critério de tudo o que era de Wagner só porque pela pobreza dos livros que tinha então a última moda inda era Wagner e eu achava intuitivamente que a arte devia sempre de progredir. E te garanto que tive brutas comoções escutando obras de Wagner, comoções erradas certamente sobre qualquer ponto-de-vista porém imensamente sinceras. Depois progredi... Ao menos me parece e agora a última moda não me agrada de antemão, agrada e só agrada quando me parece boa por sensibilidade e inteligência. É incontestável, porém, que aquela boa-vontade dos dezesseis anos ajudou muito pra que eu chegasse aonde cheguei285. Mário inclui ainda mais uma notícia: Deverei manter no “Terra Roxa e Outras Terras” uma crônica musical. Em meio a conversas sobre assuntos literários, principalmente, a 12 de março de 1926, Mário revela: Não faço nada que valha. É só dar lições de piano e de História da Música. E inda por cima as tais lições de Estética (não sei si já contei pra você que agora comecei um curso de Estética geral, comparada e histórica de todas as artes pra um grupo de moças da nossa alta sociedade) essas lições estão me tomando um tempão imenso, pois que as escrevo. Então, confessa: Tenho péssima faculdade de elocução, sou incapaz de falar de improviso, atrapalho tudo e as idéias saem chatas e mal expressas, por isso sou obrigado a escrever minhas lições, a fazer verdadeiras conferências com todos os caracteres de conferência que você sabe muito bem que são pouco artísticos e pouco científicos, conferências que me tomam às vezes três dias da semana, pois as aulas são semanais. 285 ANDRADE, Mário de. “Reação contra Wagner: estudos para uma História da Música” (1976). 294 Cita mais atividades musicais: Além disso estou como crítico musical dum jornal novo que principiou por aqui, S. Paulo Jornal. É concerto sobre concerto e inda por cima de vez em quando um artigo pra publico... Notícias sobre a evolução do projeto da futura História da Música: [...] Me lembro que na carta anterior eu te falava que não partia este ano pra aí porque carecia de acabar a minha História da Música... Estou vendo que não pegarei nela por todo o ano [...]. Em agosto (bilhete do dia 10), parece que o pesquisador paulistano conseguiu algum tempo para o projeto da História da Música, pois pede ao amigo nordestino subsídios informativos: Esta é só um pedido. Desculpe. Você por acaso conhece a melodia de alguns aboiados aí no norte? Com letra si possível, ou milhor as sílabas com que os vaqueiros entoam as suas frases musicais. Veja si me arranja alguns, me mande todos os que puder, por mais insignificantes que sejam. Você naturalmente encontrará aí alguém que saiba o pouquinho de música suficiente pra anotar esses aboiados. Ficarei contentíssimo si você conseguir isso pra mim. Estou em estudos sérios sobre fórmulas melódicas brasileiras. Não é estudo pra publicar já pois demanda muita pesquisa e comparação porém será trabalho útil, não acha. Si você tiver amigos aí no norte, Pará, Amazonas, Sergipe etc. que se possam interessar por mim veja si arranja com eles também alguma coisa. Em pleno carnaval de 1927, o paulistano comunica suas queixas (carta de 1º de março) ao amigo nordestino: Hoje é dia de Carnaval, terça, e imagino que gostosura de carnaval de cantigas você está tendo por aí... Aqui em S. Paulo inda não escutei nem sequer algum maxixe novo, maxixe do ano! Qual o que! Os maxixes vêm do Rio e a gente aqui inda vai esperar no mínimo um mês pra saber quais as músicas que pegaram de verdade. Sei que está se cantando muito lá um maxixe Braço de Cera bastante engraçado e bem anegrado na melodia. De certo será o canto do dia. Aqui carnaval é uma merda. No domingo inda me diverti muito, porém não desse divertimento unânime que nem deve de ser divertimento numa festa destas, não, me diverti, nos divertimos, Oswaldo e 295 sua mulher Tarsila e a enteadinha Dolur, Guilherme de Almeida e sua mulher Baby, Couto de Barros, a cantora Germana Bittencourt e um francesinho surréaliste de luvas [...]. Fala, em seguida, sobre o livro em preparo: [...] Meu Deus! como tenho que fazer hoje! Minha História da Música está se adiantando. Está uma merda francamente, escrita assim muito afobadamente não pode sair coisa que preste, porém tenho que entregar os originais pro editor nos princípios de junho e de verdade mesmo só agora é que principiei ela. Falava, falava, porém só tinha os dois capítulos iniciais escritos. Tenho trabalhado que é uma loucura, vamos a ver o que sai. Depois de sua primeira viagem ao Norte e havendo passado por Natal 286, Mário retoma a correspondência ao amigo a 29 de setembro de 1927: [...] afinal venho dar daqui um abraço em você por tudo o que fez por mim aí. Mais uma vez, Deus lhe pague. O dia de Natal foi uma gostosura daquelas meladas mesmo que a gente nunca esquece mais. Informa também: [...] Entrei como crítico musical dum jornal novo e inda nem pus mão nos meus trabalhos particulares. Em 1928, Cascudo escreve a 1º de janeiro e relata detalhes de seu aniversário. Percebe-se a presença de música e folguedos populares: Anteontem o Antonio Bento passou o dia comigo. Era meu aniversário. Festão de violeiros, cocos, embolados, maracas e saúdes à lei seca. Um dia que se estirou comendo a noite até depois de duas da madrugada. A 2 de fevereiro, Cascudo promete ao amigo: Também março, seguramente, enviarei os 25 temas de CONGOS velhamente prometidos. E uns sambas, cocos e zambês. [...] Os poemas grandes do Clan [do Jabuti], carnaval e Noturno pedem “plaquete”. Uma “plaquete” ilustrada e, se possível, musicada. Penso que V. deveria musicar o carnaval 286 Chegou a Natal cerca das doze horas do dia 7 de agosto de 1927. Bem pitoresca a descrição da primeira vez que viu Cascudo, gesticulando, a bordo um barco, aproximando-se do navio. ANDRADE, Mário de. O turista aprendiz: viagem etnográfica. (1976). 296 carioca. Uma porção de coisas ali estão literárias porque não foram “ouvidas”. Seis toadas típicas, esparsas no poema criariam o ambiente. Em 8 de março, Mário apresenta insistente cobrança: Ando esperando ansioso o artigo pro Diário [Nacional] e SOBRETUDO, SOBRETUDO [ênfase de Mário] os cocos zambês etc. Sei que zambê é dança porém mande mais explicações pra meu governo. Como você fala na carta que tudo isso vem neste março, é bem possível que chegue com tempo pra sair no meu primeiro trabalho de registração de melodias nacionais. Com efeito me mandaram convidar do Rio pra tomar parte com algum trabalho na Exposição Internacional de Arte Popular de Praga287 que é este ano. Vou contribuir com um “Elementos Melódicos Brasileiros” em que sairão as melodias que já tenho aqui (e as de você se vierem com tempo) e que já são umas setenta inéditas. Como vê ao menos por elas o trabalho terá sua importanciazinha, não acha? Como boa notícia para ambos, informa: Minha viagem pra aí no fim do ano está cada vez mais firme. Em dezembro se Deus não mandar doutro jeito te abraçarei em Natal. As conversas decorreram sem detalhes musicais a registrar. Entre 14 de dezembro de 1928 e 27 de janeiro de 1929, deu-se a sonhada e tão proveitosa segunda viagem ao Norte288. As conversas por carta reiniciaram em março: Estou em S. Paulo faz uma semana porem só hoje principio berrando pros amigos esta saudade pelo norte, e a recordação danada que está roendo este pobre coração do Mário, informa em carta de 6 de março de 1929. A 9 de maio, Cascudo diz a Mário: Na crônica “Musicalerias IV” (A República 16/10/1929), Cascudo informa que Mário de Andrade lhe havia enviado um recorte do Diário Nacional, tratando da referida participação no Congresso de Cultura Popular, que se reuniu em Praga. O tema desse trabalho era “Influência Portuguesa nas Rodas Infantis do Brasil”. É com este título e subtítulo (Memória para o Congresso Internacional de Arte Popular, de Praga) que o texto se encontra em Música doce música. 288 ANDRADE, Mário de. O turista aprendiz: viagem etnográfica (1976). 287 297 Maurilo Lyra289 escreveu-me comprido de Paris. Conta o berreiro contra Villa-Lobos e um meio enthusiasmo que o maestro está despertando. Penso que a história combina com a nota do movimento. Diz Maurilo que o floklore dominou. Melhor é dizer alagou Paris. Desde o vibrophone até as sessões de T.S.F. que são registadeiras de música irradiada. Em outro trecho da carta, parece atender a um pedido em correspondência anterior não conhecida: Endereço do Igor Strawinsky, rue du faubourg Saint-Honoré 252. Repito o número - 252. Paris. Catuca o bicho com um ou dois dos achados. O hipolídio de Paraíba. O coco do Jurupanan. Mãe Santíssima! Dessa vez, é Mário que, a 6 de agosto, agradece uma oferta de informações que parece constar de carta anterior, talvez extraviada: Muito obrigado pela oferta dos esclarecimentos que eu precisarei pra meu “Na Pancada do Ganzá” sair menos imperfeito. Gosta do nome? Você compreende, maninho: não moro aí, por mais literatura que tenha d‟aí não poderei fazer uma obra completa. Aliás, você mesmo viu a afobação e disparate com que andei colhendo os meus tesouros de documentos. Estou cada vez mais convencido de que são tesouros porém sou obrigado a confessar que não são perfeitamente sistemáticos. E a própria afobação da colheita fez com que houvesse falhas nela. Por exemplo, “Folclore Musical Nordestino” ficava meio importante demais pra esta minha curiosidade simples e humilde de só mesmo saber, mas muito amar. “Na Pancada do Ganzá” além de título bonito como o quê, é modesto, me permite contar que em dois meses e pico de passeios e amigos, inda achei tempo de amar a vida nordestina e revelar tesouros dela. E nada impede que o livro saia, como pretendo, com muitíssimas, o mais que me for possível, informações firmes sobre tudo. Mas não obriga a coisa completa e isso é que me agrada principalmente nele, pois seria até ridículo imaginar que vou dar coisa completa. Estou convencido que vai ser coisa grande e mesmo indispensável pra quem quiser saber de certas coisas. Mas definitivo não pode ser. Mas hei 289 Maurilo Lyra em Natal em 1900. Depois de cursar o Instituto Nacional de Música, estudou na Europa com renomados professores. Retornando a Natal, fundou, em janeiro de 1939, a Escola de Piano Maurilo Lira. Em julho de 1944, deixou Natal e não se soube mais notícias dele. 298 de fazer livro obrigatório pra toda biblioteca que se disser brasileira. Pois irei perguntando aos poucos o que me interessar e desde já agradeço as cantigas e danças de Dália. A 20 de maio de 1930, Mário dá o primeiro sinal do futuro Modinhas Imperiais: Recebi encomenda duma antologia de Modinhas de Salão Imperiais, com prefácio e notas e só vendo o trabalhão que está dando. Todo o tempo disponível foi pra isso estas 3 semanas, mas também só um quinau que dou na musicologia portuga valeu todo o trabalho. E descobri um gênio, em modinhas do Primeiro Império, totalmente ignorado no valor e que se não é gênio, pelo menos uma modinha genial escreveu. Finalmente, é publicado o livro Modinhas Imperiais290. O amigo natalense ganhou seu exemplar e acusou o recebimento em carta de 29 de setembro: Recebi as “Modinhas Imperiais” que fiz minha mulher tocar e cantei maravilhosamente bem. Informo a V. que a “Busco a campina serena” é tradicional aqui. A música é que tem uma variante mais bonita. Em pleno desenrolar da Revolução de 30, Mário e Cascudo têm queixas em comum e o assunto está presente em quase todas as suas cartas. A 5 de dezembro, Cascudo informa: Na História da Literatura que lhe mandei o índice inclui uma “função literária da modinha” onde tive o prazer de citar o “Modinhas Imperiais”. Como a política e a modinha foram as únicas expressões intelectuais da província eu não poderia esquecer291. Destaca-se um pequeno detalhe para avaliar o quanto melômano era Câmara Cascudo. A 7 de janeiro de 1931, ele escreve e, entre muitos outros assuntos, diz: Fui a Recife ouvir os Cossacos do Dom para fazer parelha com os Ukranianos de bocafechada. Enfim, uma boa e concreta notícia musical é transmitida por Cascudo na carta de 10 de abril: 290 O livro Modinhas Imperiais (1930) foi publicado pela Casa Chiarato, São Paulo. Àquele ano, Mário de Andrade havia publicado mais dois livros sobre música: Ensaio sobre música brasileira (1928) e Compêndio de História da Música (1929). 291 A História da Literatura (Norte-rio-grandense) é uma obra muitas vezes citada por Cascudo. Tudo indica que tenha se perdido. 299 Estamos tentando uma Escola de Música em Natal, com Waldemar de Almeida, Babini, José Galvão e eu, ensinando História da Música. Declarei a adoção do seu compêndio e escrevi a Ernane Braga perguntando por que o conservatório de Pernambuco não o tinha feito já. Ernane disse que a cadeira não estava criada. Eu julgo-a urgente porque dispensa o raciocínio e a vida interior para os alunos. Essa coisa de vida interior dá muito trabalho de conseguir-se. Através dessa carta, é possível saber sobre o início do projeto que só haveria de se concretizar a 31 de janeiro de 1933, conforme comentado anteriormente. Mário se congratula com a notícia em 27 do mesmo mês: Gostei da idéia da formação dum Conservatório aí, parabéns e prá frente! Um dos assuntos mais constantes nas cartas entre Cascudo e Mário era um pretendido retorno do paulistano a Natal para ser padrinho de crisma do primeiro filho de Cascudo, Fernando Luís, nascido a 8 de maio de 1931. A reação de alegria de Mário pelo nascimento de seu afilhado se expressa inicialmente em uma homenagem musical, conforme sua carta de 29 de maio: Pretendia escrever naqueles dias um Acalanto pro piasote [...]. Mário escreve a 18 de julho: [...] andei na fazenda descansando de tudo e só agora respondo. A idéia de ficar compadre de você, crismando o Fernando Luís, me iluminou. Principalmente nesta escureza de dias que estou vivendo. Esses dados preliminares foram para chegar ao seguinte ponto musical: Cascudo pediu a Mário para compor um acalanto para o filho recém-nascido. Diz Mário, mais adiante: Engraçado: você pergunta por que não faço uma canção de acalanto pro Fernando Luís. Pois juro que quando recebi seu telegrama292 foi na primeira coisa que pensei. Fazer a música não pensei. Pensei nos versos. Pensei tempo. Depois fui abandonando a idéia por dois respeitos: respeito ao Fernando Luis que é um anjo e diante de criancinha eu sou rei mago, me ajoelho e adoro só [...]. Farei o possível pra ir este ano mesmo, no dezembro, até Natal. O telegrama a que se refere não foi localizado no Acervo Ludovicus – Memorial Câmara Cascudo, Natal. 292 300 Em seguida, a segunda razão da negativa: O segundo respeito é pelo acalanto popular. Sim, fazer o Acalanto do Seringueiro, pra um marmanjo é fácil e o sentimento pode literarizar, mas pra piá? Quem atinge o “Dorme, filhinho” que saiu do coração das mães? Deixei de pensar no acalanto. Mais tarde, quando ele for grandote, então será mais fácil entregar pra ele a minha vida e experiência de presente. O clima de cordialidade e entendimento musical pode ser reforçado na carta de 14 de agosto, em que Mário declara sua confiança em Cascudo: Está claro que todas as pessoas de nosso gênero podem acrescentar ou discordar de coisas alheias, e imagine o que você não fará no meu Na Pancada do Ganzá, que alias não publicarei sem seu imprimatur primeiro. Mário adia, mais uma vez, a viagem ao Nordeste. Em carta de 11 de novembro de 1931, justifica a Cascudo o motivo musical de sua decisão: Pra mim pessoalmente isso até é melhor porque indo agora com meu trabalho sobre a cantoria d‟aí em meio ia colher mais documentação que me obrigava a muito retrabalho e o que tenho inda por fazer é monstruoso. Como espero dedicar mais todo o ano que vem pro que já tenho, no fim do ano só levarei pra aí coisas que careça esclarecer melhor, perguntas e documentos se carecer. E não colherei nada a não ser coisas de grandíssima importância documental se achar. A 5 de janeiro de 1932, Cascudo informa o significado de uma expressão folclórica ligada à música. Nas anteriores cartas de Mário (a última data de 11 de novembro de 1931), não se encontra nenhum apelo nesse sentido, o que leva a suspeitar da existência de uma carta anterior perdida. O interesse é a palavra fobó: Forrobodó, fungangá, suvacada são sinônimos sulistas de fobó. É o baile de quinta sub-classe. Baile com harmônio ou violão acompanhando saxofone. Agora saxofone matou a clarineta que era o instrumento rei dos fobós. Quando há saxofone não há harmônio e este está morrendo, morrendo. 301 Raramente aparece e mesmo assim lá nos fobós desconhecidos, fora da cidade. Fobó não quer dizer samba, como parece pensar Catulo da Paixão Carioca. Em fobó só se dança o xóte, o tango (sambinha, choro, tanguinho) e a carioca que é o rag-time. Tentei a tempos aprender os nomes mas ouvia apenas o cidadão perguntar a cidadã: – Vamos dançar isto..... Está pronto? Já sabe o que é fobó, baile popular onde não se dança o coco nem se canta... A temática música aparece somente um ano após a carta anterior. A 2 de março de 1933, Cascudo comenta a passagem por Natal de um violinista paulistano: Raul Laranjeiras está aqui e deu um concerto aclamadíssimo. Só porque se espalhou que ele era capacete de aço... Convive com os natalenses melhores e ficou assombrado encontrando, em todos eles, os símbolos do protesto paulista contra a estupidez armada de chicote e esporas tinintes. Será uma testemunha real do ambiente entusiástico em que vive a Idéia paulista 293. Vem, então, a parte mais importante na ocasião para a música do Rio Grande do Norte: Fundou-se (o Governo) um Instituto de Música e adotarei seu compêndio. Se V. tiver um livrinho outro que me ajude, mande. Eu tenho o Cambarieu, um Dicionário de Fetis e alguns livros de Waldemar de Almeida (ensina piano e é o Diretor) que são ótimos mas versam apenas sobre Beethoven. Onze dias depois da carta anterior e sem que Mário a tenha respondido, voltava Cascudo, no dia 13 do mesmo mês, a escrever ao amigo sobre o assunto da mensagem anterior: 293 Raul Laranjeiras deu dois recitais em Natal, acompanhados pelo menino Oriano de Almeida. Esse assunto foi o tema da crônica “Raul Laranjeiras”, 8ª da série Musicalerias, já comentada na parte referente às crônicas. 