Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                
Here be Dragons: Novos Conceitos de Segurança e o Mundo Contemporâneo Armando Marques Guedes e Luís Elias O Poder Político e a Segurança Painel I – Política e Segurança: Teorias e Conjunturas da Actualidade OP-ISCPSI, 14 de Março de 2012 Segurança, insegurança, complexos de interioridade, e algumas das reconfigurações conceptuais de fundo de que hoje em dia precisamos Nunca é demais insistir na evidência de que – tanto no plano político quanto no do jurídico – o horizonte e os panoramas da segurança mudaram muitíssimo com o fim do Mundo bipolar. Numa abordagem genérica inicial vale decerto a pena esmiuçar, ainda que tão-só pela rama, os resultados da galgada jurídico-política de transformações globais e a sua dinâmica no plano específico da segurança de que temos vindo a ser testemunhas Com algumas preocupações de actualização de perspectivas e de um seu ajustamento face a uma realidade em mudança muitíssimo rápida, cabe sublinhar logo à partida que o texto ora apresentado segue de muito perto o equacionado em MARQUES GUEDES, Armando e Luís ELIAS (2010), Controlos Remotos. Dimensões Externas da Segurança Interna em Portugal, Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna e Almedina.. Fá-lo-emos em dois passos, um primeiro descritivo, e um segundo, mais analítico – ou melhor, como iremos ver, mais cartográfico quanto ao que têm sido as novas perspectivações e modelizações que têm surgido com as mudanças a que temos estado sujeitos. No que toca a chamada “grande segurança” muito se tem visto alterado, nestes dois planos interligados. Como é evidente mantêm-se áreas de actuação própria dos militares, e outras específicas das forças policias; mas não nos formatos enxutos e estanques que até há alguns anos essa divisão dava corpo. Os quadros normativos produzidos (em Portugal como um pouco por todo o Mundo) tornam claro porquê. Por um lado, porque “partes do que antes era considerado pelo ‘sistema político’ como ‘segurança pública’, e de cuja manutenção dele dependia, deixaram de ser encaradas como responsabilidade do Estado” SARMENTO, Cristina Montalvão, Políticas de Segurança na Sociedade Contemporânea - Lição Inaugural do Ano Lectivo 2007/2008, Lisboa: ISCPSI, 2007: 28-29.; ou, pelo menos, deixaram de o ser exclusivamente. De algum modo, migraram – e fizeram-no num sentido forte. Assim, por outro lado,, a segurança tem vindo a ser delegada, partilhada, coproduzida e “desestatizada”, gerando-se uma convicção generalizada de que o conceito Weberiano de um monopólio do uso legítimo da força por parte do Estado está em crise, face a uma miríade de actores internacionais, nacionais e locais, privados e semiprivados, que passaram também a fornecer segurança, quer aos particulares quer ao próprio Estado, nos níveis interno e supranacional – e quantas vezes numa perspectiva concorrencial, seja ela complementar ou subsidiária. A isto já nos habituámos, tant bien que mal. Tal tem tido, como é inevitável, implicações políticas de peso, tanto no plano das dinâmicas institucionais como no das representacionais que lhes estão associadas. Tem havido mais, já que, por outro lado ainda – e isto apesar da ‘tradição Westphaliana’ de separação de duas dimensões, uma interna e outra externa – no Mundo contemporâneo “a segurança interna tem vindo a ser externalizada e a segurança externa a ser internalizada” COLLINS, Alan, Contemporary Security Studies, New York: Oxford University Press, 2007: 3., de forma a fazer face a fenómenos como o terrorismo e a criminalidade organizada transnacional, processos que manifestam como cada vez mais fluidos, dinâmicos, tecnológicos, configurando uma alteração qualitativa das ameaças, factores que criam novos desafios para os Governos e para as respectivas Forças de Segurança e Forças Armadas. Podemos e infelizmente logramos dar-lhes conteúdo. As mudanças qualitativas nas ameaças que contribuem para um sentimento de insegurança crescente consistem, designadamente, na possibilidade de utilização de substâncias nucleares, radiológicas, biológicas ou químicas por parte de organizações terroristas ou outras; na utilização das redes sociais para a veiculação do radicalismo ideológico e para o desenvolvimento de operações ilícitas transnacionais; nos atentados contra o ecossistema, incluindo a poluição marítima, a utilização abusiva dos recursos marinhos e a destruição florestal; na deterioração da situação política, social, de segurança e humanitária em vastas regiões do globo, em especial nos Estados em situação de falência; na possibilidade da expansão de pandemias, agravada sobretudo pela concentração demográfica em grandes metrópoles, com vastas parcelas da população a viver abaixo do limiar da pobreza; e a crise económico-financeira global que tem levado à instituição de mecanismos de apoio e interferência na soberania de Estados, por parte de organizações como o FMI, o BCE, ou a Comissão Europeia. Mas é escusado ir tão longe, pois mesmo o crime organizado e a criminalidade “de oportunidade” estão, ainda que indirectamente, ligados à interdependência crescente e ao sentimento de imprevisibilidade e risco em que vivemos. Não é por isso difícil de compreender a razão pela qual, para alguns, nos vemos hoje em dia na contingência de coabitar num momento de desregulação da segurança – sendo a delinquência de anonimato e o seu carácter furtivo tidos como um sintoma típico desta mesma desregulação. E se, em boa verdade, esta delinquência não é um fenómeno novo – trata-se na verdade de uma desventurada realidade bastante antiga – o certo é que ela se tornou hoje bastante ameaçadora, sobretudo tendo em vista a crise que nos assola no Ocidente e que tem tendido a amplificar esses temores, por isso cada vez mais generalizados, relativos a um Mundo sentido como estando, em larga medida, a rolar em roda livre. O que não pode senão ampliar o temor quotidiano que tantos de nós sentimos. Para além de mudanças quantitativas, têm ocorrido outras, qualitativas. A urgência tem em resultado crescido de criar novos quadros conceptuais para fazer frente às novas necessidades de segurança cuja percepção tem vindo a alastrar – o que tem vindo a dar azo a noções de que seria preciso saber ultrapassar os limites sentidos como cada vez mais constrangentes do ‘Westphalianismo’ que antes tomávamos como natural e, por isso mesmo, permanente. Assim, vivemos como que embrenhados na convicção de que coexistimos hoje num Mundo “pós-Westphaliano”, uma ideia que se generalizou nos mais diversos sectores. E, naturalmente, tentamos compreender como e quanto – tentando, para o efeito, modelizar as novas conjunturas emergentes. Reagimos, pelo menos em parte, teorizando, por assim dizer. Vale decerto a pena aprofundar um pouco as imagens quanto a este ponto. Mas posto isto, quais são afinal as implicações desse triste estado de coisas no que toca à compreensão que temos destas dinâmicas que tanto nos afligem? Como as concebemos, nas nossas representações espontâneas? Não custa expô-las, mantendo o olhar no enquadramento securitário mais lato do que apelidámos de “grande segurança”.. Em primeiro lugar, pressentimos a gestação de um sentimento de obtusidade no nossos quadros cognitivos habituais – e ensaiamos, por via de regra e por isso, uma pausa crítica. Nos novos enquadramentos conceptuais cada vez mais genericamente partilhados, as modelizações estato-cêntricas ‘clássicas’ em que nos habituámos esbatem-se, perdendo parte da utilidade analítica que tinham. Não é, no entanto, fácil ultrapassar sabedorias convencionais que nos habituámos. O que nos empurra para uma segunda implicação. Assim, infelizmente, e embora a nossa experiência empírica o já não apoie como antes fazia, vigora (ainda) amplamente – no que toca aos nossos quadros mentais de eleição – uma separação estanque entre segurança interna e segurança externa, de par com uma outra que padece do mesmo esbatimento, a entre questões nacionais e internacionais. Mantemos assim quantas vezes convicções crescentemente inadequadas, face a uma realidade no chão na qual o esbatimento de distâncias, e a porosidade cada vez mais patente das barreiras ‘clássicas’, as corroboram cada vez menos. Como viver e agir num estado de dissonância cognitiva Têm, é verdade, aparecido e proliferado várias teses revisionistas que tentam dar conta da dissonância cognitiva que sentimos e que visam ultrapassá-la com medidas preventivas tomadas no terreno. Bem ou mal, muitos são os que consideram que um afloramento, que pode ser mais ou menos rápido, de modalidades regionais e/ou globais de governação, é inevitável, face às novas dinâmicas internacionais em que nos vemos embrenhados. Mas sem total consenso, pois tais convicções debatem-se com sinais – e a crise contemporânea que levantou a cabeça em 2008 tem dado alento a esse cepticismo, amplificando-o – de que devíamos manter relativamente incólumes modelizações mais estanques, insistindo, ao invés, num reforço dos poderes de pelo menos alguns Estados, e na reserva soberana parcial, por exígua que se tenha tornado, que se verifica em tudo; e fazem-no discordando de que estejamos perante uma qualquer cristalização de novas formas de governança, preferindo ver, nos acontecimentos que têm vindo a anunciar os reajustamentos pós-bipolares, o prenúncio de um regresso em força de uma política internacional ‘clássica’ de Grandes Potências, que consideram como as únicas realmente soberanas. Deste modo, paradoxalmente, a doutrina divide-se e multiplica-se. Pequenas e médias potências há que, em simultâneo com uma ou outra destas