Dossiê:
Paisagens e
Paisagismos do Sul
v. 6, n. 2, 2022
Dossiê:
Paisagens e
Paisagismos do Sul
v. 6, n. 2, 2022
Epistemologias do Sul: Pensamento Social e Político em/desde/para América Latina, Caribe,
África e Ásia. Dossiê: Paisagens e paisagismos do Sul. Volume 6, número 2, 2022.
ISSN: 2526-7655
Foz do Iguaçu/PR: Universidade Federal da Integração Latino-Americana.
Universidade Federal da Integração Latino-Americana. Revista “Epistemologias do Sul: pensamento
social e político em/desde/para América Latina, Caribe, África e Ásia”. Av. Tarquínio Joslin dos Santos,
1000 - Jardim Universitário, sala C301 - Foz do Iguaçu - PR, 85870-901.
Revista Epistemologias do Sul
revista.epistemologias@unila.edu.br
Dossiê:
Paisagens e
Paisagismos do Sul
v. 6, n. 2, 2022
Epistemologias do Sul: Pensamento Social e Político em/para/
desde América Latina, Caribe, África e Ásia é um periódico online
de publicação semestral do grupo de pesquisa homônimo ligado
à Universidade Federal da Integração Latino-Americana, em Foz
do Iguaçu/PR. Seu objetivo é divulgar estudos e investigações
sobre ou desde o pensamento social e político latino-americano,
caribenho, africano e asiático, promovendo o diálogo Sul-Sul.
ISSN 2526-7655
Editor-Executivo
Marcos de Jesus Oliveira
Editores-Associados
Tereza Spyer
Leo Name
Conselho Editorial
Ângela Maria De Souza (UNILA)
Camilo Hernan Manchola Castillo (UNB)
Caterina Alessandra Rea (UNILAB)
Cesar Augusto Baldi (ULBRA)
Cesar Torres Cruz (UAM)
Elias Nazareno (UFG)
Elzahrã M. Radwan Omar Osman (INEP)
Estevão Rafael Fernandes (UNIR)
Julio Pereyra (UDELAR)
Li-Chang Shuen Cristina (UFMA)
Lorena R. Tavares De Freitas (UNILA)
Marcos de Jesus Oliveira (UNILA)
Pablo Quintero (UFRGS)
Priscila De Oliveira Coutinho (UERJ)
Sônia Cristina Hamid (IFB)
Waldemir Rosa (UNILA)
Liza Maria Souza de Andrade
Mãe Marina de Ogum (In Memorian)
Maria Paula Meneses
Mariana Castañeda Díez
Marta Raquel da Silva Alves
Martin Prominski
Maurício Santos
Mayara Mychella Sena Araújo
Narciso Barrera Bassols
Nayara Cristina Rosa Amorim
Oswaldo Freitez Carrillo
Pedro S. Urquijo Torres
Rita de Cássia Martins Montezuma
Rodrigo da Cunha Nogueira
Traduziram nesse número
Mariana Redd
Victória Tupini
Revisão e normatização
Leo Name
Coordenação gráfica
Leo Name
Oswaldo Freitez Carrillo
Editaram esse número
Leo Name / Editor Chefe
Rodrigo da Cunha Nogueira / Editor Adjunto
Céline Felício Veríssimo / Editora Assistente
Colaboraram com esse número
Acácio Machado Alves
Camila Maia Dias
Céline Felício Veríssimo
Erivan de Jesus Santos Junior
Flávio Augusto Serra
Leo Name
Libia Castañeda
Fotos de capa e folhas de rosto
Erivan de Jesus Santos Junior
Projeto gráfico
Oswaldo Freitez Carrillo
Editoração
Oswaldo Freitez Carrillo
Editorial
Paisagens e paisagismos do Sul,
sobre o Sul, a partir do Sul e para o Sul
Leo Name, Rodrigo da Cunha Nogueira e Céline Veríssimo
12
Entrevista
Pode a folha falar?
22
Em memória à Mãe Marina de Ogum
Céline Veríssimo e Mauricio Santos
Ensaios
Quando o rio mora ao lado
36
Nayara Cristina Rosa Amorim
Los silencios de los mapas,
los personajes ausentes:
48
ensayo cartográfico sobre las
movilidades en la pandemia
Oswaldo Freitez Carrillo
Paisagens solitárias
de lugares fantásticos
Leo Name
104
Artigos
El gótico tropical:
128
un término dinámico
Libia Castañeda
O sertanejo e sua
indissociação com
o seu espaço:
144
o papel de Fabiano na
representação do sertão
Flávio Augusto Serra
Paisagismo dos orixás:
158
esboço para uma definição não completa
Céline Veríssimo e Maurício Santos
Que planta escolher?
Entre a fitorremediação
e a etnobotânica:
uma leitura de suas diversas funções,
como olhar para a umbanda
Nayara Cristina Rosa Amorim
e Mayara Mychella Sena Araújo
178
Sabores, aromas e saberes:
desafios para uma epistemologia dominante
196
Maria Paula Meneses
Restinga comestible:
214
una alternativa para una necesidad socio ambiental
Mariana Castañeda Díez e Rita de Cássia Martins Montezuma
Paisagem de injustiça hídrica
no assentamento Pequeno
William do MST no Distrito Federal:
242
práticas agroecológicas de sobrevivência
ou soluções baseadas na natureza (SBN)?
Acácio Machado Alves,
Liza Maria Souza de Andrade e Camila Maia Dias
Paisagens das Minas:
260
uma conformação de riscos das minas em Minas Gerais
Rodrigo da Cunha Nogueira
Às margens das monoculturas:
288
a diversidade biocultural das paisagens do Baixo Sul, Bahia
Marta Raquel da Silva Alves e Erivan de Jesus Santos Junior
O design das paisagens de emaranhamento
310
Martin Prominski
História e paisagem:
328
explorando um conceito geográfico monista
Pedro S. Urquijo Torres e Narciso Barrera Bassols
Paisagens do sul, amefricanas e ch’ixis
Leo Name
346
Editorial:
paisagens e paisagismos
do Sul, sobre o Sul, a partir
do Sul e para o Sul
Leo Name
¡DALE!, PPG-AU / FAUFBA
Rodrigo da Cunha Nogueira
¡DALE!, DEARQ / UFOP
Céline Veríssimo
¡DALE!, MALOCA, CAU UNILA
Foto: Erivan de Jesus Santos Junior
14
Editorial
O Dossiê: Paisagens e Paisagismos do Sul, que a leitora ou o leitor tem em mãos nesta
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, 2022, traz uma temática que “pega carona” no título da publicação que o alberga. Afinal, como seus mais recentes editoriais vêm reiterando, a revista Epistemologias do Sul, da Universidade Federal da Integração Latino-americana (UNILA) e vinculada ao
grupo de pesquisa Epistemologias do Sul: pensamento social e político em/desde/para América
Latina, Caribe, Ásia e África, tem enfoque nos estudos sobre e/ou desde o pensamento social e
político advindos de um Sul cuja ideia está associada a determinadas localizações geográficas
– lugares, paragens e paisagens. A revista e o dossiê, assim, parecem se conduzir a campos bastante minados do debate teórico: o das conceituações de paisagem e paisagismo forjadas em
meio a ambiguidades, indefinições e binarismos – sociedade/meio ambiente, cultura/natureza,
produção/representação e trabalho/arte, por exemplo; e o das variadas digressões sobre o Sul,
não menos repletas de imprecisões.
A ideia de Sul parece ter surgido em fóruns formais de relações internacionais, em meados
do século XX, com a intenção de desenhar certa identidade política autoconsciente em meio
à ação política de nações e grupos subalternos e de passado colonial (DIRLIK, 2007; DADOS;
CONNEL, 2012; BALLESTRIN, 2020). No entanto, conforme se infiltrou no debate acadêmico,
o Sul institui-se como um conceito de enunciações sempre em disputa (ROSA, 2014): pode se
referir a tipos singulares de pensamento social e posição intelectual de que insurgem estratégias
em busca de mais equidade e menos injustiça cognitiva na divisão internacional do trabalho
intelectual (CONNEL, 2007); a um campo epistemológico na luta contra os crimes e os danos
perpetrados pelo capitalismo de base colonial, patriarcal e racista (SANTOS; MENESES, 2009); ou
ao conjunto de meios e fins resultados da improvisação, da adaptação e da imaginação cotidianos de comunidades e lugares desfavorecidos ou minoritarizados, em busca de sua resistência
e sua sobrevivência (COMAROFF; COMAROFF, [2012] 2013). E se no bojo destas definições já
podemos encontrar teorizações sobre o que seriam as cidades ou o urbano ou as urbanidades
do Sul, a partir do Sul e para o Sul (ROY, 2011; MABIN, 2015; CANETTIERI, 2021), não ocorre o
mesmo com o conceito de paisagem, muito menos com a atividade do paisagismo.
A despeito de sua tão antiga quanto longeva inserção em disciplinas modernas, particularmente na geografia do Norte, a paisagem tende a ser reduzida, mesmo hoje em dia, a dois
enunciados relativamente complementares: uma materialização das ações humanas ou um modo
de ver o espaço cujo enquadramento produz representações (AVOCAT, 1982; COSGROVE, 2004;
NAME, 2010). O paisagismo, ou a arquitetura paisagística, por sua vez, teve no Brasil das edificações modernistas de Costa ou Niemeyer com espaços livres de Klabin ou Burle Marx um lugar
privilegiado para sua enunciação como atividade técnica de apreensão, desenho e, sobretudo,
controle da natureza por arquitetos e arquitetas. Talvez, por isso, contemporaneamente se mantenha como um modo de projetar a natureza que a tem como um objeto geométrico reduzido
a formas, dimensões e contornos, desconsiderando tempos, movimentos e formas de vida. Por
conseguinte, os trabalhos deste Dossiê: Paisagens e Paisagismos do Sul – o presente editorial e
mais uma entrevista, três ensaios e doze artigos – guiam-se pela ideia de que abordagens sobre
paisagens e paisagismos do Sul seriam aquelas capazes de transcender ou se desprender da
ditadura do olhar ou do império da geometria, tornando-se encarnadas e localizadas – isto é,
situadas em dimensões de gênero, raça, classe, etnicidade e em/desde/para a América Latina,
o Caribe, a Ásia e a África.
Os editores – Leo Name e Rodrigo Nogueira – e a editora – Céline Veríssimo – deste número
temático fazem parte do grupo de pesquisa Decolonizar a América Latina e seus Espaços (¡DALE!),
atualmente sediado na Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia (FAUFBA);
e que, com a organização desta edição temática, chega a sua oitava colaboração com a revista
Epistemologias do Sul, no âmbito da produção de dossiês que se estabeleceu a partir de 2020.
Leo Name, Rodrigo da Cunha Nogueira e Céline Veríssimo
15
Paisagens e paisagismos do Sul
Os trabalhos aqui aprsentados começaram a ser selecionados e traduzidos, aliás, neste mesmo
ano de 2020 e da quarentena da pandemia de covid-19, em que muitas e muitos de nós pouco
viram de paisagens no mais das vezes enquadradas por janelas e frestas. Cabe acrescentar, além
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disso, que se esta também é a oitava vez que a revista Epistemologias do Sul recebe o projeto
gráfico de Oswaldo Freitez, pesquisador do ¡DALE! e doutorando no Programa de Pós-graduação
em Arquitetura e Urbanismo da FAUFBA, especificamente neste volume agregaram-se capa e
folhas de rosto com fotografias de pessoas e paisagens de cidades do Baixo Sul, na Bahia (Ituberá, Cairú, Valença, Igrapiúna e Camam), gentilmente cedidas por Erivan de Jesus Santos Junior,
graduando na FAUFBA e coautor de um dos artigos deste número.
A seção Entrevista abre o Dossiê: Paisagens e Paisagismos do Sul com uma conversa
de outubro de 2019 com a Mãe Marina de Ogum, fundadora do Terreiro Ilê Asé Ojú Ogum
Fúnmilaiyó, localizado no bairro do Parque Residencial Morumbi, em Foz do Iguaçu, Paraná – e
que infelizmente faleceu em 2021. Sob o título Pode a folha falar?, esse bate-papo informal foi
conduzido por Céline Veríssimo e Maurício dos Santos, do grupo de pesquisa MALOCA/UNILA.
A transcrição do áudio ao texto foi feita quase sem alterações, preservando a oralidade e a informalidade da fala de Mãe Marina sobre ervas, banhos e comidas-de-santo em meio a um passeio
entre as plantas do quintal de seu terreiro e os comentários de sua audiência.
Uma segunda seção, a de Ensaios, apresenta três diferentes propostas visuais relacionadas
ao tema das paisagens e dos paisagismos do Sul. Na primeira, cujo título é Quando o rio mora ao
lado, Nayara Cristina Rosa Amorim, pesquisadora do PPG-AU/FAUFBA, apresenta aquarelas de
paisagens produzidas por uma técnica mista de croquis de observação de campo e intervenção
digital e que retratam Áreas de Preservação Permanente (APP) em suas diversas configurações.
Realizados em meio à sua pesquisa de doutorado na Universidade de São Paulo, seus desenhos
contam um pouco da história de moradoras e moradores que são vizinhos de rios.
O segundo ensaio visual, Los silencios de los mapas, los personajes ausentes: ensayo
cartográfico sobre las movilidades en la pandemia, é assinado por Oswaldo Freitez Carrillo, que
dá continuidade a suas pesquisas sobre desenhos-outros que tensionam desenhos cartesianos,
apresentando o resultado visual de sua experiência de confinamento durante a pandemia de
covid-19 em um apart-hotel de Salvador – cidade a qual ele havia chegado cerca de um mês
antes. A partir de sua posição fixa, mais segura, Freitez percebeu as mobilidades constantes – e
sob risco de morte – de faxineiras, porteiros, zeladores, entregadores de aplicativos e outros trabalhadores que iam e vinham de seu edifício. Assim, seus desenhos – resultados de sua pesquisa
de mestrado no PPG-AU/FAUFBA – congregam diferentes personagens, tempos e lugares para
apresentar o que de sua experiência restrita ele podia ver – e, sobretudo, não ver – da capital
baiana; ao mesmo tempo, visam a traduzir as experiências móveis e entre paisagens soteropolitanas que lhe foram narradas por uma das arrumadeiras do prédio.
Finalmente, o último ensaio chama-se Paisagens solitárias de lugares fantásticos e reúne
quinze fotografias de Leo Name, pesquisador do PPGAU/FAUFBA. Cada um dos cliques foi feito
entre 2012 e 2021, durante viagens em que suas lentes tentavam capturar as paisagens de um
modo “antiturístico” e “ao Sul”. Em suas próprias palavras, “se o entusiasmo e o consumo forçados,
coletivos e desmedidos em paisagens belas e espetaculosas norteiam a hegemonia turística, são
seu avesso o feio e o banal, a solidão e a solitude, a melancolia, a tristeza e o desamparo”. Sendo
assim, surgem de suas imagens de paisagens de quatro diferentes países e oito diferentes cidades o que o turismo parece querer esconder: espaços ermos, sinistros ou estranhos e pessoas
sozinhas, contemplativas, introspectivas e abatidas.
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 1, p. 12-21, 2022
Editorial
A última seção, Artigos, apresenta doze trabalhos. No primeiro, El gótico tropical: un
término dinámico, Libia Castañeda, atualmente doutoranda no Programa de Pós-graduação
em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (PPGCom/UFPE), apresenta parte de
sua pesquisa de mestrado no Programa de Pós-graduação em Literatura Comparada da UNILA
(PPGLC/UNILA). Partindo de um lendário relato sobre o cineasta espanhol Luis Buñuel ter dito ao
escritor colombiano Álvaro Mutis ser impossível haver uma obra gótica sem as paisagens soturnas
e enevoadas da Europa, a autora analisa o movimento cinematográfico colombiano chamado
Gótico Tropical. Entende-o como lócus de enunciação sobre a monstruosidade associada com
a produção da alteridade latino-americana, por sua vez construída por um olhar eurocêntrico.
Nesse sentido, ela aponta que os termos “gótico” e “tropical” se baseiam na artificialidade de
repertórios em constante transformação e discute sua continuidade em derivações híbridas.
O sertanejo e sua indissociação com o seu espaço: o papel de Fabiano na representação do sertão é um artigo baseado em um trecho da dissertação do historiador Flávio Augusto
Serra, também no PPGLC/UNILA. O pesquisador argumenta que tanto o sertanejo quanto o
sertão foram construídos e inventados, a partir do século XVIII, por meio de expressões culturais
como a literatura, as artes plásticas e o cinema. Utilizando a literatura como fonte, Serra analisa
a construção do protagonista Fabiano em Vidas Secas, de Graciliano Ramos, mostrando a indissociável relação desta personagem geográfica – conceito de base visual e decolonial – com
a paisagem do sertão.
Céline Veríssimo e Maurício Santos voltam ao Dossiê: Paisagens e Paisagismos do Sul e ao
terreiro Ilê Asé Ojú Ogum Fúnmilaiyó com um segundo trabalho. Com base em uma ecologia
política orientada ao giro decolonial, Paisagismo dos orixás: esboço para uma definição não
completa é um artigo voltado ao enquadramento histórico dos terreiros de Candomblé, com
vistas ao reconhecimento e à valorização desses espaços como patrimônio arquitetônico e paisagístico afro-latino. Propõe um olhar crítico sobre as dinâmicas paisagísticas sagradas, ritualísticas, de cura, de resistência e de autonomia no espaço exterior dos terreiros. O texto também
analisa os modos como povos-de-santo marginalizados defendem seus recursos naturais para
evitar a perda do que julgam como seu patrimônio biocultural e, assim, esboça uma definição
incompleta de “paisagismo dos Orixás” que convida a imaginar outras vidas e outros mundos.
O artigo seguinte tem como título Que planta escolher? Entre a fitorremediação e a
etnobotânica: uma leitura de suas diversas funções, com o olhar para a Umbanda. Nayara
Cristina Rosa Amorim e Mayara Mychella Sena Araújo, pesquisadoras da FAUFBA, apresentam
o cruzamento entre as propriedades de fitorremediação, isto é, as características em espécies
vegetais que contribuem para a despoluição de ecossistemas, e o uso ancestral das plantas
no universo das muitas religiões afro-brasileiras que atravessam paisagens e paisagismos do
Sul – em particular, aquelas relacionadas à Umbanda, no Brasil. Pondo em diálogo abordagens
aparentemente divergentes, as pesquisadoras finalizam o artigo com uma listagem de quatorze
espécies que cumprem essa dupla função, ao mesmo tempo indicando que plantas absorvem
quais contaminantes e a que Orixá e usos ritualísticos cada uma delas está associada.
Sabores, aromas e saberes: desafios para uma epistemologia dominante é a tradução
do inglês para o português de um artigo de 2020 da antropóloga moçambicana Maria Paula
Meneses, notória pesquisadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Seu
texto viaja através de paisagens da história social da comida e de quem a prepara, assinalando
redes de reciprocidade e solidariedade e saberes e histórias silenciadas e subalternizadas. O
Oceano Índico se destaca, em sua abordagem, como a paisagem histórica e culinária de uma
rede centenária de pontos de encontro entre pessoas e mercadorias que refletem contatos e
Leo Name, Rodrigo da Cunha Nogueira e Céline Veríssimo
17
Paisagens e paisagismos do Sul
apropriações mútuas. Assim, ao longo dessa história, alguns aromas e sabores foram considerados
de povos inferiores – do Sul – e, portanto, foram também relegados a um estatuto de alteridade
subalterna, do mesmo modo que as mulheres que preparam as refeições foram silenciadas
18
e o saber sobre comidas deixou de ser entendido como corporificado. No entanto, Meneses
argumenta que a cozinha resiste como um laboratório de afetos, de onde emerge uma lógica
de epistemologias e paisagens do Sul alicerçada pelo ato de vivermos juntos, temperando conversas com saber enquanto saboreamos afetos. Por isso, a autora reivindica as emoções como
provedoras de outras abordagens para ser, viver e saborear o mundo.
Em continuidade, no artigo Restinga comestible: una alternativa para una necesidad
socio ambiental, Mariana Castañeda Díez, mestra em Arquitetura Paisagística no Programa de
Pós-graduação em Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PROURB/UFRJ), e Rita
de Cássia Martins Montezuma, pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Geografia da
Universidade Federal Fluminense (PosGeo/UFF), abordam dois problemas na cidade do Rio de
Janeiro: a fragmentação de seus ecossistemas de restinga nativos e a falta de alimentos de muitas de suas comunidades de baixa renda. Diante de tão graves questões, elas apresentam uma
proposta projetiva orientada ao “paisagismo comestível” em um espaço público da zona oeste da
cidade. A pesquisa foi realizada a partir de um referencial teórico que trata de questões paisagísticas, ecossistemas e processos de urbanização e mediante ferramentas tecnológicas e a realização
de visitas de campo que permitiram a proposta de paisagismo comestível.
Em Paisagem de injustiça hídrica no assentamento Pequeno William do MST no Distrito
Federal: práticas agroecológicas de sobrevivência ou Soluções baseadas na Natureza (SbN)?,
Acácio Alves, Liza Maria Souza de Andrade e Camila Maia Dias, pesquisador e pesquisadoras
do Programa de Pós-graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de
Brasília (PPG-FAU/UnB), apresentam uma análise que parte do contexto global de crescentes
crises climáticas e injustiças ambientais para chegar ao exemplo local do assentamento do Movimento dos Sem Terra chamado Pequeno William, em Planaltina, Distrito Federal. Atribuem a
desigualdade no acesso à água que ali encontraram ao modelo produtivo implementado desde o período colonial, com base em latifúndios de monocultura para a exportação. O trabalho
aponta possíveis caminhos de enfrentamento destas crises e injustiças hídricas: a assunção de
responsabilidades por parte do poder público (governos federais, estaduais e municipais); e a
adoção das técnicas vinculadas às chamadas Soluções baseadas na Natureza (SbN) e transição
agroecológica, ambas já levadas a cabo por ocupantes do assentamento no que, em larga medida, podem ser considerados projetos autônomos de infraestrutura da paisagem.
Dando prosseguimento à análise do rol de injustiças ambientais que assola as paisagens
do Sul, o artigo Paisagens das Minas: uma conformação de riscos das minas em Minas Gerais
alerta sobre os riscos e impactos causados pela atividade minerária neste estado do Sudeste
do Brasil. Para isso, o autor – Rodrigo da Cunha Nogueira, pesquisador do ¡DALE! e professor do
Departamento de Arquitetura da Universidade Federal de Ouro Preto (DEARQ/UFOP) – traz à
cena os desastres/crimes dos rompimentos das barragens de Fundão e do Córrego do Feijão,
respectivamente de responsabilidade das empresas Samarco e Vale. Traçando uma relação
entre a mineração e a conformação de riscos e vulnerabilidades socioambientais, o artigo tem
como premissa o fato de que as sociedades modernas foram constituídas por um modelo de
desenvolvimento baseado na hierarquização do mundo que valoriza determinados corpos em
detrimento de outros – o que persiste na atualidade, conformando paisagens instáveis e críticas
que trazem perigo às populações mais pobres e menos brancas.
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 1, p. 12-21, 2022
Editorial
O artigo Às margens das monoculturas: a diversidade biocultural das paisagens do
Baixo Sul, Bahia apresenta a diversidade paisagística das comunidades ribeirinhas, beiradeiras,
quilombolas e indígenas, nessa região do Nordeste brasileiro, como fruto de interações entre humanos e não humanos e tanto de ações predatórias advindas de diferentes agências capitalistas
quanto de resistências comunitárias. Com a autoria de Marta Raquel da Silva Alves, pesquisadora
do ¡DALE! e professora da FAUFBA, e Erivan de Jesus Santos Junior, também da FAUFBA e morador de uma das comunidades inventariadas, o texto analisa a entrada de empresas produtoras
de látex nas localidades, o que provoca uma alienação das atividades cotidianas, o que acaba por
interferir na paisagem. Como método de investigação, utilizam a “escrevivência”, conceito utilizado
pela escritora Conceição Evaristo para explicar a escrita que surge do cotidiano, das memórias
e da experiência da própria comunidade. Assim, apresentam as paisagens do Baixo Sul baiano,
por um lado baseando-se na memória biocultural e em relatos de ancestrais, mostrando que a
interação com as comunidades passa pelas águas e por suas práticas cotidianas de produção; e,
por outro lado, entendendo tais paisagens como “ativas” e simultaneamente produzidas pelas
comunidades humanas e outros seres.
Os três últimos textos da seção Artigos tratam de análises que viram do avesso a genealogia
e a conceituação da paisagem, lançando novos questionamentos, desvios e interpretações. O
primeiro deles chama-se O design das paisagens de emaranhamento e é a tradução do inglês
para o português de um manuscrito de Martin Prominski. Nesta ampliação não publicada de um
artigo seu de 2018, o arquiteto paisagista e pesquisador na Universidade de Hanôver Gottfried
Wilhelm Leibniz realiza uma aprofundada revisão da literatura crítica por parte de intelectuais
do Norte Global (em alguma medida, digamos, contra-hegemônicos), cujas provocações vêm
redefinindo o conceito de paisagem e a própria noção de natureza. Nessa direção, ele argumenta
que tais abordagens também assentam uma ideia de Antropoceno que toma a paisagem como
um emaranhado de ações humanas e não humanas e como um produto de design coletivo.
Além disso, ao longo do texto, Prominski traz exemplos de projetos paisagísticos.
Por sua vez, História e paisagem: explorando um conceito geográfico monista é uma
tradução do espanhol para o português de um texto de Pedro S. Urquijo Torres e Narciso Barrera
Bassols – pesquisadores do Centro de Investigações em Geografias Ambientais da Universidade
Nacional Autônoma do México (CIGA/UNAM) –, originalmente publicado em 2009. Os autores
recorrem, e percorrem, através da historiografia, as abordagens de diversos campos do conhecimento, como a filosofia, as ciências sociais e a geografia produzidas de Norte a Sul. Isso os leva
ao argumento central de que a paisagem é um conceito-chave apto a desvendar a falsa dicotomia entre natureza e sociedade. E que, por isso, devemos adotar uma postura monista frente à
análise ambiental, isto é, compreender, analisar e interpretar relações e interações na paisagem
como justaposições em uma única unidade, partes de uma mesma coisa em que elementos
da natureza e da cultura convergem em uma sólida, mas instável, comunhão. Assim, para os
autores, a paisagem deve ser compreendida como um conceito geográfico holístico, no qual se
agrupam, instavelmente, diferentes influências dos processos naturais e humanos.
Finalmente, Leo Name retorna ao Dossiê: Paisagens e Paisagismos do Sul, encerrando-o, com o artigo Paisagens do Sul, amefricanas e ch’ixis. Resultado parcial de seu estágio
pós-doutoral na FAUFBA de 2019 a 2020, o texto parte de uma crítica ao eurocentrismo e ao
ocularcentrismo inerentes ao que julga ser uma pouco variada constelação de conceitos de
paisagem. Por isso, ele aponta a necessidade de teorizações e epistemologias do Sul, sobre o
Sul, a partir do Sul e para o Sul que, ao (re)definirem a paisagem, deem a devida atenção a dimensões de gênero, raça, classe, etnicidade e lugar. Ante tais preocupações, o autor realiza três
movimentos: primeiro, faz a caracterização do Sul como noção acionada tanto em âmbitos de
Leo Name, Rodrigo da Cunha Nogueira e Céline Veríssimo
19
Paisagens e paisagismos do Sul
relações internacionais quanto da geopolítica do conhecimento; depois, leva o debate para os
contextos latino-americanos de que emergem os conceitos de amefricanidade, da afro-brasileira
Lélia Gonzalez, e ch’ixi, da aimará e boliviana Silvia Rivera, de instigantes dimensões político-
20
-culturais e de gênero e que fazem releituras críticas da aculturação e da mestiçagem; por fim,
inspirando-se na amefricanidade e no ch’ixi, Name esboça três inflexões às paisagens do Sul,
particularmente as latino-americanas.
Referências
AVOCAT, C. Approche du paysage. Géocarrefour, v. 57, n. 4, p. 333-342, 1982.
BALLESTRIN, L. O Sul Global como projeto político. Horizontes ao Sul, 2020.
CANETTIERI, T. As cidades do Sul Global como referências globais do colapso. V!RUS, n. 23,
2021
COMAROFF, J.; COMAROFF, J. L. Teorías desde el sur. O como los países centrales evolucionan
hacia África. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, (2012) 2013.
CONNEL, R. Southern theory. Cambridge/Malden: Polity Press, 2007.
COSGROVE, D. Landscape and Landschaft. German Historical Institute Bulletin, n. 35, p. 5771, 2004.
DADOS, N.; CONNELL, R. The global South. Contexts, v. 11, n. 1, p. 12-13, 2012.
DIRLIK, A. Global South: predicament and promise. The Global South, v. 1, n. 1, p. 12-23,
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30, p. 323-346, 2015.
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emergente. Civitas, v. 14, p. 43-65, 2014.
ROY, A. Slumdog cities: Rethinking subaltern urbanism. International Journal of Urban and
Regional Research, v. 35, n. 2, p. 223-238, 2011.
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 1, p. 12-21, 2022
Foto: Erivan de Jesus Santos Junior
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Entrevista
Pode a
folha falar?
Em memória à
Mãe Marina de Ogum
Céline Veríssimo
¡DALE!, MALOCA / UNILA
Mauricio Santos
MALOCA / UNILA
Marina Áureo Galdino, é conhecida como Mãe Marina de Ogum (São Paulo, 1947 – Foz do
Iguaçu, 2021). Foi a fundadora do Terreiro Ilê Asé Ojú Ogum Fúnmilaiyó, que fica no bairro do
Parque Residencial Morumbi, em Foz do Iguaçu, no Paraná. Criadora do Bloco Afro: Afoxé Ogum
Fúnmilaiyó. Ativista junto à RMNP – Rede de Mulheres Negras do Paraná. Promotora dos Direitos
Humanos junto à RENAFRO – Rede de Religiões Afro-brasileiras e Saúde. Primeira Presidenta do
Conselho da Igualdade Racial em Foz do Iguaçu. Precursora na luta por Políticas Públicas para
Povos de Terreiro, em Foz do Iguaçu. Orientou TCCs, participou de Bancas, escreveu artigos publicados em revistas científicas, Projetos de Pesquisa e de Extensão na Universidade Federal da
Integração Latino- Americana (UNILA). Foi homenageada pelo Estado do Paraná, em 25 de julho
de 2019, pelo Dia da Mulher Afro-Latino-Caribenha, Dia Nacional de Tereza de Benguela e da
Mulher Negra no Brasil. Suas filhas, Crica e Roberta Áureo Galdino, dão continuidade ao Terreiro.
Esta entrevista com Mãe Marina aconteceu no Ilê Asé Ojú Ogum Fúnmilaiyó, no dia 18
de outubro de 2019, no final da Oficina de Produção Audiovisual Participativa (Figuras 1 a 4).
Em uma ação colaborativa entre o Projeto de Extensão da Universidade Federal de Goiás (UFG),
“Magnífica Mundi”, coordenado pelo professor Nilton José, e o Projeto de Pesquisa “Dinâmicas
Paisagísticas, Ritualísticas, de Resistência e Autonomia no Espaço Exterior dos Terreiros na Fronteira”, coordenado por Céline Veríssimo e Maurício Santos, ela vinculada ao grupo de pesquisa
Decolonizar a América Latina e seus Espaços (¡DALE!) e ambos ao Grupo de Estudos em Estudos
Multidisciplinares em Urbanismos e Arquiteturas do Sul (MALOCA). A oficina foi pensada para
possibilitar estratégias e técnicas audiovisuais, recorrendo, por exemplo, a smartphones, hoje
relativamente acessíveis, para registros cotidianos em ambas as suas dinâmicas doméstica e
religiosa, que pudessem contribuir para o reconhecimento e a valorização desses espaços como
patrimônio arquitetônico e paisagístico – particularmente no que diz respeito a dinâmicas paisagísticas alimentícias, ritualísticas, de cura, de resistência, de gênero e de autonomia no espaço
exterior dos terreiros de candomblé.
A oficina foi mediada por Karine Queiroz, pesquisadora do ¡DALE!, e começou com uma
visita guiada, por Mãe Marina, pelo espaço interior e exterior do Ilê Asé Ojú Ogum Fúnmilaiyó,
ao que se seguiu a Oficina de Rádio e TV Comunitária Online, e uma outra, de Fotografia e Vídeo
– ambas ministradas pela Equipe do Magnífica Mundi, contando com a participação de vários/
as membros do terreiro. Após o almoço-confraternização, fizeram-se os testes de emissão de
Rádio e TV. Por fim, todos/as presentes, reuniram-se em volta de Mãe Marina, para ouvi-la falar
sobre as “folhas”, termo êmico afro-brasileiro, utilizado como sinônimo de plantas. O resultado
desta conversa entre Mãe Marina e as folhas é o conteúdo desta entrevista.
Outrossim, guiados pela elocução afrodiaspórica “Kosi Ewe, Kosi Orixá”, que quer dizer
“Sem Folha, Sem Orixá”, homenageamos Mãe Marina de Ogum. Igualmente como as folhas,
sem Mãe Marina, nada disto e muito mais, teria sido feito, que nos honrou com a sua amável e
generosa presença, partilhando tantos saberes e por isso sentimos uma incomensurável gratidão.
Agradecemos à Mãe Marina, por ser a mãe-de-todos/as aqueles/as que a procuraram.
Pode a folha falar?
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Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 22-35, 2022
Entrevista
Mãe Marina: Bom, falando um pouco sobre as folhas e principalmente sobre as folhas do
nosso ritual... O que nós procuramos preservar é a natureza. Porque é através da natureza que
nós temos condições de ter o elemento necessário, primordial que não pode faltar em uma
obrigação. E cada orixá tem uma folha. Osanha é dona de todas. Só que Osanha foi uma orixá
que foi muito tacanha, muito pão-dura. Então ela dava as coisas de maneira muito pingada. E,
um dia, ela se enquizilou com Iansã – que é a senhora dos ventos e da tempestades também,
né? Iansã ficou muito nervosa, fez dar uma ventania tão grande que esparramou essas folhas
pelo mundo inteiro. Então, hoje, se encontra folhas em qualquer parte do mundo, existe folha
dedicada a cada orixá.
[apontando para uma folha] Essa aqui é a folha do coqueiro. Não é a folha do Ogum. A folha
do Ogum é a folha do dendezeiro, no qual faz parte do ritual, mas também é a roupa do Ogum.
A vestimenta do Ogum é o Mariô... [todos/as presentes pedem a benção da Mãe Marina]. Deus
abençoe, benção a todos! Ogum sai vestido numa saieta de folha de coqueiro; tanto na cabeça
quanto nas costas, como quando faz a distribuição dos pães, tudo tem que estar o Mariô, que é
a folha principal do Ogum, é a sua vestimenta, tá?
[apontando para outra folha] Essa aqui é a folha do Acocô. Essa folha, por que ela é uma
folhinha feia, mas essa folha, em qualquer casa de candomblé que vocês forem visitar, vocês
vão ver o santo sair com uma, na cabeça, e um Ekodidé, que é uma peninha vermelha. Todos,
todos os orixás recebem essa folha, todos. É a nossa folha, assim, de fundamento. Ela entra tanto
na obrigação como também é curativa, tá? E ela simboliza, se vocês repararem, aqui, o Adoxo.
Adoxo é uma coisa que nós carregamos, é um fundamento que nós carregamos na cabeça, que
é só para as pessoas iniciadas, tá? Só as pessoas iniciadas tem, tem que carregar Adoxo. Então
vem aqui ó (coloca na cabeça) simbolizando o Adoxo. Então ela é igualzinha ao Adoxo que se faz
quando a pessoa se inicia na nossa religião. Uma folha também que a gente dedica às pessoas
para terem sorte. As pessoas que tem muito problema com inveja, tem muitos problemas de
família nós indicamos sempre que a pessoa carregue uma folha do Acocô, pra ter uma vibração
positiva, porque é a folha da paz; é a folha que todos os orixás carrega.
[apontando para outra folha] Aqui é a Pariparoba, que todos conhecem como uma folha
curativa, para o fígado e o estômago. Para nós, ela é de suma importância, para quem é de
Oxóssi, porque é uma folha dedicada a esse orixá. Então ela é curativa sim, ela é medicinal sim,
mas entra também dentro dos banhos que a gente faz, nos Amacis, ela entra como purificação
também no nosso oxé.
[apontando para mais uma folha] Aqui, acho que vocês todos conhecem, é o sabugueiro.
Podemos dar para uma criança com sarampo, catapora; as flores, servem quando têm tosse,
infecção na garganta; ela é dedicada a Oxalá, mas Ibeji, as crianças, são as que mais protegem
essa folha. Por quê? Oxaguiã foi o que identificou a flor. Foi a que teve mais próxima quando ele
estava no alto, que ele não entrou na guerra dos orixá, Oxalá se identificou. Então isso foi dedicado a ele, mas tudo que se relaciona à criança, às mulheres parturientes, que têm filho, se faz
banho, se faz um banho com sabão e a folha do sabugueiro para as mulheres que têm filho e
ficam com algum problema no útero, muita cólica, ou então fica menstruando em abundância:
é só pegar o sabão de coco, essa folha, macerar e passar no abdômen... Deixa uma faixa e aquilo
automaticamente vai trazer a cura ou a melhora da saúde.
[apontando para mais uma folha] Aqui tem uma folha até bonitinha, do Acocô. Alfavaca.
A Alfavaca por ter esse cheiro gostoso, ela pertence a quase todas Iabá. As Iabás são os orixás
femininos. Todas as ervas que tiverem odor: manjericão, alfazema, alfavaca, e cravo, canela, todas
essas...todas essas folhas, todas elas pertencem às Iabás. E quando se fala Iabás, automatica-
Céline Veríssimo e Mauricio Santos
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Pode a folha falar?
mente também oferece-se a Oxalá, tá? Que é o orixá que gosta das coisas perfumadas. Salvo as
folhas de Iansã, que Iansã já é um orixá muito quente. Então as folhas de Iansã a gente já deixa
separado. Existem folhas de Iansã que pertencem a outros orixás, como Xangô, como Osanha
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né? Como Obaluayê... Então Iansã tem uma vasta coleção de folhas, mas as mais usadas em
rituais são poucas. Nós usamos, acho, umas cinco ou seis qualidades, porque na nossa religião
tem que ter um homem que seja confirmado como Babalosanha. Porque Babalosanha, ele vai
ser o único que vai ter o dom de ir no mato, conhecer as folhas e pegar elas, tocar nelas. E isso
tem que ser feito antes do sol nascer. Então o Babalosanha vai lá e pega. O que ele vai ter que
aprender? Conhecer pelo olfato. Eu aprendi a conhecer folhas pelo olfato. Então, existem folhas
que eu não conheço, mas eu ponho o meu nariz e eu sei a que santo ela pertence. Posso não
saber um ou dois, mas um santo eu vou identificar, né?
Por exemplo, nós temos uma erva que se chama negamina. A neguinha, como a gente
fala, ela é uma erva que se você encontra no mato, você acha que é um pé de goiaba. O que
diferencia a negamina da goiaba? O cheiro. Mas se você olhar a folha, e se você olhar o tronco,
até as manchas são idênticas. Você só conhece pelo cheiro, né? E tem as nossas frutas, né? A
manga pertence a Ogum, [apontando para uma fruta) essa não que essa aqui não é espada...
A manga-espada pertence a Ogum, essa é coquinho, então pertence a Oxóssi, né? Então, cada
fruta também tem sua característica com orixá, e a folha também. Por exemplo, a folha da
laranja que a gente dedica a Obá, né? A Euá, a família Carijebé, que vem a linhagem de Nanã,
Obaluayê, Omolú, certo?
Olha, até aqui o que eu tenho, eu sei que é pouco, mas no momento é o que eu posso
explicar para vocês, tá? Como posso explicar para vocês... A coisa que nós usamos, certo? Acocô,
graças a Deus, nós temos plantado na roça. E as outras folhas que nós não temos, tenho uma
filha-de-santo que mora na Vila C [bairro de Foz do Iguaçu]. Então, quando nós precisamos de
folhas, é de lá que a gente pega alguma coisa. Mas as principais nós temos aqui, outras folhas
que nós necessitamos estão na casa do Ogan, de Ogan Elias.
Ogan Elias: Tem o pé de carobinha também.
Mãe Marina: Ah é! Tem a carobinha, esqueci. Não existe folha melhor que a carobinha,
pra quem tem úlcera na perna, problemas de... Câncer de pele. É, feridas expostas, aquelas feridas que nunca fecham. Banho de carobinha com babosa, passa babosa depois, cura qualquer
ferida. Até o câncer de pele. É um santo remédio. Agora ela tá, peladinha, tadinha, porque deu
o inverno, né? Então agora ela vai florir.
Alguém fala: [apontando] Tem algumas ali ó.
Mãe Marina: Mas é pouca!
Ogan Elias: Se você foi caçar uma negamina, se você encontrar ela no mato, pego a folha
dela. Se você fala o nome dela, você pode olhar... Que ela some. Ela é encantada. Ela desaparece,
você não encontra mais.
Mãe Marina: Nós chamamos de neguinha.
Ogan Elias: Você falou o nome dela! Tchau! Você pode chegar na frente dela, ela some.
Mãe Marina: Nós nunca falamos “achei um pé de negamina”! “Olha a neguinha!”.
Ogan Elias: Ela desaparece, na realidade. Você pode estar ali, com a mão ali, se você falou,
parece que o negócio tirou ela dali e leva embora.
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 22-35, 2022
Entrevista
Mãe Marina: Ela tem, a negamina, o poder da transformação. Se você falar “Ah, essa negamina!” e ela estiver próxima a um pé de goiaba, você vai ver até a fruta no pé. Ela é encantada!
Por isso é muito rara. A gente encontra e onde encontra a gente seva. A gente deixa aquele local ali intocável para que ninguém possa destruir, né? Mas ultimamente isso está sendo muito
difícil porque, hoje, as pessoas automaticamente têm um terreno, já procura deixar tudo limpo.
Ninguém mais quer ter o trabalho de limpar folhas e varrer pátio, então fica limitado. Então tem
que se morar no mato, no mato mesmo. Que é o que eu gostaria que... Isso aqui me foi dado
pelo... Por um cliente, que deu para o meu caboclo e, lógico, ele não tem RG, nem CPF e nem
nada, então está no meu nome. Mas, eu gostaria muito que ele desse permissão pra ir a uma
chácara. Que eu pudesse ter minhas plantas, minhas folhas, né? Pudesse realmente plantar. Mas
ele não quer abrir mão ainda, então estamos aqui. Só que aqui já está sufocado. Ah, antes eram
poucas pessoas, não tinha quase ninguém no bairro [Parque Residencial Morumbi, em Foz do
Iguaçu]. Agora, o bairro está muito, muito populoso. É muita gente, agora. Apesar de que não
incomodam. Mas sofremos muito aqui. Muito mesmo, atiraram tijolo; não era pedra, era tijolo,
que se atingisse alguém dentro do barracão matava. Pra gente mudar! Fizeram abaixo-assinado
quando eu vim morar aqui, para me tirar daqui. Todos os meus vizinhos, aqui, são evangélicos,
aquela parte de lá todos. Só que hoje são meus melhores vizinhos. Só essa daqui do murinho
ali cor-de-rosa. Essa é a única que é contra tudo, não pode nem estacionar carro ali na frente da
casa dela. Mas ela é assim desde que eu moro aqui... Mas os outros todos, hoje, todos conversam,
ninguém fica chamando a polícia para mandar parar, sabe? Hoje, graças a Deus, está suave.
E as nossas festas, eu não tenho mais condições de fazer no terreiro, né? No barracão...
Então, aqui, ali, vira um palco, né? Todo mundo fica assim, e nós ficamos aqui [fora], porque não
cabe mais, porque agora em novembro tem uma festa que vêm cerca de 300 pessoas. Porque
vem ônibus de Londrina, vem um pessoal de São Paulo, vem de Curitiba, agora tem filho-de-santo
em Brasília, então é muita gente. É muita gente! Só na roça fica cerca de 100 pessoas hospedadas aqui. Agora você pergunta: como? É gente dormindo na garagem, dormindo debaixo de
mesa...você não imagina o tendel que fica!
Alguém completa: No chão.
Mãe Marina: Não tem! Eu não tenho espaço! Eu não tenho espaço! Então a casa, ali, como
ela é grandinha, ficam as mulheres e as crianças e os homens… O barracão também para as
mulheres e os homens, aí fica dividido. Mas cabe todo mundo, mas é cerca de 100 pessoas, fora
o povo de casa.
Alguém completa: Pergunta se o pessoal quer ir para um hotel.
Mãe Marina: Ninguém quer sair daqui.
Alguém completa: Não, a gente dá um jeito. Dormimos uns dez ou quinze, tudo junto.
Fica tudo aí.
Alguém: Dormem, uns dez, quinze, tudo amontoado, e não quer ir embora.
Mãe Marina: Alguém já viu morcego? Fora o meu cachorro, aqui parece um morcegário.
Todo mundo amontoado. Todo mundo amontoado. Mas fica tudo aqui! Agora a Angela.
Mãe Angela: Aqui comigo tem mais umas folhas né!? Aqui todo mundo conhece como
boldo-do-chile, né!? E é uma folha que a gente usa pra Oxalá, Tapete de Oxalá. Se usa como banho, se quina elas, geralmente essas folhas são quinadas, maceradas. Tem-se o ritual de acender
a vela, fazer a Sasanha, que é uma reza que se faz. E se canta, se macera. Cada folha representa
um Orixá, né? Esse é o que a gente conhece como Tapete de Oxalá.
Céline Veríssimo e Mauricio Santos
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Pode a folha falar?
Ogan Elias: Bom para o estômago.
Mãe Angela: Bom para o estômago também, desde que você não ferva, né? É horrível,
amarga mas é bom para o estômago. [apontando para a folha] Assim como essa aqui, ó... O gua-
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co também é bom pra quem está resfriado, para limpar o pulmão, para tosse, juntando com a
alfavaca também é muito bom.
[apontando para a folha] Aqui é Peregum do Ogum. Ele é todo verde. Existe o Oxóssi
também que tem um amarelo aqui no meio. Mais pra banho, se faz chá gente, por Deus que eu
ainda não conheço. Para banho. [apontando] Aqui é Colônia de Iemanjá também para banho, se
quinar, se junta todas essas folhas para quinar. [apontando] Essa aqui vocês conhecem bastante,
né? A pitanga. Acho que todo mundo, a maior parte tem né!? A nossa sempre dá bastante também. Como é da Iansã é folha quente. As folhas quente são de orixá quente, né? E as folhas que
a gente diz que são frias, que, aqui, no caso, seria a do Oxalá e a de Iemanjá, né? E tem também
o Abre Caminho da Oxum.
Eu não sei se vocês conseguem ver, cada uma tem seu formato, o seu jeito né? E essas todas, elas são maceradas, a gente coloca tanto as quentes como as de santo frio, né? Para dar uma
certa equilibrada, né? Para as pessoas, às vezes, as pessoas estão com a cabeça muito quente, aí
só damos de Iemanjá e de Oxalá, né? Para dar uma esfriada, assim, na mente. Mas geralmente
quando se inicia, ou dependendo da situação em que a pessoa precisa, a gente macera todas
as folhas para fazer um banho. Umas se faz chá, também, ou para beber ou para banhar alguma
parte de machucado que a pessoa tenha, tá?
Como a Mãe Marina falou, não estamos com todas as folhas... São imensas, né? Mas temos
pelo menos um básico e é lógico que a gente tem que ir muitas vezes para algum mato para
pegar, para buscar. Como quando tem as festas, também existe uma parte que a gente pega.
Tiramos tudinho, assim, dos galhinhos e colocamos no chão para se dançar em cima, entendeu?
Um ritual nosso, na parte das festas, né? Que é mais a Aroeira que se usa ou São Gonçalinho. A
Aroeira nós temos, São Gonçalino não. Então depende...
Mãe Marina: [apontando] Mamona tem plantado ali.
Mãe Angela: Tem a Mamona também, que a gente usa pro Olubajé, que são aquelas
comidas maravilhosas que a gente põe na folha. A folha é lavada, tá? Para colocar a folha maior
que tive para caber todinhas as comidas ali. Usamos também pra fazer alguns ebós, que se
passam na pessoa.
Mãe Marina: Unguento, quando se tem alguma coisa, uma inflamação...É pegar uma folha de mamona, pela um óleo, ou azeite, passar assim em cima, morninha, e pôr. Se for alguma
infecção, algum furúnculo, alguma coisa, rapidinho vai.
Mãe Angela: A folha da banana gente, a gente usa pra fazer Acaçá, ou colocar em baixo,
para assar peixe. Tudo que a gente faz, em matéria de comida, é... é tudo bem gostosa, bem
temperadinha, tudo certinha. Não é que nem qualquer coisa que você serve. Você serve ao orixá
e as pessoas, a comunidade, aos filhos e a todo mundo, entendeu? A folha da banana se usa
muito. Muito, muito mesmo, né?
Mãe Marina: Para quem acredita, existe também a possibilidade de vocês fazerem banhos.
Banhos de energia. Usa a erva-doce, usa o cravo, canela. Quer namorado? Folha- de-louro se
acrescenta. Só que não vale para homem, nem gays. A folha-de-louro, ela só serve para mulher.
Não, tem que falar porque depois vai falar “tomei o banho e me dei mal”, né? Ela não serve para
esse tipo de coisa. Mas esses banhos com a Colônia, esses banhos são muito bons quando às
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 22-35, 2022
Entrevista
vezes nós não temos dinheiro, mas temos o dom de atrair a inveja. Por quê? As pessoas têm
inveja daquilo que nós conseguimos. Daquilo que nós aparentamos ser, ou às vezes ostentamos
ser. Então, por que que a gente não vai ter os sintomas dela? Que é peso nas costas, preguiça,
sono de mais ou de menos, dormir muito mal, sentir dores nas vezes que a pessoa olha para
gente e fala “nossa você tá vendendo saúde”! Só Deus para saber que minha cabeça está pesada, que minhas costas estão doendo, que eu não estou me sentindo bem, que minha carne
está trêmula, que eu não estou normal... Mas aí é uma coisa, um sintoma meu. Então por que
não procurar através da folha, um banho energizante? É muito fácil de fazer! Macera ou aqueles
que forem grãos, alfazema, cozinhe... Nada melhor que tomar banho comum depois disso, vai
pôr o banho energizante? Um pouquinho de açúcar, para quebrar o cloro, ou um pouquinho de
mel. É pouquinho, é pitada mesmo. Fazer rezando. Reza o quê? O pai-nosso, que é a primeira
oração. Oferece a Deus e seu anjo-da-guarda. Pronto! Olhe-se no espelho antes e olhe-se depois.
A mudança é radical, tá?
Alguém: Arruda, né, Mãe?
Mãe Marina: Arruda é uma planta muito feminina. Eu não aconselho os homens tomarem
banho com arruda. Ela é extremamente feminina e, como ela é extremamente feminina, ela tem
os dois lados que...para mulher usar tem que usar mais como a parte curativa. Por exemplo, para
limpar o útero, como quem tem aborto, as mulheres que recém pariram. Mas é uma erva que se
usa com muita cautela. Tem pessoas, tem uns loucos que usam, sabe? Mais aí são os loucos. Eu
uso com muita cautela, porque eu respeito muito essa folha. Ela é muito feminina.
Alguém pergunta: Pai Elias, o senhor pode falar sobre Osanha?
Oga Elias: Osanha? Quê fala sobre Osanha? O quê que eu vou falar desse homi, o pai das foia?
Mãe Marina: Dona Valtina né!?
Ogan Elias: É! Bom eu vou falar sobre Osanha. Osanha é um orixá que cuida das folhas,
então ele vive no meio da floresta.
Mãe Marina: Seduziu seu pai...
Ogan Elias: Oxóssi, né! Benção, Mãe! Oxóssi saiu para caçar um dia que... Não era para ele
caçar, e entrou na mata…
[Gravação termina]
O não final da gravação é, aqui, como o segredo das folhas e a não morte da Mãe Marina, que
agora é uma ancestral do terreiro e passa a conviver de outra forma neste espaço. Aqui, fica registada uma das sementes que ela plantou, para que possa germinar, florescer e transformar-se
num jardim dos orixás.
Céline Veríssimo e Mauricio Santos
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Pode a folha falar?
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Figura 1: Magnífica Mundi. Mãe Marina (Fonte: Céline Veríssimo, 2019).
Figura 2: Filhas-de-Santo na Oficina aprendendo a fotografar e a filmar (Fonte: Céline Veríssimo, 2019).
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Entrevista
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Figura 3: Filha-de-Santo filma e Ogan Elias procura sinal de rádio (Fonte: Céline Veríssimo, 2019)).
Figura 4: Magnífica Mundi. Filho-de-santo regulando som (Fonte: Céline Veríssimo, 2019).
Céline Veríssimo e Mauricio Santos
Pode a folha falar?
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Figura 5: Tradução intercultural com outras resistências e a universidade
(Fonte: Acervo Afoxé Funmilayo 2014 e Karine Queiroz 2019).
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Ensaios
Quando o rio
mora ao lado
Nayara Cristina Rosa Amorim
PPG-AU / FAUFBA
Tive a oportunidade de olhar para muitos rios ao longo dos últimos anos, enquanto desenvolvia a tese Rios em assentamentos informais: conflitos, possibilidades e estratégias, defendida
em 2021 no PPGAU- FAUUSP. Cada rio, por menor que seja, conta um pouco da história dos
moradores do seu entorno, os vizinhos dos rios. As aquarelas digitais deste ensaio retratam as
paisagens de Áreas de Preservação Permanente (APP) em suas diversas configurações.
Títulos das ilustrações por ordem de apresentação:
Relações de vizinhança. Os moradores de Canabrava e o Rio Mocambo. Salvador, Bahia. 2020.
Estrada nova, descaso antigo. Rio Mocambo. Salvador, Bahia. 2020.
Cores de um brejo esquecido. Rio Mocambo. Salvador, Bahia. 2020.
De costas para o rio chamado de esgoto. 2022.
Lembranças de um filete de água sem nome. 2022.
As casas em tijolo aparecendo e o mangue desaparecendo. 2021.
Los silencios
de los mapas,
los personajes
ausentes:1
ensayo cartográfico
sobre las movilidades
en la pandemia
Oswaldo Freitez Carrillo
¡DALE!, PPG-AU / FAUFBA
1 Este ensayo se basa en la disertación defendida en el Programa de Posgrado en Arquitectura y Urbanismo
de la Universidad Federal de Bahía (PPG-AU / UFBA), defendido en 2022, y orientado por Leo Name.
necesito dibujar, pictografar, sin ninguna
garantia. Insisto en expresarme con
imágenes, y arrancar de ellas otra forma
de escrita.
mostrarme, representarme, posicionarme,
aparecer para no paracer ser un
observador invisible.. . . . . . . . . . . .
Tipías para construir otras narraciones y mapas
Fotocopia, corta y pega. Estas tipías y pictogramas se pueden combinar con otras imágenes
como fotografías, dibujos, mapas y textos para facilitar otras narrativas cartográficas.
Los objetos combinados con personajes indican acciones a realizar, situaciones y sentimientos.
Tipías para construir otras narraciones y mapas
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Los objetos combinados con personajes indican acciones a realizar, situaciones y sentimientos.
Los silencios de los mapas, los personajes ausentes
Llegué a la ciudad de Salvador ansioso por comenzar mi maestría, emocionado por mudarme a una ciudad diferente, en plena efervescencia del verano, con la aglomeración en pleno
circuito de la orla, con la ciudad con calles abarrotadas y playas llenas de gente, turistas y habi-
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tantes. Me deparé, sin embargo, a menos de un mes después del carnaval, con el 16 de marzo
de 2020 – es decir, con el producto de la crisis del coronavirus que se expandía mundialmente,
ya afectando los flujos globales y locales. La alcaldía de Salvador decretó el aislamiento social
como medida indispensable para contener la creciente expansión del virus, un proceso que
colocaba una nueva lente sobre las múltiples escalas de las desigualdades. A consecuencia de
eso, solo conseguí tener una semana presencial de clases, ya que todas las actividades de la
Universidad Federal de Bahía fueron suspendidas, después retomadas de forma remota. Para mi
suerte, gracias a la beca de maestría obtenida, logré cumplir las medidas de aislamiento social
durante la cuarentena.
Estaba en una ciudad nueva de la que sabía poco y por la que ya no podía transitar fácilmente. Entonces, cambié el tema de la disertación y me propuse realizar una serie de ensayos
visuales y experimentaciones por medio de mapas-otros, no convencionales, con miras a pensar
modos-otros de narrar la ciudad de Salvador durante la pandemia de covid-19.
A fin de cuentas, mientras se discutía una “ciudad paralizada”, en realidad observé una gran
cantidad de movilidades. A pesar de las medidas de confinamiento que produjeron una disminución del movimiento de personas por las calles de Salvador, todos los días mujeres y hombres
todavía se venían obligadas/os a salir a trabajar. Se mantuvieron las tareas de mantenimiento
y limpieza de hogares, de espacios privados y públicos, lo que revela dimensiones de movilidades de estos trabajos generalmente silenciados que permanecieron en las ciudades durante la
cuarentena. Dichas labores son geohistóricamente hechas (en su gran mayoría) por los estratos
más pobres de la población – en el caso de Salvador, por trabajadores negros y negras. Sus vidas,
durante la pandemia, se volvieron aún más vulnerables frente a nuevas amenazas cotidianas
de sufrimiento y hasta de muerte. Por lo tanto, la justificación de la muerte en nombre de los
riesgos para la economía y la seguridad se convirtieron en el fundamento ético de este momento
de la realidad. Por el hecho de que la raza, además de la clase, fueron elementos cruciales con
relación al grado de exposición a la enfermedad y a la muerte.
Comencé esta investigación/ensayo, preguntándome: ¿cuáles son los procesos, los modos
de cartografiar este momento específico de la pandemia ocasionada por la covid-19? ¿Cómo
cartografiar datos, informaciones y experiencias que no caben en límites de unidades territoriales expresados a partir del grosor o tipo de líneas, los colores, los sombreados y las tramas?
¿Es posible producir gráficamente mapas que no separen personas, lugares y tiempos? ¿Cómo
cartografiar aquello que normalmente es silenciado, ausente y/o dejado al margen?
Mapas e infografías fueron algunas de las imágenes más recurrentes de la pandemia de
covid-19: todos los días una infinidad de ellos eran publicados en documentos oficiales y artículos
científicos, así como en diversos medios de comunicación. Eran realizados a partir de bases cartográficas más tradicionales, como las bases cartográficas de las alcaldías o a partir de servicios
digitales como Google Maps y Open Street Maps, por ejemplo – todas de técnicas cartesianas. En
ellos los espacios parecen distantes, estáticos e inmutables; las personas contadas casi siempre
son un punto entre miles que nos indican la cantidad y la densidad de contagios o muertes; y
el tiempo y el movimiento en esos mapas son “silencios” – metáfora utilizada por Harley ([1988]
2005) para discutir lo que no está visualmente presente, pero es parte del discurso cartográfico.
Al dar más valor a las ubicaciones de los datos que desean mostrar, los mapas convencionales
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 48-103, 2022
Ensaios
prestan poca atención a los eventos que no pueden mostrar con base en sus propias convenciones cartográficas (GIRARDI, 2000).
Además, si consideramos mapas de diferentes períodos históricos, “podemos comprobar
que a medida que cambia las nociones de espacio, tiempo y naturaleza, es decir, la cosmología
de una época, cambian también las referidas figuraciones espaciales” (KATUTA, 2006, p. 53). Si
miramos mapas de otros momentos y lugares históricos, encontraremos que es posible narrar
y pensar sobre los procesos espaciales de maneras complejas: estos mapas rara vez eran meras
representaciones geográficas, porque iban acompañados de toda una serie de imágenes “decorativas” de modo que montaban narrativas que amplificaban sus significados políticos y/o
pedagógicos, mediante el uso de recursos y lenguajes híbridos. Del legado de cosmovisiones
no occidentales, las imágenes de códices aztecas y mixtecas son ejemplares de maneras-otras
de narrar el espacio, usando personajes de su mitología e incorporando el tiempo a los mapas
(BOONE, 2010). Destaco aquí el frontispicio del Códice de Mendoza, en el cual me inspiré para
producir una de las imágenes del ensayo. Las influencias de la organización del códice Mendoza y
las formas narrativas aztecas también me ayudaron a construirlo sin separar personajes, tiempos
y acontecimientos, además de pensar el espacio en sus diferentes escalas.
El tema propuesto para el montaje de estos mapas proviene de mi experiencia del cotidiano
en un año y medio pandémico. Vivía en el barrio Rio Vermelho con dos amigos. En contraste con
nuestra inmovilidad, había la movilidad diaria – dentro y fuera del edificio – de otras personas,
de las clases obreras y la mayoría no blancas. Estos personajes han traído la ciudad para dentro
de mi casa, diseñaron acontecimientos conmigo y los demás moradores, hablaron de los acontecimientos de sus vidas en otros espacios de la ciudad, me revelaron que el tiempo no estaba
suspenso. Mi atención, en este ensayo, fue más direccionada a las aseadoras del predio – que era
del tipo apart-hotel – contratadas para la limpieza diaria de los departamentos; particularmente
una de ellas, con quién logré un contacto más frecuente.
Entendiendo, entonces, que “no podemos reducir cuestiones relacionadas con los procesos
de trabajo a simples elementos mecánicos, ya que nuestra propia técnica es un proceso mental
e involucra conocimiento” y que, además, “es un tipo de información que nos sensibiliza para
comprender el mundo y ampliar las experiencias cognitivas necesarias para la vida en sociedad”
(PAULINO, 2011), mi producción técnica y mi experimentación de prácticas imaginativas son,
en este ensayo visual, consideradas procesos que involucran y producen conocimiento.
Mi opongo, aquí, también, a la idea de que existan mapas “neutrales y objetivos”. Los considero como una parte integral de un grupo más amplio de imágenes, que en diálogo con el
mundo socialmente construido nos ayudan a imaginar, articular y estructurar el propio mundo,
en sus diferentes niveles. Para producir tales mapas me propuse realizar una serie de pictogramas (RISLER; ARES, 2015) y tipías (CAÚLA, 2019) – explicitando, los quiénes, dónde, cuándo y
porqués de cada representación. Las tipías se constituyen como una herramienta iconográfica
y, por lo tanto, metodológica para pensar lo urbano – y sobre todo para registrar las memorias
de mi principal personaje y mi contacto con ella.
Finalmente, hago mis tipías disponibles aquí para que otras personas, en futuro, efectúen
sus propios recortes, collages y adaptaciones.
Oswaldo Freitez Carrillo
101
Los silencios de los mapas, los personajes ausentes
Referencias
BOONE, E. H. Relatos en rojo y negro: historias pictóricas de Aztecas y Mixte-cos. Ciudad de
102
México: Fondo de Cultura Económica, 2010.
CAÚLA, A. Trilogia das utopias urbanas. Salvador: EDUFBA, 2019.
GIRARDI, G. Leitura de mitos em mapas: um caminho para repensar as relações entre Geografia e Cartografia. Geografares, v. 1, n. 1, p. 41-50, 2000.
HARLEY, J.B. Silencios y secretos. La agenda oculta de la cartografía en los albores de la Europa moderna. In: La nueva de la naturaleza de los mapas. S.l.: Fondo de Cultura Económica,
(1988) 2005.
KATUTA, A. A(s) natureza(s) da e na cartografia. In: SEEMANN, J. (Org.) A aventura cartográfica. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2006.
PAULINO, R. Imagens de sombra. São Paulo: Tese de Doutorado - Universidade de São Paulo,
2011.
RISLER, J.; ARES, P. Manual de mapeo colectivo: recursos cartográficos críticos para procesos
territoriales de creación colaborativa. Buenos Aires: Tinta Limón, 2013.
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Paisagens
solitárias
de lugares
fantásticos
Leo Name
¡DALE!, PPG-AU / FAUFBA
Gosto de viajar só: até gosto de gente, só não gosto de me comprometer com as vontades
do Outro, só não gosto da euforia alheia, só não gosto do turismo... Só não gosto. Se não viajo
só, tento passear e fotografar só. Se não consigo ficar só, me separo do grupo para fotografar.
E depois de nossos apocalipses de 2018 e 2020, só ir sozinho à rua para fotografar a Salvador
onde moro já parece uma viagem por si só.
Fotografo a paisagem tentando torná-la antiturística. É uma tarefa ingrata e impossível,
mas me esforço para também mirar minha lente para espaços que parecem ermos, sinistros ou
estranhos, ângulos inusitados, eventos inesperados e pessoas sozinhas, contemplativas, introspectivas, abatidas, em dificuldade, em crise... Se o entusiasmo e o consumo forçados, coletivos
e desmedidos em paisagens belas e espetaculosas norteiam a hegemonia turística, são seu
avesso o feio e o banal, a solidão e a solitude, a melancolia, a tristeza e o desamparo. Mesmo no
famigerado Norte Global, fotografo – ou tento fotografar – ao sul do turismo: paisagens solitárias
de lugares fantásticos, que discretamente tentam exibir o que se tenta esconder e o que parece
perecer e padecer, mas ainda resiste.
Títulos das fotografias por ordem de apresentação:
Curtindo a solidão e a vista 1. São Luís, Maranhão, Brasil. 2012.
Disque S de San Ignacio, Satã e Sombra. San Ignacio, Misiones, Argentina. 2014.
Passeio 2. Alcântara, Maranhão, Brasil. 2012.
Curtindo a solidão e a vista 2. Alcântara, Maranhão, Brasil. 2012.
Descanse em paz 1. São Luís, Maranhão, Brasil. 2012.
Descanse em paz 2. Bogotá, Cundinamarca, Colômbia. 2019.
Curtindo a solidão e a vista 3. Salvador, Bahia, Brasil. 2021.
Curtindo a solidão e a vista 4. Salvador, Bahia, Brasil. 2021.
The Blair Witch Project. Curitiba, Paraná, Brasil. 2016.
Retrôpico. São Luís, Maranhão, Brasil. 2012.
Criança demônia 1. São Luís, Maranhão, Brasil. 2012.
Cavalo. Alcântara, Maranhão, Brasil. 2012.
Passeio 1. Belém, Pará, Brasil. 2012.
Pare o casamento. Veneza, Vêneto, Itália. 2015.
Artigos
El gótico tropical:
un término dinámico
1
Libia Castañeda
PPGCom / UFPE
1 El presente trabajo propone la reflexión al respecto del gótico tropical en el que retomo fragmentos de mi disertación de maestría denominada: Tropicalizando la mirada gótica: una revisión decolonial de la mansión de
Araucaima, defendida en 2020 en el Programa de Posgrado en Literatura Comparada de la Universidad Federal de
Integración Latinoamericana (PPGLC-UNILA).
El gótico tropical un término dinámico
Resumen
El trabajo reflexiona sobre el origen y la hibridación del término “Gótico Tropical”. Para ello consideramos que las obras del Gótico Tropical se sitúan como un locus de enunciación acerca de
la monstruosidad asociada con la producción de la alteridad del paisaje y el sujeto latinoamericanos, los cuales fueron construidos por una mirada eurocéntrica. Observamos que tanto los
términos “gótico” como “tropical” se sitúan desde la artificialidad de repertorios en constante
transformación, asimismo discutimos la continuidad de ambos términos y la posible permanencia de sus derivaciones híbridas.
Palabras clave: Gótico Tropical, Artificialidad, Gótico, Tropicalidad, Repertorios.
O gótico tropical: um termo dinâmico
Resumo
O trabalho reflete sobre a origem e a hibridação do termo Gótico Tropical. Para isso, consideramos que as obras do Gótico tropical se situam como um locus de enunciação sobre a
monstruosidade associada com a produção da alteridade latino-americana construída por
um olhar eurocêntrico. Observamos que tanto os termos “gótico” quanto “tropical” se situam
a partir da artificialidade de repertórios em constante transformação e, da mesma maneira,
discutimos a continuidade de ambos termos e a possível permanência de suas derivações
híbridas.
Palavras-chave: Gótico Tropical, Artificialidade, Gótico, Tropicalidade, Repertórios.
Tropical Gothic: a dynamic term
Abstract
The text reflects on the origin and hybridization of the term Tropical Gothic. For this, we consider that the works of Tropical Gothic are situated as a locus of enunciation about the monstrosity associated with the production of Latin American alterity constructed by a Eurocentric
gaze. We observe that both the terms “gothic” and “tropical” are situated from the artificiality
of repertoires in constant transformation and, in the same way, we discuss the continuity of
both terms and the possible permanence of their hybrid derivations.
Keywords: Tropical Gothic, Artificiality, Gothic, Tropicality, Repertories.
Foto: Erivan de Jesus Santos Junior
132
Artigos
A modo de introducción
Aunque el “gótico tropical” constituye una serie de obras cinematográficas y la novela de
Álvaro Mutis, me interesa situar la importancia de un concepto híbrido que discute las tensiones sociales que históricamente abordan ambos términos, así como los repertorios literarios y
visuales que evocan.
El objetivo del presente artículo es discurrir sobre la hibridación del concepto “gótico tropical”. Para este fin, presento el origen y desarrollo literario de cada término. Al mismo tiempo
sugiero como algunas obras posteriores y anteriores a las desarrolladas por el grupo de Cali
(“Caliwood”) podrían leerse al interior de una estética “gótica tropical”.
Como tal, el propósito del trabajo apenas menciona el surgimiento del término y describe
brevemente las obras colombianas gótico tropicales de los setentas y ochentas del siglo pasado.
Explico la artificialidad –y, si se quiere, la cristalización– que conllevan las estéticas de lo tropical
y de lo gótico separadamente, así como, la continuidad de ambos términos y la posible permanencia de sus derivaciones híbridas. Entendemos las estéticas góticas tropicales como aquellas
que reflexionan sobre la exploración del miedo que emana de las relaciones conflictivas entre
sujetos y paisajes tropicales en un contexto de opresión entre clases.
Gótico tropical a la colombiana
Fundamentalmente, el término discutido en las próximas páginas nace del subtítulo de
la novela de 1976 escrita por Álvaro Mutis, La mansión de Araucaima: un relato gótico de tierra
caliente. Posteriormente, el cineasta e integrante del “grupo de Cali” Carlos Mayolo, sintetiza el
subtítulo de la obra en la definición “gótico tropical”. Este término engloba las producciones
cinematográficas del “Grupo de Cali” en la década de los ochenta del siglo pasado.
En la novela La mansión de Araucaima (1973), Mutis narra la historia de terror al interior
de una hacienda a partir de la descripción de los diversos personajes que habitan en ella, cuya
cotidianidad es interrumpida por la llegada de una joven casta que es víctima de las oscuras
costumbres de sus habitantes. A lo largo de la adaptación cinematográfica de Mayolo (1986), el
carácter púber y virginal de la muchacha es subvertido, para colocar en simultáneo el contagio
del mal involucrados en todos los personajes y espacios de poder que el cineasta presenta de
forma crítica y realista.
Cuenta la leyenda que La mansión de Araucaima surgió a partir de una conversación que
el escritor entabló con el cineasta español Luis Buñuel, mientras vivía en México, sobre el gusto
compartido por la literatura gótica inglesa. Esa situación se revela en la entrevista realizada para
el periódico El Nacional, en 1989, en el siguiente fragmento:
La mansión de Araucaima nació de una conversación que yo tuve con Luis
Buñuel, con quien pasé momentos absolutamente inolvidables; los dos coincidimos en algunas cosas: en el interés por la literatura surrealista, por William
Blake, por Thomas de Quincey, por los autores que interesaron a los surrealistas, pero sobre todo eso el Melmoth de Maturin nos unió mucho en una época.
[…] Una noche yo le dije a Buñuel: “Quiero hacer una novela gótica pero en
tierra caliente, en pleno trópico”. Buñuel me contestó que no se podía, que era
una contradicción, ya que la novela gótica para él tendría que suceder en un
ambiente gótico (apud BERDET, 2016, p. 41).
Libia Castañeda
133
El gótico tropical
Mutis defiende que la esencia del gótico radica en la exploración del mal y no necesariamente depende del escenario; por tanto, podría surgir o residir en cualquier lugar. A partir de
esta afirmación, el autor desafió la inferiorización del paisaje tropical que propuso Buñuel, así
134
como la tradicional autonarrativa que explica la génesis del gótico anglosajón. Al tiempo el autor
expone la entramada relación entre géneros y lugares de enunciación literarios.
Esta primera provocación entre uno y otro lugar de enunciación, que se evidencia en el
relato de Mutis, así como en el surgimiento de su novela, funciona como elemento de tensión
donde se han planteado las dificultades del estudio de lo gótico en Suramérica con relación al
gótico del hemisferio norte. También en la riqueza de lo que significa el término gótico tropical,
más allá de la producción artística situada geográfica o temporalmente, e incluso provoca la
reflexión de diversas obras literarias y cinematográficas que podrían encuadrarse en la compleja
cobertura que propone el término.
La novela de Mutis se origina como un esbozo de guión cinematográfico, a partir del cual
se describe cada uno de los personajes, sus historias personales y, posteriormente, se narran las
relaciones de estos sujetos que viven en una hacienda de producción azucarera en un lugar “tropical” desconocido. Con la llegada de Ángela, una joven actriz de publicidad, la dinámica entre
los habitantes de la casona se desestabiliza, se acelera la degradación moral de los personajes
y las transgresiones sexuales entre los mismos. Estas situaciones causan la muerte de tres personajes: Machiche, la amante y empleada de la casa, la misma Ángela y el piloto quien vive una
frustrada relación amorosa con Machiche. Consecuentemente, los sobrevivientes de la mansión
abandonan la casona y se deja abierta la posible perpetuación de maldad que se produjo en el
interior de la construcción.
La obra Carne de tu Carne (MAYOLO, 1983), retrata la relación de explotación de las familias burguesas del valle del cauca, a través de la relación incestuosa y posterior transformación
de zombis caníbales de dos medio hermanos, provenientes de una familia de clase alta en la
ciudad de Cali, durante 1956, en medio del mandato del dictador Coronel Rojas Pinilla. Por
su parte, en la película Pura Sangre (OSPINA, 1982), la relación en un contexto neocolonial se
aproxima desde la perspectiva vampírica que ejercen los dueños de un ingenio azucarero para
mantener con vida al dueño de la empresa ante la debacle económica de la industria. Para este
fin, secuestran y asesinan niños blancos de los barrios populares para realizar transfusiones de
sangre al patriarca azucarero y así garantizar su supervivencia.
Ambas películas se inspiran en fenómenos de larga duración como la permanencia de
familias oligárquicas que controlan la economía agroindustrial, pero también en eventos violentos que tratan de la realidad colombiana, como el caso de la explosión de Cali en 1956 o del
“monstruo de los mangones”, asesino que desapareció aproximadamente 30 niños entre la
década de 60 y 70 del siglo XX.
En este sentido, los trabajos audiovisuales de Mayolo, Ospina y el de Mutis se encuadran
en la construcción de relatos autobiográficos, concepto desarrollado por Leonor Arfuch y que,
sin duda, entreteje, no solo el repertorio de memorias individuales, sino también imágenes
compartidas en el horizonte de la memoria colectiva. Para la autora, estas creaciones son un
fenómeno propio del siglo XX, que señala memorias traumáticas y críticas sobre el propio lugar
de enunciación, los cuales nutren las obras artísticas y conllevan a nuevas perspectivas de análisis de la memoria:
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Artigos
Son trabajos del arte de la memoria, podríamos decir, alejados de la función
probatoria, de la figura del testigo, ligados a las modulaciones de una historia
personal pero sin intervención de lo privado o bien bajo formas auto ficcionales, donde el yo fluctúa en diversas identificaciones y se deslinda de la verdad
referencial. […] es el arte quizá, en relación con la memoria, el que aporta un
impacto simbólico irremplazable, en tanto modo de significar que va más allá
del “relato de los hechos” para desplegar sin límites la dimensión de la metáfora, cuyo don es, volviendo a Aristóteles, el innegable privilegio icónico de “hacer
ver el mundo de otra manera”. Potencia de la imagen –o de la palabra como
imagen, en su textura poética y sensible– que toca otros registros de la percepción y, por ende, de la comprensión (ARFUCH, 2014. p. 75).
Estos trabajos manifiestan la apropiación de géneros cinematográficos foráneos del mismo
modo que los reinterpretan: Carne de tu carne (1983) es, esencialmente, un filme de zombies;
Pura sangre (1982) posee elementos del cine negro y, finalmente, La mansión de Araucaima
(1986) reelabora aspectos del suspenso del gótico literario y de los filmes de terror.
Estas obras se caracterizan por haber marcado una era de producción de la cinematografía
colombiana, que mezclan de forma libre la tradición oral de historias de horror, a través de mitos
y leyendas urbanas, que a su vez trasladan aspectos ya mencionados de la literatura universal,
resignificando las formas de género a aspectos sociales, en un contexto de crítica social y emergencia de memoria histórica coherente con el recorrido de los protagonistas del grupo Caliwood.
De esta forma, palabra e imagen constituyen una red de lectura que aborda los propios
temores latentes en la región, para resaltar la explotación de lo siniestro desde el corazón del
gótico suramericano, señalar puntos de contacto con otras creaciones que tratan la invención
de lo tropical. En las próximas páginas, reflexiono sobre el origen de los términos gótico y tropical
separadamente, más allá de las obras puntuales que contempla el término gótico tropical en el
contexto colombiano.
Definiendo el gótico
“Gótico” es un término complejo y nada específico, proveniente de Goth, palabra que
designa los pueblos germánicos que contribuyeron a la caída del imperio romano. Para Aurora
Piñero, el término Gótico fue adoptado también por Giorgio Vasari, al escribir la obra Las vidas
de los más excelentes arquitectos, pintores y escultores italianos desde Cimabue a nuestros
tiempos (1550), para referirse a las manifestaciones arquitectónicas de la Edad Media que se
habrían iniciado en Alemania. Por consiguiente, la autora afirma: “el término gótico fue acuñado para designar una buena parte del arte medieval, a pesar de las imprecisiones históricas y
geográficas que implica” (PIÑERO, 2017, p.22). Lo gótico ha venido siendo atribuido de forma
atemporal, y casi aleatoria, por lo tanto, no puede encuadrarse en un tiempo-espacio puntuales.
En el campo meramente literário, el término define para algunos autores un movimiento, para otros una forma literaria (HOGLE, 2002; PUNTER, 1980; ELJAIEK-RODRÍGUEZ, 2018;
SERRAVALLE DE SÁ, 2010). De este modo, me refiero al gótico como un campo de estudio que
remite a un repertorio compuesto por imágenes, expresiones arquitectónicas, literarias y personajes que delinean una estética particular que explora la emoción del miedo.