302 Junto envio o programa do primeiro ano de História da Música no nosso Instituto que o Governo acaba de criar. O livro que recomendei foi o seu compêndio mas não se encontra por aqui e eu não sei o endereço do editor Chiarato. As melhores livrarias daqui são: Livraria Cosmopolita (Fortunato Aranha), Livraria America (Pedro Urquiza) ambas na rua Dr. Barata. V. poderia dizer ao editor que oferecesse livros a estas firmas que já me pediram endereço e não as pude dar. Tenho 35 alunos. No 2º e 3º anos de História da Música. (8º e 9º anos do Instituto). Adotei mais dois livros seus: o ensaio sobre música brasileira e As Modinhas Imperiais. No programa do 3º ano há 15 pontos sobre Música Brasileira e um ponto sobre Villa-Lobos. Ora eu conheço do Villa apenas os sonetos musicados, a lenda do caboclo, uma seresta, a mariposa na luz (para violino. Ouvi pela Paulina de Ambrosio294) e alguns números da prole de Bébé. Cascavilhei entre meus papeis uns estudos seus mas não os achei. Encontrei apenas o ensaio sobre as rondas infantis onde V. estuda a influência portuguesa. Nesse particular do Villa V. é quem vai me valer. Há mesmo um ponto no 3º programa que assim se enuncia: Música Brasileira. A explicação, Mário de Andrade. Imagine V. as audácias frias em que me meto. O Instituto de Musica do Rio Grande do Norte terá professores honorários exclusivamente brasileiros. Em abril V. será eleito pela Congregação para esta classe. V. e o Raul Laranjeira que muito nos ajudou e já deu dois concertos aplaudidíssimos. Ele fala torrencialmente sobre V. O Waldemar de Almeida já se alistou na fila dos seus admiradores e anda suspirando para que V. venha apadrinhar o Nando e apadrinhar a ele Valdemar, dando-lhes explicações e conselhos. Nós todos estamos animados pelo sucesso. Mais de 100 matrículas e uma frequência de 95%... Já temos três pianos, um ¼ de cauda, Dorner, ótimo, que Valdemar vendeu por 10 contos e dois velhos para o ensaio. Os outros cursos são: – violoncelo, contrabaixo, violino e viola e instrumentos de sopro. Há o canto orfeônico, dois adjuntos de pianos e dos cinco professores, quatro mantém curso de teoria musical além do Paulina d‟Ambrozio, violonista nascida em São Paulo, no ano de 1890, falecendo no Rio de Janeiro, em 1976, participou da Semana de Arte Moderna e lecionou violino na Escola Nacional de Música por 42 anos. 294 303 instrumento ensinado. Esquecia-me de dizer que há a classe de instrumento de sopro. Os profs. são: Valdemar [de Almeida] (piano e direção) [Thomás] Babini (violoncelo e contrabaixo) Antônio Paulino de Andrade (instrumento de sopro) eu e José Monteiro Galvão (violino e viola). Os adjuntos são Ana Maria Cicco e Ligia Bezerra de Melo. [...] Eu creio que melhor seria V, escrever aí um programa (fácil para mim) os 15 pontos de Música Brasileira e mandar para mim. Adotaria no último ano de Hist. da Musica (9º). A 26 de março, Mário comenta a consulta anterior de Cascudo: Seu curso de História: vou falar com o Chiarato, aliás agora, Luiz Miranda, também pernambucano, pra que mande pras livrarias d‟aí alguns exemplares de Compêndio [de História da Música], 2ª edição. O seu exemplar segue registrado amanhã ou depois. Aliás a mudança é pouca: algumas frases mais claras, uma língua menos agressiva, índice, discoteca e quase que só. Menos erros de impressão e um erro de concordância na advertência que é tipo-mãe e bem meu, paciência. Também quem não souber que eu sei isso só mandando naquela parte. – Seu programa está bom mas talvez um bocado excessivo pra aluno. Não será talvez marcar passo obrigar a gentinha a decorar nomes de instrumentos indianos ou china? Acho também que pra melhor ordem da exposição ficaria bom fazer de sétimo ponto ao ponto seis e do ponto sexto ao que vem como sétimo. Como só no 3º ano você falará sobre o Villa, temos tempo. Aliás este ano mesmo você e o Waldemar receberão aí o meu Música doce Música295 em que reúno o que de mais útil terei dito sobre o homem. O homem não que só merece xingação, o artista. Vou ver se interesso os compositores daqui pra mandarem peças orfeônicas pra Waldemar. Acho aliás que vocês oficialmente deviam de entrar em relações com alguma casa de música, o Miranda, por ex. pras exigências daí. Posso servir de conselheiro, se quiserem, e mandar o que interessar mais. Há livros primários de canto orfeônico, do Fabiano Lozano, do João Gomes Junior, muito úteis e bastante nacionais. Minha opinião é que vocês deviam 295 Música doce música teve sua primeira edição em 1933. 304 desenvolver no máximo o canto orfeônico mas de caráter nacional. É a forma primeira e última de música. [...] Estou vendo se este ano acabo os estudos prá Pancada do Ganzá. Você com esquecimento nenhum, precisa me pedir ao Eduardo Medeiros, ou ao Waldemar, a música exata da modinha Praeira,296 que é de autoria daquele. Não sei se a botarei no livro, mas careço dela pra meu governo e estudo. Aliás modifiquei um tanto a concepção primitiva do livro que está mais fácil, mais simples, menos cientificamente pretensioso. Mas não quero ficar engasgado nele mais e o ano que vem, suceda o que suceder escrevo o livro. Também por isso me fica bem útil ir até aí no fim do ano. Precisava da melodia de alguns romances, tanto dos tradicionais como dos de agora. Mas sertanejos de preferência a litorâneos da Paraíba trouxe as melodias ou alguns romances contemporâneos e são linhas admiráveis, muito originais tanto no arabesco como nas escalas estilizadas. Cocos tenho bastantes, me falta é mesmo romances, toadas sertanejas, aboios, coisa longe da influência nem sempre salubre do mar. Diga ao Waldemar que se por acaso conseguir alguma coisa que me ajude por gratuita e amorosa camaradagem, registre a coisa, versos, musical, lugar do cantador (seja erudito ou do povo), nome dele, etc. e me mande de presente. Era um ajutório enorme. Lembranças pra todos, de sua casa e do Conservatório e pro Laranjeira se ainda parar nessa terra de Deus. Sem notícia de Cascudo, Mário cobra, a 22 de maio: Vocês receberam a minha História da Música, 2ª edição, que mandei pra você e pro Conservatório? De imediato, veio a resposta de Cascudo no dia 24 do mesmo mês: Recebi a HISTORIA DA MUSICA. Ótima. Waldemar comprou um exemplar e está lendo, muito interessado e tomando notas assombrado com a discoteca no livro e a cultura no quengo do Macunaíma. Mais conhecida por “Praieira”, tem como título “Serenata do pescador”. É certamente a canção mais popular da cidade de Natal do século passado. O poema é de Othoniel Menezes e a música é de Eduardo Medeiros. Foi considerada pela Câmara Municipal de Natal como “Canção tradicional da cidade”, através do Decreto-Lei n. 12, de 22 de novembro de 1971. Sobre o assunto, Cascudo publicou “História da Praieira” e “Valorizando a prata da casa”, comentadas na parte referente às crônicas. Ver GALVÃO, Claudio (Org.). O cancioneiro de Othoniel Menezes (1995); GALVÃO, Claudio. A Modinha Norte-RioGrandense (2000) e GALVÃO, Claudio. Príncipe plebeu: uma biografia de Othoniel Menezes (2010). 296 305 Em 1934, Chegam mais livros de Mário de Andrade. A 14 de abril, Cascudo escreve: Passei os olhos no BELAZARTE [Os contos de Belazarte] e li o MÚSICA DOCE MÚSICA de que gostei imenso. Estou citando de cor. Toda a música de cabeça é ótima e decisiva. A explicação do beethovismo de Brahms, o gregoriano, tanto que reler. A parte de registo deliciosa. Especialmente sobre o “Amazonas” de Vila [Villa-Lobos], a Sonatina de Lourenço Fernandes e o estudo sobre o padre José Mauricio, o melhor e mais lógico de todos como nitidez e segurança e acabando com a lenda da influência de Bach. A pancadaria creio ser justa. A 10 de maio, recebe a seguinte resposta de Mário: Recebi sua carta, muito obrigado pelo que fala dos livros novos. Não sei se já lhe contei que estou vivendo em pleno Nordeste. Pois é, me pus este ano escrevendo afinal o Na Pancada do Ganzá. Me dediquei exclusivamente a ele e a coisa vai indo. Mas muito mais lentamente do que eu imaginava. Realmente é um livro dificílimo de escrever, me atrapalho um bocado no excesso de notas que andei tomando ao acaso das leituras, me tomam centenas de hesitações, de dúvidas, de desgarros. É o diabo. Só tenho prontos até agora, cinco meses de trabalho, os congos e os Maracatus. Assim já tenho agora a certeza que o livro me tomará no mínimo uns dois anos. Confesso que isso me assusta um bocado, mas o que hei de fazer, não só a arquitetura é enorme como o tempo é pouco. A próxima carta que aborda música veio de Mário, quase um ano depois, datada de 1º de março de 1935. Diz ele: Já estou me preparando prá viagem do fim do ano. Tenho escrito muito do meu livro, pelo menos dum dos volumes, o que trata das danças dramáticas. Estou acaba não acaba o estudo sobre o Fandango justamente, e ainda este março quero ver se dou o basta nas danças-dramáticas todas com exceção do Bumba, que esse me dará trabalho creio que pra uns três meses, a 306 documentação é muito grande. Depois farei logo o estudo sobre Música Cantada, indicando as relações da poética e da música nordestina, constâncias melódicas, formas, etc. Talvez um estudo sobre o romanceiro, mas isso ainda não sei. A propósito, sempre venho esperando aquele livro de você sobre a poesia popular nordestina que já esteve aqui em minhas mãos, e você mandou pedir outra vez. Como é? Publica-se ou não se publica? Tenho enorme precisão dele, e só tomei uma ou outra rara nota do que li, mas me era útil no momento, deixando pra eu documentar no livro, quando este saísse. E até agora? Me conte alguma coisa sobre, e si tem alguma cópia sobressalente me mande de presente, ou de emprestado. A carta de Mário que se segue (17 de julho de 1935) trata de dois assuntos que, embora não musicais, merecem um breve comentário pela importância que tiveram para os dois amigos, na ocasião. O primeiro, o falecimento do pai de Cascudo – o coronel Francisco Cascudo297 –, ocorrido a 19 de maio daquele ano. Cascudo havia estado em São Paulo na ocasião, tomando parte no Congresso Nacional Algodoeiro, já referido anteriormente. Assim se manifesta: [...] positivamente desisto de lhe dizer palavras de sofrimento e de conforto, pela morte do coronel Cascudo. Quase quotidianamente tenho pensado em escrever pra você, desde que soube do desastre, mas meus braços caem logo sem vontade, e me fico amargando pelas deficiências da escritura, pelos seus imprescindíveis lugares-comuns de língua de todos e não dum só. E eu queria me dizer sozinho, menos aliás no que eu sofri por mim que também queria um enorme bem a esse velho admirável, do que no desejo de compartir com você e os seus do sofrimento novo, acarinhá-los em tudo o que meu coração tem de mais espontâneo, de mais impulsivo, e é tão ardente, tão sincero no momento. Mas é melhor nem falar... O segundo assunto diz respeito a Mário de Andrade: a sua nomeação para um cargo público que assumiu, no qual tanto realizou para a cultura de seu estado e do país: 297 Francisco Justino de Oliveira Cascudo (Campo Grande/RN, 27/11/1863 – Natal, 19/05/1935). 307 [...] porque nem bem você partiu daqui, minha vida foi tomada dum turbilhão novo que a dominou completamente. Eu bem contara a você que estava prestes a arrebentar aqui a minha nomeação para chefe duma das divisões dum departamento de Cultura e Recreações, que a Prefeitura de S. Paulo estava pra criar. Ora de repente fui chamado, e tive o choque dum convite inesperado, não só me titulavam no meu cargo já decidido, como me convidavam pra Diretor de todo Departamento a se criar. De maneira que, vinda a nomeação, a 30 de maio, não só me vi na Chefia da minha Divisão, mas com o serviço apenasmente quadruplicado, como diretor Geral, orientador, sistematisador, e o diabo, de todas as quatro divisões do Departamento. Você imaginará bem, que conhece S. Paulo, o horror de trabalhos e preocupações novas, que isso está me dando. Tive que largar de tudo, pra criar todo um organismo, de que, praticamente, não estava nada feito, a não ser a Biblioteca Municipal. E aliás antes ela não estivesse feita, porque justamente a sua reorganização está tão difícil que você não imagina. Mudei de mundo, Cascudinho, mudei de ser298. Nas proximidades do centenário de Carlos Gomes, Cascudo recorreu a Mário (7 de abril de 1936) para o planejamento das homenagens a serem prestadas em Natal: Venho pedir-lhe uma informação que encareço você respondê-la por avião. Quando vão, em que dia, comemorar o centenário de Carlos Gomes aí em S. Paulo? Há uma controvérsia áspera e o humilde Instituto de Música que deseja solenizar, com várias coisas bonitas, a data não sabe como escolhê-la. Fui encarregado de perguntar ao Mário de Andrade, Tuixáua de ciências. O Waldemar de Almeida está com planos e trabalhos iniciados, Orfeão de 1000 vozes, dois concertos, duas conferências, orquestra, etc. tudo depende da resposta do Macunaíma. E outra coisa, não haverá para canto orfeônico alguma coisa do Tonico de Campinas? O Hino Acadêmico, por exemplo? Se 298 Mário foi nomeado pelo prefeito Fábio da Silva Prado, durante a gestão do Interventor Federal Armando Salles de Oliveira. 308 existe você fará uma obra de caridade enviando um exemplarzinho destinado às goelas potiguares299. A resposta de Mário veio rápida pela carta de 15 de abril. Antes disso, vê-se a confissão de sua identificação com o trabalho que assumira: [...] vou lhe escrever duas linhas roubadas. Ah, você nem imagina o que está sendo minha vida, uma ferocidade deslumbrante, um delírio, um turbilhão sublime, um trabalho incessante, dia e noite, noite e dia, me esqueci já da minha língua literária, a humanidade me fez até voltar a uma língua menos pessoal, já me esqueci completamente de mim, não sou, sou um departamento da Prefeitura municipal de S. Paulo. Me apaixonei completamente. Depois, a resposta ao apelo recebido: Nosso assunto: a data certa do centenário é 11 de julho. Não tem não peça orfeônica de Carlos Gomes que eu conheça. Mandei copiar com urgência um Hino Triunfal raro e bem bonito que temos aqui e está sendo ensaiado pelo Coral Paulistano que criei. Gostei do plano das comemorações. Eu aqui, imagine que ainda não sei o que vou fazer, a não ser um ano de execuções permanentes de Carlos Gomes, e talvez um número especial da Revista do Arquivo, ou parte desta, dedicada a ele. Imaginei uma comemoração verdadeiramente batuta, mas que soçobrou pelo custo. A gravação do Guarani, da Fosca e duma seleção de mais 18 discos das outras óperas. Tudo caiu por terra, ante a dinheirama de mil contos pedidos pela Columbia. Ora, tenho coisas por enquanto mais úteis a fazer e deixei esse propósito de lado. Em carta de 24 de julho, Cascudo envia uma boa notícia: saía o primeiro número da revista Som: 299 O evento foi solenemente comemorado em Natal. Cascudo apresentou, no dia 9 de julho de 1936, uma conferência no Teatro Carlos Gomes. 309 Pelo correio terrestre enviei um exemplar da nossa revista SOM, órgão da Sociedade de Cultura Musical. Para ela é que eu havia pedido algumas linhas iniciais do “Primeiro musicógrafo brasileiro”. Entende-se que você não deve negar-fogo para o outro número. Nós, Waldemar de Almeida e eu, desejamos fazer uma revista séria e sem mundanidades. Eis porque contamos com a sua boa vontade. Neste julho será a inauguração da “Sala Mário de Andrade” no Instituto de Música. A placa já chegou e é bonita como quê. O primeiro número da revista Som circulou em 11 de julho de 1936, ano em que Cascudo era o presidente da Sociedade de Cultura Musical e Waldemar de Almeida era o seu diretor técnico. A edição com doze páginas é uma homenagem a Carlos Gomes, traz diversos materiais sobre o seu centenário e, na capa, uma foto do compositor com a dedicatória de Itala Gomes Vaz de Carvalho, sua filha. À página 4, encontra-se a informação de que a última congregação de professores do Instituto de Música do Rio Grande do Norte havia aprovado os nomes de Carlos Gomes, Waldemar de Oliveira300 e Aubifax Azevedo301 para três salas de aulas da instituição. O Dr. Câmara Cascudo, lente de História da Música, propôs que se denominasse de Mário de Andrade, o salão onde leciona História da Música. Da mesma forma, a professora de piano Dulce Wanderley propôs que se desse o nome de Câmara Cascudo à outra sala de aulas. A aprovação das propostas foi aceita por unanimidade, com restrições de Câmara Cascudo ali presente. Mesmo com os insistentes pedidos de Cascudo – como se poderá verificar no decorrer do comentário das cartas –, Mário de Andrade colaborou com Som apenas duas vezes302. O mesmo n. 1 de Som traz, à página 7, uma notícia sobre as atividades do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, administrado por Mário de Andrade, o maior musicólogo brasileiro. Mário não pareceu haver se sensibilizado com a homenagem do Instituto de Música, pois sua pronta resposta (31 de julho) se resumiu: A revista é do meu coração. Ajudo sim. Que clichê vocês querem? Mande já escolhido o preferido, que irá imediatamente. Vou escrever qualquer coisa. 300 Teatrólogo e musicólogo pernambucano. Amigo e mecenas, entre outros brasileiros, de Waldemar de Almeida e Maurilo Lira, quando estudantes em Paris. 302 Mário de Andrade teve colaborações publicadas no n. 2 (16 de setembro de 1936), “A música brasileira”, e no n. 3 (20 de dezembro de 1936), “São Paulo e a tradição brasileira”. 301 310 Cascudo responde a 14 de novembro: Junto encontrará você a sua revista em Natal. É minha e do Waldemar de Almeida, seu “íntimo”. O pedido fora para você abrir a revisteca com duas parolagens. Não foi possível. Distribuímo-la no dia 11 pp. Você nos fará uma caridade escrevendo qualquer coisa para o outro número e mandando, com licença da palavra, um clichê. Não se zangue. Nós não podemos comprar e o clichê é indispensável. Veja se gosta da revista. À pagina 4 estará a famosa decisão da Congregação criando a “sala Mário de Andrade”. A placa já chegou de Recife. É bonitinha como que. Mande coisas e proteja o Instituto. A carta de 24 de julho, antes comentada, diz: Pelo correio terrestre enviei um exemplar da nossa revista SOM, [...]