O jeito que a gente diz
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O jeito que a gente diz - Stella E. O. Tagnin
Zucchi
Apresentação para esta edição
Passaram-se oito anosdesde a edição anterior (2005); a Linguística de Corpus evoluiu e foram criados novos e importantes corpora on-line. Por essa razão, julguei oportuno atualizar o capítulo sobre a Linguística de Corpus, não só apresentando esses corpora, como também mostrando como usá-los.
Por outro lado, como este livro é usado também por alunos, professores e pesquisadores de outras línguas, isto é, não apenas inglês e português, decidi incluir exemplos em alemão, espanhol, francês e italiano. Na realidade, ao final de cada capítulo, a partir do sexto, apresento um quadro comparativo, sempre que possível contrastivo, isto é, com exemplos similares nas várias línguas. Além desses, ao final do livro há um anexo em cada uma dessas quatro línguas com mais exemplos de cada categoria aqui abordada. Para isso, contei com a colaboração de minhas colegas Eva Glenk (alemão), Heloísa Cintrão (espanhol), Adriana Zavaglia (francês) e Ângela M. T. Zucchi (italiano), todas do Departamento de Letras Modernas da USP, a quem agradeço terem aceito meu convite.
Outra novidade desta edição são os exercícios ao final de cada capítulo. Essas atividades têm por objetivo proporcionar aos interessados a oportunidade de pôr a mão na massa
, principalmente no uso de corpora, independente da língua de pesquisa. Por essa razão, não são fornecidas respostas, já que não há apenas uma única possível.
A Bibliografia comentada também foi atualizada e a lista de Corpora on-line agora inclui, quando existirem, corpora nas outras quatro línguas.
Espero que gostem das inovações.
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Agradecimentos
Gostaria de agradecer a todos os colegas e alunos que me incentivaram, ao longo desses anos, a reeditar este livrinho.
Sou especialmente grata aos integrantes do grupo de estudos do Projeto COMET, cujas valiosas sugestões, correções e revisões certamente enriqueceram e aprimoraram a obra. Quaisquer erros que porventura ainda tenham escapado são de minha total responsabilidade.
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1
Introdução
É bem possível que quando o leitor decidiu estudar inglês alguém lhe tenha dito:
– Mas, e as expressões idiomáticas? São tão difíceis! – ou algo semelhante.
E por que seriam difíceis
? Provavelmente porque têm de ser aprendidas individualmente, isto é, uma a uma, pois não há regra que as gere. Entretanto, não são apenas as assim chamadas expressões idiomáticas que têm de ser aprendidas desse modo. Há toda uma gama de unidades linguísticas convencionais que o aprendiz de uma língua estrangeira desconheceria, mesmo que conhecesse toda a gramática e soubesse todo o dicionário básico de cor.
Além do mais, essas unidades ocorrem em todas as línguas, inclusive, é óbvio, no português.
Assim, o objetivo deste livro é apresentar os tipos de unidades convencionais que ocorrem em inglês e em português com farta, embora não exaustiva, exemplificação. Também inclui, nesta edição, quadros comparativos com alemão, espanhol, francês e italiano na maioria dos capítulos, além de anexos, ao final do livro, com mais exemplos em cada uma dessas quatro línguas.
Para algumas categorias o leitor encontrará listas extensas em livros-texto ou dicionários especializados, especialmente na língua inglesa, como é o caso dos phrasal verbs. Outras categorias ainda não foram adequadamente pesquisadas, havendo pouco ou quase nenhum material publicado a respeito. Para facilitar o acesso do leitor à bibliografia existente, faremos referência, no decorrer da exposição, às fontes que poderá consultar para obter listagens das categorias abordadas ou mais informações a respeito.
Cumpre ressaltar, no entanto, que na maior parte das vezes a bibliografia indicada será para a língua inglesa, já que muito pouco se tem feito na área da convencionalidade no âmbito do português.
___
2
O jeito que a gente diz
Quando fui aos Estados Unidos pela primeira vez, em 1961, já estava estudando inglês há seis anos, tendo sempre sido das melhores alunas. Acreditava – santa ingenuidade! – ter um bom domínio da língua inglesa. Entretanto, num de meus primeiros encontros, expressei-me de forma a fazer com que meu interlocutor me olhasse como se eu houvesse cometido um erro gramatical gravíssimo. Perguntei-lhe:
– Não está certo o que eu disse?