posturas, e embora ansiosas, veem também nas novas conjunturas hipotéticas janelas de oportunidade. Todos concordam, no entanto, com o diagnóstico retrospectivo óbvio: que o crescendo para formas supra-estatais de governação da segurança, para nos atermos a este exemplo, caso ele se venha a manter, será o resultado sistémico do adensar de interdependências com que deparamos na dinâmica do Mundo moderno – sobretudo no esbatimento da bipolaridade anterior, que como que o descentrou. Mas cada vez mais são os que enunciam dúvidas quanto a essa retenção e adensamento, alegando que, pelo contrário, vivemos um momento de pausa, senão mesmo de recuo. Atenhamo-nos, porém à leitura dominante, a de que continuam a ver-se adensadas a s formas de interdependência, quer com isso concordemos quer não – às convicções dominantes de que estamos embrenhados num processo imparável de “globalização”. Entre os que reconhecem ter havido e estarem em curso mudanças de peso, estas resultam do relativo apagamento da distinção, operada e em curso, entre segurança interna e externa – e o impulso, a isso ligado, de uma maior coordenação entre os domínios correspondentes – que, consideram, formam o que são das mais importantes alterações estruturais que têm ocorrido nos relacionamentos internacionais nas duas ou três últimas décadas. Para essas perspectivações menos pessimistas, o progresso da integração europeia, porventura mais do que nenhum outro, tem-no acentuado e tem-no tornado particularmente evidente. Os defensores dessa postura optimista tendem a sublinhar a irreversibilidade dos processos de integração global, desvalorizando como temporários o que consideram recuos apenas aparentes numa dinâmica que tomam como imparável. Mais do que seja onde for, argumentam, é nos Estados Unidos da América e na Europa Ocidental que a dimensão “externa” (neste último caso, concebida como extra-UE) das “ameaças internas à segurança” se tem visto enfatizada. Com efeito, insistem por exemplo, os ataques terroristas contra os Estados Unidos e o Ocidente em geral perpetrados no 11 de Setembro tiveram consequências multifacetadas: debelaram vidas, inquietaram consciências e desestabilizaram economias e ordenamentos políticos e jurídicos. Mas fizeram, alega-se, mais do que isso. Desferiram também um golpe aos nossos quadros conceptuais e à nossa capacidade de compreender o Mundo em que vivemos. No campo do político, a distinção tradicional entre as esferas interna e externa – e, muito em particular, aquela operada entre segurança externa e segurança interna, que em boa verdade estavam desde há muito sob escrutínio – foram as primeiras vítimas a tombar. No que vários são os que entreveem a necessidade de alterações de fundo nos nossos paradigmas representacionais. Nos novos panoramas emergentes pós-actos terroristas em Nova Iorque e Washington (e a sua cristalização ainda não definitiva, apesar dos anos volvidos), ouve-se muitas vezes frisar, as políticas de segurança têm de ser re-imaginadas, recompostas, e reanalisadas a partir da base – e por aí acima até aos equilíbrios estratégicos mais macro que as padronizam. Não será exagero afirmar que é no fundo para isto mesmo que apontam, como horizonte “normativo” potencial, pelo menos, as diversas teorizações a que abaixo aludimos. A exigência desde há muito reconhecida de lograrmos uma maior e mais densa e sistemática coordenação entre políticas internas e externas de segurança têm vindo a ver-se dramaticamente reforçadas e aceleradas Ver, quanto a isto, PASTORE, Ferruccio, Reconciling the Prince’s Two ‘Arms?: Internal-external security policy coordination in the European Union, Occasional paper 30: v, (Paris: The Institute of Security Studies, Western European Union, 2001).. Como refere J.G. Gros, “the prolonged absence of functioning core state institutions can have serious global security implications, as shown by the examples of Afghanistan, Colombia, Haiti, and Somalia” GROS, J.G., “Trouble in Paradise: Crime and Collapsed States in the Age of Globalization”, in British Journal of Criminology, 43, 2003, pp. 63-80.. Neste âmbito, refere-se o carácter expedicionário da segurança, corporizado em coligações ad-hoc promovidas pelas principais potências globais para garantir a segurança longe das respectivas fronteiras, combatendo as ameaças polimorfas e fluidas em controlo remoto: caso, entre outros, da intervenção no Afeganistão ou da no Iraque; de grande parte das operações de paz da ONU e de gestão civil de crises da UE; ou no da crescente importância de empresas multinacionais de segurança privada como a Blackwater, cumprindo missões que vão da segurança pessoal, à escolta de comboios logísticos, até o cumprimento de missões de operações especiais; da crescente cooperação policial e judiciária – sobretudo no quadro da União Europeia – para fazer face ao terrorismo, à criminalidade organizada transnacional, às redes de imigração ilegal, entre outros fenómenos que colocam em causa o espaço comum de liberdade, segurança e justiça. Não deixam de ter alguma dose de razão os que assim encaram o correr dos acontecimentos. Note-se que, com efeito, na Europa estas questões naturalmente têm adquirido uma importância decisiva – não só pela acuidade das ameaças percebidas, como pela ressonância e oportunidades que apresentam para um processo de integração institucional e política que vinha de trás. E, infelizmente, também com o processo, contrário, de uma sua progressiva desintegração com “a crise” hoje em dia vivida. Na União Europeia, de facto, o pulverizar desta dicotomia ‘tradicional’ não é novo. Nova não é, também, a sugestão contida nas páginas que se seguem. Como insistiu há pouco mais de uma dezena de anos o atrás citado analista italiano, Ferruccio Pastore, “[t]he blurring of the distinction between internal and external security, and the connected impulse towards better coordination between the correspondent policy fields, are among the fundamental structural changes in international relations that have occurred during the last decades”. Sem embargo do que tem vindo, em paralelo, a ocorrer nos Estados Unidos da América, num sentido forte, o crescente apagamento de uma distinção ‘clássica’ como esta tem sido porventura sobretudo sensível na Europa comunitária, já que [s]uch overall trends were accentuated and made particularly evident in Western Europe by progress in supranational integration. The gradual emergence of the EU as an area of freedom of circulation has fostered a common perception of internal security priorities and the intensification of technical and political cooperation in this area. In Western Europe, more than elsewhere, the ‘external’ (extra-EU) dimension of ‘internal security threats’ has been increasingly emphasized” PASTORE, Ferruccio (2001), op. cit.: 6.. Uma simples olhada para trás torna fácil ver o porquê desta leitura ainda dominante. Cada vez mais o que acontece ‘lá fora’ tem um impacto securitário crucial ‘cá dentro’. Atenhamo-nos, para o entrever, ao caso da Europa Comunitária. Na década de 80, os Acordos Schengen, celebrados em 1985 e seguidos meia dúzia de anos depois pela muito mais influente “Convenção de Implementação” de 1990 e, de imediato pelo Acto Único Europeu de 1986, empurraram de ângulos diferentes mas com firmeza na direcção de transformar a então Comunidade Europeia num espaço unificado no qual a liberdade de circulação se transformou em regra a as restrições que lhe são impostas na excepção. Bem ou mal, esta “uniformização do espaço europeu” foi apresentada, na retórica política dominante, como uma conquista política maior, pese embora trouxesse com ela uma mão cheia de implicações negativas. O discurso gizado é bem conhecido: o levantamento de controlos e restrições no que a uma enorme parcela da circulação intra-europeia de bens, pessoas e capitais diz respeito – disse-se e continua a ser lamentado – não poderia deixar de vir criar novas oportunidades para crimes e inúmeras outras formas de actividade ilegal. Os riscos internos de segurança, como Pastore entre muitos outros sublinhou, tendem por conseguinte a ser “apprehended and tackled at the national level, within the reassuring enceinte of state borders, now needed to be redefined and countered at the European level”. Como constatou Pastore, logo em 2001, “[w]ith a somewhat puzzling linguistic twist, internal security was now defined and treated as a European matter” Ibid: 2.. Assim sendo, na prática, a situação no terreno – depois de um arranque complicado, mas estando agora de maneira definitiva superadas as dificuldades iniciais – não se perfila hoje em dia como desastrosa, apesar da crise em curso. Talvez mais interessante, a crise contemporânea, uma vez encarada desta perspectiva, veio ela própria reequacionar questões inesperadas – de desregulações sistemáticas de domínios essenciais em domínios como os da economia e das finanças aos movimentos sociais turbulentos que, naturalmente, se lhes seguem – sentindo-se, do mesmo modo, relativamente a estas, que os problemas suscitados também eles exigem redefinições e soluções ao nível da Europa comunitária. Também aqui, note-se, a leitura que fazemos das mudanças que defrontamos tem sido sobretudo pautada por uma tónica negativa, designadamente no que à segurança diz respeito. No entanto vê-se desta feita encarada, com mais esperança, como um estado passageiro de uma transição que é, compreensivelmente, difícil. Mas trata-se, agora, de um estado de transição que podemos e devemos tentar compreender, de modo a melhor o lograrmos conter, domesticando-o. Basta pensar por um segundo no impacto