. Na presente (14 de novembro), parece retornar ao assunto e repetir o que já comunicou303. Na verdade, não há artigo de Mário de Andrade no n. 1 e Cascudo lamenta o fato. Igualmente, a notícia da decisão da Congregação do Instituto de Música está na página 4 do referido n. 1. Somente no n. 2 de Som foi publicado o primeiro artigo de Mário com o título “A música brasileira”. Esse artigo traz uma apresentação não assinada que adiante se transcreve, mas não há dúvida de que se trata de um texto de Cascudo: Mário de Andrade é o maior musicógrafo brasileiro, professor do Conservatório paulista e diretor do Departamento de Cultura da Prefeitura Municipal de São Paulo. Seus livros são lidos e consultados por todos os estudiosos do Brasil. Seu Compêndio de “História da Música”, em terceira edição, “Modinhas Imperiais”, “Ensaio de Música Brasileira”, “Música doce Música”, seus romances, poemas, contos, estudos dispersos sobre o folk-lorismo musical brasileiro, positivam uma das maiores erudições que possuímos. Traduzido para o inglês, o francês, o alemão e o italiano, Mário de Andrade é justamente considerado um crítico de altíssimo valor e suas notas são recebidas como verdadeiras aferições de valor artístico. 303 A dúvida causada pela repetição de assuntos levou à impressão de haver um engano na cópia da data da carta de Cascudo. Tal dúvida foi esclarecida pela resposta à consulta feita ao IEB/USP, que confirmou, via internet, em 16/09/10, a data 14 de novembro de 1936. Pode ter havido um engano de Cascudo, ou ele esqueceu que já havia mandado o exemplar de Som n. 1, enviando-o duas vezes. 311 Grande amigo do Rio Grande do Norte, que visitou em 1929, Mário de Andrade é um dedicado elemento de simpatia do Instituto de Música que lhe homenageou o nome, dando-o a uma das salas de seu edifício. A presente colaboração, especial, privativa e direta para SOM, indica o grau de solidariedade cultural que a nossa revista está conquistando entre os leitores cultos do Brasil. Em carta de 23 de fevereiro de 1937, Cascudo oferece a Mário: Interessa a V. possuir a música de um dos nossos mais velhos “romances” herdados de Portugal, o romance da “Infanta” que Garret transcreveu?304 Se interessa mandarei uma cópia. Waldemar está copiando modinhas e escrevendo “acompanhamentos”305. Está também tomando notas para uma história da música por aqui306. Eu já voltei a dar as aulas no Instituto, na sala Mário de Andrade. Eu também sou contra-mestre, como se diz nas cheganças. Esse mesmo assunto é brevemente abordado por Cascudo em carta de 9 de maio. Respondendo a carta anterior, diz Mário a 21 de abril: Está claro, está claríssimo que vocês estão na obrigação de me mandarem a melodia do romance da Infanta. E mais melodias, seu Waldemar. Por sinal que outro dia me apresentaram com um sargento expulso das milícias nacionais, que também se chamava Waldemar e também era potiguar. Gostei dele e falamos bem nossas saudades. Em tom de ameaça, graceja: Se me mandarem a melodia e melodias, prometo um artigo pra Som, senão não. Nessa carta, ele anuncia a realização de uma das suas mais importantes empreitadas junto ao departamento que dirigia: 304 O romance Infanta foi publicado dois anos depois em Vaqueiros e Cantadores (1939) com o título de Xácara da “Bela Infanta”. O autor destaca o pioneirismo da ação de publicar a partitura (grafada por Waldemar de Almeida) no seu estado. Igualmente, informa que esse musicista utilizou o tema melódico na sua composição para piano “Acalanto da Bela Infanta”, São Paulo, Irmãos Vitalle, [s/d]. 305 O trabalho iniciado (e não concluído) por Waldemar de Almeida está comentado na resenha das crônicas. 306 Waldemar de Almeida publicou na revista Som n. 8 o artigo: “O primeiro clube musical do RN”, com a indicação: Capítulo inédito do livro História da Música no Rio Grande do Norte. Esse livro não chegou a ser publicado. 312 E recebeu o convite pro Congresso da Língua Nacional Cantada? Está aí. Deixe a poética nordestina pra depois, mas não me deixe sem alguma comunicação sobre a pronúncia potiguar, seria absurdo a falta de comparecimento do Rio Grande do Norte no Congresso e nos Anais307. Agora é a vez de Cascudo transmitir (em carta de 11 de dezembro) uma auspiciosa notícia: Meu livro sobre a poética tradicional está pronto e cresceu como um músculo uterino. Chama-se VAQUEIROS E CANTADORES e sairá na Globo, na coleção que o Josué de Castro dirige. Já fechei o contrato. Tomei o atrevimento de enfrentar vários casos musicais e resolvê-los de forma que você, inevitavelmente, reincida, na carta desaforo e fraternal. Inclui muitos trechos musicais porque ninguém se lembrou de documentar a cantoria sertaneja com as solfas, indicando as curiosidade e anomalias. Você é brutalmente citado, seu mano... Só não houve remédio para explicar a falta de acompanhamento DURANTE o canto de desafio e sim nos intervalos*, com acordes, e entre um cantador e outro, com compassos, noutro ritmo e que chamam baião ou rojão. Andei batendo livros e, na forma do costume, incomodando Paris, Berlin, Lisboa, Madeira, etc. Nada de antecedentes. Todos os cantos de improvisação são acompanhados durante o verso. Há voz e há música instrumental. No Nordeste não há. Hoje recebi uma informação de Funchal onde há desafios em quadras, como no velho sertão de outrora. Nada que se pareça com nossos cantadores. Enfim, depois de citar canto amebeu e outras sublimidades, calei-me. A menção anterior a “canto amebeu” leva a comentar brevemente o capítulo “Vaqueiros e cantadores” [de data 11-II-940] constante de O empalhador de passarinhos, livro que Mário de Andrade publicou em 1944. Empregando sua forma habitual de apreciação, intercala elogios e severas críticas a partes do Vaqueiros e 307 O Congresso da Língua Nacional Cantada, empreendido por Mário de Andrade quando diretor do Departamento Municipal de Cultura de São Paulo, realizou-se no período de 7 a 14 de julho de 1937. Discurso de abertura pelo próprio Mário de Andrade. Ver ANDRADE, Mário de. “Exposição de motivos” (1937). 313 Cantadores com que não concordava (principalmente na área musical). O rigor do seu comentário poderia até dar a impressão inicial de que se justificaria em carta pessoal ou mesmo em um passageiro artigo de jornal. Foi, entretanto, perenizado em livro e, muito mais, nas numerosas reedições que teve e ainda terá. Cascudo refere-se mais tarde a essa crítica em carta de 22 de fevereiro de 1944, a ser comentada a seguir, dizendo: Vamos conversar sobre uns reparos seus ao VAQUEIROS E CANTADORES. Continuando a comentar o seu trabalho e procurar respostas a questões ainda não satisfeitas, ele declara: Que me diz você sobre o causo? Em Minas, São Paulo e Rio Grande do Sul o desafio é acompanhado durante o canto. Constituímos uma curiosa exceção. E de onde teria vindo esse processo? O canto aqui funciona como declamação, quase sem solfa. Este pontinho fixei mais ou menos, mas não foi possível articular a ausência de acompanhamento. É uma criação regional? No trecho seguinte, pede ajuda para um pesquisador madeirense com que se correspondia: Desejava que você ajudasse um musicógrafo de Funchal (redação d‟O JORNAL. Rua dos Ferreiros - 42. Ilha da madeira, Portugal) de nome CARLOS SANTOS. Esse esforçadíssimo homem gastou dez anos catando músicas da Madeira, estudando-as e agora publica um volume, documentado, ilustrado, cheio de solfas bonitas trazendo todo folk-lore madeirense, pelo menos em suas linhas essenciais. Publicou o livro por sua conta e não conhece gente no Brasil. Tem pavor da honestidade dos livreiros que não respondem cartas nem informam a marcha da venda. Sonha Carlos Santos uma casa honesta que se encarregue de distribuir seu livro pelo mercado brasileiro, especialmente nas capitais sulistas, mediante comissão razoável. Você conhece alguém nessas condições no Rio e S. Paulo? vou mandar seu nome para que você receba um exemplar... esperando algumas linhas de registo. E ainda seria possível você me mandar alguns nomes de 314 críticos musicais dignos de uma oferta de livro? Creia que muito lhe agradecerei308. Faz ainda um breve comentário sobre o telegrama de 21 de junho de 1938, em que revela a ansiedade do diretor da revista Som por receber um escrito do amigo paulistano: Espero sua indispensável colaboração urgente nossa revista musical. Em meio a tanto trabalho e outras preocupações, Cascudo encontra tempo para aquele hábito muito comum à época: sintonizar estações de rádio estrangeiras em busca de bons programas de música erudita, dificílimos de serem encontrados no rádio brasileiro. Divide o bom momento com o amigo (carta de 17 de outubro de 1940) e recorda fato ocorrido, certamente quando da última passagem de Mário por Natal: Ontem, no Museu de Arte Moderna, na Feira Internacional de New York, houve uma hora de Música Brasileira. Burle Marx regeu músicas do Villa (ouvi o choro nº 4), a orquestra de Romeu Silva tocou. Vadico bateu um “choro” sem nome, em sol menor, para piano, que só me lembrou Ernesto Nazareth, aliás executado em três outros “Choros” ótimos pelo Romeu e orquestra. O encanto é que, quando menos espero, Candido Botelho canta a “Toada p‟ra você”. Era nossa canção de guerra, durante anos. V., Antônio Bento e eu, numa desafinação notável, berrávamos a “toada”, com acompanhamento do “poeta”. Não me era possível deixar de gritar essas saudadezinhas monas, gostosa, de tempo velho. E aí vai. Em carta de 1º de abril de 1941, Cascudo consulta o pesquisador paulistano: Agora, se me permite, aqui está um “caso”. Estou, como você sabe, traduzindo para a “Brasiliana” daí, o “Travels in Brasil” do Henry Koster que é ainda o melhor livro que se escreveu sobre o Nordeste, como documentação, amplitude e honestidade. Vez por outra, nas anotações, esbarro com uma dificuldade. Uma delas é a identificação do instrumento Consta da resenha a “Acta Diurna” “Os Estudos de Carlos M. Santos” (A República, 17/10/1943) que versa sobre os dois livros do autor comentado: Tocares e Cantares da Ilha (1937) e Trovas e Bailados da Ilha (1942). 308 315 musical que ele (em 1870) encontra pelo interior de Pernambuco e acompanhando cantos nas festas religiosas em Poço da Panela (arredores do Recife) e que chama de guitos. Espanhóis e italianos traduzem “violão” mas acho que o violão não estava por esse tempo dominando pelo interior e sim a “viola”, tocada e usada por toda parte. Aqui pelo interior do Rio G. do Norte, Ceará e Paraíba, a fama mais velha dos musicistas é que eles foram tocadores de viola. O violão vem depois. Verdade é que Mawe fala em violão, nesse tempo, em Minas. Mas o tradutor de Mawe, J. B. B. Eyries, é calamitoso, como vi no que ele fez com Wied Neuwied. Puz uma notinha contando a dificuldade mas quero ouvir você. Imagine que Koster, descrevendo um jantar no sertão pernambucano, põe um escravo tocando bag-pipes (Thres negros with bag-pipes attempted). A gaita de foles seria apenas cômica. Bati outra notinha e como o próprio Koster fala “I think I never heard so bad on, attempt at producing harmonies sounds as the CHARAMELEIROS nate” sugeri a simples charamela, a gaitinha que é negra até debaixo d‟água e tão viva ainda. E você, que me diz? Mário, a 29 do mesmo mês, responde: Quanto às suas consultas o caso do bag-pipe estou de acordo. No outro, fracasso. Esse caso da viola brasileira acho tão complicado que ainda não me animei de estudar a coisa. Tenho ajuntada, alguma documentação bibliográfica, puras fichas sem estudo. De maneira que sou incapaz de lhe dar um conselho seguro. Tanto mais que o excesso de ocupações do momento não me permite absolutamente me entregar a esse estudo. É certo que no começo do séc. XIX também se chamava ao violão de “viola” no Brasil. Von Martius, Von Weech o provam definitivamente e... a Viola de Lereno anterior. Mas se não me engano é Schilichthorst que pela mesma época já fala francamente na viola de 12 cordas, que positivamente já não é a guitarra espanhola. É só o que lembro assim com minha péssima memória e meto a viola no saco pra não sair besteira que te engane. 316 Entre fins de julho e começo de agosto, Cascudo estava no Rio de Janeiro (carta de 28 de julho): Os trabalhos do Conselho Nacional de Geografia se encerraram anteontem [...]. A 4 de agosto, dirige-se a “Macunaíma” (assim o trata em várias cartas): Ontem, até duas da madrugada, estive ouvindo Mignone, com Sá Pereira, Renato Almeida e o americano Premio Guiomar Novais. Você esteve presente e findamos cantando o hino, com todo cerimonial. Transferi para Mignone minhas manias de Ravel. Fiquei encantado com aquela música matinal e animadora, viva e álacre, substituindo todos os harmônicos. [...] Volto para Natal dia 9 [...]. A próxima carta de Mário está datada de 24 de novembro de 1941. Nela, continua o intercâmbio musical: Gostei de ser sócio fundador da Sociedade Brasileira de Folclore. A daqui não está morta nem viva, está em estado de beatificação [...]. Aqui lhe mando um artigo meu em que falo de você. Breve lhe mando minhas Poesias que estão sai não sai. Você não acusou música do Brasil onde pus um destrinchamento desses problemas de Cheganças, não recebeu? Cascudo responde, também em bilhete, em 10 de dezembro: Recebi o bilhete e o artigo. Não vi o ensaio sobre música, que muito útil me seria porque escrevi várias notas, ultimamente, sobre cheganças e mesmo agora estão sendo ensaiados todos os autos populares aqui, desde o Fandango até o Bumba-meu-boi, passando pelo congo e chegança. Vamos assim mexendo. Mário indaga sobre o recebimento de uma remessa (6 de junho de 1942)309: Não sei si lhe mandei é a [conferência] sobre música dos Estados Unidos que vai aqui pro Waldemar de Almeida. Si não mandei avise pra eu postar uma pra você. A 13 de agosto de 1942, escreve Cascudo a Mário: 309 Essa carta não está publicada em Melo (1991). 317 A SBF está recolhendo a letra e a música de todos esses autos para publicar em volume, sem comentários (apenas notas explicativas) como material para estudo. O estudo seria diagnóstico. Melhor é oferecer tudo às partes. [...] Waldemar de Almeida recolhe modinhas populares e seu acompanhamento típico de sereneiros310. Eu mastigo uma “Etnografia Tradicional do Brasil”, com vagar e teima, amor e medo. A SBF que menciona é a Sociedade Brasileira de Folclore, que Cascudo corajosamente criou em Natal, a 30 de abril de 1941. Na mesma carta, faz como se fosse uma prestação de contas ao amigo ao relatar o êxito de suas primeiras atividades: A SBF conseguiu animar e fundar a Federação de Folguedos Tradicionais (sede rua da Borborema, presidente Joaquim Caldas Moreira). A Federação reúne grupos ou sociedades que representam todos os autos tradicionais. Tem uma espécie de stadium. Fandango, Boi Kalemba, Lapinhas, Congos, Chegança, tudo foi levado a público em dezembro passado e os ensaios continuam, uma vez por mês. Todos esses autos estão livres da morte por esquecimento. Existe, nesse período, um largo espaço sem correspondência. Entre as cartas (de Cascudo) datadas de 1º de abril a 28 de julho, há uma lacuna de dois meses e vinte e oito dias de silêncio. É muito pouco provável que um assunto de importância para os dois, como a fundação da Sociedade Brasileira de Folclore, não tivesse sido devidamente comentado. Há, portanto, claro indício de perda de documentos. Ao iniciar o ano de 1943, Mário escreve a Cascudo, a 3 de janeiro: Andei procurando e não achei nada que fosse mais tipicamente paulista. Não fui menino a quem contassem estórias, só me lembro de “Carpinteiro de meu Pai” e assim mesmo porque tenho ele em versão... nordestina! O conto popular a que se refere se denomina “A menina enterrada viva”, analisado em Contos tradicionais do Brasil (1946), já comentado na resenha dos livros de Cascudo. Nesse conto, a menina canta: Capineiro [não carpinteiro] de meu pai! / Não me cortes os cabelos...311 310 Trabalho não concluído, conforme já comentado. Diversas versões dessa melodia estão em ANDRADE, Mário de. Melodias do boi e outras peças (1987). 311 318 A 13 de abril, Cascudo relata o andamento de seus trabalhos e projetos sobre o folclore e sua música: Já acabei a trapalhada dos “contos” e agora grudei-me com as danças dramáticas ou autos populares brasileiros [...]. Os “contos” me fizeram cabelo branco. É a última carta do ano de 1943. Depois de longo intervalo, escreve Mário para Cascudo, meu velho, em carta enviada no Carnaval de 1944312: Estou lhe escrevendo só pra lhe mandar um artigo meu em que discordo de você. Não há indicação que possa identificar a que artigo se refere. Pela data, é de se supor que tenha sido “Vaqueiros e Cantadores”, datado de 11-II-940 e incluído em O empalhador de passarinhos, ainda nesse mesmo ano. A longa resposta de Cascudo, datada de 22 de fevereiro, parece ser uma tentativa de explicações ao amigo paulistano que, em seu recentemente publicado O empalhador de passarinhos, teceu tão rigorosas observações sobre o seu Vaqueiros e Cantadores. Note-se que há um intervalo de 10 dias apenas entre o texto de Mário e a resposta de Cascudo. Pode-se concluir que Cascudo se apressou em se explicar: Vamos conversar sobre uns reparos seus ao VAQUEIROS E CANTADORES. Assim, no início das explicações, diz: [...] Dava resultados se fosse aí na Lopez Chaves ou aqui na rua da Conceição. Não é possível. Fiquei curioso de ver sua interpretação às pp. 142-147 do livro. Voz dura e canto monótono tiveram sua explicação, minha, há sete anos. Continuo ouvindo cantadores do sertão e coqueiros das praias e dos brejos. São diversos mas não estão em discussão as dessemelhanças. Na página - 146 disse o que pensava do assunto. A monotonia do canto sertanejo decorre de ser um acessório, um detalhe no processo da improvisação ou repetição do texto decorado. O desenho é pobre atende-se ao ritmo da métrica, do recitativo, único centro-de-interesse. A força da invenção liberta das obrigações do “bonito” melódico. Atua exclusivamente na nitidez e felicidade das narrativas. “O desenho musical se desenvolve automaticamente, por impulsão do ritmo poético ou por sua única necessidade declamatória”. Escrevia assim há sete anos, pag. - 145 do VAQUEIROS E CANTADORES. 