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O bode expiatório
O bode expiatório
O bode expiatório
E-book377 páginas6 horas

O bode expiatório

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Sobre este e-book

Édipo é expulso de Tebas como responsável pela peste que se abate sobre a cidade. A vítima está de acordo com seus carrascos. A infelicidade apareceu porque ele matou seu pai e casou-se com sua mãe. O bode expiatório supõe sempre a ilusão persecutória. Os carrascos crêem na culpabilidade de suas vítimas; estão convencidos, no momento da aparição da peste negra no século XIV, de que os judeus envenenaram os rios. A caça às bruxas implica que juízes e acusadas crêem na eficácia da bruxaria. Os evangelhos gravitam ao redor da paixão como todas as mitologias do mundo, mas a vítima rejeita todas as ilusões persecutórias, recusa o ciclo da violência e do sagrado. O bode expiatório torna-se o cordeiro de Deus. Assim é destruída para sempre a credibilidade da representação mitológica. Permanecemos perseguidores, mas perseguidores vergonhosos. Toda violência doravante revela o que a paixão de Cristo revela: a gênese imbecil dos ídolos sangrentos, de todos os falsos deuses das religiões, das políticas e das ideologias.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento16 de ago. de 2018
ISBN9788534948203
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    O bode expiatório - René Girard

    Guillaume de Machaut e os judeus

    O poeta francês Guillaume de Machaut escrevia nos meados do séc. XIV. Seu Julgamento do Rei de Navarra mereceria ser conhecido melhor. A parte principal da obra, sem dúvida, não é mais que um longo poema de estilo cortês, convencional pelo estilo e pelo assunto. O início, todavia, apresenta algo de surpreendente. Trata-se de uma sequência confusa de acontecimentos catastróficos aos quais Guillaume pretende ter assistido antes de, finalmente, adoentar-se de terror em sua casa para então esperar a morte ou o fim da indizível provação. Alguns acontecimentos são inteiramente inverossímeis; outros o seriam apenas pela metade. Todavia, uma impressão se destaca no relato: deve ter acontecido algo de real.

    Há sinais no céu. As pedras choram e matam os vivos. Cidades inteiras são destruídas pelos raios. Na cidade onde vivia Guillaume – ele não diz qual – os homens morrem em grande número. Algumas das mortes são devidas à perversidade dos judeus e de seus cúmplices entre os cristãos. Como estas pessoas faziam para causar vastas perdas na população local? Envenenavam os rios, as fontes de provisão de água potável. A justiça celeste interveio em meio a esses malefícios, revelando seus autores à população, que massacrou todos eles. Todavia, as pessoas não pararam de morrer, cada vez em maior número, até certo dia de primavera em que Guillaume ouviu música na rua e homens e mulheres que riam. Tudo havia terminado e a poesia cortês podia recomeçar.

    Desde suas origens nos sécs. XVI e XVII, a crítica moderna consiste em não confiar cegamente nos textos. Muitos bons espíritos, em nossa época, creem fazer progredir mais a perspicácia crítica, exigindo sempre maior desconfiança. Por força de serem interpretados e reinterpretados pelas gerações sucessivas de historiadores, textos que pareciam outrora portadores de informação real hoje em dia são suspeitos. Os epistemólogos e os filósofos, por outro lado, atravessam uma crise radical que contribui para o abalo daquilo que outrora se chamava ciência histórica. Todos os intelectuais, habituados a se alimentarem de textos, se refugiam em considerações desabusadas sobre a impossibilidade de qualquer interpretação precisa.

    À primeira vista, o texto de Guillaume de Machaut pode passar como vulnerável no clima atual de ceticismo em matéria de certeza histórica. Depois de alguns instantes de reflexão, todavia, mesmo hoje os leitores encontram acontecimentos reais em meio às inverossimilhanças do relato. Eles não creem nem nos sinais no céu, nem nas acusações contra os judeus, mas não tratam todos os temas incríveis do mesmo modo; não colocam todos eles sobre o mesmo plano. Guillaume nada inventou. É um homem crédulo, sem dúvida, e reflete uma opinião pública histérica. As inumeráveis mortes que ele registra também não são menos reais, causadas evidentemente pela famosa peste negra que varreu o norte da França em 1349 e 1350. O massacre de judeus é igualmente real, justificado aos olhos de multidões assassinas pelos rumores de envenenamento que circulam um pouco por toda parte. É o terror universal da doença que dá peso suficiente a esses rumores para desencadear tais massacres.