interno de questões externas extra-europeias comunitárias para o por em realce evidente. Mais do que nunca faz por isso sentido que tentemos envidar esforços de uma remodelização das lógicas e dinâmicas securitárias com que deparamos, reconfigurando o próprio conceito de segurança. Tornando-o mais empiricamente adequado às realidade sociais cada vez mais em rede em que vivemos. O que tem sido feito, reescrevendo panoramas, repensando enquadramentos, e reformulando conceitos. Como? Sobre isto nos debruçaremos de seguida. A desfocagem das fronteiras disciplinares tradicionais como reflexo das novas realidades empíricas Para o efeito, ganhamos em começar com um esboço formal e genérico das linhas de força comuns de alguns dos mais importantes (e saudavelmente distintos uns dos outros) enquadramentos teóricos e metodológicos que têm vindo a ser gizados quanto à alçada de termos como “segurança” e quanto à sua interpretação. Em primeiro lugar, verificaram-se alterações de âmbito, de alargamento por sectores; em segundo lugar, deu-se um aprofundamento, com uma subdivisão em níveis. Decerto reflectindo alterações empíricas na conjuntura e lugares estruturais diferentes dos sujeitos dos enfoques conceptuais, desde há muito que se tornou consensual cá, como lá fora, a convicção de que a segurança já não é matéria exclusiva da atenção dos Estados. O mais leve dos escrutínios da bibliografia e de inúmeras das actuações recentes mostram-no muito graficamente: ‘securitizar’ descentrou-se como que por estiramento. Apesar dos méritos do conceito de securitarização desenvolvido sobretudo pela chamada Escola de Copenhaga, que abaixo discutimos, há que ter em consideração os pontos fracos ou perigos do mesmo. Como Ralf Emmers explicou com lucidez, “[we must] take into consideration the dangers of securitization particularly in an undemocratic political system where the wider population is unable to reject an illegitimate speech act and the emergency measures adopted as a result. Even in democratic societies, there is the risk of an act of securitization leading to the curbing of well-established civil liberties in the name of security. This is especially relevant in a post-9/11 context and the growing articulation of issues as existential threats” Ver EMMERS, Ralf, Securitization in COLLINS, Alan (coord.), Contemporary Security Studies (New York: Oxford University Press, 2007), p. 124. Embora este comentário de Emmers se reporte aos efeitos do movimento securitarizador e não às debilidades teórico-conceptuais da abordagem da Escola de Copenhaga, os dois pontos estão ligados.. Uma mudança? R. Emmers refere-se, como é bom de ver, ao discurso legitimador da guerra contra o terrorismo iniciado pela administração Bush, um discurso enunciado no quadro performativo de uma actuação que acabou por resultar na captura e morte de Bin Laden decorridos dez anos dos atentados de Nova Iorque e Washington em 2001 – mas que, em contrapartida, levou, por exemplo, à criação da prisão de Guantánamo, à violação reiterada e deliberada de direitos, liberdades e garantias de inúmeras pessoas encarceradas sem julgamento, gerando um desequilíbrio sensível entre segurança, por um lado, e liberdade e justiça, por outro. Sem dúvida. Com o 11 de Setembro, em boa verdade, aquilo que o termo “segurança” ateia alterou-se profundamente. Por um lado, perdeu a sua dimensão quase exclusivamente pública, nacional, e militar. O conceito de ‘segurança’ abarca agora a actuação e o empenhamento de instituições públicas mas e também de privadas, as da sociedade local e ainda as da sociedade civil num sentido mais amplo – bem como de instituições e organizações internacionais, sejam elas as de Estados vizinhos, as de entidades intergovernamentais ou as de outras, supranacionais. Esmiuçá-la implica, por isso, atenção a estes novos âmbitos de aplicação do conceito: pois como não podia deixar de ser, a este lançar de rede num arco mais amplo acrescenta-se uma redefinição de objectos. Se nos colocarmos num enquadramento científico trans- ou até meramente supradisciplinar, depressa apuramos haver hoje um amplo consenso de que a ‘segurança’ (agora a incluir grande parte da ‘defesa’) e a sua governação não podem ser desligadas uma da outra. Constatamos também que os analistas estão cada vez mais predispostos a reconhecer uma multiplicidade de fontes para o domínio cada vez mais heterogéneo e multi-dimensional que se vai desvendando. Podemos talvez formular isto noutros termos. A segurança como que se transmutou de um ‘objecto’ numa propriedade – de uma entidade substantiva passou a uma condição adjectiva. Num sentido forte, em consequência apareceram e tornaram-se correntes conceitos alargados como o de “segurança humana”. Em larga medida, tratou-se de um esforço de operacionalização. Neste sentido, há meia dúzia de anos Pauline Kerr defendeu, para apenas dar um exemplo, o seguinte: “the human-centric tradition, which emphasizes the desirable human conditions for people to be secure, now includes the concept of human security. Concepts are tools and human security is no exception.(…). It was developed in the mid 1990’s and it serves to highlight several issues in world politics: for example, concerns about human development, the nexus between development and conflict, the increasing number of transnational threats, the growing normative humanitarian agenda and even realpolitik interests. The main purpose that the concept serves is to focus attention on the fact that most of these issues have serious local, regional and global effects and are not included in the state-centric position – the dominant argument about security” KERR, Pauline, Human Security in COLLINS, Alan (coord.), Contemporary Security Studies (New York: Oxford University Press, 2007), p. 94.. Entre nós, Ana Paula Brandão realçou bem a evidência de que “as propostas para uma abordagem da segurança centrada na pessoa contribuíram para suscitar questões e evidenciar os limites da abordagem realista (…). Na sua essência rejeita o primado do Estado como objecto de segurança e eleva o indivíduo a essa condição. Assim, a segurança do Estado deixa de ser sinónimo da segurança dos indivíduos que nele vivem. Não se trata de negar a segurança do Estado mas de afirmar a obsolescência da segurança do Estado como conceito referenciador de segurança” BRANDÃO, Ana Paula, “A Segurança Humana em Debate”, in Perspectivas. Portuguese Journal of Political Science and International Relations, Número 1 (Braga: NIPCRI, Universidade do Minho, 2005).. Esta preocupação com um redimensionamento de um velho conceito De acordo com o Relatório da Comissão sobre Segurança Humana: “human security means protecting fundamental freedoms…It means protecting people from critical (severe) and pervasive (widespread) threats and situations. It means using processes that build on people’s strengths and aspirations. It means creating political, social, environmental, economic, military, and cultural systems that together gie people the building blocks of survival” (ver na nota abaixo, 2003: 2). é também a de muitos outros autores. S. Lodgaard, para apenas dar um outro exemplo, ao abordar o conceito de “segurança humana”, referiu, há uma boa dezena de anos, que o mesmo deriva da reconfiguração do conceito de segurança nos seguintes termos: “is a dual concept of state security and human security – the former involving defence of territory and freedom to determine one’s own form of government and the latter involving people being free of physical violence” LODGAARD, S., Human Security Concept and Operationalisation in Expert Seminar on Human Security, Geneva, 8-9 de Dezembro de 2000, 1-25, http://www.hsph.harvard.edu/hpcr / events/ hsworkshop /lodgard.pdf.. É de notar, em todo o caso, que mesmo esta nova circunscrição não abarca todas as mudanças ocorridas. que se trata de um conceito restrito de segurança humana, havendo um aceso debate interno sobre os limites do conceito. O conceito de Segurança Humana tem implicações não apenas ao nível do alargamento (multidimensionalidade das ameaças) como no de um aprofundamento no que respeita: ao objecto da segurança e à identificabilidade e tipo de ‘funcionamento’ provenciador da segurança (cf., entre nós, o trabalho de Ana Paula Brandão (2005).. Mais do que propriamente uma inovação plena, tratar-se-ia, assim, de um desdobramento, no fundo – o conceito de “segurança”, por outras palavras, como que se multi-dimensionalizou. Como noutro trabalho fizemos questão de aventar, os motivos para tanto prendem-se seguramente com alterações nos ambientes ‘internos’ e ‘externos’ – ecossistemas sociopolíticos, chamemos-lhes assim, cujas demarcações, como as iremos divisar, se alteraram profundamente – no Mundo pós-bipolar e, no caso português, numa ordem internacional em que nos vimos reinseridos – numa posição estrutural muito diferente daquela em que contracenávamos com outros actores – no ‘ciclo’ pós-imperial e pós instauração da Democracia que nos coube em 1974-1976 MARQUES GUEDES, Armando e Luís ELIAS (2010), op. cit.. . Em Portugal como no resto do Mundo, entre muitas outras consequências, nomeadamente no plano das relações empíricas de força e poder, essas alterações posicionais e mudanças estruturais levaram a reconfigurações conceptuais de peso – designadamente no que toca não só a insegurança que sentimos, mas também ao próprio conceito de segurança que erigimos. ‘Segurança’ tornou-se um conceito de banda larga, por assim dizer. Talvez mais crucial ainda, os mecanismos tidos como centrais para a sua ‘governação’ viram-se ampliados – e isso tem tido reflexos