– Está – respondeu ele –, só que não é desse jeito que a gente diz.
Desde então tenho me empenhado em descobrir e aprender no que consiste esse jeito que a gente diz
, para não me caracterizar naquilo que o linguista americano Charles J. Fillmore (1979) denomina de falante ingênuo
.
Em primeiro lugar, vejamos quais as peculiaridades desse falante ingênuo
segundo Fillmore:
a) ele desconhece os lexemas idiomáticos de uma língua. Embora, com certeza, conheça as palavras prison[1] e jail e o sufixo –er, formador de substantivos agentivos, esse conhecimento não será suficiente para fazer a distinção entre prisoner, pessoa mantida numa prisão
, e jailer, pessoa que cuida de uma prisão
. Exatamente o mesmo ocorre em português: prisão e cárcere são praticamente sinônimos, mas, ao receberem o sufixo –eiro, formando prisioneiro e carcereiro, seus significados passam a ser totalmente distintos: o prisioneiro é o que está preso, enquanto o carcereiro é o que cuida da prisão;
b) ele não conhece as frases idiomáticas da língua. Se lhe disserem Your goose is cooked (Você está numa encrenca), fará uma interpretação literal e certamente ficará perplexo, a menos que realmente esteja preparando um ganso na cozinha. Para o português podemos citar, por exemplo, Você está em palpos de aranha, com significado similar à expressão inglesa. Uma possibilidade mais coloquial, com o mesmo sentido, seria Você está frito;
c) ele não conhece combinações lexicais que não estejam necessariamente baseadas em relações de significado. Se ouvir a locução blithering idiot, acreditará que blithering, como adjetivo, também pode ocorrer com outros substantivos. Não saberá que esse adjetivo só co-ocorre com idiot ou fool; assim como coroca, em português, ocorre quase exclusivamente com velha;
d) não tem a capacidade de julgar a adequação de expressões fixas a certos tipos de situações. Assim, não saberá quando convém usar as expressões This hurts me more than it hurts you ou Knock on wood em inglês, e, em português, Está servido? ou Vai tirar o pai da forca?;
e) não conhece as imagens metafóricas de uma língua. Não entenderá por que I’ll/ stand behind you significa apoiarei você
ou Estou nas nuvens significa que a pessoa está muito feliz;
f) não entende atos de comunicação indireta, nem será capaz de ler nas entrelinhas. Fará, como de costume, uma interpretação literal, mesmo que alguém lhe diga You have a very lovely left eye (Você tem um lindo olho esquerdo). Da mesma forma, em português, não entenderia que quando alguém, numa sala abafada, diz Está calor aqui!, essa pessoa está, na realidade, pedindo que se abra a porta ou a janela para permitir certa ventilação;
g) desconhece as convenções das estruturas de diversos textos. Por exemplo, na cultura japonesa é imperativo que o primeiro parágrafo de qualquer carta faça referência à estação corrente do ano. Nas cartas comerciais em inglês é usual terminar-se com Yours truly, enquanto em português usamos Atenciosamente.
Assim, na minha tarefa de pesquisar esse jeito que a gente diz
, descobri uma série de coisas:
I) que, como era de se esperar, fazem parte desse jeito que a gente diz
as conhecidas e temidas expressões idiomáticas;
II) que os linguistas, entretanto, divergem quanto ao que chamar de expressões idiomáticas;
III) que existem outras unidades linguísticas menores que também são idiomáticas, embora não sejam o que é comumente entendido por expressões idiomáticas;
IV) que há unidades linguísticas que fazem parte desse jeito que a gente diz
, mas que não são idiomáticas;
V) que todas essas unidades são aprendidas como um todo, isto é, em bloco;
VI) que quem não conhece essas unidades convencionais pode não entender certas tiradas
humorísticas por elas inspiradas.
Quando nos referimos ao jeito que a gente diz
estamos, na verdade, falando de convenção, ou seja, daquilo que é aceito de comum acordo. As convenções linguísticas são os jeitos
aceitos pela comunidade que fala determinada língua. Assim, podemos chamar de convencionalidade o aspecto que caracteriza a forma peculiar de expressão numa dada língua ou comunidade linguística.
Falta ainda esclarecer o que entendemos por idiomático. É o que veremos no próximo capítulo.