La permanencia del gótico en la literatura ha sido ampliamente discutida: algunos la
sitúan entre los siglos XVIII y XIX, en tanto que otros la extienden al finalizar el siglo XX. Algunos
autores aseguran que buena parte de sus transformaciones se produjeron a lo largo del siglo XX
y, como tal, el gótico puede situarse como un estilo que se ha adaptado a los cambios culturales,
Libia Castañeda
135
El gótico tropical
sociales y políticos propios de cada época, extendiéndose hasta nuestros días. Por esta razón, la
investigadora costarricense Inés Ordiz afirma: “El gótico crece y se expande, se modela al devenir
de la historia y se adapta a sus sociedades, sin renunciar a su propósito evocador de los miedos
136
humanos” (ORDIZ, 2014, p. 29).
Por su parte, Ordiz destaca en la primera literatura gótica “niveles de miedos históricos
contemporáneos a los textos” (ibid., p. 24). La autora enfatiza en el aspecto argumental de la
primera fase del gótico, caracterizado por “turbaciones mediante la introducción de numerosos
misterios, excesos y secretos de un pasado irracional que amenaza a los protagonistas” (ibid.,
p.25). A estas características iniciales se suman la presencia de una figura antagónica (humana o sobrenatural), que perpetúa los horrores del pasado al presente, peligros que amenazan,
habitualmente, a la co-protagonista femenina y sobrepasan los estándares morales de la época
en que las novelas o las películas son creadas (ELJAIEK-RODRÍGUEZ, 2017; VÁZQUEZ; ORDIZ,
2012). Estos personajes “antagónicos” se oponen a protagonistas virtuosos, puros o ceñidos a la
estructura moral a ser quebrada. Vázquez y Ordiz (2012) y Eljaiek-Rodríguez (2017) mencionan
la preponderancia del escenario gótico que por antonomasia remite a un pasado oscuro, ocasionalmente sobrenatural, el cual acentúa la claustrofobia o la angustia. Hogle describe dichas
características del gótico contemporáneo de la siguiente manera:
El cuento gótico se lleva a cabo (al menos parte del tiempo) en un espacio
anticuado […] dentro de dicho espacio se ocultan algunos secretos del pasado
que persiguen a los personajes, psicológica y físicamente […] estas apariciones
pueden tomar muchas formas, pero con frecuencia asumen características de
fantasmas, espectros o monstruos que surgen del espacio anticuado o a veces
lo invade desde reinos extraños, para manifestar crímenes no resueltos o conflictos que ya no pueden ser ocultados exitosamente a la vista. En este nivel
las ficciones góticas generalmente juegan y oscilan entre lo terrenal de las leyes de la realidad convencional y las posibilidades de lo sobrenatural (HOGLE,
2002, p. 2).
Marc Berdet (2016, p.45) identifica la aparición del gótico en un contexto de confrontaciones bélicas y conflictos entre las distintas clases sociales europeas, es decir en momentos
específicos de ruptura con el pasado y zozobra frente al presente. De la misma manera, Hogle
(2002) argumenta que la clase media blanca anglosajona ha sido históricamente el principal
público de esta clase de obras. Por lo tanto, ha existido una tendencia a clasificar los personajes
góticos desde una perspectiva de la denuncia de las desigualdades sociales o las condiciones
de opresión entre las clases, principalmente desde el hemisferio norte, pero no necesariamente
exclusiva a este hemisferio.
Las primeras aproximaciones del estudio sistemático del gótico se realizan durante la
segunda mitad del siglo XX. En consecuencia, desde la década del ochenta del siglo pasado,
autores como David Punter (1980) y Julia Kristeva (2004) abordan lo gótico tomando como
referencia la teoría psicoanalítica sobre “lo ominoso”.
En el ensayo “Lo ominoso” (en alemán Das Unheimlich), escrito en 1919 por Sigmund
Freud, el autor explora la sensación de angustia y la dinámica de sus causas. De esta manera,
aborda los conceptos Heimlich y Unheimlich, los que a pesar de ser antónimos plantean similitudes semánticas y adquieren significados iguales, especialmente en algunos contextos de su uso
en el idioma alemán. Inicialmente, Unheimlich se refiere a lo siniestro y, por tanto, a lo extraño
o sobrenatural. Aunque, a partir de una revisión bibliográfica, el autor encuentra que el término
Heimlich puede denotar tanto familiar e íntimo como también privado o disimulado y todo aquel-
Epistemologias do Sul, v . 6, n. 2, p. 128-143, 2022
Artigos
lo que debería permanecer escondido. En ese sentido, Freud plantea que la repetición de una
situación que en el pasado era familiar, pero indeseada, al ser revivida se transforma en ominosa,
potencialmente temible, tal como resultan los complejos infantiles grabados en el inconsciente.
Asimismo, los estímulos externos que producen el retorno de pulsiones o creencias irracionales
que han sido reprimidas se transforman en angustiantes al tornarse evidentes o duplicadas. Por
lo cual, el autor demuestra la proximidad de los dos términos, inicialmente antagónicos, pero
también, los mecanismos por medio de los cuales lo aterrador no emana de una exterioridad
aparente, sino de los propios procesos de represión psíquica sobre aspectos familiares denominados como impropios, que devienen en una sensación de “inquietante extrañeza” y angustia.
Los autores contemporáneos coinciden al afirmar que la permanencia del gótico hasta el
presente se debe a la hibridación con diversos géneros literarios, así como en el desplazamiento
del origen del miedo en cada época. En nuestra contemporaneidad, el origen del miedo se ha venido desplazando a la distorsión de la realidad. De este modo, percibimos una transformación
de los motivos y una nueva dinámica de lo insólito en que los monstruos amenazan no solo lo
cotidiano, las tradiciones, sino que cuestionan la propia naturaleza humana y los temores cada
vez más personales, más íntimos y que se relacionan con la sensación del miedo que supone lo
ominoso y los estudios de los ochentas.
Interludio
El lamado “boom latinoamericano” representa el momento de mayor visibilidad de las
obras de autores de la región, no obstante, también produjo la generalización de obras con características propias al interior del fenómeno del realismo mágico. Tras el Boom buena parte de
las obras fantásticas y góticas de la región obtienen mayor visibilidad. Para Casanova-Vizcaíno
y Ordiz (2018), la preferencia de Borges por el género fantástico se articuló como una “política
literaria”, la cual exportaba la literatura latinoamericana a los circuitos internacionales de comercio
y crítica literaria. Esta postura del autor se distanciaba de la tradición del realismo e historicismo
que imperaba hasta entonces, y que cuestionaba hasta cierto punto la necesidad de un arte
centrado en la identidad nacional (CASANOVA-VIZCAÍNO; ORDIZ, 2018). En este escenario, el
boom conciliaba la idea de una literatura autóctona y rural, sumando algunos elementos fantásticos. Este fenómeno fue exitoso gracias al impulso del capital editorial de la época, como la
aceptación del público lector del hemisferio norte:
Según Carpentier, la concepción de la realidad en América Latina es intrínsecamente diferente que en Europa y los Estados Unidos; mientras que el último
está dominado por la razón y la lógica, el primero acepta la existencia de lo
sobrenatural en lo ordinario. Las teorías de Carpentier, junto con los escritos
de otros críticos (como Uslar Pietri y Miguel Ángel Asturias), fueron de gran
influencia en el proceso de definición de una cierta identidad literaria latinoamericana que tuvo lugar durante los años cuarenta y cincuenta (en manos de
autores tales como Octavio Paz, Leopoldo Zea, por Lezama Lima) (CASANOVA-VIZCAÍNO; ORDIZ 2018 p. 3).
La división de los hemisferios norte y sur establecida por la preponderancia de la razón
y la emoción respectivamente em esos hemisferios, ayudaron a legitimar las diversas formas
literarias emergentes y posibilitaron la circulación internacional de autores que presentaban
rasgos fantásticos, góticos o realistas-mágicos, que se presentaban bajo una misma categoría.
A su vez, la distinción entre el gótico y la literatura fantástica es menos habitual, por causa de
las hibridaciones de los dos géneros a lo largo del siglo XX.
Libia Castañeda
137
El gótico tropical
Algo inquieta en el panorama del Boom, es la aceptación de un público a partir de las
diferencias entre los dos hemisferios norte y sur, fruto del tradicional binarismo que supone el
pensamiento moderno-hegemónico, que en dicho momento se plantea como “natural”. Asimismo
138
el realismo mágico funcionó como llave reduccionista y subrayó dichas diferencias entre razón
y emoción, que al final se instalan en los repertorios del paisaje tropical y caribeño que suponen
automáticamente América Latina y discuto más adelante.
Eljiaiek-Rodriguez (2017) sitúa a autores como Leopoldo Lugones, Macedonio Fernández
y Horacio Quiroga como autores directamente influenciados por el gótico, quienes además jugarían con elementos geográficos propios de sus lugares cotidianos o de origen. Por su parte,
Vlad (2010) o Aura (1986), de Carlos Fuentes, en México, representan casos de esta apropiación
y heterogeneidad de las formas góticas en América Latina.
Los estudios sobre el horror y las manifestaciones que pueden definirse como góticas aún
resultan recientes, los motivos y las preocupaciones de los autores en la literatura latinoamericana, hablan de la ausencia de una definición monolítica del gótico o del lugar de enunciación
de dichas obras, esto se aplica tanto en la literatura como en diversas manifestaciones artísticas.
Aunque en el campo audiovisual el término gótico no es ajeno al séptimo arte. Algunas
de las primeras experiencias del cine de horror se originaron gracias a la transposición de obras
góticas como son las obras: El golem; Nosferatu y El gabinete del doctor Caligari. Sin embargo,
no podemos afirmar que existe un género gótico y sí un campo del horror cinematográfico.
Al igual que en ocurre en la literatura, en el cine podríamos incluir algunas experimentaciones de la ciencia ficción y del cine fantástico, que evocan motivos góticos o exploran la
emoción del miedo, el suspenso y la zozobra, como la hibridación del cine de horror con el cine
negro (SÁNCHEZ NORIEGA, 2000; CUELLAR BARONA, 2008).
En el cine se perpetúa un repertorio de imágenes y sonidos que tipifican los términos “gótico” y “tropical” como términos donde se invoca la destrucción, de enfermedad física y mental.
Ambos lugares comunes que presentan el encierro, el anacronismo y la realidad anquilosada
y que, en general, se pueden leer como lugares del horror. Diversas expresiones artísticas vinculan las emociones del miedo con repertorios que son configurados en su mayoría a partir de
percepciones hegemónicas frente a la alteridad. En el próximo apartado me propongo delinear
el término” tropical”, entendiendo la configuración de su repertorio como un tropo del miedo.
Lo tropical como lugar común
El trópico geográficamente se sitúa al interior del Trópico de Cáncer y el Trópico de Capricornio, territorios que incluyen la altitud de los Andes (caracterizada por sus bajas temperaturas),
las selvas amazónicas (cálidas y acompañadas por una considerable humedad ambiente), las
costas continentales y no continentales y los desiertos. A pesar de esta variedad de paisajes tropicales (y de tropicos existentes) su representación más habitual se sitúa en los paisajes caribeños
o bien en la espesa selva amazónica.
Al referirse al territorio americano, Fumagalli, Hulme, Robinson y Wylie (2013) describen
en su obra Agrimensura sobre los trópicos americanos: una geografía literaria de Nueva York
a Río, (en inglés Surveying the American Tropics: A Literary Geography from New York to Rio),
una versión ampliada del trópico:
Epistemologias do Sul, v . 6, n. 2, p. 128-143, 2022
Artigos
No es una designación geográfica bien definida, los Trópicos Americanos se
refieren a un tipo de Caribe extendido, que incluye el sureste de los Estados
Unidos, el litoral atlántico de América Central, las islas del Caribe y el sureste de
América del Sur [...] Comparte un entorno que es Tropical y subtropical (FUMAGALLI; HULME; ROBINSON; WYLIE,2013, p. 2).
A su vez, los autores destacan como otra de las características regionales el encuentro violento entre amerindios, colonos europeos y africanos, fruto de la colonización. En consecuencia,
los investigadores desarrollaron un concepto que delinea la tropicalidad y la traslada del campo
meramente geográfico al geopolítico. Esta aparente porosidad del término entendido como
tropical, configura un repertorio de ideas, imágenes e historias que son compartidas parcial o
totalmente en la geografía americana y que tienen como común denominador la perpetuación
de sistemas de dominación violenta entre clases racializadas.
Para el autor poscolonial David Arnold (2000), lo “tropical” es un concepto desarrollado
para definir la alteridade, a pesar de no tener, inicialmente, esta intención. Auque se refiere al
caso de África y Asia tropicales, la discusión de Arnold puede ser extendida para la mayor comprensión de América. En palabras del autor, la tropicalidad configura “[lo que es] culturalmente
ajeno y ambientalmente distintivo. Los trópicos existían solo en yuxtaposición mental a alguna
otra cosa”. Asimismo, menciona cómo “la historia de la tropicalidad se remonta al menos sobre
500 años […] solo se desarrolló integralmente desde el siglo XVIII, con la presencia cada vez
mayor de la Europa septentrional (y luego Estados Unidos) en las regiones ecuatoriales” (p. 130).
El encuentro del hombre blanco proveniente de las tierras “templadas” fue, principalmente,
trazado por dos narrativas: de un lado la narración de una geografía exuberante y rica; de otro, la
narrativa que describe la falta de moralidad en las tierras tropicales, lugar de la pestilencia y de
la propagación de enfermedades, factores ambientales que llevaban al detrimento de la salud
mental del hombre blanco (ibid., p.134, 139-140).
Para el autor, estas descripciones comparten la mirada displicente hacia los nativos de los
trópicos, caracterizados en términos generales como sujetos perezosos, degradados moralmente a
causa de las características del ambiente. Este desgaste físico, mental y moral incapacitaría, simultáneamente, establecer civilizaciones (ibid, p. 144). De esta incómoda relación con el paisaje, se justificó
modificar el mismo en pro del saneamiento sanitario y una explotación sistemática del territorio.
Esta relación dicotómica entre el discurso de lo “sublime” alrededor del paisaje y de la
“incompetencia” relativa al trabajo de sus habitantes, se alía con el desarrollo de la botánica y
la exportación de plantas, que así conforman tres ejes que justifican el expansionismo europeo
durante su permanencia en los trópicos, incluyendo los trópicos de América. Los relatos de viajes
producto de las expediciones de científicos, políticos y diplomáticos entre los siglos XVI y XVIII en
territorio americano configuran buena parte de la imagen y de los discursos que conservamos
hasta nuestros días sobre el paisaje caribeño y americano, sobre los recursos del territorio o la
exuberancia y de las características topográficas del paisaje.
En ese sentido vale la pena exponer las diferencias entre un trópico oriental a un tropico
americano, y es que el trópico americano es desprovisto del valor histórico que posee Oriente,
tal como destaca Giselle Roman Medina:
Es cierto que los saberes orientalistas también involucraron teorías evolucionistas y raciales, pero el tropicalismo subraya, aún más que el orientalismo, un
objeto de estudio natural que en muchos casos quiere decir desprovisto de
lo cultural (lo cual contrasta con la antigüedad cultural que se le reconocía a
oriente) [...] Al reclamar que la sobreabundancia de la naturaleza obstaculiza
Libia Castañeda
139
El gótico tropical
la civilización y progreso, el tropicalismo se intercepta con primitivismo, que
tiene una historia de usos mucho menos específica, y que puede referir tanto
a una edad de oro occidental, como a un supuesto estado evolutivo inferior de
los habitantes de los trópicos (ROMAN MEDINA, 2020, p. 29).
140
En palabras, ilustraciones, fotografías e informes oficiales se reúnen buena parte de lo
que podríamos llamar como imaginario de la región y, especialmente, de las diferencias entre
los hemisferios, la naturaleza, la gente que se distinguen entre norte y sur. En suma, la invención de la tropicalidad estructura un discurso y un repertorio que opera en la escala del cuerpo
y la del paisaje tropical americano, a las cuales se les atribuye diferencias étnico-culturales que
distinguen automáticamente: lo blanco del no blanco, la civilización de la barbarie e incluso
Oriente de América.
Al mismo tiempo que se reducen las características muy diversas de los trópicos, también se
exponen las falencias en los discursos que narran, estereotipan e intentan definir lo tropical y lo no
tropical monolítica y estáticamente. Lo tropical como una definición que intenta alcanzar todas las
diferencias etnico culturales se presenta, simultáneamente, como una definición porosa, un discurso artificial que lejos de catalogar expone las dificultades de reunir en características generales
el paisaje, el clima y las gentes. La artificialidad de lo tropical se bifurca en auto-representaciones
y auto-identificaciones que superan las ideas hegemónicas de la alteridad tropical y las apropian,
como menciona Giselle Roman: “‘el mundo tropical’ además de transculturar los modelos de norte
y el rol típico, pasa a ser una red que exporta modelos estéticos.” (ROMAN, 2020, p.38)
Reflexiones finales
De los repertorios que constituyen e inauguran estos discursos que buscan definir lo
tropical más allá de lo meramente geográfico, surgen dos movimientos locales que se oponen,
que se tensionan hasta la actualidad. De un lado, las posiciones políticas asertivas a la mirada
imperial, colonial o neocolonial descritas anteriormente y, de otro lado, la apropiación de la diferencia como lugar identitario, es decir, aquel que asume la cristalización de los estereotipos
como un lugar de reinvención y redescubierta propios.
Así pues, tendríamos una narrativa que se traslada desde el hemisferio norte y se instala
en la voz de algunos “hombres letrados”, gobernantes, quienes describieron sus países desde
una perspectiva colonial eurocéntrica que destaca en ocasiones su origen europeo u oligárquico,
fenómeno que tiene origen desde principios del siglo XVIII hasta nuestros días. Estas narraciones de país, de región latinoamericana, generalmente apuntan hacia la realidad rural como la
alteridad dentro del propio país, vinculado al interés de incentivar las posibilidades de inversión
extranjera, ofreciendo un panorama general de la economía, la naturaleza y el carácter de los
recursos humanos que coexisten en el territorio.
De otro lado, la presencia de discursos que atraviesan diversas clases sociales que surgen
principalmente a partir del movimiento modernista de principio del siglo XX, que encuentran en
movimientos como la antropofagia de Oswald de Andrade, o en la artificialidad de la tropicalidad,
un lugar de discusión crítica de la diversidad cultural y de sus problemáticas socioeconómicas.
De este último movimiento surge el término gótico tropical, que es la reapropiación de
representaciones del horror en Colombia, pero que como se discute a lo largo de este trabajo
podría trasladarse a diversos trabajos de horror y terror de América latina y el caribe.
Epistemologias do Sul, v . 6, n. 2, p. 128-143, 2022
Artigos
Los autores de Caliwood comprendieron en su momento el enfrentamiento de una realidad rural y cálida que contrasta con el ideal templado de la región andina o las urbes como
Bogotá y que se traducen en la desigualdad social y racial, en una división violenta del país. El
entendimiento de dicha realidad se entreteje con repertorios personales, que se evidencian
en los distintos tonos y la exploración de diversos géneros cinematográficos y literarios que los
autores presentan en sus obras.
En sintonía con estas afirmaciones, el nexo del gótico tropical a partir del diálogo con
diversas estéticas cumple una función social, un reconocimiento alegorizado de las memorias
traumáticas y de la configuración de la violencia en Colombia. Al tiempo que propone una relectura de manifestaciones del horror foráneo que invierten sus sentidos y protagonistas, basándose
en repertorios sobre la tropicalidad y la propia reconfiguración de la memoria individual.
Estos aspectos constituyeron también uno de los principales propósitos de Mayolo a lo largo
de su trayectoria artística. Aunque, en el caso cinematográfico, buena parte de sus memorias
remiten a la región pacífica y al Valle del Cauca, las narrativas góticas tropicales oscilan sobre los
traumas causados por la conformación de la identidad nacional, como lo describe Juana Suárez:
Mayolo quien acuña el término “gótico tropical”, que resume la negociación
con el género y caracteriza esta nueva hibridez: no se trata de ajustarse literalmente a los dictámenes del viejo tema literario y artístico de lo gótico sino
de apropiarse y devolverlo con elementos asociados con el trópico, construcción esencialista y colonial de América Latina. Como tal, las convenciones del
género, en combinación con los trazos particulares de la región (incluyendo la
historia, los mitos y el imaginario popular), se ponen al servicio de un lenguaje
simbólico que permita un relato visual complejo (SUÁREZ, 2009 p. 310).
La colonia no solamente fue un periodo histórico, constituye un sistema de reordenamiento
global que categoriza y fronteriza las comunidades y los sujetos a partir de la raza, el sexo, el lugar
de origen, que se desplegó en la forma de entender el mundo, nuestras historias y la conformación de las sociedades. De allí que el lugar de enunciación del ejercicio de lo que podríamos
denominar como “colonial” se transforma a su vez en un síntoma del presente, en un lugar de
constante reflexión sobre las deformaciones morales de nuestra sociedad y las reverberaciones
artísticas que las cuestionan. La transformación del gótico en nuestro territorio, al igual que la de
otros géneros, ubica en el epicentro todo aquello que nos parece obvio de la imposición colonial
y ha sido silenciado en cuanto tal.
La artificialidad que comparten tanto el término gótico como tropical, desde los ámbitos
sociales y culturales de los cuales emergen nos hacen pensar en el trabajo de autoras contemporáneas como Mariana Enriquez con sus cuentos que componen la obra Las cosas que perdimos
en el fuego (2017) o Distancia de rescate (2015) de Samanta Shweblin, quienes trabajan con
un repertorio de realidades contemporáneas latinoamericanas. O bien en las películas como La
llorona (2019) de Jayro Bustamante, Feral (2018) de Andrés Kaiser o Bacurau (2019) de Kleber Mendonça Filho y Juliano Dornelles, quienes buscan diferentes formas monstruosas para
representar nuestro lugar en el mundo, así como la imposición de un sistema opresivo entre las
clases y sus resultados históricamente violentos.
Aunque no afirmó que dichas obras hagan parte del gótico tropical, pienso que la aproximación al término y a su implicación híbrida contribuye a sus posibilidades de estudio desde América
Latina y, si se quiere, a su análisis geopolítico gracias a su porosidad y constante transformación.
Libia Castañeda
141
El gótico tropical
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Filmografía
BACURAU. Dir: Kleber Mendonça Filho, Juliano Dornelles. Brasil, 2019.
CARNE DE TU CARNE. Dir: Carlos Mayolo. Compañía de fomento cinematográfico, FOCINE,
Colombia 1983.
EL GOLEM. Dir: Paul Wegener, Alemania, 1914.
EL GABINETE DEL DOCTOR CALIGARI. Dir: Robert Wiene. Alemania, 1920.
FERAL.Dir: Andres Kaiser. México, 2018.
LA LLORONA. Dir: Jayro Bustamante. La Casa de Producción and Les Film du Volcan, 2019.
LA MANSIÓN DE ARAUCAIMA. Dir: Carlos Mayolo. Compañía de fomento cinematográfico,
FOCINE, Colombia, 1986.
NOSFERATU, EL VAMPIRO. Dir: F. W. Murnau. Alemania, 1922.
PURA SANGRE. Dir: Luis Ospina. Producciones Luis Ospina, Rodrigo Castaño y Compañía del
fomento cinematográfico FOCINE, Colombia, 1982.
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O sertanejo e sua
indissociação com
o seu espaço:
o papel de Fabiano na
representação do sertão
Flávio Augusto Serra
PPGLC / UNILA
O sertanejo e sua indissociação com o seu espaço:
o papel de Fabiano na representação do sertão
Resumo
Utilizado para distinguir as populações afastadas dos centros populacionais, o termo sertanejo,
acabou sendo vinculado a população nordestina do semiárido brasileiro. De forma semelhante,
o espaço do sertanejo, o sertão, transitou de significado com o passar do tempo. Tanto o sertanejo quanto o sertão foram construído/inventados a partir do século XVIII, por meio de diversas
formas de expressões culturais, como a literatura, as artes plásticas e o cinema, entre outras.
Utilizando da literatura como fonte, analisarei a relação de dependência na representação do
sertanejo e do sertão. Por meio da análise da construção da personagem Fabiano da obra Vidas Secas, de Graciliano Ramos pretendo apresentar como essa relação se tornou indissociável
em um processo de dependência na geração dos significados do personagem (sertanejo) e do
espaço (sertão). Para realizar a análise, utilizarei os trabalhos de Leo Name sobre o conceito de
personagem-geográfico, além do conceito de Orientalismo de Edward Said.
Palavras-chave: sertanejo; sertão; personagem.
El sertanejo y su no disociación con su espacio:
el papel de Fabiano en la representación del sertão
Resumen
Usado para distinguir qué tan lejos de los centros de población, el término sertanejo terminó
vinculándose a la población nororiental del semiárido brasileño. De manera similar, el espacio
del sertanejo, el sertão, ha cambiado de significado con el tiempo. Tanto el sertanejo como el
sertão fueron construidos/inventados a partir del siglo XVIII, a través de diversas formas de expresión cultural, como la literatura, las artes plásticas y el cine, entre otras. Usando la literatura
como fuente, voy analizar la relación de dependencia en la representación del sertanejo y el
sertão. A través del análisis de la construcción del personaje Fabiano a partir de la obra Vidas
Secas, de Graciliano Ramos. Pretendo presentar cómo esta relación se volvió inseparable en
un proceso de dependencia en la generación de los significados del personaje (sertanejo) y del
espacio (sertão). Para realizar el análisis utilizaré los trabajos de Leo Name sobre el concepto
de personaje geográfico, además del concepto de Orientalismo de Edward Said.
Palabras clave: sertão; sertanejo; personaje.
The sertanejo and its no dissociation with its space:
the role of Fabiano in the representation of the sertão
Abstract
Used to distinguish populations that live far from population centers, the term sertanejo ended up being linked to the northeastern population of the Brazilian semi-arid region. In a similar
way, the space of the sertanejo, the sertão, has changed meaning over time. Both the sertanejo and the sertão were built/invented from the 18th century, through various forms of cultural
expressions, such as literature, plastic arts and cinema, among others. Using the literature as
a source, I analyzed the relationship of dependence in the representation of the sertanejo and
the sertão. Through the analysis of the construction of the character Fabiano from the literary
work Vidas Secas, from Graciliano Ramos. I intend to present how this relationship became
inseparable in a process of dependence in the generation of the meanings of the character
(sertanejo) and space (sertão). To carry out an analysis, I will use the works of Leo Name on the
concept of geographical-character, in addition to the concept of Orientalism by Edward Said.
Keywords: sertanejo; sertão; character.
Foto: Erivan de Jesus Santos Junior
146
Artigos
Termo presente na cultura nacional, o sertão era utilizado, até o início do século XX, para
definir as regiões afastadas da costa e distantes dos centros populacionais – atualmente, porém,
é usado em todos os estados e regiões do Brasil. Com o processo de sua captura pelo discurso
regionalista nordestino, hoje tem forte vínculo com a paisagem semiárida brasileira (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019, p. 21-22). Sua população, por vezes descrita a partir de certa identidade
territorial, a do sertanejo, foi largamente representada por diversas expressões culturais, do teatro
ao cinema e, principalmente, da literatura. Por meio dessas representações, o termo sertanejo
parece sintetizar imaginários construídos em relação a essa população que viveu e que vive às
margens de um suposto centro cultural e geográfico. Nesse artigo, realizarei uma breve análise
de como as representações do sertanejo estão vinculadas às representações de seu espaço e
como a personagem sertaneja pode ser caracterizada como uma personagem-geográfica – um
operador analítico que pode ser utilizado para analisar o espaço em suas diversas formas.
Leo Name (2013), em seu livro Geografia pop: o cinema e o outro, num contexto de
análise de obras cinematográficas, mas não se limitando a elas, definiu que King Kong, Indiana
Jones, Robinson Crusoé, Frodo e até mesmo Osama Bin Laden, por exemplo, são personagens
geográficas por, de certa forma, cumprirem função metonímica com relação a certos ambientes
e paisagens. Ele as caracteriza como aquelas
que possuem associação direta e inseparável com determinado(s) espaço(s)
e determinadas práticas no(s) mesmo(s). Tais personagens são emblemas de
determinadas representações que estruturam e são estruturadas pela vivência
cotidiana, ligando-se a práticas de poder e hierarquização ou, no mínimo, de
diferenciação e classificação de espaços e de Outros. O personagem geográfico é, em si mesmo, uma forma de representação espacial, pois a ele se associa
um ou mais espaços cuja singularidade se revela a partir de sua constante relação com o(s) mesmo(s) (NAME, 2013, p. 78).
Logo, a personagem que assume um papel de representante do seu espaço é considerada
uma personagem geográfica. A análise dessa personagem, com um olhar voltado para a sua
relação com o espaço, traz diversas possibilidades para um diálogo interdisciplinar. Analisar as
personagens por esse enfoque geográfico, pois, permite expandir as possibilidades de interpretação de seu papel em suas respectivas obras, assim como na cultural nacional.
Dessa forma, minha análise será realizada por meio da relação do sertanejo com o seu
espaço, relação que permite identificar como a personagem se articula entre a sua constituição
e a do seu espaço (assim como nas paisagens), indicando uma contribuição mútua na representação desses elementos nas obras literárias, cinematográficas, gráficas etc. Para isso, centrarei
atenção no caso de Fabiano, personagem principal de Vidas Secas, obra de Graciliano Ramos
(1932), tendo em conta como a sua representação na cultura nacional é indissociável da representação do seu espaço.
Visões do sertanejo
Considero o sertanejo um tipo social brasileiro, com forte presença na cultura nacional.
Porém, como foi ressignificado diversas vezes, tendo as expressões culturais um importante
papel nesse processo, é fundamental apresentar um breve histórico dessas ressignificações e
como a literatura moldou a visão atual desse tipo social. Desse modo, o sertanejo engloba um
amalgamado de diversas categorias: certo trabalhador rural (vaqueiro), certo fora da lei (cangaceiro), certo grande proprietário de terras (capitão-mor), certos trabalhadores expulsos pela
Flávio Augusto Serra
147
O sertanejo e sua indissociação com o seu espaço
seca (retirantes). Inicialmente vinculado à questão territorial para identificar a população que
vivia nas terras afastadas, passou também a ter um significado mais vinculado a raízes e origens
da população. Assim, atualmente, o sertanejo parece estar vinculado às regiões rurais de forma
148
mais ampla, incluindo aquelas de agrobusiness, um processo que é perceptível no gênero musical e que recebe o mesmo nome (sertanejo) e até algumas modificações e adjetivos (feminejo,
sertanejo universitário etc.). Com letras românticas que muitas vezes remetem a um passado
rural e com intérpretes usando roupas com referências ao vaqueiro, tal gênero musical auxilia na
manutenção de uma constante invenção da tradição do “campo”, muitas vezes para o consumo
de grupos nas “cidades”.
O sertanejo, portanto, engloba uma grande quantidade de características e significados.
No entanto, é possível indicar duas majoritárias na cultura nacional contemporânea: o gênero
musical que evoca genericamente o campo e suas ruralidades, de um lado; e a população que
habita o interior do Nordeste, de outro.
O gênero musical nasceu nas áreas rurais como forma de narrar suas rotinas. Com o crescimento das cidades, foi se modificando e, a partir das décadas de 1970 e 1980, assumiu uma
característica mais voltada para as relações amorosas (TERRA, 2007). Foi a partir dos anos de
1980 que a música expandiu, saiu do regional para o reconhecimento nacional. No início dos
anos 2000, o sertanejo assumiu características pop, com a inserção de instrumentos eletrônicos
e se tornou o gênero musical de maior sucesso no Brasil.
O sertanejo, contudo, foi “capturado” pelo Nordeste, pois antes um conceito que era utilizado para definir os habitantes afastados do litoral, em muitos contextos tornou-se sinônimo de
“nordestino”. Sendo assim, as representações de personagens sertanejas formaram um imaginário
que definiu como os habitantes dessas regiões seriam identificados. O cangaceiro, o vaqueiro, o
capitão-mor, o beato, a mulher-macho e o retirante, entre outros tipos, formaram o conjunto de
imagens-arquivo da população sertaneja. Para Durval Albuquerque Júnior (2019, p. 33):
Ser sertanejo foi se tornando, ao longo do século XX, sinônimo de ser nordestino e de viver o drama das secas periódicas. Mesmo as elites desse espaço,
que estão longe de ser afetadas da mesma forma que os mais pobres pelas
estiagens, se assumem como sertanejas.
Um dos principais tipos representados, o cangaceiro, tem como uma das suas características a dualidade entre o bem e o mal. As suas ações (assaltos e mortes) seriam justificadas
pela aridez do meio, causada em grande medida pelo abandono do estado, o que indica uma
reação às injustiças, de modo que existe uma “essência” boa, que foi modificada pela necessidade
de sobrevivência e de enfrentamento dos desmandos das elites locais. Isso é apresentado, por
exemplo, na obra O Cabeleira (2014), em que a personagem principal, José Gomes, um menino
de bom coração, é corrompido e assume a alcunha de Cabeleira, tornando-se um violento criminoso. Essa “justa” resistência e o seu arrependimento, ao final da vida, atribuiu à personagem
um caminho de redenção que enfatiza a pureza da sua origem e de seu povo, que seria alterada
pelo meio: a violência exercida se deve a questões externas.
Essa essência foi constituída em diversas obras e personagens, que mantinham essa bondade como característica, em sua maioria com a dualidade bondade/justiça. Em A fome (2011),
a personagem Manuel de Freitas mantinha o seu caráter de ternura perante os filhos e a família,
porém sua força bruta foi realçada como outra característica que ficaria marcada na imagem
do sertanejo. Era a essência mantida, com a força bruta que valorizava o corpo que resistia às
dificuldades do sertão.
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 144-157, 2022
Artigos
A musculatura estava reduzida, mesmo assim ninguém duvidava que os braços daquele homem pudessem suster um touro pelos cornos. A caixa torácica
bastante larga e bem conformada guardava os órgãos mais importantes da
vida sãos e vigorosos. Naquelas formas não havia um traço que não denotasse
virilidade (TEÓFILO, 2011, p. 17).
Na mesma obra, nota-se que os impactos causados pela seca, que obrigou a população
do interior a se deslocar para o litoral (capital), constituiu um novo tipo sertanejo, o retirante.
Manuel de Freitas era dono de terras, com grande quantidade de gado, e com a seca vendeu
seus bens e foi em busca de sobreviver em Fortaleza. O retirante teve grande destaque nacional
com as recorrentes secas no Nordeste e os impactos causados nas cidades em que chegavam,
contudo, os desafios enfrentados na travessia pelo semiárido foram o que mais se vincularam
às suas características.
Os retirantes foram representados inúmeras vezes e de diversas formas nas expressões
culturais. Dos anos iniciais da literatura do Norte, além dos personagens de Rodolfo Teófilo, uma
obra que trouxe os retirantes como destaque foi Luzia-Homem (1903). Nesse romance, Luzia
se vê forçada a sair do sertão em direção à cidade grande, buscando emprego e melhores condições para a sua família. Com passagens bem semelhantes às de A Fome (2011), a família da
personagem-título enfrenta dificuldades causadas pela seca no percurso em direção à cidade.
O diferencial da obra, que contribui para ampliar a imagem-arquivo do sertanejo, é a construção
da personagem principal. Luzia-Homem, como era conhecida, é constituída como uma mulher
com força de homem, que trabalhava de modo incansável. Essa comparação, presente até no
título da obra, apresenta como a masculinidade, aqui trazida como a força física e um comportamento rude, é característica do homem sertanejo e não é exclusiva dos homens, também
estando presente na mulher sertaneja.
O vínculo com a religião e a tendência ao messianismo é outra característica que ficou
marcada na população sertaneja. Esse vínculo é tema de uma das obras mais marcantes da
literatura nacional. Os Sertões (1902) trouxe Antônio Conselheiro, o líder da comunidade de
Canudos, para o debate nacional. Líder da comunidade, ele foi representado por Euclides da
Cunha como um monstro que dominou seu povo. Para Cunha, essa dominação só foi possível
pela baixa capacidade intelectual da população sertaneja, causada em parte pelo meio em que
ela vive. De tendência determinista, Cunha foi um dos principais responsáveis para a formação
do sertanejo no imaginário nacional.
Uma das mais repetidas frases, quando se pensa na população do Nordeste, está em Os
Sertões: “O sertanejo é, antes de tudo, um forte” (CUNHA, 2019, p. 51), essa frase foi reproduzida
à exaustão com o objetivo de exaltar a sua força, entretanto, quando se analisa melhor, pode-se
identificar que Cunha quis reduzir a população à sua força em detrimento de outras características. Quando ele utiliza a expressão Hércules-Quasímodo como definição dos habitantes de
Canudos, percebe-se a valorização do aspecto físico em detrimento das questões intelectuais
e como a visão de Cunha era negativa, ressaltada pela descrição física: “O andar sem firmeza,
sem aprumo, quase gingante e sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados”
(CUNHA, 2019, p. 51). De modo que a imagem que se destacou do sertanejo foi depreciativa,
resumindo-o a um incauto, manipulado pela religião, mas que, por sobreviver às dificuldades
do sertão, deveria ter sua força reconhecida.
Para concluir essa breve retomada das características do sertanejo em vários momentos da
literatura nacional, é fundamental situar uma das mais importantes de suas obras: Grandes Sertões: Veredas, de Guimarães Rosa. Sempre lembrada como representativa do sertão nordestino,
Flávio Augusto Serra
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O sertanejo e sua indissociação com o seu espaço
sua trama se passa em Minas Gerais. Mesmo assim, nela existem aspectos da imagem-arquivo
do sertanejo, semelhantes aos de obras aqui citadas anteriormente. A força, a proximidade com
a religião e os jagunços/cangaceiros, por exemplo, estão interligados pelo sertão. Por meio dessas
150
representações, foram estabelecidas características do pensamento do sertanejo, da geografia
do espaço onde vive, da história e das tradições do povo sertanejo. Tais representações, portanto,
contribuem para a definição do que se pensa ser o sertanejo do Brasil, uma construção vinculada à alteridade e à relação deste do interior de pequenas localidades com os grandes centros
urbanos. Apresentado as linhas gerais do conceito, estabelecidas pela literatura, adentramos na
obra Vidas Secas, para analisar o papel de Fabiano, personagem principal da obra de Graciliano
Ramos, que se consolidou como um dos principais representantes do sertão.
Fabiano e a paisagem da seca
Em Vidas Secas, Ramos apresenta a sua visão do sertanejo que enfrenta as dificuldades
causadas pela seca em busca de melhores condições de vida. O vaqueiro Fabiano perde o seu
trabalho e parte em busca de novas oportunidades. A narrativa traz o sertanejo em sua condição de retirante, aquele que é obrigado a sair de suas terras em busca de trabalho e formas
de sobreviver. Fabiano é apresentado em movimento na paisagem árida, fugindo das terras
devastadas pela seca e em busca de se estabelecer em regiões com melhores condições de
vida. Esse deslocamento é perceptível em toda a obra, e não se trata apenas de um movimento
físico, mas de uma dificuldade de se identificar e se relacionar com as pessoas. Tendo o seu
trabalho de vaqueiro como moeda, a personagem encontra uma nova fazenda para trabalhar e,
com a atenuação dos efeitos da seca, acredita que possa se estabelecer naquele lugar. A difícil
relação com o patrão, o estado e com os outros personagens apresenta um sertanejo que, além
de não ter um lugar para se estabelecer, tem grande dificuldade de interação e até mesmo de
se comunicar. O processo de construção da personagem é feito por características negativas,
quando indica que Fabiano tinha “[...] coração grosso, queria responsabilizar alguém pela sua
desgraça” (RAMOS, 2011, p. 10).
A personagem vive em um estado de vulnerabilidade, tendo enorme dificuldade de enfrentar as adversidades e de impor as suas vontades. A dificuldade de comunicação e de relacionamento com outras pessoas mostra um sertanejo excluído da sociedade, que pouco dialoga
até mesmo com seus iguais. O relacionamento mais próximo, mesmo considerando o seu núcleo
familiar, é restrito, apenas a esposa Sinhá Vitória, que ele entende e em quem confia. Ela se dá
melhor com os números, cria um contraponto a Fabiano, que está “indefeso” nas negociações
financeiras. Percebe-se aqui o reforço da ideia de que o sertanejo não tem um lugar fora da
paisagem do sertão, e com a seca o obrigando a se deslocar, a sua identidade desaparece: ele
não tem nem uma terra para sobreviver e nem um papel na sociedade.
Na obra, Fabiano é construído, pois, como uma personagem em conflito. O seu espaço, o
sertão, cuja paisagem está em sua pior fase de seca, relaciona-se com o seu comportamento e
suas ações. Em diversos trechos da obra, ele é constituído como um ser sem consciência, como
um animal que simplesmente sobrevive. Ramos aproximou o seu personagem aos animais, sendo
o seu comportamento, em diversas passagens, relacionado aos instintos de defesa, posicionando
Fabiano no mesmo patamar deles e o identificando como tal.
Essas relações, de um lado a partir de um sertanejo que pensa em sua condição (apresentada pelo narrador) e, de outro, de alguém que age como um animal, permeia as obra como
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 144-157, 2022
Artigos
um todo. Fabiano busca reforçar sua condição humana; no entanto, tem dificuldades por estar
em uma posição social desvalorizada e por não ter posses:
Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta. Conteve-se, notou que os
meninos estavam perto, com certeza iam admirar-se ouvindo-o falar só. E, pensando bem, ele não era homem: era apenas um cabra ocupado em guardar coisas dos outros. Vermelho, queimado, tinha os olhos azuis, a barba e os cabelos
ruivos; mas como vivia em terra alheia, cuidava de animais alheios, descobria-se,
encolhia-se na presença dos brancos e julgava-se cabra. Olhou em torno, com
receio de que, fora os meninos, alguém tivesse percebido a frase imprudente.
Corrigiu-a, murmurando: — Você é um bicho, Fabiano (RAMOS, 2011, p. 18).
Essa citação demonstra o conflito interno que a personagem passa durante a obra em
relação ao seu papel na sociedade. Assumindo-se homem, ele se rebaixa socialmente pela falta
de posse, tornando-se cabra; assim, reconhece a sua falta de humanidade, assumindo-se bicho.
Na obra, a relação entre os animais e Fabiano se mistura de maneira que, em alguns momentos, o homem se animaliza. Essa mistura ocorre quando o sertanejo se comunica melhor com
a cachorra da família, Baleia, do que com os outros personagens, igualando-se aos animais na
luta pela sobrevivência:
Vivia longe dos homens, só se dava bem com animais. Os seus pés duros quebravam espinhos e não sentiam a quentura da terra. Montado, confundia-se
com o cavalo, grudava-se a ele. E falava uma linguagem cantada, monossilábica e gutural, que o companheiro entendia. A pé, não se aguentava bem.
Pendia para um lado, para o outro lado, cambaio, torto e feio. Às vezes utilizava
nas relações com as pessoas a mesma língua com que se dirigia aos brutos —
exclamações, onomatopeias. Na verdade, falava pouco (RAMOS, 2011, p. 11).
Porém, essa proximidade com os animais contrasta com os dilemas internos que a personagem tem em relação às injustiças da sociedade. Ele identifica a opressão causada pelos donos
de terra e pelo estado, mas não tem as ferramentas necessárias para se impor nesses conflitos.
Tem dificuldade para se comunicar: “dizia palavras difíceis, truncando tudo, e convencia-se de
que melhorava. Tolice. Via-se perfeitamente que um sujeito como ele não tinha nascido para falar
certo” (RAMOS, 2011, p. 13). O caráter de exaltar o homem bruto, que expressa suas angústias e
pensa em sua situação, foi enfatizado pelo próprio Ramos “Por pouco que o selvagem pense – e
os meus personagens são quase selvagens – o que ele pensa merece anotação” (GARBUGLIO
et al., 1987, p. 64). Com o objetivo de apresentar o pensamento da personagem, o narrador
assume um importante papel na obra, pois é por meio dos “diálogos” entre ele e Fabiano que
se identifica como o sertanejo de Ramos constitui uma identidade.
Todos os aspectos já apresentados, convergem na relação paisagem/personagem. O sertão, na seca, é o fator gerador dessas características que compõe o sertanejo de Graciliano. E a
relação de aproximação e de opressão que ocorre entre a seca e Fabiano contribui para reforçar
sua dureza. Logo no início da obra, nota-se esse processo de aproximação e de comparação com
a natureza. “Fabiano olhou os quipás, os mandacarus e os xique-xiques. Era mais forte que tudo
isso, era como as catingueiras e as baraúnas” (RAMOS, 2011, p. 10). Considerando que as catingueiras e as baraúnas são plantas de grande porte no sertão, essa comparação ressalta a força e
a resistência de Fabiano. Na construção do espaço e da personagem, é possível perceber essas
inter-relações, como na semelhança das cores da caatinga e do rosto de Fabiano. A paisagem caatinga tem um “vermelho indeciso”, assim como Fabiano, que tem uma cor “vermelho queimado”.
Flávio Augusto Serra
151
O sertanejo e sua indissociação com o seu espaço
Da vinculação do humano ao animal, sem uma identidade definida, a sua caracterização como parte da caatinga, a percepção de que o sertanejo de Ramos é diferente do branco
indica uma forte construção racial da personagem, conforme o conceito de Stuart Hall (2015),
152
apresentado no artigo “Raça, o significante flutuante”. Não se trata de uma questão biológica,
pois Fabiano tem o fenótipo do homem branco, com “olhos azuis, a barba e os cabelos ruivos”.
Contudo, ao longo das páginas, vê-se que a personagem “encolhia-se na presença dos brancos”.
O sertanejo de Ramos faz parte de um sistema de classificação que determina o seu papel no
mundo, em que a falta de posses e a resistência à seca os caracterizam como pessoa mui diversa
com relação às pessoas brancas das classes dominantes.
Outro fator importante nessa forma de racialização é que, mesmo fora das questões biológicas, o autor demonstra os efeitos de uma suposta “genética sertaneja” nas suas ações e costumes:
A cabeça inclinada, o espinhaço curvo, agitava os braços para a direita e para a
esquerda. Esses movimentos eram inúteis, mas o vaqueiro, o pai do vaqueiro,
o avô e outros antepassados mais antigos haviam-se acostumado a percorrer
veredas, afastando o mato com as mãos. E os filhos já começavam a reproduzir
o gesto hereditário (RAMOS, 2011, p. 17).
Com isso, é possível ver que o sertanejo não tem a possibilidade de ascensão social. Considerando-se que o seu serviço na fazenda é o cuidado com os animais, o ofício de vaqueiro é a
única possibilidade, servir ao patrão (dono da terra) é uma questão imutável.
Essa construção vincula ao sertanejo práticas específicas que o distinguem em relação
à população da cidade – um processo que dialoga com os estudos sobre o Orientalismo, isto
é, “um modo de discurso baseado em instituições, vocabulário, erudição, imagens, doutrinas,
burocracias e estilos coloniais” (SAID, 2007, p. 28) – e que inventa o Outro, seus espaços e suas
paisagens. Esse discurso, criado na análise da relação entre Oriente e Ocidente, apresenta uma
hierarquia entre eles com a proposta de tornar o Oriente exótico e o Ocidente o modelo ideal.
Pode-se identificar que essa proposta de enxergar o Outro, em certa medida, a partir de um
olhar depreciativo e de tratar todas suas ações e comportamentos como peculiares e exóticos,
está presente na narrativa de Ramos, em que as relações sertão/litoral e interior/capital assumem
dualismo semelhante. Nota-se em Fabiano características majoritariamente negativas, o que
mostra que a construção dele ocorre com a desvalorização de seu papel na sociedade: “Passar
a vida inteira assim no toco, entregando o que era dele de mão beijada! Estava direito aquilo?
Trabalhar como negro e nunca arranjar carta de alforria!” (RAMOS, 2011, p. 99). Ao sertanejo de
Ramos apenas cabe a sobrevivência.
Essas características dialogam fortemente com as descrições da paisagem presentes na
obra. O sertão em Vidas Secas (RAMOS, 2011) é identificado como a representação do “verdadeiro” sertão. Uma reprodução que se quer fidedigna do interior do Nordeste brasileiro.
O sertão “real” apresentado por Ramos segue uma tradição de muitos anos, que se iniciou com as obras O Cabeleira, de Franklin Távora (1876), e A Fome, de Rodolfo Teófilo (1980),
e se ampliou com o sucesso de Os Sertões (1902), de Euclides da Cunha. Trata-se de espaço e
paisagem em que a falta de água e a vegetação morta são dominantes e, na maioria das obras
citadas, norteadoras das ações das personagens.
Vidas Secas teve os seus capítulos elaborados aleatoriamente e, apenas após a finalização
da obra, Ramos definiu a ordem da publicação. O pesquisador José Marcos Barros Devilart (2002)
cita uma pesquisa de Francisco de Assis Barbosa que comprova:
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 144-157, 2022
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Francisco de Assis Barbosa, ao vasculhar os originais, comprovaria a ausência
de seguimento na narrativa. “Baleia”, o nono capítulo, foi escrito em 4 de maio
de 1937. Um mês depois escreveria “Sinha Vitória”, o quarto capítulo. E “Mudança”, o primeiro na ordem de apresentação, só seria escrito em 16 de julho
do mesmo ano. Depois de todos os episódios reunidos, Graciliano ordenou-os
para a publicação. Por isso, alguns acham Vidas Secas um romance “desmontável”. (DEVILART, 2002, p. 2).
Esse caráter desmontável enfatiza ainda mais a importância do espaço, na obra, que segundo Moraes (1992), em seu livro O Velho Graça, indica “o fio condutor da narrativa, materializado
nos ásperos e cruéis embates do homem com a natureza da região” (MORAES,1992, p. 163).
Assim como o ciclo da seca organiza os capítulos e problematiza a ideia de independência dos
capítulos. De qualquer modo, é o espaço, a paisagem, a natureza, os que são os responsáveis
pelo andamento da obra.
Na obra de Euclides da Cunha, por exemplo, já se notava uma forte característica mantida
na de Ramos, e que poderíamos traduzir pelo conceito contemporâneo de topofobia, estudado
pelo geógrafo sino-estadunidense Yi-Fu Tuan (1982), que consiste em uma aversão às condições do espaço e da paisagem, e pela qual se analisam os comportamentos e as relações entre
o humano e o habitado. Desse modo, procura-se
um entendimento do mundo humano através do estudo das relações das pessoas com a natureza, do seu comportamento geográfico, bem como dos seus
sentimentos e ideias a respeito do espaço e do lugar (TUAN, 1982, p. 143).
Em relação a Os Sertões, a descrição do espaço tem um olhar depreciativo. Vindo da capital, Cunha se espantou com existência de uma população que morava em um espaço com
características tão hostis, considerando que a “região incipiente ainda está preparando-se para a
vida” (CUNHA, 2019, p. 472). Esse olhar de Cunha, presente majoritariamente na primeira parte
de sua obra, em que se apresenta a paisagem sertaneja, permite identificar a distinção feita por
ele entre o litoral e o interior. Percebe-se sua aversão ao sertão, não apenas a partir do enfoque
na seca, mas em outros aspectos, como indicado por Murari:
Neste texto, que mistura estranhamente a aridez dos termos técnicos e uma
linguagem que já foi rotulada com geografia trágica [...] Inicialmente, o espaço
nacional surge como duplicidade: por um lado, a exuberância do litoral, por
outro, o vazio do sertão. [...] Em segundo lugar, representa-se o espaço do sertão como negatividade, espaço estrangeiro, desconhecido, despovoado, isolado, incapaz de fixar o homem, ruptura abrupta na continuidade idealizada do
território nacional (MURARI, 2007, p. 51).
É nessa tradição de topofobia em relação ao sertão que Ramos apresenta o espaço e a
paisagem como fatores de opressão, que obrigam seus habitantes a um processo de constante
migração. A primeira descrição da paisagem é constituída de adjetivos ligados à morte: “A caatinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas que eram ossadas. O
voo negro dos urubus fazia círculos altos em redor de bichos moribundos” (RAMOS, 2011, p. 10).
Em outro momento, o azul do céu se tornava terrível, “aquele azul que deslumbrava e endoidecia
a gente” (RAMOS, 2011, p. 13). Do mesmo modo, o silêncio do sertão é causado pela falta de
“vida”: “A manhã, sem pássaros, sem folhas e sem vento, progredia num silêncio de morte. A faixa
vermelha desaparecera, diluíra-se no azul que enchia o céu” (RAMOS, 2011, p. 120). O medo vinha
também dos animais, em especial as aves: “A lembrança das aves medonhas, que ameaçavam
com os bicos pontudos os olhos de criaturas vivas, horrorizou Fabiano” (RAMOS, 2011, p. 126).
Flávio Augusto Serra
153
O sertanejo e sua indissociação com o seu espaço
A constante ênfase da relação da seca com a morte está explicita também no título da
obra, quando se ressalta que não apenas a terra tem a qualidade de estar seca, mas também as
vidas, em que se infere que o espaço retira das personagens a sua existência e, por conseguinte,
154
a seca se torna parte da vida do sertanejo. O enredo da obra segue a lógica da seca, que chega
e acaba com a vida do local, obrigando todos os seres a migrarem, em uma caminhada em direção à capital, onde a seca não chega. Essa migração ocorre pela expectativa de que longe do
sertão existe vida e abundância.
A dicotomia apresentada possibilita inferir a valorização da capital (a cidade), em relação
ao sertão (o rural), outra forte influência das produções euclidianas anteriores, e que pode ser
analisada pelo olhar dos estudos de Raymond Willians (1989). O historiador estuda como a visão
da relação entre a cidade e o campo foi mudando durante os anos e como elas são representadas
na literatura. Mesmo utilizando obras britânicas para desenvolver a sua tese, pode-se utilizar suas
reflexões para entender a relação elaborada por Ramos. Em um breve resumo sobre essa relação, Willians mostra como existem construções positivas e negativas sobre o campo e a cidade:
O campo passou a ser associado a uma forma natural de vida – de paz, inocência e virtude simples. A cidade associou-se à ideia de centro de realizações –
de saber, comunicações, luz. Também [se] constelaram poderosas associações
negativas: a cidade como lugar de barulho, mundanidade e ambição; o campo
como lugar de atraso, ignorância e limitação. O contraste entre campo e cidade, enquanto formas de vida fundamentais, remonta à Antiguidade clássica
(WILLIAMS, 1989, p. 11).
O sertão era onde: “a caatinga amarela, onde as folhas secas se pulverizavam, trituradas
pelos redemoinhos, e os garranchos se torciam, negros, torrados. No céu azul as últimas arribações tinham desaparecido. Pouco a pouco os bichos se finavam, devorados pelo carrapato”
(RAMOS, 2011, p. 117). A sobrevivência está no deslocamento, sempre em direção ao litoral/
capital. As perspectivas de um lugar melhor motivavam essa fuga, pois mudariam de vida, não
tinham apego à terra.
Chegariam a uma terra distante, esqueceriam a catinga onde havia montes
baixos, cascalho, rios secos, espinho, urubus, bichos morrendo, gente morrendo. Não voltariam nunca mais, resistiriam à saudade que ataca os sertanejos na
mata (RAMOS, 2011, p. 123).
A caracterização da paisagem, na obra, é feita de forma objetiva e com poucos adjetivos,
passando a ideia de vazio, com ausência de matas e poucas referências de animais da região.
Com essa combinação, Ramos traz um espaço a ser preenchido, reforçando a ideia de que o
espaço da obra representava o Nordeste “real”, principalmente devido a um evento climático que
ficou famoso em todo o Brasil. Afinal, a tradição do “sertão da seca” e a sua associação como o
Nordeste têm origem no evento climático que ficou conhecido como a “grande seca”, um período
de estiagem que ocorreu de 1877-1879. Diferente de outras secas, esse evento atingiu fortemente as elites nordestinas e, como cita Albuquerque Júnior, foi utilizado politicamente por elas:
o uso desse fenômeno como argumento e justificativa para a reivindicação de
recursos, obras públicas, cargos públicos e criação de instituições que vêm em
benefício dos interesses das elites do espaço da seca, que tende a se ampliar
já com a ocorrência do fenômeno, uma vez que a seca deixa de ser do Ceará e
passa a ser do Norte (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2019, p. 22).
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 144-157, 2022
Artigos
A “grande seca” se tornou nacionalmente conhecida pela ampla cobertura jornalística do
evento, com destaque para aquela realizada pelo jornal Gazeta de Notícias, do Rio de Janeiro,
que enviou à região o jornalista José do Patrocínio, que se notabilizou pelas matérias com forte
apelo social e com críticas aos poderes públicos. Ao final de sua passagem pelas regiões afetadas
pela seca e com uma grande quantidade de dados em relação ao evento, Patrocínio lançou o
romance Os Retirantes (1879), que apenas reforçou o seu importante papel na transformação da
seca em uma temática nacional e não apenas uma questão local. É nesse contexto que Ramos
apresenta o sertão com forte apelo social e envolto na questão do espaço. O sertão da seca é o
que oprime o homem e permite a opressão por outros homens – no caso o estado e os patrões.
As descrições não são longas, mas estão em todos os capítulos, na forma das cores, da
vegetação e da topografia. As cores utilizadas na descrição da paisagem se afastam de uma
tradição idílica, na qual o azul, tradicionalmente vinculado à pureza, assume uma característica
negativa quando relacionado com a falta de chuva: “Antes de olhar o céu, já sabia que ele estava
negro num lado, cor de sangue no outro, e ia tornar-se profundamente azul. Estremeceu como
se descobrisse uma coisa muito ruim” (RAMOS, 2011, p. 210). A vegetação não apresenta os
tons de verde, mas sim as cores vermelha e amarela, distanciando-se de sua representação mais
tradicional e romântica, dificultando a criação de uma identificação e reforçando a necessidade
de estar em movimento. Esse distanciamento ocorre quando não se reconhece a vegetação como
tal (como resistência da vida), mas algo que se mistura com os demais elementos da paisagem,
tornando tudo uma coisa só. Não existe uma contraposição no ambiente, apenas a opressão que
todos os elementos causam nos personagens, assim como a ênfase na qualificação negativa
das cores do ambiente.
O mulungu do bebedouro cobria-se de arribações. Mau sinal, provavelmente o
sertão ia pegar fogo. Vinham em bandos, arranchavam-se nas árvores da beira
do rio, descansavam, bebiam e, como em redor não havia comida, seguiam
viagem para o sul. O casal agoniado sonhava desgraças. O sol chupava os poços, e aquelas excomungadas levavam o resto da água, queriam matar o gado
(RAMOS, 2011, p. 109).
Nesse trecho, observa-se no trajeto das aves os principais elementos da paisagem do sertão apresentado na obra. A árvore mulungu é conhecida como fonte de alimento para diversas
aves e, aqui, é um elemento natural que resiste à seca; entretanto, perde o aspecto de prover
alimentos e se torna “mau sinal”. A grande quantidade de aves em uma árvore próxima ao bebedouro indica o conflito entre pessoas e animais pela sobrevivência no sertão. A ausência dos
frutos da árvore e da água do bebedouro não permitem a permanência das aves naquele local
que, portanto, seguem o mesmo caminho dos retirantes. Tendo as aves como inimigas e o sol
como o único que se “alimenta” da água dos poços, fica evidente o caráter negativo da natureza,
como na passagem a seguir:
Fabiano espiava a catinga amarela, onde as folhas secas se pulverizavam, trituradas pelos redemoinhos, e os garranchos se torciam, negros, torrados. No
céu azul as últimas arribações tinham desaparecido. Pouco a pouco os bichos
se finavam, devorados pelo carrapato. E Fabiano resistia, pedindo a Deus um
milagre (RAMOS, 2011, p. 117).
Além da visão negativa da natureza, o trecho acima possibilita identificar a questão da
luta do homem contra a natureza. De modo a ressaltar a força do homem, a natureza ganha
um caráter de superioridade, em que a sobrevivência demonstra a resistência do homem em
enfrentar as dificuldades. Com uma disputa desigual entre o sertão, que é apresentado com
Flávio Augusto Serra
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O sertanejo e sua indissociação com o seu espaço
amplitude e repetição, e o homem, tem-se a ideia de um sertão sem limites, que persegue
os personagens, o que novamente ressalta a força do sertanejo. Ramos se utiliza da repetição
como forma de demonstrar a grandiosidade do sertão, citando, principalmente, as plantas que
156
sobrevivem à seca: “Os mandacarus e os alastrados vestiam a campina, espinho, só espinho”
(RAMOS, 2011, p. 120); “Quis acordá-lo e perguntar, mas distraiu-se olhando os xiquexiques
e os mandacarus que avultavam na campina” (RAMOS, 2011, p. 41). Tudo é seco ao redor. E o
patrão era seco também, arreliado, exigente, ladrão, espinhoso como um pé de mandacaru. Essa
presença constante indica um reforço das características locais e apresenta um contraponto
entre os homens que se deslocam e a natureza que se mantém.
Os elementos da paisagem do sertão promovem o exercício proposto por Michael Collot
(2013). A geração de uma visão do sertão gera uma ideia na recepção (visão individual), junto
com a ideia coletiva do sertão proposto por Cunha e por outros autores. De tal modo que a junção
das duas se complementa, tornando o sertão de Ramos uma composição coletiva e que reforça
a visão da seca como paisagem primeira relacionada ao sertão nordestino.
Antonio Candido (2006) reconhece em Ramos “um paisagista seguro, pois no seu texto a
paisagem entra como coisa necessária, vinculada funcionalmente à ação” (CANDIDO, 2006, p.
140); e, em Vidas Secas, esse vínculo fica evidente. Corroborando com e ampliando as considerações de Candido, pode-se estabelecer um diálogo entre a paisagem e a construção do espaço
realizada por Ramos em sua obra, sendo a aproximação entre geografia e literatura relativamente
recente, tendo em Collot uns dos autores mais proeminentes nessa proposta. Para ele, a paisagem é uma construção que evolve percepção, concepção e ação, que auxilia na formação de
uma estrutura de sentidos. Aplicando a proposta de Collot, percebe-se que a Região Nordeste,
analisada com o olhar da tradição de seca, reproduz a paisagem presente nas obras anteriores,
sendo Vidas Secas uma obra fundamental para a consolidação do sertão opressor.
Em relação a caracterizar Fabiano como personagem geográfica, percebe-se que a relação “espaço versus personagem” é de interdependência, já que as ações da personagem dão
sentido ao espaço, assim como o espaço dá o significado à personagem. Em um exercício teórico, pode-se identificar que as características de Fabiano dificilmente teriam relação com outro
espaço, de modo que seu deslocamento ao litoral/cidade demandaria uma ressignificação de
sua constituição física e de visão do mundo. Esse estranhamento é perceptível quando ele e a
família vão na festa de Natal na cidade e se sentem deslocados em um momento de relativa
tranquilidade. Entende-se que o estranhamento ultrapassa as dificuldades em se relacionar, que
já foram analisadas neste trabalho, e permite assumir que o espaço da seca e o deslocamento
no sertão são inerentes a Fabiano.
Comentário final
Acredito que Fabiano permanece como uma grande influência na visão atual do povo e
do espaço nordestino. Essa influência se deve a vários fatores. No entanto, considera-se que isso
ocorra pela interdependência entre a personagem e o espaço e a paisagem, como apresentado neste artigo. Essa relação permanece, já que o sertão opressor (influenciado pelos relatos
de Euclides da Cunha e corroborados por Ramos) foi assimilado pela cultura nacional, assim
como o papel de Fabiano enquanto representação do sofrimento humano e da resiliência em
relação ao seu espaço.
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 144-157, 2022
Artigos
Referências
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WILLIAMS, R. O Campo e a Cidade na história e na literatura. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989.
Flávio Augusto Serra
Paisagismo
dos orixás:
esboço para uma
definição não completa
1
Céline Veríssimo
¡DALE!, MALOCA, PPGPD / UNILA
Mauricio Santos
MALOCA / UNILA
1 Em Memória de Mãe Marina de Ogum e dedicado à comunidade candomblecista de Foz do Iguaçu.
Paisagismo dos orixás: esboço para uma definição não completa
Resumo
Para além de um espaço religioso, o terreiro de Candomblé sempre foi um espaço doméstico
comunitário de resistência histórica contra a opressão externa colonizadora na luta pela libertação do Povo de Santo – e ainda o é, até os dias de hoje. Observando-se as práticas no Ilê Asé
Ojú Ogum Fúnmilaiyó em Foz do Iguaçu, no Paraná, para resistir à marginalização, o espaço
exterior do terreiro inclui, em ambas as suas dinâmicas doméstica e religiosa, um paisagismo
comestível, ritualístico, sagrado e medicinal, um cotidiano doméstico e um outro, religioso, bem
como a criação de renda familiar/comunitária. Este artigo debruça-se, por um lado, sobre o enquadramento histórico dos terreiros de Candomblé, com vistas ao reconhecimento e à valorização desses espaços como patrimônio arquitetônico e paisagístico afro-latino. Por outro, propõe
um olhar crítico sobre as dinâmicas paisagísticas sagradas, ritualísticas, de cura, de resistência
e de autonomia no espaço exterior dos terreiros de Candomblé, no Brasil. Esta análise recorre à
teoria da ecologia política orientadas ao giro decolonial, sobre a luta dos povos originários e tradicionais pelos direitos humanos, os direitos da natureza; e à ecologia de saberes, que emerge
da pluriculturalidade e dos interconhecimentos além conhecimentos ocidentais, com vista a
uma igualdade biocêntrica. As perspectivas hegemônicas de Estado, capitalismo global e patriarcado da modernidade eurocêntrica, caracterizam o desenvolvimento como a naturalização
da desigualdade. Deste modo, os povos marginalizados defendem seus recursos naturais para
evitar a perda de um patrimônio biocultural irrecuperável e combater a continuidade histórica
de opressão, o epistemicídio, o racismo ambiental e prover a resistência espacial. As ações higienistas, antidemocráticas e ultraliberais, da atual conjuntura política do país, agravam os riscos
do Povo de Santo, na luta por uma sociedade igualitária, libertária e autogestionada. O esboço
para uma definição não completa de Paisagismo dos Orixás convida a imaginar outras vidas e
outros mundos.
Palavras-chave: Paisagismo dos orixás; Terreiro de Candomblé; Espaço Exterior do Terreiro;
Ecologia Política Decolonial; Ecologia de Saberes.
Paisajismo de los orixás: bosquejo de una definición no completa
Resumen
Además de ser un espacio religioso, el terreiro de Candomblé siempre ha sido un espacio doméstico comunitario de resistencia histórica contra la opresión colonizadora externa en la lucha por la liberación del Pueblo de Santo - y lo sigue siendo, hasta los días de hoy. Observando
las prácticas en Ilê Asé Ojú Ogum Fúnmilaiyó en Foz do Iguaçu, Paraná, para resistir la marginación, el espacio exterior del terreiro incluye, tanto en su dinámica doméstica como religiosa, un paisajismo comestible, ritualista, sagrado y medicinal, una rutina doméstica y una
religiosa, así como la creación de ingresos familiares / comunitarios. Este artículo se centra, por
un lado, en el marco histórico de los terreiros de Candomblé, con miras a reconocer y valorar
estos espacios como patrimonio arquitectónico y paisajístico afrolatino. Por otro lado, propone una mirada crítica a la dinámica sagrada, ritualista, curativa, de resistencia y autonomía
en el espacio exterior de los terreiros de Candomblé, en Brasil. Este análisis utiliza la teoría
de la ecología política orientada al giro decolonial, sobre la lucha de los pueblos originarios
y tradicionales por los derechos humanos, los derechos de la naturaleza; y la ecología de los
saberes, que surge de la pluriculturalidad y del interconocimiento, más allá del conocimiento
occidental, con miras a la igualdad biocéntrica. Las perspectivas hegemónicas del Estado, el
capitalismo global y el patriarcado de la modernidad eurocéntrica caracterizan el desarrollo
como la naturalización de la desigualdad. De esta manera, los pueblos marginados defienden sus recursos naturales para evitar la pérdida de un patrimonio biocultural irrecuperable
y combatir la continuidad histórica de la opresión, el epistemicidio, el racismo ambiental y
brindar resistencias espaciales. Las acciones higienistas, antidemocráticas y ultraliberales de
la actual situación política de Brasil agravan los riesgos del Pueblo Santo en la lucha por una
sociedad igualitaria, libertaria y autogestionaria. El boceto de una definición incompleta del
Paisajismo de los Orixás nos invita a imaginar otras vidas y otros mundos.
Palavras clave: Paisajismo de los Orixás; Terreiro de Candomblé; Espaço Exterior del Terreiro;
Ecología Política Decolonial; Ecología de los Saberes.
Landscaping of the orixás: outline for a non-complete definition
Abstract
In addition to being a religious space, the Candomblé terreiro has always been a community domestic space of historical resistance against the external colonizing oppression in the
struggle for the liberation of the Santo People – and it still is, to this day. Observing the practices at Ilê Asé Ojú Ogum Fúnmilaiyó in Foz do Iguaçu, Paraná, to resist marginalization, the
terreiro outdoor space includes, in both its domestic and religious dynamics, an edible, ritualistic, sacred and medicinal landscaping, a domestic routine and a religious one, as well as
the creation of family/community income. This article focuses, on the one hand, on the Candomblé terreiros historical background, aimed at recognizing and valuing these spaces as
an Afro-Latin architectural and landscape heritage. On the other hand, it proposes a critical
look at the sacred, ritualistic, healing, resistance and autonomous landscape dynamics in the
Candomblé terreiros outdoor space, in Brazil. This analysis is based on a decolonial political
ecology approach, regarding the struggle of indigenous and traditional peoples for human
rights and the rights of nature. The ecology of knowledges emerges from the pluriculturality and inter-knowledge, beyond Western universality, with a view to biocentric equality. The
hegemonic perspectives of the State, global capitalism and the patriarchy of Eurocentric modernity, characterize development as the naturalization of inequality. Likewise, marginalized
communities fight for the conservation of their territories and natural resource-base, in order
to avoid the loss of an unrecoverable biocultural heritage and combat the historical continuity
of oppression, epistemicide, environmental racism to provide spatial resistance. The hygienist,
anti-democratic and ultra-liberal actions of the current political situation in Brazil, aggravate
People of Santo risks in their struggle for an egalitarian, libertarian and self-organized society.
The sketch for an incomplete definition of Landscaping of the Orixás invites us to imagine different lives and different worlds.
Keywords: Landscaping of the Orixás; Candomblé Terreiro; Terreiro Outdoor Space;
Decolonial Political Ecology; Ecology of Knowledges.
Foto: Erivan de Jesus Santos Junior
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Foto: Erivan de Jesus Santos Junior
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Artigos
Introdução
Para além de um espaço religioso, o terreiro de Candomblé sempre foi um espaço doméstico
comunitário de resistência histórica contra a opressão externa colonizadora na luta pela libertação
do Povo de Santo – e ainda o é, até os dias de hoje. O espaço exterior do terreiro inclui, em ambas as
suas dinâmicas doméstica e religiosa, um paisagismo comestível, ritualístico, sagrado e medicinal,
um cotidiano doméstico e um outro, religioso, bem como a criação de renda familiar/comunitária.
Este artigo debruça-se, por um lado, sobre o enquadramento histórico dos terreiros de Candomblé,
com vistas ao reconhecimento e à valorização desses espaços como patrimônio arquitetônico e
paisagístico afro-latino. Por outro, propõe um olhar crítico sobre as dinâmicas paisagísticas sagradas,
ritualísticas, de cura, de resistência e de autonomia no espaço exterior dos terreiros de Candomblé,
no Brasil. Esta análise recorre à teoria da ecologia política orientadas ao giro decolonial, sobre a luta
dos povos originários e tradicionais pelos direitos humanos, os direitos da natureza; e à ecologia
de saberes, que emerge da pluriculturalidade e dos interconhecimentos além conhecimentos
ocidentais, com vista a uma igualdade biocêntrica. As perspectivas hegemônicas de Estado, capitalismo global e patriarcado da modernidade eurocêntrica, caracterizam o desenvolvimento como
a naturalização da desigualdade. Deste modo, os povos marginalizados defendem seus recursos
naturais para evitar a perda de um patrimônio irrecuperável e combater a continuidade histórica de
opressão, o epistemicídio, o racismo ambiental e prover a resistência espacial. As ações higienistas,
antidemocráticas e ultraliberais, da atual conjuntura política do país, agravam os riscos do Povo de
Santo, na luta por uma sociedade igualitária, libertária e autogestionada. O esboço para uma definição não completa de Paisagismo dos Orixás convida a imaginar outras vidas e outros mundos.
Integrado na linha de pesquisa Decolonizar paisagens, territórios e corpos da América Latina
do Grupo de Pesquisa ¡DALE! – Decolonizar a América Latina e seus Espaços, e, também, em uma das
linhas de pesquisa do Grupo de Pesquisa MALOCA (Políticas públicas, território, direitos humanos
e sociais), a pesquisa em andamento tem como objetivo principal pesquisar o espaço exterior dos
terreiros de Candomblé, cujos resultados prévios, aqui apresentados, provêm de experiências no
terreiro Ilê Asé Ojú Ogum Fúnmilaiyó em Foz do Iguaçu, Paraná, focados nas dinâmicas paisagísticas, ritualísticas e de autonomia nessa comunidade. Pesquisas anteriores demonstraram que o
Espaço Exterior Doméstico, ao integrar agricultura e pequenos negócios familiares, contribui para
a segurança e a soberania alimentar e nutricional da família, também produzindo um microclima
agradável e podendo levar à regeneração ambiental em espaços de vulnerabilidade socioeconômica
e socioambiental (VERÍSSIMO, 2013).
Trata-se de um processo de auto-organização e autonomia que recorre à memória biocultural,
neste caso dos terreiros de Candomblé e com base em práticas espaciais dessa religião afro-brasileira. Assim, este projeto assume como indispensável a discussão espacial dos direitos humanos
relacionando o espaço exterior doméstico, o paisagismo e o Candomblé no combate à fome, ao
racismo, à intolerância religiosa, e ao machismo. O estudo da dimensão paisagística e ritualística
no espaço exterior dos terreiros tem como horizonte: (a) o direito à alimentação, pela soberania
e a segurança alimentar e nutricional; (b) o direito à liberdade religiosa; (c) o direito à saúde; (d)
o direito à manutenção dos saberes tradicionais e, por fim, (e) o direito à integração com o meio
ambiente – todos aqui compreendidos como essenciais para a produção de um habitat humano
justo, capaz de prover os recursos e as condições para a autonomia, a soberania e a regeneração
socioambiental. Daqui, cruzando evidências empíricas obtidas de dentro da comunidade e críticas
obtidas da discussão sobre conceitos-chave, buscamos obter uma definição não completa de Paisagismo dos Orixás – que aqui propomos como ponto de partida para uma compreensão-outra,
na contracorrente do entendimento hegemônico, moderno e excludente de paisagismo.
Céline Veríssimo e Mauricio Santos
163
Paisagismo dos orixás
Contexto
Entre os séculos XVI e XIX, a América Latina e o Caribe receberam aproximadamente cinco
164
milhões de africanos através do mercado escravo, originários de diversas regiões que, atualmente,
correspondem aos países de Angola, Congo, Moçambique, Benin, Togo, Nigéria e Senegal, entre
outros, dando lugar a três grandes matrizes culturais – Yoruba, Bantu e Ewe Fon (SEPPIR, 2013).
Estas comunidades caracterizam-se por padrões civilizatórios de gênese africana que consistem
na vida comunitária, na ajuda mútua, na reciprocidade e em uma economia familiar de subsistência. Continuamente subjugados à violência do sistema escravista e do racismo pós-abolição,
que perdura até os dias de hoje, as comunidades afrodescendentes, cuja população atual é de
aproximadamente 200 milhões no subcontinente, sendo metade no Brasil (IBGE, 2015), geração
após geração perpetuaram cosmovisões, conhecimentos e práticas ancestrais que fazem destes
territórios e expressões arquitetônicas um importante patrimônio – que continua invisibilizado
e crescentemente ameaçado.2 Opressão e resistência – do mesmo modo que, historicamente,
na África, primeiramente os estados feudalistas pré-capitalistas, mais tarde o colonialismo e a
escravatura e, atualmente, a discriminação racial, a pressão dos grandes agentes econômicos
internacionais e as concessões de terras – continuam a explorar as pessoas e bens comuns através
de extrativismos, infraestruturas, monocultivos intensivos e transgênicos, energia hidroelétrica
e pressão imobiliária.
Compreender a marginalização e a
resistência espacial afro-religiosa através das plantas
Historicamente, a população do continente africano enfrentou a opressão e a segregação
socioespacial e reagiu de uma maneira que reforçou, ao invés de desmantelar, os seus valores
tradicionais. Desde os tempos pré-coloniais, a estratégia da população para escapar à alteração
ambiental e às perturbações da política externa foi reinventar a tradição, baseando-a nos princípios da resistência e autonomia. Por exemplo, no caso de Moçambique (VERISSIMO, 2012),
a resistência espacial expressa-se através do desenvolvimento de povoações descentralizadas,
envolvendo a apropriação da terra como espaço doméstico e a organização espontânea do
espaço exterior doméstico e dos bairros – estratégias para proteger a população de violências
coloniais consecutivas. Na tentativa de desenhar uma ponte entre as evidências de Moçambique
e as religiões afro-brasileiras, emergem as seguintes hipóteses de investigação: (a) da mesma
forma que o povo moçambicano em cenários de crise e opressão externa adotaram uma estratégia de resistência espacial buscando refúgio em locais suburbanos e periurbanos, não só
para a sobrevivência e a liberdade, mas também para a preservação das suas formas de vivência
coletiva, de religiosidade e de cultura próxima da natureza, os afrodescendentes também responderam espontaneamente por meio de uma resistência espacial, com base no conhecimento
ancestral partilhado; (b) existe uma relação inata entre a humanidade e a natureza que, através
da transferência geracional dos conhecimentos sobre a natureza, conduzem à autonomia, ao
empoderamento e ao bem viver; e (c) como poderá um mapeamento de espaços de resistência
2 Nas poucas exceções encontram-se o Quilombo dos Palmares, em Pernambuco, no Brasil, e San Basílio
de Palenque, em Bolívar, na Colômbia. Ambos os casos demonstram a sua gênese de resistência contra a
opressão e a subjugação: fugidos dos maus tratos e abusos da escravatura desenvolveram assentamentos
dispersos no meio rural. Classificado pela UNESCO como patrimônio da humanidade, em 2005, San Basilio
de Palenque conta com 3.500 habitantes que conservam a língua (criollo palenquero : cruzamento entre
espanhol, bantu e kikongo), a medicina tradicional, a dança, a gastronomia, a economia e a educação, e,
provavelmente, algumas formas de construção das habitações.
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 158-177, 2022
Artigos
ancestral desenvolvido pelo Povo de Santo desafiar as prerrogativas de poder e recuperar os
direitos históricos à terra, à natureza, à religiosidade e à ancestralidade?