312 Inédita. Por especial deferência do Acervo Ludovicus – Instituto Câmara Cascudo, Natal. 319 Há, naturalmente, essa explicação e outras para essa monotonia. Todos os rapsodistas foram assim. Nada exclui, mestre Mário, que o canto seja monótono. Tem razão de ser monótono. Razão fisiológica. Razão psicológica. Razão técnica. Razão tradicional. Quatro razões para ser e estar sendo monótono. Em janeiro de 1944 ouvi cantador em Jardim do Seridó. Não posso alterar o que escrevi em 1937. Certinho, Mário amigo? Não sei se você se interessou por uma singularidade no cantador sertanejo. É o único a cantar sem acompanhamento. Violas e rabecas tocam quando ele se cala. Não conheço, noutros folclores, exemplo parecido. É mais um argumento, e poderoso, para essa onipotência da narrativa sobre a música. Esse silêncio evidencia o afastamento de mais um centro de interesse que desviaria, do auditório e das atenções pessoais do cantador, o sentido da narrativa, do desafio e do romance. Como você sabe, gregos, romanos, cantadores medievais, todos cantavam com acompanhamento instrumental, ao mesmo tempo. E ainda hoje, quando vemos, nos palcos, os falsos sertanejos cantando “desafios”, ouvimos o acompanhamento imediato. Esse pormenor os afasta irremediavelmente do sertão nordestino. No litoral e brejos, os ganzás soam, ininterruptos. E há refrão, dança, movimento do coqueiro, andando, rodando, virando, pulando como Chico Antônio que você ouviu no “Bom Jardim”. O cantador sertanejo canta imóvel. Não canta coco. Não há refrão. Não há coro. Ainda esses fatores positivam a unidade do canto e da música na fidelidade aos processos dos “gestos”, canto de ação, sem paisagem, canto de valentes, de brigas, de lutas de touros, vaquejadas, caçadas de onças, derrubas de novilhas, enfim, como já disse, “voz livre dentro de um canto livre”. A voz do cantador sertanejo acho-a sem maleabilidade porque ele não tem os recursos acessórios dos coqueiros e sambistas. Não há muita “solfa” nem invenção. As modificações pessoais restringem-se ao ritmo ou a maneira de finalizar o canto, sempre nasal, boca fechada, no princípio ou fim de uma determinada sílaba, ad libitum. Não há variedade melódica que determine essas acomodações sucessivas. Os coqueiros findam mais alto. Os cantadores mais baixo. Para eles, você bem sabe, a música, a “solfa”, como dizem, nada 320 vale. Cantam, com a mesma solfa colcheias, carretilhas313 e martelos. O auditório, sertanejo ou qualquer auditório para um cantador, só presta atenção, só bota cuidado, na história que ele está contando. Daí a monotonia e a voz que não precisam jamais tornar-se doce porque jamais entoou uma modinha, sacudiu um coco ou entrou numa roda de zumbê, de palma-de-mão, fruta praieira, no tempo do cajú. Tive a impressão de que você julgou esse juízo, e esta crítica inaceitável filhinha amada de duas mamães: – ignorância dos processos velhos dos rapsodistas, e reminiscência pessoal do bel-canto. Penso que o primeiro não deve estar muito certo, ou inteiramente certo. VAQUEIROS E CANTADORES, páginas citadas, denunciam algumas leituras nesse rumo. O segundo, aqui dou um depoimento melancólico, é o inverso, justa e verdadeiramente. Ouvi a ópera (de quem sou inimigo natural) em 1922. Já estava, de dentro para fora, um sertanejo finito, na acepção de Papini. Em vez de carregar nos ouvidos Puccini e Verdi para o pé da viola, fiz o contrário, sem querer, mas é a viola quem vive no meu ouvido e não o recamo pucciniano. Dessa minha tragédia de não entender nem respeitar música de ópera, música operaria, como dizia a pobre Germaninha Bettencourt,314 é testemunha um amigo de nós ambos, Renato Almeida. Como esse bel-canto influiria para eu achar feio ou bonita a solfa sertaneja, ouvida muitíssimo antes? Aqui então, velho Macunaíma, minhas conversas. Imagino como deverei ser enxergado por quem não terá autoridade, interesse e honestidade como você possui... Cascudo escreve a Mário velho a 29 de fevereiro, em papel timbrado da Sociedade Brasileira de Folk-Lore que, pelo endereço informado, Rua da Conceição 565, estava sediada em sua residência. O incidente das cartas anteriores não pareceu alterar em nada o relacionamento dos dois. Gostei da carta. [...] Nós somos do tempo da Paulicéia desvairada. Há mais de vinte anos. Anzol entorta para dividir um do outro. 313 Essas duas palavras necessitam de uma conferência quanto à grafia. Germana Bittencourt, cantora falecida em 1931. Mário rompeu a amizade com ela por conta da divulgação de material musical por ele pesquisado. O exato motivo do desentendimento está descrito pelo próprio Mário em carta a Cascudo datada de 11 de novembro de 1931. 314 321 Naturalmente não somos padre e sacristão para viver rosnando “amem” quando o outro diz qualquer cousa. Mas o resto é inoperante. Em seguida, envia as notícias folclórico-musicais: Para os Estados Unidos já escrevi seu nome umas 30 vezes em vez do meu. Perguntam cousas do Folk lore [Folclore] musical, alheio ao geral e sim as características, aos elementos típicos, às constantes, e vou dizendo que você é o Macunaíma de sempre. Anteontem fiz o mesmo para um cara de New York que pedia bibliografia musical. Embora não sejam importantes pela raridade do assunto musical abordado, transcrevem-se as cartas abaixo por serem as últimas do conjunto estudado. Natal, 12 – 6 – 44. Macunaíma querido Bem desejei avistar você no Rio de Janeiro. Tive dois meses de trabalho contra moléstia e sofrimento pela morte de um cunhado e o sogro, internação de minha mulher na Casa de Saúde. Pelo Renato Almeida recebi notícias e depois a carta fraternal que muito me alegrou. No hotel conheci um chileno que é professor na Universidade de Berckeley, Torres Rioseco, muito conversador e encantado por você. Gostei muito do Rioseco. Se você andar pelos lados da Rua 15 de novembro pergunte ao Martins como vai vivendo a “Antologia do Fok Lore Brasileiro” que lhe mereceu simpatia. O Martins anunciava provas para fevereiro, e estamos em junho sem elas. Uma curiosidade sua seria agradável para mim. Felizmente encontrei os filhos em paz e minha mulher está passando bem. Com a casa enlutada, vamos tranquilamente, mas ainda cheios de saudades e mágoa. Em 1935 perdi meu pai quando eu estava no Rio. Agora é a vez de minha mulher. Uma solidariedade bem triste. Fiz uma linda viagem. Menos de sete horas para 2.400 quilômetros, num vôo sereno, por cima das nuvens. Aqui estou. Lembre-me a todos e vá deixando de esquecer seu velho e certo, Amo Cascudo 322 A seguir, vê-se a última carta de Mário de Andrade315 enviada ao amigo Cascudo: São Paulo, 13 de agosto de 1944. Cascudete querido. Não tenho mais papel de avião aqui, só este pedacinho, é domingo, se não escrever agora não sei quando vou escrever, a semana vai ser cheia, tudo tomado. E lhe escrevo porque agora tenho notícias certas a lhe dar sobre a sua Antologia de Folclore do Martins. Estou, recebi anteontem, com as segundas provas da edição aqui na mesa, porque me prontifiquei a ler e corrigir. Só estas segundas provas, entenda, porque não quero me responsabilizar junto de você, pelo que sair. A última edição de minha Pequena história da música saiu infecta quanto a desleixo de impressão, fiquei muito aporrinhado316. Quero ver se em quinze dias acabo a leitura das suas provas, puxa que livro enorme, quase seiscentas páginas. Mas que trabalho útil você fez. Só percorri o índice, quando o livro estava ainda em projeto e o Martins me consultou, achei muito bom. Agora vou ver tudo. Transmita à sua mulher o meu sentimento de solidariedade pela morte do pai dela. Fraca como devia estar, decerto foi um golpe fundo. Mas vejo pela sua carta que ela já está se recobrando da operação que sofreu e desejo que tudo volte breve ou já aos eixos. Como vai nosso Fernando Luís, forte e grande, imagino. Que Deus o abençoe e cumule das felicidades dignas, deste mundo. Com o abraço mais amigo e afetuoso prá todos os seus, do Mário. Como breve conclusão preliminar, poder-se-ia destacar o entrosamento intelectual entre Luís da Câmara Cascudo e Mário de Andrade, fruto certamente da identidade de pensamento, semelhança de projetos e substrato básico de seus princípios modernista-nacionalistas. Como já foi comentado, nas coleções – São Paulo/Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo e Natal/Acervo Ludovicus/Instituto Câmara Cascudo – existem alguns períodos de silêncio que decerto indicam extravio de cartas. Tudo sugere que as correspondências foram benéficas para ambos, pois nelas colaboraram e permutaram informações, discutiram pontos de vista e expuseram suas 315 316 Inédita. Por especial deferência do Acervo Ludovicus – Instituto Câmara Cascudo, Natal. Está grifada a última menção musical da correspondência. 323 opiniões. Até mesmo após as rigorosas críticas e opiniões discordantes publicadas por Mário em 1944, não se verificou nenhum esfriamento na amizade nem na frequência das cartas. Mário não conseguiu fazer uma terceira visita a Natal, a qual poderia ter estreitado esses laços, mostrando-se muito incomodado por, em vista de seus crescentes afazeres, não poder batizar seu afilhado e se deliciar com o bolo de macacheira e a cultura popular. De sua última carta (13 de agosto de 1944) a seu falecimento – 25 de fevereiro de 1945 –, sete meses se passaram sem se contatarem. Cascudo deve ter guardado com carinho a lembrança da boa amizade até quando, quarenta e um anos depois, partiu para, como ele mesmo dizia, a grande viagem317. 4.6.7 No silêncio da noite São por demais conhecidas as histórias de grandes nomes da inteligência e criatividade que, depois de intensa vida de trabalho e produção, foram postos à prova pelo recebimento de uma limitação física e que, mesmo após haverem incorporado uma redução em sua capacidade de ação, adaptaram-se ao obstáculo que lhes surgira e reagiram positivamente, produzindo como se nada lhes tivesse acontecido. Na área musical, a perda da audição é considerada o que de pior poderia acontecer a um músico. Entretanto, três grandes compositores deram exemplos de respostas positivas a dificuldades que lhes ameaçavam entravar a ação corporal. O mais famoso deles é Ludwig van Beethoven que, surdo aos 46 anos, produziu assim mesmo importantíssimas obras, entre elas a 9ª Sinfonia, a Missa Solene e os últimos quartetos. Assim como ele, Bedrich Smetana foi acometido de surdez e, mesmo depois de demitirse da direção do Teatro Nacional Tcheco em 1874 por causa da doença, compôs grandes obras durante dez anos, até seu falecimento em 1884. Bastante semelhante é a história de Gabriel Fauré que, impactado pela surdez aos 75 anos, demitiu-se da direção do Conservatório de Paris (1920) e compôs surdo até seu falecimento em 1924. Luís da Câmara Cascudo também se viu acossado por limitações físicas que incidiam diretamente em órgãos de que, em grande parte, dependia sua ação criadora: a visão e a audição. São problemas que, em geral, manifestam-se aos poucos, sendo, na maioria das vezes, impossível precisar quando começaram. 317 Luís da Câmara Cascudo nasceu em Natal a 30 de dezembro de 1898, falecendo a 30 de julho de 1986. 324 Conforme informações de sua neta Daliana318, a surdez parece haver se manifestado na volta da viagem à África, em 1963. As primeiras lembranças da menina, quando ainda criança, são do avô já surdo e tentando compreender labialmente as pessoas, mas somente ela e a esposa Dália logravam maior êxito, não precisando escrever para ele ler e entender. Ao que parece, a origem do seu problema foi uma otite mal tratada. Cascudo sempre foi avesso e impaciente com tratamentos médicos. Em certa ocasião, comentou em carta ao amigo Almirante seu entusiasmo pela biografia de Noel Rosa, publicada pelo radialista carioca, e fez uma importante revelação: mesmo acometido pela surdez que avançava, não havia parado de produzir319. Surdo de um ouvido, ficando sem o outro, com catarata, hipertenso, estou escrevendo uma História da alimentação no Brasil320. Assim como os musicistas anteriormente referidos, também comprovava a grandiosidade de seu potencial, mostrando-se impassível ante a adversidade limitadora. É conveniente lembrar que essa obra, em dois volumes, apresenta um de total 940 páginas – um tour de force para qualquer escritor em condições normais de saúde. As obras de Beethoven, consideradas mais importantes do ponto de vista técnico e inovador, fazem parte do período em que já estava acometido por total surdez. Curiosamente, esse autor foi o primeiro musicista a ser tema de uma crônica de Cascudo, publicada em A Imprensa (26/03/1922). Em “Beethoven, Senhor dos Ritmos”, faz um comentário que agora pode ser feito a ele próprio: Está tão alto que é preciso ficar de joelho para vê-lo e senti-lo. O Pequeno manual do doente aprendiz (1969) foi escrito durante um período de internação no apartamento 203 do Hospital das Clínicas, atual Hospital Universitário Onofre Lopes. Foram dois períodos, conforme informa o autor: agosto de 1967 (quando sofri esgotamento e a Dama Erisipela me visitou) e abril de 1968, ano em que escreveu o texto. Parece ser a primeira referência ao problema que o acometia: Triste coisa é surdez, escreveu Carlos de Laet. Estou surdo. Ouço, a certa distância, palavras e melodias de forma confusa, irregular, disfônica. Inoperável porque a lesão é no nervo auditivo. Recorda três surdos ilustres: Consolo-me com Beethoven compondo, Ronsard escrevendo, Edson “inventando”, meus antepassados no domínio da insurdescência. A evidência da surdez e suas limitações provocaram-lhe duas decisões: Renunciei ao Conselho Nacional de Cultura e ao seu congênere estadual. Justifica sua atitude: Daliana Cascudo Roberti Leite é diretora administrativo-financeira do Ludovicus – Instituto Câmara Cascudo. Entrevista concedida a 3 de setembro de 2010. 319 CABRAL, Sérgio. No tempo de Almirante: uma história do rádio e da MPB (1990). 320 CASCUDO, Luís da Câmara. História da alimentação no Brasil (1967). 318 325 Humilhante, não perceber as vozes nítidas nas relações amigas, mesmo familiares. Que iria fazer nas galeras oficiais? Continua Cascudo a refletir sobre a sua situação de surdo: Até certo ponto é uma defesa oportuna às eloqüências e ruídos dispensáveis. Um processo imperativo de isolamento, concentração, valorização do Mundo interior. A oportunidade de introspecção, análise. Maiêutica aplicada à curiosidade íntima. Distanciada das seduções sonoras, a surdez é uma reveladora de pormenores mentais, antigamente dispersos na tempestade dos sons captados. É uma reexposição memorial em câmara-lenta. A exasperação neurastênica dos surdos primários, pertence aos que vivem pelos sentidos do contato. Pelas funções de relação. Jamais estiveram sozinhos, nas alegrias da própria convivência. Têm impaciência na presença inefável do Silêncio, julgado maldição. Ouve-se sem a parafernália dos órgãos específicos. Beethoven ouvia a sua música, continua sua reflexão. Não seria indiferente ou má para ele. Há quem sofra o pavor de reencontrar-se. Terror em deparar seus pensamentos. As crianças são mentalmente, auto-suficientes. A Lúdica infantil é uma criação ininterrupta de Mundos. Perdemos esse poder materializador do imponderável. O sentido perceptivo de outras dimensões. A surdez é capaz dessa miraculosa recomposição. Tem-na os cegos, quanto mais os surdos em que a visão colabora. Entre outras conclusões, diz: A surdez é uma promoção seletiva de motivos intelectuais. Um concerto sem assistência. Ele compreende que, mesmo sem nada ouvir, não se considera um solitário pela riqueza de seu mundo interior: A solidão é a ausência de fauna e flora anterior e pessoal. Isolamento para aqueles que não sabiam andar e a pé [...]. Escrito mais ou menos na mesma época que o livro anterior, Na ronda do tempo (1971) traz um registro feito no dia 14 de agosto em que descreve sua situação: Surdo, tendo sido melômano, pianeiro de ouvido, não mais percebo a Música, em clareza e seqüência harmônicas. Recebo-a como uma massa confusa e sonora, indistinta nas células melódicas, sem o entendimento auditivo para o 326 desenho da composição integral. Uma ou outra frase transmite-se, viva e nítida, num milagre comunicativo. Pela divina Lei da Compensação, a Memória guarda e reproduz os trechos outrora familiares, numa restituição generosa e suficiente. Já não podendo ouvir Música, penso-a. Em Mensagens de Câmara Cascudo e Cosme Lemos, dirigidas a Thadeu Villar de Lemos (1972), está a transcrição de algumas cartas em que comenta sobre a sua saúde. À página 9, aconselha o amigo e lhe sugere uma forma de viver bem, apesar de alguns problemas, dando seu exemplo bem-humorado de entusiasmo pelo trabalho: Ocupe-se para não preocupar-se. Estou aposentado, 71 anos em dezembro, surdo, míope, jumentalmente otimista, e grudado na leitura, com os dedos na máquina. Um livro atrás do outro, numa obstinação de percevejo faminto. Mais adiante (página 11), dá outras notícias: Também vou operar-me de cataratas. Da surdez é que não ficarei bom. Mas tem suas compensações. Já à página 46, parece desviar a atenção dos problemas maiores e dispara o bom humor, reclamando do que faz acreditar ser o que mais o incomoda: Não tenho, mercê de Deus, contato com reumatismo e seu séquito artrítico. Minha enfermidade mais apoquentante é a velha azia, hipercloridria, etc. Estômago de quem comeu pimenta e mastigou areia do morro. Esta carta parece papeleta de consultório. A tentativa de encontrar uma solução ou paliativo eficaz para o problema da audição levou a família a experimentar os aparelhos auditivos, que, na década de 1970, eram bem mais precários e incômodos que os atuais. A neta Daliana descreve-o irritado se o aparelhinho não correspondesse a suas expectativas e, quando não funcionava, reclamava para a esposa: Dália, estou fora do ar! Buscando uma compensação na deficiência que o incomodava, explicava, com o bom humor que lhe era constante: Ah, Claudio, você tem um motivo grande para se preocupar sem ser com... [menciona nomes de diversos políticos em evidência, naquele momento] e outros facínoras, não é? Devem ser muito boa gente, apenas tocam outro instrumento [Ri]. Eu, felizmente, não ouço os discursos deles na televisão! E Cascudo não alcançou a fase atual dos longos programas destinados à propaganda eleitoral gratuita. Ainda segundo sua neta Daliana, a catarata se manifestou pelos finais da década de 1970 e inícios dos anos 1980. O sucesso parcial da cirurgia a que se submeteu em 1975 reduziu por demais a capacidade de visão, principalmente para perto, o que 327 limitava a possibilidade de ler e escrever. Era comovente vê-lo usar grossas lentes e, ainda mais, recorrer a uma lupa para ler o que estava escrito. Porém, continua a neta, comentava que a surdez havia trazido uma convivência com ele mesmo e que gostava disso. Dizia que escrevia mentalmente livros inteiros. Daliana pedia que ele ditasse que ela escreveria. Ele respondia que não era a mesma coisa. Faltava o ambiente de sempre, rodeado de livros, sozinho, vigiado e protegido por velhos “santos”, a velha máquina datilográfica Remington e o perfume dos charutos atravessando as madrugadas. Não era possível à jovem neta acompanhá-lo por caminhos de tão difícil acesso. Nos dias 14, 17 e 25 de janeiro de 1980, foram gravadas entrevistas com Luís da Câmara Cascudo sobre as antigas modinhas natalenses. Os trechos que se seguem dispensam qualquer comentário; eles falam por si e refletem a forma peculiar com que Cascudo lidava com o problema, alternando momentos de depressão e instantes de reação para os quais se valia de sua sabedoria e, especialmente, de seu constante bom humor. [...] Estou sem memória. Às vezes pergunto à minha mulher o nome de um neto. [Dona Dália, de longe: “Isso aí ele está exagerando!”]