disciplinares no plano da investigação. Para além dos domínios tradicionais do Direito, da Criminologia, dos Estudos Policiais e Militares, dos da Ciência Política ou dos da Sociologia, Antropologia e Psicologia, a segurança e a governação que a orquestra tem vindo a tornar-se em objecto das Relações Internacionais e da Economia Política Internacional, para nos atermos aos exemplos mais óbvios – e, em todos os casos exibiu, nos seus primórdios, uma tónica estato-cêntrica muitíssimo marcada. Raros são hoje em dia os casos em que essa orientação ‘paradigmática’ se mantém incólume. É fácil constatá-lo. Por exemplo, as teorizações contemporâneas no âmbito do estudo das Relações Internacionais começaram desde há alguns anos a tomar como seus pontos focais uma mão-cheia de entidades não estatais – para além da diversificação que se tem vindo a acentuar de uma preferência marcada pelo rastreio de relacionamentos entre uma multiplicidade crescente de actores que operam no interior de Estados O descentramento cada vez mais comum que observamos não está desligado das insuficiências cada vez mais patentes da visão ‘clássica’, “[t]he established view of ‘states-as-billiard balls’”, a qual está, nas palavras de John Hobson, “being transformed into a global co-web of transactions that cuts across the increasingly porous boundaries of nation-states”. HOBSON, John M., The State and International Relations, em (eds.) Krohn-Hansen, Christian, and Knut G. Nustad: 2, (Cambridge: Cambridge University Press, 2005).. Para designar outros casos, o mesmo se passa no quadro da Criminologia e noutras disciplinas. Com efeito, numerosos desenvolvimentos têm vindo a ocorrer nos mais diversos enquadramentos disciplinares, alguns deles até há poucos anos entrevistos como largamente desligados de questões securitárias – designadamente no que diz respeito a domínios ligados à investigação sobre o Economia e Desenvolvimento, passando pelos Estudos da Paz O desenvolvimento tem, por exemplo, sido ‘securitizado’. MARENIN, Otwin, Restoring Policing Systems in Conflict Torn Nations: Process, Problems, Prospects. (Geneva: Geneva Centre for Democratic Control of Armed Forces, Occasional Paper No 7: 7, 2005) e a paz e segurança têm sido teórica e metodologicamente assumidas como pré-condições para desenvolvimento e bem-estar, fugindo aos quadros analíticos tradicionais.. Nas investigações recentes, todas estas são áreas nas quais os pesquisadores têm assumido, como suas, noções a pobreza, o desenvolvimento sócio-económico, e a construção-manutenção de paz, considerando que são fenómenos inextrincavelmente interligados. Em boa verdade, parece ter-se generalizado uma mudança de paradigma assaz significativa – mas uma mudança cujas consequências e implicações ainda são mal conhecidas. E, infelizmente, nem sempre assumidas com a atribuição do real valor analítico que têm. A arquitetura de quatro ‘novos’ e grandes quadros teóricos Com o intuito de cartografar esta progressão ‘para fora do Estado em sentido estrito’, por assim dizer – dando-lhe um dimensionamento mais amplo e sociológico – e tornando a nossa abordagem mais “compreensiva” no âmbito, nela incluindo factores antes etiquetados como externos, vale decerto a pena pormenorizar um pouco mais aquilo em que tal tem redundado, nos últimos anos, em termos de teorizações académicas. A finalidade é a de fornecer melhores quadros para uma contextualização folgada daquilo que está envolvido no que apelidamos de ‘segurança’, para assim mais intrincadamente saber contextualizar actuações nesses âmbitos complexos. Os ditos ‘New Security Studies’ (ligados à chamada ‘Copenhagen School’ de Barry Buzan e Ole Waever) levaram a uma expansão do conceito de ‘segurança’ Seria excessivo, em bom rigor, atribuir à Escola de Copenhaga a ‘autoria’ desses dois movimentos, o horizontal e o vertical, como lhes chamámos, uma vez que o alargamento e aprofundamento do conceito lhe são anteriores. De resto, um dos pontos de agenda da investigação da Escola de Copenhaga é o de analisar a tendência (já instalada ao tempo da sua constituição) para o alargamento do conceito. – e isto tanto horizontal quanto verticalmente. A noção da (Grande) Segurança, segundo eles, inclui agora as actividades políticas – para além das militares – dos Estados, como aliás ainda um amplo leque de “communitarian aspects” que são transversais a fronteiras e que as ‘deslassam’, escapando às limitações à aplicabilidade do conceito tal como antes utilizado BUZAN, Barry, People, States and Fear, Boulder: Lynne Rienner, 1991, BUZAN, Barry, WAEVER Ole, and de WILDE Jaap.. Security. A New Framework For Analysis. Boulder, London: Lynne Rienner Publishers, 1998, bem como BUZAN, Barry & WAEVER, Ole, Regions and powers: The structure of international security, Cambridge: Cambridge University Press, 2003, BUZAN, Barry & WAEVER, Ole, Macrosecuritization and security constellations: reconsidering scale in securitization theory, Review of International Studies, 35 (2), 2009. pp. 253-276.. Para muitos o que está no essencial em causa nesta Escola é uma ampliação de pontos focais – embora a maioria dos analistas reconheça que Waever e Buzan vão mais longe do que isso. De acordo com o já citado Ralf Emmers, por exemplo, “the Copenhagen School broadens the concept of security beyond the state by including new referent objects like societies and the environment (…). The referent objects can be individuals and groups (refugees, victims of human rights abuses, etc.) as well as issue areas (national sovereignty, environment, economy, etc.) that possess a legitimate claim to survival and whose existence is ostensively threatened. The securitizing actors can be the government, political elite, military, and civil society. They securitize an issue by articulating the existence of threat(s) to the survival of specific referent objects” EMMERS, Ralf, Securitization, in COLLINS, Alan (coord.), idem, p. 113.. O esforço, com efeito, segundo esta leitura, não é meramente linear: não se trata com efeito apenas de ampliar, pela via de noções ‘operacionais como a de referent objects e a de securitizing actors, de modo a alargar a definição do próprio conceito. R. Emmers, tal como a generalidade dos analistas, também reconhece que, talvez mais importante, estes novos estudos trouxeram à superfície incertezas e riscos confrontados por agrupamentos ‘à margem’ daquilo que nos habituámos a encarar como constituindo o mainstream do que é ‘segurança’ – há por isso e em resultado que circunscrever, em paralelo e com robustez, novos domínios de investigação. Tornar-se-ia, porém, redutor, ver nas teorizações de Copenhaga apenas uma ampliação e um adensamento conceptual – pois tal leitura faz-nos ganhar com o redimensionamento “retórico” e “discursivo” dos quadros teóricos e metodológicos engendrados por esta Escola, bem como a sua crença de que a “segurança” não é de todo independente dos muito concretos processos de “securitarização” levados a cabo nas comunidades políticas pelos detentores do poder político-simbólico que nelas controlam as formas discursivas. Uma cláusula de ressalva: à primeira vista, poderia parecer que a abertura de banda lograda se exprimiria, para Waever e Buzan, por uma espécie de ‘humanização’ Para estes pontos, é útil a leitura de WAEVER, O., Securitization and Desecuritization, in Ronnie Lipschultz, On Security, New York: Columbia University Press, 1995, bem como WILLIAMS, Michael C., “Words, Images, Enemies: Securitization and International Politics”, International Studies Quarterly, vol.47: 511-531, 2003. Ole Waever afirma aí, designadamente, que “carries with it a history and a set of connotations that it cannot escape” (p. 47), um ponto que Michael Williams desenvolve no artigo citado: uma vez “securitizada”, uma questão passa a evocar imagem de ameaças, inimigos, e defesa, atribuindo ao Estado um papel importante no seu confronto a tanto; o que, segundo estes autores, altera as políticas que “surround the issue”. do que tomamos como fazendo parte do âmbito da segurança. Mas talvez ‘humanização’ não seja aqui o termo mais adequado, visto que, ao contrário de Aberystwyth, como adiante iremos ver, a Escola de Copenhaga não concebe a ‘segurança’ como existindo fora dos speech acts que, eles sim, securitizam (qualquer evento ou conjunto de eventos antes ignorado, por exemplo, só o deixa de o ser se for “baptizado securitariamente”). Empenhadas numa postura desconstrucionista relativamente a modelos anteriores, as teorizações de Copenhaga como que restringem a ‘segurança’ ao mero processo da sua construção. O raciocínio é atraente, embora algo idealista, num sentido literal: para O. Waever e B. Buzan, os speech acts que levam a cabo esse “baptismo” operam engendrando dinâmicas de excepção que colocam o “objecto securitizado” no topo da agenda política institucional, ou oficial; coisa que por norma é o Estado que faz – e é isso, precisamente, aquilo que re-dirige Copenhaga para o estato-centrismo, mesmo quando focada a atenção nos complexos regionais de segurança, e apesar da reconceptualização “multi-sectorial” de Barry Buzan Ver, para só dar um exemplo, FUKUYAMA, Francis, State-building: Governance and World Order in the Twenty-first Century (Cornell University Press, 2004), p. 152. (BOOTH, Ken., Theory of World Security, Cambridge University Press, 2007).. É efectivamente de realçar que, apesar das suas inovações cativantes, a Escola de Copenhaga não rompeu inteiramente e em boa verdade com os paradigmas da sabedoria securitária convencional. Note-se que para a maioria dos autores que nela se reveem (incluindo