Cruzamos resultados entre esta pesquisa e outras desenvolvidas anteriormente (MOASSAB,
2011; 2014; 2015; VERÍSSIMO, 2012; 2014; 2015; VERÍSSIMO; MOASSAB, 2017; VERÍSSIMO;
NAME, 2017) para a identificação de pontos comuns que possam demonstrar, ou não, as hipóteses de pesquisa. As religiões afro-brasileiras e os terreiros de Candomblé são entendidos como
processos de resistência e libertação. As religiões afro-brasileiras são decorrentes da diáspora
negra e são indissociáveis das práticas africanas e do período de escravização no Brasil. Essas
comunidades recompuseram criativamente muitas práticas culturais, perpetuaram memórias
e referências africanas e afro-brasileiras. Entre as várias religiões afro-brasileiras, o Candomblé
ocorre não só em todos os estados do Brasil, mas também em outros países – tais como a Argentina e o Paraguai, na região da tríplice fronteira com o Brasil, por exemplo. Este artigo resulta de
um projeto de pesquisa que se deve à demanda dos/das próprios/as religiosos/as de Candomblé,
em Foz do Iguaçu, que reforçaram a importância do reconhecimento científico sobre as plantas
e seus importantes usos e significados.
Podemos considerar os terreiros como espaços “rurbanos”, ou seja, ficam entre o rural,
por conta dos alimentos e da mata, e o urbano, devido à necessidade de compra de produtos
no mercado. Como algumas lideranças religiosas costumam dizer, são parecidos com os quilombos, porque são frutos da resistência epistemológica e física, historicamente decorrida da
colonialidade. Considerando as muitas mulheres negras, pobres que são as sacerdotisas destas
comunidades, além dapresença proeminente de grupos de jovens e idosos/as LGBT+, os terreiros
continuam, até os dias de hoje – desde o século XVIII –, sendo espaços de resistência e liberdade
para corpos/pessoas subalternizadas.
Figura 1: Dinâmicas sagradas e ritualísticas do paisagismo no Espaço Exterior Doméstico do Terreiro
Ogum Funmilayo em Foz do Iguaçu (Fonte: Maurício Santos, 2018)
Céline Veríssimo e Mauricio Santos
165
Paisagismo dos orixás
Em Moçambique, há a noção de “casa-aldeia” (VERÍSSIMO, 2012), e para o Povo de Santo, no contexto brasileiro, há também uma noção de “casa-aldeia” do ponto de vista doméstico
coletivo, mas principalmente no que se refere ao culto das divindades chamadas de caboclos,
166
que são os espíritos afro-índios-brasileiros que proclamam os terreiros. Os terreiros, por sua vez,
são os espaços onde acontecem as cerimônias religiosas afro-brasileiras – como suas aldeias, em
referência aos índios brasileiros (Figura 1). Os caboclos possuem, assim, uma forte relação com
as plantas, mas outras divindades também: sobretudo Ossain (a divindade da flora), Oxóssi (divindade da fauna) e as Iyámi (que são cultuadas em árvores); algumas árvores-divindades, como
é o caso de Iroko (divindade da Gameleira Branca), Danko (que é o Bambuzal), Apaoka (que é a
Jaqueira), além da Jurema, da Akoko, do Obi e do Orobô (árvores extremamente consagradas
nas religiões afro-brasileiras) (Figura 2).
Figura 2: Árvores-divindades: Danko (Bambuzal), Iroko (Gameleira Branca) e Opaoka (Jaqueira)
(Fonte: Googleimages, 2018).
Candomblé e ecologia política decolonial
Este artigo recorre à teoria para entender o estudo de caso e a realidade no terreno para
demonstrar a teoria. Para isso, fundamenta-se numa abordagem epistemológica voltada à autonomia e à emancipação dos povos subalternos, num diálogo com autores que confrontam a
modernidade eurocêntrica e que têm trabalhado na construção de uma epistemologia do Sul.
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 158-177, 2022
Artigos
Consequentemente, os principais autores a guiarem este projeto são, por um lado, aqueles da
perspectiva crítica da modernidade, como Aníbal Quijano (2005), Enrique Dussel (1993), Walter
Mignolo (2005) e Edgardo Lander (2005); e, por outro, aqueles que relacionam a dominação
colonial e a criação de raça, como Frantz Fanon (2006) e de Achille Mbembe (2001). Neste enquadramento, o enfoque ganha contornos na teoria da ecologia política decolonial, vital para
entender terminologias como racismo ambiental e epistemicídio, bem como a resistência nos
espaços das religiões afro-brasileiras. Para tal, recorremos a Arturo Escobar (2012), Boaventura de
Sousa Santos (2005; 2006; 2007), Eduardo Gudynas (2019), Hector Alimonda (1994) e Enrique
Leff (1998), entre outros. Por outro lado, e para melhor entender a religião dos orixás e as dinâmicas nos terreiros de Candomblé, debruçamo-nos sobre os seguintes autores: Pierre Fatumbi
Verger (1995), René Ribeiro (1978), Nina Rodrigues (1898), Agenor Miranda Rocha ([1928]
2000), Reginaldo Prandi (2001) e Mãe Stella de Oxóssi (2014), entre outros. O enquadramento
teórico apoiado neste autores busca demonstrar, junto com as evidências empíricas nos terreiros, como a evolução histórica da economia política, na América Latina em geral e no Brasil em
particular, desde a colonização europeia até os dias de hoje, se caracteriza pela subalternização
de povos. No âmbito desta pesquisa, o Povo de Santo e as suas tradições, o espaço do terreiro de
Candomblé conformam um caso em que a dialética da sociedade humana com a natureza tem
se mantido como um processo de resistência histórica, apoiado pela religiosidade afro-brasileira,
cujas práticas estão diretamente associadas aos elementos naturais.
Figura 3: Assentamento de Exu e de Iyami do terreiro (Fonte: Céline Veríssimo, 2019).
Céline Veríssimo e Mauricio Santos
167
Paisagismo dos orixás
Paisagismo dos/as orixás e a ecologia de saberes
Aqui é denunciada a violência histórica contra o Povo de Santo, resultante da hegemonia
168
moderna-colonial, capitalista e patriarcal, que se mantém até os dias de hoje na lógica ocidental
excludente, a que Boaventura Sousa Santos denomina de pensamento abissal da epistemologia
do Norte, através do qual se geram dois universos radicalmente distintos – e que nos permite
pensar além destes através das epistemologias do Sul.3 No entanto, também apontamos que
o paisagismo dos/as orixás, no espaço exterior do terreiro, confronta a “monocultura da ciência
moderna com uma ecologia de saberes” (SANTOS, 2007, p. 22). A ecologia de saberes, como
pensamento pós-abissal, contrapõe-se ao epistemicídio4 histórico da modernidade/colonialidade,
propondo o reconhecimento da pluralidade de conhecimentos, que interagem de forma dinâmica
e complexa entre si. Por isso, Santos entende que na ecologia de saberes existe o interconhecimento. No terreiro de Candomblé os interconhecimentos extrapolam os humanos e rumam para
as árvores/folhas-humanos-divindades, além de qued humanos podem ser humanos-árvores/
folhas-divindades libertas das dualidades convencionais do pensamento moderno. Por isso,
pressupõe uma compreensão mais profunda e complexa das possibilidades entre seres vivos
humanos e não humanos com seres não vivos.
Nesse sentido, o papel da ecologia de saberes, no paisagismo dos/as orixás, é: (1) através
da combinação da religiosidade e da vida doméstica, no espaço do terreiro, praticaras condições
no mundo real que permitem exercer a ancestralidade e alargar o horizonte de possibilidades
de operar face a externalidades adversas (resistência e luta); (2) ao privilegiar a força interior (espírito-corpo), em vez da exterior (matéria-corpo), intensificar a capacidade e a vontade na luta
e de tecer cenários auspiciosos; e (3) prover a copresença e a pluralidade de mundos, tempos e
saberes do pensamento pós-abissal, o que implica a articulação e a solidariedade nas lutas contra
a colonialidade e o capitalismo e, nesse processo, desenvolver a capacidade de abrir caminhos
na direção de um mundo pós-abissal.
Aproximação (etno)botânica às
vozes das folhas no Ilê Asé Ojú Ogum Fúnmilaiyó
Terreiros de todo o Brasil possuem um repertório etnobotânico assemelhado. Entretanto, os
dados que aqui partilhamos resultam de aproximações em andamento junto aos/às religiosos/as
do Ilê Asé Ojú Ogum Funmilaiyó, em Foz do Iguaçu, no Paraná. Em projeto de extensão realizado
na UNILA, em 2014 (MOASSAB, 2014), foram mapeados 16 terreiros em Foz do Iguaçu, sendo que
6 destes são de Candomblé e 10 de Umbanda. Os terreiros, na região, surgiram no final dos anos
de 1960 e início dos anos de 1970, quando religiosos/as vieram em busca de trabalho, atraídos
principalmente pela grande necessidade de trabalhadores para a construção da Usina Hidrelé-
3 “Uma epistemologia do Sul assenta-se em três orientações: aprender que existe o Sul; aprender a ir para
o Sul; aprender a partir do Sul e com o Sul”. Pressupõe, antes de mais nada, entender que o “conceito de Sul
não aponta exclusivamente a uma geografia. É uma metáfora do sofrimento humano causado pelo capitalismo, pelo colonialismo e pelo patriarcado, e da resistência a essas formas de opressão” (SANTOS, 1995).
4 Boaventura de Sousa Santos argumenta que a modernidade configurou um modelo de pensamento
eurocêntrico universalizador, como se a sociedade mundial fosse uma única cultura, uma monocultura que
invisibilizou e impediu outros saberes. Conduziu-se, assim, a um epistemicídio, ou seja, “à destruição de algumas formas de saber locais, à inferiorização de outros, desperdiçando-se, em nome dos desígnios do colonialismo, a riqueza de perspectivas presente na diversidade cultural e nas multifacetadas visões do mundo por
elas protagonizadas. Assim, “um epistemicídio maciço tem vindo a decorrer nos últimos cinco séculos, e uma
riqueza imensa de experiências cognitivas tem vindo a ser desperdiçada” (2007, p. 29).
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 158-177, 2022
Artigos
trica de Itaipu. Advindos, principalmente, dos estados do Nordeste, de São Paulo e do Rio Grande
do Sul, alguns/mas desses/as retornaram e continuaram suas trajetórias religiosas nos locais de
origem, enquanto que outros se fixaram em Foz do Iguaçu e deram início a novas comunidades.
Esse foi o caso da Mãe Marina de Ogum, Iyálorixá do Ile Asé Oju Ogum Funmilaiyó, que o
fundou em 1993, no bairro Morumbi I (Figuras 3 e 4). Tratou-se na verdade de uma transferência,
uma vez que o terreiro já funcionava na Zona Sul de São Paulo. Essa comunidade de matriz africana, até o presente, conta com mais de 100 filhos/as de santo iniciados/as e aproximadamente
30 frequentadores/as e/ou praticantes diários. O terreiro está implantado em 3 lotes urbanos,
cada um com aproximadamente 400 metros quadrados, com a seguinte disposição: o primeiro
lote trata-se do terreiro chão (barracão) (Figura 5) e, ali, é onde acontecem as cerimônias públicas e privadas e o lugar da cozinha e a casa do caboclo (Figura 6); o segundo lote, que fica no
centro, é o espaço exterior do terreiro e, ali, ficam maiormente as plantas utilizadas no jardim
das folhas (Figura 7), bem como as cerimônias e festas que acontecem ao ar livre (Figura 1) e
atividades domésticas; o último lote, por fim, é o da residência de Mãe Marina de Ogum. Esses
três espaços, contudo, são usados pelos/as familiares da mãe-de-santo e dos/as religiosos/as, ali
também se inserindo os/as participantes do Afoxé Ogum Funmilaiyó que vão ao terreiro para
aprender a dançar e tocar ritmos religiosos afro-brasileiros.
Figuras 4 e 5: Maquete do terreiro elaborada por duas estudantes Paraguaias do CAU/UNILA (Jéssica Belen Alvarez e Valéria Barreto Rodriguez); vista do Ilê Asé Ojú Ogum Fúnmilaiyó preparado para cerimônia
aberta à comunidade (Fonte: Céline Veríssimo, 2019 e Maurício Santos, 2019).
Céline Veríssimo e Mauricio Santos
169
Figura 6. Interior
do barracão onde
se dão as principais
das cerimônias:
Mariwo na entrada
de quarto de orixá e
filho de santo com
estudante do Curso
de Arquitetura
e Urbanismo da
UNILA, mapeando
as dinâmicas do
espaço no terreiro e
seus significados.
Figura 7:
Comunidade
matriarcal. Mãede-santo prepara
e dispõe oferendas
na Casa do Caboclo
Boiadeiro 7 Laços,
a partir do qual foi
fundado o terreiro
(Fonte: Maurício
Santos, 2019).
Figura 8: Jardim das
folhas no espaço
exterior do terreiro
(Fonte: Céline
Veríssimo, 2019).
Paisagismo dos orixás
A noção de paisagismo das/os orixás é uma elocução advinda das religiões afro-brasileiras, que convida a pensar o paisagismo e o espaço exterior do terreiro desde as perspectivas do
universo do Candomblé que, devido ao segredo, serão inatamente sempre incompletas. Apre-
172
sentamos algumas perspectivas sobre a classificação das plantas, comumente conhecidas por
folhas: os/as religiosos/as afro-brasileiros/as chamam todas as plantas de Ewê , e as consideram
subdividindo-as em: Ewê Aféfé as folhas do ar que são consagradas a Oyá, Oxaguian; Ewê Iná as
folhas do fogo, consagradas a Exu, Ogum, Oyá e Xangô; Ewê são as folhas da água, consagradas
a Iemanjá, Oxum, LOgumede, Obá, Oxumare, Yewa e Oxalufan; Ewê Aiyê são as folhas da terra,
consagradas a Oxóssi, Obaluaie, Omolu, Nanã. Portanto, as Ewê , podem ser classificadas como
quentes ou frias, são igualmente classificadas como masculinas ou femininas, pois se possuírem
formatos mais estreitos serão consideradas como masculinas e se possuírem formatos mais
largos serão consideradas como femininas.
Existe uma cerimônia específica para as folhas nas religiões de matriz africana, conhecida
como Sasain ou Sasanha. Nela, são entoados cantos específicos para cada planta, cujo desígnio
é despertar as suas propriedades benéficas ou maléficas para o uso ritualístico e sagrado dos/
as religiosos/as, como por exemplo: os banhos, o forro de esteiras para dormir, a alimentação
comunitária (humana), a alimentação religiosa das divindades (não humana), a ornamentação
dos espaços no terreiro (interior e exterior), as vestimentas das divindades e dos/as religiosos/as
e durante as imolações de animais (Figura 8). Por exemplo, os Bambuzais são consagrados às
divindades Danko, Oyá e Egungun. O Peregun – popularmente conhecido como pau-d’água
– é consagrado a Ossain, Ogum e Oxóssi. A Pitangueira é consagrada às Iyámi. Diferentemente
de Akoko, Obi e Orobô – plantas africanas cultivadas nas religiões afro-brasileiras –, que não são
consagradas a nenhuma divindade e nem mesmo são divindades, mas cujos frutos e folhas são
de tal eminência que, por isso, são sacralizadas. Dessa maneira Ossain é a divindade que rege
a flora e, por esse motivo, lhe conferem todas as plantas, ou seja folhas. Contudo, as religiões
afro-brasileiras cultuam algumas plantas-divindades, tais como, a Apaoka – que conhecemos
com a Jaqueira que, tida como a mãe de Oxóssi, é uma Iyamin; a Iroko – conhecida como Gameleira Branca, é tida como representante da senilidade e da ancestralidade. Assim, os aspectos
fundamentais das classificações das plantas, no Candomblé, e os incontáveis usos, aplicações e
sentidos das Ewê, vão muito além dos usos e sentidos corriqueiros de caráter mais ornamental da
estética hegemônica universalizada do paisagismo ocidental. Por isso, são incomparavelmente
mais ricos e relacionados com este lugar de diáspora africana.
Se recorrermos ao termo città in transe (cidade em transe) cunhado por Reginaldo Prandi
(1993), e transe nos termos de agência, como proposto por Eduardo Viveiros de Castro (1996),
o que esboçamos, aqui, como Paisagismo dos Orixás, é dotado de qualidades agenciadoras, ou
seja, as plantas não são seres inanimados, as folhas falam e para tal devem ser (en)cantadas (MÃE
STELLA DE OXÓSSI, 2014). Na prática, esse Paisagismo em Transe pode provocar o transe dos/
as religiosos/as, e as próprias plantas e as plantas/divindades podem fazer parte das ou são as
próprias divindades em transe com os/as religiosos/as. Como exemplo disso, podemos mencionar
que o Mariwô – conhecido como dendezeiro ou palmeira – é uma planta que serve de roupa para
Ogum – divindade afro-brasileira metalúrgica, agricultora e guerreira. Assim, os/as religiosos/
as consagrados/a a essa divindade são agenciados por essa planta; e, ao manejá-la, podem ser
tomados por Ogum (Figura 9). Um outro exemplo de planta/divindade é Iroko – árvore que, na
cosmopolítica afro-brasileira, liga o Brasil a África –, que ao ser manejada, os/as filhos/as consagrados/as sentem a mesma sensação da planta/divindade, por isso recomendando-se que não
se toque nessa árvore/divindade: nomeadamente, não se pode podá-la porque isso amputaria
os/as seus corpos humanos. Isto significa que, neste paisagismo, as árvores/plantas podem ser
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 158-177, 2022
Artigos
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Figura 9: Assentamentos de Exu do terreiro (Fonte: Céline Veríssimo, 2019).
simultaneamente árvores/folhas-humanos-divindades e seres humanos podem ser humanos-árvores/folhas-divindades. Ademais, aquilo que define sentidos é o transe, que pode ser causado
por árvores/folhas-humanos-divindades e vice-versa. Em suma, arriscamos, por isso, também
usar o termo Paisagismo em Transe (termo emprestado de Prandi, de seu “città in transe”), que
aqui definimos como a propriedade de se entrar em transe e de provocar o transe, fazendo com
que plantas-humanos-divindades coabitem e estabeleçam, assim, o Paisagismo dos Orixás.
Se no Paisagismo dos Orixás as folhas/plantas/árvores são sujeitos, também se trata de
um paisagismo que come e dança: nas religiões afro-brasileiras as plantas/divindades dançam
agenciadas pelos transes em seus filhos/as religiosos/as. Isto quer dizer que um/a religioso/a em
transe com Iroko , por exemplo, é a própria planta/divindade evidenciada, e assim dança conforme
as versas afro-brasileiras. Mas o que nos é mais importante aqui entender é a noção de comensalidade no Candomblé. Conforme Raul Giovanni Lody (2004), “nas religiões afro-brasileiras tudo
come”, os monumentos que são elas próprias e representam as divindades também comem,
da mesma forma que os/as religiosos/as comem, e deste modo, os elementos arquitetônicos e
paisagísticos do terreiro igualmente comem. A comensalidade para as religiões afro-brasileiras é
uma das formas de transmitir o Axé, isto é, a força de realização e a energia vital da ancestralidade afro-brasileira. Assim “o portão come, a porta come, os tambores comem, o chão – chamado
de ixé - come, o teto – chamado de cumeeira – come”. Trata-se de uma arquitetura, ou melhor
Céline Veríssimo e Mauricio Santos
Paisagismo dos orixás
174
Figura 10: Palmeira de Ogum; Guaco na cerca; Tapete de Oxalá (Fonte: Maurício Santos, 2020).
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 158-177, 2022
Artigos
dizendo, de um paisagismo, que recebe oferendas, sejam elas minerais (os pós oriundos de
pedras), vegetais (os extratos oriundos plantas) ou animais (sangue, penas, ossos oriundos das
imolações de animais). Esses espaços, compostos por elementos arquitetônicos e paisagísticos:
plantas/divindades, recebem esses dons e compartilham com a comunidade. Trata-se então,
de um Paisagismo que Dança por que os humanos também podem estar em transe com as
plantas/divindades e assim dançarem nas cerimônias afro-brasileiras; e trata-se também de um
Paisagismo que Come , porque “tudo nas religiões afro-brasileiras come” e o espaço do terreiro
não é diferente, as plantas/divindades igualmente comem.
Considerações não finais
Queremos salientar neste artigo, que os terreiros não se restringem aos espaços construídos e nem mesmo aos muros, casas e ruas das comunidades e além (mar, rio, cachoeira, mato,
encruzilhada, etc.). O espaço exterior no terreiro é de extrema importância porque ali vivem e
convivem com elementos importantes para esses religiosos, sejam por exemplo plantas cultivadas nas próprias comunidades ou coletadas em matos próximos (mas cada vez mais longe)
aos terreiros. Os usos dessas plantas são diversos e podem ser empregados de múltiplas formas,
por exemplo: como esteiras para dormir, como roupas, como ornamentos, como alimentos,
como assentamentos de orixás, como elementos litúrgicos, como elemento fitoterápicos além
certamente das divindades, existe a elocução afro-brasileira que diz “Kosi ewe, kosi orixá” que
quer dizer “sem plantas, sem orixá”, retratando que a importância das espécies vegetais supera
as dimensões da (etno)ecologia, da(etno)botânica e da (etno)medicina no Candomblé, tal como
sabiamente sugeriu a Mãe Marina de Ogum num evento em 2019 “o poder das folhas está no
axé” e alertou (como que premonitório da crise ecológica, sanitária e política que vivemos) sobre
a atualidade conflituosa da sociedade entre si e com a natureza, acrescentando que “sem as as
folhas, não existe Candomblé e também não existe vida!”
O esboço que desenvolvemos de paisagismo dos orixás é uma elocução advinda das religiões afro-brasileiras. Por ser também paisagismo em transe que dança e come e é no espaço
do terreiro que pode assumir forma/incorpora planta/folha-humano-divindade e desenvolver a
capacidade de abrir caminhos na direção de outros mundos.
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Céline Veríssimo e Mauricio Santos
Que planta escolher?
Entre a fitorremediação
e a etnobotânica: uma
leitura de suas diversas
funções, com o olhar
para a Umbanda
Nayara Cristina Rosa Amorim
PPG-AU / FAUFBA
Mayara Mychella Sena Araújo
Lugar Comum / FAUFBA
Que planta escolher? Entre a fitorremediação e a etnobotânica:
uma leitura de suas diversas funções, com o olhar para a Umbanda
Resumo
O artigo tem como objetivo correlacionar, no âmbito teórico, espécies vegetais que têm potencial
fitorremediador com a etnobotânica. Considerando de um lado sua capacidade de despoluição de
águas e solos, e de outro, seu uso ancestral nos mais variados procedimentos religiosos de distintas
culturas. Para tanto, o texto apresenta como resultados um levantamento inicial dessas espécies
vegetais com capacidade fitorremediadora, comprovada por publicações científicas, e que na etapa
pós-colheita também têm funções litúrgicas e outras, especificamente, na Umbanda. São raras as
pesquisas que correlacionam a capacidade de fitorremediação das plantas com seus usos e representações ritualísticas, medicinais, alimentares, culturais e econômicas. Diante disso, este ensaio
é uma provocação, que visa, além de estimular mais investigações científicas sobre as temáticas,
contribuir para registrar os conhecimentos e a cultura da Umbanda. Buscando romper com visões
paradigmáticas e lançar luz sobre sincretismos, simbologias e tradições que por vezes são negligenciados pela sociedade.
Palavras-chave: Fitorremediação. Etnobotânica. Umbanda.
¿Qué planta elegir? Entre la fitorremediación y la etnobotánica:
una lectura de sus diversas funciones, con miras a Umbanda
Resumen
El artículo tiene como objetivo correlacionar, en teoría, las especies de plantas que tienen potencial
de fitorremediación con la etnobotánica. Considerando, por un lado, su capacidad para limpiar
aguas y suelos, y por otro, su uso ancestral en los más variados procedimientos religiosos de diferentes culturas. Por tanto, el texto presenta como resultados un primer relevamiento de estas especies vegetales con capacidad fitorremediadora, confirmado por publicaciones científicas, y que en
la etapa de poscosecha también tienen funciones litúrgicas y otras, específicamente, en Umbanda. Son raras las investigaciones que correlacionen la capacidad de fitorremediación de las plantas con sus usos y representaciones ritualistas, medicinales, alimentarias, culturales y económicas.
Delante de eso, este ensayo es una provocación, que tiene como objetivo, además de estimular
más investigaciones científicas sobre los temas, contribuir a registrar el conocimiento y la cultura
de la Umbanda. Buscando romper con visiones paradigmáticas y arrojar luz sobre sincretismos,
simbologías y tradiciones que en ocasiones son descuidadas por la sociedad.
Palabras clave: Fitorremediación. Etnobotánica. Umbanda.
Which plant to choose? Between phytoremediation and
ethnobotany: a reading of its various functions, with a view
to Umbanda
Abstract
This aims to theoretically correlate plant species that have phytoremediation potential with ethnobotany. Considering on the one hand their decontamination capacity of water and soil, and on
the other, its ancestral use in the most varied religious procedures of different cultures. Therefore,
the text presents as results an initial survey of these plant species with phytoremediation capacity,
proven by scientific publications, and that in the post-harvest stage they also have liturgical and
other functions, specifically, in Umbanda. There are few studies that correlate the phytoremediation capacity of the plants with their uses and ritualistic performances, medicinal, food, cultural
and economic. Finally, this paper is a provocation meant to stimulate more scientific investigations
on the subjects, and to contribute to discuss Umbanda’s knowledge and culture. Seeking to break
away from paradigmatic visions and shed light on syncretisms, symbologies and traditions that
are sometimes neglected by society.
Keywords: Phytoremediation. Ethnobotany. Umbanda.
Foto: Erivan de Jesus Santos Junior
180
Artigos
Introdução
O presente artigo se caracteriza como um ensaio,1 com o objetivo de identificar espécies
vegetais que possuam utilização ou representação simbólica para a Umbanda2 e, ao mesmo
tempo, tenham potencial fitorremediador, isto é, a capacidade de contribuir para a despoluição
de ecossistemas. Busca-se, então, contribuir com o processo de seleção das espécies utilizadas em
tipologias paisagísticas de fitorremediação e valorização das ervas que possuem função ritualística.
As tipologias paisagísticas baseadas em princípios de fitorremediação podem ser repensadas ou adaptadas, para maior inclusão das demandas sociais e de identidade local, através
da inclusão de ervas que possuam simbologia cultural, religiosa ou que contribuam para complementação de renda dos moradores locais – flores e plantas de corte, espécies cujas fibras
possam ser utilizadas no artesanato etc. Essas adaptações buscam aumentar a interatividade, a
participação e a sensação de pertencimento dos moradores do entorno de onde essas técnicas
paisagísticas são implantadas.
Segundo Carlessi (2016), quando se emprega o termo “erva” para se denominar espécies vegetais, está se destacando o simbolismo que a mesma carrega, incluindo o fato de ser
considerada um ser vivo, cujo sangue, a seiva que alimenta a planta, é extraído para a cura ou o
bem-estar ou o equilíbrio entre o mundo físico e o espiritual (CARLESI, 2016). Já o termo “espécie vegetal” remete à nomenclatura científica e a dimensão botânica. Por fim, o termo “planta”
é uma denominação genérica que toda a sociedade reconhece quando se trata de referenciar
as espécies vegetais ou ervas. Sendo assim, se o termo “erva” não se restringe a sinônimo de
“espécie vegetal” ou “planta”, no texto serão utilizadas essas três denominações e dimensões
de significados.
Embora no Brasil exista uma diversidade de religiões afro-brasileiras, como o Candomblé, a Umbanda, o Cabula, o culto aos Egungun, o Catimbó-Jurema, a Quimbanda e a Xambá,
é importante ressaltar que este artigo se detém na Umbanda, especificamente na sua relação
com as plantas.
Nesse sentido, como sinaliza Oliveira (2008), mesmo que a diversidade cultural seja um
traço fundante da cultura brasileira, a relação com saberes, técnicas e conhecimentos medicinais
oriundos de comunidades não hegemônicas, como aquelas relacionadas com as religiões de
matriz africana, ou afro-brasileiras, ainda é preconceituosa (OLIVEIRA, 2008). E é visando a uma
mudança de enfoque no plano epistemológico e cultural que o artigo valoriza, a partir da etnobotânica, os conhecimentos alternativos e não hegemônicos, particularmente os da Umbanda.
Além disso, o texto conta com uma metodologia de análise comparativa de caráter qualitativo, apresentando o cruzamento de informações sobre espécies vegetais pesquisadas em
publicações que abordam as temáticas da fitorremediação e da etnobotânica. O conceito de
fitorremediação utiliza como referências principais: Marques et al. (2011), Silva (2012), Moura
1 Chamamos de ensaio porque, além de se tratar de uma pesquisa seminal, relaciona-se a ensejos pessoais
quanto às discussões que permeiam a utilização de plantas nas liturgias, preceitos (banhos), oferendas, defumações, chás e etc. adotados na Umbanda, religião que tem uma de suas matrizes o culto às forças elementares que representam a natureza, os Orixás. Nesse sentido, assim como as plantas precisam de mãos habilidosas e com conhecimentos para serem semeadas e cultivadas, este ensaio, apesar de contar com quatro
mãos cujas trajetórias acadêmicas distintas dão conta das tipologias paisagísticas de fitorremediação, as têm
muito ansiosas pelo despertar de suas ancestralidades e, portanto, trazem leituras de sobrevoo quanto a essa
relação com as representações simbólicas que têm com a Umbanda.
2 Religião cuja prática, assim como o Candomblé e outras de matriz afro-brasileira, sempre sofreu com o
estigma da marginalização, ligado a estereótipos e preconceitos, e que será melhor apresentada, adiante.
Nayara Cristina Rosa Amorim e Mayara Mychella Sena Araújo
181
Que planta escolher?
(2013), Pinheiro (2017) e Grzegórska et al. (2020). Já para o conceito de etnobotânica e sua relação com a Umbanda, adota-se como referências principais: Oliveira (2008), Pires et al. (2009),
Carlessi e Rodrigues (2015), Carlessi (2016), Silva e Silva (2018) e Alves, Povh e Portuguez (2019).
182
Como sinaliza Carlessi (2016), muito embora existam desdobramentos no pensamento
contemporâneo que questionam as fronteiras analíticas das espécies vegetais e, por vezes, as
mantenham em dicotomias, o intento aqui, apesar de tímido e ainda restrito, é mostrar que ainda que sejam pensamentos dicotômicos, eles se complementam (CARLESSI, 2016). Portanto,
uma mesma planta pode ter distintos usos e funções tanto no que diz respeito a seu caráter
despoluidor, cientificamente comprovado, quanto sua utilização nas religiões afro-brasileiras,
particularmente a Umbanda. Por conseguinte, podem ser lidas por esse entrecruzamento:
cientificidade-religiosidade.
Plantas despoluidoras ou fitorremediadoras
A fitorremediação é um conjunto de técnicas que utiliza os processos naturais das plantas e
suas interações com a microbiota associada à rizosfera (área ao redor das raízes) na despoluição ou
descontaminação, ainda que parcial, de um ambiente (EPA, 2000; MARQUES et al., 2011; SILVA,
2012). A biorremediação, por sua vez, é a utilização de micro-organismos, principalmente as bactérias e os fungos, para degradar compostos poluentes (MARQUES et al., 2011). A fitorremediação
sempre envolve a utilização de plantas, já a biorremediação não necessariamente, pois ocorre
tanto em condições aeróbicas como anaeróbicas. Este artigo tem como enfoque a utilização das
espécies vegetais no processo de despoluição, por tanto tem como prioridade a fitorremediação,
mas compreende que processos de biorremediação também podem cumprir esse objetivo.
A fitorremediação é um processo com baixo custo de implantação e monitoramento,
porém geralmente mais lento do que os processos físico-químicos. Para garantir a eficiência na
despoluição, precisa-se de uma grande quantidade de plantas, pois individualmente as espécies
absorvem apenas pequenas frações dos poluentes: a tecnologia demanda grandes espaços livres disponíveis. Recomenda-se o uso de espécies consideradas hiperacumuladoras, capazes de
absorver altos níveis de contaminantes (SILVA, 2012). Além disso, é necessário o monitoramento
ambiental, pois as plantas que absorvem os poluentes necessitam ser removidas periodicamente,
principalmente quando apresentam aspecto de morte, perda da funcionalidade ou quando ocorre
o aumento excessivo das espécies. Isso porque a sua manutenção pode acarretar a eutrofização
de um corpo hídrico ou diminuição da biodiversidade (ZANELLA, 2008; PINHEIRO, 2017).
As técnicas de descontaminação do solo e da água por meio da utilização de organismos
vivos, como microrganismos e plantas, são aplicadas através de diversas tipologias paisagísticas. Eis
alguns exemplos: jardins de chuva, biovaletas, alagados construídos (wetlands), hidrossementeiras,
feixes vivos ou faxinas, estacarias vivas etc. O planejamento sistêmico dessas técnicas é abordado
por conceitos como Infraestrutura Verde, Trama Verde e Azul e Soluções Baseadas na Natureza.
Os mecanismos de fitorremediação desempenhados pelas plantas podem agir de forma
associada ou isoladamente, atuando nos diferentes substratos – solos, sedimentos, lamas, águas
superficiais e subterrâneas – atingindo tanto poluentes orgânicos quanto inorgânicos (PINHEI-
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 178-195, 2022
Artigos
RO, 2017). Os mecanismos de ação direta são conhecidos como: fitoextração,3 fitovolatilização,4
fitodegradação,5 rizofiltração e controle fito-hidráulico; os de ação indireta são denominados de
fitoestabilização6 e rizodegradação. Uma mesma espécie vegetal pode realizar mais de um desses mecanismos, sem que necessariamente ocorra uma estimulação. Vale ressaltar, ainda, tanto
o avanço das pesquisas sobre a modificação genética de plantas para aumentar a capacidade
de acumulação de metais quanto de estudos sobre a estimulação metabólica das plantas por
meio de irrigação e adubação (GRZEGÓRSKA et al., 2020).
Nem todas as espécies vegetais desenvolvem-se em ambientes contaminados: o nível
de oxigênio do solo, o pH, a salinidade, a umidade e a concentração de poluentes precisa estar
dentro dos limites de tolerância da planta. O primeiro passo para utilização de técnicas fitorremediadoras é a identificação das espécies que, além de apropriadas às condições ambientais
e culturais locais, sejam tolerantes aos contaminantes. O passo seguinte é avaliar a capacidade
da planta tolerante em promover a descontaminação, bem como sua eficiência (MARQUES et
al., 2011; GRZEGÓRSKA et al. 2020). Depois, é desejável desvendar a rota e a transformação
dos contaminantes no corpo vegetal (degradação, estabilização e volatilização), o que auxilia
no estabelecimento das estratégias pós-colheita. Essa última etapa, a pós-colheita, consiste na
busca de uma destinação adequada à biomassa produzida, ou seja, encontrar um uso para essas espécies vegetais contaminadas que não ofereça risco aos seres vivos e ao meio ambiente.
De acordo com Grzegórska et al. (2020), a eficiência das técnicas fitorremediadoras vai variar
de acordo com as características do local (clima, insolação, nível de umidade), a concentração e
o tipo de poluente a ser removido e a destinação da biomassa e do ambiente contaminado (GRZEGÓRSKA et al. 2020). O presente ensaio busca destacar algumas possibilidades de uso dessas
espécies, após sua colheita, para fins ritualísticos, entendendo que as plantas podem desempenhar funções culturais e religiosas, relacionadas a processos históricos e demandas econômicas.
Para tanto, recomenda-se o uso de mais de um tipo de espécie vegetal nas técnicas fitorremediadoras, como forma de possibilitar uma maior diversidade de usos pós-colheita e contribuir com a diversidade ecológica. A inserção de plantas fitorremediadoras que possuem usos
e simbologias ritualísticas e culturais incentivam a apropriação da população nesses espaços.
Outra possibilidade é priorizar o uso de plantas ornamentais de corte, que podem ser comercializadas e complementar a renda dos moradores do entorno, de associações locais e de templos
religiosos (casas, tendas, terreiros, centros etc.). No caso da vegetação ter sido usada só na descontaminação de componentes microbianos (bactérias e coliformes fecais), a biomassa retirada
pode ser seca, triturada e transformada em adubo, que pode ser utilizado para a manutenção
dos jardins locais, ou para comercialização. A biomassa contaminada, independentemente do
tipo de contaminante, pode ser utilizada na geração de energia (GRZEGÓRSKA et al. 2020).
3 Na fitoextração os contaminantes, principalmente os metais, são absorvidos pelas raízes e translocados
para os tecidos aéreos da planta. A descontaminação ocorre através de ciclos de colheita e (re)plantio, até a
retirada dos poluentes do solo e/ou das águas (PINHEIRO, 2017).
4 Na fitovolatilização o contaminante é absorvido pelas raízes e liberado pelas folhas, na forma volátil, convertidos em formas menos tóxicas (PINHEIRO, 2017). Pode ser utilizada no tratamento de águas subterrâneas, solos, sedimentos e lamas (EPA, 2000).
5 Também denominadas de fitoestimulação. As raízes das plantas liberam substâncias que servem como
substrato para a microbiota, aumentando o número, a diversidade e a atividade dos micro-organismos, o
que aumenta a taxa de degradação ou decomposição de contaminantes (MOURA, 2013). A degradação pode
ocorrer tanto nas raízes (rizodegradação) quanto nos outros tecidos vegetais (fitodegradação).
6 A estabilização física ocorre porque as raízes evitam a erosão do solo e a lixiviação dos poluentes, que
ficam imobilizados no solo ou nas paredes celulares da planta (controle fito-hidráulico). A estabilização química ocorre pela mudança química ou microbiológica na rizosfera e também pela alteração química dos
contaminantes – fitoestabilização (MOURA, 2013).
Nayara Cristina Rosa Amorim e Mayara Mychella Sena Araújo
183
Que planta escolher?
Segundo Marques et al. (2011), as principais limitações de ordem socioeconômicas para
o uso de técnicas de fitorremediação no Brasil são: a falta de informação no meio técnico e na
sociedade; a ausência de instrumentos reguladores que promovam a fitorremediação; a compe-
184
tição com métodos de descontaminação tradicionais; e, finalmente, os investimentos limitados
(MARQUES et al., 2011).
É muito importante a participação da sociedade no processo de tomada de decisão das
técnicas a serem utilizadas para a descontaminação e nas decisões de uso posterior da área
descontaminada. A escolha de técnicas fitorremediadoras pode contribuir para a promoção da
educação ambiental, o aumento da interatividade, a participação e a sensação de pertencimento dos moradores do entorno – sobretudo quando a escolha das espécies vegetais incorporar
demandas socioeconômicas e características culturais e religiosas. O conceito de etnobotânica,
abordado subsequentemente, expressa essas relações entre a sociedade e a vegetação.
Um pouco de etnobotânica… um pouco de Umbanda…
Para alcançar o objetivo outrora proposto, viu-se a necessidade de trazer como a etnobotânica é compreendida e, a seguir, uma apresentação acerca do surgimento da Umbanda, em
uma proposta de leitura que a relaciona com a etnobotânica.
Um pouco de etnobotânica…
Carlessi e Rodrigues (2015) afirmam que a etnobotânica é uma disciplina, cuja interface entre as ciências biológicas e humanas dedica-se ao estudo da relação entre as pessoas e
as plantas. Ao fazê-lo, recorrem a Ford (1978) e compreendem que as acepções atribuídas às
plantas quanto ao termo “natureza” variam de acordo com suas próprias naturezas (CARLESSI;
RODRIGUES, 2015) – uma condição que permite, ao mesmo tempo, uma leitura crítica sobre
as próprias teoria e práxis da disciplina, apresentando variados e particulares significados que
as culturas são capazes de atribuir às plantas.
Essas possibilidades de diálogos entre pessoas e plantas são acionadas pela utilização
das últimas no universo das religiões, há séculos apresentando um valor simbólico. Afinal, são
diversos os seus usos: nos propósitos ritualísticos;7 com caráter farmacobotânico;8 de rotina (ofe-
7 De acordo com Velame (2012), o ritual entrelaça o mundo religioso com o mundo vivido, fundindo-os em
um mundo único sob a mediação de um conjunto de formas simbólicas (VELAME, 2012). Por seguirem, na
maioria das vezes, a tradição oral, os rituais têm caráter particular, seguindo uma estética ritual meticulosa,
que vão desde as iniciações – que permitem o iniciado integrar-se ao corpo e à hierarquia das irmandades e
das comunidades da religião – e à própria liturgia (as giras, no caso da Umbanda), até as benzeduras e rezas
que têm o poder de cura de diversas enfermidades, físicas ou psicológicas, ou de afastar maus espíritos, o
mau olhado ou o “quebranto” (PIRES et al., 2009).
8 Com a utilização de chás cujas propriedades científicas na ação medicinal, propriamente dita, podem não
ser reconhecidas, embora há milênios sejam assim usados, em função de seus princípios ativos, responsáveis
pelos efeitos curativos àqueles que deles se utilizam (PIRES et al., 2009).
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 178-195, 2022
Artigos
rendas,9 banhos10 e defumações11) – quando promovem a aproximação do mundo espiritual, por
meio da ativação das plantas de diferentes formas como alimento, maceradas ou queimadas;
e ornamentais – o uso de flores, sementes e folhas para fins decorativos em dias de festa, mas
que promovem o bem-estar, a partir de sua harmonização com o ambiente, portanto assumindo um caráter místico-religioso (ALVES; POVH; PORTUGUEZ, 2019; OLIVEIRA, 2008; CARLESSI;
RODRIGUES, 2015; PIRES et al., 2009; SILVA; SILVA, 2018).
Nesse sentido, e por se tratar de uma primeira tentativa de leitura das relações das espécies
vegetais fitorremediadoras e sua eventual utilização na Umbanda, a partir da etnobotânica, o
texto se insere em uma espécie de híbrido entre cientificidade e religiosidade. Todavia, apesar da
evidente descaracterização das religiões afro-brasileiras nos últimos anos, nas quais a velocidade
das informações tem superado as tradições, tenta-se de valorizar os modos de experienciar e
viver da Umbanda, cujo universo do uso de plantas é diverso, seja para os propósitos ritualísticos
seja para os de rotina.
Um pouco de Umbanda… De sua origem
a uma tentativa de leitura de sua relação com a etnobotânica
A Umbanda é uma religião estritamente brasileira, anunciada pelo Caboclo das Sete Encruzilhadas, no dia 15 de novembro de 1908, no distrito de Neves, no município de São Gonçalo,
no Rio de Janeiro. Nessa data, o médium Zélio Fernandino de Moraes, incorporado no referido
Caboclo, anunciou o surgimento da Umbanda,12 cujo principal fundamento é a manifestação
do espírito para a caridade, tendo suas bases relacionadas aos cultos euro-afro-brasileiros. Isso
porque conta com influência direta do Espiritismo (ou Kardecismo), difundido por Allan Kardec,
além do sincretismo com os santos da Igreja Católica a partir do culto as forças elementares,
que representam a natureza – os Orixás, bem como a presença dos pretos-velhos e dos caboclos
(respectivamente, entidades/espíritos de negros escravizados e indígenas) que atuam nos trabalhos e nas sessões de atendimento e de cura da religião (SARACENI, 2012; LINARES, TRINDADE,
COSTA, 2008; LEAL DE SOUZA, 1933).
É válido ressaltar que, pelo seu caráter, a Umbanda tem muitas similitudes com o Candomblé, embora também haja diferenças. Por isso, faz-se pertinente, aqui, uma digressão.
É de conhecimento que, no processo de colonização do Brasil, os povos trazidos da África,
na condição de escravos, tinham suas etnias relacionadas às regiões de origem: Nagô13 (Benin,
9 Plantas, partes delas ou frutos usados com fins alimentares, na forma de oferendas, e que representam a
entidade/espírito (o preto-velho e o caboclo, por exemplo) ou o Orixá (Iemanjá, Oxum, Ogum ou Xangô, por
exemplo) que se queira cultuar. Cada entidade/espírito ou Orixá possui uma oferenda ou erva específica, de
acordo com sua especificidade e função espiritual. A oferenda é realizada com a intenção de renovar a força
atribuída à entidade/espírito ou ao Orixá, bem como para fortalecê-los simbolicamente (SILVA; SILVA, 2018).
10 Os banhos, de maneira geral, buscam o bem-estar e o equilíbrio do corpo físico e energético, e vão variar de acordo com as folhas e sua destinação. Podem ser: as limpezas espirituais ou de descarrego, os de
equilíbrio ou os de preceito – recomendados antes de rituais específicos, como a iniciação, os trabalhos de
incorporação para atendimentos de cura etc. (ALVES; POVH; PORTUGUEZ, 2019).
11 Alves, Povh e Portuguez (2019) acrescentam que, em geral, em defumações são usadas plantas que recebem carinho, atenção, afeto e amor. Considera-se que tais sentimentos criados em relação às plantas se tornam parte das folhas. Assim, quando queimadas, elas eliminam as energias negativas do ambiente, atraindo
as positivas.
12 Religião pautada pelo respeito à natureza, pela eternidade do espírito, pela empatia e pela liberdade. Tem
base espiritualista – devido a comunicação com os espíritos; ritmada – em virtude do uso dos atabaques em
suas liturgias; e, ritualizada – já que conta com ritos litúrgicos que lhes são característicos (SARACENI, 2012;
LINARES; TRINDADE; COSTA, 2008; LEAL DE SOUZA, 1933).
13 Também considerados Iorubás. Ou seja, uma referência contemporânea à nação nagô.
Nayara Cristina Rosa Amorim e Mayara Mychella Sena Araújo
185
Que planta escolher?
Nigéria, Ketu e outros), Bantu (Congo, Angola, Moçambique e outros) e Jêjes (Benin, Togo, Gana
e Nigéria) (FERREIRA, 2019). Essas regiões, de acordo com Velame (2012), mais tarde passaram
a designar o que se chama de nação no Candomblé. Essa compreensão, segundo o autor, se
186
relaciona a um padrão ideológico e aos rituais seguidos nos terreiros, que varia conforme as etnias africanas. Basicamente seriam quatro nações: Ketu e Ixejá – origem nagô; Angola – origem
bantu; Jêje – origem daomeniana.
Assim, as nações agregam carácter simbólico, ideológico e político, baseados na tradição
religiosa e ritual, sendo, portanto, diferenciadas as maneiras de tocar os atabaques (com as mãos
ou varetas), os idiomas utilizados nos cânticos (ioruba e fon, por exemplo). A música e o ritmo
também podem variar, do mesmo modo que as vestimentas litúrgicas e os nomes das divindades (Orixás,14 Inquices15 e Voduns16) serão distintos (VELAME, 2012).
Além disso, de acordo com o referido autor, ao citar Ramos (1954), Candomblé significava
dança e/ou instrumento de música. Como os escravizados se reuniam aos domingos, autorizados
pelos seus senhores, para dançar nos chamados batuques, foi uma consequência a utilização do
termo Candomblé para substituir batuques e designar a própria cerimônia religiosa realizada
pelos escravos.
Vale sinalizar que, ao longo dos séculos XIX e XX, sua compreensão foi sendo ampliada, deixando
de considerar outras visões que marginalizavam o uso do termo.17 Na contemporaneidade, Candomblé
é uma caracterização genérica que remete à comunidade religiosa afro-brasileira (VELAME, 2012).
Ao longo dos séculos, os terreiros de Candomblé, principalmente nas cidades pequenas e
médias, foram deixando as áreas urbanas e migrando para as áreas rurais. O mesmo não ocorreu
nas cidades grandes, cujos terreiros aos poucos ou foram incorporados à cidade ou se adaptaram
ao contexto urbano. Apesar disso, Velame (2012) traz que os terreiros estão sempre em busca
do habitat natural para o culto aos Orixás, Inquices e Voduns, no seio da natureza, onde são mais
apropriadas as práticas litúrgicas e os rituais do Candomblé (VELAME, 2012).
Assim, os terreiros de Candomblé estão sempre o mais próximo, ou, em meio ao ambiente
natural: para conservar as formas de sobrevivência das famílias-de-santo que, em muitos casos,
se mantêm por meio do desenvolvimento da agricultura familiar, da criação de animais e da
venda do excedente nas feiras e ruas; por conta da necessidade de espaços para os tratamentos
de pessoas, com as práticas terapêuticas relacionadas às plantas medicinais; e devido à necessidade de privacidade para a realização dos trabalhos espirituais, assim como o jogo de búzios.
Lembra-se que as plantas usadas na religião tiveram forte influência indígena e europeia.
Isso porque, ao se fixarem em diferentes regiões do Brasil, os africanos nem sempre encontravam
as espécies vegetais que, segundo seus costumes, eram usadas nos diversos rituais – motivo pelo
qual foram substituindo ou incorporando as espécies nativas e/ou exóticas disponíveis (ALVES;
14 Os Orixás são as divindades nagôs, essencialmente as energias em estado puro, concentradas da natureza e do cosmos, como o trovão, o vento, as águas doces ou salgadas. Na Bahia, de acordo com Velame (2012),
os escravos as reuniram em um panteão, o terreiro. Por isso, em um terreiro são cultuados diversos Orixás,
diferentemente do culto na África, onde cada cidade ou região cultuavam uma determinada e específica
divindade.
15 Tem correspondência com os Orixás, mas se chamam Inquices no candomblé de Angola.
16 Tem correspondência com os Orixás, mas se chamam Voduns no candomblé Jêje.
17 De acordo com Velame (2012), referenciando Nina Rodrigues e Pierre Verger, ainda no século XIX, o candomblé foi relacionado à perseguição policial, amparada pela legislação vigente, que o enquadrava como
prática de “feitiçaria” e “falsa medicina”, ou seja, ações criminosas, que sob os alardes dos meios de comunicações, da pressão da medicina clínica e da psiquiatria (com seu discurso higienista), da igreja e o discurso
civilizatório dos setores progressistas da sociedade, contribuíram para ações que ocorreram na época.
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 178-195, 2022
Artigos
POVH; PORTUGUEZ, 2019). Ao que, pelas palavras de Pires et al. (2009), acrescentam-se, nos rituais
afro-brasileiros que são assistidos hoje em dia, muitas plantas nativas brasileiras, além das exóticas,
o que evidencia um distanciamento do acesso à matriz florística da África (PIRES et al., 2009).
Com isso, é importante dizer que a maior parte das espécies vegetais utilizadas no Candomblé são cultivadas em áreas do terreiro, extraídas da mata ou adquiridas em casas de ervas.
Além disso, esses autores apontam que os participantes mais efetivos e tradicionais do Candomblé são portadores de valiosos conhecimentos farmacobotânicos das espécies usadas nos
diversos rituais. Esse conhecimento, de acordo com os autores, “remontam séculos e fazem parte
da história de nosso povo”.
Nesse sentido, hoje em dia, a valorização e existência da religião são frutos da resistência
e da luta de nossos antepassados. Isso porque o emprego litúrgico ou medicinal de muitas
plantas segue um sistema de classificação complexo, além de uma intrincada relação entre as
entidades, a energia espiritual e os Orixás.
Saindo dessa necessária e fundamental digressão, o artigo se apropria das considerações
nela postas para esclarecer que, tanto a Umbanda como o Candomblé têm contribuído para
registrar os conhecimentos e a cultura das religiões afro-brasileiras, desmistificando o preconceito que as cercam. Por isso, quando a etnobotânica se dedica a esmiuçá-las, traz uma série de
informações, conhecimentos e tradições que não devem ser perdidas. Entre tais informações,
conhecimentos e tradições estão o culto aos Orixás e o uso das ervas em seus rituais.
Assim, na noite em que a Umbanda surgiu, valores como a liberdade, a fraternidade espiritual, o amor e a humildade foram declarados pelo médium Zélio Fernandino de Moraes, então
incorporado no Caboclo das Sete Encruzilhadas que afirmou que:
Deus, em sua infinita bondade, estabeleceu na morte, o grande nivelador universal. Rico
ou pobre, poderoso ou humilde, todos se tornam iguais na morte, mas vocês, homens preconceituosos, não contentes em estabelecer diferenças entre os vivos, procuram levar essa mesma
diferença até mesmo além da barreira da morte. Por que não podem nos visitar esses humildes
trabalhadores do espaço, se apesar de não haverem sido pessoas importantes na terra, também
trazem importantes mensagens do além? Por que não aos Caboclos e Preto-Velhos? Acaso não
foram eles também filhos do mesmo Deus?18
Com isso, ele quis dizer que todos os espíritos seriam aceitos e ouvidos nos trabalhos desenvolvidos na Umbanda, da mesma forma que, aqueles que a procurassem estariam em busca
de conhecimento para transformação e evolução enquanto ser humano, consequentemente,
enquanto espírito.
Pode-se dizer, portanto, que muitas pessoas que passaram a frequentar a religião ou
eram médiuns que deixavam o Espiritismo Kardecista ou eram dissidentes do Candomblé, em
grande parte detentoras de conhecimentos quanto às tradições e práticas dessas religiões. A
18 Fala abstraída do diálogo entre o espírito do Caboclo, incorporado no já citado médium, e o então presidente da Federação Espírita de Niterói, o médium vidente José de Souza, na noite de anúncio do surgimento
da religião. O diálogo está presente em diversas obras, sites e blogs que tratam da religião.
Nayara Cristina Rosa Amorim e Mayara Mychella Sena Araújo
187
Que planta escolher?
Umbanda passou a utilizar, do Espiritismo, a incorporação dos médiuns nas giras,19 com vistas aos
atendimentos e aos trabalhos de cura e desobsessão, no que se refere ao Espiritismo. E, na sua
tangente ao Candomblé, albergou o culto aos Orixás, o uso dos instrumentos musicais nas giras
188
e das guias (fios de conta), a realização dos assentamentos vibratórios (com a firmeza de velas) e
das oferendas às entidades/espíritos e aos Orixás, além dos banhos de ervas e seus variados usos.
Especialmente, quanto ao Candomblé, diz-se que a valorização de suas tradições e práticas
tem grande importância social. Logo, quando a Umbanda se apropria de parte dessa tradição
e dessa cultura, em suas próprias práticas, é também uma forma de reverência e valorização de
nossos ancestrais. Por isso, e lembrando o que foi exposto na digressão, há que destacar que,
muito embora a Umbanda se aproprie do culto aos Orixás, esse rito ocorre de maneira distinta
ao que ocorre no Candomblé.
Na Umbanda, os Orixás representam as forças emanadas de Deus na natureza e seus
domínios,20 ou seja, forças elementares da natureza – trata-se, portanto, de uma religião monoteísta. Diferente do Candomblé, na qual os Orixás correspondem a divindades,21 cujas forças
que fortalecem seus atributos advém de elementos da natureza, por conseguinte, seriam seres
elementares da natureza, uma religião politeísta. Mesmo assim, é comum, entre as duas religiões,
os filhos de santo realizarem banhos, com o uso de plantas específicas de cada Orixá, antes dos
trabalhos ou durante sua realização.
Além disso, originalmente, nem no Candomblé, nem no Espiritismo, durante seus trabalhos públicos – respectivamente, xirê e mesa branca –, era possível a incorporação de entidades/espíritos. No primeiro caso, por não serem considerados divindades, muito embora, com
o tempo, a sabedoria desses povos ancestrais, principalmente os pretos-velhos e os caboclos,
foi reconhecida e, assim, eles passaram a se manifestar nos trabalhos dos terreiros. Do mesmo
modo, o Espiritismo, apesar de hoje em dia admiti-los em suas sessões de trabalho, no passado,
infelizmente, eles não poderiam estar presentes, pois eram admitidas apenas as manifestações
dos espíritos considerados “elevados”: padres, freiras, médicos, professores etc.
19 São as cerimônias da religião, cuja liturgia conta com um roteiro de atos que propiciam o desenvolvimento dos trabalhos espirituais. De maneira geral, o ritual segue em acordo aos conhecimentos e às experiências
do dirigente espiritual (pai ou mãe-de-santo) da casa, tenda, terreiro ou centro (como podem ser designados
os templos da religião). Assim, as giras geralmente se iniciam com as preces/orações e a convocação dos
bons espíritos, seguidas da saudação a Exu (o guardião do templo que garante a realização dos trabalhos),
dos cânticos de abertura, de defumação e de louvação aos Orixás (quando se iniciam as incorporações dos
médiuns da corrente). Nesse momento, são cantados para os Orixás e entidades/espíritos que regem o templo, ocorrendo depois disso, a saudação às entidades/espíritos que realizarão os trabalhos do dia (preto-velho,
caboclo, boiadeiro, baiano, marujo, cigano, erês ou guardiões, por exemplo). Tudo isso conduzido pelos sons
das palmas dos consulentes/visitantes e pelos toques dos instrumentos de percussão (majoritariamente
atabaques, mas não apenas). Após os atendimentos, a gira é encerrada com agradecimentos a entidades/
espíritos que trabalharam, orações e cânticos de fechamento. No geral, esse fechamento conta apenas com
a presença da corrente do templo (médiuns de atendimento, da assistência, cambonos, ogãs e o próprio
dirigente espiritual).
20 Exemplos de domínios naturais de onde emana a força dos Orixás e seus atributos: cume das montanhas
– Oxalá – fé/fortaleza; pedreiras – Xangô – justiça/autoridade; caminhos – Ogum – ordem/resistência; matas
– Oxóssi – sobrevivência/conhecimentos; ventos – Iansã – paixão/determinação; mar – Iemanjá – família/respeito; cachoeiras – Oxum – fertilidade/amor; rios – Nanã – sabedoria/autoconhecimento; cemitérios – Obaluaê
– transformação/evolução.
21 Quanto a essa noção de divindade, Velame (2012), ao citar Pierre Verger e seus estudos sobre a África e o
Brasil, ratifica que os Orixás correspondem a “um ancestral [...] divinizado, que em vida estabelecera vínculos
e relações que lhe garantiam um controle sobre certas forças da natureza e do cosmos, como o trovão, o vento, as águas doces ou salgadas, ou então lhe possibilitando a capacidade de exercer certas atividades como
a caça, a pesca, o trabalho com metais ou, ainda, adquirindo o conhecimento das propriedades das plantas
e de sua utilização para atividades medicinais” (VELAME, 2012, p. 6).
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 178-195, 2022
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Ainda assim, é reconhecida a utilização, tanto no Candomblé como na Umbanda, da fumaça como elemento purificador. Sua utilização advém dos ritos indígenas, portanto dos caboclos,
e apropriada pelos negros escravizados (pretos-velhos). Para sua confecção também são usadas
plantas específicas, de acordo com a entidade/espírito que estiver trabalhando e, no geral, são
adquiridos/comprados. Particularmente na Umbanda, a fumaça, oriunda da queima nos charutos ou cachimbos, atua como desagregadora de maus fluídos, criando um escudo de proteção
tanto para a aura do médium incorporado na entidade/espírito,22 quanto para os consulentes/
visitantes durante o atendimento.
Como a Umbanda é uma religião que se fundamenta em valores como a liberdade, há
uma enorme variação de suas práticas nos templos da religião em todo o país, principalmente,
quanto ao que é apropriado de outras religiões, como o Candomblé e o Espiritismo. Por isso, a
existência das linhas23 de Umbanda vão, de certo modo, caracterizar essa aproximação. Todavia, é
uma certeza que o uso das plantas, para os mais distintos ritos, é uma apropriação do Candomblé.
Assim, as mais utilizadas na Umbanda são: alecrim (Rosmarinus officinalis L.), alfazema
(Lavandula dentata L.), arruda (Ruta graveolens L.), boldo ou tapete de Oxalá (Plectranthus
barbatus), comigo-ninguém-pode (Dieffenbachia amoena), espada de Ogum (Sansevieria
trifasciata Hort. ex Prain.), guiné (Petiveria alliacea L.), hortelã (Mentha rotundifolia L.), levante
(Mentha arvensis L.) manjericão (Ocimum basilicum), quebra demanda ou abre caminho (Justicia gendarussa), dentre outras. Essas espécies podem (ou não) serem cultivadas em áreas
destinadas para este fim nas casas, tendas, terreiros ou centros de Umbanda. É bom lembrar
que, assim como o Candomblé, no geral, na Umbanda as casas, tendas, terreiros ou centros estão
inseridos no contexto urbano das grandes cidades, ficando nas áreas rurais quando se trata das
médias e pequenas cidades.
Além disso, pelo seu caráter de liberdade de culto, a Umbanda não necessariamente
conta com a mesma relação de complexidade que envolve o cultivo e a extração das plantas
da natureza, como ocorre no Candomblé. Nessa última, há, inclusive uma hierarquia quanto
aos que podem manuseá-las, desde seu plantio, passando por sua colheita até a realização dos
banhos ou rituais, que considera períodos específicos para que sejam feitos, além da entidade,
da energia espiritual ou do Orixá a que se destinam.
Finalmente, o que se procura com este ensaio não é questionar os alcances dessas práticas
religiosas, tampouco somente apresentar seus universos, visto que o texto estaria sujeito a cair
nas armadilhas de eventuais reducionismos. Por isso, a leitura dessa relação, a partir dos estudos
da etnobotânica, visa muito mais demonstrar a importância para que essas informações, que
remontam séculos e fazem parte de nossa história e cultura, se perpetuem.
Assim é que, como já dito, e melhor explicitado a seguir, o emprego de um grande número
de plantas, nas mais diferentes situações religiosas, principalmente na Umbanda, vem crescendo
nos últimos anos. Portanto, na Umbanda, o uso das plantas atende aos aspectos litúrgicos, além
de possuir caráter farmacobotânico, empírico e individual. Com a inserção dos templos, no contexto urbano, os espaços para o cultivo da vegetação são cada vez mais restritos. Nesse sentido,
incorporar ou priorizar espécies de valor simbólico em tecnologias de fitorremediação pode ser
uma estratégia de reconhecimento, fomento e incentivo às práticas ritualísticas.
22 Não apenas os caboclos e preto-velhos utilizam, outras entidades/espíritos como os guardiões, por exemplo, também usam a fumaça.
23 Umbanda Branca e Demanda. Umbanda Kardecista. Umbanda Mirim. Umbanda Popular. Umbanda
Omolocô ou Traçada. Umbanda Sagrada. Para mais informações, recomenda-se ver Saraceni (2019).
Nayara Cristina Rosa Amorim e Mayara Mychella Sena Araújo
189
Que planta escolher?
Plantas fitorremediadoras e etnobotânicas na Umbanda
Depois de tratar da fitorremediação, da etnobotânica e da Umbanda, esta seção pretende
190
relacioná-las, tratando das espécies vegetais que têm potencial fitorremediador e, ao mesmo
tempo, pelo estudo da Etnobotânica, das que são usadas na Umbanda.
Para tanto, considera-se, de um lado, que as pesquisas sobre esse potencial, embora sejam
pontuais, são focadas na investigação da capacidade de resposta de uma espécie para remediação de um único poluente, ou de um grupo limitado de poluentes. Ou seja, a capacidade de
despoluição das plantas provavelmente vai além do que apontam os registros científicos. Adicionalmente, grande parte dos estudos de caso indica que a variação climática pode diminuir
ou ampliar a capacidade metabólica das plantas. Nos países de clima temperado, por exemplo, o
inverno diminui essa capacidade (GRZEGÓRSKA, et al. 2020). E em países, como o Brasil, caracterizados por clima tropical e biodiverso, esse potencial para a fitorremediação é aumentado, do
mesmo modo que diversidade de espécies hiperacumuladoras, entretanto, ainda são necessários
estudos mais detalhados das condições brasileiras (MARQUES et al., 2011).
De outro lado, no que tange à Umbanda, as plantas, para além de possuírem aura, e
deuses que as acompanham, “não são meros objetos ao aguardo dos significados que os homens lhes são capazes de atribuir, mas [...], são seres que, assim como os homens, participam
ativamente na edificação da cidade [...]” (CARLESSI, 2016, p. 9) e de um universo invisível, já que
“nos templos das religiões afro-brasileiras as plantas transportam segredos dos mais valiosos”
(CARLESSI, 2016, p. 10).
Nesse sentido, as plantas mais utilizadas em cada templo umbandista tendem a se adequar a disponibilidade de espécies de cada região, o que é influenciado pelo bioma, clima, tipo
de solo, etc. Essa adequabilidade contribui para que mais espécies de ocorrência local sejam
reconhecidas e incorporadas nas práticas ritualísticas.
Além disso, tanto na Umbanda quanto em outras religiões afro-brasileiras, como o Candomblé, os verdadeiros especialistas nas ervas e em suas propriedades energéticas e de conservação na natureza, são as entidades/espíritos ou Orixás que – manifestos via processo de transe,
a incorporação – transmitem ao médium todos os simbolismos que as plantas carregam.
De acordo com Silva e Silva (2018), esses simbolismos estão associados a um sistema de
classificação energética que as caracteriza em quentes, mornas ou frias; ou, ainda, como fortes
ou fracas. “O sistema e classificação quente/morno/frio pode ser associado ao sistema forte/fraco.
As ervas quentes são aquelas também chamadas de fortes, e as fracas são as frias ou mornas”
(SILVA; SILVA., 2018, p. 29). Os autores ainda mencionam que, no Candomblé, essa sistematização as relaciona com os domínios da natureza: água, terra, fogo ou ar.
As [ervas] quentes são chamadas de agressivas, porque fazem a limpeza pesada. Elas são
a “soda cáustica” para limpar o chão do organismo. As mornas são as equilibradoras, são aquelas
que são o “paninho com álcool”, que fazem a manutenção do equilíbrio específico. E as específicas, que são as frias, são, como o nome diz, específicas; então eu quero uma erva pro feminino.
Então tem uma erva específica pro feminino (SILVA; SILVA, 2018, p. 28-29).
Diante do exposto, mesmo com limitações, este ensaio se propõe a apresentar um levantamento inicial de espécies vegetais que possuem tanto potencial fitorremediador quanto uso
ritualístico (Quadro 1).
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 178-195, 2022
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Quadro 1: Levantamento de espécies fitorremediadoras com uso ritualístico na Umbanda.
Nome científico,
Contaminantes que podem
Orixá associado e usos
nomes populares e origem
ser absorvidos
ritualísticos
Óleos, graxas, matéria orgânica, nitrato, nitrito, Fe, Zn, Cu, Cd
(MOURA, 2013).
Orixás: Oxum e Omolú/Obaluaiê.
Utilizada em banhos de
descarrego e para fins ornamentais (OLIVEIRA, 2008).*
Al, Mn, Mg, As, Cd, Cr, Ni, Cu, Pb, Hg,
Se, Zn, pesticidas e explosivos (DHIR,
2013 apud PINHEIRO, 2017).
Orixá: Oxum e Oxalá. Também associada à Pomba-gira.
Utilizada em banhos e
defumações para limpeza,
desenvolvimento mediúnico
e para atrair amor.
Erva fria.
1
Allamanda cathartica L.
Alamanda
Origem: Nativa, América do
sul e América Central.
2
Chrysopogon zizanioides
(L.) Roberty
Patchuli
Origem: Ásia.
3
Costus spicatus (Jacq.) Sw.
Costus spiralis (Jacq.)
Roscoe
Cana-de-macaco
Cana-branca
Origem: Nativa.
4
Diffenbachia picta
Comigo-ninguém-pode
Origem: América Central.
Fe, Mn, Cu, Co, Cd, Pb, Ni (SILVA, 2012).
5
Eichhornia crassipes (Mart.)
Solms
Aguapé
Origem: Nativa.
N e P, Pb, As, Hg, Zn, Se, Cr, Cd, Ni, Cu,
compostos orgânicos e inorgânicos
(amônia, nitrato e fósforo), Sólidos
Suspensos Totais (SST), Sólidos Disolvidos Totais (SDT), hidrocarbonetos,
turbidez e resíduos da indústria farmacêutica; (DHIR, 2013 apud PINHEIRO, 2017).
6
Helianthus annuus L.
Girassol
Origem: América Central e
América do Norte
Hidrocarbonetos, explosivos – TNT,
Cd, Zn, As e Ni (KENNEN e KIRKWOOD, 2015 apud PINHEIRO, 2017).
Rizofiltração de urânio (GRZEGÓRSKA, et al. 2020).
7
Óleos e graxas, matéria orgânica,
nitrato, nitrito, Fe, Zn, Cu, Cd
(MOURA, 2013).
Heliconia psittacorum L.f.
Helicônia
Óleos e graxas, matéria orgânica,
nitrato, nitrito, Fe, Zn, Cu, Cd e sólidos
dissolvidos totais (MOURA, 2013).
Origem: Nativa.
8
Lantana lilacina Desf
Camará
Lantana
Fe, Mn, Cu, Co, Cd, Pb, Ni (SILVA, 2012).
Origem: Nativa, América do
sul e América Central.
Orixás: Iansã, Nanã, Ogum,
Oxóssi e Oxalá.
Utilizada em banhos de proteção, descarrego, limpeza e
lavagem de objetos rituais.
Também possui uso medicinal e ornamental
Erva morna.
Orixás: Ogum e Exú.
Utilizada para proteção e absorção das energias negativas. Possui uso ornamental.
Erva quente.
Orixás: Nanã, Iemanjá e
Oxum.
Utilizada em banhos de limpeza. Possui uso medicinal.
Erva morna.
Orixás: Oxum, Oxóssi, Oxumarê e Oxalá.
Uso litúrgico, banhos, defumações e ornamentação.
Também possui uso medicinal e alimentar.
Erva morna.
Orixá: Ogum.
Utilizada em banhos de limpeza, purificação e descarrego. Possui uso ornamental e
medicinal.*
Orixá: Xangô, Omolú/Obaluaiê.
Utilizada para limpeza de
ambientes. Possui uso ornamental e medicinal.
Erva morna.
Nayara Cristina Rosa Amorim e Mayara Mychella Sena Araújo
191
Que planta escolher?
9
Pistia stratiotes L.
Alface-d’água
Origem: Nativa.
192
10
As, Cd, Cu, Ni, Zn, Pb, Cr, Mn. Compostos orgânicos aromáticos, nitrato e
antibióticos (DHIR, 2013 apud PINHEIRO, 2017). Hiperacumuladora de Cd,
Pb e Zn (GRZEGÓRSKA, et al. 2020).
Orixá: Oxóssi.
Utilizada em banhos e
rituais de descarrego, proteção, limpeza e quebra de
demanda. Também utilizada na ornamentação.
Erva quente.
Sansevieria guineensis Hort
Espada-de-Oxóssi
Origem: África.
11
12
Sansevieria trifasciata var.
laurentii (De Wild.) N.E. Br
Espada-de-Iansã
Espada-de-Santa-Bárbara
Origem: África.
Óleos, graxas, matéria orgânica, nitrato, nitrito, Fe, Zn, Cu, Cd
(MOURA, 2013).
Origem: África.
13
Fitorremediação de Cu, Zn, Cd, Pb, Ni,
Cr (GRZEGÓRSKA, et al. 2020).
Origem: Nativa. América do
Sul, Central e do Norte.
14
Wedelia paludosa D.C.
Malmequer
Vedélia
Origem: Nativa.
Orixás: Iansã, Oxóssi e Oiá-LOgumã.
Utilizada em banhos e
rituais de descarrego, proteção, limpeza e quebra de
demanda. Também utilizada na ornamentação.
Erva quente.
Orixás: Ogum, Oxóssi e Oiá-LOgumã
Utilizada em banhos e
rituais de descarrego, proteção, limpeza e quebra de
demanda. Possui uso ornamental. Também utilizada
na sacralização de objetos
rituais (OLIVEIRA, 2008).
Erva quente.
Sansevieria trifasciata Hort.
ex Prain.
Espada-de-Ogum,
Espada-de-São-Jorge
Zea mays L
Milho, Abati
Avati
Orixá: Oxum.
Utilizada em rituais de iniciação e de melhoria da clarividência. Também utilizada
em banhos de purificação e
chás medicinais.
Óleos, graxas, matéria orgânica,
nitrato, nitrito, Fe, Zn, Cu, Cd (MOURA,
2013).
Orixás: Ogum, Oxossi, Xangô, Iemanjá e Oxalá.
Uso ritual: culinária litúrgica,
defumação e lavagem de
objetos rituais (OLIVEIRA,
2008).
Erva morna.
Orixá: Oxum.
Utilizada em rituais de iniciação, banhos purificadores
e sacralização de objetos
(OLIVEIRA, 2008). Possui uso
medicinal.*
* Não foram encontradas informações sobre a classificação da erva (fria, morna ou quente).Fonte: Elaborado pelas autoras.
As plantas podem acumular poluentes, principalmente metais pesados, em todos os tecidos vegetais, podendo transferi-los na cadeia alimentar, o que é preocupante pela fitotoxicidade
e pelos potenciais efeitos nocivos à saúde (MENEZES, 2013). A contaminação ocorre principalmente através da presença de poluentes no ar, água ou solo da área onde a espécie vegetal
está inserida. Por isso, é importante evitar o uso de plantas cultivadas em áreas potencialmente
contaminadas como: nas margens e nas águas de rios poluídos; próximo de áreas com uso frequente de pesticidas e adubação química (plantações, campos de futebol, campos de golfe);
nas margens de vias com fluxo de automóveis intenso (rodovias, estradas, avenidas); em aterros
sanitários ou lixões (ativados ou desativados); próximo a postos de gasolina; nas proximidades
de áreas de mineração, fundição e pedreiras.
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 178-195, 2022
Artigos
Quanto às espécies vegetais que são utilizadas em tecnologias de fitorremediação, ou
cultivadas em ambientes poluídos, não é recomendado seu uso na alimentação, ou na preparação de oferendas, quando se trata das religiões. Também não se recomendaria, num primeiro
momento, a utilização dessas espécies em rituais de benzimento, defumações e banhos. Embora,
essas espécies possam ser utilizadas para outros fins – ornamentais, sacralização de objetos e
lavagem de ambientes.
Adiciona-se que as ervas e, por conseguinte, suas folhas, seus caules e suas raízes são escolhidos para ser usados em rituais devido às qualidades ou às propriedades potencializadoras de
atributos das entidades/espíritos ou Orixás. As plantas, para as religiões afro-brasileiras, podem
matar ou curar e, quando maceradas, trituradas ou queimadas, têm seu sangue extraído, a seiva:
essa essência pode propiciar a cura, o bem-estar ou o equilíbrio, ou seja, suas propriedades têm
irrefutável valor simbólico, que não está relacionado necessariamente a comprovações científicas.
Por fim, pode-se dizer que, num templo, as plantas ainda estabelecem relações distintas
com o espaço, com as divindades ou com os humanos. Por exemplo, a Espada-de-São-Jorge
(Sansevieria trifasciata Hort ex Prain.) é “espada” – se disposta na entrada (trunqueira) do templo
ou no canteiro dedicado aos caboclos; é “laço” – se encontrada em áreas do templo destinadas
a ser ponto de energia ou de força de entidades/espíritos e Orixás; é “erva” – se cultivas para os
usos ritualísticos; e é “mato” – se encontrada em áreas externas ao templo e não cultivadas com
fins específicos (CARLESSI; RODRIGUES, 2015). Assim, a depender da relação estabelecida com
o espaço, com as divindades ou com os humanos, terá funções e condições completamente
opostas, variando em ser erva usada em compromissos religiosos, rituais, ou referindo-se a uma
natureza já pronta.
Considerações que não caminham
para o fim, mas para outros recomeços
As plantas são multifuncionais e suas potencialidades muitas vezes são só parcialmente conhecidas. Sobre a função fitorremediadora, percebe-se que a capacidade de filtrar o ar
através dos processos de fotossíntese é mais difundida do que a capacidade de filtrar o solo e
as águas. A respeito das funções religiosas e ritualísticas, observa-se ainda muito preconceito
sobre as práticas e com as pessoas que usam e difundem esses conhecimentos: mães-de-santo,
pais-de-santo, macumbeiros, benzedeiras, curandeiras, parteiras, xamãs, bruxas, pagãs etc. As
correlações entre as diversas funções desempenhadas pelas plantas e as localidades onde as
mesmas se encontram, possibilitam um amplo repertório de pesquisas empíricas e teóricas.
Por fim, vale retomar o questionamento que motivou a realização desse ensaio: ervas que
atuam na despoluição do solo e das águas podem ser utilizadas para fins ritualísticos? Essa resposta pode dividir opiniões, todavia, no âmbito teórico o texto já reconhece a possibilidade. Ainda
que também se reconheça a necessidade de aprofundamento dessa investigação no empírico,
principalmente consultando dirigentes de templos umbandistas e consulentes/visitantes – uma
real possibilidade de continuidade e de desdobramento do ensaio em pesquisa.
É importante ressaltar que a utilização de espécies com funções litúrgicas na descontaminação de ambientes não substitui o espaço-mato, as árvores e os espaços sagrados, locais
reconhecidos, cultuados e protegidos pela Umbanda e por outras religiões afro-brasileiras. Por
isso, preservá-los é preservar as próprias entidades/espíritos e Orixás, já que as ervas, a natureza
e os espaços naturais são representações de pontos de energia e/ou de força para essas entidades/espíritos e Orixás.
Nayara Cristina Rosa Amorim e Mayara Mychella Sena Araújo
193
Que planta escolher?
A utilização de ervas ritualísticas em tecnologias de fitorremediação pode contribuir para
inserção e apropriação dessas técnicas no contexto urbano, além de reconhecer e valorizar essas
espécies e os cultos afro-brasileiros. Por hora, ressalta-se que existe uma diversidade de plantas
194
fitorremediadoras e muitas delas possuem múltiplas funções ritualísticas. Uma relação complexa
que varia de acordo com a função da erva no ritual e o tipo de contaminante absorvido por ela,
sendo sempre necessário retomar o questionamento seja para uso na fitorremediação, seja para
Umbanda: qual ou quais plantas escolher?
Referências
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Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 178-195, 2022
Artigos
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Civil, Saneamento e Ambiente). Campinas, Universidade Estadual de Campinas, 2008.
Nayara Cristina Rosa Amorim e Mayara Mychella Sena Araújo
195
Sabores, aromas
e saberes:
desafios para
uma epistemologia
dominante1,2
Maria Paula Meneses
CES / Universidade de Coimbra
Tradução:
Mariana Redd
UFMG
1 Nota dos editores: O presente texto foi publicado originalmente em 2019, em inglês, na coletânea de artigos Knowledges Born in the Struggle: Constructing the Epistemologies of the Global South, organizada por Boaventura
de Sousa Santos e Maria Paula Meneses e publicada pela Routledge em 2020. Sentimo-nos honrados com a autorização para tradução.
2 Sou grata aos interlocutores, particularmente aqueles em Maputo, Ilha, Goa e Mumbai, que pacientemente me
ajudaram a entender os significados de comida. Uma palavra de gratidão especial para Boaventura de Sousa Santos, por seu apoio e desafios construtivos durante a pesquisa que forma a base deste texto, assim como aos amigos
nestas cidades, que me ajudaram a entender os outros significados de sabores. Este texto foi produzido como parte
de dois projetos de pesquisa desenvolvidos no Centro para Estudos Sociais, da Universidade de Coimbra: “ALICE
– Espelhos estranhos, Lições imprevistas”, coordenado por Boaventura de Sousa Santos (alice.ces.uc.pt) e financiado pelo Conselho de Pesquisa Europeu Programa Sétimo Quadro da Comunidade Europeia (FP/2007-2013)/ERC
Acordo de Doação n° 269807; “BLEND Desejo, Miscigenação e Violência: o presente e o passado da guerra colonial
portuguesa” (PTDC/CVI-ANT/6100/2014 – POCI-01-0145-FEDER-016859), financiado pela Fundação Portuguesa para
Ciência e Tecnologia (FCT) a partir de fundos nacionais e cofinanciado por FEDER, sob o Programa Temático Operacional para Competitividade e Inovação COMPETE 2020. Os nomes dos indivíduos citados, aqui, são pseudônimos.