. [...] Eu estou com uma enfermidade que eu sempre neguei a existência; ou quando admitia a existência era nos outros. Nunca acreditei que ela viesse pra mim porque fui sempre um homem sadio. Não queira saber o que eu tenho sofrido; é uma dor nova para mim. [...] Hoje, eu sou um fim de tarde... E digo à minha mulher, não conversando, porque eu não ouço a voz humana, mas ela escrevendo. Eu digo para ela: hoje, a música para mim é uma recordação, mas é um consolo que eu teço e volto a ouvir a música. Não só a modinha como também a música clássica. Concertos inteiros eu ouço. Sonho com a música. Acordo dizendo a Dália: “passei a noite ouvindo... aquilo de Chopin, que você tocava”. Mas, em compensação, deixei de ouvir muita besteira, viu Claudio? E não ouço os ruídos, buzinas de automóvel e tal... eu não ouço. [...] Ora, meu filho, o meu único trabalho é corrigir e atualizar os meus livros para as novas edições. Não penso mais em... tinha a idéia de escrever um livro de reminiscências, notas... o derradeiro, com o título triste de “Antes da Noite.” Mas, cadê... eu não respondo um cartão, não respondo um bilhete! Eu, que José Lins do Rego disse numa pândega, que eu era o único 328 escritor brasileiro que respondia cartas. Sou, talvez, hoje, o único que não responde. Eu que tinha essa fama, de respondê-las a todas. Mas, é a moeda com que se paga uma vida longa... É o reumatismo no joelho... e coisas parecidas com essas [...] Não ouvir uma nota musical!... Ver as grandes orquestras aí... com os autores de minha predileção e não perceber um acorde... uma frase... [...] Até o ano passado eu lia música. Recebia muita música escrita para opinar. Mas agora... as equivalências dos acordes... não lembro da equivalência num acorde, de maneira que só posso ler a solfa na primeira linha do pentagrama; não leio o acompanhamento. [...] A memória não dá... uma das primeiras coisas é esquecer. A primeira coisa que a gente perde é a memória melódica. Como diabo é a solfa disso? Há quantos anos eu deixei de cantar? Há uns quarenta, mas, assim mesmo, cantava pequenas coisas em casa ou em casas, porque a minha participação maior era o piano. Só podia ser em casa. A análise que Cascudo faz nessa entrevista sobre seu estado de saúde é incisiva, impressionando e comovendo pela objetividade e pelo estoicismo. Considere-se que tinha 82 anos quando assim se pronunciou. Seu depoimento dispensa, pois, qualquer comentário. Uma menção, entre outras, escolhida na referida entrevista poderia fechar as presentes transcrições. Nela, o escritor parece expressar uma despedida da música que não mais podia ouvir: Meu piano é tão velho... [...] é tão velho que não toca mais. Nos aposentamos, nós dois, eu e o Pleyel. 329 5 GRAND FINALLE MA NON TROPPO (CONCLUSÕES) E eu vos direi: “Amai para entendêlas!” Pois só quem ama pode ter ouvido Capaz de ouvir e de entender estrelas. (Olavo Bilac) A procura das motivações que fizeram com que Câmara Cascudo publicasse tão elevado número de escritos sobre temas musicais leva, em primeiro lugar, ao reconhecimento de seu gosto pessoal por essa manifestação artística, como se pode verificar em sua biografia. Além do prazer pessoal por escrever sobre esse tema, do qual gostava, verificase a existência de alguns pontos que podem ser considerados como proeminentes, constantes, intencionais, demonstrando o objetivo de enfocar assuntos que mereciam destaque, apoio, incentivo e que careciam de sugestões, indicações, esclarecimentos. Tudo se enfeixava e se apoiava em sua vasta cultura e no prestígio que gozava na sociedade local. Assim, a percepção de que ao escrever prestava um serviço à sua comunidade se torna um dos mais claros eixos de sua obra. Os principais motivos encontrados nas crônicas cascudianas podem ser resumidos em: 1 – Registro histórico: a coleta de fatos, principalmente através da informação oral popular, levou o escritor à certeza da necessidade do seu registro e publicação. Graças aos seus escritos, sabe-se muito sobre a música no Rio Grande do Norte. 2 – Resgate de nomes de pessoas: no campo do registro histórico, a abordagem individual teve destaque primordial, passando a ter um relevo por vezes inesperado, em vasta lista de nomes dos quais nada apontava para uma atividade musical amadora. 3 – Resgate de informações sobre os folguedos populares no que se refere à música em que se estruturavam. O espaço limitado de uma crônica não permitia um aprofundamento maior do que atingiu, detalhe será mais bem estudado em seus livros. 330 4 – Fatos nacionais e internacionais de que tomava conhecimento ou participava pessoalmente foram descritos e comentados em muitas ocasiões. A impressão que se tem é de que eram apresentados sutilmente como exemplos a serem seguidos no estado. 5 – Instituições musicais do RN: são várias as oportunidades em que Cascudo lamenta a inexistência de instituições musicais e sugere a sua criação. Destacam-se as associações de músicos com o objetivo de estimular o estudo e promover audições. Às instituições nascidas, com ou sem a sua participação, ele ofereceu divulgação, apoio e incentivo. 6 – Apoio a trabalhos de particulares: assim como procedeu com as instituições, Cascudo deu largo apoio e divulgação a empreendedores musicais, professores e estudantes de música, nos quais notava possibilidades de aperfeiçoamento e êxito. 7 – Formação técnica: a maioria dos musicistas a quem focalizou era amadora e, por conseguinte, não possuía os conhecimentos teóricos necessários para um melhor desempenho. O apoio que deu a instituições musicais como o Instituto de Música do RN (onde foi professor de História da Música) e à atividade particular de alguns professores é a afirmação dessa preocupação. 8 – Valorização do erudito como base para o registro musical: em sua época de maior atividade – anos 1920-1965 –, a formação escolar musical universal era feita geralmente com direcionamento ao erudito. Os cursos brasileiros eram baseados em programas comumente importados e visavam à formação do recitalista intérprete da dita “música clássica”. Musicistas populares que possuíam alguma formação eram geralmente oriundos de cursos de música iniciados e não concluídos. Não havia, portanto, cursos direcionados a “eruditizar” o popular. Cascudo decerto era consciente de que o talento popular seria maior se embasado em conhecimentos teóricos. É bem verdade que não pensava assim em relação aos cantadores sertanejos, mas é importante lembrar que, ao se referir ao violeiro, visualizava a sua parte literária, pensava no poeta popular, o qual, de acordo com Cascudo, deveria ser o mais distante possível da erudição. 9 – Registro musical: são incontáveis as vezes em que lamentou a perda de tantas melodias populares ocasionada pela ausência de registro musical, atividade somente possível com a utilização de recursos técnicos eruditos. Sua insistência pela preservação 331 através do registro musical revela preocupação com o que ainda não havia se perdido e previa a ameaça do iminente esquecimento. 10 – Música e diferenças socioeconômicas: observações de ordem sociológica são constantes em seus escritos e se abrem em duas vertentes. Na primeira delas, encontram-se relatos e comentários ligados ao ambiente popular em que focaliza fatos familiares, destaques a usos e costumes domésticos que envolviam necessariamente a música como fonte de diversão, como também a rua, ambiente onde se desenrolava a serenata, o carnaval e o folguedo folclórico. Em princípios de século XX, o professor particular de música era indispensável por conta da falta de escolas oficiais. Disponível apenas para pessoas de alta renda, condicionava-se à utilização do piano, instrumento mais indicado para o ensino, considerado um investimento de alto custo. Considere-se, também, a diferença dos custos da compra de um violão e de um piano. Na outra vertente, encontram-se suas observações sobre o comportamento da elite socioeconômica, sempre ligada à classe política. As apresentações musicais eruditas desde 1902 realizavam-se no Salão Róseo do Palácio do Governo, que, pelas suas dimensões e peculiaridades de localização (primeiro andar do Palácio do Governo), restringia naturalmente o acesso do grande público. O Governo do estado possuía também o Teatro Carlos Gomes, inaugurado em 1904, onde, além dos teatrais, realizavam-se eventos musicais além dos teatrais. Com os serviços de restauração do teatro, voltou a ser utilizado o Salão Róseo, naturalmente restritivo às classes populares. 11 – O primado do piano e do violão: como já foi comentado no item anterior, as pessoas de baixa renda tinham reduzido acesso a um professor particular de música e à utilização do piano previa posse de um instrumento de alto valor aquisitivo. Já os custos de aquisição de um violão eram comparativamente bastante menores e as informações técnicas para se tocar o instrumento podiam ser facilmente transmitidas pelos violonistas mais experimentados ou adquiridas em métodos de acordes cifrados, de fácil obtenção e baixo custo. Caracterizado em todo o país como instrumento de categoria inferior, o violão era mais vinculado à serenata e assumia as culpas de seus tocadores, nem sempre abstêmios. Mesmo permitido e cultivado no seio das famílias, ainda demoraria em despir-se dessas características para poder ingressar nos salões nobres interpretando um repertório erudito. Resta lembrar que o violão ainda não pertencia ao 332 elenco dos instrumentos musicais considerados dignos de serem estudados em conservatórios, fato que não era exclusivamente local, porém nacional. 12 – Maior prestígio da literatura: Cascudo parece reconhecer e até aceitar que, no que diz respeito à canção (música cantada), o maior relevo era destinado ao poeta, tendo em vista que os compositores buscavam poemas de autores consagrados decerto no intuito de valorizarem suas músicas. Era absolutamente normal dizer que uma canção era de tal poeta, omitindo-se o nome do compositor que, se violonista, sofria as restrições acima referidas. 13 – Críticas: Cascudo assume algumas vezes uma posição de crítico ao comentar o que considerava errado ou prejudicial na sua cidade e país. Entre outros fatos (rádio, letras de músicas), censurou certos programas radiofônicos por considerá-los deseducativos e também letras de música pela má qualidade que possuíam. 14 – Preferência pelo maior: Cascudo nunca escreveu um estudo aprofundado exclusivamente sobre música e muito menos sobre a música no seu estado. Se o fizesse, haveria de ser uma abordagem histórica, talvez uma história da música local. Como a música local não teve eventos ou nomes importantes, o estudo não seria, evidentemente, relevante. O tema foi tratado numerosas vezes, mas nunca com a extensão e a profundidade com que ele tratou outros assuntos. Em entrevista concedida ao autor deste texto, revelou estar ocupado com coisas “maiores”, como o Dicionário do Folclore Brasileiro, o que dificultava dedicar-se à pesquisa das modinhas do seu estado: [...] eu tinha uma missão muito complexa para realizar e realizei. Ou ia para uma coisa ou ia para outra. E eu me decidi pelo “Dicionário do Folclore Brasileiro”, mais de 4000 verbetes, feito sozinho, em Natal [...]. Pelo que foi estudado e comentado, evidenciou-se a presença da música praticamente em todos os momentos da vida pessoal e literária de Luís da Câmara Cascudo. Assim, por centralizar em sua região geográfica a maior parte de seus estudos e pesquisas, havia recebido e anexado a denominação de “nortista incurável”, pela presença constante da música também em sua vida e escritos, parecendo lhe caber outro título, como o de “melômano incurável”. A sua vasta síntese entre o erudito e o popular é uma grande sinfonia plena de temas brasileiros que em muito ultrapassa o pequeno limite de alguns compassos. 333 REFERÊNCIAS CASCUDO, Luís da Câmara. Presença de Cascudo na lembrança de Oswaldo. Entrevista de Oswaldo de Souza [27/12/1987]. Natal: Tribuna do Norte. ALENCAR, Edigar de. Nosso Sinhô do samba. Rio de Janeiro: Funarte, 1981. ALENCASTRO, Luiz Felipe de (Org.). 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Posfácio de Luís da Câmara Cascudo. 343 APÊNDICE Luís da Câmara Cascudo – CRÔNICAS SOBRE ASSUNTOS MUSICAIS Abreviaturas dos periódicos: AImp : A Imprensa ARep : A República CBras : Correio Brasiliense DN : Diário de Natal DdeN : Diário de Notícias Front : Fronteiras NorMag : Nordeste Magazine MovBra : Movimento Brasileiro (RJ) Pub : Publicado Rep : republicado RevCP : Revista do Centro Polimático RevEtno : Revista de Etnografia (Porto, Portugal) RevBrasFolc : Revista Brasileira de Folclore TP : Tribuna Popular (RJ) Data 1918 Dez 18 1920 Jan 15, 25, 27 Fev 5 Agosto 1921 Julho 31 Título Coluna Periódico 1. A decadência da serenata Bric-à-Brac AImp 2. A “bohemia” AImp 3. Violão, voz da raça 4. Ferreira Itajubá Rev CP n. 1 AImp Obs. Edições não disponíveis. Rep. em Joio (1921) 344 Dez 2 1922 Jan 22 Março 26 1928 Maio 3 5. Comentando (Art. sobre “Ao som da viola”, de Gustavo Barroso) AImp 6. Cantadores, de Leonardo Mota OK AImp 7. Beethoven, senhor dos ritmos AImp 8. ARep Por que não teremos um Centro Musical? ARep Jun 1º 9. Musicalerias (I) Ago 2 10. Fabião das Queimadas ARep Set 27 11. Instrumentos musicais dos negros no norte do Brasil ARep 1929 Jan 24 Fev 10 Mar 9 Mar 17 Jun 14 Set 5 Out 16 Out 23 Nov 13 Musicalerias 12. A música e as superstições ARep 13. Carnaval! Carnaval! 14. Instrumentos musicais dos negros no norte do Brasil 15. Proteção da alegria popular 16. Musicalerias (II) 17. Musicalerias (III) 18. Musicalerias (IV) 19. Musicalerias (V) 20. Musicalerias (VI) ARep MovBra 1930 21. Musicalerias (VII) Abril 26 Maio 4 22. Nicolino Milano Musicalerias Musicalerias Musicalerias Musicalerias Musicalerias ARep ARep ARep ARep ARep ARep Musicalerias ARep Notas de História 23. Arsênio Pimentel. Jun 11 24. O “Sono-Films” e as orquestras nacionais ARep 25. Já ouviu os Carolinos ARep Out 30 1933 Fev 24 Jun 15 26. Musicalerias (VIII) 27. Túlio Tavares Com o pseudônimo Nitchewo. Rep em MovBra ARep Ago 29 1932 Recensão. Musicalerias ARep ARep ARep Rep em ARep 09/04/1942 345 1934 Jan 21 1935 1936 Jul 11 Jul 11 Set 16 Dez 20 1937 Jul 1º Out 12 Jul 11 1938 Jan 31 Jan 31 Abril 30 Abril 30 Jul 11 Dez 22 1939 Jan 12 Jan 31 Out 1 Out 16 ARep 28. Sociedade de Cultura Musical Sem registro no ano. 29. Modinhas e modinheiros de Natal Som 30. Marginália – Sobre Mignone 31. Canto orfeônico 32. Prelúdio sobre Bach Som Som Som 33. Curso Waldemar de Almeida 34. Prelúdio sobre Bach 35. Rádio deseducador Som Som 36. Alberto de Castilla Som 37. 38. 39. 40. 41. Som Som Som Som ARep Da canção brasileira Szostakowicz Gershwin Claude Debussy Os nossos autos populares devem viver 42. Lourival Açucena ARep 43. Archibald Joyce 44. O baile de 1868 45. O cavaquinho é brasileiro? Som ARep Som Out 11 Nov 9 46. O cavaquinho é brasileiro? 47. José Leão Ferreira Souto Acta Diurna Front 8 ARep Nov 19 48. Tenente de milícias Manoel J. Açucena Acta Diurna ARep Acta Diurna Acta Diurna Acta Diurna ARep ARep ARep 52. Juvêncio Mendonça Acta Diurna ARep 53. Cavalcanti Grande 54. Nossas modinhas 55. Como dançavam nossos avós em Natal 56. Waldemar de Almeida e as “Modinhas” Acta Diurna Acta Diurna Acta Diurna Acta Diurna ARep ARep ARep ARep 57. 58. 59. 60. Acta Diurna Acta Diurna Acta Diurna Acta Diurna ARep ARep ARep ARep Nov. 11 49. Um teatro campal em dezembro de 1898 Dez 15 50. João de Tapitanga Dez 24 51. Miguelzinho da Gamela (Rep. 14/03/43) 1940 Fev 11 Fev 21 Mar 29 Abr 13 Abr 18 Abr 26 Maio 1º Maio 5 Ago 21 Acompanhamentos de modinhas Santa Cruz da Bica Fala Waldemar de Almeida Teatro em Natal (V) Teatro Santa Cruz Rep Rep. com alterações como “O Pai de Lourival Açucena” 19/01/43 Rep em Bando 16 Rep. em Bando 15 346 Set 1º Dez 22 1941 Jan 24 Jan 15 Jun 11 Jun 17 Jun 22 Jul 31 61. A visita episcopal de 1882 62. Dr. L‟Eraistre Acta Diurna Acta Diurna ARep ARep 63. A morte do capitão Urbano Acta Diurna ARep 64. 65. 66. 67. 