o próprio B. Buzan) o ponto focal permaneceu no essencial centrado nos Estados. Sem dúvida que algumas das inseguranças anteriormente esquecidas, como aquelas dos ‘marginalizados’, entre os Estados, como no interior de cada um, passaram, em resultado das reconceptualizações da escola de Barry Buzan, para o centro do palco – do palco conceptual, entenda-se. A moldura preferida, por assim dizer, para a prossecução do seu intuito de enquadrar tais temas continua todavia algo estreitamente limitada por hábitos mentais presos a um assaz marcado estato-centrismo – o que, designadamente, tem conduzido a investigação da maioria dos autores ao “statebuilding” puro e duro como o percurso normativo privilegiado – e isso, entre outras coisas, tem conduzido a um negligenciar, perigoso nas suas consequências e implicações, da questão fundamental de quais os ‘interesses’ protegidos e de quem é a segurança que está a ser garantida, bem como uma comparativa desatenção à realidade empírica “no chão”, por assim dizer. Ou seja, apesar da importância empírica e “realista” (no sentido de presentista) cada vez maior que, repetimos, os seguidores de Waever e Buzan têm vindo a colocar na emergência de complexos regionais de segurança, uma inovação hoje em dia difícil de não tomar em consideração. Uma outra maneira de formular tudo isto é a seguinte, retomando a questões de um outro ângulo: a Escola de Copenhaga, não reconhecendo uma ontologia securitária característica nos objectos a securitizar, procura captar o que de único existe na lógica de securitarização. Neste sentido, para Copenhaga só constituirá matéria securitária aquela que tiver sido submetida a um speech-act que, performativamente, a baptize como tal. Consequentemente, a matéria securitária é remetida para além da agenda política comum – para uma ordem parametrizada por medidas de excepção. Esta dinâmica Schmittiana e a vinculação da segurança a um fundamento de ‘sobrevivência’, entre outros elementos conceptuais da Escola, ainda amarra, por isso, em boa verdade, Copenhaga a um relativo estato-centrismo, e isto apesar da sua abordagem “multisectorial” Quanto a este ponto, ver WAEVER, Ole op. cit., 1995 e WILLIAMS, Michael, op. cit., 2002.. Para que o objecto securitizado venha a obter um tratamento comum na agenda política deverá perder a sua natureza securitária através de um processo de des-securitarização. Notamos, aqui, que esta Escola dinamarquesa, para além de não reconhecer matéria de segurança ontologicamente autónoma da prática discursiva, evita a assunção de qualquer normatividade a favor de aquilo que tomará como tendo força explanatória – e procede a uma diferenciação entre processos de securitarização e aquilo que é, segundo os seus arautos, ‘merely political’ Aqui, ver BUZAN, Barry et al., op. cit., 1998.. Com o intuito de o pôr em clara evidência, vale talvez a pena trazer este e outros pontos à superfície em maior pormenor, encetando aqui um esquisso de comparação/contraste das teorizações de Copenhaga com as da Escola ‘galesa’ de Aberystwyth de seguida aflorada: é na medida em que a segurança se vê equacionada com “a emancipação”, que ela se torna, para os analistas de sedeados no País de Gales, numa entidade ontologicamente política – e por isso insusceptível de ser autonomizada da forma como Copenhaga a conceptualiza (se é que verdadeiramente o faz). Uma crítica a esta desatenção tem formado peça central à postura não tanto desconstrutivista quanto “Frankfurtiana” assumida por esta chamada abordagem de ‘Critical Security’ da ‘Aberystwyth School’, a de autores como Ken Booth, Andrew Linklater, ou Michael Williams. A escola galesa procura, em consonância com esta postura que assume, avaliar a “filosofia política” que subjaz às “práticas securitárias” e, nessa precisa medida, avalia os papéis a par e passo assumidos pelos Estados, mas na esteira da histórica Escola de Frankfurt, mantendo sempre como ponto focal normativo “a emancipação do indivíduo” – sem que tal subestime, naturalmente, a importância decisiva das acções e actuações dos Estados. Foquemos com maior precisão em quê. Ao contrário do que é o caso em Copenhaga, em Aberystwyth acredita-se que há “segurança” para além do discurso e da sua produção discursiva por meio de speech acts, e esta “humaniza-se”, stricto sensu, ao colocar normativamente “o indivíduo” como referente último da ‘segurança’. Generalizando: uma característica decisiva desta “Escola” tem sido um incessante questionar do hipotético papel hegemónico e da centralidade inquestionada dos Estados contemporâneos enquanto os hipotéticos ‘fornecedores’ principais, ou até os primeiros ‘produtores’, de segurança – no quadro de apelos emancipatórios centrados nos indivíduos Para um exemplo, dos muitos possíveis, ver BOOTH, Ken et al., Critical Security Studies and World Politics, Boulder, London: Lynne Rienner Publishers, 2005, BOOTH, Ken & VALE, P., Critical Security Studies and Regional Insecurity: The case of Southern Africa, in (eds) KRAUSE and WILLIAMS Critical Security Studies: Concepts and Cases: 329-58, (London, UCL Press, 1997). . O apelo explícito é para um descentramento nas nossas análises, caso queiramos compreender os múltiplos processos de securitarização hoje em dia em curso Ver, para este caso, o pequeno artigo de WAEVER, Ole, “Aberystwyth, Paris, Copenhagen. New 'Schools' in Security Theory and their Origins between Core and Periphery”, um paper apresentado no annual meeting da International Studies Association, Montreal, um encontro que decorreu entre 17 e 20, de Março de 2004, e que está disponível para download em constructivismointegracion.wikispaces.com/.../Aberystwyth,+Paris,+Copenhagen+New+'Schools'+in+Security.doc. Como antes sublinhámos, a postura Aberystwythiana, num plano porventura mais “político-ideológico, é o de um apelo a conjunto de expectativas “emancipatórias” em muitos casos expressas em linguagem teórica Habermasiana. Independentemente das conotações políticas e metodológicas destas opções analíticas, é evidente a sua adequação ao estudo dos casos contemporâneos mais “cosmopolitas” permitem-nos abarcar dimensões da nossa actuação securitária que de outra maneira permaneceriam na penumbra ou escuridão. O Estado, para a Escola galesa, deve ser encarado como sendo apenas uma das várias formas possíveis de comunidade política, não possuindo por conseguinte qualquer estatuto natural ou essencializável. Assim, o papel do Estado enquanto produtor de segurança – e suas dinâmicas institucionais – são questionados e sujeitos pela Escola de Aberystwyth a uma crítica imanente, por forma a aferir a sua correspondência a um ideal emancipatório. As implicações do facto não são de subestimar – e, como iremos verificar, uma perspectivação meramente atida a enquadramentos deste tipo encaminhar-nos-ia para uma excessiva bi- e multilateralização política dos processos sob escrutínio analítico, tornando, designadamente, e para todos os efeitos, como que invisíveis quaisquer actuações envolvendo entidades não governamentais que têm participado – tanto de um como de outro lado – das actuações securitárias de natureza ‘interna-externa’ que tanto caracterizam os palcos contemporâneos Quanto a este ponto, o do esbatimento sensível da fronteira interno-externo, ver, por todos a monografia, já citada, de MARQUES GUEDES, Armando e Luís ELIAS, 2010, logo no seu início.. Para o efeito é aqui importante o conceito de 2comunidade de segurança” para o efeito refinado: para Booth, “one of the key strenghts of the concept of security community is that it represents a multifaceted and multilevel approach, embracing governments and societies, and military and social dimensions. Security communities do not eliminate uncertainty, but they domesticate insecurity" BOOTH, Ken & WHEELER, Nicholas, The Security Dilemma. Fear, Cooperation and Trust in World Politics (New York, Palgrave Macmillan, 2008), p. 296.. Uma terceira “Escola” de teoria da segurança, a de Paris, partindo da área da Sociologia Política e da Teoria Política, aproxima-se muito das preocupações desenvolvidas na introdução deste nosso artigo, na medida em que procura avaliar, ponderando-as, as dinâmicas institucionais mais concretas associadas ao entrelaçar da segurança interna e da externa (bem como, no limite, as entre segurança por um lado e defesa pelo outro, embora com se não tenha ainda muito preocupado). Isto, de novo, independentemente das conotações políticas e metodológicas das opções analíticas assumidas. Tendo como figuras centrais Didier Bigo e Jef Huysmans, esta Escola parisiense usa uma abordagem teórica essencialmente inspirada em Pierre Bourdieu e no seu conceito de ‘campo’, temperada com alguns conceitos Foucaultianos como o de ‘tecnologia governamental de segurança’ para tratar as construções políticas de (in)segurança e ameaça – seguindo uma agenda de investigação focada nos papéis e no impacto dos profissionais de segurança, nas racionalidades governamentais de segurança, e nos efeitos politicamente estruturantes das tecnologias e conhecimentos de segurança. Para esta Escola parisiense, o linguistic turn constitui um momento importante; contudo, os seus membros são de opinião que a construção social da (in)segurança tem lugar por intermédio de diversos outros mecanismos de securitarização para além dos speech acts Austinianos que, como vimos, tão centrais são para os membros da Escola de Copenhaga. Actualmente, a Escola de Paris reúne investigadores de variadas áreas, como a Sociologia, Criminologia, Relações Internacionais e Direito e têm tratado temas como a criação de um espaço de