Artigos
Sabores, aromas e saberes:
desafios para uma epistemologia dominante
Resumo
Este texto é a tradução de artigo de Maria Paula Meneses, originalmente publicado sem resumo na coletânea Knowledges Born in the Struggle: Constructing the Epistemologies of the
Global South, em 2019 (resumo feito pelos editores). O artigo revela os saberes invisibilizados.
Palavras-chave: sabores, aromas, ecologia de saberes, epistemologias do sul.
Sabores, aromas y saberes:
desafíos para una epistemología dominante
Resumen
Este texto es una traducción de un artículo de Maria Paula Meneses, publicado originalmente
sin resumen en el libro Knowledges Born in the Struggle: Constructing the Epistemologies of
the Global South, en 2019 (resumen de los editores).
Palabras clave: sabores, aromas, ecología del conocimiento, epistemologías del sur.
Tastes, aromas, and knowledges:
challenges to a dominant epistemology
Absatrct
This text is a translation of an article by Maria Paula Meneses, originally published without
abstract in the book Knowledges Born in the Struggle: Constructing the Epistemologies of the
Global South, in 2019 (abstract by the editors).
Keywords: tastes, aroma, ecology of knowledges, epistemologies of the south.
Maria Paula Meneses
197
Foto: Erivan de Jesus Santos Junior
198
Artigos
Vozes que revelam teias de saberes
ignoradas pela história hegemônica
O saber das mulheres, na forma de receitas que são parte de uma rede de saberes que abrange o Oceano Índico, pode produzir uma imagem mais abrangente dos contatos e da história que
se estende para além da colônia imaginária predominante? Baseado em uma série de conversas
e aprendizados suplementados com informações reunidas a partir de diversas mídias e arquivos,3
este texto assume o desafio das epistemologias do Sul (SANTOS 2007; 2014; 2018)4, em uma
tentativa de entender como a comida, invocando outras histórias, contatos culturais e processos,
permite que outras ontologias emerjam na construção das redes de saber através das lutas das
mulheres. No coração desta proposta está uma jornada através de aromas e sabores, caminhos
que foram silenciados pela narrativa colonial dominante e a hegemonia das histórias nacionais.5
Através das ligações próximas entre existência, saber e poder nos dois lados do Oceano
Índico, várias mulheres que são cotidianamente responsáveis pela sobrevivência de suas famílias
e comunidade foram e continuam sendo desumanizadas e transformadas em objetos, corpos
sem saber. Identificar as linhas do abismo colossal e as relações de poder-saber-existência subjacentes é fundamental para superar relações baseadas no silenciamento e na subalternação e
para permitir a copresença radical dos seres humanos e suas formas de saber (SANTOS, 2007;
2018). O sentimento de pertencer a lugares através de sabores permite que diferentes estímulos
sensoriais e laços afetivos sejam formados. Essa ecologia de sabores nos permite redescobrir
pontes entre o conhecido e o silenciado, o familiar e o estranho, assegurando, assim, a (re)existência de mulheres nas lutas contra a opressão. O conjunto de narrativas que eu reuni são um
exemplo da ecologia de saberes que são fundamentais para a elaboração de um modo alternativo de pensar sobre alternativas que possam renovar e fortalecer as lutas sociais, ajudando a
consolidar propostas que reforcem epistemologias pós-abissais.
A vida diária nas áreas costeiras de Moçambique me ensinou muito sobre a importância
de redes de saber no Oceano Índico. Viajantes usaram essas rotas, trazendo saberes e sabores
com eles. Essas redes históricas sugerem pontes baseadas em afetos, mas que permaneceram
silenciadas. Seja em Moçambique ou na Índia, os lugares e temas específicos cobertos neste
texto encontraram seu caminho na minha trajetória, se impondo como um desafio epistêmico.
Eu tinha lido reportagens e artigos e conversado com amigos, colegas e alunos. Suas observações, sugestões, questões e descrições de eventos do cotidiano e a centralidade da comida
transformaram essa jornada em sabores e aromas. Relações baseadas em amizades e proximidade tomaram a forma de longas conversas, de aprendizado sobre culinária e, acima de tudo,
muitos momentos felizes divididos com muitas mulheres e homens. Foram essas conversas que
formaram a espinha dorsal deste texto, colocando desafios variados: escrita, a ciência abissal
3 Em Goa, os Arquivos Históricos de Goa, assim como os documentos armazenados na Biblioteca Estadual
Central em Panjim; em Maputo, os Arquivos Históricos de Moçambique. Respondendo ao desafio estabelecido por Ann Laura Stoler (2002), os arquivos foram vistos como locais para a produção de conhecimento sobre
alteridade e monumentos na construção e consolidação do conhecimento do estado colonial. Questionando
a construção do conhecimento colonial e as representações hegemônicas que ele gera e que ainda são aceitas, requer estudar a própria agência do arquivo colonial como produtora de conhecimento.
4 O Sul global como uma proposta ontológica, política e epistemológica é analisado em detalhe na introdução deste volume.
5 Enquanto dicotomias coloniais enfatizam a oposição colonizador-colonizado, nos novos contextos nacionais (que estão emergindo com independência), a principal oposição torna-se entre elites e subalternos,
questionando a natureza do “projeto nacional”; por outro lado, isto é reforçado pelas narrativas sobre “cozinha
nacional” (FERGUSON, 1998, p. 600; PALMER, 1998, p. 36).
Maria Paula Meneses
199
Sabores, aromas e saberes
é desafiada pelas epistemologias do Sul, apoiadas por saber oral (SANTOS, 2018, p. 186). Elas
permitiram que as conversas fluíssem sem nada das qualidades extrativistas da entrevista. As
conversas e o aprendizado foram encontros notáveis: elas possibilitaram longos diálogos sobre
200
experiências e saberes, criando ligações mais horizontais em termos de relações de poder. Nas
mãos dessas mulheres, eu comecei a entender como os produtos são transformados em cultura,
uma experiência preenchida por aromas, sabores, texturas e afetos. Essas aulas de culinária me
ensinaram que educar os sentidos é radicalmente empírico, trazendo novas dimensões para o
significado de humanidade.
Ao mesmo tempo, ao tirar o texto escrito da condição de monumento (SANTOS, 2018, p.
186-187), essas conversas problematizam a hegemonia da racionalidade científica. Ao preparar
comida, usando a cozinha como um laboratório para saberes e sabores, os sentidos do cheiro, do
sabor e do tato tornam-se centrais, apesar de serem dispensados no pensamento moderno, uma
vez que eles “ameaçam o regime abstrato e impessoal em virtude de sua interiorização radical,
propensão a transgredir limites e potencial emocional” (CLASSEN et al, 1994, p. 5). Desafiar a
linha abissal, que insiste na visão como a faculdade primordial para entender o mundo, é uma
resposta ao desafio apresentado por Boaventura de Sousa Santos através das epistemologias do
Sul: refundando a imaginação política e fortalecendo as lutas sociais contra a dominação e opressão no mundo (SANTOS, 2018, p. 126-127). Em um mundo em que mulheres e seu saber das
habilidades culinárias e da comida são ainda representadas como ausentes graças a relações de
poder muito desiguais, redimi-las é um ato político eminente: é um exercício de justiça cognitiva.
O objetivo principal deste texto é (re)conectar dois lugares nas costas do Oceano Índico
através de comida e o significado que ela evoca como uma forma de experienciar trânsitos e pertencimento potencialmente pós-abissais (individual e coletivamente).6 Estudar comida e saberes,
estando envolvida em sua preparação, de uma forma dinâmica, circulando entre diferentes contextos, ajuda-nos a entender as trajetórias e os significados biográficos ligados ao uso de um objeto
em particular (como a comida) (APPADURAI, 1991, p. 13). O desafio é estudar os saberes e objetos
que usamos para preparar comida, em termos de seu movimento e fusão contínuos, revelando a
dinâmica do contexto social no qual esses processos acontecem (INGOLD, 2011, p. 136). Através
da história social da comida7 e daqueles que a preparam, é possível recuperar redes de reciprocidade e solidariedade e (re)descobrir saberes e histórias que foram silenciadas e subalternizadas.
Aprendendo a história dos sabores do mundo
O Oceano Índico é um oceano de conexões. Os relatos de ligações regionais múltiplas e
transoceânicas são parte do seu legado, que inclui relatos de viagens, comércio, conexões familiares e peregrinações religiosas (SHERIFF, 1987; SUBRAHMANYAM, 2011; ALPERS, 2014).
Esses itinerários reais ou imaginários revelam outra paisagem histórica na qual o Oceano Índico
se destaca como uma rede centenária de pontos de encontro. No entanto, vista do Norte, esta
rede se desfaz, substituída por ligações entre centros colonizadores e suas (antigas) colônias.
Provincializar a história do mundo se baseia em repensar as relações entre espaços que moldam
culturas e as áreas de contato entre eles, além das narrativas armazenadas em arquivos colo-
6 Historicamente, o território colonial de Moçambique manteve uma relação dependente com Goa até
meados do século XX (MENESES, 2009a).
7 A história social das mercadorias visa a identificar fluxos e refluxos de longo prazo que tenham um impacto nos contextos sociais principais; biografias se referem a trajetórias mais específicas e privadas (APPADURAI, 1991, p. 36).
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 196-213, 2022
Artigos
niais.8 Este questionamento do colonialismo pressupõe que ele não é um passado finalizado,
mas uma realidade contemporânea metamorfoseada que ainda informa e define o presente.
Baseado nessa premissa, é possível imaginar uma rede de outras histórias (SUBRAHMANYAM,
2011) sinalizando continuidades e transformações dentro de relações baseadas em poder e
saber. Apesar disso, essas interpretações não consideram como os sabores também viajam, uma
característica dos encontros dos saberes nesta área do oceano.9
Muito antes da imposição do sistema colonial-capitalista moderno, as conexões do Oceano
Índico promoveram troca e colaboração religiosa, política e cultural (em um nível regional e transcontinental). Nas antigas rotas marítimas viajantes, homens sábios, padres e comerciantes cruzavam
caminhos, auxiliados pelos ventos de monções. Linho, seda, pimenta, gengibre, anéis de prata e
inúmeras pérolas e rubis são descritos por Castanheda (1552-1561) como produtos trocados
pelos Mouros na costa da Sofala (atualmente Moçambique) em troca de ouro e outros produtos
(LEE, 1829, p. 57). Os arquivos que consultei, fossem em Goa ou Maputo, descrevem o transporte
de plantas comestíveis (como coco, manga e arroz) e temperos (pimenta, noz-moscada, canela
e gengibre) ao longo do império colonial português, por todo o Oceano Índico até o Atlântico.10
No início do século XIX, um relato de Sebastião Xavier Botelho fornece uma descrição detalhada do comércio que acontecia na costa de Moçambique. As mercadorias incluem seda da
China, chá, vinho de caju, açúcar de coco, piche de Malacca, castanhas de areca, redes de pesca,
tecidos e vários itens de vestimenta e armas (1835, p. 373). Além disso, um documento do Posto
Alfandegário de Goa11 lista vários produtos “importados” de Moçambique, incluindo amendoim,
arroz e nachenim.12 Estes produtos alimentícios refletem contatos e apropriações culturais mútuas
que possuem uma longa história (MENESES, 2013). Como a extensa documentação consultada
mostra, Goa funcionava como um posto de troca, ligando várias cidades costeiras de Moçambique
ao Timor. Os temperos típicos da comida “indiana”, como uma pesquisa baseada nos arquivos
de Goa indicam, não vêm todos desta região. Um dos primeiros documentos que fornece uma
descrição completa do uso de vários produtos alimentícios e suas origens foi escrito por Garcia
da Horta, em meados do século XVI, em Goa. Uma correspondência datada do fim do século
XVIII indica que o cravo e a noz-moscada vinham do Timor, enquanto a canela era importada do
Ceilão (atual Sri Lanka).13 Alguns anos depois, os Livros das Monções registraram o despacho de
almíscar, ópio, goma-arábica, incenso, noz-moscada e tamarindo do Rio de Janeiro, no Brasil.14
8 Os impérios coloniais, particularmente a partir do século XIX, estavam redesenhando a geografia dos
contatos no Oceano Índico, favorecendo ligações econômicas entre metrópoles e seus territórios coloniais
e desencorajando conexões pré-coloniais. Em diversos casos, a independência política, especialmente da
segunda metade do século XX em diante, derrubaram ligações e fronteiras coloniais, reformulando conexões
passadas.
9 Produtos alimentícios revelam uma longa história dos contatos no Oceano Índico. A lista inclui produtos desta
bacia ou de outros lugares que tinham acesso à cozinha do Oceano Índico por via marítima ou rotas terrestres.
10 Ver material contido nos Arquivos Históricos de Goa (HAG), incluindo tanto os Registros da Alfândega
quanto os Livros de Monções. O nome deste último vem do fato de que os navios através dos quais correspondências eram enviadas tinham que esperar pela monção favorável antes de partir. Quase todos os livros
que contêm correspondência com a capital do Reino (Lisboa, Portugal) têm as palavras “Monções do Reino”
(MR) na lombada. Deve-se notar que esses livros também contêm informações que se referem a outras partes do império, como Moçambique, Macau e Timor. Um grande número de Livros de Monções em Portugal
já foi digitalizado e pode ser consultado na Torre do Tombo. Durante os quase 3 meses que passei nos arquivos em Goa, consultei incontáveis Livros de Monções, incluindo HAG-MG, 46-B; 49; 51-A; 164-C; 168-D; 169-B;
170-C; 172-B; 175; 177-B; 179-A; 180-A; 181-A; 183-B; 184-A; 185; 189; 190-B; 191-B; 192-A; e 198-D.
11 HAG 9625 (correspondendo a 1849-1950).
12 Nachenim (Eleusine coracane) é um cereal de origem africana amplamente utilizado em Moçambique e Goa.
13 MR 177 (HAG).
14 MR 191-B (HAG).
Maria Paula Meneses
201
Sabores, aromas e saberes
As descrições detalhadas de trocas comerciais disponíveis nestes arquivos refletem as extensas
áreas de contato cultural (PRATT, 1992, p. 4) associadas ao saber, sabores e aromas que ainda
caracterizam a região atualmente. Nestas descrições, áreas urbanas como a ilha de Moçambique,
202
Zanzibar, Mombaça, Cairo, Mumbai e Goa são descritas como zonas de contato cosmopolitas para
circuitos culturais transcontinentais (MENESES, 2016, 2018). Além disso, tanto homens quanto
mulheres podiam ser encontrados nessas jornadas. Em 1842, os passageiros desembarcando
no porto de Goa de um navio que havia partido da Ilha de Moçambique incluíam uma mulher
hindu chamada Ucau. De acordo com os registros do Posto Alfandegário, entre os vários pertences que ela declarou, ela havia trazido um pilão para moer temperos, um moinho de arroz
de pedra, óleo de gergelim, sal, açúcar mascavo (cana-de-açúcar), uma panela de cobre, uma
frigideira, chá, copra, canela, açafrão e gengibre. Outra passageira, chamada Maria Leo, declarou
que estava carregando um barril de achar (um picles do sul asiático), além de marfim e chifres
de rinoceronte que foram presentes de seu marido, que estivera em Moçambique.15
Além do comércio, os contatos forjados no Oceano Índico também incluem conexões familiares. Desde o fim do século XIX, o próprio grupo misto de pessoas da Ásia teria sido conhecido
como “comunidade indiana”. Isso incluía mercadores Vanya (Hindu Baniya) em Damão e Diu, que
eram Gujaratis, goeses católicos e muçulmanos da Índia e de Zanzibar, entre outros. Relações
nos prazos, em Zambézia,16 no final do século XIX, refletiam as conexões políticas e familiares
desenvolvidas em várias partes do império, de Goa a Moçambique (ISAACMAN, 1982; ALPERS,
2009), como pode ser visto na descrição de Gavicho de Lacerda:
[Em Zambézia], a tradição pede por repastos ricos e diversos. [...] Nossa primeira refeição na casa foi inesquecível e nós sentimos nosso paladar queimando
por dias depois disso, uma vez que as iguarias eram muito apimentadas.
Curry, até então completamente desconhecido por anos, é um prato indispensável em todas as refeições na África. É particularmente potente, e os ingredientes que o complementam são ainda mais picantes. [...] Ele encontra seu
caminho pela casa de todos, do mais pobre ao mais rico. [...] Curry deve ter sido
introduzido na África Oriental pelos indianos que migraram para estas regiões
costeiras há muito tempo. Prova disso é o fato de que curry com arroz não é tão
comum no Oeste [da África]. Desde que mencionamos o curry, não podemos
evitar apresentar a receita. Normalmente, é feito com frango, camarões, carne
ou peixe, ou mesmo com vegetais. O arroz é cozido separadamente do curry.
O cozido de curry é feito em uma panela onde se adiciona, além da carne ou
do peixe, leite de coco, que é o ingrediente principal. [...] Adiciona-se, então,
piripiri (uma pimenta pequena, muito picante, cortada em pequenos pedaços)
à panela e um tempero muito conhecido da Índia, feito de açafrão, cominho,
coentro, sementes, cravo etc. A cozinheira precisa mexer o ensopado lentamente. [...] O curry nunca é comido sozinho. É acompanhado por outros pratos
que são bastante apimentados e, para ser completo, precisa ter “todos os seus
matadores”, como as pessoas dizem aqui. [...] Picles de manga ou limão, que é
feito com pedaços destas frutas preservadas no sal, com muito piripiri e suco
de limão que, para que dure muito tempo, precisa ser exposto diretamente à
luz do sol por alguns dias; paparim, um tipo de fritura como aquelas que preparamos no Natal, com exceção de que, ao invés de ser doce, é picante, feito
com a farinha de um feijão local (feijão-soroco) e é bem frito ou assado em fogo
aberto; bambolim, um peixe seco da Índia, como balchão e tamarindo, apesar
15 HAG 6823 (correspondendo a 1842).
16 Prazos eram territórios do reino arrendados por Portugal. Apesar de originalmente terem sido planejados para serem governados por súditos portugueses por três gerações, através de casamentos eles se tornaram propriedades portugueses-africanas ou indiano-africanas (ISAACMAN, 1982).
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 196-213, 2022
Artigos
de que estes são enlatados; mucuane, verduras finamente picadas feitas com
as folhas de ervilhas, mandioca ou feijão, cozidas com leite de coco e piripiri;
chutney: feito com tomate assado, que é, então, pressionado com uma colher
junto com coentro fresco e, claro, piripiri. (LACERDA, 1929, p. 5, 12-14).
Focando na importância dos aromas e sabores, este relato enfatiza a arte da hospitalidade
e cuidado na região. As descrições sensuais da comida transmitem uma imagem de Moçambique
como parte do mundo do Oceano Índico. Apesar disso, dois processos paralelos alterariam esta
imagem: as crescentes revoluções burguesas europeias e as conquistas coloniais, particularmente
a partir do século XVIII. No Oceano Índico, o projeto colonial seria imposto baseando-se em três
referências coloniais – higiene, ordem e beleza (LAPORTE, 2000, p. 84-85) – que foram fundamentais para legitimar a ordem metropolitana colonial. Dentro desta tríade, que foi um produto
de um ambiente colonial, capitalista e sexista, outros cheiros e sabores foram considerados como
pertencentes a povos inferiores que foram relegados ao status de alteridade subalterna. Na lógica
moderna, sentir o pulso do mundo através da visão contribui para preservar relações de poder
que silenciam o saber e a presença de mulheres envolvidas na luta por justiça social e cognitiva,
prevenindo assim qualquer diálogo com outros imaginários de um outro mundo possível. Essa
violência epistêmica, envolvendo a exclusão radical de experiências sensoriais do pensamento
moderno, traduziu-se em violência ontológica, transformando essas mulheres em não seres
subalternos e silenciados e servindo como um exemplo da impossibilidade de copresença nos
dois lados da linha abissal.
Sabores que criam relações
Preparar um prato envolve aprender nas cozinhas, que são nossos laboratórios. Em Moçambique, como em outras partes do mundo, a culinária é performativa: a cozinheira, a família,
seus amigos e outros convidados participam do ato, comendo, comentando sobre e apreciando
a comida. Nesta região do mundo, a cozinha é o domínio da mulher, e elas controlam os laboratórios, como eu aprendi em inúmeros encontros e conversas que formam a base deste estudo.
Os saberes do Curry
Na Ilha de Moçambique, a conversa que eu estive com D. Fátima,17 que insistiu em me
ensinar como cozinhar o “nosso curry”, desdobrou-se em aprendizados sobre os significados
interligados com o prato.
Cozinhar significa não ter vergonha de ter suas mãos cheirando a comida. Esse
cheiro significa que você gosta das pessoas para quem está fazendo o curry! [...]
Devagar, você corta a cebola e o alho, bem finos, [...] corta o piripiri em pedaços.
Você os mexe dentro da panela e os refoga. Mas os outros ingredientes devem
ser preparados antes, então você os adiciona aos poucos. Você coloca o leite de
coco bem devagar enquanto o curry ainda está cozinhando... [...] Você cozinha
tudo bem devagar porque você tem que deixar os sabores penetrarem no peixe. [...] Agora adicione o tempero. Se você quer fazer um curry de verdade, você
tem que comprar os temperos e batê-los juntos com o benga [pilão], depois
que você os assou. O tempero, você compra na loja? Você não sabe nem há
quanto tempo ele foi feito! Depois você tem que grelhar coco fresco para fazer
o leite. Você tem que escolher os cocos cuidadosamente para ter um leite bom!
O sabor final do curry depende de quem o faz – mais doce, mais picante...
17 Encontro que aconteceu na Ilha de Moçambique em junho de 2002.
Maria Paula Meneses
203
Sabores, aromas e saberes
Em Panjim (Goa), anos depois, voltei a ser uma cozinheira aprendiz. Com uma amiga, a D.
Luísa,18 persegui o caminho do saber que é exigido para preparar um curry como “nós fazemos
aqui”. Como antes, em Moçambique, eu tive uma surpresa: “Você cozinha curry com coco tam-
204
bém?”. Dela e de outras amigas, eu estava aprendendo a detectar as diferenças sutis no sabor
que diferencia um “curry goense” (ou seja, um preparado em famílias católicas) de um curry
goense “hindu”.19 Fui com elas em idas ao mercado e participei de negociações envolvendo
comprar temperos.
Cada pessoa tem seu próprio jeito de fazer curry, que aprende da sua família.
Na nossa família [goense católica], curry tem que ter coco e piripiri; sem isso,
não é curry. Você tem que escolher os cocos cuidadosamente para ter um bom
leite. Depois, abre os cocos e os grelha, junto com os temperos. Num curry
normal, eu uso cúrcuma, cominho, alho e piripiri, colocando tudo numa pasta
que pode ser usada para peixe, camarão ou até curry de carne. Outras pessoas
podem adicionar temperos diferentes, como canela, cravo, gengibre, e mais...
Os hindus preferem ambottik, que é mais apimentado e mais ácido. É um curry de peixe com vinagre ao invés de coco.
Em outra ocasião, em Maputo, o convite para almoçar foi precedido de uma conversa sobre
a arte de fazer curry. Tendo sido chamada a ajudar a grelhar o coco e colocá-lo na pasta com os
outros ingredientes, eu naturalmente comecei a pensar sobre meu tempo em Goa. A resposta
foi novamente surpreendente: “Então elas fazem também? Não é uma receita de Moçambique?!
Quando eu era criança minha mãe sempre dizia; esta é nossa comida, daqui, comida moçambicana”.20 E, de fato, o sabor excelente também mostrou as propriedades únicas desta cozinha,
que é local e global ao mesmo tempo.
Cozinhar um curry é um empreendimento arriscado, refletindo a conquista das resistências (COLLINGHAM, 2006). Sólidos e líquidos são misturados na panela pela mão sábia da
cozinheira. Eles são cozidos em fogo baixo, esperando a adição criteriosa dos temperos. Tempo,
sabedoria e cuidado garantem o resultado final, que estimula o paladar com o cheiro que sobe
na metade do processo de cozimento, quando os aromas se intensificam. Curry é um exemplo
de como características individuais tornam-se uma singularidade única que acorda o erotismo
do sentido do paladar.
Ao se preparar comida em cozinhas, o saber é apropriado e incorporado através da experiência prática. Isso foi experimentado durante a preparação do curry na Ilha de Moçambique.
Em sua discussão sobre a “prática ponderada” da preparação de comida, Lisa Heldke (1992)
refere-se ao saber culinário como “saber corpóreo” (HELDKE, 1992, p. 218), salientando que é
uma questão de consciência factual, mas que é também experienciada pelo corpo. A importância
da experiência é evidente nas “velhas mãos” a que D. Isabel se referiu quando estava preparando
curry: “Você pode saborear! Minhas mãos são velhas, mas o gosto da comida vem das minhas
mãos para a panela”.21
18 Conversas que aconteceram em Panjim, Goa, setembro-novembro de 2015.
19 Ver Rodrigues, 2004, p. 46-48.
20 Almoço com Maria Carvalho, abril de 2018.
21 Conversas em Panjim, Goa, novembro de 2015.
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 196-213, 2022
Artigos
O reconhecimento de que o conhecimento não está “na mente”, mas é praticado e experienciado através dos vários sentidos envolvidos na preparação da comida, foi evidente na resposta
de D. Isabel quando eu a perguntei sobre a receita do curry: “Eu não conheço nenhuma receita...
às vezes eu sequer me lembro bem das coisas... só quando eu chego ao mercado e começo a
pensar sobre o que vamos fazer que eu sinto a receita na minha cabeça”.
As badjias (bhajis) que alimentam “as pessoas”
Culinárias de todos os tipos são baseadas em uma gramática de saberes que é frequentemente expressada oralmente. As receitas transmitidas através das práticas do dia-a-dia expressam
histórias e encontros culturais, refletindo experiências vividas e lutas situadas. Cozinhar é uma
forma de saber e de ser, como eu aprendi com as badjias.22
2018, Maputo, na entrada da escola onde eu estudava, nos anos 1980, de uma
grande frigideira equilibrada precariamente em um banco montado na calçada vem o cheiro de badjias, trazendo de volta memórias dos meus anos de
Ensino Médio. D. Luísa coloca mais uma porção da espessa massa de badjia
no óleo que borbulhava desde o começo da manhã. A massa é preparada em
casa, no dia anterior. É uma receita “de família”, feita com farinha de feijão-nhemba, misturada com vários temperos: coentro, alho e cebola crua picada.
A badjia sibila gentilmente quando cai no óleo; ela é virada algumas vezes dentro da panela, e então está pronta. D. Luísa abre um pãozinho, enche-o com a
badjia frita na hora e me entrega. Eu a agradeço e me afasto para dar lugar
para um jovem estudante que estava esperando atrás de mim; eu mordo o pão
e o gosto me leva de volta aos meus dias de escola.23 Badjias ainda são parte
essencial da comida de rua.
2015, Panjim, Goa. Estou na Biblioteca Estadual Central quando uma colega
me pergunta se eu quero um vada pao.24 Estou em Goa trabalhando com comida e aceito. Tarang, que se ofereceu para ir comprar este item desconhecido,
logo está de volta com pacotes embrulhados em jornal. Minha colega me entrega um deles. Quando eu o abro, encontro um pão quadrado macio com algo
que parece uma badjia, dentro, coberto com molho picante verde. A primeira
mordida do pav (“pão”) e vada (fritura) me leva de volta a Maputo. Somente o
molho picante, temperado com piripiri, coentro e menta, não é familiar. Ela me
pergunta se eu gostei. Como posso explicar as sensações? Um contraste perfeito de sabores e texturas preenche minha boca e, ao mesmo tempo, me leva de
volta ao meu país. A primeira mordida foi um deleite e me tornou uma freguesa
regular da pequena loja perto da biblioteca onde o vada pao era feito.
Em Goa, o vada pao é popular. As conversas que eu tive com a colega que me apresentou
ao vada pao revelaram muito sobre comida e processos identitários. Os principais ingredientes do
vada pao – batata e pão – foram trazidos para a Índia por portugueses do século XVII em diante.
O único ingrediente chave que vem da região – ou mesmo da Índia – é o besan, ou farinha de
grão-de-bico. Em um tempo em que tensões políticas se estendem para as mais diversas áreas,
22 A palavra badjia vem da costa oeste da Índia, onde é usada para descrever um bolinho frito/salgadinho
popular que possui muitas variedades.
23 Extratos do meu diário de trabalho de campo.
24 O nome habitual para este tipo de comida de rua é vada pav. Em Goa, onde a presença portuguesa
tem raízes mais profundas, o termo vada pao é comum. Ele abrange a palavra Maratha “vada”, que significa
“massa”, e “pao”, que vem do “pão”, em português.
Maria Paula Meneses
205
Sabores, aromas e saberes
comida não consegue escapar. Os partidos que apoiam Hindutva25 começaram a promover a cozinha “indiana”, baseada principalmente em pratos vegetarianos feitos com produtos que vêm do
estado, reivindicando o vada pao como uma das comidas “tipicamente” indianas (DALAL, 2017).
206
Apesar disso, onde eu comprei o vada pao, em Panjim, não havia dúvidas: “é comida goense”.26
Durante minha estadia em Goa, estou aprendendo como comidas como vada pao/badjias,
que estão ligadas a um território particular, servem como um espaço para memórias ou lugar
mnemônico, incorporando traços concretos de um passado colonial que não tem representação,
um “passado ausente” na historiografia portuguesa, indiana e moçambicana.
Em Maputo, os vendedores de badjia dividem histórias de lutas que são parecidas com
aquelas das mulheres com quem falei, em Goa (WILSON, 2015). Badjias são uma fonte de renda
vital para muitas famílias: “Eu começo pilando os feijões a noite, para poder colocar os feijões
batidos de molho. Depois das duas da manhã, eu começo a preparar a massa para as badjias. Eu
vendo badjias a partir das quatro da manhã, quando os trabalhadores e estudantes estão saindo
para o trabalho,” disse D. Irene,27 uma das vendedoras de badjia que conversou comigo entre
as vendas que fazia. Essa conversa aconteceu de manhã cedo, enquanto clientes paravam para
comprar badjias quentes. Os cumprimentos trocados com vários indivíduos mostraram que Irene
tem clientes regulares, que ficavam felizes em conversar sobre como o negócio estava indo ou
as dificuldades da vida. Para Irene, separada do pai de seus quatro filhos há muito tempo, este
trabalho é seu meio principal de sustentar sua família: “meus filhos vão para a escola porque eu
tenho este negócio, tenho meus fregueses regulares! Todo mundo ama as badjias que faço. É
comida que moçambicanos comem enquanto lutam por sua vida diária”.
Antes de Moçambique tornar-se independente, em 1975, badjias eram a comida da classe
trabalhadora negra; elas pertenciam aos subúrbios negros. Como com outros aspectos da vida
cotidiana, a comida foi afetada pela revolução. Nos primeiros dias da independência, estava em
falta. Havia uma série de razões para isso: a crescente demanda causada pelo poder de compra
cada vez maior da população, o bloqueio montado pela África do Sul e a então Rodésia28 em
apartheid, países vizinhos dos quais Moçambique dependia economicamente; e mudanças
políticas que incluíam a nacionalização da terra e várias companhias agrícolas cujos donos fugiram do país. O resultado foi a falta de abastecimento de comida e a chegada de outros tipos
de comida, como as badjias, no centro da cidade que estava sendo reconstruída.29 Em outras
palavras, a falta de comida e ingredientes não só afetou a habilidade de preparar pratos tradicionais, mas também a maneira como os moçambicanos entendiam comida como marcadora de
identidade. Como essas conversas enfatizaram, a comida revela qualidades sensoriais, temporais
e espaciais que a transformam em um componente essencial de sistemas culturais (DOUGLAS,
1991). Da mesma forma, badjias, como comida de rua, mostram como mudanças no que as
pessoas comem e onde comem – a rua – constituem o principal fundamento para reivindicar
este território. As ruas da cidade de cimento estão sendo ocupadas por saberes subalternos e
sabores que vêm das periferias da cidade.
25 Uma tendência política que defende a Índia Hindu, advogando o estabelecimento de um estado hindu
na Índia.
26 Uma declaração feita por um dos assistentes na loja de “vada pao” em Goa, em fevereiro de 2016.
27 Um encontro que aconteceu em junho de 2016 em Maputo.
28 A Rodésia do Sul se tornou independente em 1980 e mudou seu nome para Zimbábue.
29 Depois do êxodo da antiga população colonial portuguesa, o centro de Maputo, a cidade de cimento, foi
ocupado pela população negra, que antes morava principalmente nas periferias da cidade.
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 196-213, 2022
Artigos
O mundo experimentado através de sensações múltiplas
Tocar e saborear com profundidade, duas formas de contato imediato, permitem um entendimento relacional da intimidade e do corpo, proporcionando uma gramática para as mais
íntimas formas de ser e saber. Ao ralar o coco e moer os temperos, o cheiro, gosto e a sensação
da textura da mistura me ensinou sobre o uso do corpo como um órgão sensorial.
Em Goa, pessoas frequentemente comem com os dedos: em várias refeições compartilhadas, sinto que talheres são colocados na mesa em respeito a mim. O desafio tem sido aprender
como comer com meus dedos30. Esse ato é precedido por um ritual de higiene que me aproxima
da comida que como. Quando uso meus dedos, não há separação entre mim e a comida. Os
dedos aprendem como embalar a comida e combinam texturas e sabores antes de entregá-la
à boca – e, ao final da refeição, como um sinal de agradecimento, eles são lambidos. Lamber é
também uma forma de experienciar sensualmente a comida e o corpo, aproveitando o desejo
despertado pela comida.
Em um poema cativante, Boaventura de Sousa Santos explora a ligação próxima entre o desejo
sexual e pela comida, um ato que satisfaz tanto mente como corpo, a experiência de Moçambique.
Comer o mastro com a lagosta grelhada em sua chama.
Açafrão dourado. Cheiro do mar em terra.
Toque de loucura. Torrada.
Pensando, suficiente. Sentindo, insuficiente.
Mão no branco coco mulato.
Branco coco mulato coco.
Coco loco tocossado.
Wuputsu para encontros.
Suave xinoni e sura.
Até que o restaurante seja aberto.
Os pratos lambidos. Lamber. Permanecer
Gosto do oceano em um dedo. Tempero.
Não alho salgado.
Leão açafrão.
Canela fervendo.
Tempero e endurecimento.
Endurecer.
Sal do anoitecer sal da noite.
Sal do suor da manhã
Santos, 2017, p. 76-78.
Sentir profundamente enfatiza a existência relacional entre o “eu” e a outra pessoa que
amo, que me quer, com quem eu dialogo. A conexão tangível enfatiza o sentimento e a ligação
para que visão, som, paladar e olfato sejam apreciados e compartilhados, mesmo que não sejam
representados conscientemente.
Como podemos reviver o gosto de forma precisa e a experiência sensória e corporal para
entender a diversidade ontológica e epistemológica no mundo? Uma das ideias-chave nas
epistemologias do Sul é que entender o mundo estende-se para além de um entendimento
eurocêntrico do mundo (SANTOS, 2018). Por um longo tempo, a filosofia europeia negou uma
30 O uso de talheres estabeleceu uma distância entre o corpo e a comida que era ingerida, um fato
que, de acordo com Elias (1994), foi usado para diferenciar um homem civilizado de um selvagem.
Maria Paula Meneses
207
Sabores, aromas e saberes
legitimidade estética às experiências com a língua, apesar de especular sobre gostos em geral.
Ao separar o “eu” do mundo, a visão cria a ilusão de uma faculdade racional autônoma literal.
Associada com essa dissociação hierárquica está a ideia de que a distância entre aquele que sabe
208
e o objeto que é percebido reflete uma “vantagem cognitiva, moral e estética” (KORSMEYER,
1999, p. 12). Os outros sentidos são vistos como muito próximos e incapazes de estabelecer
a distância analítica necessária do objeto de percepção. Gradualmente, o saber deixou de ser
entendido como corporificado, com a ciência moderna concebendo os sentidos como dispensáveis, veículos indignos de confiança para o entendimento do mundo, que é controlado pela
razão (SANTOS, 2018, p.166).
Como discutiram Leong-Salobir, Ray e Rohel (LEONG-SALOBIR et al., 2016, p. 11), a estética emergiu como um campo discursivo na filosofia europeia do século XVIII, quando foi
afirmado que o gosto era inconsciente, subjetivo e muito íntimo para qualquer vazão racional.
Apesar disso, este consenso não tem mais base legítima. Pensando em termos do Sul e dos
corpos que estão reclamando saber e poder, é possível ver que o saber não é mais possível sem
experiências corpóreas, que são impensáveis sem sentidos e sensações (SANTOS, 2018, p. 165).
Merleau-Ponty (1992) aponta que, em grande parte, nós “desaprendemos” o que significa pensar
como um corpo (MERLEAU-PONTY, 1992, p. 89). É através dos nossos sentidos que sabemos e
consumimos o mundo e nos tornamos parte dele. Em termos de comida, embora o ambiente
natural influencie no paladar, é o aspecto cultural, a preparação da comida que cria o sabor do
lugar que é incorporado na relação entre comida e comer, juntos durante as refeições.
O sabor e o aroma da comida, que são formas de fazer contato direto com o mundo externo,
são também formas de interpretar a realidade. A forma real de cozinhar e o ato de dividir comida
criam hierarquias culturais e até exclusão. Como Boaventura de Sousa Santos (2018) aponta,
superar qualquer caso de exclusão abissal envolve experienciar mutualidade, sentir o mundo
estando consciente de suas assimetrias e a necessidade urgente por reciprocidade (SANTOS,
2018, p. 167). Ao falhar em reconhecer outras formas de sentir o mundo, em contextos que
experienciamos – e continuamos a experienciar – a violência tripla que marca os nossos tempos,
a exclusão ou subalternização de outros sentidos continua a reproduzir relações de poder hegemônicas e reformula exclusões abissais. As razões experienciadas através de emoções requerem
outras abordagens para ser, viver e experienciar o mundo. A lógica das epistemologias do Sul
emerge quando vivemos juntos comendo e saboreando, temperando conversas com saber
enquanto saboreamos afetos. Para Avó Ndzima,
Cozinhar é o ato mais privado e arriscado. Você pode colocar ternura ou ódio na
comida. Você pode colocar tempero ou veneno na panela. Quem seria responsável pela pureza da peneira ou do pilão? Como eu poderia deixar essa tarefa
íntima nas mãos de alguma pessoa anônima? Impensável, nunca na minha
vida, se sujeitar a um cozinheiro que você nunca nem viu. Cozinhar não é um
trabalho [...]. Cozinhar é uma forma de amar os outros (COUTO, 2003, p. 86).
Através de receitas podemos ir além de qualquer representação colonial que nega a contribuição das mulheres do Sul; nas receitas podemos ouvir as lutas e reconstruir os arquivos dos
saberes testemunhados por mulheres dentro dos circuitos de violência colonial, relações comerciais e a diáspora (MENESES, 2013). O saber que receitas revelam através das vozes daquelas
que as preparam tanto é profundamente local quanto, ao mesmo tempo, tem uma dimensão
universal, graças à natureza dos temas e ingredientes. É conhecimento situado, experienciado
intensamente através de cheiros, gostos e ternura que claramente não podem ser capturados
pela escrita. É conhecimento que é poderoso o suficiente para fortalecer lutas sociais porque
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 196-213, 2022
Artigos
possibilita a criação de razões desconhecidas ao raciocínio frio, razões calorosas que nutrem a
luta e mobilizam um senso de solidariedade (SANTOS, 2018, p. 190).
Ao ajudar a recuperar as histórias dos não seres, estes arquivos orais reconfiguram a reexistência do Sul, confrontada por tentativas incontáveis de aniquilação na forma de genocídio,
escravidão, patriarcalismo, colonização e erradicação de memórias culturais. Ao incluir mulheres como sujeitos completos, nas áreas em que elas são ativas, aumentamos a possibilidade de
desafiar a hegemonia do conhecimento científico moderno. Ao estudar os diversos contextos
da comida, ao redor do mundo, é possível identificar alternativas locais, as utopias concretas
por inovação e sustentabilidade que estão emergindo. O desafio é dar a elas credibilidade, ao
torná-las mais conhecidas, descolonizando a imaginação e expandindo a justiça cognitiva (MENESES, 2009b, 2018).
Saboreando contatos no mundo
O movimento e o contato entre culturas são características-chave dos seres humanos.
O movimento muda a materialidade das coisas porque implica a transferência de objetos ou
práticas (incluindo adaptações) que possam produzir diferentes materialidades, dependendo
dos caminhos seguidos e das mudanças introduzidas (BASU e COLEMAN, 2008, p. 328). Paradoxalmente, a comida se baseia no mito de pertencimento ao “local”. Qualquer receita culinária
tem suas raízes: o contexto cultural que gera os saberes que criam o prato, os ingredientes e
os utensílios. No entanto, isso não significa que receitas não possam viajar; ao contrário, elas se
adaptam, de forma flexível, às novas circunstâncias, reinserindo-se no novo “local”. São a relação
entre produtos e também entre produtos e processos de transformação que fazem uma receita
ser o que é e lhe concede individualidade, transformando a cozinha, o lugar onde a comida é
preparada, em um laboratório para cozinhar sentimentos. O calor da hospitalidade foi revelado
em conversas animadas sobre a preparação da comida e, acima de tudo, através da descoberta
das comidas e das receitas que ligam Goa e Moçambique. Palavras para pratos específicos como
bebinca, samosas, rissoles, sura, picles de achar, apas e sannas, ou mesmo ingredientes como
lanho31 ou nachenim, que são comuns nos dois lados do Oceano Índico, revelam encontros
esquecidos e a gramática de saberes na fusão de sabores e texturas preparadas na cozinha.32
Mulheres raramente seguem receitas para esse tipo de culinária. Elas adicionam, subtraem
ou mudam os ingredientes, dependendo do que elas têm à mão. Consequentemente, os pratos
viajam para territórios diferentes e circulam entre diferentes grupos culturais, ressurgindo com
novos nomes, sabores e texturas. As conversas que formam a base deste texto mostram como
narrativas marginalizadas transmitem um entendimento estruturado profundo das lutas diárias;
elas também revelam experiências que têm implicações profundas no entendimento das relações humanas em contextos socialmente definidos pela desigualdade resultado da opressão
que define nossos tempos.
Ouvir tornou-se uma arte, um ato político praticado através da proximidade e do contato;
nesse sentido, inevitavelmente invoca a corporalidade daqueles envolvidos em conversas, cujas
respostas são expressas pelo corpo. As histórias transmitidas em receitas contêm os saberes e
os sabores do passado, apesar de cada uma ressoar em formas consagradas específicas. Seu
31 Coco verde (HORTA, 1891, p. 244).
32 Ver Dalgado (1919). Deve ser notado que vários destes pratos, como o picles de achar e samosas, são comuns em vários territórios do Oceano Índico.
Maria Paula Meneses
209
Sabores, aromas e saberes
potencial transformador é realizado através da reciprocidade de traduções interculturais, quando
ouvir e ser ouvido torna-se um desafio transformador (LAMBEK, 2002).
No caso do Oceano Índico, o oral e os arquivos escritos mostram que a penetração do
210
comércio europeu combinou uma presença formal com meios informais (ALPERS, 2014). Os
próprios portugueses (e outros europeus) usaram as redes de comércio existentes no Oceano
Índico para obter produtos desejados na Europa. A fase inicial da presença europeia na costa leste
da África pode ser descrita como uma transição do controle do comércio e do conhecimento por
diferentes grupos sociais para o controle colonial-capitalista por grupos europeus (MENESES,
2009ª). Atualmente, o(s) sentido(s) atual(is) de lugar são parte de um uma série complexa de
relações – cruzamentos culturais envolvendo pessoas, comida, espaço e emoções.
Contatos transoceânicos de longa duração são revelados em trocas culturais, fazendo das
receitas um arquivo de saber. Ao cozinhar, mulheres compartilham receitas cujas histórias são
uma forma de pensar sobre o mundo. Elas contam sobre as relações baseadas em violência,
dominação e subordinação que definem as vidas de suas narradoras:
Nos dias dos colonos [dos colonizadores], aqui na ilha, não havia restaurante onde
você poderia comer um curry como o nosso; os restaurantes serviam comida indiana de Goa usando as receitas deles. Talvez nós cozinhássemos assim há muito tempo... não sei. Mas os goeses queriam ser vistos como portugueses, como
brancos. E os europeus só comiam [curry] quando eles eram convidados para
casas goenses. Atualmente, eu acho que pessoas que visitam a ilha preferem
esse curry indiano porque ele lhes lembra desses dias antigos, tempos coloniais...
Mesmo aqueles poucos brancos [que] comem curry com a gente, negros...
Pessoas comem com seus dedos, você tem que lavar suas mãos apropriadamente e aprende como fazer isso. Mas naqueles dias eles diriam – você é um
nativo, você come com seus dedos! E isso não mudou muito...33
Nos tempos coloniais, a principal divisão social era entre o colonizador e o colonizado. No
entanto, o debate sobre o papel das mulheres já tinha começado. Como resultado, apesar de as
mulheres que alcançaram posições de poder terem recuperado o direito de auto-identificação,
este processo de re-ocupar o ser e o saber não se estendeu para toda a sociedade. Mulheres
subalternas ainda são incapazes de fazer o melhor com o “direito à voz”, tanto porque seu saber
permanece silenciado quanto porque o conceito e o saber que expressam não são reconhecidos.
Aqui, a troca de saberes ainda é definida por desigualdades.
Ainda assim, comida é poder – e este poder deriva não apenas de controlar o consumo, a
produção ou a distribuição, mas também as ligações entre gastronomia e identidade, comida e
saber. Por meio das conversas e ao saborear os pratos que foram preparados, as relações desiguais
que ainda definem essas sociedades estão sendo renegociadas. Além disso, através da escuta
profunda e reflexiva, é possível recuperar histórias multissensoriais e localmente situadas que
revelam saber além do cânon colonial historiográfico. Embora contar histórias seja obviamente
uma forma de comunicação oral e performativa, também envolve outras formas de comunicação,
como gesto, toque, cheiro e sabor.
A comida e as sensações que ela desperta nos apresentam ao processo de negociação
contínua entre agência e limitação, pessoas e lugares. As jornadas de pessoas e mercadorias se
combinaram, nas margens do Oceano Índico, para moldar paisagens culinárias. De fato, talvez não
haja nada mais onipresente nos dois lados deste oceano do que vada pao/badjia ou curry. Assim,
33 Encontro com S. Xarifa, março de 2005, Ilha de Moçambique.
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 196-213, 2022
Artigos
ambos representam ligações culturais “ausentes”, o sinal de uma história compartilhada entre o
que é atualmente a Índia e as margens ocidentais do Oceano Índico, particularmente Moçambique. Nesse sentido, estes pratos (e a tentativa da narrativa colonial e nacional de seletivamente
esquecer estas ligações históricas) funcionam como marcadores de uma zona de contato culinária
geográfica em relação à maneira como são preparados e consumidos. Como um exemplo da
resistência dos saberes e sabores subalternos, o badjia/vada pao e o curry, como uma metáfora,
fazem alusão a uma história mais ampla, reconhecendo o papel que culturas através do mundo
desempenharam em estabelecer esta conexão através do sabor. Isso reflete o que Vergès (2006)
descreve como cozinha crioula,34 que renuncia à pureza e a qualquer tentativa de essencialismo,
uma cozinha que encarna processos e práticas trans-éticos e transculturais (VERGÈS, 2006).
Desafiando o silenciamento e a subalternação, as várias cozinhas têm emprestado, reformulado e adaptado os sabores e os saberes umas das outras, em uma forma de crioulização:
“imitação, apropriação e tradução” (VERGÈS, 2006, p. 245).
A paisagem sugerida pelos sabores do Oceano Índico é imensamente rica, preenchida por
séculos de história e conhecimento. A comida desafia as barreiras essencialistas que separam
culturas, atravessam tempos e permeiam a vida de cada geração. Definir caminhos para encontros e identificar possíveis zonas de contato envolvem conectar diferentes formas de pensar e
sentir, possibilitando que as várias histórias, exemplos e conceitos interajam de uma forma que
não é hierárquica. Há também um convite para nos encontrarmos a nós mesmos neste território, circulando dentro dele e conversando com aqueles que são parte dele, como uma forma de
superar o pensamento abissal.
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34 No contexto do sul da África, Nuttall (2000) e Michael (2000) diferenciam o multiculturalismo do hibridismo da crioulização. O primeiro é baseado em um sentido de contenção que é diferente de crioulização, que
mistura o íntimo e o público, incluindo o domínio dos sentidos. No entanto, a noção de identidade Crioula
não tem concordância em seu significado. Para Boswell (2017), a ideia de mal-estar Crioulo é usada para se
referir às implicações de espoliação e violência, que fragmentaram identidades, economias e solidariedade.
Entre os muitos exemplos que o autor fornece, a identidade Crioula como um projeto para harmonizar culturas não permite reconhecer o impacto da escravidão na limitação do acesso a recursos.
Maria Paula Meneses
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Maria Paula Meneses
213
Restinga comestible:
una alternativa para una
necesidad socio ambiental
Mariana Castañeda Díez
Mestra em Arquitetura Paisagística, PROURB / UFRJ
Rita de Cássia Martins Montezuma
PPGEO / UFF
Restinga comestible: una alternativa
para una necesidad socio ambiental
Resumen
El siguiente artículo presenta un trabajo que aborda dos problemáticas actuales de la ciudad
de Rio de Janeiro, Brasil; por un lado, en el tema ambiental, la fragmentación del ecosistema de
restinga nativos de esta zona, gracias a los procesos de urbanización; y por otro lado la carencia
alimenticia en las comunidades de bajos recursos económicos presentes en la región, para lo
cual se presenta una propuesta de paisajismo comestible implementada en el espacio público
de la zona oeste de la ciudad, buscando atenuar ambas cuestiones. Dicha investigación se realizó a partir del estudio de un marco teórico que trata temas de paisaje, ecosistemas, procesos de
urbanización y paisajismo comestible. Además de esto, utilizando herramientas tecnológicas
y realizando visitas de campo, se practicó todo el análisis biofísico y urbano-arquitectónico del
área de estudio seleccionada. Este proceso investigativo y proyectual permitió seleccionar unas
áreas dentro del espacio público en las cuales se aplicó la propuesta de paisajismo comestible.
Palabras clave: paisajismo comestible; ecosistemas de restinga; expansión urbana.
Restinga comestível: uma alternativa
para uma necessidade socioambiental
Resumo
O artigo a seguir apresenta um trabalho que aborda dois problemas atuais na cidade do
Rio de Janeiro, Brasil; de um lado, na questão ambiental, a fragmentação do ecossistema de
restinga nativo dessa área, devido aos processos de urbanização; e, por outro lado, a falta de
alimentos nas comunidades de baixa renda presentes na região, para as quais se apresenta
uma proposta de paisagismo comestível, implantado no espaço público da zona oeste da
cidade, buscando amenizar os dois problemas. Esta pesquisa foi realizada a partir do estudo
de um referencial teórico que trata de questões paisagísticas, ecossistemas, processos de urbanização e paisagismo comestível. Além disso, por meio de ferramentas tecnológicas e da
realização de visitas de campo, fez-se toda a análise biofísica e arquitetônica-urbana da área
de estudo selecionada. Este processo de pesquisa e projeto permitiu selecionar algumas áreas
do espaço público em que a proposta de paisagismo comestível foi aplicada.
Palavras-chave: paisagismo comestível; ecossistemas de restinga; expansão urbana.
The edible Restinga: an alternative
for a socio-environmental demand
Abstract
In this paper, two current problems the city of Rio de Janeiro faces will be presented. On the
one hand is the native ecosystem fragmentation’s environmental issue, occurring because
of urban development processes. On the other hand, the food shortage suffered by communities with low economic resources. A proposal for edible landscaping applied to Rio’s west
side public space that tackles both of these issues is presented. This work was done through
different methodological methods, including theoretical framework analyses, which explore
landscape and ecosystems issues, historical urban processes, as well as the edible landscape
concept. Also, technological tools and local visits to apply biophysical, urban, and architectural
analyses to the study area were applied and made. This research project and process allowed
the researcher to choose public space areas in which the edible landscape proposal would be
applied
Keywords: edible landscaping; restinga ecosystems; urban expansion.
Foto: Erivan de Jesus Santos Junior
216
Artigos
Introducción
El aumento constante de la población mundial genera un crecimiento periódico de los
centros urbanos, incrementando la necesidad por ocupación de los suelos y ocasionando amenazas de desaparición a los ecosistemas naturales, dada la fragmentación a la cual estos son
sometidos. Según datos presentados por la ONU (cf. https://nacoesunidas.org/), la población
mundial pasará de 7.7 billones de habitantes a 9.7 billones para el año 2050, lo cual pone en
grave peligro a estos hábitats naturales.
Figura 1: Imagen aérea de la Baixada de Jacarepaguá, zona oeste de la ciudad de Rio de Janeiro a inicios
del siglo XX. Fuente: Internet – https://oglobo.globo.com/rio/bairros/veja-imagens-aereas-da-zona-oestenas-decadas-de-1930-1940-14815540. Org.: Diez, 2018.
Figura 2: Imagen aérea de la Baixada de Jacarepaguá, zona oeste de la ciudad de Rio de Janeiro, donde
se evidencian los fragmentos de restinga remanentes. 1) Parque Natural Municipal Marapendí; 2) Parque
Natural Municipal Chico Mendes; 3) Parque Natural Municipal Bosque da Barra. Fuente: Google Earth
PRO. Org.: Diez, 2018
Mariana Castañeda Díez e Rita de Cássia Martins Montezuma
217
Restinga comestible
Por tal razón, y como objetivo de este trabajo, se establece una propuesta de paisajismo
que busca, por un lado, rescatar un ecosistema degradado que se encuentra en peligro por
dicha urbanización; por otro lado, aborda la problemática social actual de carencia alimentaria
218
y nutricional que enfrentan las comunidades económicamente vulnerables, sobre todo en los
países de América Latina y el Caribe (NAME, 2016).
La propuesta de paisajismo se desarrolla a partir de la conjugación entre especies nativas comestibles y las especies ornamentales existentes en el espacio urbano (NAME, 2016), las
cuales hasta ahora sólo han sido valoradas por su carácter netamente ornamental – tanto a nivel
privado como público, lo que ha catalizado la utilización de especies en su mayoría exóticas (ZAMITH, 2015). La valorización de las costas marinas, en Brasil, acarreó un atractivo por parte de la
población hacia estas zonas, lo que intensificó la ocupación de suelos en áreas costeras. Como
consecuencia de la urbanización en el litoral, los ecosistemas costeros, dentro de los cuales se
encuentra el ecosistema de restinga, han sido paulatinamente fragmentados y/o suprimidos,
aumentando el riesgo de extinción, bien sea por la pérdida del hábitat o por la competencia con
especies presentes en la arborización y otros usos urbanos.
De acuerdo a esto, aparece la necesidad por rescatar los ecosistemas de restinga, naturales de todo el litoral brasilero, los cuales se encuentran en un estado de subvaloración gracias
al poco conocimiento que se tiene sobre sus potenciales y al alto nivel de destrucción dada la
expansión urbana local. La prioridad que tiene el sector inmobiliario sobre las áreas verdes y los
parques urbanos agrava ese proceso, al promover formas de uso y apropiación en el entorno,
intensificando la degradación de los ecosistemas remanentes (GOMES, 2013).
Teniendo en la mira la importancia de los ecosistemas nativos para el equilibrio socio
ambiental costero (MONTEZUMA; OLIVEIRA, 2010), la siguiente propuesta busca aumentar
la conectividad entre los grandes fragmentos de restinga presentes en la zona de expansión
urbana de la ciudad de Rio de Janeiro, a partir del abordaje del paisajismo comestible enfocado
en la valoración de las especies nativas de los ecosistemas de restinga. Como recorte espacial, se
seleccionó un trecho de la costa de la Praia do Recreio dos Bandeirantes, correspondientes a los
Parques Naturales Municipales Chico Mendes y Marapendí, localizados al oeste de esta ciudad;
y, también, la favela Terreirão, situada al lado del Parque Chico Mendes.
Procesos históricos de una urbanización sin planificación
La restinga, muralla al océano Atlántico, que viene de Barra da Tijuca al cerro do Rangel, en una extensión de 20 kilómetros, en un arco
poco pronunciado de arenal y dunas, forma en su seno la laguna
de Marapendí, de agua dulce y muy profunda y una más pequeña,
conocida como Lagoinha, siendo estas separadas de los cordones
de Sernambetiba, por la restinga de Itapeva…
Magalhães Corrêa, 1933, p. 25.
Como se describe en Sertão Carioca, el paisaje de la zona oeste del municipio de Rio de
Janeiro, actualmente denominada Baixada de Jacarepaguá, a inicios del siglo XX estaba dominado por la restinga (Figura 1) – un ecosistema que alberga diferentes comunidades vegetales,
de acuerdo a su ubicación territorial (ARAÚJO et al. 1984). Este paisaje originalmente constaba
de arenales con vegetación arbustiva abierta, arbórea baja, pantanos y zonas de inundación –
características que describen terrenos agrestes y de difícil accesibilidad.
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 214-241, 2022
Artigos
Estos terrenos inhóspitos anteriormente estaban ocupados por los ingenios agrícolas pertenecientes a la época de la colonia, los cuales a medida que se negociaban las tierras, se iban
parcelando, dando origen a los primeros caseríos compuestos por casas en lotes menores individuales (MONTEZUMA et al. 2014). Actualmente este territorio es la zona de expansión urbana
de dicha ciudad; un proceso que según Montezuma y Oliveira (2010) se aceleró en la década
de los 70 con la gran saturación urbana que se dio en el núcleo citadino, principalmente en la
región llamada Zona Sur y en el barrio llamado São Conrado. Este fenómeno desató una “fiebre
inmobiliaria” (SOUZA, 2017), que promovió el crecimiento de la ciudad hacia la Baixada de Jacarepaguá, ocupando estos suelos en sentido Este-Oeste, consolidando inicialmente el barrio
Barra da Tijuca y continuando hacia el barrio Recreio dos Bandeirantes, en donde actualmente
aún prevalece gran cantidad de predios y el modelo de casas en lotes individuales.
Tal proceso de desarrollo urbano, pensado inicialmente para la clase alta de la sociedad
carioca, trajo consigo la mano de obra de la clase baja, la cual, al tener que trabajar en áreas tan
distantes del centro de la ciudad, optó por trasladarse a este territorio con sus familias y unirse
en comunidades no planeadas que se consolidaron como favelas inseridas dentro del contexto
socioeconómico medio – alto de la zona, formando lo que se denominó como el fenómeno de
“bolsillos de pobreza” (MONTEZUMA; OLIVEIRA, 2010).
Si bien para este proceso de urbanización se propuso el Plan Lúcio Costa, que establecía la
Baixada de Jacarepaguá como otra centralidad urbana de la ciudad, en lo cual las edificaciones
no superaran una altura máxima de 10 niveles y el modelo de ocupación del suelo estuviera en
equilibrio con los procesos naturales que allí se desarrollaban, la realidad fue que este proceso
estuvo manipulado por el mercado inmobiliario, el cual se encargó de destinar los suelos a la
implantación de condominios cerrados con edificaciones que llegan a los 30 pisos y grandes
centros comerciales que contrastan con las condiciones precarias de las áreas más pobres (CARDEMAN; NAME, 2014).
Estas dinámicas de urbanización consumieron los ecosistemas de restinga que anteriormente dominaban el paisaje, dejando como remanentes algunos grandes fragmentos que
sobreviven, en la actualidad, bajo la denominación de Unidades de Conservación (Áreas Protegidas), definidas como los Parques Naturales Municipales Marapendí, Chico Mendes y Bosque
da Barra (Figura 2).
Procedimientos
Para poder establecer cualquier tipo de propuesta urbana, es necesario conocer, leer y
entender el entorno y el contexto del espacio donde ésta será inserida. Para este caso se definió
como área de análisis el barrio Recreio dos Bandeirantes (Figura 3), donde se estudiaron los
sistemas biofísico y urbano-arquitectónico, examinando topografía e hidrografía, la tipología
de vías, la tipología urbana, los usos urbanos y el sistema de espacios libres de construcción,
tanto públicos como privados (Figuras 3, 4, 5, 6, 7 y 8), sacando los porcentajes de cada uno de
estos análisis, lo que busca revelar el potencial que tiene tanto el espacio público como privado
para la aplicación de un paisajismo con carácter comestible, a partir de la utilización de especies vegetales pertenecientes a los ecosistemas de restinga. Esta lectura se realizó usando una
combinación entre la herramienta Google Earth PRO (2017) y los softwares de Autodesk Auto
CAD, Adobe Illustrator y Adobe Photoshop.
Adicional a esto, se hizo un análisis de la arborización urbana existente a partir de varias visitas
y recorridos en carro donde se realizó registro fotográfico de las especies, así como una recopila-
Mariana Castañeda Díez e Rita de Cássia Martins Montezuma
219
Restinga comestible
ción de especies vegetales pertenecientes a la restinga, con potencial comestible otorgado por la
bibliografía existente (ARAÚJO et al., 1984); de igual manera se estudió el entorno socioeconómico
desde los datos censados en el año 2010 por el Instituto Brasilero de Geografía Estadística (IBGE).
220
Resultados y discusión
Los mapeos en el trecho oeste del barrio Recreio dos Bandeirantes, Rio de Janeiro demuestran la especialización de la vegetación urbana presente en la arborización de las vías, plazas,
unidades de conservación y en los lotes residenciales. El área de recorte (Figura 3) se define
entonces por la Avenida das Américas al norte, la línea costera al sur, el canal del río Morto al
oeste y la Avenida Gignard al este. El sistema hídrico (Figura 4) refleja claramente la conexión
que hay entre las lagunas de los Parques Naturales Municipales Marapendí y Chico Mendes y el
canal del río Morto; esta estructura es el resultado del movimiento geológico que ha sufrido esta
zona desde la era Holeocénica (DE ACEVEDO COSTA MAIA et al. 1984). Fruto de este proceso
resultaron los dos cerros que se incluyen dentro del área que corresponden el Morro do Rangel
y a la Pedra do Pontal.
Por otra parte, el sistema vial (Figura 5), deja en evidencia la jerarquización que estas vías
tienen de acuerdo a la cantidad de flujo vehicular que por ellas corre. Se encontraron entonces dos
vías de carácter primario que son intermunicipales y atraviesan la Baixada de Jacarepaguá de este
a oeste; otras vías secundarias que atraviesan el barrio Recreio dos Bandeirantes de norte a sur, y
finalmente las vías interiores del barrio y las de carácter peatonal que son menos frecuentadas.
La tipología edificatoria (Figura 6) refleja una predominancia de edificios de 4 niveles en
todo el lado este del barrio, mientras que, para la zona de expansión hacia el oeste, este patrón
cambia drásticamente a edificios de más de 10 niveles, junto algunos remanentes del modelo de edificación de casa con área verde, que llegó a dominar la zona a principios del siglo XX
(MONTEZUMA; OLIVEIRA, 2010).
El mapa de usos urbanos (Figura 7), muestra claramente el uso residencial del barrio y como
éste se resguarda del movimiento de la Avenida das Américas con una barrera de usos mixtos.
La caracterización de los espacios libres (Figura 8), deja ver como esta matriz urbana tiene gran
potencial para aumentar su permeabilidad, gracias a estos espacios tanto públicos como privados.
Este mapa del sistema de espacios libres públicos y privados (Figura 8) también muestra
que el barrio Recreio dos Bandeirantes presenta un área con gran porcentaje de arborización
urbana (Figura 9), reflejando el potencial de siembra que existe dentro del barrio, tanto en el
espacio público como en el privado. Sin embrago, tras realizar el análisis de las especies existentes, se encontró que, como lo manifestó Zamith (2010), la mayoría de las especies presentes
en el espacio público son exóticas con carácter ornamental. Las más comunes resultaron ser,
tendo en cuenta sus nombres en portugués: flamboyan (Delonix regia), almendro (Terminalia
catappa), casco-de-vaca (Bauhinia forficata), leucena (Leucaena leucocephala) y la palmera
coqueiro (Cocos nucifera). Apenas una especie nativa se encontró durante el levantamiento
que fue aroeira-vermelha, o pimiento del Brasil (Schinus terebinthifolius) – lo que fortalece el
argumento de reforzar esta vegetación existente, con especies pertenecientes a un ecosistema
nativo y que además proporcionan una alternativa a parte de las necesidades alimenticias de la
población socioeconómicamente vulnerable que habita en el entorno.
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 214-241, 2022
Artigos
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Figura 3: Área de recorte para análisis biofísico y sociocultural dentro del barrio Recreio dos Bandeirantes. Org.: Diez, 2018.
Mariana Castañeda Díez e Rita de Cássia Martins Montezuma
Restinga comestible
222
Figura 4: Mapa del sistema topográfico e hídrico, Recreio do Bandeirantes, Rio de Janeiro/RJ. Fuente: Google Earth (2017). Org.: por la autora, 2018.
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 214-241, 2022
Artigos
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Figura 5: Mapa de la caracterización vial, Recreio dos Bandeirantes, Rio de Janeiro/RJ. Fuente: Google Earth (2017). 1 – Avenida das Américas; 2 – Avenida Lúcio Costa;
3 – Avenida Guiomar de Novaes. 4 – Avenida Gilka Machado; 5 – Estrada Benvindo de Novaes; 6 – Avenida Glauco Gil; 7 – Avenida Guilherme de Almeida; 8 – Avenida
Guignard; 9 – Avenida Alfredo Balthazar da Silveira; 10 – Avenida Genaro de Carvalho; 11 – Estada do Rio Morto. Org.: Diez, 2018
Mariana Castañeda Díez e Rita de Cássia Martins Montezuma
Restinga comestible
224
Figura 6: Mapa de la tipología urbana, Recreio dos Bandeirantes, Rio de Janeiro/RJ. Fuente: Google Earth (2017). Org.: Diez, 2018.
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 214-241, 2022
Artigos
225
Figura 7: Mapa de los usos urbanos, Recreio dos Bandeirantes, Rio de Janeiro/RJ. Fuente: Google Earth (2017). Org.: Diez, 2018
Mariana Castañeda Díez e Rita de Cássia Martins Montezuma
Restinga comestible
226
Figura 8: Mapa del sistema de espacios libres públicos y privados, Recreio dos Bandeirantes, Rio de Janeiro/RJ. Fuente: Google Earth (2017). Org.: Diez, 2018.
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 214-241, 2022
Artigos
227
Figura 9: La arborización urbana del barrio Recreio dos Bandeirantes. Org.: Diez, 2018.
Mariana Castañeda Díez e Rita de Cássia Martins Montezuma
Restinga comestible
Como parte de esta pesquisa y basado en la bibliografía de ARAÚJO et al. (1984), se
realizó una recopilación de algunas especies de restinga con carácter comestible, medicinal y
artesanal (Tabla 1), que podrían ser implementadas como refuerzo dentro de la arborización
228
urbana existente. En la Tabla 1 se muestra el nombre científico de cada una de estas especies y
si estas aparecen en las localidades de Jacarepaguá y Grumarí, y finalmente las características
de uso que poseen.
Tabla 1: Especies vegetales pertenecientes a formaciones de restinga y que tienen potencial comestible,
medicinal y artesanal. Org.: Diez, 2018.
ESPECIE
JACAREPAGUÁ
Abrus precatorius
GRUMARI
CARACTERÍSTICAS
X
ARTESANAL
X
COMESTIBLE
Allagoptera arenaria
X
Alternanthera philoxeroides
X
Alternanthera tenella
X
X
COMESTIBLE
Anacardium occidentale
X
X
COMESTIBLE
Annona sp.
X
Arrabidaea conjugata
X
X
COMESTIBLE
Arrabidaea selloi
X
X
COMESTIBLE MEDICINAL
Bactris setosa
X
COMESTIBLE
Begonia fisherii
X
COMESTIBLE
Bomaria sp.
X
X
COMESTIBLE
Bromelia anticantha
X
X
COMESTIBLE
Byrsonima sericea
X
X
COMESTIBLE
Campomanesia aurea
X
COMESTIBLE
Canavalia parviflora
X
COMESTIBLE
Canavalia rosea
X
Cassia apocouita
X
Cassia australis
X
Cassia bicapsularis
COMESTIBLE
COMESTIBLE
X
COMESTIBLE
COMESTIBLE
X
COMESTIBLE
X
COMESTIBLE
Cassia flexuosa
X
COMESTIBLE
Cassia ramosa
X
COMESTIBLE
Cassia rotundifolia
X
COMESTIBLE
Cassia tetraphylla
X
COMESTIBLE
Cereus fernambucensis
X
COMESTIBLE
Cereus variabilis
X
COMESTIBLE
Chioccoca alba
X
Cissus sicyoides
X
COMESTIBLE
Cleome rosea
X
MEDICINAL
Clusia fluminensis
X
Commelina sp.
X
COMESTIBLE
Costus arabicus
X
COMESTIBLE
Costus spiralis
X
COMESTIBLE
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 214-241, 2022
X
X
MEDICINAL
COMESTIBLE
Artigos
ESPECIE
JACAREPAGUÁ
Couepia ovalifolia
X
Couepia schottii
GRUMARI
CARACTERÍSTICAS
COMESTIBLE
X
COMESTIBLE
Cyperus polystachyos
X
COMESTIBLE
Dioscorea cinnamomifolia
X
COMESTIBLE
Dioscorea cinnamomifolia
X
COMESTIBLE
Dioscorea laxiflora
X
COMESTIBLE
Dioscorea martiana
X
COMESTIBLE
Dioscorea mollis
X
COMESTIBLE
Dioscorea suhastata
X
COMESTIBLE
Eugenia arenaria
X
COMESTIBLE
Eugenia brasilensis
X
COMESTIBLE
Eugenia ceresiflora
X
COMESTIBLE
Eugenia copacabanensis
X
COMESTIBLE
Eugenia glomerata
X
COMESTIBLE
Eugenia nitida
X
X
COMESTIBLE
Eugenia ovalifolia
X
X
COMESTIBLE
Eugenia cf. Pruinosa
X
Eugenia rotundifolia
X
X
COMESTIBLE
Eugenia sulcata
X
X
COMESTIBLE
Eugenia uniflora
X
X
COMESTIBLE
Eugenia velutiflora
X
COMESTIBLE
Eupatorium apiculatum
X
COMESTIBLE
Euphorbia brasilensis
X
COMESTIBLE
Ficus catappaefolia
X
COMESTIBLE
Ficus clusiaefolia
X
COMESTIBLE
Ficus hirsuta
X
COMESTIBLE
Ficus organensis
X
COMESTIBLE
Ficus pulchella
X
COMESTIBLE
Geonoma schottiana
X
COMESTIBLE
Humiria balsamifera
X
COMESTIBLE
Hydrocotyle bonariensis
X
MEDICINAL
Ilex sp.
X
COMESTIBLE
Inga fagifolia
X
COMESTIBLE
Inga maritima
X
COMESTIBLE
Ipomoea littoralis
X
X
COMESTIBLE
Ipomoea pes - caprae
X
X
COMESTIBLE
Justicia cydoniifolia
X
X
COMESTIBLE
Lantana fucata
X
Lantana pohliana
X
Lantana vicosa
Maranta sp.
X
COMESTIBLE
MEDICINAL
X
MEDICINAL
X
MEDICINAL
COMESTIBLE
Mariana Castañeda Díez e Rita de Cássia Martins Montezuma
229
Restinga comestible
230
ESPECIE
JACAREPAGUÁ
Melocactus melocactoides
X
COMESTIBLE
Mimosa bimucronata
X
COMESTIBLE
Mimosa elliptica
X
COMESTIBLE
Myrcia lundiana
X
COMESTIBLE
Myrcia ovata
X
COMESTIBLE
Myrcia racemosa
X
COMESTIBLE
Myrcia recurvata
X
COMESTIBLE
Opuntia vulgaris
X
COMESTIBLE
Passiflora edulis
X
COMESTIBLE
Mimosa elliptica
X
COMESTIBLE
Myrcia lundiana
X
COMESTIBLE
Myrcia ovata
X
COMESTIBLE
Myrcia racemosa
X
COMESTIBLE
Myrcia recurvata
X
COMESTIBLE
Opuntia vulgaris
X
COMESTIBLE
Passiflora edulis
X
COMESTIBLE
Passiflora galbana
X
COMESTIBLE
Passiflora haematotigma
X
COMESTIBLE
Passiflora mucronata
X
COMESTIBLE
Pereskia aculeata
X
X
COMESTIBLE
Philoxerus portulacoides
X
X
COMESTIBLE
Phyllanthus arenicola
X
COMESTIBLE
Pilosocereus arrabidae
X
COMESTIBLE
Piper amalago
X
Portulaca mucronata
X
Pouteria caimito
X
Pouteria marginata
X
COMESTIBLE
Pouteria psammophila
X
COMESTIBLE
Psidium littorale
X
COMESTIBLE
Rheedia brasilensis
X
X
COMESTIBLE
Schinus teribinthifolius
X
X
COMESTIBLE
Solanum paniculatum
X
X
COMESTIBLE
Stachytarpheta schottiana
X
MEDICINAL
Tabebuia cassinoides
X
ARTESANAL
Tabebuia chrysotricha
X
Vanilla chamissonis
X
COMESTIBLE
Vernonia fruticulosa
X
COMESTIBLE
Vernonia geminata
X
X
COMESTIBLE
Vernonia obtusifolia
X
X
COMESTIBLE
Vernonia scorpioides
X
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 214-241, 2022
GRUMARI
X
CARACTERÍSTICAS
COMESTIBLE
COMESTIBLE
X
X
COMESTIBLE
COMESTIBLE
COMESTIBLE
Artigos
Del último censo socioeconómico realizado por el Instituto Brasilero de Geografía Estadística (IBGE) en el año 2010, se analizó que el barrio Recreio dos Bandeirantes se caracteriza
como un área de estrato socioeconómico medio - alto con ingresos promedio entre los 5 y los
10 salarios mínimos por domicilio, mientras que la favela Terreirão allí inmersa aparece como
la población económicamente más vulnerable con ingresos promedio menores a los 2 salarios
mínimos por domicilio (Figura 10), lo que reitera la importancia de orientar la propuesta de
paisajismo comestible.
Estos análisis descritos anteriormente permitieron definir unas áreas potenciales dentro
del recorte de estudio para implantar la propuesta de paisajismo comestible, de acuerdo a una
categorización definida para vías, para las plazas urbanas, para el canal das Taxas y para el lote
de la Gleba Finch destinado actualmente al desarrollo inmobiliario (Figura 11).
Proponiendo un paisajismo con enfoque comestible
Vias
Dentro del espacio viario se propone la utilización de los canteros centrales y laterales presentes en la actualidad para implantar especies comestibles de restinga, que buscan reforzar la
vegetación existente, aunque ésta no sea nativa. Sin embargo, se tiene en cuenta las demandas
de cada especie en cuanto a luminosidad, sombra y vecindad, a la hora de proponerlas dentro
del espacio, de tal manera que se garantice su desarrollo y sobrevivencia.
Para el malecón peatonal existente en la avenida Lúcio Costa, se propone la implementación de varias especies comestibles de restinga pertenecientes a las formaciones que se darían
en este espacio de forma natural, de tal manera que sirvan de especies de contacto para las personas que por ahí transiten, así mismo como de barrera natural que separe el espacio peatonal
y de la playa, y el de la avenida que tiene gran flujo vehicular.
Plazas temáticas
Teniendo en cuenta el potencial de integración social que representan las plazas de manera general, se propone una serie de temáticas para cada una de ellas en donde se desarrollen
programas que puedan ser ejecutados por los habitantes del barrio, realizando actividades asociadas al intercambio de semillas y plántulas, al cultivo y cosecha de especies comestibles de
restinga – teniendo en cuenta las limitaciones a la hora de encontrarlas en el mercado - , venta
de frutos y productos a base de esta vegetación, así como lugares de difusión de saberes sobre
estos ecosistemas y sobre su importancia. Igualmente se incorpora dentro de esta propuesta de
plazas temáticas, el corredor verde Alameda Sandra P. de Fara Alvin, que actualmente funciona
como área de conservación, dejándolo con este mismo enfoque, pero incluyendo especies de
restinga para su conservación.
Se plantean entonces cinco modelos de plaza que son: Museo Temático de restinga, Trueque de semillas y plántulas, Venta de productos comestibles, Huerta urbana y Área de protección,
los cuales se adaptan a cada caso según la plaza a la que correspondan.
Mariana Castañeda Díez e Rita de Cássia Martins Montezuma
231
Restinga comestible
232
Figura 10: Mapa de ingresos por domicilio de las áreas de Vargem Grande, Vargem Pequena y Recreio
dos Bandeirantes (enmarcado en rojo). Fuente: Montezuma y Magalhães, 2017.
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Artigos
233
Figura 11: Mapa de las áreas potenciales para la propuesta de paisajismo comestible categorizada en vías, plazas, el canal das Taxas y el lote de la Gleba Finch. Org.:
Diez, 2018.
Mariana Castañeda Díez e Rita de Cássia Martins Montezuma
Restinga comestible
Museo Temático de restinga
Se propone desarrollar un paisajismo que muestre ejemplos de las formaciones naturales
234
de la restinga no urbana, pero que se enfoque hacia las especies comestibles de dichas formaciones, ofreciendo un contacto directo y didáctico con estos ecosistemas, y permitiendo al mismo tiempo nuevas experiencias alimenticias; así mismo se busca estimular el conocimiento de
aquello que es propio del área, a través de tablas informativas (Figura 12), que revelen a través
de sus datos, los valores que hacen de estos ecosistemas ser merecedores de protección para
garantizar su preservación, y sobre todo de aquellos que se encuentran inmersos dentro de una
matriz urbana.
Trueque de semillas y plántulas
Teniendo en cuenta que parte de los objetivos con este proyecto es crear un interés en
la población por estos hábitats, se propone gestionar el intercambio de semillas y plántulas de
especies comestibles y no comestibles de restinga, haciendo uso de las especies que se encuentran dentro de los Parques Naturales Municipales Chico Mendes y Marapendí, pero desarrollando
la propuesta en ciertas plazas que por su localización funcionan como puntos estratégicos; el
modelo de trueque por su parte se propone siguiendo políticas de intercambio de elementos
que beneficien estos ecosistemas, en vez de la mercantil que sigue intereses de lucro.
Venta de productos comestibles
Siguiendo algunos usos comerciales que se dan actualmente en algunas plazas, se proponen ciertos establecimientos de venta informal donde se comercialicen tanto frutos provenientes
de la restinga, como productos desarrollados a base de esta vegetación; así mismo, se plantean
algunas actividades de integración social en torno a la divulgación de saberes culinarios basados
en productos de la restinga comestible.
Huerta urbana
Como parte de una propuesta de paisajismo comestible está la huerta urbana, que en este
caso se propone con un enfoque hacia la vegetación comestible de restinga. La idea es desarrollar
esta propuesta con una gestión de apadrinamiento del espacio por parte de la comunidad, la
cual se encargue del cuidado del mismo y garantice su constante productividad, trayendo así
beneficios tanto ambientales como sociales.