    Eis a passagem do Julgamento do Rei de Navarra que trata dos judeus:

    Depois disso, veio uma merda

    falsa, traidora e renegada:

    foi a Judeia, a odiada,

    a perversa, a desleal,

    que odeia e ama todo mal,

    que tanto ouro e prata deu

    e a cristã gente prometeu,

    que depois, rios e fontes,

    que eram claros e limpos,

    em muitos lugares envenenaram,

    e muitos suas vidas terminaram;

    pois aqueles que deles usavam

    logo repentinamente faleciam.

    Então, certamente, dez vezes cem mil

    disso morreram, no campo e na cidade.

    Antes que fosse percebida

    essa mortal desventura.

    Mas aquele que no alto senta e de longe vê,

    que tudo governa e tudo provê,

    essa traição mais celerada

    não quis, e logo a fez revelar

    e tão publicamente saber

    que eles perderam corpo e ter.

    Pois todos os Judeus foram destruídos,

    uns enforcados, outros queimados,

    outros afogados, outros decapitados

    pela cabeça com machado ou espada.

    E muitos cristãos ao mesmo tempo

    também morreram vergonhosamente. [1]

    As comunidades medievais temiam de tal modo a peste que até seu nome as apavorava; evitavam o mais que podiam pronunciá-lo e mesmo tomar as medidas que se impunham, com o risco de agravar as consequências das epidemias. Sua impotência era tal que reconhecer a verdade não seria enfrentar a situação, mas antes entregar-se a seus efeitos desagregadores, renunciar a todo aspecto de vida normal. A população inteira se associava voluntariamente a esse tipo de cegueira. Tal vontade desesperadora de negar a evidência favorecia a caça aos bodes expiatórios. [2]

    Em Os animais doentes da peste, La Fontaine sugere admiravelmente essa repugnância quase religiosa de pronunciar o termo apavorante e assim, de algum modo, desencadear seu poder maléfico na comunidade:

    A peste (pois é preciso chamá-la por seu nome)...

    O fabulista nos faz assistir ao processo da má-fé coletiva, que consiste em identificar na epidemia um castigo divino. O deus irado está irritado por uma culpabilidade que não é igualmente partilhada por todos. Para afastar a praga, ele faz descobrir o culpado e tratá-lo em consequência, ou então, como escreve La Fontaine, consagrá-lo à divindade.

    Os primeiros interrogados, na fábula, são animais predadores que descrevem hipocritamente seu comportamento de animal predador, que logo a seguir é escusado. O asno vem em último lugar e é ele, o menos sanguinário e, por isso mesmo, o mais fraco e o menos protegido, que se vê, afinal de contas, apontado.

    Em certas cidades, pensam os historiadores, os judeus foram massacrados antes da chegada da peste, apenas com o ruído de sua presença na vizinhança. O relato de Guillaume poderia corresponder a um fenômeno deste gênero, pois o massacre foi produzido muito antes do paroxismo da epidemia. Mas as numerosas mortes atribuídas pelo autor ao veneno judaico sugerem outra explicação. Se tais mortes são reais – e não há razão de considerá-las imaginárias – elas poderiam bem ser as primeiras vítimas de uma só e mesma praga. Mas Guillaume não duvida disso, nem sequer retrospectivamente. A seus olhos os bodes expiatórios tradicionais conservam seu poder explicativo para os primeiros estágios da epidemia. Apenas para os estágios posteriores o autor reconhece a presença de um fenômeno propriamente patológico. A extensão do desastre termina por desen­corajar a única explicação pelo complô dos envenenadores, mas Guillaume não reinterpreta a sequência inteira dos acontecimentos em função de sua verdadeira razão de ser.