segurança interna na União Europeia e a imigração e asilo como problemas securitários de fundo. Poder-se-ia aqui referir designadamente a tónica posta pelo grupo de Paris na fusão da segurança interna e da externa, na centralidade de “agências de segurança”, e na supremacia da “praxis” sobre o discurso – tónicas essas muito diversas do alargamento de âmbito, da “emancipação” e da “construção social de ameaças inimigos e relações com os ‘outros’”, de Abersystwyth e das preocupações nucleares de Copenhaga com a “construção discursiva da segurança”, com a “desecuritization” e os limites que deveriam ser impostos à retórica securitária e a noções como o de “estado de excepção” de Carl Schmitt e a sua distinção programática entre “securitizing actors” e “referent objects” Por exemplo, no livro de HUYSMANS, Jef, The Politics of Insecurity: Fear, Migration and Asylum in the EU, Routledge, 2006.. Decerto o mais importante na produção teórica da Escola de Paris é, por ora e no entanto, o elaborado no quadro da discussão de Didier Bigo sobre a natureza da fusão entre segurança interna e segurança externa. Segundo Bigo – e embora ele concorde com um alargamento do conceito “tradicional” de segurança – há que saber manter alguma diferenciação entre segurança nacional/estatal e segurança social/identitária. Num artigo justamente famoso BIGO, Didier, Internal and External Security(ies): The Möbius Ribbon, in Identities, Borders and Orders, edited by Mathias Albert, David Jacobson and Yosef Lapid: 91-136. (Minneapolis, Minnesota University Press, 2001)., Bigo propôs uma compreensão, em forma de “Fita de Möebius”, da segurança, capaz de conter, nesses termos, a incerteza e insegurança como topologias abertas e infinitas – uma compreensão que sublinha a sobreposição crescente entre segurança interna e externa, mas que em simultâneo coloca limites efectivos nos processos de securitarização daí advenientes. Com efeito, Bigo sublinha três níveis em cujos termos a fusão da segurança interna com a segurança externa provoca mudanças fundamentais na nossa concepção daquilo que significa ‘segurança’: primeiro, ao verem-se desafiadas pela liberdade de circulação de bens, pessoas e ideias, as fronteiras estaduais “transformam” os inimigos em “inimigos de dentro”; segundo, as normas gizadas sobre Direitos Humanos e cosmopolitismo competem com as normas nacionalistas ‘clássicas’, o que leva nalguns casos e aspectos a uma perda de sentido das fronteiras enquanto barreiras contra a insegurança, a desordem e o “Outro”; terceiro, o autor alega que hoje em dia a segurança se vê “individualizada”, num sentido pouco diferenciado – em que, por exemplo, os discursos contemporâneos tendem a estabelecer uma ligação quase umbilical e demasiado simples entre os medos individuais (e.g. o medo do desemprego) e o medo mais ‘tradicional’ nas teorias ‘clássicas’, esse relativo à sobrevivência colectiva. Quais são, para esta Escola, os suportes concretos que permitem tudo isto? Sob influência Foucaultiana, Bigo alude, designadamente, à existência de um pan-opticon dispositif, e fá-lo enquanto maneira de melhor perceber como funciona a rede de práticas heterogéneas e transversais enquanto forma de (in)segurança ao nível transnacional: “this pan-opticon is deployed at a level that supersedes the nation-state and forces government to strengthen their collaboration in more or less globalized spaces, both physical and virtual, sometimes global or Westernized, and still more frequently Europeaneized. The effects of power and resistance are thus no longer contained by the political matrix of the relation between state and society. They exceed the frame of representations inscribed within the nation-state, disconnect the direct relations between state and individuals inside between the external of the nation-state in its relation with other states, as a different universe” BIGO, Didier, Globalized (In)Security, edited by BIGO, Didier & TSOUKALA, Anastassia, Terror, Insecurity and Liberty. Illiberal Practices of Liberal Regimes After 9/11 (New York: Routledge, 2008), pp. 32-33.. Segundo o autor, este dispositivo permite-nos analisar os discursos sobre “ameaças, imigração, inimigo no seio da nossa sociedade, quinta coluna, muçulmanos radicais versus bons muçulmanos, exclusão versus integração, etc.; sobre instituições (agências públicas, governos, organizações internacionais, ONGs, etc.); sobre estruturas arquitectónicas (centros de detenção, zonas de espera e de controlo nos aeroportos, redes de videovigilância em algumas cidades, redes electrónicas com capacidade de vigilância electrónica); sobre legislação (terrorismo, crime organizado, imigração, trabalho clandestino, asilo, para acelerar procedimentos judiciais ou para restringir os direitos da defesa); e sobre medidas administrativas (regulamentação de indocumentados, acordos entre agências governamentais vis-à-vis políticas de deportação/repatriamento, ‘aeronaves’ civis contratadas para efeitos de deportação com partilha de custos por diferentes políticas nacionais, etc.). Bigo sustenta que este mesmo dispositivo é o que nos permite compreender que a vigilância de todos os cidadãos não se encontra em boa verdade inscrita na agenda actual, pois o que nela está é sim, antes, a vigilância de um pequeno grupo de pessoas, as quais estão “aprisionadas” no imperativo da mobilidade – enquanto a maioria está normalizada. Para ele esta é “definitely the main tendency of the policing of the global age”. Bigo destaca três dimensões do dispositivo pan-óptico para garantir que o controlo e vigilância de alguns grupos minoritários é efectuado à distância: “this surveillance of the minority profiled as ‘unwelcome’ is (…) the strategic function of the diagram – a function opposed to the surveillance of the entire population (…), which is only the dream of a few agents of power, even if the rhetoric after 11 September articulates a ‘total’ information”. O pan-óptico é, assim, caracterizável pelo seu excepcionalismo, e de novo num quadro em muitos sentidos Schmittiano: “rules of emergency and their tendency to become permanent, by the way it excludes certain groups in the name of their future potential behavior (profiling) and by the way it normalizes de non-excluded through its production of normative imperatives, the most important of which its free movement (the so-called four freedoms of circulation of the EU: concerning goods, capital, information, services and persons)” Idem, p. 32.. Vários outros exemplos poderiam aqui ser fornecidos das alterações de fundo quanto à conceptualização da ideia de “segurança”. Sem pretendermos ser exaustivos, atenhamo-nos a apenas a mais outro exemplo, um quarto e último grande quadro teórico, no qual um outro horizonte de problematização destas questões tem vindo a emergir. Trata-se, neste último caso, de um enquadramento que se delineia e auto-representa como um ‘New Regionalism’; um quadro que visa precisamente responder a este tipo de inclusividade alargada – embora o tenda a levar a cabo, em nossa opinião, de maneira por via de regra pautada por preferências político-ideológicas implícitas e, curiosamente, algo diversas por detrás de um denominador comum em que se encontram a maioria consensos partilhados por este agrupamento difuso. O ponto focal das análises ‘novo-regionalistas’ tem sido o constituído pelo Sul político, lato sensu o antigamente apelidado de “o Terceiro Mundo”. De acordo com a perspectiva partilhada por este agrupamento de autores, a melhor maneira de conceptualizar as formatações contemporâneas de governação de segurança é encarando-a como “regional”, bem como “plural” e “informal”. A heterogeneidade de perspectivas contra este pano de fundo comum marca esta ‘escola’: o argumento geral esgrimido é o de que informalidade, pluralidade, e regionalização, são realidades factuais mal capturadas pelo foco posto nos Estados, nas suas agências, e nos seus respectivos arranjos institucionais formais. Os analistas que integram este conjunto comparativamente difuso, tendem antes a conceber “segurança” – e muito em particular a cada vez mais importante segurança urbana – enquanto uma questão multidimensionada [traduzimos multi-layered] – envolvendo, nomeadamente, Estados, mercados, e sociedades, e estas últimas em diversos planos de inclusividade), e como transversais [traduzindo cross-cutting]. O ponto implícito é interessante, embora óbvio. Um dos argumento diacríticos dos “novos regionalistas” é o de que apenas uma boa compreeensão-destrinça dos mecanismos em operação nos processos contemporâneos de “regionalização” nos permite perceber na sua integridade própria a realidade, por intermédio de ‘a theoretical framework that does not privilege the state and avoids assumptions a priori of who is the ‘driving actor’” A citação é de GRANT F. & A. SÖDERBAUM (2003), op. cit:, p. 197. – como, por exemplo, o facto de termos assistido a um despertar de interesse, sobretudo na última década, em trabalhos relativos a processos de consolidação estadual (e do seu descentramento) e a consequente reconceptualização aturada de noções como as de “segurança” ou de “soberania”. Em que ficamos, afinal? Como encarar tudo isto em conjunto – estes quatro grandes enquadramentos – e extrair daqui ilações que possam ser úteis para a condução de estudos empíricos concretos? Não nos parece abusivo considerar que os paralelismos que acabámos de equacionar se prendam com a emergência de uma “aldeia global” e com os processos, complexos, de empowerment e disempowerment que caracterizam as sociedades contemporâneas. E é nesta última linha que pretendemos