Área de protección
Teniendo en cuenta que existe un área de recualificación y recuperación ambiental que
corresponde al corredor verde Alameda Sandra P. de Fara Alvin, se plantea realizar una propuesta
de paisajismo que incluya especies de restinga comestibles y no comestibles, bajo un marco de
protección ambiental que no permita su usufructo sino únicamente su contemplación.
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 214-241, 2022
Artigos
235
Figura 12: Ejemplo de tabla informativa de la plaza temática Museo didáctico de restinga. Org.: Diez, 2018.
Canal das Taxas
Teniendo en cuenta que el canal das Taxas a lo largo de su recorrido cuenta con gran porcentaje de vegetación que lo delimita y lo protege del entorno urbano, exceptuando el segmento
que pasa por la favela Terreirão en donde la poca vegetación y la proximidad de la urbe con éste,
lo deja a merced de la población poco consiente, se presenta una propuesta de tratamiento de
las márgenes del canal a partir de la implementación de terrazas de inundación escalonadas que
atenúen las crecientes del agua causadas por las lluvias y en las cuales se implementen especies
vegetales acuáticas que ayuden a filtrar la polución del agua, así como especies comestibles de
restinga pertenecientes a las formaciones que mantengan cierta periodicidad de inundación y
que sean de libre acceso para la comunidad de la favela, de tal manera que las conozcan más y
se familiaricen con sus potenciales comestibles.
Las directrices para esta propuesta se conectan con el proyecto planteado para el lote de
la gleba Finch que se escribe a continuación.
Parque de Restinga Finch
Este lote es uno de los grandes fragmentos de restinga aún remanentes en el espacio
urbano de la Baixada de Jacarepaguá. Sin embrago, es un espacio destinado al desarrollo inmo-
Mariana Castañeda Díez e Rita de Cássia Martins Montezuma
Restinga comestible
biliario basado en el Decreto nº 3046, de 27 de abril de 1981, para ocupación del suelo para el
barrio Recreio dos Bandeirantes, el cual propone una ocupación del 90% del área. Por este motivo
se propuso, para este lote, un modelo de ocupación que invirtiera los porcentajes de ocupación
236
protegiendo el espacio libre de construcción que representa para el barrio y la restinga que
actualmente se encuentra allí presente destacando sus potenciales alimenticios, medicinales
de uso ritualistico y artesanal (ARAÚJO et al., 1984), y que al mismo tiempo reservara una parte
para desarrollo inmobiliario, aunque con un límite de alturas de 4 niveles, dando como resultado
el proyecto Parque de restinga Finch (Figura 13).
Este espacio destaca otros potenciales de la restinga, además del alimentario, y también
desarrolla una preocupación por la protección y preservación de estos ecosistemas, a partir del
conocimiento que genera el contacto de las personas con la vegetación, otorgándoles valores
de proveedores en varias categorías. La propuesta se basa entonces en un área de loteamiento
al sur del lote, en donde las edificaciones a construir tengan una restricción de hasta 4 pisos
de altura; para delimitar esta área con el espacio interior del parque se propone una zona de
transición con vegetación densa y cerramiento físico que impida el paso desde los lotes a los
espacios de protección y conservación al interior del parque.
El lote, al ser un área mayor a los 120 mil metros cuadrados, tiene la obligación de ceder
el 5% de su área total al municipio como espacio público, por lo que se determinó una zona que
actualmente funciona como área de almacenamiento de material de construcción de un centro
comercial adyacente y que por tal razón tiene el suelo erosionado y sin vegetación a preservar,
además, su ubicación más próxima a la favela y a la avenida Guiomar de Novaes hacen de éste
un espacio propicio para hacer las veces de portada del proyecto. Junto al canal, como parte de
la propuesta, se proyectan tres niveles de inundación natural que buscan guiar el flujo acuático
de las crecientes hacia los pantanos y las áreas de inundación natural, proporcionando un recinto
adecuado para los caimanes, capibaras y demás fauna que migra hacia esta zona. Así mismo
se proyectan dentro del área del parque 5 jardines de restinga temáticos en los cuales cada
uno desarrolla uno de los potenciales que presenta su vegetación asociada al uso comestible
para fauna, el uso comestible para personas, el uso ritualistico, el uso medicinal y el uso artesanal; cada uno de estos jardines cuenta con una pequeña edificación de no más de 3 pisos de
altura, la cual presenta actividades asociadas al tema del jardín, así mismo se proponen áreas
de contacto directo con la vegetación de restinga que busca proporcionar conocimiento a las
personas sobre estas especies y viveros de producción de plántulas que garanticen la constante
reforestación del parque.
Jardines temáticos – Alimentación para fauna
Se ubica en las áreas de inundación y pantanos catalogadas como recinto para fauna migratoria; para este jardín se proyecta una sede de protección ambiental encargada del cuidado
y la protección de fauna y de los ecosistemas de restinga, una pasarela elevada que permite el
avistamiento de la fauna que llega al recinto, un vivero de producción de plántulas y un espacio
de contacto con vegetación propia de alimentación para fauna.
Jardines temáticos – Artesanal
Este jardín se ubica estratégicamente junto al lote de obligación, de tal manera que se asocie al uso que la alcaldía le otorgue a este espacio. Así mismo se propone un local de enseñanza y
fabricación de artesanías realizadas a partir de la vegetación de restinga, un vivero de producción
de plántulas y espacio de contacto con la vegetación propia para este uso.
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 214-241, 2022
Artigos
Jardines temáticos – Ritualistico
Este jardín está ubicado en la parte sudeste del lote, delimitando con el área de loteamiento
proyectado; para esta zona se propone un espacio cultural que muestre las diferentes religiones,
así como las diferentes propiedades que tiene la vegetación de restinga para usos ritualisticos, un
vivero de producción de plántulas y un espacio de contacto con la vegetación propia para tal uso.
Jardines temáticos – Alimentación para personas
Este jardín se ubicó en la zona sur oeste del lote, en límites con el área de loteamiento
propuesto, con el fin de integrar a los futuros moradores al proyecto del parque. Aquí se propone
un local de enseñanza culinaria con base en recetas a partir de alimentos que provengan de la
vegetación de restinga, así como un restaurante que promueva este tipo de alimentación, un
vivero de producción de plántulas, y espacio de cultivo y cosecha abierto al público.
Jardines temáticos – Medicinal
Este jardín está ubicado en la zona más afectada en términos de erosión del suelo y busca a partir de la reforestación, una reconstrucción del ecosistema; cuenta con un espacio de
fabricación de medicinas homeopáticas a base de las especies con este potencial, un vivero de
producción de plántulas y un área de contacto con la vegetación respectiva.
Estos jardines temáticos se conectan entre sí a través de un circuito peatonal el cual está
separado de las áreas de protección internas por medio de zonas de transición compuestas
por vegetación más densa que dificulta el contacto antrópico directo con estos espacios. La
propuesta realizada para este lote ofrece un modelo de ocupación alternativo que se enfoca
en la preservación de ecosistemas locales otorgándoles un carácter patrimonial. Por otro lado,
también propone un espacio de conocimiento sobre la importancia de la restinga en donde las
personas tienen la oportunidad de entrar en contacto con la vegetación a partir de sus diferentes usos. Aunque este espacio corresponde a la categoría de parque urbano, que difiere de las
Unidades de Conservación a las que corresponden los Parques Naturales Municipales Marapendí
y Chico Mendes, se pretende encadenarlos a gran escala, de tal manera que junto al Parque
Natural Municipal Bosque da Barra – que está por fuera del área de estudio, formen un conjunto
de parques que protejan los ecosistemas de restinga y que se encuentren conectados entre sí.
Una utopía para el futuro
A pesar de que el alcance inicial de este trabajo sólo llega a proponer en el espacio público
del barrio Recreio dos Bandeirantes, se identificó durante los mapeos, una gran área potencial de
espacios libres de edificación de carácter privado. Gracias a la cantidad y esparcimiento de estos
espacios en el espacio, se fornece subsidios fundamentales para el aumento de la permeabilidad
de la matriz urbana de este sector. El ejemplo de lo que fue debatido por Wolch et al. (2014),
donde se afirma que los espacios privados libres de edificación pueden ser de vital importancia
para la mayoría de los flujos ecológicos y, de esta forma, potencializar y recuperar importantes
procesos y servicios ecosistémicos en el espacio urbano. Con base en este análisis, se establece
una iniciativa que busca promover la participación de los lotes privados en el intercambio de
especies y elementos de restinga, buscando así aumentar aún más la permeabilidad de la matriz
urbana y aumentando la conectividad de estas especies (Figura 14). Es preciso destacar que los
parques urbanos tienen la capacidad de segregar a las poblaciones vulnerables (GOMES, 2013).
Mariana Castañeda Díez e Rita de Cássia Martins Montezuma
237
Restinga comestible
238
Figura 13: Plano de la propuesta del Parque de restinga Finch. Org.: Diez, 20182018.
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 214-241, 2022
Artigos
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Figura 14: Propuesta de una utopía a futuro que integra a la propuesta del espacio público, el espacio privado. Org.: por la autora, 2018.
Mariana Castañeda Díez e Rita de Cássia Martins Montezuma
Restinga comestible
Sin embargo, este trabajo no busca solucionar tal fenómeno, pero si proponer dentro del espacio
público de las plazas y del Parque de restinga Finch, áreas de integración social en las cuales
la población de la favela Terreirão pueda hacer uso del espacio público de su entorno urbano.
240
La discusión en torno a las medidas estratégicas que buscan controlar o mitigar las posibilidades de gentrificación verde ocurrente en la zona, necesitarán ser establecidas preferiblemente con la participación de la población local, sin la cual se torna inviable la implementación
de cualquier proyecto (WOLCH et al., 2014). Siendo así, la valorización de la vegetación urbana a
partir del abordaje del paisajismo comestible, presenta potenciales de inclusión de la comunidad
socioeconómicamente más vulnerable, como también la posibilidad de reducir eventos típicos de
discriminación que se dan en áreas donde la desigualdad social sobresale (ANGUELOVSKI, 2014).
Según Bohn y Viljoel (2010), las propuestas de agricultura urbana, dentro de las cuales
entra el concepto de paisajismo comestible, tienen cambios en el comportamiento alimenticio
de la población a la que afecta, en las cuales las personas van conociendo, aprendiendo y usufructuando cada vez más los productos orgánicos que promueven estas propuestas.
Aunque en el paisajismo tradicional desarrollado a nivel mundial a lo largo de la historia
se abordan conceptos meramente estéticos en los cuales se destaca el valor ornamental de las
especies (CHACEL, 2003), trayendo e implementando variedades exóticas (ZAMITH, 2010), con
esta propuesta se busca todo lo contrario, rescatar y proteger las especies vegetales nativas
destacando sus valores útiles para el ser humano ayudando a mitigar problemáticas sociales
actuales, lo que pone al paisajismo con otro tipo de paradigma al que hasta ahora se ha tenido.
Comentario final
Inicialmente, con esta propuesta se buscaba rescatar y dar a conocer los valores intrínsecos
de los ecosistemas de restinga, destacando su potencial comestible y ofreciendo una alternativa
alimenticia para la población menos favorecida, sin embargo, también acabó desarrollando una
infraestructura que permea la matriz urbana, aumentando la posibilidad de flujo de especies
entre los fragmentos mayores y la matriz, otorgándole al mismo tiempo al espacio público urbano la calidad de proveedor de alimento, gracias a su concepto de paisajismo comestible y
despertando en la población el interés en estos hábitats.
Referencias
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Artigos
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Mariana Castañeda Díez e Rita de Cássia Martins Montezuma
241
Paisagem de
injustiça hídrica
no Assentamento
Pequeno William
do MST no
Distrito Federal:
práticas agroecológicas de
sobrevivência ou soluções
baseadas na natureza (SbN)?
Acácio Machado Alves
Grupo “Periférico, trabalhos emergentes”, PPG-FAU/UnB
Liza Maria Souza de Andrade
Grupo “Periférico, trabalhos emergentes”, PPG-FAU/UnB
Camila Maia Dias
Grupo “Periférico, trabalhos emergentes”, PPG-FAU/UnB
Paisagem de injustiça hídrica no assentamentoPequeno William do
MST no Distrito Federal: práticas agroecológicas de sobrevivência ou
Soluções baseadas na Natureza (SbN)?
Resumo
Os processos coloniais que estruturaram o territorio brasileiro seguem ocorrendo na produção
dos espaços rurais contemporâneos, perpetuando e reproduzindo cenários de exploração dos
recursos naturais, na perspectiva colonizadora da acumulação do capital, representada pela
apropriação de vastas extensões territoriais por poucos indivíduos. De um lado, o modelo do
agronegócio, com o desmatamento, o latifúndio e a monocultura para produção de alimentos
e commodities, o uso intensivo de agrotóxicos, fertilizantes químicos e sementes híbridas e
causando grandes impactos ambientais nos cursos d’água; e, de outro lado, a resistência da
agricultura familiar, que ocupa cerca de 25% das terras agricultáveis com a produção de alimentos, diversificados em pequenos lotes e decorrente das práticas e técnicas das experiências
de vida dos camponeses, das comunidades tradicionais, dos quilombolas e dos povos indígenas. Carregam em si a possibilidade da transição agroecológica. O modelo hegemônico capitalista acelera a crise ambiental sistêmica e a escassez de recursos hídricos. No Distrito Federal,
a ausência de políticas públicas eficientes para a gestão dos recursos hídricos, reforçam a crise
de abastecimento de água para a população, resultando em racionamentos jamais vistos na
história nesta região do país. No Assentamento Pequeno William, na Região Administrativa de
Planaltina, no Distrito Federal, Brasil, o principal empecilho para a prosperidade dos cultivos
familiares é a falta de recursos hídricos disponíveis. Esta pesquisa tem como objetivo evidenciar
a luta das famílias assentadas pela reforma agrária, que continua após a conquista da terra. Por
meio da prática da pesquisa-ação, da cartografia participativa e de entrevistas semiestruturadas, obteve-se o levantamento dos obstáculos que dificultam a prosperidade da vida e dos cultivos no Assentamento Pequeno William, bem como as soluções de baixo custo adotadas pelos
assentados para garantir a sobrevivência, que se assemelham às Soluções Baseadas na Natureza – SbN, da ONU. Como resultado, a pesquisa apresenta as tecnologias levantadas e aponta
outras possíveis soluções de baixo custo para a escassez hídrica. As prática vividas ou herdadas
de ancenstrais, amigos colaboradores e encontradas ou mesmo na internet, nos livros e em
outros meios diversos, promovem a autonomia da comunidade sobre os meios de controle e
dependência, muitas vezes inerentes às políticas públicas aplicadas por todo o Brasil, e buscam
combater a crise hídrica por meio de uma visão sistêmica que reúne práticas agroecológicas de
ecosaneaento de reservatório, reuso e restauração de cobertura vegetal.
Palavras chave: recursos hídricos, escassez hídrica, Assentamento Pequeno William, reforma
agraria, Soluções baseadas na Natureza
Paisaje de injusticia hídrica en el asentamiento Pequeno William
del MST en el Distrito Federal: ¿prácticas agroecológicas de supervivencia o Soluciones basadas en la Naturaleza (SbN)?
Resumen
Los procesos coloniales que estructuraron el territorio brasileño continúan ocurriendo en la
producción de espacios rurales contemporáneos, perpetuando y reproduciendo escenarios
de explotación de los recursos naturales en la perspectiva colonizadora de acumulación del
capital, representada por la apropiación de vastas extensiones territoriales por pocos individuos. Por un lado, el modelo agroindustrial con deforestación, latifundio y monocultivo para
la producción de alimentos y commodities, uso intensivo de plaguicidas, fertilizantes químicos
y semillas híbridas que provocan importantes impactos ambientales en cursos de agua; por
otro lado, la resistencia de la agricultura familiar, que ocupa alrededor del 25% de la tierra cultivable con la producción de alimentos diversificada en pequeñas parcelas, resultada de las
prácticas y técnicas de las experiencias de vida de campesinos, comunidades tradicionales,
quilombolas y pueblos indígenas. Llevan dentro de sí la posibilidad de la transición agroecológica. El modelo capitalista hegemónico acelera la crisis ambiental sistémica y la escasez de
recursos hídricos. En el Distrito Federal, la falta de políticas públicas eficientes para el manejo
de los recursos hídricos refuerza la crisis del abastecimiento de agua para la población, lo que
se traduce en un racionamiento nunca visto en la historia de esta región del país. En el Asentamiento Pequeno William, en la Región Administrativa de Planaltina, Distrito Federal, Brasil,
el principal obstáculo para la prosperidad de las granjas familiares es la falta de recursos hídricos disponibles. Esta investigación tiene como objetivo destacar la lucha de las familias asentadas por la reforma agraria, que se mantiene después de la conquista de la tierra. Por medio
de la práctica de pesquisa activa, la cartografía participativa y entrevistas semiestructuradas,
se relevaron los obstáculos que dificultan la prosperidad de la vida y los cultivos en el Asentamiento Pequeno William, así como las soluciones de bajo costo adoptadas por los pobladores.
Para asegurar la supervivencia que se asemejan a las Soluciones Basadas en la Naturaleza
de la ONU – SbN. Como resultado, la investigación presenta las tecnologías planteadas y señala otras posibles soluciones de bajo costo para la escasez de agua. Las prácticas vividas o
heredadas de antepasados, amigos colaboradores y encontrados en internet, en libros y en
otros medios diversos promueven la autonomía comunitaria sobre los medios de control y dependencia, muchas veces inherentes a las políticas públicas aplicadas en todo Brasil, y buscan
combatir el crisis de agua a través de una mirada sistémica que conjuga prácticas agroecológicas de eco-saneamiento, reutilización de embalses y restauración de cobertura vegetal.
Palabras clave: recursos hídricos, escasez hídrica, Asentamiento Pequeno William, reforma
agraria, Soluciones basadas en la Naturaleza
Landscape of water injustice in the MST’s Pequeno William
settlement in the Federal District: agroecological survival
practices or Nature-based Solutions (NbS)?
Abstract
The colonial processes that structured the Brazilian territory continue to occur in the production of contemporary rural spaces, perpetuating and reproducing scenarios of exploitation of
natural resources, in the colonizing perspective of capital accumulation, represented by the
appropriation of vast territorial extensions by few individuals. On the one hand, the agribusiness model with deforestation, large estates and monoculture for food production, intensive
use of pesticides, chemical fertilizers and hybrid seeds causing major environmental impacts
in water courses; on the other hand, the resistance of family farming, which occupies about
25% of arable land with the production of food, diversified into small plots resulting from the
practices and techniques of the life experiences of peasants, traditional communities, quilombolas and indigenous peoples.They carry within them the possibility of an agroecological
transition. The hegemonic capitalist model accelerates the systemic environmental crisis and
the scarcity of water resources. In the Federal District, the lack of efficient public policies for the
management of water resources reinforces the water supply crisis for the population, resulting
in rationing never seen in history in this region of the country. In the Pequeno William Settlement in the Planaltina Administrative Region, Federal District, Brazil, the main obstacle to the
prosperity of family farms is the lack of available water resources. This research aims to highlight the struggle of settled families for agrarian reform, which continues after the conquest of
land. Through the practice of action research, participatory cartography and semi-structured
interviews, the obstacles that hinder the prosperity of life and crops in the Pequeno William
Settlement were surveyed, as well as the low-cost solutions adopted by the settlers to ensure
survival that resemble the UN’s Nature Based Solutions – NbS. As a result, the research presents the technologies raised and points out other possible low-cost solutions for water scarcity.
The practices lived or inherited from ancestors, collaborating friends and found on the internet, in books and in other various media, promote community autonomy over the means of
control and dependence, often inherent to public policies applied throughout Brazil, and seek
to combat the water crisis through a systemic view that brings together agroecological practices of reservoir eco-sanitation, reuse and restoration of vegetation cover.
Keywords: water resources, water scarcity, Pequeno William settlement, agrarian reform,
Nature-based Solutions
Foto: Erivan de Jesus Santos Junior
245
Foto: Erivan de Jesus Santos Junior
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Artigos
Introdução
No contexto de paisagens e paisagismos do Sul, esta pesquisa1 trata da injustiça ambiental e hídrica no assentamento Pequeno William do MST, no Distrito Federal (DF), e as práticas
agroecológicas desenvolvidas para a sobrevivência que se assemelham às “Soluções baseadas
na Natureza” (SbN), conceito que vem sendo adotado pelos países do Norte.
Antes de discorrer sobre a problemática da escassez hídrica no planeta, nos territórios brasileiros e no DF, é importante trazer à tona a discussão acerca da produção do espaço rural contemporâneo. Além de resultar de processos coloniais que estruturaram o território brasileiro, a produção
do espaço rural continua ocorrendo dentro dessa lógica colonialista, perpetuando e reproduzindo
cenários de exploração dos recursos naturais, na perspectiva da acumulação do capital, representada pela apropriação de vastas extensões territoriais por poucos indivíduos (BRASIL, 2019).
Esta perspectiva, ainda dominante, opõe-se à ocupação cuidadosa dos camponeses, com
seus modos peculiares de produzir e reproduzir a própria vida em seus espaços. Nesse sentido,
o rural brasileiro tem se transformado em um lugar de luta, de resistência e de persistencia de
camponeses pela implementação verdadeira da reforma agrária, bem como de comunidades
tradicionais pela demarcação de terras, confrontando uma verdadeira paisagem de injustiça
ambiental e de injustiça hídrica frente ao agronegócio e à monocultura que causam grandes
impactos na natureza e na gestão das águas.
Segundo o Relatório das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento dos Recursos Hídricos
2015, “Água para um mundo sustentável”,748 milhões de pessoas no mundo ainda não têm
acesso a fontes de água potável de qualidade (protegidas de contaminação externa). A população
global deverá totalizar 9,1 bilhões de pessoas em 2050, com acréscimo de cerca de 80 milhões
por ano.Nesse sentido, será necessário produzir cada vez mais alimentos e energia. Considera-se
que, até 2050, a agricultura – que consome a maior parte da água – precisará produzir mundialmente 60% a mais de comida, sendo 100% a mais nos países em desenvolvimento. Estima-se
que a demanda por bens manufaturados da indústria, que impõe maior pressão sobre a água,
crescerá até 400% de 2000 a 2050. Dados da Organização das Nações Unidas (ONU), na Agenda 2030 (2015), que trata dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) com vistas a
erradicar a pobreza e promover vida digna para todos e dentro dos limites do planeta, a escassez
de água afeta mais de 40% da população mundial, número que deverá subir ainda mais como
resultado da mudança do clima e da gestão inadequada dos recursos naturais.
Embora o Brasil seja reconhecido internacionalmente por sua riqueza em recursos hídricos, sua distribuição assemelha-se à realidade mundial. Segundo Setti et al. (2001), existe água
suficiente para o atendimento de toda a população. No entanto, a distribuição desigual dos
recursos hídricos, ou mesmo a inviabilização de acesso aos mesmos para parte da população do
planeta, acaba por gerar cenários de escassez hídrica em diferentes regiões. Segundo o relatório
da Agência Nacional de Águas (ANA), “Conjuntura Recursos Hídricos Brasil 2017”, 48 milhões
de pessoas foram afetadas por secas ou estiagens no território nacional entre 2013 e 2016. O
ano de 2016 foi seco e extremamente seco em todo o país, havendo uma redução de 13% nas
precipitações, o que levou 2.783 municípios a decretarem situação de emergência ou estado
de calamidade pública. Ainda de acordo com este mesmo relatório, nos últimos 16 anos, não
houve planejamento e execução de obras estruturantes.
1 O artigo original “Injustiça social: as estratégias de sobrevivência hídrica utilizadas por moradores do assentamento Pequeno William em Planaltina-DF” foi apresentado no Euro-Elecs 2019. A pesquisa teve continuidade e o artigo foi ajustado para ser publicado na revista.
Acácio Machado Alves, Liza Maria Souza de Andrade e Camila Maia Dias
247
Paisagem de injustiça hídrica
Portanto, como medidas para tentar diminuir os impactos dessas estimativas futuras, é
fundamental que haja políticas públicas eficientes voltadas para o abastecimento de água, sendo necessária a tomada de uma série de medidas que ora precisam ser viabilizadas pela União,
248
ora pelos Estados e ora pelos Municípios – de forma que o processo de tomada de decisões
considere a água como um bem de valor econômico, social e ecológico (GRANZIERA, 2014). É
preciso garantir a sustentabilidade dos reservatórios, restabelecer a cobertura vegetal, cuidar
das nascentes e das técnicas de agricultura, de modo a evitar que, após poucas décadas, o nível
do reservatório venha a se reduzir a ponto de comprometer o abastecimento de água para a
população. Outra questão implicada no acesso ao abastecimento de água é a desigualdade na
distribuição, cujos prejuízos afetam até mesmo a qualidade de vida.
O tempo gasto na espera por água é o tempo subtraído para a obtenção de
outros bens essenciais, pois as pessoas que perdem tempo procurando um
balde de água, todos os dias, deixam de fazer outras coisas importantes para o
seu desenvolvimento pessoal, isto é, deixam de conseguir outros bens. Nesse
sentido, a qualidade de vida é afetada e, portanto, o não acesso à água potável
se constitui em um problema de justiça social, quando a qualidade de vida delas é comparada a de outras pessoas que têm acesso à água e podem, portanto, utilizar seu tempo para conseguir outros bens, essenciais ou não (PONTES,
2003 apud CASTRO et al, 2015, p. 54).
Nesse contexto, no Brasil, em todos os níveis da pirâmide social, observa-se uma grande
dificuldade na garantia do direito à agua e ao saneamento, ampliando a vulnerabilidade financeira
de parte da população, uma vez que se promove a dependência de fontes hídricas de domínio
de entes privados ou estatais que fornecem serviços de abastecimento mediante contrapartida
financeira. Como agravante, nesse cenário, muitos assentamentos rurais da reforma agrária estão
localizados em áreas que não interessam aos grandes produtores, por serem de baixa aptidão
agrícola e pelas dificuldades de se trabalhar nestes locais com alta tecnologia de produção e em
grande escala (MARCATTO, 2006, p. 21).
Sobre isso, o Ministério do Desenvolvimento Agrário(MDA) (apud LINS, (2018, p. 62), afirma
que “o sol forte e a falta de água atingem diretamente a rotina dos agricultores e suas produções,
o que faz com que, na seca, se torne indiscutível que as questões sobre a água mereçam destaque e atenção”. No entanto, “destaque e atenção” são voltados aos produtores de alimentos em
grande escala, em detrimento dos meios de produção de alimentos e das políticas públicas direcionadas à reforma agrária, resultando na desigualdade de redistribuição das terras agricultáveis.
O DF entrou em estado de alerta de crise hídrica no ano de 2016: os níveis dos principais
reservatórios aproximaram de 40% (abaixo do esperado, mesmo para o final do período de seca).
Já no ano de 2017, o Governo de Brasília decretou estado de emergência, em plena estação
chuvosa. O poder público atribui esse forte impacto socioambiental ao processo acelerado de
ocupação desordenada do solo nas bacias que abastecem o campo e as cidades. Casos como
este se repetem em vários estados brasileiros, segundo Bitoun (2004, p. 267 apud CASTRO et
al, 2015, p. 89), onde quem tem mais condições financeiras protege-se mais facilmente; quem
não as tem procura, ao longo da vida, equipar seu domicílio de tecnologias para autonomia do
abastecimento d’água, de caixas d’águas e de fossas, ou cavar valas para evacuar o esgoto.
De acordo com dados do Programa Nacional de Saneamento Rural (PNSR) (BRASIL, 2019),
elaborado pela Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), no contexto do Ministério da Saúde e
tomando como referência o Plano Nacional de Saneamento Básico (PLANSAB) e dados do IBGE,
a situação do abastecimento de água nos domicílios rurais brasileiros vem sofrendo modificações
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 242-259, 2022
Artigos
no quesito presença de rede de distribuição de água,2 que apresentou aumento sistemático nas
duas décadas observadas, passando de 9%, em 1991, para 28%, em 2010. Quanto ao esgotamento sanitário, a situação é bem caótica, ainda predominando o uso de fossas rudimentares,
cuja situação é praticamente inalterada entre 1991 e 2010. Há uma redução no percentual de
domicílios com fossa séptica entre 1991 e 2000, de 26% para 15%, e uma estagnação em torno
deste último patamar em 2010. Segundo o PNSR, esta mudança esteve relacionada ao aumento
de domicílios com esgotos dispostos em vala, rio, lago ou mar, aumentando a participação relativa no ano de 1991, de 12%, para 16%, em 2000, valor que se manteve constante em 2010.
A Região Administrativa de Planaltina-DF não difere da maior parte das regiões brasileiras
que sofrem com a desigualdade na distribuição de água. Exemplo disso é a escassez hídrica dos
assentamentos da reforma agrária na zona rural, dentre eles o Assentamento Pequeno William,
vinculado ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) que, considerando toda sua
história de luta, em 2016 vivenciou sua pior crise de abastecimento de água.
A obra inacabada para a captação e a distribuição de água aos moradores do assentamento, iniciada pela Companhia de Abastecimento de Água e Esgoto de Brasília (CAESB), em 2014,
perdura até os dias atuais e comprova o descaso por parte do poder público. A adequação do
sistema de abastecimento proposto, muito similar às situações urbanas distantes da realidade
de fragilidade ambiental em que se insere o assentamento, também deve ser questionada: “a
situação se torna ainda mais delicada quando se considera a qualidade dos serviços prestados.
Sua precariedade acaba comprometendo importantes aspectos da vida social, como a saúde
pública e a qualidade ambiental” (CASTRO, 2015, p. 95).
A dificuldade de acesso é agravada por meio do reconhecimento da água como um bem
econômico, e não como um bem ambiental de uso comum e de direito público, sendo então
“vendida e comprada de acordo com o poder aquisitivo do comprador, comprometendo o acesso
a um bem essencial, e ferindo o direito a este serviço como um direito de cidadania” (CASTRO
et al, 2015, p. 222).
Diante da crise ambiental, promovida pelo alto consumo originado das ciudades, das técnicas de agricultura de grande impacto, da gestão ineficiente dos recursos hídricos pelos órgãos
responsáveis e da inadequação das políticas de abastecimento para o meio rural, a produção
de alimentos no Assentamento Pequeno William tem sido um grande desafio, que põem em
xeque a subsistência das famílias assentadas.
Esta pesquisa tem como objetivo contextualizar e demonstrar o resultado das análises da
situação dos camponeses que residem no Assentamento Pequeno William, por meio de cartografia participativa e da realização de entrevistas semiestruturadas, de acordo com os seguintes
aspectos: (i) história de luta para suprir a necessidade hídrica dos moradores do assentamento; (ii)
desafios enfrentados pelos moradores junto ao órgão fornecedor da água; (iii) regulamentações
e leis que amparam o direito de acesso à água; (iv) entraves que impedem o abastecimento no
assentamento; e por fim apresenta o levantamento de tecnologias e soluções aplicadas pelos
assentados frente ao cenário de escassez hídrica.
2 A parcela de domicílios atendidos por outras formas de abastecimento de água – carro pipa, cisterna de
água de chuva, rio, açude, lago e igarapé – sofreu a maior redução no período: em 1991, existiam 31% de domicílios nessa situação, diferentemente dos 17% em 2010. A menor variação observada foi no atendimento por
poço ou nascente (dentro e fora da propriedade), passando de 60%, em 1991, para 55%, em 2010, mantendo-se
como solução ainda hegemônica (BRASIL, 2019, p. 71)
Acácio Machado Alves, Liza Maria Souza de Andrade e Camila Maia Dias
249
Paisagem de injustiça hídrica
Aspectos teóricos e metodológicos
A abordagem metodológica adotada está estruturada na visão sistêmica da Agenda 2030
250
e destaca a água como o cerne do desenvolvimento sustentável, que perpassa todos os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável nas três dimensões – ambiental, econômica e social. O
acesso à água e ao saneamento é prioridade para a sobrevivência e a dignidade humana, desde
a segurança alimentar e energética à saúde humana e ambiental. A ODS-6 trata de “Assegurar
a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todos”. Estão diretamente
relacionadas com este trabalho as seguintes metas da Agenda 2030: “eficiência do uso da água
nos diversos setores, de retiradas sustentáveis, de abastecimento de água doce diante da escassez e da redução do número de pessoas que sofrem a escassez” e “apoio e fortalecimento da
participação das comunidades locais visando a melhoria da gestão da água e do saneamento”.
Assim, torna-se fundamental desenvolver pesquisas junto às comunidades locais do DF que
estão passando por problemas de escassez hídrica e sobre possibilidades de soluções desenvolvidas pelos camponeses. Para atingir os objetivos propostos da pesquisa, contou-se com prévia
revisão bibliográfica e dados obtidos via aplicação de “entrevista semiestruturada” (VERDEJO,
2007, p. 28); perguntas norteadoras para o levantamento de dados relativos à demanda de água
para a produção e o consumo doméstico das famílias residentes no Assentamento Pequeno
Willian, que foram feitas durante visitas agendadas nas unidades familiares, para observação
in loco; e, por fim, sistematização das informações obtidas em cartografia participativa para a
visualização das estratégias dos moradores em relação à água. Após análise dos dados foram
apontadas algumas soluções para promover a sustentabilidade hídrica no Assentamento.
A revisão bibliográfica efetuou um levantamento de dados pluviométricos da região de
Planaltina-DF, com dados do Instituto Nacional de Meteorologia (INMET) e fontes relacionadas; e consultou o relatório anual para desenvolvimento dos recursos hídricos, o “World Water
Development Report”, de 2018, da ONU, para associar o conceito de Soluções baseadas na
Natureza (SbN) com os dados levantados no assentamento bem como os dados do Programa
de Saneamento Rural.
O saneamento rural, a agroecologia
e as Soluções baseadas na Natureza
O Programa Nacional de Saneamento Rural foi elaborado pela FUNASA em 2019 no
contexto do Ministério da Saúde, tomando como referência o Plansab para o saneamento rural
e em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
A produção dos espaços rurais, no Brasil, ainda é tratada de forma colonialista: são dois
modelos de produção com características antagônicas. De um lado, o modelo do agronegócio,
com o desmatamento, o latifúndio e a monocultura para produção de alimentos, o uso intensivo
de agrotóxicos, fertilizantes químicos e sementes híbridas, causando grandes impactos ambientais nos cursos d’agua. O modelo hegemônico capitalista acelera a crise ambiental sistêmica e
a escassez de recursos hídricos, ao atingirem o solo e as águas superficiais e profundas, os resíduos de agrotóxicos e fertilizantes se tornam uma ameaça ao saneamento adequado (BRASIL,
2019). De outro lado, a resistência da agricultura familiar, que ocupa cerca de 25% das terras
agricultáveis, com a produção de alimentos, diversificados em pequenos lotes, decorrente das
práticas e técnicas das experiências de vida dos camponeses, das comunidades tradicionais,
dos quilombolas e dos povos indígenas (BRASIL, 2019). Tais grupos azem uso de tecnologías
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 242-259, 2022
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sociais de saberes acenstrais favorecendo a transição agroecológica com a visão integrada e
agrosistêmica e cultivam produções livres de agrotóxicos e fertilizantes, adaptadas às condições
locais, com insumos geralmente produzidos a partir de matérias-primas geradas na propriedade,
o que permite a independência em relação a insumos externos. Os camponeses se direcionam
à produção diversificada de alimentos, gerando autonomía, saúde e bem-estar para as famílias
do meio rural, além de contribuir para a preservação e a recuperação dos solos e das águas.
Nesse sentido, a agroecologia pode ser incluída como uma das estratégias para o fortalecimento da política pública de saneamento, com foco na saúde e no desenvolvimento social
das populações do campo, da floresta e das águas e na preservação do meio ambiente. Ocorre
que a água em quantidade e qualidade configura um dos componentes mais importantes para
a produção de alimentos e para a segurança alimentar e nutricional.
Soluções baseadas na Natureza (SbN) é um termo cunhado pela União Internacional para
Conservação da Natureza (IUCN), procuram resgatar usos e costumes, tecnologias ancestrais e
atuais que visam melhorar o uso dos recursos hídricos com práticas aplicáveis nas comunidades
urbanas ou rurais, em uso em todos os países. São soluções inspiradas ou que simulam processos naturais com objetivo de aumentar a segurança hídrica e aperfeiçoar a gestão das águas.
As SbN estabelecem sete princípios para sua estruturação: (i) entregar uma solução efetiva para
um desafio global utilizando a natureza; (ii) fornecer benefícios da biodiversidade em termos de
diversidade e ecossistemas bem manejados; (iii) apresentar a melhor relação custo-efetividade
quando comparada com outras soluções; (iv) ser comunicada de maneira simples e convincente;
(v) poder ser medida, verificada e replicada; (vi) respeitar e reforçar os direitos das comunidades
sobre os recursos naturais; e (vii) atrelar fontes de financiamento público e privado (WWAP, 2018).
O assentamento Pequeno William foi criado para ser uma comunidade onde a produção
seria implantada sobre os princípios da Agroecologia. De acordo com Altieri (2012), “a Agroecologia emerge como uma disciplina que disponibiliza os princípios ecológicos básicos sobre como
estudar e manejar agroecossistemas que sejam produtivos e ao mesmo tempo conservem os recursos naturais, assim como sejam culturalmente adaptados e social e economicamente viáveis”.
NesSe contexto, as técnicas utilizadas na produção com princípios agroecológicos são
também poupadoras e conservadoras de água. Integram-se A técnicas utiulizadas: o plantio de
espécies tolerantes ao estresse hídrico; o aproveitamento de produtos sazonais; a integração da
produção; a utilização de adubos orgânicos (que mantêm por mais tempo a umidade do solo)
em substituição aos adubos sintéticos (que degradam mais rapidamente o solo); o plantio de
espécies com mais de uma função no sistema, como adubação verde e cobertura morta (que
aduba e retém a evaporação da água do solo) protegendo o sistema contra incêndios; utilização
da prática do aceiro e de plantas corta-fogo como Agave e palmas em forma de barreiras.
Resultados
Cenário da escassez hídrica – Planaltina/DF
Segundo Malaquias (2010), “existem dois momentos heterogêneos que dividem o regime
pluviométrico de Planaltina que são eles: outubro e abril com chuvas mais frequentes e de maio
a setembro com chuvas mais escassas chegando à total estiagem”. Enquanto que, para Alves
(2015), “não há um padrão pluviométrico ao longo dos anos, muito menos um padrão espacial
de distribuição das chuvas. No entanto, esses mesmos dados permitem que se rejeite a teoria
de que há uma tendência de redução de chuva no DF”.
Acácio Machado Alves, Liza Maria Souza de Andrade e Camila Maia Dias
251
Paisagem de injustiça hídrica
252
Figura 1. Vista aérea do Assentamento Pequeno William em Planaltina-DF. Imagem de satélite Google Earth, 2020.
O assentamento Pequeno William é dividido em 22 parcelas de 5,5 hectares, vivendo até
10 moradores em cada uma delas. A área de 143 hectares está localizada às margens da DF-128,
Km24, lado direito, próximo à Pedra Fundamental (marco inicial e histórico da criação de Brasília).
Em 2010, houve a ocupação legal dessas terras que, anteriormente, faziam parte do Instituto Federal de Brasília (IFB) e, desde então, a luta pela água para tornar a terra produtiva e até
mesmo para o consumo doméstico diário tem sido constante.
O assentamento dispõe, atualmente, de uma obra não concluída pela CAESB, financiada
pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), que consiste na escavação de
um poço de 170 metros de profundidade no qual a captação de água subterrânea é feita através
de uma bomba, sendo distribuída por tubulações para as torneiras. No entanto, a obra, iniciada
em 2014, segue embargada, pois de acordo com a CAESB, o INCRA não teria repassado a verba
para sua conclusão. Já o INCRA afirma que não haverá repasse da verba enquanto a obra não
for entregue, fazendo com que o dia-a-dia de sobrevivência dos moradores do assentamento
seja cada vez mais complicado.
Soluções baseadas na Natureza (SbN) ou práticas sustentáveis de
combate à escassez hídrica no Assentamento Pequeno William?
Elaboraram-se perguntas para a composição do questionário, o que foi crucial para o desenvolvimento de toda a pesquisa. Em seguida, foram realizadas entrevistas semiestrturadas,
considerando a disponibilidade de cada morador e respeitando a abstenção de alguns. Nesse
contexto, é importante ressaltar que todas as perguntas respondidas pelos moradores serviram
de base para obtenção de dados revelados neste artigo.
Anteriormente à elaboração e à aplicação das perguntas foram realizadas visitas prévias em
cada parcela para o conhecimento da área de cisternas, poços artesianos, locais de armazenamento de água e registro em fotografias. De acordo com os dados obtidos através dessas visitas aos
17 moradores, de um total de 22 parcelas do Assentamento Pequeno William, a maioria utiliza
água captada de poços artesanais, escavados manualmente, alguns com mais de 14 metros
de profundidade, uma técnica de alto risco para o escavador pela iminência de desabamento.
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 242-259, 2022
Artigos
No total, 1 morador usa água de poço artesiano; 3 dependem de caminhão pipa por não
possuírem poço ou cisterna; 13 moradores possuem poço escavado manualmente; 2 possuem
poço semi-artesiano e 6 captam e usam água da chuva através do telhado.
253
Tabela 1. Dados mais relevantes da pesquisa de campo.
Parcela
(lote)
Consumo
diário para
produção em
L/dia
01
5000
02
Fonte de água
Essa fonte
é suficiente
para sua
demanda?
Como você está resolvendo o
problema da falta de água?
Poço escavado
manualmente*.
Não
Armazenando em caixas d’água.
2000
Poço escavado
manualmente* e
semi-artesiano
Sim
Tanque e lona e caixas d’água
03
1000
Poço escavado
manualmente*
e mina*.
Não
Reservatório de lona
06
1000
Poço escavado
manualmente*
e mina*.
Não
Reservatório de cimento
09
3000
Mina e poço
artesiano
Não
Reservatório e gotejadores
11
500
Poço escavado
manualmente* e
água de chuva.
Não
Armazenamento em tambores
12
2000
Poço escavado
manualmente* e
semi-artesiano
Sim
Reservatório de cimento e caixas
d’água
13
2000
Poço escavado
manualmente* e
água de chuva.
Não
Caixas d’água e tambores
14
2000
Poço escavado
manualmente* e
água de chuva.
Não
Tanque de lona
15
4000
Poço escavado
manualmente* e
água de chuva.
Não
Caixas d’água
16
1000
Poço escavado
manualmente* e
água de chuva.
Não
Armazenamento em tanques
de ferrocimento, caixas d’águas,
tambores, galões e garrafas. Utilização
de gotejadores, seleção de cultivos
resistentes à seca, cobertura morta
nos canteiros, cultivos no sistema
Agroflorestal, canteiros de hortaliças
forrados com lona.
17
100
Caminhão pipa
Não
Caixas d’água
18
3000
Poço escavado
manualmente* e
água de chuva.
Não
Caixas d’água
19
50
Caminhão pipa
Não
Caixas d’águas
20
60
Caminhão pipa
Não
Tambores e caixas d’água
21
500
Poço escavado
manualmente*
Não
Caixas d’água
22
1500
Poço escavado
manualmente*
Sim
Tanque de lona e caixas d’água
Acácio Machado Alves, Liza Maria Souza de Andrade e Camila Maia Dias
Paisagem de injustiça hídrica
254
Figura 2. Reservatório da Parcela 16 - tanque escavado e revestido em ferrocimento Foto de Acácio
Machado, 2020
O consumo hídrico doméstico diário dos moradores varia de 30 a 1.000 litros por parcela
(não incluídos na tabela), enquanto que o consumo hídrico para a agricultura de subsistência
varia de 50 a 5.000 litros por parcela. Considerados os períodos de estiagem e chuvas, esses valores podem sofrer alterações. A maioria dos moradores considera que, apesar de terem poços,
cisternas e captação de água da chuva, a água disponível não é suficiente para a irrigação e para
o consumo doméstico. À medida que a escassez diminui as perspectivas de acesso à água (Tabela
1), a produção de alimentos diminui. O sistema de armazenamento de água usado pelos moradores é bastante precário e com capacidade de armazenamento insuficiente, como mostram
as Figura 2, considerando os múltiplos usos diários a que essa água se destina. Nesse contexto,
a captação de água da chuva é a melhor alternativa, principalmente para uso na irrigação.
Frente às condições impostas pela falta de políticas públicas, estes agricultores, já descapitalizados pela longa espera pela terra e pela necessidade de sobrevivência no campo, precisaram
produzir seus próprios alimentos e preservar suas raízes. Isso fez com que muitos destes agricultores
utilizassem estratégias diversas, adaptando-se às condições do local, utilizando formas de produzir
adequadas ao ambiente semiárido que “apresentam solos rasos, com baixas fertilidade, infiltração,
capacidade de retenção de umidade e matéria orgânica” (PORTO; SILVA; ANJOS; BRITO, 1999).
Para isso, utilizaram canteiros forrados com lona preta, para impedir a infiltração no solo
da água aplicada nos canteiros de hortaliças. Com a inclusão da adubação verde no sistema
produtivo das hortaliças, além da redução no aporte de fertilizantes para as mesmas, pôde-se
obter aumento da eficiência do uso da água pela cobertura morta proporcionada (TIVELLE et
al, 2013 citado por NESPOLI et al, 2017).
A adubação é realizada através da adição de matéria orgânica, proveniente do próprio
local ou trazida de fora, podendo ser esterco de gado, frango ou material de podas de árvores
e gramas, com vistas a manter, por mais tempo, a umidade do solo. Além disso, a aplicação de
cobertura morta diminui a evaporação e evita a incidência direta dos raios solares sobre o solo
e a proliferação de plantas espontâneas.
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 242-259, 2022
Artigos
255
Figura 3:. Reservatorio para aquaponia. Foto de Acácio Machado, 2020.
Na maioria dos casos, os produdores utilizam irrigação localizada (gotejadores) ou “irrigação
por gotejamento superficial”, de acordo com Nogueira et al (1997), para evitar o desperdício de
água. Alguns destes camponeses selecionam espécies mais resistentes ao período seco como
forma de garantir a colheita, tendo os mesmos que adaptar o paladar da família às novas espécies,
criando assim novas receitas culinárias. Na medida de suas condições, coletam e armazenam
águas pluviais, utilizando-as para a irrigação, a criação de peixes (Figura 3) – que servem para
melhorar a alimentação da família e controlar o mosquito da dengue – e o fornecimento de
água fertilizada para as pequenas lavouras. Segundo May (2004), o manejo e o aproveitamento
de água da chuva para os usos doméstico, industrial e agrícola está ganhando ênfase em várias
partes do mundo, sendo considerado um meio simples e eficaz para se atenuar o grave problema
ambiental da crescente escassez de água para consumo.
A construção de círculos de bananeiras para aproveitamento das águas cinzas já é prática
comum na comunidade do Pequeno William, despertando a consciência dos seus membros para
o reaproveitamento da água, resolvendo um problema de saneamento anteriormente existente,
que era o esgoto a céu aberto. Diversos trabalhos científicos vem sendo realizados com tratamento de efluentes descentralizados utilizando os círculos de bananeira (SABEI; BASSETTI, 2013).
A produção em sistema agroflorestal, conservando o cerrado em pé, praticado pela maioria
dos camponeses do Pequeno William, com o intuito de aproveitamento dos frutos nativos deste
bioma, tem contribuído para a melhoria da infiltração das águas pluviais, para o abastecimento
do lençol freático e para a formação de uma maior consciência ecológica da população local
e de seus arredores. Segundo Vanzin & Kato (2017), o uso da água deve estar em consonância
com a sustentabilidade adotando práticas como: sistemas agroflorestais, educação ambiental
e produção de alimentos agroecológicos nas unidades produtivas (Figura 4).
Acácio Machado Alves, Liza Maria Souza de Andrade e Camila Maia Dias
Paisagem de injustiça hídrica
256
Figura 4:. Consórcio de Milho, Mandioca e Batata-Doce. Foto de Acácio Machado, 2020.
Discussões, vulnerabilidade e
caminhos para a sustentabilidade hídrica
Conforme foi observado nesta pesquisa, corroborando com a visão de Pontes e Schramm
(2004), fica a questão: será, então, que o Estado está cumprindo o papel de proteção dos recursos
hídricos, se a gestão dos serviços de abastecimento de água está se tornando cada vez mais privada?
São duas situações, na visão desses autores. A primeira: o Estado exerce o papel de proteção
ao direito à agua e ao saneamento, garantindo o acesso universal à agua potável; o governo é
diretamente responsável pela prestação dos serviços de abastecimento de água e a transparência dos organismos executores, devendo tornar as relações de caráter público; assim, o usuário
da água tem sua condição de cidadania preservada frente às instituições públicas responsáveis
pelo serviço. A segunda: o Estado repassa a responsabilidade a empresas privadas; assim, os
serviços de abastecimento de água passam a ter uma gestão privada; a água passa a ser uma
mercadoria, os direitos de cidadania são transformados em direito de usuários e de qualidade
dos serviços como consumidores.
Quando esse bem, que é finito e de direito público, passa a ser tratado como mercadoria, o
direito do cidadão passa a ser desvalorizado e por vezes dificultado, deixando de assegurar a disponibilidade de água potável para todos, sem exceção para favorecer aqueles que podem pagar mais.
Esta questão coloca em xeque o Marco Legal do Saneamento, com a aprovação da Lei
nº 14.026/2020, que teve início com a Medida Provisória nº 844, em 2018; e, posteriormente,
o Projeto de Lei 4.162, aprovado em 2019. O “novo marco” altera as diretrizes do saneamento
básico no Brasil, indo de encontro à sua universalização e abrindo caminhos para a privatização
do setor, por meio da proposta de transferência da responsabilidade de regulação para a Agência
Nacional de Águas (ANA) – serviço que até então era atribuído ao Ministério das Cidades. Apresenta-se, assim, um conflito com a Constituição Federal, que prevê que a responsabilidade pelo
saneamento é dos municípios, e não da União.
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 242-259, 2022
Artigos
A Lei nº 14.026/2020 desestruturará completamente o setor e ampliará a exclusão social,
com prejuízos à população que não tem acesso aos serviços – principalmente na periferia das
grandes cidades, nos pequenos municípios e na zona rural –, além de desencadear uma profunda
insegurança jurídica que jogará o setor num longo processo de estagnação.
No Fórum Mundial Alternativo da Água (FAMA), criado em contraposição ao 8º Fórum
Mundial da Água, as entidades ambientalistas e sanitaristas, os trabalhadores do setor de serviços urbanos, os sindicados e as associações municipais alertaram para a grande ameaça trazida
pelas propostas de privatização do saneamento ambiental no Brasil – visto que grande parte dos
países que tiveram a gestão privada do saneamento estão reestatizando-a, justamente porque
não obtiveram resultados satisfatórios na qualidade e na cobertura do serviço. O Observatório
Nacional dos Direitos à Água e ao Saneamento (ONDAS), criado a partir do FAMA, questiona o
novo marco legal do saneamento, salientando que ele deverá diminuir a cobertura e a qualidade
para os municípios menores e mais pobres, assim como para as regiões com maiores dificuldades
econômicas nas grandes cidades, que é o caso das áreas rurais.
Paradoxalmente, o Relatório sobre o Desenvolvimento da Água no Mundo das Nações
Unidas de 2018 foi apresentado no 8º Fórum Mundial da Água, o “Fórum das Corporações”, em
Brasília, Brasil, no dia 19 de março de 2018, com o encarte sobre as SbN para a Gestão da Água.
As SbN andam em conjunto com a economia verde, dentro da lógica da produção capitalista e
a busca por atingir os Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030.
Soluções para a produção mínima nas parcelas
em épocas de crise hídrica com base nas SbN
O sistema de captação de água da chuva, proposto pelo camponês Acácio Machado, no
Assentamento Pequeno William, consiste na captação de água pelo telhado da moradia e de
outras instalações de cobertura, sendo em seguida direcionada para reservatórios de redistribuição da água para o sistema de irrigação. A Figura 6 mostra a captação de água nos telhados
da residência, da pocilga e do galinheiro, sendo a água do telhado da casa encaminhada para
reservatórios em caixas d’água. Posteriormente, a água é distribuída para a área de produção de
alimentos, enquanto que a água advinda da pocilga e do galinheiro é encaminhada para depósitos, vindo a servir ao consumo animal, à higienização das baias e ao sistema de aquaponia, que
consiste na criação de peixe consorciado com o cultivo de hortaliças em sistema recirculatório.
A importância de sistemas de captação e distribuição como este está em usar de forma
eficiente toda a água captada, de modo a obter o mínimo de desperdício e suprir ao máximo a
demanda pelo recurso hídrico. Assim como disse Trigueiro (2012): “este cenário de escassez também inspira boas ideias, que se expandem pelo mundo, transformando problemas em solução”.
Considerações finais
O Distrito Federal possui grande potencial para a produção de alimentos saudáveis e em
quantidade suficiente para suprir a demanda da sua população. Porém, o descaso das autoridades envolvidas na questão hídrica e outras estruturas de produção fazem com que muitos
assentamentos da reforma agrária sejam improdutivos, vindos a desvalorizar a imagem destes
trabalhadores excluídos e marginalizados, vítimas de um sistema excludente e perverso. Sendo
assim, recorrer às tecnologias alternativas como a captação e armazenamento de água da chuva,
é uma alternativa para a sobrevivência desses camponeses.
Acácio Machado Alves, Liza Maria Souza de Andrade e Camila Maia Dias
257
Paisagem de injustiça hídrica
A principal contribuição desta pesquisa, para a comunidade, foi no sentido de gerar discussão em torno do problema da escassez hídrica, das formas de soluções encontradas e do
uso racional da água. Um outro aspecto de contribuição foi mostrar as formas de cooperação
258
possíveis entre os moradores, no processo de construção da autonomia, incluindo a troca de
saberes tradicionais. Apesar de o trabalho ter atingido os objetivos propostos, recomenda-se a
continuação destes estudos, buscando aprimorar o uso das técnicas de captação e armazenamento de águas pluviais assim como a sua utilização em sistemas de irrigação.
Referências
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Acácio Machado Alves, Liza Maria Souza de Andrade e Camila Maia Dias
259
Paisagens das Minas:
uma conformação de
riscos das minas em
Minas Gerais
Rodrigo da Cunha Nogueira
¡DALE!, DEARQ / UFOP
Paisagens das Minas: uma conformação
de riscos das minas em Minas Gerais
Resumo
Este trabalho tem como objetivo traçar apontamentos que ajudem a caracterizar as paisagens
das Minas Gerais produzidas pela atividade da mineração, que se entende como uma paisagem
de riscos, vulnerabilidades e dependente de interesses internacionais. Para isso, trazemos uma
articulação entre os mais recentes rompimentos de barragens de rejeitos de minérios no estado de Minas Gerais – os rompimentos de barragens que ocorreram nos municípios de Mariana
e Brumadinho – e as origens da mineração na antiga Villa Rica, atual município de Ouro Preto.
O trabalho se baseia na premissa de que as sociedades modernas foram (e ainda são) formadas
por um modelo de desenvolvimento baseado na hierarquização do mundo, colocando o desenvolvimento de uns em detrimento de outros, causando situações de riscos e vulnerabilidades socioambientais à populações e territórios. Metodologicamente, o artigo está dividido em
uma parte teórica, que tem como objetivo trazer elementos para interpretação da produção
sócio-espacial em Minas Gerais. E uma segunda parte que aborda, através dos casos, como a
mineração influencia na conformação de uma paisagem de riscos e vulnerabilidades, e como
as populações locais resistem e lutam por melhores condições de vida.
Palavras-chave: paisagem de risco; produção sócio-espacial: mineração; racismo ambiental;
justiça ambiental.
Paisajes de minas: una configuración
de riesgos mineros en Minas Gerais
Resumen
Este trabajo pretende trazar notas que ayuden a caracterizar los paisajes de Minas Gerais producidos por la actividad minera, que se entiende como un paisaje de riesgos, vulnerabilidades
y dependiente de intereses internacionales. Traemos una articulación entre las más recientes
rupturas de presas de relaves minerales en los municipios de Mariana y Brumadinho, en el estado de Minas Gerais, y los orígenes de la minería en la antigua Villa Rica, actual municipio de
Ouro Preto. El documento parte de la premisa de que las sociedades modernas se formaron,
y se siguen formando, con un modelo de desarrollo basado en la jerarquización del mundo,
colocando el desarrollo de unos en detrimento de otros, provocando situaciones de riesgos y
vulnerabilidades socio ambientales a poblaciones y territorios. Metodológicamente, el artículo
se divide en una parte teórica, que pretende aportar elementos para la interpretación de la
producción socioespacial en Minas Gerais. Y una segunda parte que aborda, a través de casos, cómo la minería influye en la conformación de un paisaje de riesgos y vulnerabilidades, y
cómo las poblaciones locales resisten y luchan por mejores condiciones de vida.
Palabras clave: paisaje de riesgo; producción socio espacial: minería; racismo ambiental;
justicia ambiental.
Landscapes of Mines: a configuration
of mine risks in Minas Gerais
Abstract
This paper aims to trace notes that characterizes the landscapes of Minas Gerais produced by
the mining activity, which is understood as a landscape of risks, vulnerabilities and dependent
on international interests. We bring an articulation between the most recent mineral tailings
dam disruption that occurred in the municipalities of Mariana and Brumadinho, in the state
of Minas Gerais, and the origins of mining in the earlier Villa Rica, now the municipality of Ouro
Preto. The paper is based on the premise that modern societies were, and still are, formed by
a development model based on the hierarchization of the world, placing the development of
some to the detriment of others, causing situations of socio-environmental risks and vulnerabilities to populations and territories. Methodologically, the article is divided into a theoretical part, which aims to bring elements for interpreting the social-spatial production in Minas
Gerais. The second part addresses, through cases, how mining influences the formation of a
landscape of risks and vulnerabilities, and how local populations resist and fight for better
living conditions.
Keywords: risk landscape; socio-spatial production: mining; environmental racism;
environmental justice.
Foto: Erivan de Jesus Santos Junior
263
Foto: Erivan de Jesus Santos Junior
264
Artigos
I
O Rio? É doce.
A Vale? Amarga.
Ai, antes fosse
Mais leve a carga.
II
Entre estatais
E multinacionais,
Quantos ais!
III
A dívida interna.
A dívida externa
A dívida eterna.
IV
Quantas toneladas exportamos
De ferro?
Quantas lágrimas disfarçamos
Sem berro?
Carlos Drummond de Andrade, 1984.
Naquela barragem da mente, se escondia um perigo
O que os olhos não veem, o coração se afunda no lixo
Mente podre que esconde o sumiço do amor mais puro do mundo
Morre gente, morre planta, morre bicho
Dentro de mim corria um rio
Um tanto verdade, um tanto fingido.
Criolo, 20161
Introdução
A formação dos primeiros arraiais, vilas e cidades onde atualmente é o estado de Minas Gerais
teve seu início no final do século XVII, com a descoberta de minérios na região. A descoberta de
ouro, em particular, teve extrema importância não só em âmbito local, mas em especial para a colônia e suas relações internacionais. O processo inicial de extração mineral ocorreu, principalmente,
apoiando-se em dois pilares: o modelo de trabalho baseado na escravização dos povos oriundos
da diáspora africana e originários das Américas; e a naturalização de que o meio ambiente serviria unicamente à extração de matérias primas. Tal base, que estruturou a exploração de ouro nas
Minas Gerais do período colonial, influenciou, profundamente, o modelo de mineração atual, que
vem causando contínuos impactos socioambientais – com destaque para os dois desastres-crimes
mais recentes ocorridos no estado, em 2015 e 2019.
Assim, para iniciar a reflexão, trazemos duas imagens do rompimento da barragem de
rejeitos de minérios denominada Fundão (Figuras 1 e 2), sob responsabilidade da empresa Samarco Mineração S. A. (propriedade da multinacional brasileira Vale S.A. e da anglo-australiana
BHP), ocorrido no dia 5 de novembro de 2015, no município de Mariana/MG; e duas imagens do
rompimento da barragem de rejeitos do Córrego do Feijão (Figuras 3 e 4), sob responsabilidade
da Vale S.A., que ocorreu em 25 de janeiro de 2019, em Brumadinho/MG. As Figuras 1 e 2 são
1 Vídeo acessado em 18/01/2021: https://www.youtube.com/watch?v=ekbuK356X34.
Rodrigo da Cunha Nogueira
265
Paisagens das Minas
266
Figuras 1 e 2: Imagens do subdistrito Bento Rodrigues, em Mariana-MG. Fontes: Figura 1 - arquivo
pessoal, 2018; Figura 2 - Antônio Cruz/Agência Brasil, 2020.
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 260-287, 2022
Artigos
267
Figuras 3 e 4: Imagens das proximidades do Córrego do Feijão e do Rio Paraopeba, após o rompimento
da barragem de rejeitos de minérios, em Brumadinho/MG. Fontes: Figura 3 - Iris Medeiros/MAB (2019);
Figura 4 - Nilmar Laje/MAB (2019).
Rodrigo da Cunha Nogueira
Paisagens das Minas
imagens que ilustram Bento Rodrigues, primeiro subdistrito de Mariana destruído após o rompimento da barragem de Fundão. Já as Figuras 3 e 4 mostram o território atingido do município de
Brumadinho que sofreu impactos.2
268
Este trabalho tem como objetivo traçar apontamentos que ajudem a caracterizar as paisagens das Minas Gerais produzidas pela atividade da mineração, a que se entende como uma
paisagem de riscos, vulnerabilidades e dependente de interesses internacionais. Ou seja, pretendemos construir uma interpretação paisagística, consequente da atividade de extração de
minérios. Para isso, propomos uma articulação entre os mais recentes rompimentos de barragens
Figura 5: Imagem aérea do bairro São Cristóvão, Serra de Ouro Preto (1969). Fonte: Eduardo Evangelista
Ferreira (2017)
Figura 6: Vista aérea do setor de desmonte hidráulico na Serra do Veloso, localizado no município de Ouro
Preto. Fonte: Eduardo Evangelista Ferreira (2017).
2 A Figura 2 é imagem de matéria que denuncia a demora no processo de reparação das famílias atingidas,
publicada na data que completam 5 anos do rompimento, 05/11/2020. Acessado em 18/01/2021: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-11/tragedia-da-barragem-do-fundao-em-mariana-completa-5-anos.
A Figura 4, por sua vez, provém da obra MAB. Dossiê O Lucro não Vale a Vida/ Análise do MAB sobre o crime
da Vale em Brumadinho (MG). Disponível em: https://issuu.com/mabnacional/docs/cartilha-brumadinho-2019-web. Acesso em: 23 jun. 2021.
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 260-287, 2022
Artigos
de rejeitos de minérios no estado de Minas Gerais – que ocorreram nos municípios de Mariana
e Brumadinho – e as origens da mineração na antiga Villa Rica, atual município de Ouro Preto.
A premissa principal está no entendimento de que as sociedades modernas foram (e ainda são)
formadas por um modelo de desenvolvimento baseado na hierarquização do mundo – entre
populações e territórios –, colocando o desenvolvimento de uns em detrimento de outros. Como
consequência deste processo, populações e territórios são submetidos a situações de riscos e
vulnerabilidades socioambientais.
.Com relação às marcas na paisagem deixadas pela extração de ouro, durante o período
colonial, no estado de Minas Gerais, destacamos, principalmente, aquelas decorrentes das técnicas
de extração de minérios por galerias subterrâneas e desmonte hidráulico ou talho a céu aberto.
Conforme imagem aérea de 1969 (Figura 5), antigas estruturas da mineração registram as atividades minerárias do bairro São Cristóvão, localizado na Serra de Ouro Preto. Tal área é apontada
como um dos primeiros locais onde ocorreu a mineração colonial. Por sua vez, a Figura 6, bastante recente, mostra que muitas dessas estruturas em pedra ainda estão preservadas no bairro.
Para atingir o objetivo proposto, o trabalho está dividido em uma primeira parte teórica
intitulada “Produção, ou exploração, sócio-espacial dependente: territorialização de riscos e
vulnerabilidades”. E uma segunda parte “Mineração e a formação de paisagens de riscos”.
Produção, ou exploração, sócio-espacial3 dependente: a
mineração e a territorialização dos riscos e vulnerabilidades
Cuando la sangre
de tus venas retorne
al mar,
y el polvo en tus
huesos vuelva
al suelo,
quizás recuerdes que
esta tierra no te
pertence a tí,
sino que tú
pertences a
esta tierra.
Provérbio dos povos originários americanos.
Promovido por lideranças indígenas, mais especificamente as lideranças do Equador e da
Bolívia, a filosofia do “bem viver”, “buen vivir” ou “vivir bien” – termos usados no Brasil, Equador e
Bolívia, respectivamente – está cada vez mais presente nos debates em torno da produção sócio-espacial latino-americana. Tais termos vêm do “suma qamaña”, de origem aimará, do “sumak
kawsay”, de origem quéchua, e “nhandereko”, de origem guarani, que podem ser traduzidos
3 A despeito de não ser a grafia correta segundo o mais recente acordo ortográfico, o termo “sócio-espacial”
é trazido com hífen por Marcelo Lopes de Souza (2016), geógrafo brasileiro que afirma que, assim, os dois
termos preservam sua identidade semântica. Ou seja, mantendo-se o hífen, segundo autor, ficariam preservadas tanto as relações sociais quanto as relações espaciais, que podem ser analisadas conjunta e separadamente, de forma complementar. O intuito é potencializar a compreensão dos processos sociais, espaciais e
sócio-espaciais (SOUZA, 2016).
Rodrigo da Cunha Nogueira
269
Paisagens das Minas
como vida digna, plena, em comunhão com a natureza (ACOSTA, 2016; MIGNOLO, 2017). O
geógrafo brasileiro Carlos Walter Porto-Gonçalves defende que na Filosofia Andina não existe
uma palavra para definir uma unidade da matéria, pois “para eles, tudo é relação e relação de
270
relação” (PORTO-GONÇALVES, 2017, p. 10-11). Assim, não existe definição de natureza, por isso
significaria separá-la da humanidade. No mesmo sentido, na Filosofia Africana, a palavra “ubuntu”,
de origem bantu, não separa um ser humano do outro e da natureza, tudo é relação, baseado
em relações comunais de harmonia e respeito (LOUW, 2001). Assim, as reflexões levantadas pelo
“bem viver”, “buen vivir, “vivir bien” ou “ubuntu” estão relacionadas a filosofias ameríndias e africanas com base em princípios de autonomia, comunalidade, direitos da natureza e autogestão.
Contudo, a modernidade insere uma outra lógica na relação entre seres humanos e natureza. Walter Mignolo (2017) defende a tese de que o projeto de Modernidade teve uma pauta
oculta: a colonialidade. Compreender o que significou a colonialidade nos permite o entendimento de que o ponto central do sistema de relações coloniais de poder e dominação se baseia na
Matriz Colonial de Poder (MCP), sendo desenvolvida e mantida pelo sistema capitalista. Segundo
Mignolo (2017), a MCP é um sistema de domínios que se relacionam –economia, autoridade,
gênero e sexualidade, e conhecimento e subjetividade – e seguem em duas direções concomitantes, uma entre os Estados europeus e outra entre os Estados colonizadores e os territórios e
povos colonizados e explorados. A MCP está estruturada em relações hierarquizadas de domínio
e poder, tornando-se o “fundamento racial e patriarcal do conhecimento (a enunciação na qual
a ordem mundial é legitimada)” (MIGNOLO, 2017, p. 5), justificando uma relação de hierarquização e dominação entre as raças e entre a humanidade e a natureza. O autor aponta que até o
advento da modernidade, as relações de trabalho entre os seres humanos e dos humanos com
a natureza se estabeleciam segundo a necessidade de manutenção da vida.
[...] uma vez que a “natureza” se tornou um conceito estabelecido, a relação do
homem com a natureza deslocou o conceito medieval europeu de trabalho
[...]. Trabalhar para viver (ou o trabalho vivo, na conceituação de Marx) começou a se transformar em trabalho escravizado e depois assalariado. Casos
semelhantes podem ser encontrados (para além da história da Europa e suas
colônias) no mundo islâmico e na China. Todos esses casos ao redor do mundo
tinham dois aspectos em comum: o trabalho era necessário para se viver e
não era subjugado à MCP, que transformava o trabalho vivo em escravidão e
trabalho assalariado (os trabalhos escravizado e assalariado tornaram-se naturalizados no processo de criar uma economia de acumulação, que é hoje
reconhecida como mentalidade econômica capitalista). Antes disso, viver era
a precondição necessária para trabalhar. Essa transformação resultou no extensivo comércio escravo, que transformou a vida humana em mercadoria –
para o dono da plantação, da mina e, mais tarde, da indústria. [...] A “natureza”
– amplamente concebida – se transformou em “recursos naturais” [...]. Ou seja,
a “natureza” se tornou repositório para a materialidade objetivada, neutralizada e basicamente inerte que existia para a realização das metas econômicas
dos “mestres” dos materiais. O legado dessa transformação permanece nos
dias atuais, em nossa presunção de que a “natureza” é o fornecedor de “recursos naturais” para a sobrevivência diária: a água como mercadoria engarrafada
(MIGNOLO, 2017, p. 7, grifos meus).
Assim, é a partir do advento da modernidade que os seres humanos e a natureza são vistos como coisas distintas, e suas relações – entre os humanos, e humanos com a natureza – são
estabelecidas como formas de dominação e exploração. Neste sentido, cria-se uma distinção
entre o “espaço natural” e “espaço social”.
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 260-287, 2022
Artigos
Em relação ao “espaço natural”, Marcelo Lopes de Souza (2016) separa-o em dois tipos: a
“natureza primeira”, onde os “processos e ambientes ‘extrato natural’: bacia hidrografia, ecótopo,
ecótono” são estudados e pesquisados com pouca preocupação, ou nenhuma, na sua relação
com a sociedade; e a “natureza segunda”, onde se insere tanto a materialidade transformada
pela sociedade, quanto os aspectos simbólicos e de poder. Trata-se, portanto: de uma natureza
que “importa”, a “natureza-para-sociedade”; e uma natureza que “não importa”, “aquela das
forças naturais (processos físicos, químicos e biológicos, e sua concretização como processo de
modelagem da superfície terrestre)” (SOUZA, 2016, p.31). O “espaço social”, por sua vez, é “aquele
que é apropriado, transformado e produzido pela sociedade” (SOUZA, 2016, p. 22).
A introdução da MCP, em detrimento das filosofias ameríndias e africanas, estabelece
uma “nova” relação de trabalho e entre a sociedade e a natureza – relação de exploração,
escravismo e extrativismo.
O marco temporal adotado por este trabalho sobre o início da Modernidade – e consequentemente o início de um modelo mundial de produção de riscos e vulnerabilidades na produção
sócio-espacial periférica – é o mesmo defendido por Enrique Dussel (2005): que as sociedades
modernas tiveram seu início com a chegada às Américas em 1492.
Propomos uma segunda visão da “Modernidade”, num sentido mundial, e
consistiria em definir como determinação fundamental do mundo moderno o
fato de ser (seus Estados, exércitos, economia, filosofia, etc.) “centro” da História Mundial. Ou seja, empiricamente nunca houve História Mundial até 1492
(como data de início da operação do “Sistema-mundo”). Antes dessa data, os
impérios ou sistemas culturais coexistiam entre si. Apenas com a expansão
portuguesa desde o século XV, que atinge o extremo oriente no século XVI, e
com o descobrimento da América hispânica, todo o planeta se torna o “lugar”
de “uma só” História Mundial (Magalhães-Elcano realiza a circunavegação da
Terra em 1521) (DUSSEL, 2005, p. 28-29).
Dussel (2005) chama a atenção para a importância das Américas na formação do mundo
globalizado e moderno como conhecemos, pois é a partir deste momento que se inaugura o
sistema-mundo e o sistema colonial, proporcionando as bases materiais – fruto da exploração
de matérias-primas que abasteciam a Europa – para a revolução industrial na Europa e a consolidação do capitalismo.
A produção sócio-espacial, na América Latina, em especial no Brasil, é marcada, historicamente, por refletir os interesses externos, interesses dos países que participaram do processo
de colonização e neocolonização; e que seguem hegemônicos na atualidade, dentro do sistema
produtivo globalizado. Tal influência causa enormes fragilidades dos países da periferia do capitalismo internacional, em especial da América Latina, influenciando na geração de enormes
desigualdades sociais e espaciais. Desta forma, o mercado globalizado tem influência direta na
geração de desigualdades sociais e na produção de territórios precários, vulneráveis e submetidos a riscos socioambientais.
Como defendido por Milton Santos (2019), a concepção do fenômeno da globalização
como uma “aldeia global” – onde o tempo e o espaço são encurtados pelas novas formas de
comunicação e disseminação de informações, caminhando para um mundo homogêneo e
cheio de igualdades, seja de acesso a bens de consumo ou de igualdade de possibilidades de
desenvolvimento –, é entendida como “fábula”. A globalização como “fábula” seria um discurso, uma narrativa que defende um desenvolvimento global igualitário, com benefícios a toda
população mundial, mas, tal narrativa, esconde a sua real essência negativa, o lado perverso da
Rodrigo da Cunha Nogueira
271
Paisagens das Minas
globalização que, ao contrário do que é propagado, agudiza as desigualdades globais entre os
Estados-Nação, entre as localidades e classes sociais.
A globalização é uma das etapas de internacionalização do mundo capitalista. Milton
272
Santos (2019) chama a atenção para os aspectos políticos e o desenvolvimento tecnológico
para a compreensão do fenômeno da globalização e de como esta se apresenta em cada Estado e localidade. O desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação permitiram
um novo sistema técnico produtivo e mercado em âmbito global. O sistema técnico produtivo
representa o momento histórico de cada época e na era da globalização não é diferente. O que
permite pensar em produção global são as tecnologias de comunicação e informação, colocando
em contato as diversas técnicas existentes e assegurando seu comércio. No entanto, a tecnologia
não se realiza sozinha, muito menos em âmbito global, por isso, Milton Santos (2019) chama a
atenção também para os aspectos políticos da era da globalização.
As técnicas apenas se realizam, tornando-se história, com a intermediação da
política, isto é, da política das empresas e da política dos Estados, conjunta e
separadamente. Por outro lado, o sistema técnico dominante no mundo de
hoje tem outra característica, isto é, a de ser invasor. Ele não se contenta em
ficar ali onde primeiro se instala e busca espalhar-se, na produção e no território. Pode não conseguir, mas essa é sua vocação, que é também fundamento
da ação dos atores hegemônicos, como, por exemplo, as empresas globais. Estas funcionam a partir de uma fragmentação, já que um pedaço da produção
pode ser feita na Tunísia, outro na Malásia, outro ainda no Paraguai, mas isto
apenas é possível porque a técnica hegemônica de que falamos é presente ou
passível de presença em toda parte (SANTOS, 2019, p. 26).
Assim, vemos que a relação entre a economia política mundial e o sistema técnico produtivo hegemônico é intrínseca ao fenômeno da globalização e essencial para esta etapa de
internacionalização do capitalismo. De um lado um sistema técnico produtivo segmentado e, de
outro, uma unidade política de comando, formando as bases para o que Milton Santos (2019)
chamou de “mais-valia mundial”.
Conforme apontado por Santos (2019), é a política que dá unicidade ao sistema produtivo
e garante seu funcionamento globalizado, e pode ser analisada por dois aspectos: as políticas
das empresas, e suas imposições nas localidades que atuam; e as políticas de cada Estado e
das instituições supranacionais, como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, que
coordenam políticas econômicas mundiais para que cada Estado se adeque às “necessidades”
de atuação das empresas globalizadas. Santos (2019) denomina como o “motor único” a junção
desses dois aspectos, e que organiza a “mais-valia mundial”.
O processo de desenvolvimento desigual resultante da globalização, legitima a exploração,
em âmbito mundial, organizada pelas empresas internacionais, apoiada pelas instituições supranacionais e implementada em cada localidade por cada Estado. Neste processo, a transição
do poder e das influências, na formação econômica e sócio-espacial e nos territórios dos Estados-Nação, para a empresas internacionais, apresenta-se como fator importante a ser analisado
para compreender como os domínios se dão na atualidade (FERNANDES, 1975; SANTOS, 2019).
A partir do período histórico referente à invasão/colonização de territórios fora da Europa,
os Estados-Nação tiveram um papel fundamental para a formação do mundo moderno como
o que conhecemos hoje. Deste processo, podemos chamar a atenção para o papel de dois Estados em especial, Espanha e Portugal, na invasão do território denominado por estes países de
América, mais especificamente a América Latina. Por séculos, as ações políticas e econômicas
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 260-287, 2022
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que coordenavam as atividades na América Latina foram, principalmente, relacionadas a estes
dois países. Portugal foi responsável pelo padrão de colonização e exploração tanto de produtos
agrícolas – a exemplo da cana-de-açúcar, produzido em boa parte do litoral brasileiro –, quanto
de minérios, a exemplo da extração de ouro em Minas Gerais. A partir do final do século XVIII e
início do século XIX, cresce a luta por novos mercados, aumentando a disputa sobre a influência e o “controle econômico das colônias latino-americanas na Europa, especialmente entre a
Holanda, França e Inglaterra” (FERNANDES, 1975, p.14), o que foi extremamente importante
para que ocorresse a revolução industrial europeia. A invasão dos territórios latino-americanos
e as imposições das formas de exploração (da natureza e de pessoas) não influenciou somente
a economia da época, mas também deixou heranças no modelo de desenvolvimento político-econômico e sociocultural, nos anos seguintes e até os dias atuais.
Forjada no calor da expansão comercial promovida no século 16 pelo capitalismo nascente, a América Latina se desenvolve em estreita consonância com a
dinâmica do capitalismo internacional. Colônia produtora de metais preciosos e
gêneros exóticos, a América Latina contribuiu em um primeiro momento com o
aumento do fluxo de mercadorias e a expansão dos meios de pagamento que,
ao mesmo tempo em que permitiam o desenvolvimento do capital comercial e
bancário na Europa, sustentaram o sistema manufatureiro europeu e propiciaram o caminho para a criação da grande indústria. A revolução industrial, que
dará início a ela, corresponde na América Latina à independência política que,
conquistada nas primeiras décadas do século 19, fará surgir, com base na estrutura demográfica e administrativa construída durante a Colônia, um conjunto
de países que passam a girar em torno da Inglaterra. Os fluxos de mercadorias e,
posteriormente, de capitais têm neste seu ponto de entroncamento: ignorando
uns aos outros, os novos países se articularão diretamente com a metrópole inglesa e, em função dos requerimentos desta, começarão a produzir e a exportar
bens primários, em troca de manufaturas de consumo e — quando a exportação
supera as importações — de dívidas (MARINI, 2017, p. 327).
Mais recentemente, com o chamado capitalismo corporativo ou monopolista (FERNANDES, 1975, p.18), introduz-se na América Latina uma nova etapa do capitalismo mundial e de
dominação externa, onde as empresas internacionais se tornam protagonistas na influência e
dominação nos territórios latino-americanos.