    Podemos então perguntar até que ponto o poeta reconhece a presença da peste, pois ele evita até o fim escrever claramente o termo fatal. No momento decisivo, ele introduz com solenidade o termo grego e ainda raro, parece, epydimia. Esse termo, visivelmente, não funciona em seu texto como funciona em nosso texto; não é um verda­deiro equivalente do termo temido, mas antes uma espécie de substituto, um novo procedimento para não chamar a peste por seu nome, em suma, um novo bode expiatório, mas desta vez puramente linguístico. Jamais foi possível, nos diz Guillaume, determinar a natureza e a causa da doença pela qual tantas pessoas morreram em tão pouco tempo:

    Nem físico havia, nem observador

    que bem soubesse a causa dizer

    do que isso vinha, nem o que fosse

    (nem remédio nenhum que servisse),

    a não ser que era doença

    que se chamava epydimia. [ * ]

    Ainda sobre este ponto, Guillaume prefere remeter-se à opinião pública em vez de pensar por si mesmo. Do termo erudito epydimia se depreende sempre, no séc. XIV, um perfume de cientificidade que contribui para afastar a angústia, mais ou menos como as fumigações odoríferas que eram praticadas há muito tempo no beco das ruas para temperar os eflúvios pestilentos. Uma doença bem nomeada parece meia cura e, para se dar falsa impressão de controle, frequentemente se rebatizam os fenômenos que não são controláveis. Tais exorcismos verbais não deixaram de nos seduzir em todos os domínios em que nossa ciência permanece ilusória ou ineficaz. Recusando-nos a nomeá-la, é a própria peste, em suma, que nos consagra à divindade. Temos aqui uma espécie de sacrifício de linguagem bastante inocente, sem dúvida, comparado aos sacrifícios humanos que o acompanham ou o precedem, mas sempre análogo em sua estrutura essencial.

    Ainda que retrospectivamente, todos os bodes expiatórios coletivos reais e imaginários, os judeus e os flageladores, as chuvas de pedra e a epydimia, continuam a desempenhar tão eficazmente seu papel no relato de Guillaume que este jamais vê a unidade da praga designada por nós como peste negra. O autor continua a perceber uma multiplicidade de desastres mais ou menos independentes ou ligados uns com os outros apenas por sua significação religiosa, um pouco como as dez pragas do Egito.

    Tudo ou quase tudo o que acabo de dizer é evidente. Todos nós compreendemos o relato de Guillaume do mesmo modo, e meus leitores não têm necessidade de mim. Não é, todavia, inútil insistir sobre esta leitura, cuja audácia e poder nos escapam, precisamente porque ela é admitida por todos, porque ela não é alvo de controvérsia. A unanimidade se fez em torno dela, literalmente, há séculos e jamais foi desfeita. É ainda mais notável por se tratar de uma reinterpretação radical. Recusamos sem hesitar o sentido que o autor dá a seu texto. Afirmamos que ele não sabe o que diz. Depois de vários séculos de distância, nós, modernos, sabemos melhor do que ele e somos capazes de retificar o que ele disse. Acreditamos até encontrar uma verdade que o autor não viu e, com audácia ainda maior, não hesitamos em afirmar que tal verdade é ele mesmo quem a reporta a nós, apesar de sua cegueira.

    Deveríamos dizer que essa interpretação não merece a adesão maciça de que ela foi objeto. Mostramo-nos a seu respeito com excessiva indulgência? Para desacreditar um testemunho judiciário, é suficiente provar que, mesmo sobre um único ponto, a testemunha carece de imparcialidade. Como regra geral, tratamos os documentos históricos como testemunhos judiciários. Ora, transgredimos essa regra em favor de um Guillaume de Machaut que não merece talvez esse tratamento privilegiado. Afirmamos a realidade das perseguições mencionadas no Julgamento do Rei de Navarra. Em suma, pretendemos extrair o verdadeiro de um texto que se engana grossei­ramente sobre pontos essenciais. Se acaso tivermos razões de desconfiar desse texto, deveríamos talvez considerá-lo como inteiramente suspeito e renunciar a fundamentar sobre ele a menor certeza, sem excetuar o fato bruto da perseguição.

    De onde vem, portanto, a segurança espantosa de nossa afirmação: judeus foram realmente massacrados? Uma primeira resposta se apresenta ao espírito. Não lemos esse texto isoladamente. Existem outros textos da mesma época; eles tratam dos mesmos assuntos; alguns deles valem mais que o de Guillaume. Seus autores neles se mostram menos crédulos. Todos eles formam uma rede estreita de conhecimentos históricos no seio da qual recolocamos o texto de Guillaume. É graças a esse contexto, sobretudo, que conseguimos chegar a separar o verdadeiro do falso na passagem que citei.