inscrever os estudos que vamos levando a cabo – aproveitando, aqui e ali, sempre que tal consideremos como sendo analiticamente útil, alguns dos insights dos autores e das Escolas a que fizemos alusão – mas sempre nos termos de uma perspectivação que julgamos mais abrangente. A teoria democrática tem tendido a assestar baterias sobre as formas segundo as quais a mobilização de capacidades no interior de organizações cívicas pode melhorar substancialmente a qualidade dos inputs em processos democrático-representativos e, mesmo fora deles, nas instituições e mecanismos de tomada de decisão e governance – ou seja, no quadro interno dos Estados. O argumentário utilizado tem por norma posto a tónica em questões como a educação política, a resistência concertada face a abusos, o checking e as pressões de accountability dos poderes ‘governamentais’, ou na agregação de interesses e representações e na dinâmica das deliberações públicas. Mas as discussões esgrimidas têm-se revelado pouco convincentes, embora à superfície o possam parecer. À semelhança de muitos outros autores, Van Dijk, sustenta que a cooperação policial e judiciária internacional é fundamental para fazer face à nova fenomenologia criminógena, quando afirma que a “international cooperation in criminal justice is not only a priority for development reasons. It is, of course, also dictated by the increasingly global nature of conventional and emerging security threats. An increasing number of emerging crimes, such as international terrorism and crimes commited on the world wide web are transnational in nature. The growing internal security problems of many developing countries are likely to spill over into other countries in numerous ways (…). Organized crime and corruption are often instrumental in the perpetuation of internal conflicts, which prevent state formation” VAN DIJK, Jan, The World of Crime. Breaking the Silence on Problems of Security, Justice, and Development Across the World (Los Angeles, London, New Delhi, Singapore: Sage Publications, 2008), p. 318.. Mesmo se nos restringirmos àquilo que se passa nos domínios intra-estatais, é fácil constatar que no decurso da última dezena de anos, embora muitos estudiosos se tenham nos últimos tempos vindo a debruçar sobre exemplos de participação democrática, a verdade é que por norma tais casos não têm desencadeado – ou sequer envolvido – um real revigoramento da vida associativa em contextos de uma qualquer modalidade de governação representativa como chave de uma por vezes muito tangível revitalização democrática. Ao invés, o ponto focal tem sido colocado na participação directa dos cidadãos. No fundo, aquilo que está subjacente a esta perspectivação é a ideia de que a “sociedade civil” dá corpo a capacidades sub- ou mal utilizadas para a resolução de problemas colectivos – que podem com facilidade ver-se potenciadas. Como é bem sabido, nas últimas décadas, tanto no Sul como no Norte, têm sido levadas a cabo experiências de participação democrática directa e grass-roots nos mais diversos sectores da vida social – de áreas como a definição de orçamentos locais, ao micro-crédito, à educação, à regulação de recursos naturais e do meio-ambiente, ao policiamento e à segurança em geral. Nos mais diversos domínios, uma reconceptualização que redunda na ideia da “democracia como uma forma de vida” têm enraizado e medrado. A narrativa – veremos por quanto tempo – tornou-se virtualmente hegemónica, pelo menos nos meios políticos norte-europeus onde os New Regionalists se têm implantado. Os lugares de enunciação dos novos discursos securitários Para reiterar o que antes fizemos questão de sublinhar, interessante tomar em boa conta que estes denominadores comuns não ocorrem de maneira aleatória – exprimem, antes, alterações muito concretas que têm vindo a ocorrer no Mundo e perspectivações sobre elas, oriundas de lugares estruturais diferentes dos que as enunciam. Embora de ângulos diversos e de qualidade variável, estas novas abordagens convergem com a propensão ‘epistémica’ das anteriores, insistindo na multiplicidade de planos sociais em que se afirma a “estaticidade”, e nas diversas “frentes” nas quais a “globalização” Para Anthony Giddens existem quatro grandes dimensões da globalização: o sistema do Estado-Nação, a economia capitalista, a divisão internacional de trabalho, e a ordem militar mundial. GIDDENS, Anthony, As Consequências da Modernidade (Lisboa: Celta Editores, 1990 [2005]), pp. 39-54 afecta as dinâmicas estaduais, a segurança, e as práticas de governação Para alguns exemplos relativos ao continente africano, ver (eds.) COMAROFF, Jean & COMAROFF, John L., Law and disorder in the postcolony. (Chicago and London, University of Chicago Press: 2006); TROILLOT, Michel-Rolph, Global transformations. Anthropology and the modern world. (New York and Houndmills: Palgrave Macmillan, 2003); MARQUES GUEDES, Armando, LOPES, Maria, MIRANDA José Yara, DONO, João e MONTEIRO, Patrícia, Litígios e Pluralismo em Cabo Verde O sistema judicial e as formas alternativas, Themis. Revista da Faculdade de Direito da UNL 3: 1-69, Lisboa: 2001; MARQUES GUEDES, Armando, TINY, N’gunu, AFONSO PEREIRA, Ravi, DAMIÃO FERREIRA, Margarida e GIRÃO, Diogo, Litígios e Pluralismo. Estado, sociedade civil e Direito em São Tomé e Príncipe, (Coimbra: Almedina, 2003); MARQUES GUEDES, Armando, Entre a justiça tradicional e a popular. A resolução de conflitos num campo de refugiados, em finais de 2002, nas cercanias do Huambo, Angola, SubJudice 25: 21-35, Lisboa; MARQUES GUEDES, Armando, Can ‘Traditional Authorities’ and a Democratic State co-exist in Angola?, Politica Internationala XI-XII: 169-217, Bucuresti, Romania, 2008.. Note-se, a título de exemplo, que na larga maioria dos casos em apreço, a pluralidade e heterogeneidade empírica emergente em largos sectores do Mundo contemporâneo derrogam na presumida ‘unidade’ do Estado, do seu funcionamento, e das práticas de governação que lhe são imputadas – pondo também no palco modelos complexos e multi-dimensionais de uma governação cada vez mais encarada como policêntrica. E muitos são os autores que insistem em tomar tais mudanças em boa linha de conta Ver CLARK, Ian, Globalization and the Post-Cold War Order in BAYLIS, John, SMITH, Steve & OWENS, Patricia (coord.) The Globalization of World Politics (New York: Oxford University Press, 2008), pp. 560-575.. Segundo Ian Clark, para de novo nos atermos a apenas um exemplo, “globalization is often thought of as an extreme form of interdependence. This sees it exclusively as an outside-in development. The implication of such analyses is that states are now much weaker as actors. Consequently, they are in retreat or becoming obsolete. If this were the case, ideas of international order would be much less relevant to our concept of order. But if globalization is considered as a transformation in the nature of states themselves, it suggests that states are still central to the discussion of order: they are different but not obsolete. This leads to the idea of a globalized state as a state form, and introduces an inside-out element. In this case, there is no contradiction between the norms and rules of a state system operating alongside globalized states. This international order will nonetheless have different norms and rules in recognition of the new nature of states and their transformed functions. Rule of sovereignty and non-intervention are undergoing change as symptoms of this adaptation”. Seria difícil ser-se mais claro, tanto quanto ao diagnóstico feito das alterações em curso, quanto das reconceptualizações que tais mudanças exigem dos analistas de hoje – quanto, ainda, às alterações cognitivas de dimensão verdadeiramente tectónica a que temos estado sujeitos. Há no entanto que tornar a frisar que nas nossas paisagens conceptuais e nos nossos novos e correlativos horizontes de problematização, as alterações não têm tido só lugar na ordem “interna”. Por intermediação de uma curiosa analogia, também tem sido assim nas arenas internacionais, nas quais discursos sobre os Direitos Humanos, sobre o Direito de Ingerência, ou sobre a Responsabilidade de Proteger, têm ganho foros de cidade. Por outras palavras, uma narrativa hegemónica maior também manifestamente tem vindo a ganhar terreno no que toca ao relacionamento entre Estados. Bom ou mau, tudo isto pode ser encarado como a emergência e cristalização de um “overlapping consensus” quanto à natureza universal da justiça e ao núcleo duro de valores humanos, uma forma de comunicação sobre a liberdade e dignidade humanas a fazer-se ouvir alto e bom som num Mundo marcado por dolorosas fragmentações, iniquidades, e uma insegurança crescente ou, pelo menos, uma maior consciência acerca dos novos fenómenos de insegurança. Conforme nos diz Zygmunt Bauman, “as long as dangers remain eminently free-floating, freakish and frivolous, we are their sitting targets - there is pretty little we can do, if anything at all, to prevent them. Such hopelessness is frightening. Uncertainty means fear (…). We dream of a reliable world (…). A secure world (…). Insecurity is here to stay, whatever happens. More than anything else, ‘goodluck’ means keeping ‘bad luck’ at a distance” BAUMAN, Zygmunt, Liquid Times. Living in an Age of Uncertainty, Polity, London, 2007.. Dois aspectos comuns e interligados desta nova “grande narrativa emergente” [a expressão é nossa] têm-se manifestado por apelos a um comprometimento crescente com formas de “change from below”, e uma maior sensibilidade a contextos culturais, sociais e políticos diferentes, designadamente