O quarto padrão externo de dominação externa surgiu recentemente, em conjunção com a expansão das grandes empresas corporativas nos países latino-americanos – muitas nas esferas comerciais, de serviços e financeiras, mas a
maioria nos campos da indústria leve e pesada. Essas empresas trouxeram à
região um novo estilo de organização, de produção e de marketing, com novos padrões de planejamento, propaganda de massa, concorrência e controle
interno das economias dependentes pelos interesses externos. Elas apresentam o capitalismo corporativo ou monopolista, e se apoderaram de posições
de liderança – através de mecanismos financeiros por associação com sócios
locais, por corrupção, pressão ou outros maios – ocupadas anteriormente por
empresas nativas e por seus “policy-makers” (FERNANDES, 1975, p. 18).
Apesar da mudança na dinâmica de poder, em âmbito global, o papel da América Latina
e do Brasil dentro da dinâmica econômica mundial e Divisão Internacional do Trabalho (DIT)
continua o mesmo. Florestan Fernandes (1975) nos alerta que o desenvolvimento interno, nos
países da América Latina, apresenta uma relação de dependência das economias locais frente aos
interesses dos países hegemônicos da economia mundial – dependência dos países periféricos
aos interesses dos países do centro do capitalismo. Sobre a relação de dependência, controle e
Rodrigo da Cunha Nogueira
273
Paisagens das Minas
influência, Florestan Fernandes(1975) salienta uma outra característica desta relação, isto é, a
de transferência de recursos – sejam dinheiro ou recursos materiais, agrícolas e minerais entre
outros – dos países periféricos às economias dos países do centro do capitalismo internacional.
274
O fardo da acumulação do capital é carregado pelos países latino-americanos;
mas seus efeitos multiplicadores mais importantes são absorvidos pelas economias centrais, que funcionam como centros dinâmicos de apropriação das
maiores cotas do excedente econômico gerado (FERNANDES, 1975, p. 30).
A teoria da dependência teve sua origem quando intelectuais latino-americanos, que
pensavam a América Latina, constataram que as economias locais apresentam uma tendência
que “envolve um controle externo simétrico ao antigo sistema colonial, nas condições de um
moderno mercado capitalista, da tecnologia avançada, e da dominação externa compartilhada
por diferentes nações” (FERNANDES, 1975, p.18). Ainda, que não se pode pensar o desenvolvimento dos países latino-americanos da mesma forma que é pensado o desenvolvimento dos
países centrais do capitalismo, devendo levar em conta a realidade local e seu processo histórico
(FERNANDES, 1975).
A relação de dependência dos países periféricos aos interesses dos países do centro do
capital também é marcada por mecanismos que dificultam, ou impedem, um desenvolvimento
focado nos interesses das populações latino-americanas, um modelo de “desenvolvimento do
subdesenvolvimento” (FRANK, 1966). Essa ideia de que a América Latina está “destinada” a um
desenvolvimento que nos mantém na situação de subdesenvolvimento, pode ser um caminho
para explicar os motivos que levam a economia brasileira estar até hoje baseada, em grande parte,
em commodities, ou seja, produtos básicos agrícolas, minérios e petróleo. Vale lembrar que, na
história latino-americana, alguns países passaram por períodos de tentativas de industrialização
em maior ou menor grau, mas sem muito sucesso.
Esse desenvolvimento dependente latino-americano, acentuado pela globalização, traz
como consequência uma enorme desigualdade social, fazendo com que a região seja considerada
a mais desigual do planeta. Nos anos de 1960, na América Latina, 50% da população dos mais
pobres participavam de 14% da renda nacional, sendo que os 20% do mais ricos detinham 61%
desta renda, com renda per capita seis vezes maior que os outros 80% da população (FERNANDES, 1975). O relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento da Organização
das Nações Unidas (PNUD/ONU)4 de 2019 aponta para uma enorme desigualdade na América
Latina, sendo que cerca de 10% dos mais ricos da região concentram 37% da renda, enquanto
40% dos mais pobres recebem 13%. Assim, vemos que, nas últimas décadas, a desigualdade na
América Latina continua muito alta, apesar do discurso de que a globalização traria melhores
condições de desenvolvimento e vida.
A desigualdade na América Latina não se restringe às diferenças de rendas, mas há também
uma grande desigualdade espacial. Para compreender a desigualdade sócio-espacial – utilizando
o conceito do Marcelo Lopes de Souza (2016), pelo qual podemos analisar os aspectos sociais e
espaciais em separado e conjuntamente –, faz-se importante analisar a atual Divisão Internacional
do Trabalho (DIT), possibilitada por um sistema produtivo globalizado. Como dito por Milton Santos
(2005, p.61), “a divisão internacional do trabalho apenas nos dá a maneira de ser do modo de
produção dominante”; e o sistema de produção dominante, ou hegemônico, da era da globaliza-
4 Dados retirado relatório da PNUD. Acessado em 26/01/2021: https://www.br.undp.org/content/brazil/pt/
home/presscenter/articles/2019/condicoes-de-partida-podem-determinar-desigualdades-no-futuro--r.html.
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 260-287, 2022
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ção solicita facilidades para extração de produtos básicos – baixos custos (insumos, maquinários,
força de trabalho etc.), legislações permissivas e facilidades de circulação de produtos.
Olhando para os processos de produção espacial, em especial no Brasil, observa-se, de
um modo geral, que as dinâmicas internas foram desenhadas para atender às necessidades do
sistema produtivo mundial, inicialmente ao sistema produtivo colonial e, depois, adequando-se
às transformações do capitalismo internacional. Milton Santos (2009) chama a atenção para o
modelo de urbanização brasileira que, no período colonial, estava condicionado à produção de
bens agrícolas e do escoamento produtivo para um mercado externo, assim destinando às cidades, neste período, a função de armazenamento e escoamento da produção. Além de um papel
econômico dentro do modelo de produção agrícola colonial, as cidades se constituíram com o
papel essencialmente político, estabelecendo uma relação de poder, papel que continuaram a
exercer até o final do século XIX e início do século XX. Após este período, altera-se a dinâmica da
produção do espaço no Brasil, o que Milton Santos (2009) credita às evoluções “técnico-científicas” nos modelos de produção e circulação de bens e pessoas, que interligaram cidades e
incentivaram uma intensificação da urbanização no Brasil.
O modelo de urbanização das cidades brasileiras não foi planejado em sua gênese, apesar
de o Brasil contar, hoje, com a maior parte da população habitando em cidades e ser verificado um
aumento considerável da insegurança urbana.5 Francisco de Oliveira (2003) e Ermínia Maricato
(1982) apontam para as condições de “superexploração da força de trabalho” – característica
de uma economia dependente – e suas consequências na produção espacial das cidades, caracterizada por ocupações “regulares” e “irregulares” autoproduzidas, as últimas em áreas com
pouco, ou nenhum, interesse de mercado. Ao mesmo tempo que as cidades brasileiras são
condicionadas por uma lógica do capitalismo dependente – superexploração do trabalhador e
a consequente urbanização possível –, o restante do território também se desenvolve seguindo
a interesses externos.
Na primeira década dos anos de 2000, a partir do boom das commodities, impulsionadas
pelo crescimento do mercado chinês, as dinâmicas de produção territorial, foram intensificadas
especialmente as áreas rurais de interesse agrícola e da mineração. A produção dos produtos
básicos, voltados à exportação, necessita de grandes quantidades de terras e o aumento da demanda internacional também alimenta a busca por expandir sua produção e a influência das
empresas produtoras sobre a gestão do território (HARVEY, 2020).
Os principais produtos exportados pelo Brasil, em 2019, foram, em primeiro lugar, a soja
(US$ 26 bilhões), seguidos pelo petróleo, em segundo (US$ 24 bilhões) e, em terceiro, o minério
de ferro (US$ 22,18 bilhões), em quarto, a celulose (US$ 7,49 bilhões) e, em quinto, o milho (US$
7,34 bilhões) – de acordo com os dados do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços.6
Os produtos manufaturados ficaram em oitavo lugar com somente US$5,83 bilhões em 2019,
11,1% menor do que a produção de 2018,7 o que corrobora com os recentes anúncios de fecha-
5 Dados sobre a urbanização na América Latina e as condições de vida nas cidades. Acessado em 29/01/2021:
https://brasil.elpais.com/brasil/2014/04/18/internacional/1397834294_310921.html.
6 Os dados foram obtidos pelo Comex Stat, sistema para consultas e extração de dados do comércio exterior brasileiro do Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços do Governo Federal. Acessado em
27/01/2021: http://comexstat.mdic.gov.br/pt/home.
7 Idem à nota 4.
Rodrigo da Cunha Nogueira
275
Paisagens das Minas
mento de algumas fábricas instaladas no Brasil, a exemplo da multinacional de veículos Ford.8
Se o Brasil já contava com um parque industrial pequeno, os dados que indicam um processo de
desindustrialização, junto à afirmação do presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
276
(IPEA), Carlos Doellinger, em entrevista ao jornal Valor Econômico, de que o “nosso caminho não
é a indústria manufatureira, a não ser aquela ligada ao beneficiamento de produtos naturais
e minérios”,9 mostram que a desindustrialização e o enfoque nos produtos básicos não é uma
questão conjuntural, mas de “projeto”. Neste sentido, fica mais “fácil” compreender os rumos da
flexibilização de leis ambientais, nos últimos anos, que favoreceram, e ainda favorecem, e muito,
as empresas do agronegócio e da mineração, em detrimento do meio ambiente, das populações
indígenas, dos quilombolas e dos ribeirinhos – como demonstra o Dossiê: Flexibilização da Legislação Socioambiental Brasileira,10 elaborado pela Fundação Heinrich Böll em parceria com
a Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE).
As principais atividades relacionadas a produtos voltados à exportação, como soja, minério de ferro e milho, entre outros, necessitam de grandes extensões de terra e leis que facilitem
sua produção. E é nesse ponto que entra em ação o domínio sócio-espacial brasileiro feito pelas
grandes empresas internacionais, que atendem aos interesses também externos. Por exemplo,
o maior comprador de minérios de ferro do Brasil, em 2019, foi a China – 59% de toda produção,
o que significa um valor de US$ 13,1 bilhões –, seguido da Malásia (US$ 1,78 bilhões) e Japão
(US$ 1,04 bilhões).
Estudos mais recentes apontam para os impactos nas dinâmicas ambientais de cidades e
vilarejos do entorno das áreas de exploração (MILANEZ, 2016). A grande instabilidade dos preços
é uma característica das commodities, como o caso dos minérios de ferro. Nas últimas décadas, as
commodities passaram por ciclos de valorização e desvalorização. De acordo com o pesquisador
Bruno Milanez (2016), estudos canadenses analisaram 143 desastres em mineração ao redor
do mundo, entre 1968 e 2009, e apontaram para uma correlação entre a variação dos preços
dos minérios no mercado internacional com rompimentos de barragens de rejeitos oriundos
das atividades minerárias. Os estudos explicam que, em períodos de alta dos preços dos minérios de ferro, geralmente os licenciamentos e os procedimentos de execução e construção de
barragens de rejeitos, oriundos da extração, são intensificados e acelerados por pressão das empresas mineradoras, de modo a aproveitar esta fase de alta. Já nos momentos após as baixas nos
preços, há uma pressão, por parte dessas mesmas empresas mineradoras, para baixar os custos
operacionais, como a manutenção e o controle de segurança. Em razão desses motivos, há um
aumento nos riscos de rompimento de barragens (SANTOS et. al, 2016), causando insegurança
socioambiental, colocando em situação de vulnerabilidade os trabalhadores, o meio ambiente e
as populações que habitam proximamente às barragens ou nas bacias hidrográficas a jusante.
Desta forma, vemos como uma dinâmica internacional, ditada pelo desenvolvimento dos
países do centro do capitalismo, determina o modo de desenvolvimento da dinâmica local, a
exemplo da extração de matérias-primas no Brasil. No caso deste artigo, analiso as influências
externas (internacionais), no manejo local da exploração de minérios, que vêm causando, historicamente, a produção de riscos e vulnerabilidades. E, ainda, neste mesmo sentido, as dinâmi-
8 Informação retirada do artigo do jornal Brasil de Fato que aborda a política de desindustrialização no
Brasil a partir do anúncio do fechamento das fábricas da multinacional Ford. Acessada em 28/01//202: https://
www.brasildefato.com.br/2021/01/12/dos-investimentos-bilionarios-ao-fechamento-de-fabricas-por-que-a-ford-esta-de-saida.
9 A Entrevista de Carlos Doellinger, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), está disponível em: https://valor.globo.com/opiniao/coluna/desindustrializacao-pode-tornar-brasil-a-roca-do-mundo.ghtml .
10 Acessado em: https://br.boell.org/pt-br/dossie-flexibilizacao-da-legislacao-socioambiental-brasileira-2-edicao.
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 260-287, 2022
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cas internacionais e locais para a implementação dos empreendimentos da mineração e a sua
operação, que refletem outro tipo de desigualdade: o racismo ambiental.
Lawrence Sammers, economista-chefe do Banco Mundia, em memorando – a princípio
de circulação restrita, mas que acabou sendo divulgado em na revista estadunidense The Economist – fez a seguinte pergunta: “Cá entre nós, não deveria o Banco Mundial estar incentivando
mais a migração de indústrias poluentes para países menos desenvolvidos?” (apud ACSELRAD
et al, 2009, p. 7). Conforme explica Acselrad et al (2009), as justificativas para a pertinência da
pergunta para o economista seriam: 1) o meio ambiente seria uma questão “estética” típica apenas aos bem-de-vida; 2) os mais pobres, em sua maioria, não vivem mesmo o tempo necessário
para sofrer os efeitos da poluição ambiental, sendo que alguns países da África ainda estariam
subpoluídos, lamentando-se, assim, que algumas atividades poluidoras não fossem diretamente
transportáveis, tais como produção de energia e infraestrutura em geral; 3) pela lógica econômica, pode-se considerar que as mortes em países pobres têm custo mais baixo do que países
ricos, pois seus moradores recebem salários mais baixos.11
O projeto desenvolvimentista internacional afeta o mundo como um todo, polui e destrói
o meio ambiente (ar, água, solos etc.), nossos alimentos e nos expõe a diversos tipos de perigos.
Apesar destes problemas ambientais em alguma medida atingirem a todos, a forma de distribuição dos riscos e danos não é homogênea, mas desigual, atingindo menos algumas regiões e
populações em detrimento de outras que não tem a mesma “sorte”. Além do fato da distribuição
dos riscos ocorrer de forma desigual, algumas regiões e sociedades possuem mais capacidade
de se proteger e reagir do que outras.
O reconhecimento de que existe uma heterogeneidade na distribuição dos efeitos colaterais do desenvolvimento das sociedades modernas – chamado de racismo ambiental – e o início
da luta por justiça ambiental foi abordada por Luke Cole e Sheila Foster (2001) no livro From the
Ground up: environmental racism and the rise of the environmental justice movement. Cole e
Foster (2001) abordam o caso da implementação de um depósito de resíduos tóxicos de uma
grande empresa multinacional, nos anos de 1980, em Kettleman, localizada no Vale de San Joaquim no estado da Califórnia, nos Estados Unidos. Kettleman era uma cidade de trabalhadores
rurais, com 1.100 habitantes, sendo 70% de seus moradores de origem latina. O entendimento
de racismo ambiental surgiu quando a população desta cidade percebeu que a localização de
empreendimentos como o depósito de lixo tóxico (que traziam danos à população e ao meio
ambiente local), não era definida ao acaso, mas sim resultada de uma política declarada da empresa e de instituições do Estado. A escolha do local de destinação deste tipo de resíduos seguia
a orientação do Relatório do Conselho de Gestão de Resíduos da Califórnia, que orientava utilizar
como fator de escolha do local a capacidade de resistência da população residente. A partir desta
compreensão, os moradores de Kettleman, em conjunto com movimentos sociais de proteção
ambiental, iniciaram uma batalha judicial contra a instalação do depósito de lixo tóxico em sua
cidade. Neste embate, a população desta pequena cidade venceu e, por isso, foi considerado o
marco do movimento por justiça ambiental (COLE & FOSTER, 2001).
O racismo ambiental tem uma relação direta entre a exploração da terra e a exploração
das pessoas não brancas (BOULLARD, 2004). Neste sentido, o entendimento sobre justiça ambiental está relacionado à justiça social, à luta pelo direito a um meio ambiente seguro, sadio e
produtivo para todas as sociedades. E a noção de “meio ambiente” deve ser entendida em sua
totalidade, assim, incluindo as “dimensões ecológicas, físicas, construídas, sociais, políticas, estéti11 Proposição encontrada em memorando de circulação restrita aos quadros do Banco Mundial, em 1991,
escrito pelo economista-chefe do Banco Mundial, Lawrence Sammers (ACSELRAD, 2009).
Rodrigo da Cunha Nogueira
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Paisagens das Minas
cas e econômicas” (ACSELRAD et al, 2009, p.16). O Movimento por Justiça Ambiental, para unir
os direitos civis e a agenda ambiental, se consolidou como uma rede multicultural e multirracial,
articulando diversos movimentos sociais – direitos civis, organização comunitária, organização
278
de trabalhadores, igreja, pesquisadores e o movimento ambiental –, para se tornar em elemento
efetivo no enfrentamento ao racismo ambiental (ACSELRAD et al, 2009).
E é neste sentido que trago os riscos socioambientais causados pela mineração em Minas
Gerais – na Serra de Ouro Preto, em Mariana e em Brumadinho – como forma de apontar elementos que contribuam à caracterização das paisagens mineiras como paisagens de riscos e vulnerabilidades, submetidas ao racismo ambiental, em um contexto de luta por justiça ambiental.
A mineração e a formação de paisagens de riscos
A origem do atual município de Ouro Preto, datada do final do século XVII, inicia-se pelo
processo de agregação de diversos arraiais de extração de ouro, localizados ao pé e na Serra de
Ouro Preto, como apontado por Sylvio de Vasconcellos (1956). No entanto, para além da formação
dos arraiais e vilas, a origem e o propósito da ocupação, na região, são as atividades de extração
mineral, no período colonial. A atividade minerária deixou suas marcas, sendo que, na segunda
fase de exploração de ouro, intensificaram-se as ocupações da Serra de Ouro Preto. Segundo o
geólogo Frederico Sobreira (2014), havia três tipos de tecnologia na mineração em Ouro Preto:
1) a exploração dos aluviões auríferos (Figura 7); 2) as galerias subterrâneas (Figura 7); e 3) o
desmonte hidráulico (Figura 8). Os dois últimos foram os principais manejos de extração mineral
e os que mais deixaram marcas na Serra de Ouro Preto (SOBREIRA, 2014).
Como exemplo do impacto ambiental promovido pela mineração, podemos observar a
técnica de mineração denominada desmonte hidráulico, em que a principal ferramenta era a
água (SOBREIRA, 2014). O processo consiste em transpor água através de aquedutos até as partes
mais altas de determinada vertente, gerando uma “lama” que se armazenava em reservatórios
denominados mundéus. Conforme Sobreira (2014), uma vez cheios os mundéus, o material
armazenado era liberado aos poucos sobre manta feita em couro de boi, no sentido inverso dos
pelos e, assim, as partículas mais densas, como o ouro, ficavam presas ao couro e facilmente
identificáveis (Figura 7, 8 e 9).
Como podemos observar na Figura 9, as marcas da mineração do período colonial são
visíveis até a atualidade, e deixaram uma fragilidade ambiental que influencia na dinâmica de
riscos de escorregamentos de terra na Serra de Ouro Preto. Trata-se de região onde habita boa
da população do município desde os meados do século XX e formada por diversos bairros, como
é o caso do bairro do São Cristóvão (Figura 10). Tal fragilidade ambiental, causada pela mineração na Serra de Ouro Preto, associada ao crescente processo de urbanização, coloca não só o
meio ambiente em risco, mas também a população local, devendo ser analisados os desastres
naturais junto às dinâmicas de urbanização (NUNES, 2013).
Recentemente, a atividade de extração de minério de ferro, através dos rompimentos das
barragens de rejeitos, vem causando desastres ambientais e sociais de grandes proporções. Em
2015, o rompimento da barragem do Fundão, em Mariana/MG, despejou mais de 80 milhões
de toneladas de rejeitos de minérios, acarretando a morte de 19 pessoas de imediato e vasta
destruição ambiental ao longo dos quase 600km da Bacia do Rio Doce até desaguar no mar
em Regência, distrito do município de Linhares, no Espírito Santo. Já o rompimento da barragem do Córrego do Feijão, ocorrido em 2019, despejou 12 milhões de toneladas de rejeitos de
minérios causando, além do enorme impacto ambiental, a morte de 270 pessoas, sendo que
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Artigos
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Figura 7: Ilustração da extração aurífera na região do Pico do Itacolomy (Mariana e Ouro Preto, antiga
Villa Rica), com análise de Eduardo Evangelista. Na parte acima e a esquerda, entrada de uma galeria
subterrânea. Já na parta de baixo da imagem, a lavra do ouro de aluvião. Século XIX. Fonte: Ilustração,
Johann Moritz Rugendas (1972, p. 36), com edição de texto por Eduardo Evangelista (2017, p.70).
ainda estão “desaparecidas” 11 pessoas, em sua maioria trabalhadores da Vale ou de empresas
terceirizadas. Nos dois casos as regiões e populações atingidas são as mais fragilizadas, a exemplo dos trabalhadores terceirizados da mineração, pequenos agricultores, ribeirinhos, indígenas,
dentre outros grupos.
No entanto, não é somente com a ocorrências de desastres, como os rompimento de
barragens, que são criadas situações de perigo, riscos e vulnerabilidades sociais e ambientais. As
formas de manejo de extração de minérios usadas, atualmente, não são menos impactantes que
as do período colonial; ao contrário, elevaram ainda mais o patamar de riscos socioambientais. O
principal método de extração de minérios de ferro utilizado em Minas Gerais é o de lavra a céu
aberto, modelo utilizado nos casos de Mariana e Brumadinho, que gera uma grande quantidade
de rejeitos com necessidade de armazenamento em barragens (como as de Fundão e Córrego do
Feijão), denominadas alteamento a montante. Tal método consiste em construir uma barragem
com o uso do próprio rejeito e através de alteamentos sucessivos sobre o rejeito depositado, que
são realizados no sentido contrário ao fluxo de água, ou seja, à montante (Figuras 11 e 12). Tal
modelo foi considerado extremamente danoso ao meio ambiente, a ponto de ser determinado
pela Agência Nacional de Mineração (ANM) o fechamento de todas estas barragens deste tipo
Rodrigo da Cunha Nogueira
Paisagens das Minas
280
Figura 8: Esquema que descreve as estruturas denominadas mundéus, na mineração, na Ouro Preto do
século XVIII. Fonte: elaboração própria, 2021.
Figura 9: Marcas deixadas pela técnica de mineração denominada desmonte hidráulico, no bairro do São
Cristóvão, na Serra e Ouro Preto. Fonte: SOBREIRA et al, 2009.
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Figura 10: A mancha vermelha salienta a evolução urbana no bairro do São Cristóvão (1950-2021). Fonte:
elaboração própria, com base em fotografias aéreas do geólogo Frederico Sobreira (2021).
Figura 11: Esquema de como são construídas as barragens de rejeitos à montante. Fonte: Empresa
mineradora Vale S. A. Material explicativo produzido e publicado pela empresa Vale S.A. Acessado em: http://
www.vale.com/brasil/PT/aboutvale/servicos-para-comunidade/minas-gerais/atualizacoes_brumadinho/
Documents/PT/entenda-as-barragens-da-vale-pt.html
até 2023.12 Apesar de aparentar ser uma medida no sentido da redução dos riscos das atividades da mineração, vimos que as legislações ambientais seguem em sentido contrário, sendo
ainda mais flexibilizadas,13mesmo após os rompimentos das barragens. O que pode significar
um incentivo ao modelo extrativista atualmente utilizado.
Além das formas de manejo que já trazem grandes riscos, as escolhas dos locais de implementação destes empreendimentos e sua organização, denotam um racismo ambiental.
Principalmente se analisarmos a relação das localizações da barragem de Fundão com Bento
Rodrigues (Figura 13) e da barragem do Córrego do Feijão com o Centro Administrativo dos
trabalhadores da própria empresa Vale S.A., áreas diretamente atingidas.
Os conceitos de deslocamento compulsório e de reassentamento involuntário utilizados
em situações de implantação de grandes empreendimentos e em consequência de desastres
socioambientais no Brasil ganharam outra dimensão após os rompimentos das barragens de
12 Resolução nº 13, de 8 de agosto de 2019, que “Estabelece medidas regulatórias objetivando assegurar a
estabilidade de barragens de mineração, notadamente aquelas construídas ou alteadas pelo método denominado ‘a montante’ ou por método declarado como desconhecido e dá outras providências.” Acessado em:
https://www.in.gov.br/web/dou/-/resolucao-n-13-de-8-de-agosto-de-2019-210037027
13 Ver nota 10.
Rodrigo da Cunha Nogueira
Paisagens das Minas
282
Figura 12: Área da barragem de Germano, a maior da mineradora Samarco. Fonte: Jornal A Sirene (2017).
Trata-se de jornal elaborado junto com as comunidades atingidas pelo rompimento da barragem de
Fundão. Acessado em: http://jornalasirene.com.br/moradia/2017/12/20/uma-visita-germano.
Figura 13: Localização da Barragem de Fundão e o subdistrito de Bento Rodrigues. Fonte: Roberto
Torrubia, Revista Piauí (2016). Edição 118 da Revista Piauí (julho de 2016). Acessado em: https://piaui.
folha.uol.com.br/materia/a-onda-de-mariana.
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Artigos
rejeitos de minérios do Fundão e Córrego do Feijão. Além de uma grande crise financeira e de
trabalho no município de Mariana e Brumadinho, em virtude da paralisação das atividades da
empresa após o rompimento, o desastre causou a desterritorialização de comunidades. Importante dizer que essas comunidades não tiveram opção de se posicionarem ou influenciarem os
rumos do empreendimento, quando da implementação da barragem e das outras estruturas
do complexo minerário, ficando à mercê das atividades e interesses das empresas.
A produção mineral no Brasil, desde o início dos anos de 2000 até o rompimento da barragem, em 2015, teve um aumento considerável, induzindo uma ampliação da extração e das
infraestruturas associadas, o que abre para um olhar sobre as taxas e ritmos de extração adequados às possibilidades de controles e à redução dos riscos presentes e futuros decorrentes da
intensificação das operações (SANTOS et. al, 2016). Por exemplo, somente a Vale S.A. tinha sob
sua responsabilidade cerca de 300 estruturas relacionadas à mineração em 2009. Vale lembrar
que, como denunciou a jornalista Cristina Serra (2018), a responsabilidade da empresa Vale S.A.
sobre o rompimento da barragem é para além de sua condição de acionista da Samarco, pois a
empresa também despejava rejeitos de outras minas na barragem de Fundão. Estudos apontam
para a relação do rompimento da barragem de Fundão com a:
[...] dimensão estrutural da expansão das operações de extração, processamento, logística e disposição de resíduos desempenhadas por corporações
mineradoras em todo mundo. Porém, no Brasil, é intensificada pela (in)ação
do Estado e seus operadores no exercício de seu papel regulatório sobre o setor. O Estado Brasileiro tem sido incapaz de definir uma orientação pública e
democrática para a política de acesso aos bens minerais, legitimando padrões
de comportamento corporativo incompatíveis com o respeito aos direitos de
trabalhadores mineiros, comunidades locais e populações afetadas por suas
operações (SANTOS et. al, 2016, p.89).
Cabe ressaltar que, em Minas Gerais, são inúmeras as lavras e barragens de rejeitos oriundas
das atividades de extração mineral, como também são inúmeras as áreas de risco e os conflitos
socioambientais em consequência da implementação, segundo o mapeamento de conflitos
ambientais do Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais da Universidade Federal de Minas
Gerais (GESTA/UFMG)14.
No entanto, apesar dos enormes riscos causados pela mineração, há diversos grupos sociais
que se colocam contra estas formas de desenvolvimento e lutam por justiça ambiental. Destacam-se os próprios atingidos pelos rompimentos das barragens, em Mariana e Brumadinho, que
tiveram que se organizar e lutar pelas reparações e compensações, sendo que até o momento
muito pouco foi feito nesse sentido pelas empresas. Nesse processo, destaca-se também o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), que imediatamente se colocou junto às famílias
diretamente atingidas. E outros grupos ligados às universidades mineiras, a exemplo do Grupo de
Estudos em Temáticas Ambientais (GESTA/UFMG), Grupo de Estudos e Pesquisas Socioambientais
(GEPSA/UFOP) e outros pesquisadores que colocam suas pesquisas e ações de modo a contribuir
com a luta das populações em situações de riscos e vulnerabilidade socioambientais.
14 A pesquisa que mapeia os “Conflitos Ambientais no Estado de Minas Gerais é um projeto realizado desde
2007 pelo Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais da Universidade Federal de Minas Gerais (GESTA/
UFMG) em parceria com o Núcleo de Investigação em Justiça Ambiental da Universidade Federal de São
João del-Rei (NINJA/UFSJ) e o Núcleo Interdisciplinar de Investigação Socioambiental da Universidade Estadual de Montes Claros (NIISA/UNIMONTES)”. Acessado em: https://conflitosambientaismg.lcc.ufmg.br/observatorio-de-conflitos-ambientais/mapa-dos-conflitos-ambientais/ .
Rodrigo da Cunha Nogueira
283
Paisagens das Minas
Considerações finais
O objetivo deste trabalho foi trazer as problemáticas históricas referentes à atividade de
284
extração mineral em Minas Gerais, que tem como consequência intrínseca a produção de uma
paisagem que reflete os diversos riscos socioambientais. Os casos dos rompimentos das barragens
de Fundão (Mariana) e Córrego do Feijão (Brumadinho) são os exemplos mais emblemáticos do
que trazemos como paisagens de riscos que tem como fator principal a dinâmica da Divisão internacional do Trabalho. Mas, infelizmente, esta situação se desdobra em diversas outras regiões do
estado de Minas Gerais, impactando inúmeras outras comunidades similares às atingidas. O que,
paradoxalmente, potencializa os diversos movimentos sociais que lutam tanto por mitigação dos
danos causados, quanto por uma mudança do paradigma desenvolvimentista baseado na mineração. No entanto, a correlação das forças nesta disputa é extremamente desigual. Qual o poder
de resistência das comunidades locais frente às grandes empresas internacionais da mineração?
Minas não tem mar.
Mas fizeram dois mares de lama
nas minas.
Cadê minha casa
que estava aqui?
Cadê meu boi, meu cavalo?
Cadê meu cachorro?
Cadê meu pé de mamão?
Meu carrinho de mão?
Cadê meu pé de limão?
Cadê meus livros?
Cadê meu arroz, o feijão?
Cadê meu colchão?
Cadê meu pai, minha mãe,
meus irmãos?
A lama levou...
A lama levou minha vida,
Meus sonhos,
Meu porto seguro,
Meu chão.
Não foi a lama, não!
Foi o homem que fez a lama,
Que jogou Mariana
e Brumadinho no chão.
Tingiu de marrom as águas
do meu Rio Doce,
Coloriu de terra meu Paraopeba,
Vai tingir meu Velho Chico.
Vai calar a voz dos passarinhos,
Matar os peixes...
Que será de mim?
Quem devolverá tudo
que levaram de mim?
Autor desconhecido.
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 260-287, 2022
Artigos
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Foto: Erivan de Jesus Santos Junior
287
Às margens das
monoculturas:
a diversidade biocultural
das paisagens do
Baixo Sul, Bahia
Marta Raquel da Silva Alves
¡DALE! / FAUFBA
Erivan de Jesus Santos Junior
FAUFBA
Às margens das monoculturas: a diversidade biocultural
das paisagens do Baixo Sul, Bahia
Resumo
O artigo apresenta os caminhos realizados para a construção de um inventário de referências
culturais e paisagísticas no território do Baixo Sul, no estado da Bahia. As dificuldades enfrentadas para realização da pesquisa, diante da pandemia, alçaram a memória e a ancestralidade
como guias na busca, entre as frestas da história oficial, por vestígios da contribuição nas paisagens de povos submetidos ao silenciamento e apagamento de sua existência, suas práticas
e seus conhecimentos. As histórias e as narrativas desveladas nos relatos associadas às análises
das paisagens, nosso corpo de estudo, reconhecem a participação e a cooperação de diferentes agências. O artigo busca apresentar a diversidade de comunidades que habitam o Baixo
Sul, a forma como se relacionam com o ambiente e como construíram, ao longo de anos, suas
sociabilidades, em cujas as águas são importante elemento de comunicação e propulsoras de
vidas. Além disso, um breve resgate histórico das etnias indígenas contribuiu para reafirmar sua
participação na formação do território, presente na ancestralidade das pessoas que o habitam,
na língua, na etimologia de lugares e na continuidade de práticas e conhecimentos visível nas
paisagens. Conjuntamente, a herança cultural dos povos afrodiáporicos e seus conhecimentos
ancestrais de tecnologias agrícolas, com domesticação de espécies vegetais e manejo de águas
e solos, contribuíram para a diversidade biocultural. Nesse universo de cooperação e coexistência que alimenta essas paisagens se juntaram outros agentes, como plantas, macacos e aves,
entre outras existências que produzem histórias e paisagens de sobrevivência às margens de
plantations e monoculturas de pensamento.
Palavras-chave: paisagens, biodiversidade, comunidades tradicionais, diversidade biocultural.
Al margen de los monocultivos: la diversidad biocultural
de los paisajes de Baixo Sul-BA
Resumen
El artículo presenta los caminos tomados para construir un inventario de referencias culturales y paisajísticas en el territorio del Baixo Sul, en el estado brasileño de Bahía. Las dificultades enfrentadas para realizar la investigación ante la pandemia plantearon la memoria y la
ascendencia como guías en la búsqueda, entre grietas de la historia oficial, por vestigios del
aporte en los paisajes de los pueblos, sometidos al silenciamiento y borramiento de su existencia, sus prácticas y sus saberes. Las historias y narrativas develadas en los relatos asociados
al análisis de paisajes, nuestro campo de estudo, reconocen la participación y cooperación de
diferentes agencias. El artículo busca presentar la diversidad de comunidades que habitan el
Baixo Sul, la manera en que se relacionan con el medio ambiente y cómo han construido su
sociabilidad a lo largo de los años, en la cual el agua es un elemento importante de comunicación e impulso de la vida. Además, una breve reseña histórica de las etnias indígenas contribuyó a reafirmar su participación en la formación del territorio, presente en la ascendencia de las
personas que lo habitan, la lengua, la etimología de los lugares y la continuidad de prácticas y
conocimiento visible en los paisajes. Juntos, la herencia cultural de los pueblos afrodiapóricos
y su conocimiento ancestral de las tecnologías agrícolas con la domesticación de especies de
plantas y la gestión del agua y el suelo contribuyeron a la diversidad biocultural. En este universo de cooperación y convivencia que alimenta estos paisajes, se han sumado otros agentes,
como plantas, monos, aves, entre otras existencias, que producen historias y paisajes de supervivencia al margen de plantaciones y monocultivos de pensamiento.
Palabras clave: paisajes, biodiversidad, comunidades tradicionales, diversidad biocultural.
On the margins of monocultures: the biocultural
diversity of the landscapes of Baixo Sul, Bahia
Abstract
The article presents the paths taken to build an inventory of cultural and landscape references
in the Baixo Sul territory, in Bahia, Brazil. The difficulties faced in carrying out the research in
the face of the pandemic raised memory and ancestry as guides in the search, between cracks
in official history, by vestiges of the contribution in the landscapes of peoples, submitted to the
silencing and erasure of their existence, practices and knowledge. The stories and narratives
unveiled in the reports associated with the analysis of landscapes, our body of study, recognize the participation and cooperation of different agencies. The article seeks to present the
diversity of communities that inhabit the Baixo Sul, the way they relate to the environment
and how they have built their sociability over the years, where water is an important element
of communication and propelling life. In addition, a brief historical review of indigenous ethnic
groups contributed to reaffirm their participation in the formation of the territory, present in
the ancestry of the people who inhabit it, in the language, in the etymology of places and in
the continuity of practices and knowledge visible in the landscapes. Together, the cultural heritage of the diaspora of African people and their ancestral knowledge of agricultural technologies with the domestication of plant species, water and soil management, contributed to biocultural diversity. In this universe of cooperation and coexistence, that feeds these landscapes,
other agents such as plants, monkeys, birds, among other existences, that produce stories and
landscapes of survival on the margins of plantations and thought monocultures have joined.
Keywords: landscape, biodiversity, traditional communities, diversity biocultural.
Foto: Erivan de Jesus Santos Junior
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Foto: Erivan de Jesus Santos Junior
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Artigos
Introdução
Em fins do ano de 2019, iniciamos uma pesquisa na região denominada Baixo Sul, segundo a categorização territorial implementada pelo governo da Bahia desde 1995. Nesta época,
o Estado foi dividido em 27 Territórios de Identidade,1 dentre os quais encontra-se o Baixo Sul,
que compreende 15 municípios.2 Nosso trabalho focou as cidades e vilarejos litorâneos e ribeirinhos, sobre os quais vamos discorrer e apresentar ao longo deste artigo. A pesquisa buscava
conhecer a diversidade de agentes e relações que se formavam para o agenciamento das paisagens. Um de nós é um pesquisador habitante do Baixo Sul e estudante de arquitetura, e foi
o responsável pela construção do inventário, trazendo um olhar revestido pela memória, pelas
relações de parentesco e pela ancestralidade. No contexto da pandemia da covid-19, a partir
de 2020, o caminho encontrado para a construção do inventário foi pelo acesso às memórias e
pela reconstituição de rotas ancestrais, que nos levaram a histórias de paisagens entrelaçadas
aos muitos agentes que, ao longo de anos, coabitam esses territórios.
Propomo-nos a relatar a experiência sobre a construção e as descobertas desse inventário
– realizado, em grande parte, no contexto da referida pandemia e com as limitações que esse
momento nos impôs, redirecionando as metodologias inicialmente estabelecidas. Os desejos
de percorrer o território, estabelecer permanências, conhecer cada uma das localidades, das
pessoas e suas histórias, foram interrompidos por esse momento em que o isolamento e o distanciamento social se fizeram imprescindíveis. Diante disso, nos vimos compelidos a abrir novos
caminhos e novas estratégias de abordagem em um campo de pesquisa que seria vislumbrado
por dois pesquisadores a partir de diferentes lentes. De um lado, para um de nós, o Baixo Sul era
um espaço de enraizamento, onde tudo era profundamente natural e conhecido; de outro, para
a outra de nós, era um campo desconhecido, a quem era necessário apresentar e descortinar
para compartilharmos trocas, saberes, experiências e, em muitos momentos, desnaturalizar conceitos, práticas e teorias postas como “chaves universais” para olhar o mundo e suas paisagens.
Para nos acompanhar na imersão pelo Baixo Sul, abordamos a paisagem sob a perspectiva proposta pela antropóloga Anna Tsing (2019): para a autora, a paisagem não é um agente
passivo incapaz de agir ou reagir aos agenciamentos. Tsing (2019) propõe trabalharmos com
paisagens ativas, ou seja,
1 A prática de categorização territorial teria sido iniciada pelo Governo do Estado da Bahia em 1995, a partir
da divisão do estado em microrregiões, entre as quais se inclui o território do Baixo Sul. As divisões territoriais assumem novas nuances estratégicas a partir da utilização de demarcações espaciais, como essas, que
extrapolam os limites político-administrativos de cada município, com vistas a políticas públicas. Nesse sentido, em 2003, o Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA (2010) passa a adotar esse modelo e propõe
a utilização da territorialização por regiões como estratégia de planejamento para o desenvolvimento rural.
Os critérios utilizados para definir estes territórios seriam: características culturais, sociais, econômicas e agrícolas, entre outras, mas principalmente o sentimento de pertença ao local capaz de aglutinar os habitantes
numa mesma identidade territorial (BAIXO SUL, 2018, p. 16).
2 Jaguaripe, Aratuípe, Ituberá, Igrapiúna, Camamu, Taperoá, Cairú, Valença, Ibirapitanga, Gandu, Nilo Peçanha, Piraí do Norte, Wenceslau Guimarães, Teolândia e Presidente Tancredo Neves.
Marta Raquel da Silva Alves e Erivan de Jesus Santos Junior
293
Às margens das monoculturas
Fomos, então, em busca do inesperado que as paisagens, as histórias e as memórias podiam nos oferecer em tempos pandêmicos. Criamos elos, paralelos e confrontamentos entre os
conhecimentos institucionalizados e os saberes e as memórias locais. Os encontros e as descober-
294
tas gerados pelas narrativas orais, pelos animais, pelas plantas, pelos lugares sagrados, os afetos
e os modos de fazer e de manejar paisagens nos ajudaram na reconstituição e na elaboração
de narrativas que foram continuamente soterradas por um modo de pensar hegemônico – que
desperdiça experiências e torna invisíveis autores e práticas (SANTOS, 2007).
As comunidades e os vilarejos quilombolas, as beiradas,3 os indígenas e os ribeirinhos
espalhados nesse território de identidade, em contato com diferentes tipos de fitofisionomias
florestais de mata atlântica, nos mostraram relações intrínsecas entre a ancestralidade desses
grupos e o meio ambiente.
Vamos, portanto, dar visibilidade a essas paisagens e contar um pouco das histórias que
a experiência deste inventário nos possibilitou.
Comunidades do Baixo Sul
O território de identidade do Baixo Sul está localizado ao sul da Baía de Todos os Santos,
faz fronteira com o Recôncavo Baiano, ao norte, e, assim como este, possui uma vasta riqueza
paisagística e cultural. A água é o elemento central de conexão entre as diferentes comunidades
entrecortadas por rios e pela ação das marés. Os grupos habitantes das beiras de rios, estuários,
barras e mares promoveram modos integrados de habitar nos quais as águas não são vistas
como barreiras ou um elemento a ser domesticado, mas como agentes de vida, alimento, trocas
e comunicação. Existe, nessas comunidades, uma ação de conhecimento e negociação com
as águas que moldam modos de plantio, colheita, transporte, celebrações, trabalhos e muitas
outras atividades, expressões e vivências.
Figura 1: Cais do povoado do Galeão em Cairú. Fonte: Santos Júnior (2019).
3 Como são chamadas as comunidades litorâneas pelos comuns do local. Os habitantes dessas comunidades são conhecidos como beradeiros.
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 288-309, 2022
Artigos
O sul da Bahia é tido e descrito sempre como se fosse uma réplica tropical
do paraíso terrestre: clima ameno, sistema fluvial ramificadíssimo e de fácil
navegação, rios e praias abundantes de toda sorte de pescados e tartarugas,
mangues coalhados de moluscos e crustáceos deliciosos, florestas forradas de
madeiras de lei e árvores frutíferas e ervas medicinais de toda espécie, caça
variada e abundante tanto de pena quanto de pelo (MOTT, 2010, p. 231).
Estudando as bacias hidrográficas a atenção recai sobre a terminologia dos nomes dos
municípios, pois refletem a variedade de aquíferos existentes na região. São exemplos Igrapiúna
que significa, em tupi, “pequeno rio de águas escuras”; Cairú (Figura 1), que quer dizer “rio do
cais” também em tupi; Jaguaripe que significa “no rio da onça”; e Ituberá, cidade conhecida
popularmente como Capital das Águas.
A comunicação por barcos é comum entre os vilarejos que se organizam por entre os rios
e às margens do mar. O local onde assenta-se cada comunidade, em relação às águas confere
aos moradores títulos como beiradeiros, ribeirinhos e roceiros.
Os beiradeiros habitam as beiradas das águas salobras ou salgadas, ou seja, as áreas de
mangues, as restingas, os brejos e as lagunas costeiras. Vivem da pesca, mariscagem, artesanato
ou atividades a serviço do turismo, cada vez mais recorrentes na região. Nas águas salobras onde
se localizam os mangues, a abundância de formas de vida pode ser conferida pela toponímia
de lugares como o rio Sirinhaém: nome de origem tupi,4 que significa prato de siris, receptáculo
dos siris, a cova ou zona em que se reúnem, como em viveiro, os siris.
Os mangues são elementos expressivos nas cidades costeiras do Baixo Sul, bordeiam
as beiradas dos rios Igrapiúna, Santarém, Orojo e da Serra. Os rios que desaguam na baía de
Camamu conformam um rico estuarino-costeiro que alimenta através da pesca e da coleta de
crustáceos as populações tradicionais locais. (ICMBIO, 2018).
Na mesma medida em que as águas, para comunidades de beiradenses e ribeirinhos,
nutrem uma cadeia de relações que envolve atividades como o beber, o plantar e o cuidar,
entre outras, temos uma gama de ações e vivências que a água alimenta e dá vida. As águas
também possibilitam a comunicação entre todos esses assentamentos humanos. Os portos e
atracadouros maiores estão localizados nos centros urbanos e administrativos dos municípios.
Parte desses centros surgiram a partir de vilas coloniais originadas nos aldeamentos jesuítas
de povos indígenas como os tupinambás, os tupiniquins, os aimorés, os guerém e os paiaiás
(SKINNER, 2017; MOTT, 2010).
O antropólogo Luiz Mott, em seu livro Bahia: inquisição e sociedade (2010), traz informações sobre os aldeamentos indígenas da região litorânea do Baixo Sul que, durante séculos, no
período colonial, fizeram parte da Comarca de Ilhéus. Mott (2010) fez um compilado de relatos
de viajantes e naturalistas sobre os índios “acaboclados”, residentes em vilas e aldeamentos
remanescentes da Comarca de Ilhéus (MOTT, 2010). Os relatos dão visibilidade ao processo de
apagamento dos vestígios de sua existência e permanência nesse território, além das ações de
genocídio a que foram submetidos e de desculturamento promovido por séculos.
4 Descrição segundo o dicionário de Jorge Marcgrave, naturalista alemão, autor da obra História Natural do Brasil, publicada em 1942. A descrição sobre o significado de Sirinhaém consta no glossário de Comentários ao Livro VIII de Plínio Ayorsa (1942), disponível em http://etnolinguistica.wdfiles.com/local--files/
biblio%3Aayrosa-1942-comentarios/Ayrosa_GlossarioMargrave_ed1942_OCR.pdf.
Marta Raquel da Silva Alves e Erivan de Jesus Santos Junior
295
Às margens das monoculturas
Os aldeamentos aglutinavam indígenas de etnias distintas. Dentre os aldeamentos identificados
por Mott (2010), o aldeamento de São Fidelis do Uma,5 localizado na beira do Rio Uma, foi empreendido pelos missionários capuchinhos e era habitado pelos índios das etnias Aimoré e Tupinambá. A
296
aldeia de Santarém, onde foi erigida a igreja matriz de Santo André, atualmente faz parte da cidade
de Ituberá. Nesse aldeamento, os índios tinham etnias diferentes, “porque uns são Payayá, outros
Tupi, ou Tabajara, que é o mesmo”. (CALDAS apud MOTT, 2010, p. 215). Por fim, dos aldeamentos
relatados por Mott (2010) há o aldeamento da Vila de Nossa Senhora das Candeias de Barcelos, onde
hoje se localiza o distrito de Barcelos do Sul, que faz parte do município de Camamu. No aldeamento
jesuíta, estavam os índios das etnias tupiniquim, tupi e guerém (MOTT, 2010).
Nos relatos reunidos por Mott (2010) é possível pinçar descrições sobre a desenvoltura e o conhecimento que os indígenas possuíam sobre as águas, a navegação e a fabricação de embarcações.
Mesmo entendendo que cada etnia possuía particularidades, é difícil trazer dados específicos, dada
a escassez de informações. Porém é possível perceber que a relação com as florestas e as águas era
uma constante. Os índios são descritos como exímios nadadores, bons remadores e “insignes fabricadores de grandes embarcações de um só pau, que no Brasil chamam de canoas, muito próprias
para a navegação do interior dos rios.” (MONIZ BARRETO, 1794, p. 10 apud MOTT, 2010, p. 235).
Há ainda um relato sobre os indígenas que habitavam as margens do Rio Uma, destacados como
“peritos navegadores do caudaloso rio Mapendipe, pelo qual descem com incrível facilidade sobre
monstruosos paus até a boca ou foz da divisão deste rio e do de Una” (MONIZ BARRETO, 1794, p.
10, apud MOTT, 2010, p. 235).
Acreditamos ser importante trazer essa memória relatada de práticas e de conhecimentos
vinculados ao habitar com as águas, porque, apesar da história oficial narrar o desaparecimento indígena nessa região atestado pela ausência de reservas indígenas, Mott (2010) mostra, pelos relatos,
que os indígenas foram sendo desculturados de suas práticas, absorvendo modos do colonizador,
como os trajes, as línguas, os nomes e as práticas agrícolas.
Não obstante esse apagamento, ainda podem ser detectados práticas e saberes ancestrais
transmitidos por séculos entre as comunidades que habitam o Baixo Sul. A distância e dificuldade
de acesso de roceiros e beiradeiros aos centros urbanos promoveu, nos dois primeiros grupos, características culturais que os tornaram singulares em seus modos cotidianos. Embora “beiradeiros” ou
“roceiros” designem, de forma generalizada, um modo específico de povoar, é importante destacar
que cada povoamento possui formas particulares de lidar com o meio onde vivem. Há especialistas
em produção de azeite de dendê, como os beiradeiros do Pau D’óleo em Igrapiúna; artesãos de barco, caso dos beiradeiros arquitetos do mar de Cajaíba do Sul em Camamu; e as artesãs da piaçava,
quilombolas do povoado de Jatimane em Nilo Peçanha; entre outros em torno de lagoas, cachoeiras
e pedras sagradas.
Todas as comunidades rurais, ribeirinhas, litorâneas e urbanas se encontram frequentemente nos portos das cidades e nas feiras livres. Numa vida tão conectada às águas, os atracadouros
geralmente funcionam como polos de comunicação entre os centros urbanos e as comunidades
tradicionais. As feiras livres são também pontos de encontro comum entre os distintos povoamentos
existentes na região. É onde pescadores, agricultores, artesãos e produtores de farinha e azeite se encontram (Figura 2). É onde, também, as trocas acontecem, os mitos se espalham, os velhos tempos são
recordados e novos laços são firmados. Elas são verdadeiras instituições de conhecimento e amizade
(Figura 2). E os produtos que saem das roças e das beiradas são frutos de histórias de pessoas que
conhecem trilhas, florestas, caminhos, rios, lendas e outras pessoas dentro deste território.
5 No local onde havia o aldeamento originou-se a cidade de Valença, integrante do Baixo Sul.
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Figura 2: Produtores roceiros e beiradeiros na feira livre de Ituberá. Fonte: Santos Junior, 2019.
Enquanto nas comunidades rurais as casas de farinha, as hortas familiares, os artesanatos, a criação de animais e os fogões à lenha fazem parte do cotidiano paisagístico, nos centros
urbanos as lonas ou telas extensas complementam a paisagem (Figura 3), onde, em dias de sol,
seca-se o cacau, cravo e guaraná, produção que passou a movimentar a economia da região
a partir da década de 1950. As lonas de secagem ocorrem com mais frequência em Taperoá,
Ituberá e Igrapiúna, aderindo à atmosfera dessas cidades cheiros bem característicos, produto
desses hábitos que estão relacionados à economia local. Também relacionados à economia
local, o cheiro de látex e de dendê, não tão agradáveis, advindo das indústrias de borracha e
óleo, respectivamente, também se somam à atmosfera, motivo de insatisfação entre moradores.
Memória e ancestralidade
Seguindo os caminhos da escrevivência, proposta por Conceição Evaristo (2010), trouxemos o cotidiano, as memórias, as relações de parentesco e as experiências de vida de nosso
pesquisador e habitante do Baixo Sul como recurso para desvelar as histórias coletivas.
O ato de desvendar as múltiplas relações existentes nestas paisagens, não seria possível
nesse momento pandêmico sem as memórias. Revisitá-las e relacioná-las com outros dados
disponíveis, eleva o som de práticas e compensam o silenciamento pelo qual as histórias dos
povos submetidos a condições de apagamento de experiências e conhecimentos passaram. A
memória revelou a origem das marcas que moldam as comunidades estudadas e proporcionou
material para este inventário cultural. Contudo, o olhar naturalizado sobre o local pode fazer o
pesquisador nativo perder detalhes que são chaves para a inventariação das práticas existentes
e, por isso, uma segunda visão, desnaturalizada, pode apreender aquilo que de repente escapa
aos olhos do outro.
Marta Raquel da Silva Alves e Erivan de Jesus Santos Junior
Às margens das monoculturas
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Figura 3: Cravo secando na cidade de Ituberá em frente ao Aeroporto. Fonte: Santos Junior (2019).
Erivan Junior, um de nós que assina o artigo, passou 21 anos morando nas proximidades
de rios e marés, vivendo entre as cidades de Camamu e Valença e nas vilas de operários da
Plantações Michelin da Bahia (PMB), empresa agroindustrial de produção de látex. Essa vivência
proporcionou experienciar diversas práticas realizadas pelos parentes inseridos em diferentes
condições sociais, ambientais e de trabalho. Imerso em meio aos dizeres que ouvia das pessoas
adultas, em conversas nas feiras livres e catadores de piaçava, cresceu nas proximidades do rio
que, devido à topografia acidentada, forma a cachoeira da Pancada Grande, sagrada e balneável,
onde são realizadas oferendas, limpezas e batizados espirituais.
Dos tempos que morou nas vilas6 da Michelin, mantém da vila de operários 03 a lembrança dos pesticidas e de outros produtos tóxicos sendo vaporizados por veículos pesados ou
por pessoas, manualmente, sobre e entre as plantações de seringueiras. Recorda, ainda, das
recomendações da mãe para ficar afastado daquelas partes cheias de veneno, como se ela não
fosse ficar dias depois inserida nesses ambientes para fazer enxertos de mudas. Além disso, os
rios, em épocas de chuva, eram outra preocupação, pois era sabido que o volume das cachoeiras aumentava e que, quando a chuva escorria, carreavam terra e tudo o mais que conseguiam
arrastar até os vales onde correm afluentes, como o rio Mariana.
6 A empresa Michelin se instalou no Baixo Sul em 1983, após comprar as terras da CBB. No empreendimento, assim como das empresas agroindustriais anteriores, como Firestone, constam vilas de moradores
(LIMA, 2011; LIMA, 2020). No entanto, em 2007, para a implantação do Projeto Ouro Verde da Bahia (POVB),
a empresa vendeu 8 das 11 vilas de moradores, numa ação que prejudicou trabalhadores com perda de direitos trabalhistas e outros subsídios: “a Michelin dividiu 5.000 mil hectares da fazenda PMB em 12 médias
propriedades (MPs) de 400 hectares e vendeu para 12 produtores independentes escolhidos entre técnicos
e administradores da própria empresa, em uma transação com financiamentos de oito anos, intermediados
pela empresa e subsidiados pelo Banco do Nordeste e do Brasil, com prazo de oito anos para o pagamento.
Esses produtores em contrapartida ficaram comprometidos em seguir o roteiro técnico determinado pela
empresa, dentre as quais a contratar todos os trabalhadores que seria demitidos pela PMB, no ato da transição das 12 MPs” (LIMA, 2011, p. 96).
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Figura 4: Representação mnêmica das paisagens do Baixo Sul. Fonte: elaboração Santos Junior (2020).
A Michelin e a Agro Industrial são as principais empresas que se beneficiam da produção
do látex na região. Embora possuam propriedades, onde produzem parte do látex processado em
suas fábricas, elas também compram de terceiros, aumentando ainda mais a produção (LIMA,
2011). A fábrica da Michelin, que faz o processamento desse material, está localizada em frente
a vila de operários 04 e ao lado do rio Mariana. Chegando a operar 24h por dia, essas indústrias
são responsáveis pela economia e por maior geração de empregos; e, também, pelos cheiros
desconfortáveis de látex que assolam as comunidades dos municípios de Ituberá e Igrapiúna.
A vivência que naturalizava todas essas cenas cotidianas encontrou o desafio de ser confrontada a partir do olhar de dois pesquisadores portadores de lentes distintas sobre o território:
o nativo e o não nativo. Para tornar a caminhada possível, os olhares precisaram de sincronia e
escuta, assim, um apresenta o que geralmente vê enquanto o outro trás lentes distintas para
proporcionar leituras conjuntas.
Sendo a memória o fio condutor, uma série de trabalhos visuais foram montados para
facilitar esse processo de exposição das lembranças. Imagens fotográficas com destaque de
cores nas paisagens, realçavam diversos tipos de cultivos e proporcionaram novos olhares e
descobertas; cartografias situavam as comunidades que não constam em mapas oficiais e nos
possibilitaram ler a estratégia por trás da escolha dos locais onde se assentaram; desenhos dos
hábitos que não haviam sido registrados anteriormente em fotografias (Figura 4), mas fortuitamente presentes na mente, puderam expor um pouco de algumas manifestações culturais, tal
como a Zabelinha do quilombo Laranjeiras, e as paisagens do quilombo Jatimane repletas de
piaçaveiras. As montagens ajudaram a expor a pluralidade cultural existente na região.
Nesse processo, percebemos que o número de comunidades quilombolas na região é
superior ao registrado pela Fundação Cultural Palmares. Diante disso, passamos a buscar informações sobre as comunidades tradicionais do Baixo Sul, sobretudo dos municípios litorâneos.
Marta Raquel da Silva Alves e Erivan de Jesus Santos Junior
Às margens das monoculturas
Este dado nos direcionou a pensar a região do Baixo Sul como um enorme território afro-indígena. Ao mapear as práticas, etimologias e espécies vegetais presentes em cada localidade
e as possibilidades de conexão, tanto por via terrestre quanto por vias fluviais, percebemos um
300
fluxo histórico e contínuo de comunicação pelas águas e relações de parentesco entre os habitantes de algumas comunidades distintas. O acesso às memórias familiares reforçou nossas
suposições e nos direcionou à busca por reconstituição da ancestralidade afro-indígena deste
território, sendo a paisagem o vestígio das trocas, das interações e dos agenciamentos em diferentes tempos históricos.
Nos relatos de Dona Magnólia, avó de nosso pesquisador, ela nos conta que aprendeu a
sua função de catadora de piaçava observando o trabalho das pessoas adultas, que também
eram marisqueiras e/ou agricultoras em pequenas vilas e fazendas. Sua família tradicionalmente
ocupava o povoado do Macocoá, uma pequena vila de agricultores e marisqueiros próximo do
quilombo Jatimane. Nas lembranças de Dona Magnólia sua avó vivia nas matas deste povoado
e era uma pessoa “arisca”, mas que conhecia profundamente a mata. Assim como a avó, outros
familiares aprenderam os caminhos labirínticos de manguezais que conectam o centro de Ituberá com o povoado de Macacoá, observando o caminho feito pelos mais velhos.
Das informações trazidas por Dona Magnólia, entendemos um pouco dos fluxos e deslocamentos, maioritariamente pelas águas, em canoas, ou por terra, com o auxílio de animais
para transportar o que fosse preciso para as cidades ou delas para o povoado. Surgem, então,
lembranças dos burros armados de panacum levando, para as estradas ou para as proximidades
das marés, bananas, cacau, farinha e aipim, entre outros produtos, após caminhadas dentro das
densas florestas de mata atlântica, destinados ao centro para comércio.
As lembranças reafirmavam histórias que as paisagens, a partir dos mapeamentos e da
revisão da literatura começavam a nos contar, os modos ancestrais, as formas de manejo, os
deslocamentos, os assentamentos humanos e as espécies vegetais estavam relacionados e
pareciam ter uma anterioridade superior a décadas atrás. Aos poucos, o olhar naturalizado foi
redescobrindo o próprio território e percebendo as entrelinhas dos espaços vividos.
Os processos de aquilombamentos (NASCIMENTO, 1980) são percebidos ao longo de todo
o território. Quilombos que, devido às condições geográficas da região, conseguiram manter-se
quase isolados. No Baixo Sul ainda encontramos povoamentos, estrategicamente afastados
das centralidades, atracadouros e cais, onde continuam pouco conhecidos pelos moradores
dos municípios onde se encontram. Se é difícil para essas populações se deslocarem ao centro
urbano, devido à baixa disposição de veículos em bom estado, o movimento contrário é ainda
mais complicado.
Nas vilas da Michelin, assim como nessas comunidades, quando os moradores não possuem veículos, dependem da disponibilidade dos transportes coletivos que passam poucas
vezes ao dia. Esse isolamento local resultou em práticas de resiliência, onde as comunidades e
vilas aperfeiçoaram os hábitos para a melhorar a subsistência e a autonomia, necessárias em
decorrência da dificuldade de acesso às centralidades urbanas.
Histórias de paisagens ativas
Nas histórias das paisagens do Baixo Sul temos uma diversidade de personagens como
indígenas, povos afrodiásporicos, europeus, juparás (Potos flavus), urubus (Coragyps atratus
brasiliensis), dendês (Elaeis guineensis), mandiocas (Manihot esculenta), marés, sejam elas
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cheias e vazantes, ventos e mais uma infinidade de outros personagens que produziram relações multiespécies, de modo consciente, ou não, para chegarmos às paisagens que temos hoje.
Os vestígios da interação entre as diferentes agências entre si e com o espaço estão presentes nessas paisagens. O geógrafo Rogério Oliveira (2007) utiliza o conceito de paleoterritórios
para se referir a sucessão de vestígios das atividades humanas empreendidas nos territórios em
diferentes momentos históricos e que se mesclam aos processos bióticos e abióticos produzindo
novas ambiências.
O paleoterritório constitui, portanto, a etapa antrópica dos processos bióticos
e abióticos que condicionam o processo da regeneração das florestas, onde a
cultura das populações tradicionais desempenha papel determinante. [...] Com
o passar do tempo, estes paleoterritórios se sobrepõem, formando uma realidade única, prenhe de efeitos sinergéticos (OLIVEIRA, 2007, p. 13).
A sinergia é um ponto importante para pensarmos todas as contribuições que os encontros produziram nas transformações das paisagens e promoveram a vida. Tsing (2019) aponta
a colaboração entre espécies como fundamental para fazer a terra habitável. “Somos seres dentro de teias ecológicas e não fora delas. Paisagens multiespécies são necessárias para sermos
humanos” (TSING, 2019, p. 94)
As paisagens são assembleias trabalhando em coordenações dentro de uma
dinâmica histórica. Mas acabo de apresentar mais dois termos-chave para o
projeto de pensar habitabilidade como simbiose: coordenação e história. Por
história, refiro-me aos rastros e sinais de humanos e não humanos, a como
estes criam paisagens. Uma das formas de se observar o que antropólogos
e biólogos podem fazer juntos é assistir paisagens se criando por meio de
rastros e sinais humanos e não humanos. Coordenação é uma lente para
observar organismos interagirem uns com os outros. Simbiose – assim como
competição, predação e outras relações interespecíficas – requer coordenação.
Prestar atenção às temporalidades das paisagens permite-nos observar sua
dinâmica intersticial (TSING, 2019, p. 94, grifo nosso).
Os modos de ocupar e transformar o território, ao longo do tempo, não só pelas comunidades tradicionais como também por processos geológicos e biológicos, são fundamentais para
entender e desvelar, através das paisagens, a história, no Baixo Sul, de apagamentos, silenciamentos e epistemicídios (SANTOS, 2007).
Segundo os relatos históricos, durante o período colonial a região do Baixo Sul se consagrou
como área de produção de farinha de mandioca com uso do trabalho de pessoas escravizadas
(SILVA, 2013; MOTT, 2010; GUIMARÃES, 2019; WATKINS, 2020). A produção tinha como foco o
abastecimento interno do país, na medida em que era um território de solos com baixa fertilidade,
não aptos à produção das culturas para exportação no período colonial.
Para além de uma produção que tinha objetivos comerciais internos, ainda que sem a
mesma expressão dos produtos destinados à exportação, havia ainda uma produção voltada à
subsistência de trabalhadores escravizados, forma de trabalho predominante na região. Segundo Watkins (2020) a produção excedente daqueles bens que serviam à subsistência, em um
primeiro momento, possibilitou aos trabalhadores acessar ao mercado de alimentos vendidos
nas feiras locais, que ainda hoje, como já relatamos, perduram como espaços fundamentais de
troca e sociabilidades.
Marta Raquel da Silva Alves e Erivan de Jesus Santos Junior
301
Às margens das monoculturas
Nessa produção para a subsistência, os povos afodiaspóricos imprimiram importante contribuição nas paisagens das Américas, segundo a geógrafa Judith Carney (2004). Na medida em
que havia a dispersão de espécies vegetais africanas, possibilitada pelos movimentos transatlân-
302
ticos dos navios negreiros, os povos afrodiásporicos cultivavam as espécies africanas que aqui
aportavam. Segundo Carney (2004), houve um esforço dos povos escravizados em cultivar, seja
nas áreas destinadas ao plantio de alimentos para sobrevivência dos escravizados nas fazendas
coloniais, nas hortas caseiras, ou mesmo nas plantações empreendidas nos quilombos, as espécies
que chegavam através dos navios negreiros e que eram portadoras da herança cultural africana
capaz de assegurar “subsistência, sobrevivência, rituais, resistência e memória nos ambientes
tropicais e subtropicais de seus confinamentos” (CARNEY, 2004, p. 29).
Enquanto os donos das fazendas coloniais não detectavam potencial comercial nas plantas
domésticas cultivadas pelos escravizados, essas plantas seguiam cultivadas e produziam o que Carney (2004) chamou de “universo paralelo de troca de produtos agrícolas”(CARNEY, 2004, p. 43-44),
possibilitado pelo “direito ao cultivo de pequenas plantações domésticas, à troca de plantas com
outros escravos e, possivelmente, aos contatos mantidos com marinheiros africanos e cozinheiros
a bordo de navios negreiros incumbidos do transporte de sementes.”(CARNEY, 2004, p. 43-44).
De acordo com Carney (2004), a domesticação de plantas e a adaptação de gêneros
asiáticos ao sistema alimentar africano era uma herança cultural dos povos afrodiaspóricos, na
qual “mesmo antes do tráfico de escravos pelo Atlântico, já tinham desenvolvido três centros
originais de domesticação de plantas.” (CARNEY, 2004, p. 43) Sendo os povos africanos chegados ao Brasil detentores dessa herança cultural agrícola encontraram nos trópicos americanos
condições de aplicar sabedorias no cuidado com a terra e técnicas de manejo que puderam
garantir a sobrevivência frente a condições desumanas de exploração.
A produção de gêneros para a subsistência e de excedentes que pudessem ser comercializados nas feiras foi uma realidade na região do Baixo Sul, ao ponto de promover a formação de um
campesinato adaptado à produção agrícola em pequenos lotes de terra. Seguindo os caminhos
trilhados pelos primeiros povos africanos que aqui chegaram e que, a partir do acesso à herança
de tecnologias agrícolas ancestrais de domesticação e manejo dos solos e das águas, criaram
condições de sobrevivência física, cultural e espiritual, a continuidade dessas práticas aliada aos
conhecimentos de povos originários produziu modelos agrícolas adaptados a condições postas:
criar ambientes extremamente biodiversos em pequenas porções de terra.
Como exemplo da dimensão dessas propriedades, Silva (2013), em pesquisa realizada na
comunidade quilombola de Lagoa Santa, no município de Ituberá, informa que 83% das propriedades locais têm dimensões que variam de 1 a 19,5 hectares. Essas propriedades, de certo modo,
funcionam como registros de uma organização fundiária que se estabeleceu durante o período
colonial e persiste enquanto forma de ocupação, produção agrícola e relações de parentesco.
Diante de propriedades tão pequenas desenvolveu-se o modelo agrícola de “plantar misturado” ou “roça de quase tudo”, termos usados por Guimarães (2019) em seu estudo sobre o
quilombo de Empata Viagem, localizado no município de Camamu, também pertencente ao
território de identidade Baixo Sul. O modelo agrícola presente em muitas das pequenas propriedades comuns no Baixo Sul é “um artifício importante que garante a manutenção da produtividade da terra, o enriquecimento da fauna e da flora, ganhos nas condições de habitabilidade do
ambiente, bem como uma adaptação às condições ecológicas locais.” (GUIMARÃES, 2019, p. 197).
Nos pequenos terrenos e roças dos moradores e pequenos produtores há diversidade
de espécies cultivadas, replicadas e distribuídas. Nos levantamentos realizados em Igrapiúna,
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303
Figura 5: Quintal biodiverso de D. Zinha na cidade de Igrapiúna Fonte: Santos Junior (2020).
encontramos casos em que um único quintal, por exemplo, conta com mais de 51 espécies
diferentes, sendo 32 alimentares e as demais plantas medicinais, sagradas e ornamentais. O
quintal da moradora Zinha, em Igrapiúna (Figura 5), é formado por pequenas culturas que surgem utilizando-se dos meses, Das luas e do tempo, para que as plantas vinguem com saúde.
A participação humana de comunidades historicamente marginalizadas no agenciamento
de paisagens envolveu uma dinâmica de relações multiespécies (TSING, 2015) onde o manejo e
associação de uma variedade de espécies, nativas e não nativas, criou paisagens de biodiversidade
impressas na memória da terra, em contraposição às paisagens de monoculturas empreendidas
pelos sistemas hegemônicos historicamente detentores das maiores parcelas de terras.
Seja no plantio de mandioca que seguiu a imposição do colonizador ou na cultura do
cacau que passou a ser implantada a partir das décadas de 1960-1970 na região, o modelo de
plantio consorciado, seguindo sistemas agroflorestais com diferentes estratos esteve presente
na conformação das paisagens e recebeu contribuições de tecnologias agrícolas ancestrais dos
povos afrodiásporicos e originários (WATKINS, 2020; GUIMARÃES, 2019). “A agricultura tradicional de mandioca na Bahia é análoga ao cultivo de inhame na África Ocidental. Os primeiros
visitantes portugueses do Brasil, familiarizados apenas com o alimento africano, confundiram a
mandioca com o inhame.” (WATKINS, 2020, p. 173). Para Watkins (2020) enquanto os europeus
exigiam o cultivo de mandioca, povos africanos eram detentores de uma herança ancestral no
cultivo de tubérculos, mais especificamente o inhame (Dioscorea spp.), e os indígenas, por sua
vez, dominavam as técnicas de cultivo e processamento da mandioca para elaboração de farinha.
Nesse encontro entre africanos e indígenas, outros dois personagens precisam ser acionados
na história de agenciamento dessas paisagens: o dendê e o urubu. Incorporadas ao sul da Bahia, as
palmeiras de dendê (Elaeis guineenses), de origem africana, desempenharam papel importante
para a sobrevivência e a alimentação dos povos africanos e seus descendentes. As palmeiras de
dendê ofereciam “sabonetes, xampus, unguentos e vinhos, além de colmo para telhados e ilumi-
Marta Raquel da Silva Alves e Erivan de Jesus Santos Junior
Às margens das monoculturas
304
Figura 6: Comunidade do Pau D’óleo às margens do rio Igrapiúna com suas palmeiras de dendê, barcos e
pequenas habitações. Fonte: Santos Junior (2020).
nação em candeeiros alimentados por óleo” (WATKINS, 2020, p. 166). Foram, portanto, incorporadas à paisagem e à cultura, demarcando a presença e a contribuição africana nos processos de
domesticação de espécies vegetais e de agenciamento paisagístico, enquanto o azeite de dendê
é marca importante da herança alimentar promovida pelos povos africanos no Brasil.
Além dos humanos, os urubus (Coragyps atratus brasiliensis) também contribuíram para
a presença e dispersão da palmeira africana na costa brasileira. Através da propagação das
sementes, os urubus “operavam em uma paisagem humanizada que promoveu aumentos na
população de aves, que por sua vez teriam ampliado os candidatos a vetores das sementes,
acelerando a expansão do dendezeiro” (WATKINS, 2020, p. 171).
As palmeiras de dendê encontraram condições propícias próximas aos manguezais do
Baixo Sul, espaço de águas salobras e solo salino. Não ficaram restritas às margens d’água, e
adentraram pelos campos de restinga, onde encontraram disponibilidade de sol e uma complexa e rica rede hídrica que corta as baixadas do Baixo Sul. Além disso, como os dendezeiros
conseguem conviver bem com outras plantas, foi possível serem associados com outras espécies,
como em África onde “os dendezeiros africanos se dispersaram [...], compartilhando espaço com
vários cultivares, incluindo banana, taro, arroz e variedades de feijão” (WATKINS, 2020, p. 157).
Na comunidade de Pau D’óleo (nome em referência a árvore de copaíba) todos os moradores possuem dendezeiros em seus quintais (Figura 6). O beneficiamento do dendê segue uma
rede comunitária onde alguns cortam e colhem o dendê e outros produzem o azeite no rodão
(engenho manual de produção deste produto). Todos se comunicam na produção do azeite, que
é vendido ou compartilhado internamente, e comercializado para fora também. O povoado engloba as fazendas de Pai André, Ponta e Ancurau que possuem pouco mais de 10 famílias cada. .
A baixa fertilidade do solo no Baixo Sul ajudou a manter a região isolada das variações e
fluxos econômicos durante os primeiros séculos da colonização, contudo, a entrada do cultivo
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 288-309, 2022
Artigos
305
Figura 7: Cacau-cabruca às margens do rio Igrapiuna em Igrapiúna. Fonte: Santos Junior (2020)
do cacau, a partir dos anos 1960-1970, contou com estímulos técnicos de órgãos federais para
incremento da produção da monocultura do cacau (Guimarães, 2019, p. 199). Apesar dos estímulos à monocultura, este não foi o único modelo praticado no Baixo Sul. Poderíamos supor que
a adoção de outras práticas de plantio, diferente da estimulada pelos órgãos governamentais e
instituições que atuam na área, tem relação com a histórica organização fundiária de pequenos
lotes, que marcam historicamente o Baixo Sul. Sendo uma região ocupada majoritariamente
por descendentes de africanos e indígenas, estes precisaram criar, nessas pequenas porções de
terra em que habitavam, condições para abastecer as necessidades alimentares das famílias e
gerar excedentes para venda e, consequentemente, gerar renda. Nesse sentido, o modelo chamado cacau-cabruca se adequou bem às pequenas propriedades rurais onde o cacau podia ser
produzido junto com todas as outras espécies já plantadas misturadas.
O ato de brocar as matas para o plantio do cacau por anos a fio, associado a
fatores culturais, gerou um modelo de produção agrícola (cacau-cabruca) refinado, muito avançado para a época. Sua prática evoluiu a ponto de se tornar
um sistema agrossilvicultural de produção que apresenta vantagens agroambientais sustentáveis quando comparado a outros sistemas agrícolas de produção (LOBÃO, 2007, p. 7).
O modelo de cacau cabruca é mais uma camada incorporada à paisagem do Baixo Sul,
podendo ser percebido nas matas de municípios como Igrapiúna, por exemplo, e até mesmo nos
centros urbanos (Figura 7). Entre as benefícios desse modelo estão: a permanência de florestas
densas de árvores altas, a continuidade de práticas biodiversas, a economia para subsistência, o
microclima viabilizado e a conservação da serrapilheira (pilha de matéria orgânica consequente da
queda dos galhos, folhas e frutos no solo da floresta, garantindo um solo sempre rico em nutrientes)
e do banco de plântulas (sementes adormecidas por entre a serrapilheira aguardando a queda de
alguma árvore ou qualquer outra possibilidade de clarão solar para germinarem em novas árvores).
Marta Raquel da Silva Alves e Erivan de Jesus Santos Junior
Às margens das monoculturas
Assim como o dendê contou com a reconhecida participação do urubu (Coragyps atratus
brasiliensis) para sua consolidação nas paisagens do Baixo Sul, o cacau teve a participação ativa
do macaco jupará (Potos flavus) importante dispersor de sementes de cacau (Guimarães, 2019).
306
O Jupará contribuiu no agenciamento de paisagens, atuando em conjunto e cooperação com
outras espécies, como “também os animais que “furtam” as roças, comem os frutos e disseminam
as sementes longe dos limites das propriedades” (Guimarães, 2019, p. 203).
Durante cinco séculos desde a entrada dos colonizadores europeus, esse território, aqui denominado de Baixo Sul, acolheu a chegada de novos agentes que, através das interações estabelecidas entre si, com o meio e com todos aqueles que já habitavam essas paragens, deixaram
marcas de suas ações biológicas e culturais. A mobilização de sabedorias ancestrais para sobreviver, resistir ou mesmo se adaptar às condições biofísicas, sociais, culturais e econômicas que
se impunham, especialmente para aquelas comunidades em que o modelo plantations não era
uma opção, está expressa nas paisagens ativas do Baixo Sul.
Modelos hegemônicos e o apagamento de práticas
Em contraste com os fragmentos de mata atlântica e suas florestas ombrófilas, manguezais, brejos e restingas, as matas de cacau cabruca e os quintais e pequenas propriedades das
“roças de quase tudo” estão as extensas terras de cultivo da monocultura de seringueiras (Hevea
brasiliensis). Atualmente, a extração do latex movimenta a economia da região e desvela novos
agentes na história dessas paisagens. A introdução de seringueiras teve início na década de
1950, juntamente com a entrada da empresa Odebrecht. A empresa introduziu as seringueiras
na fazenda Três Pancadas, porém o empreendido após poucos anos foi para a empresa estadunidense fabricante de pneus Firestone que se instalou na região e consolidou a monocultura da
seringueira7 numa área de dez mil hectares. (SILVA, 2013; LIMA, 2011; LIMA, 2020) O modelo
de produção foi posteriormente replicado em larga escala por fazendeiros locais:
O Governo [brasileiro] permitia e respaldava a Firestone nesse projeto, dando
autonomia para desmatar, contratar mão-de-obra, construir vilas de moradores com equipamentos urbanos e promover, a seu modo, as ações sociais.
Na década de 1970 o próprio Governo procurou ampliar o processo, estendendo os financiamentos para os pequenos agricultores desmatarem e plantarem
entre duas e cinco hectares de seringueiras na região do Baixo Sul da Bahia.
Apesar de todo esforço, em 1982 a Firestone desistiu do projeto e vendeu a
fazenda para CBB, que por sua vez vendeu para a Michelin em 1983 (LIMA,
2011, p. 65, grifo nosso).
As técnicas de plantio e de manejo das paisagens promovidas pelas comunidades tradicionais que garantiam a continuidade de um ambiente diverso social, cultural e ecologicamente
têm sido desestimuladas para favorecer ao modelo de plantio da monocultura, ou mais recentemente SAF’s que priorizam a produção de seringueiras. Há, assim, a substituição do conhecimento
7 Segundo Lima (2020), a chegada da empresa de extração de borracha está relacionada à atuação de Norberto Odebrecht, empresário responsável pela fundação da empresa brasileira que leva seu sobrenome. Na
década de 1950, Norberto iniciou a exploração dos recursos naturais do Baixo Sul através da implantação de
uma ampla variedade de atividades, tais como geração de energia elétrica da Cachoeira Pancada Grande e
um porto na cidade de Ituberá, entre outros negócios com o apoio do Estado. Atraiu para a região do Baixo
Sul grandes empresas de exploração de recursos naturais, como “a Standard Oil (Esso), que instalaria o terminal de combustível – em Gravatá, na Baía de Maraú, perto de Ituberá – para distribuir derivados de petróleo;
as Indústrias Reunidas Matarazzo, que plantaria dendezeiros para fazer óleo; e a Companhia Firestone, que
plantaria seringueiras para fazer pneus” (LIMA, 2020, p. 159-160).