    É verdade que as perseguições antissemitas da peste negra constituem um conjunto de fatos relativamente bem conhecido. Há sobre isso todo um saber já constituído e ele suscita em nós certa expectativa. O texto de Guillaume responde a esta expectativa. Essa perspectiva não é falsa sobre o plano de nossa experiência individual e do contato imediato com o texto, mas, do ponto de vista teórico, ela não é satisfatória.

    A rede de conhecimentos históricos existe, sem dúvida, mas os documentos que a compõem nunca são muito mais seguros que o texto de Guillaume, tanto por razões análogas como por razões diferentes. E não podemos situar Guillaume perfeitamente nesse contexto, pois não sabemos, conforme eu já disse, onde se desenvolvem os acontecimentos que ele nos relata. Talvez em Paris, talvez em Reims, ou talvez em uma terceira cidade. De todos os modos, o contexto não tem papel decisivo; mesmo que o leitor moderno não fosse informado sobre isso, ele chegaria à leitura que dei. Concluiria pela possibilidade de vítimas injustamente massacradas. Pensaria então que o texto é falso, pois essas vítimas são inocentes, mas, ao mesmo tempo, pensaria que o texto é verdadeiro, pois as vítimas são reais. Terminaria então por distinguir o verdadeiro do falso, exatamente como nós próprios distinguimos. O que nos dá esse poder? Não convém guiar-se sistematicamente sobre o princípio do cesto de maçãs que se deve jogar fora por conter apenas uma estragada? Não devemos suspeitar aqui de uma falha da suspeita, um resto de ingenuidade cuja hipercrítica contemporânea teria já passado a limpo, caso lhe tivéssemos deixado total liberdade? Não é preciso confessar que todo conhecimento histórico é incerto e que não se pode tirar nada de um texto como o nosso, nem sequer a realidade de uma perseguição?

    A todas essas questões é preciso responder com um não categórico. O ceticismo sem nuanças não leva em conta a natureza própria do texto. Entre os dados verossímeis deste texto e os dados inveros­símeis existe uma relação muito particular. De início, sem dúvida, o leitor não pode dizer: isto é falso, isto é verdadeiro. Ele apenas vê temas mais ou menos incríveis e críveis. Os mortos que se multiplicam são críveis: poderia tratar-se de uma epidemia. Mas os envenenamentos nem sempre, principalmente na escala maciça descrita por Guillaume. O séc. XIV não possui substâncias capazes de produzir efeitos tão nocivos. O ódio do autor pelos pretensos culpados é explícito, e isso torna sua tese extremamente suspeita.

    Não podemos reconhecer esses dois tipos de dados sem constatar, ao menos implicitamente, que eles reagem um sobre o outro. Se há de fato uma epidemia, ela sem dúvida poderia inflamar os preconceitos que dormitam. O apetite persecutório se polariza de preferência sobre minorias religiosas, sobretudo em tempos de crise. Reciprocamente, uma perseguição real poderia bem se justificar pelo tipo de acusação de que Guillaume se torna credulamente o eco. Um poeta como ele não deveria ser particularmente sanguinário. Se ele acrescenta fé nas histórias que relata é sem dúvida porque acrescentam fé ao redor dele. O texto sugere, portanto, uma opinião pública superex­citada, pronta para acolher os mais absurdos rumores. Ele sugere, em suma, um estado de coisas propício para os massacres que o autor nos afirma terem realmente se produzido.

    No contexto das representações inverossímeis, a verossimilhança das outras se confirma e se transforma em probabilidade. A recíproca é verdadeira. No contexto das representações verossímeis, a inverossimilhança das outras nem sempre pode provir de uma função fa­buladora que seria gratuitamente exercida, pelo prazer ficcional de inventar. Reconhecemos o imaginário, sem dúvida, mas não importa qual imaginário; é o imaginário específico de homens com sede de violência.

    Entre todas as representações do texto, por conseguinte, existe uma conveniência recíproca, uma correspondência que não podemos perceber senão por uma só hipótese. O texto que lemos deve se enraizar em uma perseguição real, relatada na perspectiva dos perseguidores. Esta perspectiva é forçosamente enganosa pelo fato de que os perseguidores estão convencidos de que sua violência é bem fundada; eles se pretendem justiceiros e é preciso, portanto, vítimas culpadas; mas esta perspectiva é parcialmente verídica, pois a certeza de ter razão encoraja esses mesmos perseguidores a nada dissimular sobre seus massacres.

