À Procura de um Livro
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Sobre este e-book
Gabriel é um jovem que deseja ser escritor. O seu primeiro manuscrito está perdido. Simplesmente não sabe onde o pôs. Inicia então um périplo pelo seu Bairro, perguntando aos vizinhos se por acaso terão visto um livro. O seu.
Este livro foi escrito em 1997 e ganhou dois prémios literários em 1999:
- O 1o prémio do concurso literário “António Mendes Moreira” instituído pela Câmara Municipal de Paredes;
- O 1o prémio ex-aequo no concurso literário Orlando Gonçalves instituído pela Câmara Municipal da Amadora.
Ágata Ramos Simões
Colaborou na tradução japonesa das obras “Todos os Nomes” e “A Caverna” de José Saramago.Representada com três poemas na colectânea de poesia contemporânea portuguesa, “Ventana A La Nueva Poesía Portuguesa”, editada no México pela Ediciones Desierto.Escreveu “Lisboa singular”, livro infanto-juvenil, publicado em português por uma editora francesa (Éditions 00h00).Teve uma participação no Salão do Livro em Paris, entre os dias 16 e 21 de Março de 2001, convidada pela editora Éditions 00h00.Ganhou o 1o prémio no concurso literário “António Mendes Moreira” da Câmara Municipal de Paredes com o manuscrito “À Procura de um Livro” e ganhou igualmente o 1o prémio ex-aequo no concurso literário Orlando Gonçalves da Câmara Municipal da Amadora com o mesmo manuscrito.No princípio de 2006 foi publicada a obra "Sr. Bentley, o Enraba-Passarinhos" pela editora Saída de Emergência.Participou no DN Jovem durante alguns anos.
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À Procura de um Livro - Ágata Ramos Simões
O nome dele é Gabriel.
Acorda de manhã cedo. Demasiado cedo para si. Não é seu costume despertar a uma hora tão matinal. Que horas são? Sete horas. Oh, madrugada! Deixa-se estar por momentos, quieto, a habituar os olhos à semiobscuridade do quarto. Pouco a pouco vê-se rodeado pela luz difusa que se escapa dos estores eternamente sujos e fechados. Nas linhas de luz descobre infinitas partículas de poeira gravitando, a dançar. A andar à roda. Levanta o braço. As poeiras revolvem-se, violentamente, atingidas pela brisa súbita provocada pelo seu gesto.
Na estante observa os livros. Numerosos para muitos. Mas parecem-lhe sempre poucos, insubstanciais. Raríssimos. Os livros nunca lhe chegam.
Espreguiça-se. Abre a boca num bocejo disforme. Senta-se na cama e esfrega os olhos. Depois abana a cabeça. Acorda, parece dizer-se. Acorda de uma vez.
Leva os joelhos ao peito e dá uma coçadela rápida, furiosa, repentina, nos rins. Decide levantar-se. De repente pára. O livro. O livro, onde está? Animado por uma energia animal revolve a cama e levanta-se de um salto. A percorrê-lo um único pensamento: o livro? Onde está?
«Onde é que eu o pus?» Meu Deus, onde é que ele está?!
Acende a luz do quarto, iluminando-o. Abre gavetas. Abre o guarda-fatos, vê debaixo da cama, vê na mesa do computador, quase imerso em papelada dispersa. Não está lá.
«Merda. Merda, merda, merda! Onde é que eu o pus?!»
Despeja o balde do lixo no meio do quarto. O chão fica coberto de folhas rasgadas. Mas nada de livro. Sabe que é inútil continuar a procurar ali. Recolhe o lixo.
Sai do quarto quase nu, apenas vestindo as cuecas. Os pais não se levantaram ainda. É cedo, demasiado cedo. Procura na cozinha, desde os armários até à gaveta dos talheres. Vê na sala, por detrás do sofá, por detrás do televisor. Da aparelhagem. Os pés estão frios, é Outono. Arrepia-se, mas está com tanta raiva de si que nem o nota. Procura no corredor, nas plantas. Ao pé das listas telefónicas. Na casa-de-banho. Abre a porta do quintal. Desta vez é obrigado a reconhecer o frio. Cerra os dentes e aperta os braços. Vai em bicos de pés até à casota do cão. Investiga debaixo das pulgas do cão. Ele rosna e volta a meter o focinho nas patas. O corpo estremece-lhe por causa da friagem. Nada. O livro não está em lado nenhum.
«Idiota. Que besta, que imbecil! Foste logo perder o livro, assim, como se fosse outra coisa qualquer, uma camisa, os sapatos.»
Toma um duche rápido, molha o corpo, põe gel, esfrega a pele rapidamente e tira a espuma com o chuveiro. Lava os dentes e faz a barba. Corta-se. Pragueja.