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 288-309, 2022
Artigos
ancestral pelo conhecimento fornecido pelo modelo de progresso e modernidade imposto pelo
poder hegemônico. Isso significa dar lugar à utilização de agrotóxicos, pesticidas e outros produtos nocivos para a saúde e para o meio ambiente, em busca de impulsionar a produção e estar
de acordo com os roteiros pré-definidos para abastecer as fazendas que pagam pela produção
nas propriedades familiares e arrendadas.
não se trata de escolher, simplesmente, porque não há muito espaço para escolhas no mundo das commodities — que também e o mundo da revolução
verde — no qual, indígenas e descendentes de escravizados, ao fim e ao cabo,
estão imersos em decorrência das pressões do grande capital, presentes, inclusive, nos programas das instituições ou agencias governamentais que atuam
com pesquisa e desenvolvimento voltados a Agricultura Familiar. No campo
das políticas públicas, fala-se muito em nome da “Agricultura Familiar”, mas,
de facto, quase sempre beneficia-se o agronegócio, sobretudo de exportação
(GUIMARÃES, 2019, p. 207).
Os mecanismos criados para a dominação e o controle das populações locais envolve
a expulsão violenta das comunidades e a privatização das terras, mudanças no regime de organização do trabalho e venda da produção,8 ações educacionais promovidas pelas empresas
com os jovens das comunidades tradicionais onde novos saberes são instituídos, numa clara
reedição de um processo colonizador que promove o epistemicídio (SANTOS, 2007) em que
“conhecimentos populares, leigos, plebeus, camponeses ou indígenas (...) desaparecem como
conhecimentos relevantes ou comensuráveis” (SANTOS, 2007, p. 5) e o que se aplica enquanto
modos de dominação exemplifica a forma de colonização que Santos (2007) chama de apropriação e violência que:
envolve incorporação, cooptação e assimilação, enquanto a violência implica
destruição física, material, cultural e humana (...). No domínio do conhecimento, a apropriação vai desde o uso de habitantes locais como guias e de mitos
e cerimónias locais como instrumentos de conversão, à pilhagem de conhecimentos indígenas sobre a biodiversidade (SANTOS, 2007, p. 9).
Fazendas como a Michelin, “construíram-se a partir de grilagens de terras onde viviam
famílias e comunidades negras” (SILVA, 2013, p. 41). Para permanecer nas terras e acessar
incentivos e financiamentos passam a adotar novos modelos de produção que abasteçam as
necessidades do agronegócio. Projetos educacionais e ações sociais promovidos pelas fazendas
de agronegócios se encarregam de gerar mudanças epistemológicas, além de garantir o marketing que alimenta o capitalismo verde.
O arquiteto paisagista Weller, responsável pelo Atlas do Antropoceno (2017), alerta que a
venda de espaços naturais como “provedores de serviços globais” reforça as relações de poder
desigual, a responsabilidade socioeconômica dos grupos conservacionistas que atuam reproduzindo racismo ambiental e a expulsão de minorias indígenas justificadas por ONGs como práticas
conservacionistas e ambientalistas. Questão também reforçada por Gudynas (2019), em sua
análise sobre a América Latina, em que expõe que as práticas da “nova” ciência da conservação
não questionam o capitalismo, pelo contrário, propõem a aliança entre conservacionistas e corporações como estratégia para melhorar a vida humana.
8 Lima (2020) cita os modelos de atuação empreendidos pela Odebrecht no Baixo Sul, porém é possível estender esses modos operandi a outras empresas que atuam no Baixo Sul, como a Plantações Michelin, por
exemplo, como citado no modelo adotado pela empresa para implantar o Projeto Ouro Verde da Bahia (POVB).
Marta Raquel da Silva Alves e Erivan de Jesus Santos Junior
307
Às margens das monoculturas
Conclusão
A pandemia da covid-19 estabeleceu limitações para a imersão no Baixo Sul, exigindo-nos
308
outro modo de inventariar as paisagens, diferente do que havíamos planejado inicialmente. No
entanto, ao acessar às memórias de nosso pesquisador nativo, sua rede de parentesco, e ao mobilizar a ancestralidade de moradores de alguns pequenos assentamentos do Baixo Sul, pudemos
trazer as narrativas orais para esse inventário. Essas histórias guiaram a busca e a seleção das
literaturas com as quais iríamos fazer as amarrações, os cruzamentos e confrontar informações.
Deparamo-nos, desse modo, com uma diversidade de histórias, práticas e conhecimentos fazedores de paisagens diversas, biológica e culturalmente.
A região do Baixo-Sul demonstra que a “heterogeneidade histórico-estrutural” (SANTOS,
2019, p. 214) não foi erradicada dos domínios da colonialidade. A biodiversidade que temos
hoje e que nos coloca como uma das regiões mais biodiversas do planeta, pode ser resultado
do agenciamento de paisagens realizados por múltiplas agências, das quais as de humanos são
apenas parte delas. A memória biocultural de comunidades tradicionais precisa ser valorizada
para que não sigamos nos desperdícios de experiências.
Referências
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Artigos
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Marta Raquel da Silva Alves e Erivan de Jesus Santos Junior
309
O design de
paisagens de
emaranhamento1
Martin Prominski
Universidade de Hanôver Gottfried Wilhelm Leibniz
Tradução:
Mariana Redd
UFMG
1 Nota dos editores: Esta é uma tradução de uma versão mais longa e não publicada do artigo de Martin Prominski,
intitulado “Designing landscapes of entanglement”, presente em: BRAAE, E.; STEINER H. (Eds.): Routledge Research
Companion to Landscape Architecture. London, Routledge, 2018, p. 167-179. Agradecemos o gentil envio do manuscrito pelo autor.
O design de paisagens de emaranhamento
Resumo
Este texto é a tradução de um manuscrito ampliado de artigo de Martin Prominski, originalmente publicado sem resumo na coletânea Routledge Research Companion to Landscape
Architecture, em 2018 (resumo feito pelos editores). O artigo revisa o conceito de paisagem.
Palavras-chave: paisagem, Antropoceno, arquitetura da paisagem, emaranhamento.
El diseño de paisajes de entramados
Resumen
Este texto es una traducción de un manuscrito extendido de un artículo de Martin Prominski,
publicado originalmente sin resumen en el libro Routledge Research Companion to Landscape
Architecture, en 2018 (resumen realizado por los editores). El artículo revisa el concepto de
paisaje.
Palabras clave: paisaje, Antropoceno, arquitectura del paisaje, entramados.
Designing landscapes of entanglement
Abstract
This text is a translation of an extended manuscript of an article by Martin Prominski, originally
published without abstract in the book Routledge Research Companion to Landscape Architecture, in 2018 (abstract by the editors). The article reviews the concept of landscape.
Keywords: landscape, Anthropocene, landscape architecture, entanglement.
Foto: Erivan de Jesus Santos Junior
312
Artigos
A filosofia da arquitetura da paisagem possui muitas vertentes, incluindo a ética, a ontológica e a estética, que constantemente precisam ser reinterpretadas em um mundo que se
transforma rapidamente. Este texto aborda uma destas vertentes, a filosofia da natureza, e reflete
sobre as mudanças contemporâneas que influenciam sua interpretação, bem como a relevância
de tudo isso para a pesquisa e a prática da arquitetura da paisagem.
Por que natureza? Porque, na minha visão, a natureza é atualmente o conceito-chave
mais seriamente desafiado dentro da arquitetura da paisagem – um conceito que precisa ser
reavaliado filosoficamente. O argumento mais forte para tal reavaliação vem do campo da geologia, que anunciou uma nova época, sucedendo ao Holoceno: o Antropoceno. Esse termo foi
cunhado por Paul Crutzen e Eugene Stoermer, em 2000, e designa uma situação geológica
completamente nova, na qual a humanidade, agora, tem influência sobre cada metro quadrado na superfície da terra e também sobre sua atmosfera – por exemplo, através da emissão de
carbono ou nitrogênio (CRUTZEN; STOERMER, 2000). A geologia é capaz de traçar o impacto
humano nos sedimentos da Terra e a influência é tão forte que um retorno ao Holoceno parece
ser impossível. Consequentemente, não há mais natureza no sentido filosófico clássico. De acordo
com esta abordagem, há uma dicotomia entre natureza e cultura humana, sendo a natureza um
agente poderoso por si só, de valor inerente, independentemente da influência humana – uma
conceituação que dominou o mundo ocidental por séculos.
Os desafios filosóficos propostos pelo Antropoceno são consideráveis. A afirmação introdutória dos curadores do “Projeto Antropoceno”, um projeto transdisciplinar internacional funcionando já há alguns anos no Haus der Kulturen der Welt, em Berlim, expressa apropriadamente:
A natureza, como nós a conhecemos, é um conceito pertencente ao passado.
Não é mais uma força apartada da atividade humana e em sua oposição, a
natureza não é nem um obstáculo nem um outro harmonioso. A humanidade
forma a natureza. Humanidade e natureza são uma coisa só, incorporadas a
partir do registro geológico recente (SCHERER; KLINGAN, 2013, p. 2).
Reconhecer o Antropoceno equivale a um chamado inconfundível de natureza versus
cultura, visando a uma filosofia da natureza unitária e não dualística. Para me expressar claramente: conceitos unitários de natureza e cultura não são nada novos, especialmente nas culturas
ocidentais mas, ao se reconhecer o Antropoceno, sua importância cresceu enormemente. Assim,
podemos construir sobre os esforços existentes para que filosofias não dualísticas de natureza
venham a ser definidas, com o objetivo de desenvolver abordagens em arquitetura da paisagem
com vista à pesquisa e ao design de formas unitárias e sintéticas. De modo a desenvolver tal
fundamentação para a teoria e a prática da arquitetura da paisagem, este artigo parte de uma
discussão sobre as filosofias de Philippe Descola (2008, 2013, 2016), um antropólogo francês, e
Bruno Latour (1993, 2008, 2010, 2013), um sociólogo francês. Para eles, o Antropoceno é uma
categoria produtiva para desenvolver conceitos do humano e não humano que transcende a
dicotomia natureza-cultura. Em contrapartida a eles, Donna Haraway (2016) é introduzida como
uma crítica à noção de Antropoceno, levantando, assim, a questão da possibilidade de nós já
precisarmos de um termo alternativo para a situação atual.
Martin Prominski
313
O design de paisagens de emaranhamento
Destronando o Naturalismo
– o universalismo relativo de Descola
314
Em uma palestra recente, o antropólogo francês Philippe Descola caracterizou o Antropoceno como uma nova era em que o homem se transformou em uma força da natureza (DESCOLA,
2016). Ele distingue, claramente, Antropoceno de antropização. A última é um processo que vem
ocorrendo há 200 mil anos, uma coevolução de humanos e não humanos que afeta a maioria
dos cantos da Terra – mesmo a floresta amazônica não é natureza intocada; é, amplamente, um
ecossistema antropogênico. Isso soa como a caracterização dos efeitos humanos no Antropoceno
– ainda assim, Descola vê uma diferença entre os dois. Comparado aos efeitos coevolucionários,
razoavelmente locais, da antropização, o atual impacto humano alcançou uma escala global
e sistêmica, levando à mudança climática, à acidez dos oceanos e à perda de biodiversidade,
cumulativas e aceleradas. Descola explica tal desenvolvimento radical com o termo “naturalismo”.
Por naturalismo ele se refere especificamente ao tipo ocidental de relações entre humanos e
não humanos, de acordo com o qual o privilégio de possuir mente e alma é concedido apenas
a humanos, enquanto não humanos são apenas matéria física. Uma das maiores intenções de
seu trabalho é explicar que este conceito – com todas as suas consequências destrutivas – é
apenas um de quatro caminhos possíveis nos quais os humanos podem se relacionar com não
humanos e que, por isso, nós precisamos modificar o naturalismo ocidental para escapar de sua
“tirania contemporânea” (DESCOLA, 2016, p. 112). Em sua obra-prima Outras naturezas, outras
culturas (2013), Descola desenvolve uma estrutura de quatro ontologias relativas à relação entre
humanos e não humanos. Ao analisar um grande número de exemplos etnográficos de todo o
mundo, além do naturalismo ele identifica como tais ontologias o animismo, o totemismo e o
analogismo. Todas as três operam sem a dicotomia entre natureza e cultura (DESCOLA, 2008).
Quando Descola se refere à conservação da natureza como um exemplo dos potenciais efeitos
positivos de reconhecer múltiplas ontologias, seu pensamento se torna imediatamente relevante
para a arquitetura da paisagem. Ele critica o fato de a política internacional de conservação da
natureza estar intimamente ligada à cosmologia do naturalismo, que dominou o pensamento
europeu por pelo menos dois séculos. Tal cosmologia, relativamente jovem, certamente não é
compartilhada por todos no planeta. Com o que, então, uma ética da natureza mais universal se
pareceria? Em termos de conservação da natureza, significaria que argumentos utilizados pelo
naturalismo, como a preservação da biodiversidade, serviços ecossistêmicos e armazenamento
de carbono, podem ser de importância secundária para os proponentes do animismo. De acordo
com essa ontologia, os humanos têm relações intersubjetivas com não humanos. Animais são
tratados como humanos e, mesmo assim, caçá-los é permitido se feito respeitosa e cuidadosamente. Para ilustrar essa ontologia, que soa utópica para ouvidos ocidentais, Descola cita um
documento que a comunidade indígena de Sarayaku, na Amazônia Equatoriana, apresentou
na Cúpula do Clima, em Paris, em dezembro de 2015, exigindo uma nova categoria legal para
territórios protegidos, chamada Kawsak Sacha (“Floresta Viva”):
Enquanto o mundo ocidental trata a natureza como uma fonte genérica de
matérias-primas, exclusivamente destinadas ao uso humano, Kawsak Sacha
reconhece que a floresta é feita inteiramente de seres vivos e das relações comunicativas que eles têm uns com os outros... Esses seres, das menores plantas aos seres supremos que protegem a floresta, são pessoas (runa).
Kawsak Sacha é onde há [nossas] interrelações com os seres supremos da floresta para receber a orientação que [nos] leva pelo caminho do Sumak Kawsay
(Bem Viver). Esta relação contínua que nós [...] temos com os seres da floresta
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 310-327, 2022
Artigos
é central, pois dela depende a continuidade da Floresta Viva que, em troca,
permite a harmonia da vida entre muitos tipos de seres, assim como a possibilidade de nós continuarmos a viver no futuro (apud KOHN, 2016).
Esta abordagem expressa a diversificação das estratégias de conservação para além do
conceito dualístico ocidental dominante de natureza versus cultura. Descola visa a definir uma
ecologia de relações, pela qual diferentes relações entre humanos e não humanos são analisadas
e desenvolvidas de maneira diferenciada. O mérito do conceito de Descola para o Antropoceno,
do mesmo modo que para a arquitetura da paisagem, está em oferecer alternativas consistentes
ao naturalismo ocidental predominante. Refletir sobre eles, de forma integrada, aplicando-os
especificamente a cada contexto de design, poderia nos levar a ações humanas menos destrutivas em relação à Terra.
No Antropoceno, tudo se torna uma questão
de design – a filosofia do design de Bruno Latour
Outra figura eminente francesa no campo da antropologia, da filosofia e da sociologia,
que vem refletindo sobre as consequências do Antropoceno para o nosso entendimento da
natureza, é Bruno Latour. Desde seu livro Jamais fomos modernos de 1993, ele vem lutando
contra a distinção moderna entre natureza e cultura. Para ele, o Antropoceno é uma razão a mais
para lançar foco em novos emaranhamentos entre antigos adversários:
Amanhã, aqueles de nós que deixaram de ser resolutamente parte de um burburinho moderno, vão ter que levar em consideração ainda mais complicações
envolvendo seres que irão confundir a ordem da Natureza com a ordem da
Sociedade; amanhã, ainda mais que ontem, nós nos sentiremos presos por um
número ainda maior de restrições impostas por seres cada vez mais numerosos (LATOUR, 2013, p.10).
Deste ponto de partida – o abandono da distinção entre natureza e sociedade –, Latour
desenvolve uma linha de pensamento que é de interesse particular para a arquitetura da paisagem. Se tudo na Terra (e além dela) está impregnado de atividade e significado humano, então
há incontáveis e inevitáveis relações entre humanos e não humanos em um “pluriverso emaranhado” (LATOUR, 2010, p. 481). Nós não podemos refletir sobre tais relações passivamente, à
distância, objetivamente; nós somos chamados a trabalhar ativamente em tais questões relacionais de interesse. Latour chama esse trabalho ativo de “composição”, e vai além, chegando
a escrever um “Manifesto do Compositor” (LATOUR, 2010). Ele inclui uma reflexão abrangente
sobre o significado de composição:
Ainda que a palavra “composição” seja muito rebuscada e pretensiosa, é muito
bom que ela saliente que as coisas precisam ser reunidas em conjunto (do
Latim: componere), mantendo sua heterogeneidade. Além disso, ela está conectada com “compostura”; tem raízes claras na arte, na pintura, na música, no
teatro, na dança e, assim, está associada à coreografia e à cenografia; não está
muito longe de “comprometer” e “comprometer-se”, retendo certo sabor diplomático e prudente. Por falar em sabor, ela carrega consigo o cheiro pungente,
mas ecologicamente correto, de “compostar”, em si devido à “decomposição”
ativa de diversos agentes invisíveis. [...] Acima de tudo, uma composição pode
falhar e, assim, reter o que é mais importante na noção de construtivismo (um
rótulo que eu poderia ter usado também, não estivesse já tomado pela história da arte). Ele assim desvia a atenção da diferença irrelevante entre o que é
Martin Prominski
315
O design de paisagens de emaranhamento
construído e o que não é construído, em direção à diferença crucial entre o
que é bem ou mal construído, bem ou mal composto (LATOUR, 2010, p. 473).
Para um arquiteto paisagista, esta descrição de composição soa familiar: unir conjuntos
316
heterogêneos baseado na criatividade, comprometido pelas condições do lugar e as exigências
do usuário, reconhecendo que não há apenas uma solução mais verdadeira, apenas soluções
boas ou más. Assim, não há um passo grande da composição para o design, que é o modo de
ação da arquitetura da paisagem. Em suas reflexões sobre o design (LATOUR, 2008), Latour
explica que o termo tinha um significado razoavelmente limitado até muito recentemente, especialmente em sua França nativa: significava pôr um brilho cosmético nas coisas inventadas
por engenheiros ou cientistas sérios. Mas atualmente, ele afirma, “design” é mais que apenas a
superfície; é parte da própria substância dos processos de produção e “tem sido estendido dos
detalhes de objetos rotineiros para as cidades, as paisagens, as nações, as culturas, os corpos, os
genes e para a própria natureza”. Moldar uma paisagem é uma tarefa de design que não levantará as sobrancelhas de arquitetos paisagistas – mas a ambição de Latour vai muito mais além,
sendo que a maneira como ele inclui natureza e genes torna o radicalismo de seus argumentos
mais aparente. Ele conclui que tudo, atualmente, é resultado de design e cita “Dasein ist Design”
(LATOUR, 2008, p. 7) – o maravilhoso trocadilho alemão cunhado pelo holandês Henk Osterling,
que significa existir é projetar. Latour chega a uma conclusão similar àquelas de Descola em
relação à conservação da natureza:
Não apenas a natureza desapareceu como o externo à ação humana (o que
se tornou senso comum agora); não apenas “natural” se tornou sinônimo de
“cuidadosamente gerido”, “habilmente encenado”, “artificialmente mantido”,
“sabiamente projetado” (o que é verdadeiro especialmente para as chamadas
“comidas orgânicas” ou “naturais”); mas a própria ideia de que trazer o conhecimento dos cientistas e engenheiros para suportar uma questão é necessariamente recorrer a leis da natureza inquestionáveis está também se tornando
obsoleta. Trazer cientistas e engenheiros está rapidamente se tornando outra
forma de perguntar: “como isto pode ser melhor projetado?”. Os elementos
de bricolagem e reparos sempre associados ao design dominaram a natureza
(LATOUR, 2008, p. 10).
Para resumir, o Antropoceno é, para Latour, um indicador forte e final de que qualquer esperança em diferenciar ciência e política, fatos e valores, natureza e cultura, morreu (LATOUR, 2013,
p. 10). Os emaranhamentos entre humanos e não humanos estão relacionados à composição, são
uma questão de design. Argumentando desta forma, ele amplia o campo da atividade enormemente, assim como a responsabilidade carregada pelos designers, incluindo arquitetos paisagistas.
Já precisamos de um termo alternativo para o
Antropoceno? O Chthuluceno de Donna Haraway
Um conceito que ganhou influência tão rápido e se tornou tão difundido como o Antropoceno facilmente atrai crítica nos círculos acadêmicos e além deles. Uma das vozes críticas mais
proeminentes é Donna Haraway, Professora Emérita no Departamento de História da Consciência
na Universidade da Califórnia em Santa Cruz, que é conhecida, por exemplo, por seu Manifesto
Ciborgue, de 1991. Eu gostaria de refletir sobre sua crítica ao Antropoceno para descobrir se
deveríamos substituir o termo por outro melhor.
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 310-327, 2022
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Suas principais objeções ao conceito de Antropoceno são as seguintes. Primeiro, os agentes do Antropoceno não são humanos enquanto uma espécie – Anthropos –, mas as práticas de
alguns humanos que poderiam ser resumidas no capitalismo [consequentemente, ela também
menciona “Capitaloceno” como um termo alternativo a Antropoceno (HARAWAY, 2016, p. 47)].
Segundo, a história associada ao Antropoceno tem um final ruim, e o ator também é ruim – ela
diz preferir uma história positiva para mudar a situação (HARAWAY, 2016, p. 48). Terceiro,
As ciências do Antropoceno são muito contidas dentro de teorias de sistemas
restritivas e dentro de teorias evolucionárias chamadas Sínteses Modernas
que, a despeito de sua importância extraordinária, provaram ser incapazes de
pensar bem sobre simpoiese, simbiose, simbiogênese, desenvolvimento, ecologias de rede e micróbios (HARAWAY, 2016, p. 49).
Nesta afirmação, ela provavelmente está se referindo à engenharia climática já mencionada no artigo influente de Crutzen na Nature (2002), que poderia ser entendida como os
sistemas de gerenciamento da Terra, incluindo mecanismos como fertilização de oceanos com
ferro e injeções estratosféricas de enxofre para aumentar o albedo da Terra (CRUTZEN, 2002).
Finalmente, o Antropoceno é um termo de ocidentais; não é passível de adaptação por povos
indígenas. Toda esta crítica é justificada – mas isto tem que levar a um termo alternativo? E sua
proposta alternativa, o Chthuluceno, é uma melhora? Ela o explica como “um composto de duas
raízes gregas (khtkôn e kainos), que juntas dão nome a um tipo de tempo-lugar com vistas a
enfrentar os problemas de viver e morrer com responsabilidade (resposta e habilidade)2 em
uma terra danificada” (HARAWAY, 2016, p. 2). Uma tradução direta significaria a era dos seres
subterrâneos ou ligados à terra. Bem, nem a compreensibilidade da palavra nem a abrangência
de seu significado são convincentes. São os atributos que Haraway designa ao Chthuluceno
que despertam simpatia. Ela expande a identidade dos atores ao salientar que não somente
os humanos contam na atual situação: “Ao contrário dos dramas dominantes do discurso do
Antropoceno e do Capitaloceno, seres humanos não são os únicos atores importantes no Chthuluceno, onde todos os outros seres capazes de simplesmente reagir. A ordem está tricotada de
novo: seres humanos estão com e são da terra, e os poderes bióticos e abióticos desta terra são
a história principal” (HARAWAY, 2016, p. 55). Nesta complexa teia de relações, ela defende o
termo simpoiese, de M. Beth Dempster (1998), como um meio para a interação: “significa ‘fazer
com’. Nada se faz sozinho; nada é realmente autopoiético ou auto-organizador; [...] é uma palavra
própria para sistemas complexos, dinâmicos, responsivos, situados e históricos. É uma palavra
para mundificar3 – com, em companhia” (HARAWAY, 2016, p. 58). Esta ênfase em humanos e
não humanos (“todos criaturas”, como ela gosta de dizer) e simpoiese é importante e não inclusa
em um entendimento do Antropoceno limitado e guiado pela tecnologia. Apesar disso, como já
vimos no caso de Descola e Latour, um entendimento mais amplo do Antropoceno é possível e
pode abranger estas questões. Um novo termo complicado como o Chthuluceno, que a maioria dos ocidentais mal entenderia (embora devessem, pois são a maior razão para o problema
atual), não ajuda. Sugiro seguir o conselho da própria Donna Haraway, que diz: “Eu sei que nós
continuaremos precisando do termo Antropoceno. Eu o usarei também, com moderação; o quê
2 Nota da tradutora (N.T.): no original, “response-ability”. A palavra responsabilidade dividida em duas palavras para destacar a ação de resposta com habilidade.
3 N.T.: No original, “worlding”. A palavra “world” (mundo) ganha o sufixo “-ing” para ser transformada em
verbo, acrescentando o sentido do próprio mundo se fazer mundo, estando envolvido ele mesmo na ação. A
definição do termo em inglês, também recente e, por isso, ainda sem uma tradução cunhada e amplamente
utilizada, pode ser encontrada em https://newmaterialism.eu/almanac/w/worlding.html.
Martin Prominski
317
O design de paisagens de emaranhamento
e quem o Antropoceno reúne, em sua bolsinha restaurada, pode se provar potente para viver nas
ruínas e mesmo para uma recuperação terrena modesta” (HARAWAY, 2016, p. 47).
Assim que o Grupo de trabalho Antropoceno, que é parte da Subcomissão para a Estrati-
318
grafia Quaternária da Comissão Internacional de Estratigrafia, formalizar o Antropoceno como
uma época geológica [este procedimento em curso é complexo e inclui muitas perguntas, como
quando o Antropoceno começou (WATERS et al., 2016; WORKING GROUP ON THE ANTHROPOCENE, 2016)], ele estará em todos os livros didáticos e influentes na base da sociedade. Em
minha visão, é mais produtivo discutir as qualidades e déficits do conceito usando o próprio
termo ao invés de inventar outros novos – desde que não haja nenhum avanço espetacular no
significado, o que eu ainda não vi. É a qualidade do conceito de Antropoceno que é ampla o
suficiente para incluir fãs de high-tech assim como “pessimistas-de-cinco-minutos-depois-da-meia-noite”. Pessoalmente, eu considero esses extremos enganadores e preferiria argumentar
em nome de abordagens intermediárias e com várias camadas, como o universalismo relativo,
o composicionismo ou a simpoiética, como discutido acima, ou termos como convivialidade
[conviviality] (HINCHLIFFE; WHATMORE, 2006), avivamento [enlivenment] (WEBER, 2013),
mesológicos [mésologiques] (BERQUE, 2011), maisagens [andscapes] (PROMINSKI, 2014) ou
“socialidade entre todas as coisas vivas” [sociality among all living things] (IMANISHI, 2002).
O Antropoceno e a arquitetura da paisagem
A discussão das ideias apresentadas por Descola, Latour e Haraway mostrou que o Antropoceno é um motivador forte para desenvolver novos conceitos de relações entre não humanos
e humanos. Esta motivação é acompanhada pela convicção de que o Antropoceno é não apenas uma descrição neutra das enormes consequências do impacto humano, como também
um chamado à mudança e suspensão de evoluções negativas. De acordo com Jan Zalasiewicz,
coordenador do Grupo de Trabalho do Antropoceno dentro da Subcomissão de Estratigrafia
Quaternária, “muito desta mudança global será em detrimento dos humanos. Nem toda ela (a
Groelândia, por exemplo, está agora ficando verde e crescendo), mas o curso atual e provável
futuro da mudança ambiental parece traçado para criar substancialmente mais perdedores,
globalmente, do que vencedores” (ZALASIEWICZ et al., 2010, p. 2231). Assim, os novos conceitos devem contribuir para guiar a mudança global em uma direção positiva e sustentável. Na
sequência, perguntarei qual papel a arquitetura da paisagem pode ter neste processo. Usarei
“emaranhar” como palavra-chave, uma vez que ela resume a base das ideias de Descola, Latour e
Haraway [e também foi usada por muitos outros, como TIETJEN (2011), HIGHT (2014) e MEYER
(2015)], e refletirá sobre as opções da arquitetura da paisagem para emaranhar não humanos,
humanos e tempo.
Emaranhando não humanos
A arquitetura da paisagem é a disciplina do campo do design que – como nenhuma outra
– tem o privilégio de lidar com coisas vivas não humanas. Há raros projetos em que plantas ou
solo não sejam contemplados. Então, é mesmo necessário levantar esta questão aqui? Bem, há
uma diferença entre contemplar não humanos em um design e emaranhar não humanos em
um design. Se, nós, humanos, não nos relacionam, através de nossos sentidos, com não humanos, não há um design de emaranhamento. Por exemplo: ironicamente, naquelas tarefas que
contemplam não humanos mais intensamente – como em áreas de conservação da natureza –,
uma abordagem de separação prevalece, baseada no naturalismo no sentido de mundo apon-
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 310-327, 2022
Artigos
tado por Descola. Emaranhamentos entre humanos e não humanos são evitados e por vezes
proibidos pelas leis de proteção da natureza – por exemplo, na União Europeia. John Hoekstra
(2013), cientista-chefe para a World Wildlife Fund (WWF), chama essa situação de “conservação
de fortaleza” que “separa a natureza das pessoas” e “força uma troca mutualmente exclusiva entre
conservar biodiversidade e atender às necessidades humanas” (HOEKSTRA, 2013).
Precisamos de projetos de design que possam cuidar de plantas e animais assim como
usuários humanos em espaços livres, permitindo que uns se relacionem com outros. Um bom
exemplo disso é o “Buchholzer Bogen” (Arco de Buchholz) em Hannover. Quando a decisão foi
tomada, em 1995, de aumentar o Canal Mittelland na área construída de Hannover, a destruição de habitats valiosos ao longo da margem do canal existente teve que ser compensada, de
acordo com a Lei Alemã de Avaliação do Impacto Ambiental. Os arquitetos paisagistas da NSP
(Nagel, Schonhoff e Parceiros) aproveitou a oportunidade para iniciar um novo habitat enquanto,
ao mesmo tempo, melhorava-se os meios de experienciar e acessar a paisagem do canal, que
tem um papel importante no sistema de espaços livres de Hannover. No Arco de Buchholz, eles
propuseram que fosse construída uma pequena protuberância na margem do canal, criando
assim uma incomum território aquático na borda, outrora reta, do canal. A estrutura multicamadas de plantas nativas atrai muitos insetos e pássaros e o lugar é caracterizado por uma biodiversidade acima da média – é este o emaranhamento de não humanos. Ao invés de proteger
este novo habitat dos humanos, ele foi cuidadosamente integrado ao sistema linear de espaços
livres ao longo do canal através da instalação de uma escultura onde se podia andar. O artista
japonês Tadashi Kawamata desenhou e construiu um calçadão de madeira, que se estende por
todo o corpo d’água e serve tanto como passagem quanto como plataforma para observar a
flora e a fauna abaixo dela (Figura 1). Assim, o Arco de Buchholz atende às rígidas demandas de
conservação da natureza por meio de um design feito totalmente por humanos e oferece ricas
experiências de interação entre humanos e não humanos. É um exemplo de como superar a
divisão entre natureza e cultura, ou naturalismo, como caracterizado por Descola.
Figura 1: (© Martin Prominski): Uma protuberância ou pequena baía foi criada no limite do canal
Mittelland (ao fundo), no Arco Buchholz, em Hannover. A protuberância, um habitat com biodiversidade
além da média, abarca uma escultura percorrível, que é conectada à rede local de passagens
Martin Prominski
319
O design de paisagens de emaranhamento
Apesar disso, projetos de design que emaranham humanos e não humanos não são de
forma alguma a norma na arquitetura da paisagem. Como a disciplina pode viver de acordo com
a previsão de Latour, citada acima, de que, no Antropoceno, “nós precisaremos considerar ainda
320
mais emaranhamentos envolvendo seres que fundirão a ordem da Natureza com a ordem da
Sociedade” (LATOUR, 2013, p. 10)?
Em seu Compositionist Manifesto, Latour sugere uma opção possível: “abordar a questão
complicada do animismo de novo” (LATOUR, 2010, p. 481). Para considerar o animismo como
uma ontologia produtiva para projetar emaranhamentos de não humanos e humanos, nós
precisaríamos reconhecer que outras entidades, como animais, plantas ou minerais, têm uma
“interioridade” (DESCOLA, 2016, p. 109). Ele associa a interioridade com atributos comumente
atribuídos à alma, mente ou consciência, tais como intencionalidade, subjetividade, reflexividade
ou emoções. O problema de tal abordagem já foi identificado pelo próprio Latour: “ela imediatamente dá um sabor de Nova Era a qualquer esforço, como se a posição padrão fosse a ideia de
que o inanimado e a inovação bizarra fossem o animado” (LATOUR, 2010, p. 481). Apesar disso,
existem alguns achados científicos recentes que devem convencer mesmo os proponentes mais
teimosos do naturalismo de que plantas podem ver, sentir ou se lembrar (CHAMOVITZ, 2013).
Tal conhecimento melhora nosso entendimento de como humanos e plantas estão emaranhados, mas as implicações, para a arquitetura da paisagem, deste novo entendimento não foram
pesquisadas até o momento e ainda esperam para serem abordadas. Para emaranhamentos
entre animais e humanos, já há algumas descobertas relevantes para o design. O projeto “Animal Aided Design - AAD” (HAUCK; WEISSER, 2015) pesquisa como alguém pode fazer design
usando o ciclo da vida de seis espécies-modelo para melhorar a vida selvagem urbana. Pode-se
criticar, aqui, o fato de que quase se perdeu de vista o papel humano no emaranhamento. Para
resumir, em termos de emaranhamento entre não humanos e humanos, a prática e a pesquisa
da arquitetura da paisagem estão esperando para serem reanimadas.
Tempo de emaranhamento
Como Donna Haraway apontou tão precisamente, o Antropoceno (na sua linguagem, o
Chthuluceno) é caracterizado por “forças e poderes dinâmicos e contínuos dos quais humanos
são uma parte, dentro dos quais a continuidade está em jogo” (HARAWAY, 2016, p. 101). É sobre
“lugares e tempos reais e possíveis” (ibid.), os quais ela propõe “lascar e triturar e estratificar como
um jardineiro louco, fazer uma pilha de compostagem muito mais quente para passados, presentes e futuros ainda possíveis” (HARAWAY, 2016, p. 57). Para a arquitetura da paisagem, este
emaranhamento do tempo se encaixa muito bem em um entendimento dinâmico e aberto do
design de ecossistemas que já tem sido discutido e desenvolvido no campo há décadas (SPIRN,
1984; CORNER, 1997; PROMINSKI, 2004) e foi recentemente bem resumido em “Ecologias
Projetivas”, organizado por Chris Reed e Nina-Marie Lister (2014).
Paisagens de rio são um exemplo apropriado para ilustrar os desafios do design baseado
no tempo. A clássica abordagem baseada na engenharia tentou controlar processos de rios
e limitar interações ao confinar rios em canais. Projetos arquitetônicos paisagísticos recentes
propõem desfazer estes canais e permitir futuros emaranhamentos imprevisíveis de água, sedimentos, plantas, animais e pessoas. Muitos bons exemplos têm sido realizados, como o Rio
Ebro, em Zaragoza (PROMINSKI et al. 2017, p. 198) ou o Rio Isar, em Munique (PROMINSKI,
2011, p. 192), e eu gostaria de ilustrar a abordagem com mais detalhes usando o exemplo do
Rio Aire, perto de Genebra (PROMINSKI et al., 2017). O design de George Descombes e do Atelier
Descombes et Rampini S.A. é notável por duas razões. Primeiro, ele evita introduzir qualquer
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 310-327, 2022
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estética “naturalista” aos processos morfodinâmicos de erosão e sedimentação que o rio gera.
Um leito de rio completamente novo, com 80 metros de largura, foi projetado convertendo
terra agrícola para proporcionar mais espaço para água corrente. A forma inicial do leito do rio
consistia de losangos perfeitamente formatados, através e por cima dos quais o rio pode fluir,
lentamente transformando as formas geométricas na forma orgânica de um rio trançado ao
longo dos anos (Figura 2). Aqui, vê-se a interação artística de agentes humanos e não humanos
com um resultado não previsto. Segundo, o projeto não apenas coreografa processos futuros,
ele também emaranha o passado. O canal histórico correndo paralelamente ao novo leito do rio
foi conservado como um artefato cultural, ao ser transformado em uma série de jardins lineares
ao longo e parcialmente acima dele. A justaposição de, e o contraste entre, a estrutura histórica
e linear do canal e o recentemente introduzido espaço dinâmico do rio correndo próximo a ela
provoca reflexões sobre o estado do rio antes e depois e sobre os aspectos ecológicos e culturais
do rio atual. Eu não sei de nenhum projeto de arquitetura da paisagem que emaranhe passado,
presente e futuro de uma forma tão criativa e multidimensional.
Figura 2: (©Fabio Chironi): Os dois cursos d’água do Rio Aire justapostos, perto de Genebra: o canal retido à
esquerda com uma série de jardins lineares, o novo leito do rio à direita com losangos parcialmente erodidos.
No caso de tais exemplos, é apropriado dizer que a pesquisa e a prática em arquitetura
da paisagem já está fazendo bem o emaranhado do tempo? Eu discordaria. Além dos projetos de rio, é difícil encontrar exemplos inspiradores. Não há muitas inscrições fascinantes em
competições, como as propostas da OMA para a La Villette, de 1982, ou da Field Operations
para o Parque Downsview, em 2001, mas eles não foram realizados. Parece que os clientes – e,
frequentemente, também os designers – preferem aparências fixas e controladas, que não têm
a intenção de mudar ao longo do tempo. Assim, há muito potencial para pesquisas futuras em
arquitetura da paisagem para intensificar o foco na estética de processos (MEYER, 2008), assim
como estratégias de processos (REED; LISTER, 2004) a fim de aumentar emaranhamentos entre
humanos e não humanos baseados no tempo.
Martin Prominski
321
O design de paisagens de emaranhamento
Emaranhando humanos
Projetos de arquitetura da paisagem são comumente utilizados por pessoas. Assim, um
322
foco em humanos é evidente na disciplina. Apesar disso, tal foco geralmente é mais abstrato
do que concreto. Por exemplo, quando, em seus ateliês, arquitetos paisagistas imaginam um
espaço público, eles invocam imagens do uso futuro e de usuários em suas mentes criativas,
mas não estão em contato direto e físico com os usuários e o local. Um verdadeiro emaranhado de humanos pede por mais níveis de interação no design. Para Bruno Latour, o design de
um objeto – um parque ou uma praça pública, por exemplo – é uma “reunião” (aqui ele segue
Martin Heidegger) e, assim, automaticamente, um “design colaborativo” (LATOUR, 2008). Que
opções existem para uma complexa colaboração ou um emaranhamento de designers e usuários do lugar? O Parque Gleisdreieck, em Berlim, (Arquitetura Paisagista da autoria do Atelier
Loidl; concurso de 2006, conclusão 2013; para exemplo, ver: LICHTENSTEIN; MAMELI, 2005)
é um excelente estudo de caso para examinar esta questão, que trata de questões que foram
discutidas intensamente desde os anos de 1960. Um caminho maior e amplamente aplicado na
direção de emaranhar humanos no processo de design é a participação pública. No Parque Gleisdreieck, a participação foi uma mistura de métodos estabelecidos e novos (SENATSVERWALTUNG
FÜR STADTENTWICKLUNG UND UMWELT, 2013). A primeira fase começou em 2005 com um
questionário que a administração e um instituto de pesquisa social desenvolveram juntos, com
grupos de foco. Foi enviado para 1.600 famílias, aleatoriamente escolhidas, que viviam em um
raio de vinte minutos a pé do parque. As 400 respostas revelaram que 50% sequer sabiam que
um parque seria construído em sua vizinhança. Assim, a administração decidiu oferecer visitas
guiadas ao local: 2.200 pessoas participaram das 34 visitas, as que se seguiram oficinas com 32
grupos, de até 30 pessoas, que desenvolveram recomendações para as regras do concurso de
projetos para o parque. Em paralelo a isso, havia um fórum moderado na internet: 70.000 visitas
de 7.800 usuários foram contabilizadas, e em uma fase moderada um texto com recomendações
para as regras do concurso foi escrito em conjunto por 200 participantes. Essas recomendações
apresentadas pelo público tiveram um papel crucial nas regras para a primeira fase do concurso
para o projeto do parque, da qual 86 empresas de arquitetura da paisagem participaram. Os nove
jurados, incluindo um representante das iniciativas da comunidade, escolheram 11 contribuições
para seguirem para a segunda fase da competição. Com esses 11 projetos, um “fim de semana
de planejamento” foi realizado, no qual o público foi convidado a discutir os planos diretamente
com os autores dos projetos e os jurados: 600 pessoas compareceram neste fim de semana. Os
resultados destes diálogos foram integrados às recomendações para as onze esquipes sobre
como deveriam melhorar seus projetos na segunda e decisiva fase da competição. De acordo
com um jurado, esse fim de semana teve um impacto significativo no desenvolvimento dos 11
projetos, assim como o critério de decisão para o júri (cf. SENATSVERWALTUNG FÜR STADTENTWICKLUNG UND UMWELT, 2013, p. 55). Esse tipo de participação pública intensa – neste caso,
de bastante sucesso –, ainda deixa as decisões subsequentes de modelagem e transformação
de espaço para os especialistas, como os arquitetos paisagistas e a administração.
Uma forma de emaranhamento de humanos menos amplamente aplicada, mas ainda
mais intensa é “comungar”, por meio da qual as próprias pessoas transformam seu espaço. De
acordo com David Bollier, comungar é uma prática social caracterizada por “atos de apoio, conflito, negociação, comunicação e experimentação mútuos, necessários para criar sistemas para
gerenciar recursos compartilhados. Este processo combina produção (autoprovisionamento),
governança, cultura e interesses pessoais em um sistema integrado” (BOLLIER, 2015, p. 2).
No Parque Gleisdreieck, essa abordagem foi significativa por diversas razões. Primeiramente,
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 310-327, 2022
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o parque atual só pôde se tornar possível porque várias iniciativas locais viram a área do pátio
ferroviário abandonado como sua terra urbana comum e, a partir dos anos de 1970, lutaram
contra ideias de transformá-lo em uma rodovia, um parque de diversões ou uma área residencial. Posteriormente, enquanto projetavam o parque, grupos da comunidade conseguiram
reivindicar algumas áreas como seus “bens comuns”. Aqui, eles puderam realizar suas próprias
ideias, como jardins interculturais, jardins loteados ou um espaço para experienciar natureza
(Figura 3). Tal processo não aconteceu sem conflitos: os arquitetos paisagistas, e mais ainda os
grupos da comunidade, tiveram que chegar a um acordo, mas no final o parque foi visto como
um grande sucesso (MÜLLER, 2016) e a administração o identificou como o “Parque de 1000
vozes” (SENATSVERWALTUNG FÜR STADTENTWICKLUNG UND UMWELT, 2013, p. 6). Além disso, o emaranhamento continuará no futuro porque, em novembro de 2014, um grupo de dez
representantes cívicos foi eleito pelos residentes, usuários do parque e partidos interessados
para decidir, juntos ou com outras partes interessadas, sobre os futuros desenvolvimentos do
parque (MÜLLER, 2016, p. 155f).
Este exemplo expressa o enorme potencial da arquitetura da paisagem para emaranhar
seres humanos. A caixa de ferramentas da participação pública já está bem equipada. Apesar
disso, o emaranhamento mais intenso – comunhão – é complicado porque demanda que o designer se coloque em segundo plano porque são as pessoas que estão realizando suas próprias
ideias e transformando o espaço ao invés dele ou dela. Em uma era em que bens comuns estão
ganhando mais e mais dinamismo (BOLLIER, 2015), a relação entre projetar e compartilhar é
um dos tópicos mais desafiadores da pesquisa em arquitetura da paisagem .
Figura 3: (©Martin Prominski): O “Espaço de Experiência da Natureza” na parte leste do Parque
Gleisdreieck, em Berlim, que foi projetado e construído por uma iniciativa comunitária.
Martin Prominski
323
O design de paisagens de emaranhamento
Conclusão e panorama
Charles Darwin começou o parágrafo final de “A origem das espécies” com uma imagem
324
poética: “é interessante contemplar uma ribanceira emaranhada, coberta de muitas plantas
de muitos tipos, com pássaros cantando nos arbustos, com vários insetos voando e com vermes
rastejando pela terra úmida, e pensar que estas elaboradas formas fabricadas, tão diferentes
umas das outras e dependentes umas das outras, de uma forma tão complexa, foram todas
produzidas por leis agindo à nossa volta” (DARWIN, 1859, p. 459; itálicos são meus). Sua visão de
emaranhamento opera a uma distância e expressa a filosofia da natureza modernista com uma
separação de objetos e sujeitos. No Antropoceno, precisamos de uma nova perspectiva nessa
ribanceira emaranhada. Uma contemplação distanciada se tornou impossível se não humanos
e humanos estiverem inextricavelmente entrelaçados. Como os seres humanos estão em uma
parte ativa da ribanceira emaranhada, podemos concluir que estes emaranhados complexos
são sempre uma questão de interesse e um problema de design.
Isso traz consequências para a arquitetura da paisagem. Eu interpreto esta nova perspectiva
como um chamado para focar nos emaranhamentos em diferentes níveis. Categorizei três tipos:
o emaranhamento de não humanos, humanos e tempos, sendo importante adicionar que tais
tipos idealmente se sobrepõem em cada projeto. Vejo a integração dessas três categorias como
um indicador de excelência em projetos de arquitetura da paisagem – um projeto como o do
Parque Gleisdreieck serve como um exemplo disso. Eu também desenvolvi ideias e perguntas
para a pesquisa em arquitetura da paisagem, que surgem destes três tipos de emaranhamentos
e sugerem novas direções, como o retorno do animismo, as estéticas e as estratégias de design
com base no tempo e o design de bens comuns.
No entanto, a pesquisa sobre emaranhamentos encontrará dificuldades para obter fundos em uma cultura global de pesquisa que é mais baseada em divisões como ciência versus
política, fatos versus preocupações, básico versus aplicado etc. (cf. LATOUR, 1993; NOWOTNY et
al., 2001) e menos em emaranhamentos. Se levado a sério, o Antropoceno demanda um novo
modo de a ciência possibilitar pesquisar emaranhados que incorporem atores de todos os tipos.
Trata-se de um chamado irrealista e ingênuo ou podemos perceber os primeiros contornos de
tal ciência no horizonte? De fato, parece surgir um vislumbre de otimismo. Ele irradia do discurso
de sustentabilidade europeu, no qual o conceito de “Ciência Transformativa” foi proposto em
2013 (SCHNEIDEWIND; SINGER-BRODOWSKI, 2013; SCHNEIDEWIND et al., 2016). Sua maior
característica é, precisamente, o emaranhamento de atores sociais na produção de conhecimento.
Seu foco está em coprojetar e coproduzir nos processos transdisciplinares, nos quais detentores
de conhecimento não acadêmicos estão necessariamente envolvidos.
A forma “ideal” de pesquisa transformativa é o conceito emergente de pesquisa em laboratórios da vida real. Este conceito ainda é novo e uma definição
amplamente compartilhada não existe ainda. De acordo com o nosso entendimento, laboratórios da vida real proporcionam contextos para experimentos
do mundo real, que visam a um entendimento melhorado dos processos de
transformação e os facilitam ativamente (SCHNEIDEWIND et al., 2016, p. 10).
A pesquisa em design está conceitualmente próxima desses laboratórios do mundo real
(PROMINSKI, 2016; SEGGERN et al., 2015) e é um trabalho valioso para explorar a inspiração
compartilhada pela ciência transformativa e a pesquisa de design. Uma contribuição significativa
da pesquisa em arquitetura da paisagem para a ciência transformativa futura poderia consistir
em emaranhar não humanos na produção do conhecimento, porque até agora a ciência trans-
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 310-327, 2022
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formativa foca “somente” em emaranhar os seres humanos e o tempo (desenvolver futuros desejáveis tem um papel crucial nos laboratórios do mundo real). No Antropoceno, só seria lógico
incluir estes atores não humanos.
Para resumir, a arquitetura da paisagem já experimentou respostas a questões levantadas
pelo Antropoceno. A teoria e prática da arquitetura da paisagem – como poderia ser visto durante a reflexão sobre os três projetos acima (e há muitos outros) – já conseguem operar a partir
de uma perspectiva não-dualista e estão atualmente desenvolvendo emaranhados complexos
entre não humanos e humanos no espaço e no tempo. Há alguma outra disciplina que funciona
tão criativamente na vibrante interface entre humanos e não humanos? A porta está aberta,
agora, para a pesquisa de arquitetura da paisagem deixar sua posição subserviente e articular
suas qualidades únicas no contexto da ciência transformativa e o Antropoceno.
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Martin Prominski
327
História e paisagem:
Explorando um conceito
geográfico monista1,2
Pedro S. Urquijo Torres
CIGA / UNAM
Narciso Barrera Bassols
CIGA / UNAM
Tradução:
Victória Tupini
PPGIELA / UNILA
1 Nota dos editores: o texto foi originalmente publicado, em espanhol, no periódico Andamios (ISSN 1870-0063),
v. 5, n. 10, p. 227-252, 2009. Agradecemos aos autores e editores da revista pela gentileza de nos permitirem a tradução
e a publicação.
2 A pesquisa de que deriva o artigo foi apoiada pelo projeto PAPIIT-DGAPA (chave IN306806), escrito para o Centro
de Pesquisa em Geografia Ambiental – UNAM. Com isso, os autores agradecem a colaboração de Dr. Gerardo Bocco
Verdinelli na revisão no texto.
História e paisagem. Explorando um conceito geográfico monista
Resumo
O presente artigo tem como objetivo revisar o devir histórico e a historiografia do conceito geográfico de paisagem, afim de mostrar sua pertinência operativa nos estudos ambientais, mediante análises homeostáticas de seus elementos tanto biofísicos quanto socioculturais. Para
isso, ponderamos a utilidade de um enfoque epistêmico monista – a paisagem como uma totalidade onde não há separação de seus componentes –, frente ao dualismo manifesto na dicotomia natureza-sociedade, comum no pensamento científico dominante, que pouco contribui
para um entendimento completo do meio, em um contexto de emergência ecológica global.
Palavras-chave: paisagem, natureza, cultura, sociedade, história, monismo, dualismo.
Historia y paisaje. Explorando un concepto geográfico monista
Resumen
El presente artículo tiene por objetivos revisar el devenir histórico y la historiografía del concepto geográfico paisaje, a fin de mostrar su pertinencia operativa en los estudios ambientales, mediante el análisis homeostático de sus elementos tanto biofísicos como socioculturales.
Para ello, ponderamos la utilidad de un enfoque epistémico monista —el paisaje como una totalidad en la que no hay separación de sus componentes—,frente al dualismo manifiesto en la
dicotomía naturaleza-sociedad, común en pensamiento científico dominante, que poco contribuye a un entendimiento cabal del medio, en un contexto de emergencia ecológica global.
Palabras clave: paisaje, naturaleza, cultura, sociedad, historia, monismo, dualismo.
History and landscape: exploring a monist geographical concept
Abstract:
This article offers insights concerning the historical display and the historiography of landscape as a geographical concept. The paper emphasizes the theoretical and practical robustness of this notion in environmental studies. To this end, the paper presents an homeostatic
analysis of the biophysical and socio–cultural components of landscape. Taking this into account, we assess the strength and usefulness of a monist epistemic approach –which looks at
the landscape as a totality that can not be fragmented by separating its various and complex
components–. This in contrast to the dualistic epistemic view that is substantiated by the nature–culture dichotomy. The last approach became a common discourse within the dominant
scientific thought, but it is increasingly problematic for a comprehensive understanding of our
emergent (environmental) socio–ecological reality.
Keywords: Landscape, nature, culture, society, history, monism, dualism.
Foto: Erivan de Jesus Santos Junior
330
Artigos
Natureza-sociedade
O estudo científico sobre as relações ou polarizações entre os componentes naturais e
sociais em um espaço não é, de maneira nenhuma, novo. Nos últimos cem anos, considerando
somente a antropologia – em sua orientação ecológica – e a geografia, foram estudados os vínculos entre diversas coletividades humanas e seus ambientes. A antropogeografia, a ecologia
cultural, a antropologia cognitiva, a ecologia humana, e a ecologia da paisagem ou a etnoecologia
são alguns dos enfoques a partir dos quais se indagou a respeito do vínculo natureza-sociedade (MILTON, 1996, 1997). Em momentos distintos e com argumentos diversos, ponderou-se
acriticamente sobre a hegemonia de uma sobre a outra. Essa polaridade foi reforçada por uma
rígida divisão acadêmica do trabalho e de estruturas institucionais divididas em “ciências duras”,
física e biologia, e em “ciências brandas”, sociais e humanidades. No entanto, como referente
epistêmico, essa dicotomia tornou-se demasiadamente inoperante em face à emergência de
nossas realidades ambientais.
Ao final da década de 1980, o sociólogo da ciência Bruno Latour enfatizava o equívoco
epistêmico de vários cientistas que pretendiam realizar suas pesquisas a partir de conceitos
puros, derivados de posturas dualistas: “já não são termos explicativos, mas ao contrário, requerem uma explicação conjunta” (LATOUR, 1989, p. 108). O questionamento à análise dicotômica
natureza-sociedade foi assunto comum entre vários pesquisadores que, como Latour, notaram
a inoperância de uma perspectiva dual. Entre eles, podemos mencionar Edgar Moran (1990),
Timothy Ingold (1992), Arturo Escobar (1996) e Philippe Descola (2001). Os argumentos e debates a esse respeito geraram gradualmente o desaparecimento das velhas noções de natureza
e sociedade, como campos de análises independentes, e emergiram conceitos aparentemente
integrais, tais como “biodiversidade”, “socioambiente”, “biocultura” ou “natureza híbrida” (ESCOBAR, 1999). A aparição de tais conceitos evidenciou a preocupação em se propor pesquisas
integrais e interdisciplinares, mas também revelou vazios epistêmicos e/ou ambiguidades conceituais de cientistas ou grupos científicos proponentes.
Por um lado, especialistas biofísicos – principalmente biólogos e ecólogos – interessados
na integralidade ou na “complexidade” da proclamada “pós-normalidade”, mas distantes das
teorias sociais, realizaram pesquisas que, devido ao mesmo distanciamento no manejo dessas
teorias e aos preconceitos a seu respeito, resultaram em meros relatos monográficos sustentados em dados quantitativos, carregados de terminologias biológicas aplicadas arbitrariamente
a fenômenos e fatos sociais: “análises qualitativas dos ecossistemas”, “evolução cultural”, “metabolismo cultural”, entre outros. Nesses casos, a análise integral foi resolvida com aparelhamentos
semânticos de duvidosa fabricação (URQUIJO, 2008c).
Por outro lado, alguns pesquisadores formados nas ciências sociais, partidários de modelos
teóricos construcionistas radicais, levaram ao extremo a integralidade natureza-sociedade, ao
ponto de negar a existência de uma realidade biofísica pré-discursiva e presencial da natureza.
A partir desse enfoque, o mundo era incognoscível e carecia de sentido de si mesmo. A confusão
se deu, em parte, por não se distinguir a “natureza” como coisa – suppositio simplex –, como
conceito – suppositio naturalis – ou como nome – suppositio personalis – (JACORZYNSKI, 2004).
Como apontam David Saurí e Martí Boada (2006), processos como a fotossíntese, a polinização
ou a força da gravidade existem plenamente e não são uma construção humana – ainda que
humanos sejam os que dão nome e explicação. O que é melhor questionar não é a preexistência
do mundo biofísico – um questionamento de tipo ontológico –, mas as percepções que se tem
sobre esse mesmo mundo biofísico – um questionamento de tipo epistêmico.
Pedro S. Urquijo Torres e Narciso Barrera Bassols
331
História e paisagem
Na atualidade, portanto, é mais que necessário repensar os modelos de análises das complexidades ambientais, questionando posturas universais da ciência como unívoco pensamento
objetivante, e através de uma análise contextual que permita não fazer distinções entre os as-
332
pectos naturais e sociais do meio (URQUIJO, 2008c). Como ponto de partida, nossa sugestão é
assumir uma postura monista, em que a natureza e a sociedade se localizam inseparavelmente
em um marco comum ou como uma totalidade, enfatizando a vinculação holística do ser humano nos processos ecológicos e incluindo aspectos que as ciências biológicas abordavam por
alto, tais como a mente humana, a religião, o ritual e a estética (RAPPAPORT, 1997; HORNBORG,
2001). A postura monista, na análise ambiental, permite-nos superar a falsa dicotomia que pesa
sobre as teses dualistas e que concebem natureza e sociedade como sistemas separados e autônomos, ou, no melhor dos casos, sutilmente matizados a partir de uma abordagem de esferas
dialeticamente interconectadas por fluxos de complementos e suplementos (PÁLSSON, 2001).
Herança da filosofia clássica, presente na metafísica estóica e nos postulados neoplatônicos de Plotino, o monismo – do grego monás, unidade – é uma das mais fecundas noções que,
em sua origem, faz alusão a um universo formado por uma só substância, em que os elementos
divinos, naturais e humanos são uma e a mesma coisa. Tal pensamento clássico serviu de base
para que, no século XVII, o filósofo holandês Baruch Spinoza propusesse uma solução para o
dualismo cartesiano, através de um sistema monista: dentro da unidade, só há uma substância;
não existe diferença real entre a pedra, o ser humano ou a nuvem. O mundo sensível, que nos
rodeia, é ilusório. A distinção é a “condição da substância” (XIRAU, 2000). Longe das implicações
teológicas que a noção de monismo pode apresentar em seu entorno epistêmico, há um entendimento contemporâneo – particularmente na filosofia antropológica –, em que a natureza
e a sociedade são colocadas em um processo homeostático, sempre complexo, em mudança e
imprescindível. O desafio está em encontrar os meios teóricos e os instrumentos práticos adequados para confrontar os estudos interdisciplinares com esse enfoque epistêmico. No presente
artigo, propomos uma possibilidade.
Para aproximarmos de uma postura monista, devemos nos referir à geografia, disciplina
cujo tema central é – ou deveria ser – a relação intrínseca entre natureza-sociedade, independentemente dos diversos enfoques de tipo dualista ou monista que abordam ou os campos de
especialização de seus praticantes. Neste sentido, a paisagem é um conceito-chave na abordagem de pesquisas referentes à configuração territorial, ao estabelecimento de redes e escalas
espaciais, à percepção, à intervenção e/ou aos manejos da natureza. A perspectiva de paisagem
é uma forma viável para a realização de pesquisas com enfoques monistas, e que também possibilitem a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade.
Mas o que é paisagem?
Chamamos de paisagem a unidade espaço-tempo em que elementos da natureza e
da cultura convergem em uma sólida, mas instável comunhão. Trata-se de uma categoria de
aproximação geográfica que se diferencia do ecossistema ou geossistema (SOCHAVA, 1972) –
conceito que explica o funcionamento puramente biofísico de uma fração de espaço (GARCÍA,
2002) – e do território – unidade espacial socialmente moldada e vinculada a relações de poder
(RAFFESTIN, 1980). Na paisagem confluem tanto aspectos naturais quanto socioculturais; de
tal forma que ela é a dimensão cultural da natureza (SAUER, 1995; OJEDA, 2005), ou melhor, a
dimensão natural da cultura. A concepção de paisagem implica, assim, uma postura unificadora
frente à dicotomia natureza-cultura – comum no pensamento científico dominante –, que dificulta qualquer compreensão ecológica e social do ontem, do hoje ou do futuro (URQUIJO, 2008a).
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 328-345, 2022
Artigos
Para além do âmbito científico, o ser humano, de forma individual ou coletiva, se encontra
em cotidiana interação com suas paisagens, de maneira inextricável. A vestimenta apropriada
para o clima, os instrumentos adequados para sulcar o relevo, caminhos coloridos entre árvores
frondosas, os canais de drenagem, os quiosques de verão, as avenidas e os bairros urbanos ou
as plantações de milho em encostas são algumas das adaptações culturais com as quais os
seres humanos modificam ética e esteticamente suas naturezas, conformes suas muito particulares condições espaciotemporais e de acordo com seus contextos. Por isso, qualquer estudo
da paisagem é apenas parcialmente compreensível sem sua história social. Ao adentrarmos na
historicidade de uma paisagem, acessamos a identificação das recriações, continuidades ou
rupturas das lógicas na permanente transformação do meio, pois as formas paisagísticas são
definidas em diferentes momentos históricos, ainda que coexistentes no momento atual (SANTOS, 2000; CONTRERAS, 2005). A história da paisagem nos permite, assim, conhecer como as
coletividades humanas viram e interpretaram o espaço imediato, como o transformaram e como
estabeleceram vínculos com ele.
Se a paisagem se entende e intervém em função dos contextos espaciotemporais e de
diversos sujeitos sociais, devemos considerar, então, distintas formas de percepção e intervenção
paisagística. Por isso, em uma mesma paisagem podemos encontrar aspectos e intervenções
que se confrontam: de um lado, aqueles que fizeram seu meio com a força do devir e, de outro,
aqueles que estão de acordo com as modas, as formas, os paradigmas e as técnicas herdadas de
visões externas ao lugar e seus atores. (FERNÁNDEZ, 2006; URQUIJO, 2008b; URQUIJO, 2008c).
Portanto, uma indagação do tipo monista não pode se limitar a uma só “leitura” espacial, mas
deve propiciar um entendimento compartilhado que inclua distintas escalas e níveis de poder
implícitas, isto é, a historicidade e a sensibilidade no acesso aos recursos que o meio oferece.
Para sua análise, a perspectiva paisagística implica uma operação cognitiva. O sujeito
observador se aproxima da paisagem no momento que dirige sua perspectiva ao entorno. Percebe com seus sentidos o que lhe é vislumbrado e pouco a pouco faz um recorte do meio, como
uma espécie de polígono mental – em termos cartográficos. Percepção deriva do latim percipio,
“olhar e captar”; sendo assim, em um exercício perceptivo, entende-se simultaneamente tanto
o processo contemplativo quanto o entendimento cognitivo do meio. Portanto, a percepção é
a maneira pela qual o eu conhece o mundo (HUSSERL, 1995). Um passo seguinte à percepção
constitui a fragmentação dos elementos contidos no quadro da natureza, analisando o detalhe,
para novamente agrupá-los e devolver a vida ao todo paisagístico. A ótica aplicada pelo observador
pode ter quatro intencionalidades básicas (GÓMEZ, 2006). Em primeiro lugar, temos uma visão
estética, da qual encontramos projeções posteriores na pintura, na fotografia, na literatura ou na
tradição oral. Outra ótica é a vivencial ou utilitária, pela qual a paisagem é percebida como um
espaço provedor de recursos. Também se pode observá-la como paisagem identitária, aquela
que inspira o sentimento de pertencimento; isto é, a paisagem vivida. Finalmente, o observador
pode possuir uma ótica científica ou técnica, fundamentalmente analítica e em que sua fragmentação é comumente argumentada para facilitar a compreensão de conjunto.
Em termos conceituais, podemos apontar uma série de características gerais da paisagem.
Como produto intelectual e material de um grupo social, a paisagem toma parte de uma cosmovisão completa que se insere em um processo de longa duração (BRAUDEL, 1993; BAKER,
2004). De fato, a paisagem é um traço localizado e de uma cosmovisão que guia o comportamento humano. A cosmovisão, por sua parte, é entendida como um conjunto articulado de
sistemas ideológicos vinculados entre si de maneira relativamente congruente, com o qual uma
sociedade pretende apreender o universo (LÓPEZ, 1996). A paisagem é, também, uma unidade
física de elementos tangíveis, visíveis, olfativo, auditivos e degustáveis, que pode ter um ou vá-
Pedro S. Urquijo Torres e Narciso Barrera Bassols
333
História e paisagem
rios significados simbólicos ou leituras subjetivas de forte tradição estética e ética. Finalmente,
a paisagem possui uma escala humana, quer dizer, suas distâncias podem ser percorridas a
pé e seu nível de análise está localizado no imediato à percepção sensorial (Fernández, 2006).
334
A paisagem pré-científica
Em si mesmo, o conceito de paisagem percorre uma história em que se evidencia o entendimento único de um meio natural percebido e interferido pela atividade humana, sempre
indissociável. O conceito provém de duas raízes linguísticas diferenciadas. Uma delas, a germânica, dá origem aos termos landschaft – alemã –, landskip – holandesa –, e landscape – inglês. A
outra, romana, deriva em paesaggio – italiano –, paysage – francês –, paisagem – português – e
paisaje – espanhol. Como aponta Javier Maderuelo (2006), estas duas raízes não só mostram
uma diferente construção gramatical, de acordo com os distintos hábitos linguísticos dos países
do norte e do sul da Europa, como também correspondem a dois modos diferentes de entender,
ver e representar o meio.
Ao longo da Idade Média, a palavra germânica landschaft, composta pelas partículas land
(“terra”) e schaffen (“moldado”), ou seja, “o moldado do território”, equivaleria às palavras latinas
patria, provincia ou regio. Documentado desde o século VIII (MADERUELO, 2006), o termo Landschaft fazia referência ao espaço onde se podia abarcar com a visão. Em inglês, os componentes
do vocábulo landscape cumpriam os mesmos fins: land, “terra”, e scapjan, raiz germânica que
significava “criar ou trabalhar”. A última mudou para shape, “forma ou moldado”, o que implicou
em uma mudança da ênfase do ator modelador à aparência resultante, quer dizer, enquanto
que landscape denotava a extensão representada, landschaft fazia referência ao processo de
formação ou à transformação constante (RELPH, 1981; BERQUE, 2000; FERNÁNDEZ, 2006).
Entre as línguas romanas, o termo italiano paese e seus derivados, paesseto e paesaggio,
mantinham o mesmo sentido que as palavras francesas pays e paysage (MADERUELO, 2006).
Estes termos, do mesmo modo que paisagem, em português, e a paisaje, em espanhol, têm sua
origem no vocábulo latino pagus, “aldeia” ou “canto”, e seu consequente paganus, “aldeado” ou
“paisano”. O ablativo latino de pagus era pago, que fazia referência à vida rural (RELPH, 1981;
BERQUE, 2000; MADERUELO, 2006; FERNÁNDEZ, 2006).
Na Europa medieval, não houve uma separação radical entre natureza e sociedade, pois
o ser humano se considerava parte integrante do cosmos; assim, o homem não podia olhar a
natureza externamente, porque sempre estava dentro dela. A “outrização” da natureza se originou
no Renascimento, entre os séculos XIV e XV. A pintura renascentista centrou-se na indagação
cognitiva e espacial em torno do ser humano e seu lugar na natureza e na história, através da
perspectiva: o “ver através”. O meio foi então um universo alternativo quantificável, tridimensional
e apropriado e/ou interferido pelo universo humano (PÁLSSON, 2001).
Nos séculos XVI e XVII, os proprietários de terras do norte da Europa pediam para que seus
domínios fossem retratados em pinturas, com o propósito de exibir os quadros resultantes nos
muros de seus palácios, como símbolo de poder. Os pintores europeus se preocupavam em delinear representações paisagísticas que enaltecessem o orgulho identitário: mares circundados por
ostentosos portos, florestas exuberantes, pastos verdes ou campos férteis. A presença de pessoas
se manifestava de duas formas: através de homens e mulheres trabalhando, caminhando entre
árvores ou simplesmente descansando, com alguma modificação física no meio: um caminho,
uma trilha, uma ponte, uma casa, um moinho ou um cerco. Essas paisagens representavam um
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 328-345, 2022
Artigos
recorte do território através da visão subjetiva do pintor, compartilhada posteriormente com os
espectadores (URQUIJO, 2008b).
Na Grã-Bretanha, entre o final do século XVIII e o início do XIX, a tradição paisagística ganhou força através do estilo denominado pitoresco, que fazia alusão a naturezas carregadas de
conotações e significados. As imagens proporcionavam cenas do que era “apropriado” ou “de
bom gosto”, marcando ideias de “status” ou “civilização”. As imagens de plantações coloniais no
Caribe, na Austrália, no Canadá, na Nova Zelândia e na África do Sul procuravam evidenciar o
sentimento de superioridade inglesa, ao apresentar uma suposta autoridade natural sobre os
colonos e seus lugares. As ideias paisagísticas se envolveram com os intenções imperialistas europeias: a colonização foi, ao mesmo tempo, uma naturalização e uma legitimação da paisagem
(Nash, 1999). Nesse contexto colonialista, as imagens paisagísticas eram utilizadas para marcar
a autoridade inglesa nos novos lugares conquistados, além de para enfatizar as diferenças raciais
ou de gênero. Nos finais do século XIX, a imagem das paisagens coloniais mudou frente uma
postura de encontro com o “natural”: uma visão mais romântica e nostálgica das naturezas e
daqueles colonizados que originalmente nelas moravam.
Não obstante o anterior, o que agora se pode entender como sensibilidade paisagística
tem origem em antecedentes remotos e distantes às etimologias europeias. De acordo com Augustin Berque (1997), tal sensibilidade aparece na China, muito antes de tudo isso e de maneira
distante. Se é certo que em mandarim há várias palavras para se nomear paisagem, cada uma
delas expressa uma nuance específica. No entanto, o termo mais genérico e inclusivo é sanshui.
Relaciona-se a uma filosofia taoísta e confucionista que alude à profunda inter-relação entre o
estético e o ético do meio natural. O termo é composto por duas palavras: san, “montanha”, e
shui, “água ou rio” e surge pela primeira vez na literatura no século IV, fazendo referência a uma
imagem moral que aviva a consciência por meio da contemplação da natureza. Quer dizer,
trata-se de um sentimento de contemplação do meio (qing), o que cria (wei) o belo (mei). Se a
natureza converte-se em algo belo ou agradável de ser visto é porque ela é vista como paisagem.
A sensibilidade sanshui passa à pintura que representa paisagens carregadas de yi: espírito. Mais
tarde, na China, surge uma aliança íntima entre pintura, poesia, caligrafia e interpretação paisagística dos lugares ou dos estudos dos sítios: o fengshui. Contudo, divergindo de Berque, não
se trata de encontrar a origem remota da perspectiva paisagística, mas mais especificamente
indagar como as distintas maneiras, formas ou modos pelos quais a humanidade, em sua própria
diversidade cultural e histórica, interagiu com suas naturezas imediatas. Além disso, podemos
vislumbrar indícios mais antigos do século IV chines. Por exemplo, em Eclesiastes, de Salomão,
e em vários outros provérbios (c. 979-930 a.C.) podem ser encontradas diferentes expressões
paisagísticas-ontológicas-literárias, extremamente interessantes:
Todos os rios vão ao mar, e o mar não se enche, novamente a água correrá pelos
rios. Cansarão de falar e não poderão dizer mais, mas o olho não se sacia de ver,
nem o ouvido de ouvir. O que foi voltará a ser, o que se fez se fará novamente.
Não há nada novo debaixo do sol” (ECLESIASTES, 1, 4-9) (cf. URQUIJO, 2008b).
Herdeiro da tradição chinesa, o conceito filosófico zofu-tokusui, japonês, que quer dizer
“armazenando o vento, consignando a água”, era uma espécie de geomancia, entre os séculos
VI ao VIII, pela qual se selecionava um lugar para um assentamento, levando em consideração
a configuração da montanha e dos rios e onde fluía a energia vital da terra vinculada à água.
Devendo tal lugar respeitar a relação intrínseca humanos-natureza, o povoado deveria, então,
apresentar montanhas em pelo menos três de seus lados, em função de abrigo (AGUILÓ, 1999).
Por outro lado, Tetsuro Watsuji (2006) apontou que o vocábulo japonês fûdo, composto pelos
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História e paisagem
ideogramas “vento” e “terra”, abarca uma área semântica que envolve características climáticas,
edafológicas, geológicas, de relevo, de fertilidade do solo e de configuração paisagística. No fundo
desse vocábulo, adivinha-se uma antiga cosmovisão que, como nos caracteres chineses sanshui,
336
percebe o ambiente natural como uma circunstância inevitável da vida humana.
Longe da Europa, da China e do Japão, no México pré-hispânico, o estabelecimento de
povoados era resultado de uma cuidadosa seleção do sítio, posterior a uma profunda observação
do comportamento ambiental, o que implicava assegurar a estabilidade de encostas e de fontes de abastecimento de água. As sociedades náuatles, do centro do México, recorreram, assim,
a formas específicas de paisagem que, além de funcionais, respondiam a critérios estéticos e
cosmogônicos. A fisiografia mais comum do período pós-clássico tardio – entre o ano de 1200 e
1521 –, consistia em uma espécie de ferradura ou circunvalação formada por colinas, em cujas
encostas localizavam-se os assentamentos, configurando certa ideia de “vasilha” protetora,
lembrando o útero da Mãe Terra. Funcionalmente, a fisiografia desta paisagem servia para a
captação de água, além de constituir um abrigo montanhoso que protegia de ventos, geadas,
inundações e incursões inimigas. Além disso, este tipo de paisagem, tipificado como rinconada ou xomulli, em náuatle, oferecia um horizonte montanhoso que permitia fixar referências
astronômicas para a determinação do calendário agrícola, climático e religioso (García, 2000).
O assentamento humano coordenado funcional e esteticamente com o meio recebeu o nome
náuatle de altepetl, “água-colina” – uma surpreendente coincidência com o sanshui chinês. Para
a seleção do lugar, as formas do relevo não só se configuravam como assento específico dos
altepeme – plural de altepetl –, mas também como uma invocação daqueles lugares providos de
memória e sacralidade. Na seleção do lugar de fundação, os povos daquelas latitudes estudavam
seu meio, sendo que o nome de cada localidade descrevia, com frequência, alguma característica
da paisagem, seja de sua flora, fauna, hidrografia ou orografia. Desse modo, os valores estéticos
e funcionais atribuídos à paisagem ficavam gravados na toponímia que perdura até os dias de
hoje (FERNÁNDEZ, 2006). Em outras latitudes, encontramos termos equivalentes ao de altepetl,
o que nos indica uma concepção paisagística de índole estética, geográfica, histórica e simbólica
equiparável, tais como o yucunduta (mixteco), o chuchu tsipi (totonaco) ou o an dehe nttoehe
(otomi), cuja tradução literal, em certos casos, é “água-colina”. Abundam outras palavras que,
embora não sejam traduções exatas, nelas subjazem a imagem da paisagem; por exemplo, o
nass (mixe-zoque), “terra ou solo”, ou o teklum (ch’ol), “árvore, terra” (FERNÁNDEZ, 2006; FERNÁNDEZ, 2007; URQUIJO, 2008b).
A apropriação científica da paisagem
No século XIX, o conceito de paisagem passa da visão pictórica e estética ao campo da
ciência e de sua própria lógica. A partir de então, é entendido como uma unidade geográfica
constituída intrinsecamente por elementos humanos e naturais. A pintura paisagística, os poemas
naturalistas, as crônicas e os relatos dos viajantes inspiram a concepção de um novo modo de se
aproximar do meio. São os primeiros frutos de certa modelização científica do espaço, diferente
do processo de representação estética. Os artistas – pintores, poetas, músicos ou jardineiros –, não
captam necessariamente as paisagens observadas em campo, mas tomam delas o que gostam
ou percebem, representando suas visões sobre o mundo (URQUIJO, 2008b; URQUIJO, 2008a).
Em troca, comumente os cientistas objetivam mostrar a paisagem em suas especificidades, independentemente dos sentimentos do espectador. Ao cientista novecentista não interessavam
as aparências das coisas, mas as próprias coisas, objetivizadas, congeladas (FROLOVA, 2006).
Nesse momento fundante, os geógrafos, especialistas na análise do espaço, realizam construções
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Artigos
intelectuais em torno da paisagem, aparentemente contraditórias e subjetivas: a separação e a
ensamblagem de seus componentes. Frente ao objeto de observação, a visão analítica disseca
os diferentes elementos do meio, apoiando-se em dados da percepção. Logo, o pesquisador
geógrafo recompõe as partes, “devolve-lhe” a vida.
A passagem da perspectiva da arte à ciência tem sua origem no movimento romântico
alemão. O romantismo é um modo complexo e plural que implica, entre outros aspectos, modos
renovados de ver, pensar e sentir. A coluna vertebral do enfoque romântico carrega o ressurgimento da analogia, procedente do neoplatonismo renascentista e que sustenta uma visão
do universo como sistema de correspondências, em franca oposição às pretensões analíticas
e dissociadoras do racionalismo puro. Assim, o ser humano é participante do sistema de correspondências universais: a analogia é “o espelho que permite refletir sua própria consciência
individual. Qualquer coisa se corresponde com outra, cada coisa pode se ver como metáfora de
outra” (ORTEGA, 1987, p. 32). Diante da paisagem, o sujeito romântico contempla, sente e imagina, mas também observa, pensa e raciocina. O que frequentemente tendem a separar-se e até
opor-se – ciência e cultura –, aqui aparece imbricado. Desta maneira, modifica-se a sensibilidade
diante dos fatores geográficos e surgem novas formas de percepção e compreensão do espaço,
ao mesmo tempo constituindo um novo modo de aproximação à natureza. O romantismo alemão
influencia, de forma significativa, as propostas de Alexander von Humboldt e Karl Ritter, ambos
personagens pioneiros da geografia moderna.
O barão de Humboldt formou seu pensamento paisagístico depois da abordagem dos
românticos germanos e franceses, o que o permitiu encontrar o equilíbrio das múltiplas conexões
da natureza. Entendeu, assim, a paisagem como uma unidade harmônica e monista de conteúdos físicos e simbólicos relacionados com a consciência do sujeito. Mas Humboldt também teria
entre suas leituras os racionalistas da época. Com essa bagagem, postulou que a objetividade
e a subjetividade fundiam-se na atitude de quem percebia o natural – por mais paradoxal que
nos possa parecer, hoje, era um racionalismo romântico – e, por vezes, eram tecidas as redes e
as conexões da realidade do mundo natural ou do Todo (URQUIJO, 2008b; URQUIJO, 2008a).
Para Humboldt, tentar decompor a paisagem em seus diversos elementos era um temor, pois
o caráter paisagístico dependia, em si, da simultaneidade de ideias e sentimentos que moviam
o observador; o poder da natureza se revelava justamente na conexão das emoções e dos fenômenos, só assim sendo possível contemplar essa cena imponente com uma visão holística.