68. Acta Diurna Acta Diurna Acta Diurna Acta Diurna Bilhete do Rio Bilhete do Rio Bilhete do Rio ARep ARep ARep ARep ARep O poeta Bajão Waldemar de Almeida (Normas pianísticas) Respondendo I Antônio Elias O coral dos estudantes da Universidade de Yale Ago 3 69. Escola de Samba da Portela Ago 7 70. Noite dos velhos chorões Nov 23 71. Oswaldo de Souza 1942 ARep ARep ARep 72. Eu gosto de samba Acta Diurna ARep Mar 20 73. A jornada presidencial de 1861 Acta Diurna ARep Abr 9 74. O velho Arsênio ” Acta Diurna ARep Maio 24 Out 18 Out 23 Dez 6 75. 76. 77. 78. Acta Diurna Acta Diurna Acta Diurna Acta Dominical ARep ARep ARep ARep Dez 24 79. Xavier da Silveira Jan 4 1943 Jan 16 Fev 3 Abr 30 Ago 5 Set 10 Set 11 Set 17 Out 15 Out 17 Out 30 Nov 13 1944 Março 28 Abr 23 Vozes de um anjo “A Política” de Lourival Açucena O fandango em Natal Espetáculos públicos de outrora ARep 80. O pai de Lourival Açucena Acta Diurna ARep 81. 82. 83. 84. 85. 86. 87. 88. 89. 90. Acta Diurna Acta Diurna Acta Diurna Acta Diurna Acta Diurna Acta Diurna Acta Diurna Acta Diurna Acta Diurna Acta Diurna ARep ARep ARep ARep ARep ARep ARep ARep ARep ARep Acta Diurna ARep Acta Diurna DdeN – RJ ARep ARep Música ao longe Escola de Música Sacra (I) O fandango no broadcasting Um soneto musical Escola de Música Sacra (II) Bumba-meu-boi A charanga do Alecrim Os estudos de Carlos M. Santos Amaro Barreto, o maestro Cego cantando e vendendo folhetos em Currais Novos 91. O padre Arêas 92. Folclore musical nas universidades Maio 12 93. Nortista incurável Set 29 94. O maestro Waldemar Recensão Transcrito do DdeN, RJ Pub 29/08/1930 como “Arsênio Pimentel” 347 Out 4 Nov 29 1945 95. Nota de uma velha aula sobre Debussy 96. Foster e Noel Rosa Acta Diurna Acta Diurna ARep ARep 97. A reserva dos cantadores Acta Diurna ARep 99. O cantor Jimmie Davis 100. Ressurreição do piano 101. Chopin no cinema 102. Uma orquestra para Natal 103. Música e músicos 104. Canção do expedicionário Acta Diurna Acta Diurna Acta Diurna Acta Diurna Acta Diurna Acta Diurna Acta Diurna ARep ARep ARep ARep ARep ARep ARep 105. Canções populares japonesas Acta Diurna ARep 106. Uma velha amiga que não conheci Acta Diurna ARep Acta Diurna Acta Diurna ARep DN Acta Diurna Bilhetes de Portugal Acta Diurna DN DN Acta Diurna DN Acta Diurna Acta Diurna DN DN ARep ARep ARep DN DN ARep DN ARep ARep ARep Som DN Jan 31 Mar 21 98. A música do hino à bandeira do Brasil Mar 22 Ago 29 Nov 6 Nov 8 Nov 17 Nov 23 1946 Fev 20 Mar 21 Maio 16 107. Catulo 1947 108. Dança do espontão Jun 26 Set 12 Set 24 1948 Jan 12 109. Até Deus precisa de sinos 110. O Fado 112. O grupo “Polifonia” de Mário de Sampaio Ribeiro Jan 28 113. Danças regionais portuguesas Fev 18 114. A letra das músicas carnavalescas Maio 11 115. La cumparsita Maio 13 116. Luís Ávila Maio 19 117. Gosta de violão? Jun 1º 118. Há um hino episcopal? Jun 3 119. O terço cantado da Santa Cruz Jun 8 120. Ralph Vaughan Williams Jun 12 121. A lição do maestro Alonso Jun 18 122. O salão róseo de Palácio Jun 26 123. Pro Deo, pro Patria, pro Arte Jul 1 124. Ecce Iterum Polyphonia Jul 11 125. Eu me confesso Jul 20 126. José Soares Jan 14 1949 Jan 11 DN 111. Martins de Vasconcelos 127. O velho Cirineu Jan 13 128. Para salvar nossas modinhas Jan 20 129. História da Praieira Fev 17 130. O maestro Cipião Fev 23 131. Identificação de “Um sonho”, de Segundo Acta Diurna Acta Diurna Acta Diurna Acta Diurna Acta Diurna Acta Diurna Cidade do Natal Cidade do Natal Cidade do Natal Cidade do Natal Cidade do ARep ARep ARep ARep 348 Wanderley” 132. O grande Vicente Andrade 128 . Assobiar 133. Concurso internacional de canções e danças populares Maio 24 134. Origem da cuíca Set 1 135. Zé Antônio Mar 18 Abril Maio 6 1950 Natal Acta Diurna DN Bando n. 4 Acta Diurna DN ARep ARep 136. Santo de casa é que faz milagre Acta Diurna DN Mar 3 137. Para uma orquestra de amadores Maio 18 138. Vizinho pianista Ago 4 139. Uma nota de música 1951 Sem registro no ano. Acta Diurna Acta Diurna Acta Diurna DN DN ARep Fev 4 1952 Mar 26 Nov 12 1954 1955 1956 Jul 3 Jul 5 Ago 9 1957 Abr 15 1958 1959 Jan 23 Mar 24 Abr 23 Maio 9 Maio 12 Jun 20 Set 1º Set 3 Nov 10 Nov 19 Nov 20 1960 Jan 17 Jun 4 Jun 11 Jun 28 Jul 12 140.O Instituto de Música viverá DN 141.Repitam o milagre das rosas Sem registro no ano. DN Sem registro no ano. 142. Valorização social do folguedo popular História e Estórias ARep História e Estórias História e Estórias História e Estórias ARep 146.Felinto Manso Acta Diurna ARep 147. Lá menor, dó maior 148. Centenário de Lucas Wanderley 149. Prelúdio em louvor a Carlos Lamas 150. Otacílio 151. Alcides Cicco 152. Chico Botelho 153. Bandas de música do interior 154. Victoriano Medeiros 155. Lendo um livro de canções 156. Elegia pró Vila-Lobos Acta Diurna Acta Diurna Acta Diurna Acta Diurna Acta Diurna Acta Diurna Acta Diurna Acta Diurna Acta Diurna Acta Diurna ARep ARep ARep ARep ARep ARep ARep ARep ARep ARep 157. Ouvindo o museu do disco Acta Diurna ARep 158. 159. 160. 161. Acta Diurna Acta Diurna Acta Diurna Acta Diurna ARep ARep ARep ARep 143. Uma modinha de Xavier da Silveira (Rep. em 07/05/60) 144. Lembrando Smido 145. Lourival Açucena - Serenata e modinha ARep ARep Sem registro no ano. Modinhas de Catulo Cearense O Poeta e a Fidalga, de Segundo Wanderley Amor esdrúxulo A modinha do poeta infeliz 349 1961 1962 Mar 26 Jun 5 Jun 19 Jun 26 1963 1964 Sem registro no ano. 162. Contribuição para o estudo da modinha 163. Atila Garcia 164. Valorizando a prata da casa 165. Padre Cromácio Leão Sem registro no ano. Acta Diurna DN DN DN DN 166. Bambelô NordMag 1965 167. Prelúdio de gaita. Out 17 168. Oswaldo de Souza e o folclore musical RevEtno, V. 4, Tomo 2, abr 1965 CBras, 05/01/67 Ago-Set 350 ANEXOS 351 ANEXO A – ENTREVISTA 1ª entrevista: 14 de janeiro de 1980 Meu filho, você está realizando o meu sonho de muito tempo. Chamo “meu filho”, “menino”, isto é meu hábito de cinquent‟anos. Chamei Juscelino Kubstcheck, presidente da República, de “menino”. Para mim, não tem jeito, compreendeu? Também chamar de “jumento”, tudo o mais, isso é meu comum, compreendeu? “Peste”, “diabinho”, ainda hoje é o comum. Se explica: eu vivi nesse clima, não tive outro! Isso aqui é muito complexo. Veja que entre os [autores] locais Segundo321 [Wanderley], Auta de Souza...322 Você tem ouvido muita gente em Natal. Ouviu Jaime Wanderley323? Para mim seria o maior informador porque ele era cantor. Era um dos cantores nossos, das modinhas, especialmente as de Castro Alves, dessa gente, além das próprias. Eu estou sem memória. Eu que tive, talvez, a melhor memória do Brasil, estou sem memória. Às vezes pergunto à minha mulher o nome de um neto, [Dona Dália, de longe: “Isso aí ele está exagerando!”] não é, Dália?324 Mas, com os nomes essenciais... Eu fui estudante de Medicina, professor de Direito... os nomes voam. Eu não posso mais fazer uma conferência porque nunca na minha vida fiz conferência lida. Nunca! E não posso controlar os nomes. Agora não me lembro mais. Eu estou com uma enfermidade que eu sempre neguei a existência; ou quando admitia a existência era nos outros. Nunca acreditei que ela viesse pra mim porque fui sempre um homem sadio. Não queira saber o que eu tenho sofrido; é uma dor nova para mim. Carta urgente para responder... cadê coragem de pegar? A maioria desses pra agradecer... [Lendo os papéis que lhe passei] Domingos Caldas Barbosa325, foi um fradeco que... [Chega uma mulher para receber uma esmola. Recebe de Dona Dália. Agradece com exagerados votos de saúde para Cascudo]. Agora vá baixar noutro terreiro!326 [Todos riem, o cachorro late e ela continua com os agradecimentos e augúrios de saúde]. O que vale é que Deus me fez surdo! [Ri]. Eu fui 25 anos professor de História da Música no Instituto de Música [do Rio Grande 321 Manoel Segundo Wanderley (Natal, 1860-1909). Médico, teatrólogo e poeta, com muitos poemas musicados. Auta de Souza (Macaíba, RN1876-Natal, 1901). Poeta, com muitos poemas musicados. 323 Jaime dos Guimarães Wanderley. Poeta, teatrólogo, cantor e compositor. 324 Dahlia Freire Cascudo (Natal, 1909-1997), viúva do escritor. 325 Domingos Caldas Barbosa. Ver a resenha dos livros de autoria de Cascudo. 326 Era uma forma muito usada por Cascudo quando se despedia das visitas mais íntimas. 322 352 do Norte]. Não ouvir uma nota musical!... Ver as grandes orquestras aí... com os autores de minha predileção e não perceber um acorde... uma frase... Até o ano passado eu lia música. Recebia muita música escrita para opinar. Mas agora... as equivalências dos acordes... não lembro da equivalência num acorde, de maneira que só posso ler a solfa na primeira linha do pentagrama; não leio o acompanhamento. Bem, eu estou às suas ordens, mas muito relativamente pela minha saúde e memória. Hoje você se contente com uma tomada de posição e reconhecimento. Eu vou... não posso procurar porque eu tenho um distúrbio circulatório, não posso baixar a cabeça. Conhece o meu Dicionário do Folclore Brasileiro, a 4ª edição, não? Mas, mesmo nas outras tem um verbete “Modinha”. Consegui que Luís Heitor327 escrevesse. Luís Heitor está morando em Paris e era, no momento, a maior autoridade cultural da Escola Nacional de Música. É um trabalho inédito, só existe no Dicionário, sobre a modinha que eu continuo pensando que veio da chanson, que veio da canção tão popular nos fins do século XVIII. O meu trabalho era a identificação; eu tenho um livro chamado... olha... um livro que eu não me lembro bem o título. Está na 2ª edição... é estudando frases, frases feitas... [Lembrando-se] Locuções Tradicionais do Brasil. Há uma frase muito comum do século XIX para: “o sujeito ficou cantando serena estrela”, compreendeu? Está nos jornais, está nos discursos, em toda parte. Saí eu para identificar essa “serena estrela”. O que é isso? Identifiquei a letra, a música e a história do autor. Justamente a sua missão de hoje! Na 2ª edição eu trago a história; não pus a solfa porque não era possível, mas ainda tenho de memória a solfa da “Serena Estrela”. A locução era esta: “ficou cantando serena estrela”. É [declama]: “Serena estrela, no meu céu não viste? / Pálida e triste, foi morrer além. / Em mim findou-se meu extremo gozo, / É já forçoso que eu me vá também”. Quer dizer, esta é a quadra legítima da modinha, com as rimas intercaladas. É exatamente a típica modinha sentimental328. 327 Luís Heitor Correia de Azevedo foi musicólogo e folclorista. Nasceu no Rio de Janeiro, em 13/12/1905 e faleceu em Paris, 10/11/1992. 328 CASCUDO, Luís da Câmara, Locuções tradicionais do Brasil (1977, p. 109): “Cantando Serena Estrela”. O autor do poema é o fluminense Pedro Luís Pereira de Souza (1839-1884). Modinha incluída em Galvão (2000). 353 Pois eu ainda cantei em casa, no piano, mas eu não ouço a nota. Não posso tocar. E se eu cantar todas as estrelas caem do céu! [Riem todos]. Mas você, meu filho, receba o afeto que se encerra nesse peito varonil; receba os parabéns mais vivos, mais entusiastas, mais afetuosos do velho professor Cascudo. Porque encontro bruscamente o homem que está realizando o que eu tentei tantas vezes. Minha mulher é pianista e eu pianeiro. Toco aquelas coisas que você gosta, compreendeu? É o acompanhador de modinhas, já por último as de Hekel Tavares329, que era amicíssimo meu. Hekel era como um irmão no Rio. Ainda conheci Noel Rosa na casa de Almirante, que está vivo. Enfim, é o seu clima. Eu vivi esse clima. Mas, meu filho, eu tinha uma missão muito complexa para realizar e realizei. Ou ia para uma coisa ou ia para outra. E eu me decidi pelo Dicionário do Folclore Brasileiro, mais de 4000 verbetes, feito sozinho, em Natal, viu? Imagine a luta para conseguir uma coisa... eu procurando sozinho e sem orientação porque ninguém se preocupava com isso. Só esse maluco velho, compreendeu? Isso significa, Claudio, que você deverá vir ao “sobradinho”330 muitas vezes. Porque... agora... estou fazendo curso de caretas, viu? Eu estudei a careta como expressão fisionômica porque eu sou autor do livro História dos nossos gestos. Agora, sou o produtor... [Cascudo se referia às “caretas” que fazia por conta de um reumatismo no joelho que o acometia naquele momento]. Heronides de França... E depois eu estou com catarata. É uma luta para achar uma coisa. A moda mais popular e prestigiosa de Itajubá331 não era esta [referindo-se ao texto de um poema que tinha em mãos]. Itajubá morreu em 12, eu tinha 14... me lembro demais dele, frequentando nossa casa que era onde está o Grande Hotel. Ali era a casa de meu pai, o coronel Cascudo. A moda que ele preferia era aquela que, instintivamente, quando a gente batia palmas e dizia; “Itajubá vai cantar! Itajubá!”, ele cantava essa modinha. Botou um título besta chamado “De Natal ao Pará”. Você conhece? Pois essa, compreendeu, era a mais popular das modinhas dele332. 329 Hekel Tavares nasceu em Satuba/Alagoas, no dia 16/06/1896, e faleceu no Rio de Janeiro, em 08/08/1969. Foi compositor e folclorista. 330 Residência do escritor, à Avenida Junqueira Aires, 377, Natal. 331 Manoel Virgílio Ferreira Itajubá, poeta nascido em Natal, em 21/08/75, falecendo no Rio de Janeiro, em 30/07/1912. 332 Na ocasião, Cascudo foi vítima de uma falha de memória que tanto o incomodava, pois a modinha a que se refere foi musicada apenas em 1922, dez anos após a morte do poeta, para concorrer a um 354 [Lendo a relação das modinhas já pesquisadas] Também as modinhas, viu? – de Fagundes Varela, mais especialmente de Casimiro [de Abreu].333 [Continua lendo] Ah... Virgílio Carneiro... tocava violino e tocava também piano. “Adeus. Vão se acabar as noites claras / As trovas ao violão pelos telheiros”334. Deixe eu espiar para você de novo... Que menino levado do diabo! Mas, você sabe... Jaime [Wanderley] cantava à noite modinhas de Itajubá e chegou a cantar modinhas de Titó. Titó é como eu chamo Othoniel Menezes. Eu só chamo Othoniel Menezes de Titó335. Ah... já me lembro de uma figura esquecida e que era tão querida por nós. Formou-se em medicina... era bondade em pessoa: José Ivo Moreira336. Havia uma modinha de Titó que dizia: “Cravo branco a florir na fantasia”. Fatalmente, José Ivo gritava: “De joelhos, todo mundo!” Aí, tinha que se ajoelhar na rua...337 A viola era no interior; o violão no litoral e nas cidades, mesmo no sertão se usava o violão. Não há solo de viola, só havia o rojão. O rojão era a viola batida. Eu creio que veio daí a influência do nosso violão batido, que você vê tanto na televisão. Porque o violão da cidade modulava, sabe? – contracantava o que o cantor estava cantando. E, na televisão não há isso. Eu já não ouço mais. Mas, na televisão é... [Imita os gestos dos guitarristas que aparecem na televisão]. Eu creio na influência dos cantadores que cantam assim. Você, Claudio, deve compreender que estou entusiasmado com você. Entusiasmado porque eu não podia realizar porque eu estava preocupado com outras pesquisas. Ia para a África, para a Europa e aqueles em quem eu confiava falharam. concurso promovido pelo governo do estado, na administração do governador Antônio José de Melo e Souza. Itajubá não musicava suas poesias. O autor da citada música, que está incluída nessa coletânea, foi o violinista Virgílio Carneiro. 333 Os poetas em geral não compunham músicas para suas poesias, mas em vista do prestígio que tinham e do desconhecimento ou da menor importância atribuída ao músico ganhavam, na acepção popular, a autoria total da modinha. 334 Primeiras estrofes de “De Natal ao Pará”, de Ferreira Itajubá. In: Poesias completas. Natal: Fundação José Augusto, 1965. 335 Othoniel Menezes de Mello, poeta. Nasceu em Natal, a 10/03/1895, e morreu no Rio de Janeiro, em 19/04/1969. 336 José Ivo Moreira Cavalcanti (Natal, 24/03/1901 – 3/04/1955). Boêmio e seresteiro, depois médico consagrado e líder católico. 337 Terceira estrofe do poema “Viver de Amor-Antítese”. In: MENESES, Othoniel. Ara de FogoAbysmos-Esparsos (1989). Os versos foram musicados por Olympio Baptista Filho e a parte musical está publicada também em Claudio Galvão, O Cancioneiro de Othoniel Menezes (1995). Considerados por José Ivo como os mais belos versos que conhecia, deveriam – segundo ele – ser cantados de joelhos nas serenatas. A modinha está incluída em Galvão (2000). 355 Waldemar [de Almeida] não compreendia nada da função social e sentimental da modinha338. Ora, a modinha fora um domínio. Melo Morais Filho... eu tenho um livro em três volumes: Serenatas e Saraus. Esse livro foi a Bíblia do Rio de Janeiro. Eu consegui esse livro num leilão. Agora, há um outro livro de que se fez uma antologia das modinhas mais populares do Brasil. Você conhece isto? Tem a música. [Passo um papel para ele, onde escrevi “Canções Populares do Brasil”, de Júlia de Brito Mendes] Talvez seja este. Eu tenho este livro aí na minha biblioteca. Pois, o clima favorecia. Pedro Velho339, o senador, duas vezes governador, “dono” do Estado, proprietário do Estado, morreu em sete. Tocava piano de ouvido. Tocava não, acompanhava modinha que ele solfejava. De maneira que, quando ele estava sozinho na casa da irmã, aqui na Vila Barreto, que é hoje o [Colégio] Salesiano, ele abria devagar o piano, olhava se não tinha ninguém por perto – porque era um desaforo! –, e solfejava baixinho. Porque ele tinha feito quatro anos de medicina na Bahia. As modinhas de Xisto Bahia e Castro Alves340... ele estava impregnado disto. E Alberto Maranhão341 cantava modinha também. [Pergunto, por escrito, se a modinha a que se referia era de autoria de Pedro Velho] Não, nem letra nem música dele! Era a modinha que o havia acompanhado desde estudante na Bahia e que ele, senador, olhava se não tinha ninguém [Faz o gesto de dedilhar o piano] compreendeu? – tocava. Deixa eu me lembrar... é a modinha de Xisto Bahia “Quis debalde varrer-te da memória!”342 Música linda! Quis debalde varrerte da memória. Era a modinha de Pedro Velho! A de Alberto Maranhão era: “À sombra de enorme e frondosa mangueira/ coberta de flores, da tarde ao cair!”343 De maneira que você tem essas notas. Eu estou lhe dizendo isto para lhe mostrar o ambiente como era favorável. 