No quarto desarrumado, nunca o arruma, arranja sempre maneira de o manter naquela desordem, veste-se e penteia-se. A manhã está gelada. Põe um pullover e resolve levar também a gabardine e o chapéu invisíveis, à detective dos anos 40, tipo Marlowe, daqueles que se vêem nos filmes americanos. É melhor ir assim, porque ele próprio vai numa busca, à procura de um livro. Talvez à procura de si, quem sabe...?
Resolve, portanto, iniciar uma busca no bairro onde habita, o Bairro Santo, um daqueles bairros que se constroem espontânea e ilegalmente. «Áreas Urbanas de Génese Ilegal», chamam-lhes. Tantos nomes para aquilo que se costuma designar «clandestinos». Clandestinos porque cada um compra um terreno, um lote, e aí resolve construir a sua casa à sua maneira. «À medida dos seus sonhos», ouviu tanta vez. Pois é, mas até os sonhos têm medidas regulamentadas. Senão são sonhos clandestinos, construídos ilegalmente.
Mas também estes pagam impostos, de conservação de esgotos, etc. Apesar de não estarem «urbanizados». (Não entendia como é que não tendo direitos se conservavam os deveres intactos.) Porque é preciso, sempre, «urbanizar» as utopias habitacionais.
Gabriel resolve iniciar um périplo pelo bairro com o objectivo de encontrar o seu primeiro livro. O original original, visto que não possui mais nenhuma cópia. Estupidamente apagou-a do disco rígido do computador, nem sabe como fez semelhante asneira.
Gabriel é de estatura mediana e tem vinte anos feitos há alguns meses, o cabelo é castanho-escuro, curto. Os olhos são da mesma cor do cabelo. Apresenta uma expressão que, à primeira vista, se poderia chamar de indolente, preguiçosa. Indiferente. Alguém, no entanto, mais perscrutador notaria que por debaixo dela se esconde um carácter rebelde, demasiado crítico para ser indiferente. Contudo Gabriel descobrira que a eterna expressão facial do «está-se nas tintas» o salvava de imensas chatices. Por isso a usava, como as mulheres usam batom e rímel.
Hoje vestiu calças de ganga, camisa escura e um pullover verde por cima desta. A roupa protege-o do frio, só se veste por causa disso. As outras razões, as de «andar à moda» exasperam-no. Chega a não comprar roupa para não ter de «andar à moda». Talvez seja a sua forma de snobismo. Se pudesse andaria nu. Não gosta de preocupações indumentárias.
Decidiu usar igualmente, e em vista da sua missão, uma gabardine e chapéu hollidoescos, invisíveis, mas de uso imprescindível. Era uma armadura. Cavaleiro-andante de outras eras, vestido para esta, protege-se não sabe bem do quê (mas não é do frio, um pouco árido, que lhe cocega o nariz e as mãos) e embarca em busca do seu primeiro e único livro. O original originalíssimo.
Abre a porta da frente, fecha-a, e depois de passar o portão metálico, baixo, mergulha na rua. O ar da manhã arrepia-o, apesar do sol inundar a rua de luz e do céu estar azul e limpo. A cor azul é de uma limpidez luminosa. Os pardais saltitam em cima dos muros e depois arrancam em voos, poisando no cimo das árvores ou nos telhados das casas.
Sete e meia da manhã. Algumas pessoas passam, apressadas, por ele. Vão apanhar a camioneta e dirigir-se ao emprego. Não as cumprimenta. Não o cumprimentam. Por hábito. Só fala com poucos vizinhos, a quem dá os bons dias ou as boas tardes. Não gosta de cumprimentar toda a gente só porque o acaso decidiu pô-los no mesmo bairro, partilhando um espaço imerso noutro maior. A palavra «vizinho», aqui, no Bairro Santo, bairro clandestino, suburbano, nas franjas da grande e omnipotente e empregadora Lisboa, já não tem o mesmo significado que o do campo. Na «terra», «vizinho» é vizinho para tudo. Mesmo que não queira. Aqui, no Bairro Santo, está-se a meio caminho entre os significados do campo e os da cidade. Vê-se pelas hortas, entre as casas ou nas casas. Há pessoas que ao fim-de-semana se dedicam ao cultivo delas, sacho na mão, olho atento para as ervas. No dia-a-dia têm inveja dos vizinhos, ou não, depende. Seja como for, as emoções do campo, transladadas para o Bairro Santo já não têm a mesma intensidade. O grau de emoção diminuiu. É-se citadino a pensar-se na horta do fim-de-semana. Nas flores, na jardinagem.