Por sua vez, Karl Ritter afirmava que o ser humano era o que havia de mais importante a
conhecer na natureza, pois era sua perspectiva cognitiva que concedia à natureza sua essência,
proporcionando seus complexos significados. Justamente a visão humana permitia apreender a
existência e a significação das correspondências do Todo harmônico. Tal vocação à totalidade, na
tradição geográfica moderna pregada por Humboldt e Ritter, associou-se a uma epistemologia escassamente dogmática e disposta a conceber a ativa presença do sujeito que conhece – a subjetividade: “todos os direitos que o objetivismo lhe nega e o romantismo resgata” (ORTEGA, 1987:40-41).
No curso entre os séculos XIX e o XX, a geografia alemã desenvolveu a discussão em torno
das relações natureza-sociedade, em duas direções: como o ser humano modifica seu meio e
como o meio influencia o ser humano. O raciocínio geográfico alemão deu particular importância aos processos históricos nos quais as distintas sociedades modificavam seus entornos e
vice-versa, deixando no próprio terreno o registro das transformações. A porção territorial que
constituía a síntese do processo era o Landschaft, “paisagem”; a disciplina que o estudaria seria,
então, o Landschaftskunde, “conhecimento sobre a paisagem” (FERNÁNDEZ, 2006).
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História e paisagem
Otto Schlüter é reconhecido com um entre os primeiros teóricos da ciência da paisagem.
Para ele, a análise paisagísticas constituía o centro de qualquer investigação geográfica. Schlüter propôs a análise da fisionomia do meio em que interagiam os diferentes grupos humanos
338
por meio de uma morfologia da paisagem cultural. Apesar de tal premissa, e começando pelo
próprio Schuler, os geógrafos tiveram grandes dificuldades para incorporar os fatores sociais em
seus paradigmas teóricos; isso se devia a sua racionalidade positivista e, portanto, dualista. Alfred
Hettner, posteriormente, definiu a geografia como a ciência cronológica da superfície terrestre,
considerando o ser humano como um “pedaço se sua essência”. Contudo, e contraditoriamente,
Hettner classificou como categorias superficiais as divisões territoriais resultantes da intervenção
humana, como podem ser os marcos de fronteira, as províncias ou os estados (GÓMEZ, 1983). A
partir desse momento, começaram a se solidificar o binômio natureza-sociedade e as discussões
e propostas em torno da dita dualidade.
Nessas premissas do século XX, também se gestava um enfoque de sínteses, isto é, a geografia regional, como uma reação diante das propostas desintegradoras, tais como a ecologia,
postulada por Ernst Kaeckel, e a antropogeografia de Frederich Ratzel, que declarava uma ruptura
com a tradição naturalista em nome do “humanismo”. O percussor da geografia regional – e da
geografia humana do século XX –, foi o historiador francês Paul Vidal de la Blanche, seguidor dos
postulados humboldtianos e ritterianos. Vidal de la Blanche rechaçava o positivismo de Auguste
Comte, o determinismo geográfico e a descrição enciclopédica de lugares. O centro da disciplina
era, segundo sua consideração, enfrentar o aparente dilema das relações sociedade-natureza,
que vinha ganhando força graças à popularização das propostas de Ratzel. Vidal de la Blanche,
então, propôs estudar as comunidades rurais em seus meios naturais, posto que a interação
dinâmica dos componentes físicos e humanos – genres de vie, ou gêneros da vida – era o que
concedia particularidade à paisagem. O meio natural, argumentava, era o principal harmonizador
dos elementos sociais (URQUIJO, 2008b).
Um dos grandes expoentes do humanismo vidalino foi Jean Brunhes, discípulo de Vidal
de la Blanche. Desde o princípio, Brunhes promoveu a escola do possibilismo vidalino nas relações sociedade-meio. Seu interesse, contudo, mais se orientou a temas etnográficos e sociais
vinculados às raças, aos ciclos de trabalho e às enfermidades (BUTTIMER, 1980).
A bifurcação da paisagem
Apesar das boas tentativas da escola vidalina, a separação dos estudos sintéticos dos elementos biofísicos e socioculturais na geografia tornou-se iminente: a paisagem se fragmentou
em áreas de particularização e superespecialização. Ante à separação dos componentes sociais
e naturais, as tendências paisagísticas dirigiram-se ao papel dominante da geomorfologia, considerada por muitos especialistas o cimento de toda a geografia. Em tais condições, e com um
ambiente intelectual fortemente marcado pelo cartesianismo e pelo positivismo, a geografia
tornou-se setorial e deixou de lado algumas perspectivas básicas das ciências sociais e da nascente ecologia. Com relação à última, Arthur G. Tansley (1935) tentou propor, através do conceito
de ecossistema, a unidade ecológica básica, um instrumento de sistematização das diferentes
e múltiplas pesquisas naturalistas; no entanto, a ecologia consolidou-se como uma ciência unívoca cujo objetivo era puramente biocêntrico, incapaz de realizar o escrutínio global do meio
ambiente, reduzindo, a princípio, os fatos sociais a “fatores antrópicos”, ou melhor, mimetizou –os
conforme sua própria visão energética sobre o funcionamento da natureza (URQUIJO, 2008b;
URQUIJO, 2008a).
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Artigos
No contexto desta crise epistemológica, a “integralidade” da paisagem foi proposta de
maneiras muito distintas: como um conjunto de indicações elementares para o ordenamento
ecológico ou territorial – uso da terra –, como uma revisão metodológica – ecologia da paisagem
–, ou como uma construção teórica de balanços energéticos, frequentemente sustentados por
fórmulas matemáticas (FROLOVA, 2006). O caráter monista da paisagem foi se perdendo nos
diferentes campos de pesquisa – geografia, ecologia, biologia, arquitetura, antropologia, arqueologia –, assim separando os componentes socioculturais dos biofísicos. Como consequência, o
conceito variou segundo interesses particulares ou os objetivos das diversas pesquisas. A paisagem recebeu múltiplas definições e interpretações que podiam coincidir ou não com sua origem
monista. Em outras palavras, a ciência da paisagem que iniciou o século, em poucos anos estava
fragmentada: ao passo que se conduzia a análise da superfície terrestre, considerava-se o meio
como mero produto da intervenção antrópica (HARTSHORNE, 1939).
Particularmente na ecologia da paisagem enfatizou-se o enfoque biocêntrico, considerando a paisagem como um mosaico de ecótopos: ecossistemas concretos localizados em um
lugar definido, como células da paisagem. As unidades de classificação paisagística foram estabelecidas em escalas, desde a ecozona até o ecótopo (MATEO, 2002). A dinâmica da paisagem
passou a ser considerada, então, como o tecido por qual fluía a energia, os nutrientes minerais
e as espécies entre os ecossistemas (FORMAN, 1989). Tratava-se de uma geografia submetida
à ecologia, na qual a presença humana se limitava à capacidade funcional para o desenvolvimento de atividades socioeconômicas – complexo territorial produtivo. Os fatores perceptivos,
éticos e estéticos do meio não entravam nos interesses de muitos ecólogos e ecogeógrafos, por
se tratarem de considerações “subjetivas”. A partir da primeira década do século XX, e em face
da ambiguidade que a falta de consideração do “fator antrópico” gerava, começou-se a falar da
dimensão sociogeoecológica da paisagem, propondo-se a articulação entre uma tríade de categorias paisagísticas: paisagem natural, paisagem social e paisagem cultural (MATEO, 2002);
não obstante, isso ocorria independentemente do fato de que, em sua origem epistêmica, tal
tríade de paisagens era um só domínio ontológico.
Ao transcorrer os primeiros trinta anos do século XX, de forma paralela às propostas fragmentárias, emergiu uma potencial tendência a revincular os elementos paisagísticos, com especial atenção ao fator humano. Entre os primeiros estudiosos que pretenderam a reunificação,
sobressaiu o geógrafo estadunidense Carl O. Sauer que, através de seu Morfologia da paisagem
([1925] 1995), retomou as abordagens da tradição geográfica alemã e reconheceu a pertinência do conceito, defendendo-o para a geografia física como uma unidade espacial formada por
fenômenos interdependentes e considerando como tarefa do pesquisador encontrar a conexão
ou a ordem desses fenômenos (SAUER, 1995). Por outro lado, o geógrafo alemão Carl Troll introduziu o termo ecologia da paisagem (TROLL, [1938] 2003) ao âmbito científico com o qual
realizou a reavaliação do conceito, reconhecendo-o como uma unidade de espaço definida
pela atuação conjunta de três componentes principais: o mundo abiótico – físico-químico –, o
mundo biológico e o mundo humano. Assim se começava a gestar, ainda que lentamente, a
rearticulação científica de paisagem.
Até a metade do século XX, na França, a chamada Escola dos Annales, encabeçada por
Marc Bloch e Lucien Febvre, empreendeu uma série de estudos históricos que se vinculavam
aos fatores sociais e ambientais. As primeiras pesquisas com esse enfoque foram a História
rural francesa, de Bloch ([1931] 1976), e A terra e evolução humana, de Febvre (1925). Particularmente, os primeiros trabalhos de Bloch ressaltavam a ideia da uma paisagem atual que
permitia contemplar suas etapas anteriores mediante uma perspectiva de conjunto ou monista,
o que veio a ser um dos postulados da geografia retrospectiva (SANTOS, 2000). Porém, foi na
Pedro S. Urquijo Torres e Narciso Barrera Bassols
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História e paisagem
segunda geração dos Anales que uma geografia histórica, baseada em um modelo ecológico
e sociocultural, foi consolidada. Tal proposta foi fundamentada por Fernand Braudel em sua
magna obra O Mediterrâneo e o mundo mediterrâneo na época de Felipe II (BRAUDEL, [1949]
340
1997). Braudel propôs estudos históricos em três tempos e escalas distintas: a longa duração,
o tempo médio ou conjuntura, e o tempo curto ou acontecimento. Os últimos processos temporais eram considerados pelo próprio Braudel como meras “espumas” do imenso oceano da
história. Em troca, os estudos de processos de longa duração permitiam reconhecer as ações e
os pensamentos dos seres humanos diante das forças da natureza. Não se tratava de determinar
a supremacia do meio sobre os seres humanos – como fazia o determinismo geográfico –, nem
vice-versa; tratava-se de ponderar o valor histórico da paisagem no complexo devir da humanidade. A proposta braudeliana teve seguidores importantes, que retomaram suas abordagens
para realizar novas propostas, especificamente no campo da geografia histórica ou da história
ambiental, tais como François Chevalier ([1956] 1999) ou Emmanuel Le Roy Ladurie (1977).
Neste contexto, cresceu o interesse por conhecer como os diversos povos se relacionavam
com seu entorno. Assim, surgiram trabalhos fundamentais de pesquisadores aprofundados na
temática, como Gordon Childe, Claude Lévi-Strauss, Mircea Eliade, Alfred Crosby, Karl Butzer e
Philippe Descola, entre os mais destacados. O último, Descola (2001), insistiu no fato de que
várias sociedades não separam o natural do cultural, evidenciando a referida separação como
uma classificação tipicamente ocidental.
Em princípio da década de 1990, com as incertezas dos paradigmas da pós-modernidade
e as influências dos debates dualistas e monistas da antropologia ecológica, a chamada Nova
Geografia Cultural formulou seus objetivos, considerando não só as experiencias materiais e imateriais da cultura, mas também, e de forma significativa, as características naturais da paisagem.
Além de “sacudir” os geógrafos, retirando-os de sua aparente letargia, e propiciar o interesse
geográfico pela alteridade, a virada cultural da geografia culminou em um convite aberto aos
cientistas sociais a questionar a suposta dicotomia natureza-sociedade (CLAVAL, 1995; FERNÁNDEZ, 2005; FERNÁNDEZ, 2006). As percepções e as avaliações éticas, estéticas ou simbólicas
da paisagem foram consideradas, desde então, como parte fundamental da pesquisa, pois seu
escrutínio permitia conhecer sob quais critérios as diferentes sociedades evocavam, projetavam
ou transformavam naturezas (VERAS, 1995).
Ante concepções extremas de cidades artificiais ou materializadas e as naturezas selvagens
ou intocadas, o geógrafo Yi-Fu Tuan (2003) propôs refletir sobre as paisagens-meio –natureza
com intervenções de coletividades humanas –, entendidas como obras culturais, mas às quais
não se renega as raízes do mundo orgânico. Quer dizer, Tuan promovia a ideia, justamente, de
um meio epistêmico.
Apesar dos esforços (re)integradores feitos por especialistas de diversos e diferentes campos científicos, há ao menos três enfoques paisagísticos: a ecologia da paisagem – fundamentalmente de viés biológico ou ecossistemático (FORMAN, 1986) –, a geoecologia da paisagem
– inserida na geografia física e na ecogeografia (TRICART, 1965; SOCHAVA, 1972; MATEO, 2002)
– e a geografia cultural da paisagem – focada na intervenção e percepção humana sobre o
meio (CRANG, 1998; BRUNET, 2002; FERNÁNDEZ, 2006). O desafio dos estudos paisagísticos
consiste, então, em explorar a paisagem sem adjetivos, mas considerando seu caráter monista,
polissêmico e multivalente.
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Reflexões finais
Independentemente dos diferentes campos disciplinares, sem intenções de homogeneização de pensamentos, à luz do rompimento com as visões fragmentadas da realidade, a
paisagem deve ser entendida como um conceito geográfico holístico. Desta maneira, é possível
reconhecer as múltiplas influências que exercem os processos naturais e humanos – separados
somente como artifícios científicos – na moldagem histórica. O presente desafio está na busca
das formas mais adequadas que podem impedir sua fragmentação. As investigações híbridas
ambientais não poderão superar sua parcialidade enquanto continuarem refletindo em termos
de separação, contradição e confrontação entre fatos naturais e sociais (BERTRAND, 2006).
Por outro lado, as práticas interdisciplinares, institucionais ou espontâneas, mostraram
suas próprias limitações, tanto teóricas quanto metodológicas, gerando discursos confusos e
conceitos instáveis. Apesar disso, a interdisciplinaridade já é um exercício predominante e sem
volta. No entanto, o olhar ao passado disciplinar, no caso da geografia, pode nos permitir a fabricação de elementos historicamente definidos, que por sua vez nos permitam mover com maior
segurança entre os limites incertos e difusos dos campos híbridos. Nesse sentido, a paisagem é
um conceito mais que pertinente e atual.
Como vimos, a paisagem não é a soma de elementos geográficos dispersos; é uma unidade
geográfica holística, definida mediante um processo homeostático de seus componentes biofísicos e socioculturais. O desafio, agora, é superar o problema metodológico que esta concepção
carrega ao mesmo tempo em sua dinâmica, sua tipologia e sua cartografia. Mas talvez o maior
desafio esteja na reconsideração da perspectiva monista defendidas por algumas sociedades
não ocidentais, o que poderia nos afastar dessa falsa dicotomia buscada pelo pensamento hegemônico e que, hoje, em nossas instituições acadêmicas, recorre aos caminhos cotidianos do
laboratório. E, nessa mesma desconstrução em relação ao mesmo mundo em que vivemos e
padecemos, o conceito de paisagem pode ser esclarecedor, não só para quem o estuda, mas
também, e fundamentalmente, para quem dele padece. Como unidade monista territorializada,
a paisagem requer ser visualizada sob a ótica de quem a produz e reproduz, a inova, a sonha e
imagina, a goza e sofre diante dela – os locais –, e daqueles que a estudam ou interpretam de
fora ou daqueles que tentam dominá-la sem fazer parte dela (URQUIJO, 2008a).
A discussão em torno dos alcances e limites da perspectiva da paisagem está crescendo e está aberta aos diferentes especialistas que veem nela um instrumento útil de análise. A
paisagem é, finalmente, um palimpsesto interessante, que mostra a intervenção cultural de
distintas coletividades humanas no devir; a imposição e superimposição de avaliações éticas e
conotações estéticas no meio.
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345
Paisagens do Sul,
amefricanas e ch’ixis
1
Leo Name
¡DALE!, PPG-AU / FAUFBA
1 Talvez por isso um pouco mais longo do que gostaria, este artigo é ao mesmo tempo síntese parcial, desdobramento e desvio da pesquisa “Sentipensar com a encruzilhada: giro decolonial, paisagens e paisagismos do Sul”, conduzida no âmbito de meu estágio pós-doutoral entre setembro de 2019 e agosto de 2020
junto ao Laboratório Urbano, vinculado ao Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo da
Universidade Federal da Bahia (PPG-AU/FAUFBA). Agradeço às pesquisadoras e aos pesquisadores deste
grupo de pesquisa pelas trocas intelectuais – em especial, Paola Berenstein Jacques, então minha supervisora, Dilton Lopes e Ramon Martins. Também sou muito grato às generosíssimas leituras do texto em
sua versão inicial pelas urbanistas Mayara Araújo (FAUFBA) e Adriana Caúla (EAU-UFF), cujos prestimosos
comentários auxiliaram no seu desenho final.
Paisagens do Sul, amefricanas e ch’ixis
Resumo
Confrontando eurocentrismos e ocularcentrismos inerentes às concepções mais usuais da paisagem por intelectuais do Norte, insiro-a no debate que exige epistemologias, conhecimentos, e conceitos do Sul, sobre o Sul, a partir do Sul e para o Sul, tendo em conta dimensões de
gênero, raça, etnicidade e lugar. Levo a discussão para o contexto latino-americano, estabelecendo conversas com a afro-brasileira Lélia Gonzalez, a aimará e a boliviana Silvia Rivera e seus
conceitos de “amefricanidade” e “chi’ixi” que reinterpretam as narrativas sobre aculturação e
mestiçagem. Além disso, esboço três inflexões destas teorizações à paisagem latino-americana.
Palavras-chave: paisagem; Sul; amefricanidade; ch’ixi; América Latina.
Paisajes del Sur, amefricanos y ch’ixis
Resumen
En confrontación con los eurocentrismos y ocularcentrismos inherentes a las concepciones
más comunes del paisaje por parte de intelectuales del Norte, inserto el paisaje en el debate
que demanda epistemologías, conocimientos y conceptos del Sur, sobre el Sur, para el Sur y
hacia el Sur, teniendo en cuenta dimensiones de género, raza, etnia y lugar. Llevo la discusión
al contexto latinoamericano, estableciendo una conversación con la afrobrasileña Lélia Gonzalez, la aymara y boliviana Silvia Rivera y sus conceptos de “amefricanidad” y “chi’ixi” que
reinterpretan las narrativas sobre aculturación y mestizaje. Además, esbozo tres inflexiones de
estas teorizaciones hacia el paisaje latinoamericano.
Palabras clave: paisaje; Sur; amefricanidad; ch’ixi; América Latina.
Southern, Amefrican and ch’ixi landscapes
Abstract
In confrontation with the eurocentrisms and ocularcentrisms inherent in the most common
conceptions of landscape by intellectuals from the North, I insert the landscape into the debate that demands epistemologies, knowledges and concepts from the South, about the
South, for the South and towards the South, taking into account dimensions of gender, race,
ethnicity and place. I take the discussion to the Latin American context, establishing a conversation with the Afro-Brazilian Lélia Gonzalez, the Aymara and Bolivian Silvia Rivera and their
concepts of “Amefricanity” and “chi’ixi” that reinterpret the narratives about acculturation and
miscegenation. Moreover, I outline three inflections of these theories towards the Latin American landscape.
Keywords: landscape; South; Amefricanity; ch’ixi; Latin America.
Foto: Erivan de Jesus Santos Junior
348
Artigos
Para Margarida, a Gorda.
Prólogo
349
Porque o signo racial no corpo mestiço é nada mais nada menos
que indício que se esteve em uma determinada posição na história e
de que se pertence a uma paisagem: signo corporal lido como traço,
vestígio e pegada de um papel que se tem desempenhado, de um
enraizamento territorial e de um destino particular nos eventos que
se sucederam nessa paisagem que é o nosso solo geopolítico.
Rita Segato
(2013) 2021a, p. 263, destaques no original.
Assumindo todos os riscos de simplificação, permito-me dizer que são muitos os escritos
acadêmicos inclinados a reduzir a paisagem a dois enunciados relativamente complementares:
(1) uma materialização das ações humanas sobre o espaço, na qual diferentes grupos culturais
imprimem marcas específicas; (2) uma invenção europeia derivada de percepções e preocupações europeias, que vem a ser um modo de ver o espaço de que usualmente desdobram
representações pictóricas.2
Tal literatura mantém adesão a certos privilégios de enunciação do Norte e, por isso, muitas
vezes desconsidera os vínculos da ideia de paisagem com a colonização de terras, naturezas e
corpos além-mar, aos quais foram direcionados tropos de exotismo, inferioridade e atraso; e a
existência de ideações semelhantes em outras culturas, tempos, lugares e comunidades – paisagens com outros nomes, por assim dizer.3 É verdade que as últimas décadas do século XX testemunharam uma virada linguística da geografia cultural anglófona4 que acionou a metáfora do
texto para entender a paisagem como um palimpsesto – constructo social escrito coletivamente
e lido conjuntural e culturalmente. Nem por isso, pois, foram superados o entendimento da paisagem como um objeto a priori, cuja realidade é decifrada pelo olhar; as dicotomias essência/
aparência, natureza/cultura, conotação/denotação e produção/representação; e a desatenção a
que compõem estas paisagens diferentes corpos e seres que, por sua vez, permanentemente
realizam interações5 intra ou interespécies .
Atentando aos processos (não obrigatoriamente visuais ou visíveis) que desenham a paisagem e ante à grande quantidade de revisões das literaturas anglófona e francófona a seu
respeito,6 meu propósito, aqui, é apenas ampliar os sentidos do conceito: cotejando-o com os
2 Entre muitos escritos nesta direção, destacam-se: Avocat (1982); Collot (1986); Cohen (1987); Meinig ([1976]
2002); Cosgrove (2004); Fernández-Christlieb e Garza (2006); Sauer ([1925] 2007). Bem mais esporádicas são
as teorizações que consideram sentidos humanos que não a visão na apreensão da paisagem, como as de
Porteous (1985), Smith (1994) e Garrido e Urquijo (2022); as dimensões fenomenológicas, tais quais em Holzer
(1997) e Tuan ([1979] 2005); ou geobiofísicas, como em Bertrand ([1968] 2004) e Troll ([1950] 2007).
3 Cf. Berque (1989); Martins (2001); Cosgrove (2003); Fernández-Christlieb (2015); Ronai ([1977] 2015). Barriendos
([2011] 2019); Gutiérrez ([2015] 2020).
4 Ver, por exemplo: Cosgrove (1985); Cosgrove e Daniels (1988); Duncan e Duncan (1988); Duncan (1990); Barnes e Duncan (1992); Duncan e Ley (1993).
5 Cf. Monada e Södeström ([1993] 2004).
6 Dentre as muitas revisões do conceito de paisagem, ver: Schier (2003); Claval (2004); Vitte (2007); Name
(2010); Urquijo e Bocco (2011).
Leo Name
Paisagens do Sul, amefricanas e ch’ixis
debates acadêmicos sobre a necessidade de teorizações e epistemologias do Sul, sobre o Sul, a
partir do Sul e para o Sul7 e que dão importância a dimensões de gênero, raça, classe, etnicidade
e lugar; e, mais especificamente, situando-o na América Latina.
350
Assim, na próxima seção, farei a caracterização do Sul como noção acionada tanto em âmbitos das relações internacionais quanto da geopolítica do conhecimento. Depois, estabelecerei
conversas com a historiadora, geógrafa, filósofa e antropóloga afro-brasileira Lélia Gonzalez e
com a socióloga e historiadora aimará e boliviana Silvia Rivera, de modo a levar o debate para
os contextos latino-americanos de que emergiram seus enunciados situados8 de dimensões
político-culturais e de gênero e que redefinem a aculturação e a mestiçagem: a amefricanidade
e o ch’ixi. Por fim, na última seção, tais teorizações me inspirarão a esboçar três inflexões à paisagem latino-americana, então entendida como: (1) arranjo complexo e contraditório, eivado
pelos legados do colonialismo, cujas dimensões são ao mesmo tempo naturais e culturais, materiais e espirituais e de diferentes matrizes etnorraciais; (2) resultado do trabalho coletivo, não
só daquele relacionado ao modo de produção e à exploração por agentes hegemônicos, mas
também de práticas cotidianas geo-historicamente levadas a cabo por grupos e comunidades
minoritarizados, em que pesam dimensões de classe, etnia, raça, lugar e gênero; (3) conjunto
variado de modos de organização e ocupação do espaço, em que contam a ação e a interação
destes grupos e comunidades em sua reinterpretação, recombinação e reinvenção cotidianas
das heranças de matrizes etnorraciais, em especial as africanas e ameríndias.
Sul
A ideia de Sul, de início, foi utilizada em fóruns formais de relações internacionais com certo
caráter contra-hegemônico: a Conferência de Bandung (1955), o Movimento dos Não Alinhados
(1961) e a Conferência Tricontinental em Cuba (1966). Mais tarde, figurou em documentos de
instituições de maior preponderância geopolítica, como o Banco Mundial e a Organização das
Nações Unidas, respectivamente desde as décadas de 1980 e 2000. Entendido nesse contexto, o
Sul relaciona-se a terminologias anteriores, como “Terceiro Mundo” e “países subdesenvolvidos”.9
Difere delas, porém, por muito menos designar atraso e muito mais uma identidade subalterna
politicamente autoconsciente, acionada por países e grupos de passado colonial em busca por
coesão e colaboração mútua; e, também, por sua afinação com as resistências aos apologéticos
discursos contemporâneos sobre a globalização: o Sul até pode ser global, mas a partir dele não
se prega homogeneização.10
7 O sociólogo brasileiro Marcelo Rosa (2014; 2015; 2018), cujos argumentos embasam parte dos meus, é um
dos cientistas sociais mais atentos às acepções do Sul, assinalando que se trata de uma noção ainda em disputa. Já há teorizações sobre o urbano a partir do Sul, como as da indiana Ananya Roy (2011), do sul-africano
Alan Mabin (2015) e do brasileiro Thiago Canettieri (2021), mas a paisagem não tem sido “suleada”.
8 Tendo como base os “conhecimentos situados” da bióloga estadunidense Donna Haraway ([1988] 1995) e o
entendimento do filósofo francês Michel Foucault ([1968] 2008) de que “enunciados” põem em relação estruturas, unidades e acontecimentos discursivos que são ou não definidos, possibilitados e autorizados por um
lugar institucional, os “enunciados situados” articulam uma combinação de dimensões espaciais relacionadas
a gênero, classe, raça e etnicidade; e concatenam interpretações, narrativas e discursos geo-historicamente
dispersos que as abarcam. Estão alinhados ao debate geográfico que têm as escalas como constructos sociopolíticos que inter-relacionam processos a diferentes redes e espaciotemporalidades. Assim, a opção por um
enunciado situado e/ou uma escala necessariamente provoca a visibilidade de alguns grupos, fenômenos e
territórios e a invisibilidade de outros. Sobre a noção de enunciados situados, ver Name (2020a; 2022). Sobre
escalas, cf. Egler (1990), Castro ([1995] 2001), Mosquera-Vallejo (2020) e Valenzuela (2021).
9 Os discursos sobre o Terceiro Mundo e o subdesenvolvimento, de início por nações e grupos hegemônicos
e depois reinterpretados pela resistência subalterna, são analisados por Escobar (1995).
10 Sobre a ideia de Sul Global, ver: Dirlik (2007); Dados e Connel (2012); Ballestrin (2020).
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 346-373, 2022
Artigos
No traslado deste debate geopolítico às trincheiras acadêmicas, acusa-se que muito do
que chamamos de conhecimento, teoria e epistemologia vem do Norte, tem como referência o
Norte, o reverencia ou a ele se curva, sendo necessárias resistências a partir do Sul.
Destaco, aqui, três abordagens.
351
A primeira delas compreende o Sul como um tipo singular de pensamento social e posição
intelectual, tendo como a mais proeminente intérprete Raewyn Connel.11 A socióloga australiana
assinala o quanto os polos hegemônicos de produção de conhecimento, quase sempre localizados no Norte, poucas vezes se dispõem a dialogar – de forma equitativa! – com quem pesquisa
no Sul, causa e efeito do pouco que questionam a injusta divisão internacional do trabalho
intelectual.12 Além disso, apresenta um cuidadoso levantamento de pesquisas, metodologias,
conceitos e temas que têm recebido mais atenção no Sul, entendendo-os como estratégias para
a emergência de realidades-outras que escapem às teorizações mais ao Norte; e para que, na
busca por mais simetria, possam servir à ampliação de diálogo, apoio e parceria entre intelectuais e instituições que não estejam nos grandes centros de saber e poder, mas que compõem
ou podem tornar-se outros “centros” – distantes, distintos e à margem do que normalmente
entendemos como centro e centralidade.13
Tal explicação é bem próxima de uma segunda interpretação do Sul: aquela que, de um
lado, afirma que o que está ausente, nas teorias, é produzido a partir de uma ativa desvalorização do diverso; e que, de outro, critica uma razão ocidental totalizante que ao mesmo tempo
que direciona designações e classificações de inferioridade ou atraso a diferentes existências e
saberes, somente valida o que é particular ou local se for expansível a outros lugares.14 Dessas
constatações emerge, com maior destaque na parceria de Maria Paula Meneses e Boaventura de
Sousa Santos, o entendimento do Sul como um campo epistemológico em auxílio à reparação
de danos e impactos causados pelo capitalismo em sua relação colonial, patriarcal e racista com
o mundo. A antropóloga moçambicana e o teórico português da filosofia do direito sugerem
a ampliação simbólica de práticas, agências e agentes, de modo a tornar presente o que nas
teorias é indigno de existir tanto quanto possibilitar a emergência de modos-outros de ser e saber. Além disso, exigem uma atuação política em pesquisa que valorize os saberes esquecidos,
desconsiderados ou que resistiram e as condições de diálogo horizontal sobre o conhecimento.15
Por fim, uma terceira interpretação do Sul está em trabalhos como o dos antropólogos
Jean Comaroff e John Comaroff. A britânica e o sul-africano explicam que se no passado o Sul
sempre fora visto como mero fornecedor de matérias-primas, com paisagens "exóticas" e sociedades "atrasadas" para as quais o Norte vinha em “apoio”, no presente estaríamos diante da
possibilidade de subversão epistemológica: uma vez que o avanço capitalista progressivamente
tem trazido problemas antes impensáveis para o Norte, o Sul agora pode fornecer as chaves
alternativas decisivas para a reinterpretação e a transformação do mundo atual. Assim, o Sul é
entendido como o lócus da vanguarda e da sobrevivência criativas dos grupos desvalidos que
resistiram e ainda resistem a opressões e condições de desvantagem com improvisação, adaptação e imaginação.16
11 Cf. Connel (2007; [2014] 2017). Ver também: Rosa (2014, p. 53-57).
12 Nessa direção, merecem consulta os debates de Rivera (2018, p. 25-36) sobre “colonização intelectual” e os do
sociólogo malaio Syed Farid Alatas (2000; 2003) sobre “imperialismo acadêmico” e “dependência acadêmica”.
13 A produção de saberes por novas redes intelectuais que possam redesenhar o que concebemos como “centros
de conhecimento” também é abordada pela teórica argentina decolonial Zulma Palermo ([2013] 2014, p. 70).
14 Ver: Santos (2002); Tsing ([2012] 2019a).
15 Cf. Santos e Meneses (2009). Ver também: Rosa (2014, p. 45-48).
16 Cf. Comaroff e Comaroff ([2012] 2013). Ver também: Rosa (2014, p. 48-53).
Leo Name
Paisagens do Sul, amefricanas e ch’ixis
A essa altura do texto já não deve haver dúvidas, mas convém reforçar que, nessa literatura,
“Norte” e “Sul” não se reduzem a localizações geográficas, muito embora não deixem de sê-lo,
de todo: há suis no Norte e nortes no Sul. Tampouco se ignora que “as teorias viajam”,17 mas se
352
compreende que ideias e conceitos oriundos de determinados corpos, idiomas e localizações movem-se bem mais facilmente que outros.18 O Norte tem relação, sim, com o conjunto de escritos
e intelectuais que, sobretudo em certos países da Europa Ocidental e nos Estados Unidos, “sem
medos de trocadilhos, continua a ser o norte das narrativas e processos sociais”.19 No entanto,
refere-se também a certas literaturas e intelectualidades que em quaisquer lugares mantêm
sensibilidades e valorações eurocêntricas, androcêntricas e brancocêntricas. O Sul, por sua vez,
“é um subterfúgio, um ‘Outro’ para cada disposição dada a partir da matriz colonial de poder”20 e
sua enunciação considera a experiência que intelectuais de certos lugares – de mais abaixo, nos
mapas cartesianos – têm dos legados do colonialismo, do imperialismo e do neoliberalismo. Além
disso, promove desvios que possam levar a objetos, fenômenos, temas e metodologias locais,
várias vezes ignorados, não para estabelecer um novo modelo global, mas para considerar que as
realidades são plurais e desestabilizar as certezas de epistemologias pretensiosamente universais.
A epistemologia, sabemos, tem relação não só com o que se considera conhecimento
válido, mas também “como o conhecimento deve ser produzido, a quem deve ser autorizado”
e “como a presunção de credibilidade deve ser distribuída”.21 No caso específico do que hoje
chamamos de América Latina, um sem-número de intelectuais – Bolívar, Mariátegui, Freire,
Fals-Borda, Milton Santos ou o grupo da CEPAL, por exemplo – dialogou com os conhecimentos
hegemônicos, confrontando-os com os processos e os efeitos geo-históricos que produziram o
complexo cultural de dimensões materiais e representacionais próprias que é o subcontinente.
Mais recentemente, autoras e autores decoloniais deram peso maior às dimensões de gênero
e sobretudo de raça na explicação da heterogeneidade geo-histórico-estrutural da região; e,
assim, ecoaram um conjunto mais amplo de escritos que lhes antecederam – anticoloniais, feministas, pós-coloniais e subalternos –, críticos à perpetuidade dos legados do colonialismo, do
eurocentrismo e do patriarcado.22
No entanto, rumar ao Sul não seria também ir ao encontro do que, nos descaminhos da
geopolítica do conhecimento, também possa vir a tensionar as epistemologias contra-hegemônicas, por considerar o que nelas está ausente? Além disso, se “toda linguagem é epistêmica”,23
ao acionarmos modos-outros de pensar que sejam também modos-outros de enunciar – se
dissermos de outra maneira, inclusive por outras palavras, para de outra maneira conhecermos
–, não poderíamos acessar outras rotas, sensibilidades e paisagens mais orientadas ao Sul?
Lélia Gonzalez e Silvia Rivera podem nos ajudar a responder a tais questões a partir de
conceitos intelectualmente estimulantes.
17 In: Pereira (2015).
18 Cf. Name (2020b).
19 In: Rosa (2014, p. 53).
20 In: Gutiérrez ([2015] 2020, p. 273).
21 In: Alcoff ([2011] 2016, p. 133).
22 Cf. Aravecchia (2021); Name (2021).
23 In: Gonzalez ([1988] 2020e, p. 136).
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 346-373, 2022
Artigos
Améfrica e amefricanidade
Lélia de Andrade Gonzalez24 foi a penúltima de dezoito filhos e filhas de uma mãe de
ascendência indígena e empregada doméstica e um pai negro e ferroviário. Nasceu em 1935,
em Belo Horizonte, mas se considerava carioca devido a sua família ter migrado para a capital
fluminense em 1942. Ainda criança, foi “babá de filhinho de madame”, mas mesmo assim conseguiu se formar no Colégio Pedro II, fazer os bacharelados e as licenciaturas em História, Geografia e Filosofia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (àquele momento, Universidade
da Guanabara) e ingressar no mestrado em Comunicação da Universidade Federal do Rio de
Janeiro e no doutorado em Antropologia Social da Universidade de São Paulo. Já professora, criou
o primeiro curso institucional de Cultura Negra do país, na Escola de Artes Visuais do Parque
Lage, em 1976, e, dois anos depois, passou a lecionar na Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro, onde tornou-se a chefa do Departamento de Sociologia e Política somente em 1994
– mesmo ano de sua morte precoce. Em plena ditadura militar brasileira e ao longo do processo
de abertura política, participou, entre 1976 e 1978, do Instituto de Pesquisa das Culturas Negras;
foi uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado, em 1978, e do Coletivo de Mulheres
Negras Nzinga, em 1983; candidatou-se a deputada federal, em 1982, e estadual, quatro anos
depois; e, finalmente, foi do Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres, entre 1985 e 1989.
Em paralelo, foi da diretoria do Grêmio Recreativo de Arte Negra e Escola de Samba Quilombo,
localizado no bairro periférico de Fazenda Botafogo, autora de enredos de escolas de samba e
blocos de carnaval cariocas e jurada de concursos de beleza negra.
Desta militância antirracista e feminista, em consciente diálogo com manifestações da
cultura popular de matriz africana, floresceu sua produção acadêmica.
Os escritos de Gonzalez tinham como um de seus principais alicerces a psicanálise, mas
também se inseriam na tradição intelectual voltada à emancipação e à libertação africanas e
afrodiaspóricas – de W.E.B. Dubois a Frantz Fanon e, no Brasil, passando por Beatriz Nascimento, Clóvis Moura e Abdias Nascimento. Boa parte de seus textos apontava um contrassenso: a
convivência das condições de pobreza, precariedade habitacional, subemprego e violência cotidiana em que vivia – e ainda vive – grande parte da população brasileira afrodescendente com
os discursos sobre uma democracia racial tratada como traço distintivo de um país cordial. Para
a autora, esse mito seria fruto do “racismo por denegação” de elites econômicas e intelectuais
que, mesmo execrando o que é negro (e indígena) – e, por isso, tentando apagar suas contribuições mediante narrativas de aculturação e assimilação –, fingem que não há racismo no Brasil.
Para isso, são denegados os efeitos, no presente, da invasão e da colonização por povos ibéricos
(advindos, afinal, de um contexto de guerras raciais contra mouros, na Andaluzia),25 do genocídio
indígena e do tráfico e da escravização de pessoas africanas e afrodescendentes.
A autora também afrontou o ascendente feminismo branco-burguês no Brasil de sua
época ao dizer que um dos muitos sintomas da “neurose cultural” do racismo por denegação
à brasileira se apresentaria por diferentes níveis de opressão especificamente às mulheres negras. Refletiu sobre o deslocamento do significado original atribuído à mucama, no período
escravagista, rumo a sua partição contemporânea em três personagens. Se a dimensão de sua
24 Para o mapeamento de sua trajetória e seus conceitos, esmiuçados a partir desta seção, consultei vários textos assinados por Gonzalez ([1982] 2020a; [1982] 2020b; [1983] 2020c; [1983] 2020d; [1988] 2020e; [1988]
2020f; [1982] 2022; Gonzalez, Pereira e Hollanda, [1980] 2020; Gonzalez e Mulherio, [1982] 2020), além de análises e resenhas de sua obra, como as de Bairros (1999); Barreto (2005, p. 18-59; 2019), Cardoso (2019); Góes e
Lao-Montes (2019); Ratts e Rios (2019); Rios (2019); Rios, Nicolau de Paula e Lânes (2021, p. 72-76).
25 A esse respeito, cf. Grosfoguel (2012) e Name (2019).
Leo Name
353
Paisagens do Sul, amefricanas e ch’ixis
prestação de serviços sexuais, durante o período colonial em que era estuprada pelo senhor
branco, quase sempre é esquecida quando a personagem aparece em romances, filmes e telenovelas, é mantida quando é traduzida à mulata,26 tanto uma profissão quanto um produto de
354
exportação no Brasil. Quem tem a malemolência perturbadora permitida e desejada durante um
carnaval já a serviço do mito da harmonia racial várias vezes também é a empregada doméstica
de abastados lares branco-burgueses – aos quais só entra pela porta dos fundos, mesmo que
patrões adentrem as portas de seus quartinhos e corpanzis. Outras vezes, ela assume a função
da mãe preta que, segundo Gonzalez, ajudou na africanização da cultura brasileira ao passar
para as crianças sob seus cuidados as categorias, os conceitos e o “pretuguês”27 baseados na
matriz etnorracial de que é representante. Mesmo assim, usualmente ela tem sua inscrição e
sua importância arrancadas das histórias destas famílias e do próprio país.28
Contribuem para tais denegações e apagamentos muitos processos relacionados à linguagem. Gonzalez abraçou debates que apontavam que o campo semântico e a função enunciativa
da ideia de América Latina tratam a nossa latinidade como um dado ontológico. Afinal, embora
seja um país negro, porque inegavelmente entrelaçado a populações e legados africanos, a
exemplo de outras nações latino-americanas o Brasil foi fundado sob o véu do branqueamento.
A autora propôs, então, a “Améfrica” como uma unidade específica tramada no interior
de diferentes sociedades, de onde emerge um sistema etnogeográfico: a “amefricanidade”.29
Trata-se de uma categoria político-cultural que pretende estabelecer bases comuns críticas
à formação colonial dos países latino-americanos e desapoiar termos então emergentes que,
para a intelectual, nublavam a experiência geo-histórica do “Novo Mundo”: african-american
designando somente afrodescendentes from USA, por exemplo. A amefricanidade refere-se à
opressão e à exploração durante o colonialismo e a escravatura, mas diz respeito, sobretudo, à
solidariedade e à imaginação político-culturais entre grupos negros que menos replicaram a
África nas Américas e mais continuamente a reinventram – no cruzamento com as matrizes
europeias assentadas com a invasão e com as matrizes indígenas que muito antes já estavam
no subcontinente: os termos amefricanidade e Améfrica também aludem, afinal, a ameríndias
e ameríndios. Por outras palavras, Gonzalez deslocou a narrativa conservadora da aculturação,
como uma operação da cultura europeia para embranquecer e pretensamente elevar outras
culturas ditas primitivas, rumo à enunciação de um Brasil amefricano surgido da diáspora transatlântica de marcas indeléveis.
26 Se atualmente há quem rechace o uso das palavras “mulata” e “mulato” – por supostamente terem derivado de “mula” –, tal questão não estava posta no momento da escrita de Gonzalez, para quem “mulata”
se refere à passista em escolas de samba ou à dançarina de espetáculos em casas de shows e programas de
tevê, de peles negras de diferentes matizes.
27 Neologismo que Gonzalez utilizava para nomear certa africanização do português brasileiro.
28 Cf. Segato ([2013] 2021b).
29 Gonzalez inspirou-se em um texto do psicanalista MD Magno em que conceitos lacanianos eram cotejados com uma ideia da também psicanalista Betty Milan: a de que o Brasil não pertence à América Latina,
mas a uma América Africana. Magno se referiu então à Améfrica Ladina e disse: “Supomos, o tempo todo,
que somos filhos de europeus. Chegaram os galegos, começando por Colombo, que meteu a mão na chamada América [...] Estou lançando a hipótese de que o Pai é Negro [...], a mãe pode ser Índia, e a Europeia
talvez só seja a outra. E o Europeu? Talvez ele seja o tio, se não for o corno. Estou dizendo que, talvez, a sintomática cultural brasileira decante em húmus africano. Por mais que encontre mil ingredientes, estou perguntando se é válido dizer que o Brasil não é América Latina, que é América-Africana, a cultura amefricana”.
In: Magno (1981, p. 14-15, destaques no original).
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Ch’ixi
Nascida em 1949, em La Paz, Silvia Rivera Cusicanqui30 tem sua trajetória militante relacionada a movimentos sindicais e anticoloniais indígenas da Bolívia – a que se incluem, no
passado, a adesão ao katarismo31 e, no presente, a discursos em favor da descriminalização de
cocaleros, à difusão de receitas com base na farinha obtida da folha de coca e ao fortalecimento
das redes para seu uso lícito. A atuação acadêmica de quem por vezes se diz sochóloga – socióloga e chola – está conectada à Oficina de História Oral Andina 32 que ela fundou, em 1983, no
curso de sociologia da Universidade Maior de San Andrés, de alunado de maioria aimará. Trata-se
de uma empreitada intelectual coletiva que se volta ao lado comunitário e anarquista das lutas
sociais, inclusive mapeando o papel dos grupos organizados de trabalhadoras bolivianas. Mais
ultimamente, Rivera vinha fazendo críticas ao recém-destituído governo de Evo Morales, acusando-o de ter cumprido uma agenda neoliberal desenvolvimentista; e ainda as faz a certos autores
e autoras decoloniais, de quem denuncia apropriações de conceitos indígenas sem o devido
crédito. Em contrapartida, levando em consideração o que ela chama de “teoria anticolonial a
partir do Sul” e inspirada por uma complexa constelação de intelectuais – Gayatri Spivak, Gloria
Anzaldúa, Mary Louise Pratt, Guamán Poma, René Zavaleta, Pablo González, Walter Benjamin e,
sobretudo, Frantz Fanon pela leitura de Fausto Reinaga –, ela vem oferecendo conceitos e ideias
que trazem dimensões das cosmologias aimará e quéchua para a compreensão do presente.
É destes posicionamentos que emerge o seu conceito de ch’ixi.
Em aimará, essa palavra nomeia certa tonalidade que de longe parece homogênea, mas
que de perto revela-se uma junção de pontos disformes de cores diferentes que se aglutinam
preservando cada unidade. O ch’ixi pode ser percebido na superfície manchada de certas rochas,
na pele escamosa e reluzente de uma serpente e tanto nas tramas de tecidos estampados quanto
nas cordas de atiradeiras produzidas por mulheres indígenas nos Andes.
A menção a tais tecidos e atiradeiras abre caminho para a intelectual nos informar que, em
aimará, não há palavra que descreva “trabalho” tal qual a noção abstrata das teorias marxistas
sobre o valor e a exploração capitalistas. Só há vocábulos para outras interações: manusear e
manejar as coisas e trocá-las por outras. Por isso, ela afirma que, em vários mundos ameríndios,
nem todo trabalho é exploração e nem toda troca ocorre no e para o mercado capitalista. A autora
vê a satanização do mercado e do trabalho, para certa intelectualidade à esquerda considerados capazes de pôr em risco a indigeneidade do próprio indígena, como mais uma das muitas
manifestações essencialistas sobre um “bom selvagem” ou “originário” aprisionado no passado
de uma idílica “economia natural”.
Rivera também faz referência aos tecidos de tantas cores e formas geométricas contrastantes para apresentar um princípio espacial aimará, o taypi: um centro de mediação do equilíbrio, que ordena simetrias, assimetrias e ritmos, pondo em convívio, no mesmo lugar, signos
e significados antagônicos. O exemplo das rochas, por sua vez, dada a sua condição furta-cor
derivar dos muitos estratos geológicos que ao longo de milênios foram sedimentados uns sobre
30 Sobre a trajetória político-acadêmica de Rivera e sua formulação do ch’ixi, abordadas a partir desta seção,
consultei: Rivera (2010; 2015; 2018); Rivera e Gago (2010); Claros (2016, p. 29-54); Grosfoguel (2016); Stocco (2018);
Gonçalves (2019, p. 67-91); Lânes (2019); Nadal (2019); Jácome, Kabalin e Leal (2021); Gago (2022).
31 Aludindo ao líder indígena Túpac Katari (1750-1781), o movimento emergiu no Altiplano boliviano no final
dos anos de 1960, como resultado de insurgências e organizações sindicais indígenas e da redefinição do
indianismo como um campo ideológico. Cf. Hashizume (2013); Betencourt (2016).
32 Cf. https://thoabolivia.wordpress.com.
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Paisagens do Sul, amefricanas e ch’ixis
os outros, traz a dimensão temporal à discussão. O ch’ixi, então, é um “conceito-metáfora” sobre tecer e sedimentar diferentes saberes e espaciotemporalidades e sobre tomar distância de
evolucionismos, dualismos, identidades homogêneas e “etnicidades de museu” acionados pelo
356
conhecimento hegemônico que hierarquiza as diferenças em vez de albergá-las.
Mais enfaticamente, o ch’ixi renova o debate latino-americano sobre a mestiçagem. O
devir colonial, iniciado com a tragédia da invasão e da colonização europeias e a que sucederam
estupros de mulheres indígenas, de fato legou uma população de diversidade etnorracial do
mesmo modo que danos irreparáveis (por exemplo, uma por várias vezes execrável elite latino-americana que valoriza culturas e fenótipos branco-europeus e despreza outras heranças, as
quais exige serem eliminadas, esquecidas ou embranquecidas). Outro legado do colonialismo
é um “duplo vínculo” indígena-ocidental, termo que Rivera toma emprestado de Spivak e de
estudos sobre esquizofrenia, entendendo tal expressão como a heterogeneidade geo-histórico-estrutural, cultural e sobretudo etnorracial da América Latina, mas tratada como anátema pela
branquitude – o que faz das populações ameríndias uma massa de pä chuymas.33
Mas Rivera pergunta: por que temos que enfrentar toda contradição como dualismo
paralisante e irredutível?
O ch’ixi pode tornar-se o avesso desta disjunção asfixiante. Tem potência, segundo a autora,
para friccionar o caráter contencioso destas diferenças aparentemente inconciliáveis em uma
“zona de contato”, ou “fronteiriça”,34 restituidora de uma unidade formada por formas múltiplas
e simultâneas de existência, resistência e imaginação. Celebrar o ch’ixi possibilitaria, então, ir na
direção de uma reinterpretação radical da mestiçagem em favor da diferença e da subalternidade e, logo, de quem e do que é popular e indígena.
Nessa direção, se na cosmologia aimará a serpente diversicolor é uma entidade que transita entre diferentes dimensões, é ao mesmo tempo masculina e feminina e pertence ao céu e
à terra,35 acioná-la como exemplo do que é ch’ixi serve para Rivera não só lembrar da coincidência entre materialidade e espiritualidade na grande maioria das cosmologias ameríndias, mas
também para afirmar que quem e o que é indígena pode, deve e na verdade já está a mover-se
entre mundos, fronteiras e códigos distintos e por noções-outras de modernidade, vanguarda
e cosmopolitismo.
33 A ideia de duplo vínculo está nos estudos psiquiátricos do britânico Gergory Bateson ([1972] 1987) e é também acionada em vários textos sobre a condição subalterna da pesquisadora indiana Gayatri Spivak ([1999]
2010; 2013). Trata da situação em que uma pessoa ou grupo recebem duas ou mais mensagens conflitantes,
sendo que a resposta a uma delas inviabiliza outras respostas às demais. Rivera chama a personalidade
aimará resultante deste conflito de pä chuyma, isto é, indecisa, com a alma dividida por duas ordens impossíveis de cumprir: ser indígena e boliviano ao mesmo tempo, ser originário e também acessar as benesses
da modernidade etc. O duplo vínculo assemelha-se à “dupla consciência” inerente a ser ao mesmo tempo
negro e estadunidense na obra de W.E.B. Dubois ([1903] 2021) – muitíssimo anterior, aliás –, mas Spivak e
Rivera parecem avançar mais na transcendência à condição opressiva.
34 Não é raro, também, que Rivera compare o duplo vínculo às dimensões culturais e etnorraciais atribuídas à “fronteira” por Gloria Anzaldúa ([1987] 2012), pesquisadora em linguística estadunidense e chicana; e à
“zona de contato” como definida pela linguista estadunidense Mary Louise Pratt ([1992] 1999, p. 27): “espaços
sociais onde culturas díspares se encontram, se chocam, se entrelaçam uma com a outra, frequentemente
em relações extremamente assimétricas de dominação e subordinação”.
35 Curiosamente, a cobra com as cores do arco-íris também é a forma como é descrito o orixá Oxumaré, no
candomblé do Brasil. Agradeço à pesquisadora Mayara Araújo por me apontar esta coincidência.
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Paisagens
Gonzalez e Rivera formularam conceitos orientados à dissolução de simplismos, eurocentrismos e essencialismos frequentes em enunciações sobre raça e identidade e no entendimento
de temporalidades e espacialidades em simultaneidade. Assim, redefiniram a aculturação e a
mestiçagem como tramas de etnicidades, espiritualidades e materialidades geo-historicamente
interconectadas e tensionadas entre si, porém as lendo em favor das matrizes não europeias,
subalternizadas. Améfrica e ch’ixi são unidades complexas que abrigam – e são – várias coisas
ao mesmo tempo;36 são enunciados situados em gênero, lugar e raça, intencionados a futuros
melhores em um horizonte latino-americano e do Sul.
Rumo a uma primeira inflexão à paisagem, tais ponderações vêm em auxílio a sua interpretação como unidade geo-histórica complexa e de várias coisas, concomitantemente resultada da negação e do festejo da diferença; e da coexistência do que é sobejado de disjunções
nefastas e do que brota de interações por resistência, sobrevivência e imaginação. É, também,
multiespécie;37 amontoado de diversas camadas espaciotemporais;38 composição que reúne
diferentes elementos heterogêneos;39 comunhão sólida, mas instável, de natureza e cultura;40
emaranhamento de ações humanas e não humanas entre si e umas com as outras.41
Nessa direção, tomemos como primeiro exemplo a paisagem da Praça da Constituição,
popularmente conhecida como Zócalo, e seu entorno na capital mexicana. Lá, em 1978, operários
de uma obra subterrânea de infraestrutura acharam a grande base circular de uma escultura
da deusa da lua Coyolxauhqui, originalmente assentada nas proximidades do Templo Maior do
que outrora fora Tenochtitlán. As escavações arqueológicas que abriram uma “clareira” em pleno centro histórico, logo convertida à atração turística, encontraram as ruínas desta e de outras
construções, mas fizeram com que mais de uma dezena de edifícios de diversas épocas e de
ao menos dois quarteirões das imediações fossem jogados abaixo – o que põe em discussão
se o valor de determinada paisagem do passado justificaria a destruição de outra, de período
posterior.42 Não se pode ignorar, porém, que o Zócalo e seu entorno derivam de interferências e
destruições. Por um lado, uma vez que essa praça tem seus limites bastante coincidentes com os
de outra que, no momento da invasão do início do século XVI, já havia ao sul do templo mexica
principal, não se trata de uma mera transferência de um modelo urbano espanhol, como afirma a historiografia eurocêntrica, mas uma sobreposição de elementos de uma longa tradição
mesoamericana com outros, da experiência ibérica, impostos pelos invasores.43 Por outro lado,
sabemos que colonizadores derrubaram edificações autóctones e com suas pedras ergueram
novas construções: não à toa, a Catedral Maior está no mesmo lugar onde era um espaço ce-
36 Faço o alerta, porém, que Améfrica e ch’ixi não são tais e quais o hibridismo cancliniano, já que não são
uma terceira coisa, totalmente nova e homogênea, resultada da mistura. Na verdade, relacionam-se à pujança de contradições, heterogeneidades, incoerências, rugosidades e impurezas dessa mistura. Também não
são meros equivalentes à antropofagia oswaldiana, pois não se limitam às artes, não aderem a um conceito
uniforme de cultura nacional e muito menos naturalizam superioridades à cultura letrada e à figura viril e
patriarcal do autor. Cf. García Canclini ([1995] 1998); Andrade ([1928] 1990); León ([2012] 2019, p. 61, nota n. 3).
37 Cf. Tsing ([2015] 2019b, p. 57).
38 Ver: Haraway (2016).
39 Cf. Latour (2010, p. 473).
40 Ver: Urquijo e Barrera (2009, p. 230-231).
41 Cf. Prominski (2018).
42 Ver: Nery e Baeta (2022).
43 Ver: Salvat (2021).
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Paisagens do Sul, amefricanas e ch’ixis
rimonial adjacente ao Templo Maior – o mesmo que, séculos depois, foi resgatado pela classe
trabalhadora mexicana das profundezas da história e do solo, voltando a habitar o presente para
expor feridas coloniais em larga medida incuráveis. Não obstante, o Zócalo é constantemente
358
tomado por uma cultura popular que tem nessa catedral um dos epicentros de uma espiritualidade que não é nem do catolicismo dominante nem da idolatria a divindades ameríndias, mas
da sua mistura transcendente: o guadalupanismo.44
Esta energia popular também se manifesta na globalização vinda de baixo45 relacionada
ao “tudo junto e misturado” de feiras e mercados latino-americanos. A Feira 16 de Julho, em
El Alto, na Bolívia, por exemplo, estende cerca de dez mil pontos de venda por entre duzentas
quadras. Se a maioria de comerciantes, lá, é de aimarás, quéchuas e seus descendentes que migraram de áreas rurais para a cidade, os produtos são bem mais do que o tipicamente andino:
há, por certo, itens de couro ou lã de lhama, mas também toda sorte de alimentos, eletrônicos,
vestuários, materiais de construção, insumos da indústria, ferramentas e maquinários – inclusive
importados, piratas ou de contrabando. Em meio à aparente desordem, são mantidos o princípio
da inserção de música e dança ao longo do trabalho a ser feito com alegria e a fusão de cultos
à Pacha Mama e à Virgem de Copacabana, além de práticas e significados de reciprocidade e
solidariedade das cosmologias ameríndias. Outro exemplo é o chamado polo Saara,46 no centro
da cidade do Rio de Janeiro. Nas onze ruas de predominante casario eclético do século XIX
e do início do XX, no meio do qual se espremem três igrejas católicas, há mais de mil lojas – a
maioria de famílias de uma primeira imigração das diásporas judaica e árabe e de uma outra,
mais recente, de coreanos. Ali, um público de vários tipos e origens sociais busca artigos religiosos (da umbanda, do candomblé e do catolicismo), grãos e especiarias, brinquedos, plásticos,
bijuterias, tecidos e vestuários anunciados em autofalantes ruidosos; e fantasias e adereços de
carnaval, uniformes e materiais escolares, enfeites para a Copa do Mundo e artigos natalinos que
se alternam conforme o avanço do calendário. Tais mesclas de matrizes culturais e etnorraciais
em meio a cruzamentos entre pessoas, microeconomias locais e redes de produtos e capitais
transnacionais também estão nas paisagens de outros mercados e feiras na América Latina: São
Joaquim, em Salvador, ou La Salada, em Buenos Aires, por exemplo.47
Do mesmo modo, promovem justaposições o candomblé e a umbanda, o vodun e a santería em várias paisagens latino-americanas rurais, urbanas e rurbanas. Não somente devido à
dispersão de seus templos de matriz africana (que ainda hoje resistem à perseguição, à destruição
e ao deslocamento forçado), mas também pela extensão dos rituais destas religiões a cachoeiras,
mares, lagoas, rios, matas, montanhas, cemitérios e encruzilhadas.48 Na paisagem de Salvador, na
Bahia, por exemplo, despontam fitas brancas amarradas em árvores de espaços públicos, jardins
e quintais, de significados a depender da nação do candomblé (jejê, ketu, angola etc.), além de
canteiros em que se plantam espécies de certo paisagismo dos orixás (relacionado a rituais com
ervas e ao que cada entidade “come”); estátuas de Iemanjá e Colombo convivem lado a lado em
uma praça; e o acarajé é tanto uma “comida de santo” quanto o quitute que, em pontos turísticos
e boêmios, é vendido em quiosques e tabuleiros de baianas “à caráter” – as mesmas figuras que,
na festa em devoção ao Senhor do Bonfim (Jesus Cristo, que no sincretismo torna-se Oxalá) fazem
44 Cf. Echeverría (2010).
45 Cf. Santos ([2000] 2008).
46 Sigla para Sociedade de Amigos das Adjacências da Rua da Alfândega. Cf. https://polosaara.com.br.
47 Sobre o Saara, ver: Blyth (1991); Cunha (2010); Valim, Veiga e Cunha (2011). Respectivamente a respeito
das feiras 16 de Julho, de São Joaquim e La Salada, ver: Yampara, Mamani e Calancha (2007); Souza (2010) e
Novaes (2013); e Gago (2014).
48 Cf. Farrés, Matarán e Avello (2015); Moassab (2021); Velame (2022, p. 392-405).
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 346-373, 2022
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a lavagem das escadarias de um templo católico. A paisagem de Salvador, então, é mais que
urbana: sem abrir mão do catolicismo, é urbanda e com diferentes candomblexidades. Contudo,
ao passo que as práticas destas religiões de matriz africana projetam-se para fora dos terreiros,
ao mesmo tempo são tomadas por processos de dessacralização, estetização, mercantilização,
turistificação e espetacularização.49
Em sentido semelhante, Rivera nos lembra que as paisagens de algumas cidades latino-americanas são urbandinas.50 Assim como as afrodiaspóricas, as culturas aimará, quéchua,
amazônica e guarani não estão isoladas no passado ou rendidas ao capitalismo e à modernidade,
mas envolvidas em um dia a dia de processos e negociações necessariamente contraditórios51 –
no exemplo da sochóloga, entre o que é tido como “andino” e como “urbano”, deixando marcas
na paisagem que vão de tambos52 e casonas53 a bircholas.54 Mesmo assim, não deixam de estar
sujeitas ao branqueamento e à exotização. A respeito de um projeto de urbanização para uma
rua em La Paz que suprimiu vários elementos da paisagem, ela disse:
a rua Illampu está tomada por agências turísticas que oferecem viagens de
aventura às selvas e aos salares para observar o selvagem ou experimentar o
inóspito. Nos pisos intermediários, os hotéis se equiparam para todos os bolsos
e, nos superiores, foram construídos apartamentos para as camadas médias
arrivistas, que marcam seus signos de distinção no consumo ostentoso e na
figura da “doméstica”, ou trabalhadora do lar, a quem recolhem em “quartos
mais ou menos para pessoas mais ou menos”. A modernidade de fachada esconde a reprodução de velhas lógicas que, além disso, pesam como má consciência cultural, já que seus habitantes costumam dançar com chamativos trajes indígenas nas “entradas folclóricas” [grupos de dança “típica”] que passam
por essa rua rumo ao centro da cidade.55
A figura da empregada doméstica é evocada seja por Gonzalez, seja por Rivera, para reflexões sobre trabalho e herança. Por isso, pode nos auxiliar em uma segunda inflexão à paisagem,
fazendo-nos ir um pouco mais além de seu entendimento como mero efeito de um trabalho tão
somente atado às mais perversas dimensões globais do modo de produção capitalista.56 Afinal,
há paisagens que estão vinculadas a serviços e atividades mais cotidianos e circunstanciais –
obviamente relacionados à classe, mas também a gênero, raça, etnicidade e lugar.
De fato, nas cidades latino-americanas, erguem-se desde edifícios como os da rua Illampu
aos arranha-céus corporativos paulistanos, turistificam-se paisagens para a recreação consumista
e revitalizam-se centros antigos para circuitos boêmios, gastronômicos e artísticos restritivamente
elitistas; ao mesmo tempo, são muitas as mulheres de ascendência africana ou ameríndia que
49 Ver, entre outros: Velame (2009); Évora (2015); Ramos Penha (2016); Name e Mambuzzi (2019); Veríssimo
e Santos (2019).
50 Urbandino é um termo inventado pelo escritor e poeta boliviano Willy Camacho para dissolver a dicotomia que opõe um mundo urbano a outro, natural e de “originários”.
51 Cf. Anthias (2016).
52 Postos de parada em caminhos pré-hispânicos onde os viajantes descansavam e trocavam produtos e
conhecimentos. Foram incorporados ao sistema colonial e, na capital boliviana, eram de grandes tamanhos
e feitos em adobe, por muito tempo tendo resistido na paisagem.
53 Palacetes urbanos erguidos pela elite comercial indígena e mestiça dos séculos XVIII e XIX, em La Paz,
e que, ao longo do século XX, foram ocupados por diferentes modos de habitação popular por inquilinato.
54 Trocadilho entre birlochas, que designa as mulheres brancas em vestidos elegantes, e cholas, que nomeia as ameríndias de pollera (a longa saia que as caracteriza).
55 In: Rivera (2018, p. 24). Ver também: Rivera (2016).
56 Ver: Santos (1977); Carlos (1992); Cosgrove ([1983] 1998).
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Paisagens do Sul, amefricanas e ch’ixis
fazem o trabalho pesado nestes lugares e nos domicílios de elegantes e branqueadas vizinhanças:
Lomas de Reforma, Punta Pacífica, Vitacura, Los Rosales, San Isidro, Corredor da Vitória, Zona
Sul, Jardins e tantas outras. Situações como a morte do menino negro Miguel, devido à queda
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do alto de um edifício de luxo, em Recife, em plena pandemia de covid-19 e enquanto sua mãe,
empregada doméstica, passeava com o cachorro de sua patroa,57 revelam que a essas mulheres
não há retribuição à altura do trabalho e do zelo que dedicam à casa, à comida, às crianças e
aos pets que não são seus – préstimos que, aliás, liberam possibilidades de satisfação individual,
em paisagens de trabalho e diversão, para mulheres brancas e, evidentemente, homens brancos.58 Já a “mulata”, que permite a Gonzalez apontar a cruel relação do entretenimento com a
sexualização e a exploração de mulheres, também leva a uma reflexão que vai além do mundo
do carnaval: talvez seja o turismo a atividade que forneça mais exemplos da associação entre
feminilidades não brancas e paisagens “exóticas”, “tropicais” ou “latinas”. Mas há também o trabalho cotidiano, duro e por vezes violento em outras “paisagens sociossexuais”: bebida, dança,
sexo, drogas e corpos de negras, indígenas e latinas – cis ou transgêneras – se misturam em
zonas, bordeis, puteiros, inferninhos, casas de currutela ou da luz vermelha, puticlubs, tiraderos,
calçadões, becos e vielas de centros urbanos ou rincões rurais da América Latina, mas também
nas esquinas de Barcelona ou nas vitrines do Red Light District de Amsterdã.59
No entanto, as mulheres que fazem tecidos e atiradeiras, evocadas por Rivera, não nos
deixam esquecer que há paisagens que são laboradas e em que se labora com satisfação e
em prol do coletivo. Várias são as paisagens latino-americanas dos dias de hoje que guardam
os muitos vestígios de seu manejo no passado por comunidades de origem afrodiaspórica ou
ameríndia – que, em associação com outras culturas, populações, espécies e elementos naturais e espirituais, objetivavam e várias vezes ainda objetivam a manutenção de sua existência.60
Além disso, também no presente, hortas domésticas ou comunitárias, por vezes conjugadas à
criação de pequenos animais, são paisagens biodiversas mais que comuns em bairros populares,
comunidades quilombolas e indígenas. Orientadas por redes de parentesco e vizinhança, voltam-se à provisão de alimentos e ervas ritualísticas ou medicinais, à geração de renda e ao bem
comum, por vezes por sistemas ancestrais de plantio ou de organização e manejo da paisagem
várias vezes amparados pelo trabalho e pelos saberes de “mães pretas” e lideranças indígenas
femininas – como são os ayllus e as marcas, os maizales e as milpas e os bananais e os dendezeiros de subsistência.61
Mesmo assim, quando comemos uma moqueca regada no dendê ou um delicioso taco de
huitlacoche não saboreamos ancestralidades imaculadas, mas um emaranhamento de memória,
ingredientes locais e adições forâneas e extemporâneas. Nessa direção, os escritos de Rivera e
Gonzalez também apontam que a irreparável e violenta mistura do invasor com o invadido e o
diálogo transcultural decorrido da trágica travessia forçada também geraram criação – como são
57 Como muito bem assinalou o urbanista João Soares Pena (2019), é curioso que, nesta tragédia, tanto o
sobrenome da patroa (Sara Corte Real) quanto o nome do condomínio (Píer Maurício de Nassau) remetam
ao período colonial brasileiro.
58 Tais serviços que mantêm “tudo arrumado e funcionando” à escala do lar branco-burguês são complementados por outros que mantêm “tudo arrumado e funcionando” às escalas das manutenções predial e
urbana – neste último caso, quase sempre feitos por homens não brancos: porteiros, zeladores, instaladores
de toda sorte de pisos, cabos e tubulações, pintores, garis etc. Cf. Freitez (2019; 2022).
59 Cf. Name (2007); Nieto Olivar (2008; 2017); Sacramento e Ribeiro (2013); Teixeira (2018); Ornat, Silva e Chimin Junior (2019); Pena (2020).
60 Ver, entre outros: Carney (2001; 2016); Oliveira (2015); Ruiz, Oliveira e Solórzano (2017).
61 Ver, entre muitos outros: Lok (1998); Mariaca (2012); Camargo (2014); Name (2016); Montezuma e Martins
(2017); Rodríguez (2019).
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 346-373, 2022
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estas iguarias, mas também o pretuguês, o yopará, o quechumara e o castimillano;62 o samba,
o funk, o reggae, a cumbia, a axé music e o reggaeton; a umbanda e o candomblé, o guadalupanismo e os transes em igrejas carismáticas ou em rituais “nova era” com ayahuasca. Não há,
pois, uma cultura latino-americana, tampouco culturas tão somente ameríndias ou africanas,
mas culturas amefricanas – isto é, também e não exclusivamente de matrizes ameríndias e
africanas – estendidas ao longo dos territórios latino-americanos. Por outras palavras, a mescla
tal qual o ch’ixi é a regra!
Isso nos leva a uma última inflexão à paisagem que, por óbvio, nunca é modelada por
uma cultura única ou apenas um grupo social, mas pela produção imaginativa coletiva que
emerge de interações e justaposições de culturas em trânsito e várias vezes em contradição; e
dos entendimentos de cada comunidade a respeito de seu passado e de seu futuro – que, em
ambos os casos, podem ser uma expressão material de propostas em atendimento aos poderes
vigentes ou insubordinadas aos mesmos.
É fato que muito do conjunto de formas e linguagens arquitetônicas, urbanísticas e paisagísticas europeias e estadunidenses foi fetichizado, exportado e aplicado na América Latina;63 e que as tipologias “modernas” ou “ocidentais” (consideradas de lugares ou mais ricos ou
mais brancos ou mais ao Norte dos mapas, mesmo que resultadas de troca e expropriação)
várias vezes substituíram aquelas arquiteturas nomeadas como “vernaculares” – em geral mais
adaptadas às condições geobiofísicas locais.64 Mesmo assim, os vultosos, pomposos e coloridos
cholets65 crescentemente vêm se inserindo na paisagem de El Alto, por exemplo. Essas novas
construções atendem ao mesmo tempo a critérios utilitários, crenças religiosas, sensibilidades
estéticas e necessidades de reconhecimento social de nouveaux riches bolivianos de origem
aimará. Não são, pois, resultantes das costumeiríssimas imitações de arquiteturas de fora, mas
de uma inventiva e conflitiva sobreposição de formas e designs andinos a técnicas e insumos
modernos ou, nos termos de Rivera, de “uma maneira chicha de projetar e construir edificações,
como expressão barroca de uma nova mentalidade coletiva”.66 Por conseguinte, os cholets vêm
ganhando conotações políticas ao desafiarem cânones ocidentais sobre a “boa forma” da arquitetura e da paisagem.
Também é fato, como argumentou Gonzalez sobre o Brasil, que
desde a época colonial aos dias de hoje, percebe-se uma evidente separação
quanto ao espaço físico ocupado por dominadores e dominados. O lugar natural do grupo branco dominante são moradias situadas nos mais belos recantos
da cidade ou do campo e devidamente protegidas por diferentes formas de
policiamento [...] Desde a casa-grande e do sobrado até os belos edifícios e
residências atuais, o critério é sempre o mesmo. Já o lugar natural do negro é
62 O yopará é uma variedade coloquial da língua guarani, no Paraguai, especialmente fluente entre a população mais jovem e com muitos empréstimos do castelhano. O quechumara é a mistura entre quéchua e
aimará na fala de grupos ameríndios dos Andes. E dado que imilla refere-se a uma menina aimará brincalhona e livre, castimillano assinala uma forma lúdica e cheia de duplos sentidos de falar castelhano na mesma
região.
63 Cf. Martínez Espinal (2013, p. 59).
64 Entre outros, ver Haesbaert (1996) e Heimbecker (2019).
65 “Nova arquitetura andina” e “arquitetura transformer” são algumas designações dos cholets – cholo +
chalets (chalés) – majoritariamente projetados pelo arquiteto boliviano Freddy Mamani. Cf. Cárdenas, Mamani e Sejas (2010); Runnels (2019); Thorne (2019).
66 In: Rivera (2018, p. 23, nota n. 15). A palavra “chicha” designa a bebida feita da fermentação do milho em
água açucarada e, pejorativamente, tudo que é mal feito. Mas também se refere a um gênero musical que
mistura diferentes ritmos, significado que se aproxima ao ch’ixi de Rivera. Cf. Reto (2012).
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Paisagens do Sul, amefricanas e ch’ixis
o oposto, evidentemente: da senzala às favelas, cortiços, alagados e conjuntos
“habitacionais” [...] No caso do grupo dominado, o que se constata são famílias
inteiras amontoadas em cubículos cujas condições de higiene e saúde são as
mais precárias.67
362
Gonzalez parecia perceber que se há discursos que atribuem a precariedade a certos
sítios, tipologias e modos de habitar e construir, na verdade não se trata de uma derivação da
paisagem ou da arquitetura em si, mas de condições de desigualdade e pobreza. Entretanto,
a despeito da segregação racial e territorial e das tentativas de inferiorização e supressão, há
reinvenção: as habitações indígenas brasileiras inspiram, entre muitos, os projetos do arquiteto
mato-grossense José Afonso Botura Portocarrero;68 assim como as palafitas, por exemplo, são
um sistema construtivo de pretéritos trânsitos por solos africanos e ameríndios que se espalhou
não só por paisagens em ribeiras latino-americanas, mas por onde quer que houvesse água no
planeta; e que, além de vir inspirando projetos em orlas assinados por arquitetas e arquitetos
contemporâneos de todo o mundo, recentemente se tornou opção de vivienda social no Chile.69
A reinvenção, contudo, vai além da projetação de especialistas. Se de início os quilombos
brasileiros – ou os cimarrones, cumbes, palenques e maroon societies, em outras partes das
Américas e do Caribe – conformaram paisagens comunitárias relacionadas a resistências e lutas
de populações africanas e afrodescendentes contra a escravidão, depois transmutaram em paisagem-tipo afrodiaspórica. No Brasil, muitos territórios onde atualmente há maioria de população
negra (inclusive favelas) mantêm tanto certa coincidência de localização espacial com relação a
quilombos do passado quanto traduzem e reinterpretam localmente tipologias arquitetônicas
e sistemas construtivos africanos trazidos na travessia atlântica – que, aqui, foram aplicados e
transformados.70 Ademais, no curso do tempo, os quilombos foram alçados, em enunciações
utópicas, a sistemas alternativos ou modelos de resistência que ainda hoje inspiram práxis e
significações utilizadas nas formas de organização e ocupação de populações e comunidades
negras: novos quilombos e também associações, irmandades, confrarias, clubes, grêmios, terreiros, centros, tendas, afoxés, escolas de samba, gafieiras e bailes funk que se espalham por redes
ou malhas sobre as paisagens latino-americanas.71
Epílogo
Das relações e trocas por vezes cooperativas e por outras conflitivas entre nações, a ideia
de Sul migrou ao embate de ideias e conceitos acadêmicos, abrigando o que de certos lugares e
conhecimentos situados venha desvelar os imperialismos, racismos e extrativismos epistêmicos.
Nesse sentido, se é correto dizer que o Sul “não é uma entidade monolítica, coesa, coerente, homogênea e ausente de conflitos e interesses”,72 talvez sua pertinência política e discursiva esteja
em sua capacidade relacional e sempre desafiadora das teorias eurocêntricas, androcêntricas e
brancocêntricas cada vez mais inábeis na tarefa de explicar o mundo contemporâneo.
67 In: Gonzalez ([1983] 2020c, p. 84-85).
68 Cf. Portocarrero ([2010] 2018); Martins, Toigo e Macieski (2018).
69 Ver: Bahamon e Álvarez (2009); Soychiloé (2016); World Habitat (2016).
70 Cf. Nascimento ([1978] 2021a; [1981] 2021b); Weimer (2014, p. 156-267).
71 Ver: Nascimento ([1980] 2019, p. 281-282).
72 In: Ballestrin (op. cit.).
Epistemologias do Sul, v. 6, n. 2, p. 346-373, 2022
Artigos
A enunciação do Sul, neste trabalho, partiu da constatação dos limites e reducionismos
de conceituações sobre a paisagem no mais das vezes elucubradas por homens brancos dos
Estados Unidos e da Europa Ocidental. Assim, conjugada à minha priorização do enfoque latino-americano, a consideração de uma geopolítica do conhecimento tal como a conduzida por
Raewyn Connel, que busca fora do Norte conceitos que conduzam a rotas-outras de pensamento, levou-me ao encontro de Lélia Gonzalez e Silvia Rivera. Se curiosamente elas pouco ou nada
escreveram sobre paisagem, debateram os enunciados situados da amefricanidade e do ch’ixi
que viram de ponta-cabeça as narrativas conservadoras sobre aculturação e mestiçagem, sem
desconsiderarem e ao mesmo tempo tentando se desprender dos legados do racismo e do colonialismo. Por isso, o diálogo com suas reflexões leva a um entendimento monista da paisagem
latino-americana: uma unidade contraditória em que atuam, sempre em tensão, os insanáveis
prejuízos materiais e simbólicos levados a cabo por hegemonias de matrizes europeias e pela
exploração colonial e capitalista, sempre mais prejudiciais às mulheres não brancas; e as rugosidades, os vestígios e os demais efeitos das interações geo-historicamente empreendidas tanto
por representantes de outras matrizes etnorraciais quanto especialmente pelo cuidado destas
mulheres com suas comunidades. Contra o desperdício de experiências, a amefricanidade e o
ch’ixi permitem leituras que consideram: os saberes que resistiram e mantêm-se atuando na
paisagem, a que Maria Paula Meneses e Boaventura de Sousa Santos tanto pedem atenção em
sua interpretação do Sul como campo epistemológico; e os corpos que racializados em subalternidade atuam e interagem na produção destas paisagens.
Finalmente, se o Sul é, além disso, o resultado de invenções que emergem da luta pela
sobrevivência e da criatividade de grupos e lugares em desvantagem, como querem Jean e John
Comaroff, a amefricanidade e o ch’ixi nos auxiliam a perceber a paisagem latino-americana
como um design coletivo de que permanentemente se sublevam saberes de matrizes africanas
e ameríndias em resistência às ações de apagamento e homogeneização. Na paisagem que
surge de corpos e grupos minoritarizados que se insurgem a partir de certa desobediência projetiva, parecem não valer binarismos entre o que é profissional ou leigo, moderno ou vernacular,
invenção projetada ou gambiarra improvisada. Da mesma forma, não há sentido em distinções
entre cultura e natureza, o que é material ou espiritual e até mesmo entre o humano e o não
humano, já que se trata de um design que também é feito por outros seres vivos, os espíritos, a
natureza inorgânica e os artefatos.73
Sendo assim, talvez estejamos diante de possibilidades para pensar a paisagem latino-americana, de manifestações tão profundamente amefricanas e ch’ixis, também dando atenção
ao que seriam paisagismos do Sul e paisagistas do Sul.
Mas estes são, talvez, temas para elucubrações futuras.
73 Cf. Marques (2019); Name (2020c); Jacques (2022).
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Paisagens do Sul, amefricanas e ch’ixis
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desde América Latina, Caribe, África e Ásia é um periódico online
de publicação semestral do grupo de pesquisa homônimo ligado
à Universidade Federal da Integração Latino-Americana, em Foz
do Iguaçu/PR. Seu objetivo é divulgar estudos e investigações
sobre ou desde o pensamento social e político latino-americano,
caribenho, africano e asiático, promovendo o diálogo Sul-Sul.
ISSN 2526-7655
ISSN 2526-7655
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