    Diante de um texto do tipo do de Guillaume de Machaut, é legítimo suspender a regra geral segundo a qual o conjunto de um texto nunca vale mais, em relação ao relato da informação real, do que o pior de seus dados. Se o texto descreve circunstâncias favoráveis à perseguição, se ele nos apresenta vítimas que pertencem ao tipo que os perseguidores têm o costume de escolher e se, para mais certeza ainda, ele apresenta tais vítimas como culpadas do tipo de cri­mes que os perseguidores atribuem como regra geral a suas vítimas, há grandes probabilidades de que a perseguição seja real. Se o próprio texto afirma esta realidade, não há razões de pô-la em dúvida.

    A partir do momento em que pressentimos a perspectiva dos perseguidores, o absurdo das acusações, longe de comprometer o valor de informação de um texto, reforça sua credibilidade, mas unicamente em relação ao relato das violências de que ele próprio se torna eco. Se Guillaume tivesse acrescentado histórias de infanticídio ritual à sua questão de envenenamento, seu resultado seria mais inverossímil ainda, mas disso não resultaria nenhuma diminuição de certeza quanto à realidade dos massacres que ele nos relata. Quanto mais as acusações são inverossímeis neste gênero de textos, mais elas reforçam a verossimilhança dos massacres: elas nos confirmam a presença de um contexto psicossocial no seio do qual os massacres deviam, quase certamente, se produzir. Inversamente, o tema dos massacres, justaposto ao da epidemia, fornece o contexto histórico no seio do qual até um intelectual, à primeira vista, refinado poderia tomar a sério sua história de envenenamento.

    As representações persecutórias nos mentem, indubitavelmente, mas de modo demasiado característico dos perseguidores em geral, e dos perseguidores medievais em particular, para que o texto não diga a verdade sobre todos os pontos em que ele confirma as conjecturas sugeridas pela própria natureza de sua mentira. Quando é a realidade de suas perseguições que os perseguidores prováveis afirmam, eles merecem que lhes demos confiança.

    É a combinação de dois tipos de dados que gera a certeza. Se não encontrássemos esta combinação a não ser em raros exemplos, tal certeza não seria completa. Mas a frequência é demasiado grande para que a dúvida seja possível. Apenas a perseguição real, vista pela óptica dos perseguidores, pode explicar a conjunção regular destes dados. Nossa interpretação de todos os textos é estatisticamente certa.

    Este caráter estatístico não significa que a certeza repousa sobre a pura e simples acumulação de documentos, todos igualmente incertos. Esta certeza é da mais alta qualidade. Todo documento do tipo do de Guillaume de Machaut tem um valor considerável, porque nele encontramos o verossímil e o inverossímil agenciados de tal modo que cada um explica e legitima a presença do outro. Se nossa certeza tem caráter estatístico, é porque não importa qual documento, considerado isoladamente, poderia ser a obra de um falsário. As probabilidades são fracas mas não são nulas no nível do documento individual. No nível do grande número, em contrapartida, elas são nulas.

    A solução realista que o mundo ocidental e moderno adotou para desmistificar os textos de perseguição é a única possível, e é certa porque é perfeita; ela considera perfeitamente todos os dados que figuram nesse tipo de textos. Não é o humanitarismo ou a ideologia que a ditam para nós, mas razões intelectuais decisivas. Esta interpretação não usurpou o consenso quase unânime de que ela é objeto. A história não tem resultados mais sólidos a nos oferecer. Para o historiador das mentalidades, um testemunho em princípio digno de fé, isto é, o testemunho de um homem que não partilha as ilusões de um Guillaume de Machaut, jamais terá tanto valor quanto o testemunho indigno dos perseguidores, ou de seus cúmplices, de modo mais forte porque inconscientemente revelador. O documento decisivo é o dos perseguidores bastante ingênuos para não apagar os vestígios de seus crimes, diferentemente dos perseguidores modernos, demasiadamente atentos para não deixar atrás de si documentos que poderiam ser utilizados contra eles.

    Chamo de ingênuos os perseguidores ainda bastante persuadidos de seu direito e não muito desconfiados para maquiar ou censurar os dados característicos de sua perseguição. Estes aparecem em seus textos ora sob forma verídica e diretamente reveladora, ora sob forma enganadora mas indiretamente reveladora. Todos os dados são fortemente estereotipados e é a combinação dos dois tipos de estereótipos, os verídicos e os enganadores, que nos informa sobre a natureza desses textos.