♦ Sugestão de exercícios
1) Sublinhe, nas sentenças abaixo, alguns jeitos que a gente diz
. O primeiro já está feito a título de exemplo:
• Os leigos esperam ansiosos pelos resultados práticos da pesquisa genômica. (esperar por; resultados práticos, pesquisa genômica.)
• Muitas substâncias já foram isoladas em todo o mundo na pesquisa com organismos marinhos, mas poucas estão em testes clínicos.
• Esse campo de pesquisa está amadurecendo no Brasil
• Eles tentaram parar o projeto público dizendo que devíamos trabalhar com o genoma do camundongo. Nos preocupamos em não dormir no ponto.
• Foi ele quem forneceu a matéria-prima para o grupo.
• De certa forma, faz sentido trabalhar com o conceito de populações, apesar de a definição de população negra, por exemplo, também não ser muito clara.
• Por não trabalhar com células-tronco de embriões humanos, ela não enfrenta esse dilema ético.
• Fui contrário à construção dos reatores de Angra porque achava que em vez de o Brasil comprar dois reatores da Alemanha a peso de ouro nós devíamos construir aqui.
• Já que a fórmula era incompatível com a definição-padrão, o ouro preto foi expurgado.
• Aos 12 anos, acompanhava o pai, que era professor de química orgânica.
2) Identifique nos títulos abaixo a unidade convencional em que se baseou a criatividade desses títulos:
a) Casa, comida, alma lavada. (título de peça de teatro)
b) Das tripas, profissão
. (matéria do suplemento Paladar, do jornal O Estado deSãoPaulo)
c) Amor à segunda vista. (título de filme, original em inglês Two Weeks Notice, de 2002)
d) A de barro é que faz moqueca boa
. (matéria do suplemento Paladar, do jornal O Estado de São Paulo)
e) O tiro que não saiu pela culatra. (título de filme, original em inglês Parenthood, de1989)
3) Veja se encontra outros títulos criativos baseados em unidades convencionais.
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[1] Os exemplos em inglês são do próprio autor, enquanto os em português foram acrescentados por mim para melhor compreensão do leitor.
3
A convencionalidade e a idiomaticidade
Como vimos, a convencionalidade abrange tudo o que é convencional e por esse termo entendemos aquilo que é de uso ou de praxe; consolidado pelo uso ou pela prática
ou que obedece a padrões aceitos; não original, comum
(Houaiss).
Vamos exemplificar. É costume em nossa sociedade cumprimentar alguém por ocasião do Natal, seja dando-lhe um presente, enviando-lhe um cartão ou simplesmente dizendo Feliz Natal. Esse costume é chamado de convenção social: qualquer dos usos ou costumes sociais estabelecidos, ger. de tácita aceitação pelos indivíduos de uma comunidade, que incluem regras de boa educação, de boa conduta etc.
(Houaiss). Como esse, existem muitos outros, como desculpar-se por pisar no pé de alguém, agradecer um favor recebido ou até elogiar um presente mesmo que não se tenha gostado dele. Talvez até pudéssemos dizer que são as coisas que fazemos por educação
e que, se não as fizermos, estaremos incorrendo na ruptura de uma convenção social ou num ato de falta de boas maneiras
.
Pois bem, a mesma noção de convenção pode se aplicar à língua, tanto no nível social, isto é, deve-se saber quando dizer algo, quanto no nível linguístico, ou seja, saber como dizê-lo. Voltando ao exemplo do Natal, deve-se saber que é preciso dizer algo nessa ocasião e deve-se também saber como expressá-lo.
Assim, há expressões que são convencionais por estarem intimamente ligadas a um fato social e há outras em que o que é convencional é sua forma. Por exemplo, Feliz Natal é uma expressão convencional social, pois está ligada à comemoração do Natal, enquanto mundos e fundos é uma expressão convencional devido a sua forma, isto é, convencionou-se combinar os dois vocábulos mundos e fundos – e não universos e profundidades, por exemplo – unidos pela conjunção e. E convencionou-se também ser essa a ordem em que devem aparecer, jamais fundos e mundos. Outro exemplo que não admite alteração de ordem é doce ilusão, pois ilusão doce perderia o tom irônico da expressão anterior.
No momento em que a convenção passa para o nível do significado entramos