Gabriel está parado no meio da rua. Tenta habituar-se à frialdade. Puxa as abas da gabardine invisível para cima e enterra o chapéu que não está lá até às orelhas. Espirra. Mete as mãos nos bolsos da gabardine (transparente a olhos alheios) e fica à espera que o quente as inunda. Salta, devagar, de um pé para o outro, enquanto observa os pardais gordos (são sempre gordos) a piar e a levantar voo.
Pensa no manuscrito perdido. Como é que pôde ser tão burro? É um despassarado, nunca sabe onde põe as coisas, anda sempre a perdê-las: os óculos de sol, a caneta de ponta fina de feltro que acabou de comprar, o dicionário (o dicionário então!), as meias. Às vezes um sapato. Encontra um, mas não sabe onde pôs o outro. Os documentos do carro, as chaves do carro. Normalmente nunca os encontra nos instantes que antecedem a sua partida. E é sempre quando está atrasado. Nunca falha.
Como se um gremlin se divertisse a trocar o sítio das coisas, vendo-o depois atrapalhado à procura delas. Mas não, a culpa era de Gabriel. Esquecia-se com frequência dos pormenores. E das coisas óbvias. Não era defeito, era feitio.
Gabriel suspira e recorda-se das páginas que ontem mesmo tinha estado a ler. Escritas por si. Lembra-se de se sentir irritadíssimo com as palavras. Não eram aquelas. Ou melhor, eram aquelas, mas não empregues assim! Não daquela maneira infantil, desconhecedora. Gabriel não tem grande fé em si, no seu talento de escritor. O que não quer dizer que deixe de escrever. Nem por sombras. Escreve sempre, irrita-se com o resultado final, tenta reescrever a página. Fica um bocadinho melhor. Infimamente melhor. Não acredita que o primeiro livro seja bom, nem sequer sofrível. Considera-o mau. Mas só pelo facto de ter desaparecido (o que, talvez para outros, resolvesse o problema pela raiz) quer encontrá-lo. Como se uma força maligna o obrigasse a desistir (a encarar a falta de talento), roubando-lhe o livro. Mas é quando o obrigam a alguma coisa que ele mais se rebela. Não gosta que o obriguem a nada: nem a acções, nem a sentimentos, nem a hipocrisias quotidianas para bem da «serena paz» instituída. Prefere ser ele a decidir. Mesmo que decida pelo que foi instituído decidir. Contudo, a decisão terá de partir dele e a seu tempo. Gabriel poderá desistir mais tarde de escrever, poderá abdicar ou renunciar à escrita, por perceber que não possui uma grama de talento ou por qualquer outra razão, mas esse acto passará apenas pela sua vontade. E pela de mais ninguém.
Às vezes rebela-se dando a aparência de submissão (calando-se, não agindo, não mexendo uma palha), mas essa é uma aparência enganadora e que lhe convém. Um disfarce. Faz o que quer.
Tem vinte anos e é um inútil. É inútil porque só escreve, não faz mais nada, não ganha dinheiro. Não ganhar dinheiro (ou não ter rendimentos) marca um indivíduo com o estigma da inutilidade. Tem vinte anos e é um pré-pré-candidato a escritor. Nem sequer isso. Não sabe o que quer ser, o que deseja fazer no futuro. Não pensa no futuro. O mais longe que consegue pensar é na próxima linha.
Gabriel, o insubmisso, o que desafia a sociedade sem a contestar por meio de acções directas, das que enchem os olhos. Desafia sem fazer nada. Apenas ergue a mão e escreve. E ainda por cima mal. E, nesse acto, não pensa estar a contestar ninguém, ordem de nenhum tipo, instituição nenhuma. Mas descobriu que seguir um caminho lixando-se para as opiniões dos outros - é uma forma de contestação, é uma negação radical, anarquista, da ordem social. É uma espécie de caos (que a sociedade pode absorver na sua ordem porque existem poucos escritores. Se fossem muitos o caos superava a ordem). Escrever e mais nada é mau, aprendeu.
Todavia se a única forma de ser o que é (ou o que deseja ser) implica contestar - fá-lo. E o melhor de tudo, o mais incrível, é que o pode fazer sem mexer, fisicamente, uma palha.
Parou de saltitar. Já tem as mãos quentes e tira-as da gabardine invisível. Baixa as abas da gabardine, desenterra o chapéu, que não existe, do crânio e decide comprar um maço de cigarros. Não tem tabaco, ontem acabou com o último cigarro.
A esta hora...(olha os ponteiros do relógio) vinte para as oito, nem todos os cafés estão abertos.
Decide-se por um. Caminha a passos lentos. Não quer ir depressa. Se calhar por capricho. Toda a gente àquela hora corre. Levantam-se a correr, lavam o corpo a correr e