os “não-Ocidentais”. Em larga medida, em nossa opinião, esta narrativa visa resolver problemas de poder e afirmação – mormente naqueles Estados que se sentem internacionalmente menos empowered do que desejariam, ou ambicionariam. Constituem, assim, uma espécie curiosa de obliquidade, um mecanismo de compensação que opera por intermédio da expressão tácita de uma infeliz subalternidade que se não quer assumir como tal. Quedamo-nos, por isso, afinal, no domínio, pobre de um ponto de vista analítico, da mera expressão política. Muito há ainda a fazer no domínio de uma mudança cujas consequências e implicações estão, todavia, bem descritas – mas sabendo que se trata de um domínio no qual, em si mesmas, são pouco e mal compreendidas. Bibliografia AUSTIN, J.L., How to do things with Words: The William James Lectures delivered at Harvard University in 1955, (ed.) J.O.Umson, Oxford: Clarendon, 1962. AYOOB, Mohammed, The Third World Security Predicament (Boulder: Lynne Rienner Publishers, 1995). BAUMAN, Zygmunt, Liquid Times. Living in an Age of Uncertainty, Polity, London, 2007. BECK, Ulrich, Risk Society. Towards a New Modernity. (London, Sage Publications, 1992) BECK, Ulrich, The Terrorist Threat. World Risk Society Revisited, in Theory, Culture & Society, Vol. 19 (4), 2002, pp. 39 – 55. BIGO, Didier, "Internal and External Security(ies): The Möbius Ribbon", in Identities, Borders and Orders, edited by Mathias Albert, David Jacobson and Yosef Lapid: 91-136. Minneapolis, Minnesota University Press, 2001. BIGO, Didier, membro do C.A.S.E. COLLECTIVE, “Critical Approaches to Security in Europe: A Networked Manifesto”, Security Dialogue 37 no. 4: 443-87, 2007. BIGO, Didier, & GUILD, Espeth, Controlling Frontiers. Free Mouvement into and within Europe (Aldershot: Ashgate Publishing, 2005). BIGO, Didier, “Globalized (In)Security”, edited by BIGO, Didier & TSOUKALA, Anastassia, Terros, Insecurity and Liberty. Illiberal Practices of Liberal Regimes After 9/11 (New York: Routledge, 2008). BOOTH, Ken, Theory of World Security (New York: Cambridge University Press, 2008). BOOTH, Ken & VALE, P., “Critical Security Studies and Regional Insecurity: The case of Southern Africa”, in (eds) KRAUSE and WILLIAMS Critical Security Studies: Concepts and Cases: 329-58, (London, UCL Press, 1997). BOOTH, K. & DUNNE, T. (eds.), Worlds in Collision: Terror and the Future of Global Order (London: Palgrave, 2002). BRANDÃO, Ana, Segurança: Um Conceito Contestado em Debate in Informações e Segurança: Livro em Honra do General Pedro Cardoso (Lisboa: Editora Prefácio, 2004). BRANDÃO, Ana Paula, “A Segurança Humana em Debate”, in Perspectivas. Portuguese Journal of Political Science and International Relations, Número 1 (Braga: NIPCRI, Universidade do Minho, 2005). BUZAN, Barry, People, States and Fear: An Agenda for International Security Studies in the Post-Cold War Era (London: Harvester Wheatsheaf, 1991). BUZAN, Barry, WAEVER, Ole & WILDE, Jaap, Security, a New Framework for Analysis (Boulder: Lynne Rienner Publishers, 1998). BUZAN, Barry & WAEVER, Ole, Regions and powers: The structure of international security, Cambridge: Cambridge University Press 2003). BUZAN, Barry & WAEVER, Ole, Macrosecuritization and security constellations: reconsidering scale in securitization theory, Review of International Studies, 35 (2), 2009 COX, Michael, Meanings of Victory: American Power after the Towers in BOOTH, K. & DUNNE, T (ccord.), Worlds in Collision: Terror and the Future of Global Order (London: Palgrave, 2002). ELIAS, Luís, A Formação das Polícias nos Estados Pós-Conflito. O Caso de Timor-Leste (Lisboa: Instituto Diplomático, Ministério dos Negócios Estrangeiros, 2006). EMMERS, Ralf, Securitization in COLLINS, Alan (coord.), Contemporary Security Studies (New York: Oxford University Press, 2007). FERNANDES, Luís Fiães, “As Novas Ameaças como Instrumento de Mutação do Conceito ‘Segurança’”, in I Colóquio de Segurança Interna, (Coimbra: Almedina, 2005). FUKUYAMA, Francis, State-building: Governance and World Order in the Twenty-first Century: 152, Cornell University Press, 2004 GARCIA, Francisco Proença, “As Ameaças Transnacionais e a Segurança dos Estados, Subsídios para o seu Estudo”, in Revista Negócios Estrangeiros n.º 9.1. (Lisboa: Instituto Diplomático, Ministério dos Negócios Estrangeiros, Março de 2006). GIDDENS, Anthony, As Consequências da Modernidade (Oeiras: Celta Editora, [1990], 2005). GIDDENS, Anthony, A Europa na Era Global (Lisboa: Editorial Presença, 2007). GOMES, Paulo, “Cooperação Policial Internacional: O Paradigma da União Europeia”, in II Colóquio de Segurança Interna, (Coimbra: Edições Almedina, 2006). GRANT, F. & SÖDERBAUM, A., New Regionalisms in Africa. (Aldershot: Ashgate, 2003). GROS, J.G., “Trouble in Paradise: Crime and Collapsed States in the Age of Globalization”, British Journal of Criminology, 43, 2003. HADDEN, Tom, The Responsibility to Assist: EU Policy and Practice in Crisis-Management Operations Under European Security and Defence Policy (Portland: Hart Publishinhg, 2009). HAM, Peter van, “Branding territory: inside the wonderful world of PR and IR theory”, Millenium, 31 (2): 249.269, 2002. HELD, D., A. McGREW, D. GOLDBLATT and J. PERRATON, Global Transformations: Politics, Economics and Culture. (Cambridge: Cambridge, Polity Press, 1999) IGNATIEFF, Michael, State Failure and Nation Building in (ed.) HOLZGREFE, J.L. & KEOHANE, Robert, Humanitarian Intervention. Ethical, Legal and Political Dilemmas (Cambridge: Cambridge University Press, 2003) KEOHANE, Robert O. and NYE, Joseph S., Power and Interdependence, World Politics in Transition, Little, Brown & Company, 1977. KERR, Pauline, Human Security in COLLINS, Alan (coord.), Contemporary Security Studies (New York: Oxford University Press, 2007) LEANDRO, José Eduardo Garcia, “A Teoria da Diversificação e Articulação das Fronteiras e os Sistemas de Forças”, in Boletim 28, Instituto de Altos Estudos Militares, Lisboa, 1992. LEANDRO, José Eduardo Garcia, “A Nova Ordem Internacional: Vinte Sinais Premonitórios de uma Nova Era”, Negócios Estrangeiros 19, Lisboa: Instituto Diplomático, Ministério dos Negócios Estrangeiros, Fevereiro de 2007. LEANDRO, José Eduardo Garcia, “O Estado, o cidadão e a segurança – novas soluções para um novo paradigma”, Segurança e Defesa, 2, pp. 12-19, Fevereiro de 2007. LODGAARD, S., Human Security Concept and Operationalisation in Expert Seminar on Human Security, Geneva, 8-9 Dezembro de 2000, 1-25, http://www.hsph.harvard.edu/hpcr / events/ hsworkshop /lodgard.pdf MARQUES GUEDES, Armando, Estudos sobre Relações Internacionais, Lisboa: Instituto Diplomático, Ministério dos Negócios Estrangeiros, 2005) MARQUES GUEDES, Armando, “Pensamento Estratégico Nacional: que futuro?”, em J.M. Freire Nogueira e João Vieira Borges, O Pensamento Estratégico Nacional: 243-299, Lisboa: Cosmos e Instituto de Defesa Nacional, Ministério da Defesa, 2006. MARQUES GUEDES, Armando, “Can ‘Traditional Authorities’ and a Democratic State co-exist in Angola?”, Politica Internationala, XI-XII: 169-217, Bucuresti, Romania, 2008. MARQUES GUEDES, Armando, Ligações Perigosas. Conectividade, Coordenação e Aprendizagem em Redes Terroristas, Coimbra: Almedina, 2007. MARQUES GUEDES, Armando, LOPES, Maria, MIRANDA José Yara, DONO, João e MONTEIRO, Patrícia, “Litígios e Pluralismo em Cabo Verde O sistema judicial e as formas alternativas”, Themis. Revista da Faculdade de Direito da UNL 3: 1-69, Lisboa: 2001. MARQUES GUEDES, Armando, TINY, N’gunu, AFONSO PEREIRA, Ravi, DAMIÃO FERREIRA, Margarida e GIRÃO, Diogo, Litígios e Pluralismo. Estado, sociedade civil e Direito em São Tomé e Príncipe, (Coimbra: Almedina, 2003). MARQUES GUEDES, Armando, Sobre a União Europeia e a NATO, in Nação e Defesa 106: 33-76, Lisboa: Instituto de Defesa Nacional, Ministério da Defesa, 2004. MERLINGEN, Michael and Rasa OSTRAUSKAITE, “Power/Knowledge in International Peacebuilding: The Case of the EU Police Mission in Bosnia”, Alternatives, 20: 297-323, 2005. MERLINGEN, Michael & OSTRAUSKAITE, Rasa, European Union Peacebuilding and Policing: Governance and the European Security and Defence Policy, New York: Routledge, 2006. MONTAIN-DOMENACH, Jacqueline, L’Europe de la Sécurité Intérieure, Paris : Editions Montchrestien, 1999. PASTORE, Ferruccio, Reconciling the Prince’s Two ‘Arms?: Internal-external security policy coordination in the European Union, Occasional paper 30: v, (Paris: The Institute of Security Studies, Western European Union, 2001). RUGGIE, John Gerhard, “Reconstituting the Global Public Domain: Issues, Actors, and Practices”, European Journal of International Relations, 10 (4): 499-531, 2004. SARMENTO, Cristina Montalvão, Políticas de Segurança na Sociedade Contemporânea - Lição Inaugural do Ano Lectivo 2007/2008 (Lisboa: ISCPSI, 2007). SLAUGHTER, Anne-Marie, A New World Order, Princeton University Press, 2004. VAN DIJK, Jan, The World of Crime. Breaking the Silence on Problems of Security, Justice, and Development Across the World (Los Angeles, London, New Delhi, Singapore: Sage Publications, 2008). WAEVER, Ole, “Securitization and Desecuritization”, in Ronnie Lipschultz, On Security, New York: Columbia University Press, 1995) WAEVER, Ole, “Aberystwyth, Paris, Copenhagen. New 'Schools' in Security Theory and their Origins between Core and Periphery”, um paper apresentado no annual meeting da International Studies Association, Montreal, um encontro que decorreu entre 17 e 20, de Março de 2004, disponível para download em constructivismointegracion.wikispaces.com/.../Aberystwyth,+Paris,+Copenhagen+New+'Schools'+in+Security.doc 23