338 Cascudo não se recordava que, nos anos trinta, escreveu diversas crônicas sobre Waldemar de Almeida e suas pesquisas das modinhas do estado. O assunto está comentado no título “Palco iluminado” (Biografia musical). 339 Pedro Velho de Albuquerque Maranhão (Natal, 27/11/1856 – Recife, 9/12/1907). Senador e Governador do estado do RN. 340 Xisto de Paula Bahia (Salvador, 6/08/1841 – Caxambu, 30/10/1894). Foi teatrólogo, poeta e compositor. 341 Alberto Frederico de Albuquerque Maranhão (Macaíba/RN, 2/10/1872 – Angra dos Reis/RJ, 1/02/1944). Foi Governador do estado nos períodos de 1900-1904 e 1908-1914. 342 A partitura desta modinha está em GALVÃO, Claudio. A modinha Norte-Rio-grandense (2000). 343 Trata-se da modinha Bem-te-vi, letra de Melo Morais Filho e música de Miguel Emídio Pestana, incluída em GALVÃO, Claudio. A modinha Norte-Rio-grandense (2000). 356 Segundo Wanderley – que eu ainda me lembro dele – morreu em nove [1909]. Grande fornecedor de modinhas e indicador de modinhas, de Casimiro de Abreu, de Fagundes Varela: “As nuvens douradas!”344 Uma quinta de violão, não é? que é uma maravilha! [Canta] “As nuvens douradas”... é uma quinta. É de um efeito!... Você já deve estar deduzindo como eu estou. Vi minha namorada antiga. A namorada de meus 18, 19 anos. Anos depois casei com uma menina que fez o curso de piano com Babini345. Minha sogra tocava piano. Foi ela que cantava a célebre modinha “Nas horas tristes, ao cair da tarde”. E as filhas aprenderam. Minha mulher fez o curso e eu era pianeiro. Você imagine que o clima se adapta perfeitamente, não é? Não havia oposição em casa... Hoje, eu sou um fim de tarde... E digo à minha mulher, não conversando, porque eu não ouço a voz humana, mas ela escrevendo. Eu digo para ela: hoje, a música para mim é uma recordação, mas é um consolo que eu teço e volto a ouvir a música. Não só a modinha como também a música clássica. Concertos inteiros eu ouço. Sonho com a música. Acordo dizendo a Dália: “passei a noite ouvindo... aquilo de Chopin, que você tocava”. Mas, em compensação, deixei de ouvir muita besteira, viu Claudio? E não ouço os ruídos, buzinas de automóvel e tal... eu não ouço. Bem, amanhã... hoje eu não posso fazer nada. Eu vou ler amanhã e vamos subir a escada devagar. “Nas horas tristes, ao cair da tarde”... [Dirigindo-se a Dona Dália]. Eu quero que você cante isso em voz baixa para Oswaldo, que eu chamo Oswaldinho346 que ninguém se lembra mais disso. O autor dessa modinha foi presidente da Bahia, presidente do Rio de Janeiro, deputado... esqueço o nome dele. Quando eu identifiquei, o meu amigo de Niterói, Rubens Falcão, deu ataque! Ficou assombrado de eu ter identificado a modinha e a solfa, mas a solfa está aí nesse álbum.347 Ainda vi Heronides acompanhar Itajubá! Que maravilha o violão de Heronides! Outro que você deve ter aí é Olympio Baptista Filho348. [Escrevo num papel e passo para ele] “Tenho a maior inveja do Senhor!” É a modinha “A nuvem doirada”, letra de Gonçalves Dias e música de autor não identificado. Galvão (2000). 345 Thomaz Babini nasceu em Faenza, na Itália, e faleceu em Recife. Violoncelista, regente, compositor e professor de música. 346 Oswaldo Câmara de Souza. 347 A modinha referida por Cascudo está presente nesta coletânea, com o título de “Ao Morrer do Dia”. 348 Olympio Baptista Filho, poeta e compositor. Biografia em GALVÃO, Claudio. A modinha Norte-Riograndense (2000). Ver BAPTISTA FILHO, Olympio. Falenas: Cancioneiro (2007). 344 357 Eu acredito. Também no Rio, quando eu digo que eu vi Noel Rosa, o sujeito diz: “Ah, mestre, que inveja!”. Noel Rosa morreu em 1937, eu tinha 39 anos, já era pai de filhos. [Lendo a relação dos modinheiros natalenses que lhe passei] Ivo Filho... a modinha mais popular dele é uma que dizia: “Tão fria a noite, tão deserta a rua”349. Othoniel dizia: “Para viver de amor basta a saudade. Então, eu, por brincadeira, dizia: “Para viver de amor basta um soldado!” [Ri]. E, então a coisa pegou. Titó só faltava morrer de raiva comigo... Nós, amigos íntimos desde rapazes... isto no nosso ambiente sereneiro. Hoje é segunda, Claudio; você dê um saltinho aqui na quinta, sempre a essa hora, porque eu durmo muito mal... pela manhã estou dormindo. Às vezes, acordo às 3 horas, quando vou jantar. Mas, eu estou escolhendo horários e dias em que seja possível. Eu vou ver o cardápio e escolher aí os pratos que posso deglutir. Você está psicologicamente com uma defesa maravilhosa. Todo mundo, no Rio e São Paulo, perguntava como eu mergulhava nesse trabalho, eu: “Por legítima defesa! Vocês se rasgando em política ou em economia, espalhando caco de vidro, não é? e Câmara Cascudo estudando gestos. Através de que? Da origem... de onde é que veio... Estava fora. Você está fora do mundo... Está! Eu compreendo e é a minha vez de dizer; “Eu tenho inveja!” É a minha vez. E você tem razão... Ora, meu filho, o meu único trabalho é corrigir e atualizar os meus livros para as novas edições. Não penso mais em... tinha a ideia de escrever um livro de reminiscências, notas... o derradeiro, com o título triste de “Antes da Noite.” Mas, cadê... eu não respondo um cartão, não respondo um bilhete! Eu, que José Lins do Rego disse numa pândega, que eu era o único escritor brasileiro que respondia cartas. Sou, talvez, hoje, o único que não responde. Eu que tinha essa fama, de respondê-las a todas. Mas, é a moeda com que se paga uma vida longa... É o reumatismo no joelho... e coisas parecidas com essas. Você deduza e olhe um governador que era meu aluno, grande admirador, Sylvio Piza Pedroza350. Mas, a tropa que estava em torno dele, compreendeu? dizia: “Essas besteiras do mestre Cascudo”. Agora você concorda que era um grande ornamento: um bom tenor, uns violões, um violino, ou mesmo só piano, acompanhar: “À sombra de enorme e frondosa mangueira / Coberta de flores, da tarde ao cair”. Esta modinha intitula-se “Súplica”, foi musicada por Olympio Baptista Filho. Partitura em GALVÃO, Claudio. A modinha Norte-Rio-grandense (2000). 350 Sylvio Piza Pedrosa (12/03/1918-19/08/1998). Governador do estado durante o período de 16/07/1951 a 31/01/1956. 349 358 Mas, quando você compara a letra daquele tempo com a letra de hoje [Ri], é melhor a gente não comparar para não ficar mal-educado. Eu imagino a música... Você note que hoje é possível cantar somente com um instrumento de percussão. Seis camaradas batendo e um sujeito cantando. No meu tempo era impossível! Você tinha que ter um instrumento de corda no acompanhamento. No samba, você botava pandeiro, mas era indispensável... Hoje eu vejo na televisão, o sujeito ou a sujeita, cantando com instrumentos de percussão. Tambor, maracá, reco-reco e tudo o mais... Isso no meu tempo e no seu tempo mental era impossível! Isso dá uma lição; é que só é necessário para a música de hoje o ritmo. É uma coisa batendo e todo mundo sai dançando. Valsa vienense? Não, rock‟n roll. Da valsa de Strauss para o rock‟n roll. Agora, eu não sou doido para ir contra. Cada época com seu uso, cada roca com seu fuso. No meu tempo pensar num baile e o sujeito fazendo assim... [Imita os gestos do rock‟n roll] a polícia levava para o asilo... Mas, se lembre também que tem bate-bate na missa... Pra se lembrar de coro... coral... em três tons, em quatro tons, cantando as Antífonas, para o sujeito... [Faz gestos gaiatos]. É a época, Claudio. Seus filhos vão ver coisas terríveis! [Ri]. Meus netos já estão assistindo isto, imagine o que os meus tataranetos vão ver depois do ano 2000. Tem gente pra tudo. A miss Suécia no ano passado foi escolhida num desfile de misses nuas! Eu digo: não se espantem porque é uma questão de tempo. Eu, talvez, antes de viajar,351 veja na passarela o que eram as misses desfilando no meu tempo e as misses de hoje. Melo Moraes Filho... “Bem-Te-Vi”... que música bonita! Agora é... [Imita gestos da dança moderna e ri] Tem um filme aí em que um sujeito estira a língua para o público, para nós! Eu, como fui professor cinquent‟anos, etnógrafo, estive na África, não no litoral, mas no interior, da Nigéria à Zambézia. O negro africano é especial e essencialmente músico. Nada se faz na África sem o canto. Aqui ir colher feijão não tem importância. O negro não pode colher nada sem que não comece com um baile rural. E, quando acaba a safra, o baile rural termina, com as músicas tradicionais... de percussão. De corda ou sopro eu só conheço no litoral. Fiquei seis meses na África, no interior, mas vivendo a vida negra... me sentando no chão. Ah, Claudio, você tem um motivo grande para se preocupar sem ser com... [menciona nomes de diversos políticos em evidência, no momento] e outros facínoras, 351 Ao referir-se à sua morte, o mestre Cascudo usava a expressão “a viagem”. 359 não é? Devem ser muito boa gente, apenas tocam outro instrumento [Ri]. Eu, felizmente, não ouço os discursos deles na televisão! Você agora tem isso, tem gravador. Eu não tive... para os meus contos populares. Claudio, eu tive muito prazer que você... se algum homem é capaz de compreender o entusiasmo e a simpatia do outro, é o seu caso. Pela unidade de ação, coincidência das nossas vidas. Você não queira saber a alegria que eu tenho em ver você salvar essas coisas! Especialmente salvar Heronides de França. Antônio Elias352 era porteiro do Palácio. Veja a função da modinha: aqui chegou, recém-casado, em plena lua de mel, o Presidente da Província... Governador; já foi na República. Um dos três governadores nomeados. A letra não era dele, era do pai: “As andorinhas, quando o sol esfria / Neste país onde seus ninhos fazem, / Voam buscando regiões mais quentes, / Onde mais vida ao deserto trazem”353. Antônio Elias botou música nessa modinha. O Palácio do Governo era no Wander Bar354, aqui na Rua Chile. E foi, com um grupo de seresteiros, cantar esta modinha lá. O governador chorou de emoção. Desceu, não de chambre – porque se usava chambre –, mas vestiu uma roupa, desceu, a mulher foi abrir bebidas e daí em diante Antônio Elias ia a Palácio quando queria, viu? Prestígio total! E, ao sair daqui, deixou Antônio Elias numa situação mais alta. Estou sem me lembrar da família...355 Eu fui a um Congresso de algodão, no Rio de Janeiro356 e estavam uns camaradas importantíssimos, sem dar bola para ninguém. Era o secretário de Armando Salles357, pessoal concentrado. Quando chegou a minha vez, eu apertei a mão dele e disse: “Muito prazer em conhecer o senhor pessoalmente. Seu pai foi governador na minha terra; deixou um grande nome. E mais que um grande nome, uma modinha que foi musicada lá e que ainda se canta”. Aí, acabou-se a pose do homem. Disse: “Qual é a Antônio Elias Álvares de França (13/06/1851 - 25/08/1915). Cascudo escreveu uma “Acta Diurna” sobre ele, publicada em A República de 23/06/1941. Biografia em GALVÃO, Claudio. A modinha NorteRio-grandense (2000). 353 O poema intitula-se “Vem”, porém é mais conhecido como “As Andorinhas”. Partitura em GALVÃO, Claudio. A modinha Norte-Rio-grandense (2000). 354 Antigo cabaré, em evidência durante a 2ª guerra mundial e que, anteriormente, abrigava o palácio do governo. O prédio, no momento da entrevista estava em ruínas e foi, posteriormente, restaurado. 355 O governador era Joaquim Xavier da Silveira Junior (1864 -1912). Governou o Rio Grande do Norte de 10 de março a 19 de setembro de 1890. A poesia se intitula “Vem!” Sobre o assunto Cascudo escreveu a crônica “Uma Modinha de Xavier da Silveira”, republicada, conforme está comentada na resenha das crônicas. 356 O evento a que Cascudo se refere foi o “Congresso Algodoeiro”, realizado em maio de 1935, conforme noticiou o jornal A República de 9 de maio daquele ano. 357 Governador de São Paulo na época. 352 360 modinha?” Aí, ele deixou o resto do povo... eu disse: “As Andorinhas”. E ele: “Professor, o senhor poderia jantar conosco hoje?” À noite, estava eu no jantar dele, cantando a modinha e acompanhando ao piano. E a modinha é deliciosa! Aí, juntaram toda a família para ouvirem “a poesia de papai.” E os governadores de Estado e Secretários que tinham ido para o congresso não tiveram nem a metade do meu prestígio. Era a modinha [Ri]. E o meu prestígio era a modinha! [Ri]. E o hábito, naquele tempo de cantar acompanhando ao piano. Uma modinha em sol maior, com todas as falsas e relativas, compreendeu? Não houve bola para ninguém. Nas reuniões, quando eu chegava, iam logo me buscar para um lugar melhor [Ri]. Por causa da modinha! [Ri]. Não foi cultura nem nada. Não era nada para eles, secretários de Estado e tudo o mais. Mas a modinha entrou e acabou-se. Modinha de... eu já me lembro desse camarada... grande figura da política paulista... [Eu escrevo num papel: Xavier da Silveira] Xavier da Silveira! Como você vê, Claudio, eu sou cheio de anedotas de modinhas, viu? Vai baixar noutro terreiro!358 Meu filho, eu tive a grande alegria de vê-lo. Nosso Senhor o abençoe e lhe dê resignação e paciência, tenacidade e obstinação, teima de jumento andaluz! [Ri e diz para a esposa:] Não respondi nada, Dália. Eu lhe dei o quadro do prestígio da modinha, indispensável... Você note que a modinha desapareceu dos salões como desapareceu o recitativo, a declamação. E, quando cantam, cantam samba, que não é a modinha. Samba é uma coisa e modinha é outra. A modinha é literária, é mentalmente aristocrática. É para ambientes. Ninguém se lembra de cantar uma modinha e dançar. Modinha não dá pra rock‟n roll. Claudio, vai baixar noutro terreiro e até 5ª feira. 2ª entrevista: 17 de janeiro de 1980 Já falei a muita gente sobre o seu trabalho; é uma adulação desgraçada com você. Já falei a Américo [de Oliveira Costa]359, falei a Grácio Barbalho360, falei a 358 Expressão bem-humorada usada por Cascudo com pessoas de sua intimidade. Américo de Oliveira Costa (22/08/1910 - 1/07/1996), escritor e estudioso da obra de Cascudo. 360 Grácio Ferreira Barbalho, escritor, musicólogo, colecionador de discos de 78 RPM, pesquisador da música popular brasileira. 359 361 Oswaldo [de Souza]. Falei a Grácio Barbalho, que tem uma coleção de discos que é uma maravilha. Grácio foi meu aluno com 16 anos. Veio hoje com... cheio de espetos, para me tirar sangue. Eu dou palmada nele, dentro de casa... aqui o trato como se ele ainda fosse meu aluno. É a vida do professor que fica fiel à sua vocação. Ao envelhecer, vai reconhecendo todos os ex-alunos... Você tem uma modinha que, à volta de 1930, era popularíssima em Natal: “Potengi, tu‟ água mansa / Tão cheia de suavidade / Vem me trazer a lembrança / dos dias da mocidade”. Quem é que não cantou isso em Natal?... [Escrevo em um papel o nome da modinha e entrego a ele] “Fado Potengi”. Matou a questão!361 Tem umas modinhas também que – infelizmente –, você chegou no meu ocaso de memória. Umas letras e umas músicas que se popularizaram muito em Natal. João Estevão Gomes da Silva... trabalhava no Correio e na A Imprensa, de meu pai,362 que durou de 1914 a 1927, jornal mantido por meu pai, com tipografia de João Estevão. Ele estava cantando uns fados, pensadamente portugueses, mas eram brasileiros: “Quem inventou a partida / Não sabia querer bem / Quem parte, parte chorando / Quem fica... Aí ele não se lembrou do resto. Aí, repetiu: “Quem fica, perdeu o trem”. Isso cantando... no salão [Ri]. Não acudiu à sua memória o “Quem fica saudades tem”. Você esteve com João Carlos Vasconcelos?363 Foi moleque no meu tempo... um pouco mais velho do que eu. Essa base de informação que, pra você é a revelação, para nós é a recordação... recordar aquilo que tínhamos praticado. Houve uma temporada aqui, Claudio, que foi uma mania dar nome de fado. Tem o Fado Potengi, tem o Fado Maria, tinha uma porção de coisas com o nome de fado... Foi uma voga que deu aqui. O Fado Potengi foi muito cantado, porque havia um número de teatro, muitas vezes improvisava-se uma sessão de serenata no [Teatro] Carlos Gomes. Os cantores de fora, profissionais que vinham a Natal, pelo menos aprendiam uma modinha natalense – que estropiavam –, mas cantavam no palco, como homenagem aos boêmios, aos seresteiros. Me lembro de vários cantando o Fado Potengi, além das tradicionais modinhas que não são daqui, mas nacionais: “Casa Branca da Serra”. “Quisera amar-te, mas não posso, Elvira”, “A Pequenina Cruz do teu Rosário”. Modinhas essas que todo o sereneiro tinha por brio saber cantar, porque isso “Fado Potengi”, letra de Deolindo Lima e música de Virgílio Carneiro. Partitura em Galvão (2000). A Imprensa, jornal de propriedade do Coronel Francisco Cascudo. 363 João Carlos de Vasconcelos, escritor que nasceu em Natal no dia 09/09/1893, falecendo em 15/01/1984. 361 362 362 pedia-se, quer no Teatro, quer no Natal Club364. “A Pequenina Cruz do teu Rosário”365 era uma espécie de patrimônio comum, todos sabiam, além das modinhas de Castro Alves, Fagundes Varela, Auta de Souza; foi um patrimônio sereneiro e social dos quatro Estados: Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco. O ministro João Lira Filho, que está vivo e mora no Rio, é paraibano. Uma vez, escreveu-me uma carta pedindo, pelo amor de Deus, um exemplar do meu livro Vida Breve de Auta de Souza. Nós não tínhamos relações senão cerimoniosas. Agora temos mais do que íntimas. Alegando que tinha-se criado ouvindo a mãe cantar as modinhas de Auta de Souza...366 não só a mãe – isso na Paraíba –, como amigos da família nas festinhas familiares, porque não havia uma reunião em que não houvesse umas duas ou três modinhas. Não era possível. Morreu no ano passado uma das cantoras de modinhas, mas já cantando Hekel Tavares, etc.: Concita Câmara! Concita foi uma... acompanhei muito Concita, toquei muito... inventei muito acompanhamento e modulação para Concita cantar. Era uma das vozes mais aplaudidas na modinha. Ninguém cantava samba, não passava pela cabeça de um de nós cantar samba. Podia-se cantar uma daquelas coisas mais antigas... não é chote... Deolindo367 cantava muito esse gênero, é um gênero mais ou menos gaiato... chula! Finalmente saiu! Mas, Deolindo era ator cômico amador, de maneira que caia bem naquela gesticulação. E, às vezes, saíam formas musicais seculares dentro de versos mais que populares, plebeus, por exemplo: “Yayá, tem tabaco aí / Dê-me uma pitada / Que eu quero dormir / Eu tenho porém não dou / O tabaco é bom / É do seu doutô”. A valsa mais popular na segunda metade do século XIX foi a “Varsoviana”, que o povo chamava “Valsa Viana”. Não era cantada, mas todo mundo dançou. Eu não alcancei mais a Varsoviana, porém meu pai, que tocava violão, e os elegantes do Rio de Janeiro do século XIX, todos dançavam, inclusive o Imperador. Quando eu estava fazendo pequenas pesquisas encontrei, com uma letra banalíssima, a Varsoviana. Aí, eu dei um salto na cadeira! É a Varsoviana! Porque, Claudio, você se lembre, que apesar do grande domínio popular da poesia chamada moderna – que todo mundo escreve –, 364 Tradicional clube da cidade; teve sua última sede no 1° andar do prédio à esquina da Avenida Rio Branco com a Praça Kennedy, à esquerda de quem visualiza a antiga catedral. 