    •••

    Hoje nós todos sabemos distinguir os estereótipos da perseguição. Este é um saber que se banalizou, mas que não existia, ou existia muito pouco, no séc. XIV. Os perseguidores ingênuos não sabem o que fazem. Eles têm demasiadamente boa consciência para enganar seus leitores com conhecimento de causa e apresentam as coisas tais como eles realmente as veem. Não duvidam de que, ao redigir seus relatos, dão armas contra si próprios para a posteridade. É verdade, no séc. XVI, para a tristemente famosa caça às bruxas. É ainda verdade em nossos dias para as regiões atrasadas de nosso planeta.

    Nadamos, portanto, em plena banalidade, e o leitor pode, talvez, achar tediosas as evidências primeiras que lhe dirijo. Que me desculpe, mas logo verá que isso não é inútil; basta, frequentemente, um minúsculo deslocamento para tornar insólito, até inconcebível, o que acontece no caso de Guillaume de Machaut.

    Falando como faço, o leitor já pode verificar que contradigo certos princípios que numerosos críticos consideram sacrossantos. Jamais, dizem-me sempre, se deve fazer violência ao texto. Diante de Guillaume de Machaut, a escolha é clara: ou fazemos violência ao texto ou então deixamos que se perpetue a violência do texto contra vítimas inocentes. Certos princípios, que parecem universalmente válidos em nossos dias porque fornecem, segundo parece, excelentes parapeitos contra os excessos de certos intérpretes, podem acarretar consequências nefastas, que aqueles que creem ter tudo previsto mantendo tais princípios como invioláveis não imaginaram. Continuamos repetindo em todo lugar que o primeiro dever do crítico é respeitar a significação dos textos. Podemos sustentar esse princípio até o fim diante da literatura de um Guillaume de Machaut?

    Outra fantasia contemporânea torna-se mesquinha à luz de Guillaume de Machaut, ou melhor, da leitura que todos nós dele damos, sem hesitar, e é a maneira desenvolta com que nossos críticos literários doravante abandonam o que eles chamam de referente. No jargão linguístico de nossa época, o referente é a própria coisa de que um texto pretende falar, ou seja, no caso presente, o massacre dos judeus, considerados responsáveis pelo envenenamento de cristãos. Há cerca de vinte anos nos repetem que o referente é quase inacessível. Pouco importa, por outro lado, que sejamos ou não capazes de a ele ter acesso; a preocupação ingênua com o referente só pode entravar, parece, o estudo moderníssimo da textualidade. Dora­vante contam apenas as relações sempre equívocas e escorregadias da linguagem consigo mesma. Não devemos rejeitar tudo nessa perspectiva; todavia, se a aplicarmos de modo escolar, corremos o risco de ver em Ernest Hoeppfner, o editor de Guillaume na venerável Sociedade dos textos antigos, o único crítico verdadeiramente ideal deste escritor. Sua introdução fala de poesia cortês, com efeito, mas não diz uma palavra sequer sobre o massacre dos judeus durante a peste negra.

    A passagem de Guillaume, citada antes, constitui bom exemplo do que chamei em Coisas escondidas desde a fundação do mundo de textos de perseguição. [3] Entendo com isso os relatos de violências reais, frequentemente coletivas, redigidas na perspectiva dos perseguidores, e atingidas, por conseguinte, por distorções características. É preciso perceber tais distorções para retificá-las e para determinar o arbitrário de todas as violências que o texto de perseguição apresenta como bem fundadas.

    Não é necessário examinar longamente o relato de um processo de bruxaria para verificar que aí encontramos a mesma combinação de dados reais e de dados imaginários, mas de nenhum modo gratuitos, que encontramos no texto de Guillaume de Machaut. Tudo é apresentado como verdadeiro, mas nós não cremos em nada disso e não cremos nisso pelo fato de que tudo é falso. Não temos nenhuma dificuldade, quanto ao essencial, de fazer a separação entre verdadeiro e falso.