365 “Loucuras”, modinha mais conhecida por “A pequenina cruz do teu rosário”, de autores cearenses, gozou de grande popularidade no Rio Grande do Norte e em todo o Brasil, confirmada pelo próprio Cascudo. 366 Auta de Souza é autora somente dos poemas, alguns deles musicados por diversos autores. 367 Deolindo Ferreira Souto dos Santos Lima (Açu/RN, 9/03/1885 – Natal, 10/04/1944). Ver GALVÃO, Claudio. Deolindo Lima: seu centenário de nascimento. Revista do Instituto Histórico e Geográfico, (1985-1986). 363 não é cantada. Essa poesia multíplice, poderosa, não alcança o canto. E, como tal, não tem comunicação. Manoel Bandeira tem porque tem uns versos... Bandeira era um demônio, fazia o que queria. As coisas cantadas de Bandeira são versinhos metrificados, com rima. Mas, a chamada poesia moderna você não pode musicar porque não tem ritmo. O sujeito começa a cantar e o auditório, inconscientemente, fica batendo o compasso. Se é um decassílabo, se é um quarteto, se um verso de seis sílabas. Esta é a situação curiosa. [Pergunto como está o reumatismo do joelho] Acho bom você “benzer” de novo [Ri]. Isso você não vai esquecer nunca. Quando eu tiver viajado para o outro mundo, você for velhinho e se falar em mim, você conta: trabalhei com o mestre Cascudo na casa dele. Tivemos relações mais do que cordiais. Ele estava com um reumatismo no joelho e inventei que devia “benzer”. E eu benzi várias vezes o joelho dele. Isso você não vai esquecer [Ri]. [Indago sobre Heronides de França] Um dia ele veio tratar de um negócio com meu pai. Estava sem violão. Mas, havia um violão em casa, não meu, que eu sempre me dediquei ao piano. Mas nós tínhamos um violão por causa dos violeiros que apareciam. Um violão bom, como temos ainda. Ele tratou de negócios, não é?... não podia resistir, não é?... Eu entreguei o violão a ele e ele saiu-se com uma melodia linda... tirada da modinha que estava cantando. Fazia aquela melodia e depois contracantava. Oh, Claudio, eu já era estudante de Direito, depois de 23... 24... depois do Centenário [da Independência]. Fiquei, sabe?... enlevado. Fiquei numa cadeira. Papai, que tocava violão, se limitava a olhar para mim. Não fazia mais nada; olhava para mim. E este episódio ficou na minha vida. Parece que eu estou vendo... pequenino, grisalho, curvado, sempre olhando para os trastes, pro braço do violão. Era maravilhoso! Então, qual é o livro que está lendo? Tenho dois que são mais documentários. Serenatas e Saraus368 dá uma ideia da paisagem brasileira, na modinha. Hoje é segunda... quarta ou quinta eu lhe dou uma aula sobre... Compreenda, eu estou quarent‟anos distante de Heronides do ponto de vista do pensamento. Vou me lembrar se escrevi alguma “Acta Diurna” sobre ele. Eu devo ter uma Acta sobre Heronides369. Não posso deixar de ter escrito. Não é possível eu não ter escrito sobre 368 369 MELO MORAIS FILHO, Alexandre José de. Serenatas e saraus (1901-1902). Infelizmente, Cascudo nada escreveu sobre o compositor Heronides de França. 364 Heronides. Vou procurar no livro de Zila Mamede370 sobre a minha bibliografia, porque não posso me lembrar do que fiz. 3ª entrevista: 25 de janeiro de 1980 Você tem uma nota essencial sobre Heronides. Baixo, magro, moreno, cabelo curto, grisalho, bigode falhado, os olhos zombeteiros, olhando com feição de malícia. Ironista, bem humorado, dando resposta imediatas. Heronides tinha a criação espontânea da melodia, a que desapareceu nos acompanhadores. Ele improvisava imediatamente um contracanto ao que acompanhava, sem deixar de acompanhar. Você tinha a impressão de dois violões. Muito ágil, a nota límpida, sem vibração foi, incontestavelmente, o maior violão de seu tempo. Maníaco pela serenata. Numa versalhada de Lourival Açucena, que eu publiquei no livro de dele no centenário...371 fui muito amigo de Panqueca – Joaquim Lourival Soares da Câmara –, era Câmara pela mãe372. Lourival, num versinho no meio da versalhada, dizia: “Andreza – Andreza é um nome desaparecido –: “Andreza traze café, / Traze pão, queijo, batata, / Não dispenso a serenata / Pois temos belo luar”373. O sereneiro não dispensava a serenata. Aquele luar que Jorge Fernandes 374 disse, num poema, esse verso que considero um dos mais lindos: “A luz elétrica de meu tempo vinha com a lua cheia”. Tempo dele... lírico... de evocação esse verso. Hoje, com a iluminação elétrica, Claudio, você não sente o luar. Eu quando me mudei para o Tirol 375 em 13, as avenidas tinham um outro mundo, de maneira que o luar era uma coisa material. [Volto a indagar, por escrito, sobre Heronides] Mas o que é que esse menino quer? Cadê os meus óculos? [Lê a pergunta] Ele se aposentou e se mudou para o Recife, 370 MAMEDE, Zila. Luís da Câmara Cascudo, 50 Anos de vida intelectual, 1918-1968. (1970). AÇUCENA, Joaquim Eduvirges de Mello (Lourival Açucena) (Lorênio). Versos. 1 ed. Reunidos e anotados por Luís da Câmara Cascudo (1927). A “Typographia” d‟A Imprensa pertencia ao Coronel Cascudo, pai do organizador. 372 Joaquim Lourival Soares da Câmara (1849-1926). Filho do poeta Lourival Açucena, amigo e fonte de informações para as pesquisas de Cascudo. Sobre ele escreveu “Actas Diurnas”, a 6 de março de 1940, 29 de agosto de 1942 e 20 de junho de 1949, sempre no jornal A República. 373 “Cantata”, Versos, p. 68. 374 Jorge Fernandes (1887 - 1953). Primeiro poeta modernista do Rio Grande do Norte. 375 Bairro da cidade de Natal. 371 365 onde morreu em 1926. Eu tinha 28 anos. Estava no 3º ano de Medicina. Parece que foise embora com a família toda. E o pior é que nós estamos numa situação de não ter a quem perguntar. Eu procuro... Evaristo Martins de Souza, morto; João Estêvão, morto; Josué [Silva], mudou-se para Sergipe, morreu em Alagoas. O professor Bartolomeu Fagundes, toda essa gente viajou. Mas a chuva de violão... foi um tempo em que tocar violão... Veja que quadrinha deliciosa: “Quem ama, para dar prova / Deve três coisas cumprir: / Tocar violão, fazer trova / E havendo luar, não dormir” [Ri]. Não é uma maravilha? É de um rapaz formado em Direito, eu não me lembro o nome dele... Carvalho não sei de que... Você junte a isso a modinha em que o sereneiro acordava a namorada: “Acorda, abre a janela Stella”. Eu publiquei uma coisa não me lembro aonde, dando muitos versos com que o sujeito acordava a menina. Era a grande homenagem sentimental, fazê-la acordar ao som... Ao meio da manhã, aqui na [Avenida] Junqueira Aires, os bondes descendo e eles la-la-la-la... [Cantarola] A cara mais... O que eu tenho certeza é que Renato Caldas estava no meio. Eles estavam fazendo serenata e depois das três começaram a encalhar em botecos, de maneira que o sol nasceu e eles: “E a serenata de Cascudo? Vamos pra casa de Cascudo!” [Ri]. É o anedotário da serenata... cantar na porta de Cascudo às sete e meia da manhã. E eu, da varanda... [Faz gestos de “dar bananas”]. Mas, acabavam entrando... eram todos íntimos... acabavam entrando e bebendo [Ri]. [Pergunto sobre Antônio Elias] Uma vez ele estava esperando um “Bumba Meu Boi” cantar na porta dele. Preparou as comidas e bebidas e nada do “Bumba Meu Boi”. Lá para as tantas, lá pra meia noite chegou o “Bumba Meu Boi”. Fez parada na casa de Antônio Elias e o coro cantou a saudação: “Abri a porta meus senhores!” Ele apareceu na janela e disse, cantando: “Eu não vos quero mais não!” [Ri]. Essa anedota era muito contada pelo pessoal, mas ele era de uma geração anterior... 80... 90... primeiros anos do século XX. “Tocar violão, fazer trova / E havendo luar, não dormir”. Eu era distinguido – porque havia duas partes na serenata –, os organizadores e participantes, e os homenageados que eram visitados para... compreendeu? [Referia-se aos comes e bebes]. De maneira que a serenata arrastava muita gente que não cantava nem tocava. Só fazia comer e beber. Eu era distinguido em nossa casa do Tirol, com o findar da serenata. A serenata ia amarrar lá em casa. Já trazia Zé Ivo, Titó, Evaristo Martins de Souza, João 366 Estêvão... Nessa casa vizinha onde meu pai morreu, e eu, quando saí do Tirol vim para aqui, vizinho a meu sogro. Comprei esta casa quando meu sogro morreu. Havia mais Renato Caldas, Santos Lima, que era a grande voz sereneira, indispensável. E fizeram uma serenata... dois violões e uns cinco e Santos Lima376. Entre 7 e meia e 8 da manhã, os bondes elétricos subindo e descendo, eles... aqui na calçada e eu “dando banana”377 no terraço. Você deve escrever uma carta a Renato Caldas no Açu, pedindo lembranças dele de serenatas de Natal. Será um depoimento precioso378. Eu era filho único, muito cuidado, de maneira que minha mãe e meu pai não me deixavam seguir na serenata Você deve consignar entre os nomes o de Cosme Lemos379, que eu chamo “o mártir”, o poeta... o livro que ele escreveu e não publicou chamava-se “Um lugar na serenata”. Era o direito de acompanhar a serenata escrevendo versos, porque ele nem tocava violão nem cantava. Com Lourival Açucena, que morreu em sete... Heronides era de 60, quando o século abriu ele tinha quarent‟anos, ele já devia ser serenista. Lourival foi uma figura popularíssima e queridíssima em Natal e grande sereneiro, o rei da serenata no seu tempo. Morreu em sete, o ano em que Pedro Velho morreu. Quando eu andava procurando reminiscências sobre Lourival Açucena, não só do filho que foi meu grande colaborador – o professor Panqueca –, como daqueles que tivessem convivido com ele, porque as reminiscências de filho, viúva, neto, sempre têm uma dose de sentimentalidade que podem não ser verdade. Ninguém pode fazer o estudo de uma figura só através das recordações da família. Você deve procurar aqueles que conviveram com eles. A memória popular de Natal está muito dispersada, pelo impacto do cinema, televisão, essas coisas. Lourival, que me conste, não era tocador de violão; devia, como se dizia na gíria, “bater um violão”. Tanto assim que, o professor Panqueca me contava que quando dava um luar bonito ele saía para a casa dos amigos. Um instrumento muito sereneiro era a flauta. Requinta, clarinete, isso não aparecia. Era violão, cavaquinho. Homem não tocava bandolim; era instrumento de moça, de mulher. Eu não sei quem é que me dizia: o bandolim tem aquela coisa abaulada de bunda de mulher [Ri]. 376 Afonso Santos Lima (Macaíba, 27/09/1905 - Natal, 27/04/1979). Cantor e seresteiro. “Dar bananas”. Ver CASCUDO, Luís da Câmara. História dos nossos gestos: São Paulo, 1976. p. 202. 378 Renato Caldas foi entrevistado posteriormente. 379 Cosme Corsino de Lemos (4/02/1904 - 10/11/1981). Poeta. 377 367 Abaulada... assim... você tem a vontade de passar a mão [Ri]. Isto eram os preceitos, compreendeu? Naturalmente, a abstenção de poesias picarescas, satíricas, porque desmoralizava a serenata. Deolindo [Lima] cantava chulas, mas de salão e depois que fez amadorismo teatral, em que ele tinha os papéis cômicos. Foi muito meu camarada e era louco por isto. Eu estou, Claudio, no fim. A memória não dá... uma das primeiras coisas é esquecer. A primeira coisa que a gente perde é a memória melódica. Como diabo é a solfa disso? Há quantos anos eu deixei de cantar? Há uns quarenta, mas, assim mesmo, cantava pequenas coisas em casa ou em casas, porque a minha participação maior era o piano. Só podia ser em casa. Morreu também, uma menina – morreu com setent‟anos, mas para mim continua a ser menina –, filha de um grande apreciador de modinhas: Concita Câmara, minha parente, filha de Luiz Emygdio Pinheiro da Câmara, Delegado Fiscal aqui há muito tempo. Tinha piano em casa; essa casa desapareceu para o edifício Barão do Rio Branco. Quando eu passo por lá, vejo a casa... eu tocando piano... o pessoal cantando... as festinhas de Luiz Emygdio. Nós, lá de casa, chamávamos as meninas de Luiz Emygdio: Concita, Alvina, Belém, Maria do Céu... Acompanhei tanto Concita cantando músicas de Hekel Tavares, Meu piano é tão velho... meu piano foi do velho Jatobá, é tão velho que não toca mais. Nos aposentamos, nós dois, eu e o Pleyel. Tenho feito uma propaganda danada de seu livro. Bajulatória. Até nas cartas eu tenho... Você, que está fazendo um livro sobre modinhas, está vendo o trabalho que dá fazer um livro desses e anotar. [Informo que havia encontrado poesias de um livro perdido de Othoniel Menezes, o Ara de Fogo] Por isso, você pode calcular com que emoção, meu filho, eu lhe aperto a mão e lhe bato no ombro. Com que alegria! A família não desapareceu! A estirpe de malucos [Ri]. compreendeu? não se extinguiu. Deus o abençoe! 368 ANEXO B FON-FON NO RIO GRANDE DO NORTE. Revista Fon-Fon, Rio de Janeiro, 20 de maio de 1922. Nosso confrade de “Imprensa” de Natal, o escritor Luís da Câmara Cascudo em conversa com um dos mais célebres cantadores sertanejos do Nordeste. Este é o afamado Fabião das Queimadas, que tem 72 anos de idade, 15 filhos, 16 netos e ainda possui 12 dentes dos 32 com que a natureza o brindou em 1850... Esse troveiro matuto foi escravo, alforriou-se, casou-se, comprou uma fazendola e nela reside com a família, patriarcalmente, acatado e obedecido por todos. – Fabião das Queimadas é um cantador satírico, repentista terrível e comentador em verso das vaquejadas e “pegas” de gado bravo. Alegre, motejador, num sadio e espantoso otimismo, é analfabeto e frui as vantagens de assombrosa memória, Quando este menestrel, um dos últimos representantes do Brasil antigo do Nordeste, vai à capital do Rio Grande do Norte, hospeda-se em casa das melhores pessoas do lugar, tão querido é. Recebem-no com o maior carinho o Diretor Geral de Instrução Dr. Manoel Dantas, o escritor Henrique Castriciano, o nosso colega Luís Cascudo. O Dr. Ferreira Chaves, atual Ministro da Justiça, quando era governador do Rio Grande do Norte, festejava o velho Fabião, reunindo amigos para ouvi-lo cantar na sua residência oficial. Fabião das Queimadas já caminha para o túmulo, mas deixará um sucessor no “folk-lore” repentista do sertão: seu filho do mesmo nome, um Fabião mais jovem, que já vai, como dizem os sertanejos, “puxando a sustança do velho”... 369 ANEXO C – ILUSTRAÇÕES Figura 1 – Página de rosto do livro de letras de modinhas copiado pelo menino Cascudinho, em 1912. Fonte: Acervo Ludovicus – Instituto Câmara Cascudo, Natal/RN. 370 Figura 2 – Livro de letras de modinhas, primeira página. Fonte: Acervo Ludovicus – Instituto Câmara Cascudo, Natal/RN. 371 Figura 3 – Câmara Cascudo e o cantador Fabião das Queimadas. Fonte: Revista Fon-Fon, Rio de Janeiro, n. 20, 20 maio 1922. 372 Figura 4 – Musicólogo Renato de Almeida, grande amigo de Cascudo, muitas vezes citado neste trabalho. Fonte: Acervo Ludovicus – Instituto Câmara Cascudo, Natal/RN. 373 Figura 5 – Cascudo (ao piano) quando de seus oitenta anos, com Oswaldo de Souza, na residência deste. Fonte: Tribuna do Norte, 30 de dezembro de 1978. Foto de Carlos Lyra. 374 Figura 6 – Cascudo e o pesquisador e compositor Oswaldo de Souza, amigos desde a juventude Fonte: Carlos Lyra. 375 Figura 7 – Terraço da residência de Oswaldo de Souza, na Rua do Motor 93, em Natal. Na foto: Oswaldo, Cascudo, Dahlia Freire Cascudo e Maria de Lourdes de Souza, esposas Fonte: Carlos Lyra. 376 Figura 8 – O musicista Oswaldo de Souza apresentando conferência sobre Câmara Cascudo no Instituto Histórico e Geográfico do RN (28/12/1964). Na mesa, Câmara Cascudo,escritor Manoel Rodrigues de Melo, Enélio Lima Petrovich (presidente do Instituto). Fonte: Arquivo do Diário de Natal. 377 Figura 9 – Carta de Mário de Andrade a Câmara Cascudo datada de São Paulo, 10 de agosto de 1926. Fonte: Acervo Ludovicus – Instituto Câmara Cascudo, em Natal. Por especial deferência de sua direção. 378 Figura 10 – Carta de Mário de Andrade a Câmara Cascudo (verso). Fonte: Acervo Ludovicus – Instituto Câmara Cascudo, em Natal. Por especial deferência de sua direção. 379 Figura 11 – Visita de cantadores à residência de Cascudo (ao centro), em dia de seu aniversário. Da esquerda para a direita: Dahlia (esposa), Ana Maria (filha). As duas crianças são as netas Camila (a menor) e Daliana. Fonte: Arquivo do Diário de Natal. 380 Figura 12 – Passagem do maestro Heitor Villa-Lobos por Natal (11 e 12 de outubro de 1952). Da esq. para a dir.: violoncelista Iberê Gomes Grosso (1), maestro Alceo Bochino (2), Eurico Nogueira França (3), Heitor Villa-Lobos (4), violinista Célio Nogueira (5), Arminda Villa-Lobos (6), pianista Ivy Improta (7), cantora Cristina Maristani (8) e Luís da Câmara Cascudo (9) Fonte: Arquivo do Diário de Natal. 381 Figura 13 – Contracapa do LP de Luiz Gonzaga com apresentação e autógrafo de Cascudo. 382 Figura 14 – Capa do LP de Luiz Gonzaga, Odeon, 1973. 383 Figura 15 – Foto do maestro Heitor Villa-Lobos, com o oferecimento: “Uma boa testa para levar um Cascudo amigo. Lembrança afetuosa de Villa Lobos. Rio 10-6-49” Fonte: Acervo Ludovicus – Memorial Câmara Cascudo, Natal/RN. 384 Figura 16 – Luís da Câmara Cascudo, gestos largos típicos de sua oratória. Fonte: Arquivo do Diário de Natal. 385 Figura 17 – Piano que pertenceu a Cascudo, detalhe. Fonte: Acervo Ludovicus – Instituto Câmara Cascudo, Natal/RN. 386 Figura 18 – Meu piano é tão velho... é tão velho que não toca mais. Nos aposentamos, nós dois, eu e o Pleyel