    Aí também os encarregados da acusação parecem ridículos, mesmo que a bruxa considere os fatos como reais, e mesmo que se possa pensar que suas confissões não tenham sido obtidas pela tortura. A acusada pode muito bem se considerar como bruxa verdadeira. Talvez ela tenha realmente se esforçado para prejudicar seus vizinhos com procedimentos mágicos. Por outro lado, não julgamos que por isso ela mereça a morte. Para nós não existem procedimentos mágicos eficazes. Admitimos sem dificuldade que a vítima possa partilhar com seus carrascos a mesma fé ridícula na eficácia da bruxaria, mas esta fé não nos atinge; nosso ceticismo não é abalado por isso.

    No correr de tais processos, nenhuma voz se eleva para restabelecer, ou melhor, para estabelecer a verdade. Ninguém ainda é capaz de fazer isso. É o mesmo que dizer que temos contra nós, contra a interpretação que damos de seus próprios textos, não só os juízes e as testemunhas, mas também os próprios acusados. Esta unanimidade não nos impressiona. Os autores destes documentos estavam lá, e nós não. Não dispomos de outra informação que não venha deles. Todavia, com vários séculos de distância, um historiador solitário, ou até o primeiro indivíduo que aparece, julga-se habilitado a cassar a sentença pronunciada contra as bruxas. [4]

    Aqui temos ainda um relato, que parece paradoxal, mas na realidade não o é, entre a improbabilidade e a probabilidade dos dados que entram na composição dos textos. É em função deste relato, geralmente não formulado mas sempre presente em nosso espírito, que avaliamos a quantidade e a qualidade de informação suscetível de ser extraída de nosso texto. Se o documento é de natureza legal, os resultados são habitualmente tão positivos ou até mais positivos ainda que no caso de Guillaume de Machaut. Infelizmente a maioria dos relatos foram queimados ao mesmo tempo que as próprias bruxas. As acusações são absurdas e a sentença injusta, mas os textos são redigidos com a preocupação de exatidão e de clareza que caracteriza, como regra geral, os documentos legais. Nossa confiança é, portanto, bem colocada. Ela não permite suspeitar que simpatizemos secretamente com os caçadores de bruxas. O historiador que olhasse todos os dados de um processo como igualmente fantasistas sob o pretexto de que alguns deles são contaminados por distorções persecutórias não conheceria nada de seu trabalho e seus colegas não o levariam a sério. A crítica mais eficaz não consiste em assimilar todos os dados do texto ao mais inverossímil, sob o pretexto de que se pecaria sempre por falta e jamais por excesso de desconfiança. Uma vez mais o princípio da desconfiança sem limites deve se apagar diante da regra de ouro dos textos de perseguição. A mentalidade persecutória suscita certo tipo de ilusão e os traços dessa ilusão confirmam mais do que enfraquecem a presença, por trás do texto, de que ela própria trata, de certo tipo de acontecimento, a própria perseguição, a condenação à morte da bruxa. Não é, portanto, difícil, repito, separar o verdadeiro do falso, pois um e outro têm um caráter muito fortemente estereotipado.

    Para compreender bem o porquê e o como da segurança extraordinária que testemunhamos diante dos textos de perseguição, é preciso enumerar e descrever os estereótipos. Aí a tarefa também não é difícil. Jamais se trata de explicitar um saber que já possuímos, mas de cujo porte não suspeitamos, pois jamais o desempenhamos de modo sistemático. O saber em questão permanece inserido nos exemplos concretos aos quais o aplicamos e estes pertencem sempre ao domínio da história, sobretudo ocidental. Também jamais tentamos aplicar este saber fora deste domínio, por exemplo, aos chamados universos etnológicos. É para tornar esta tentativa possível que agora vou esboçar, ainda que de modo sumário, uma tipologia dos estereótipos da perseguição.

    2

    Os estereótipos da perseguição

    Falo aqui apenas de perseguições coletivas ou com ressonâncias coletivas. Por perseguições coletivas entendo as violências cometidas diretamente por multidões assassinas, como o massacre dos judeus durante a peste negra. Por perseguições com ressonâncias coletivas entendo as violências do tipo caça às bruxas, legais em suas formas, mas geralmente encorajadas por uma opinião pública superexcitada. A distinção, por outro lado, não é essencial. Os terrores políticos, principalmente os da Revolução Francesa, frequente­mente participam de um e de outro tipo. As perseguições que nos interessam se desenvolvem de preferência em períodos de crise que provocam o enfraquecimento de instituições normais e favorecem a formação de multidões, isto é, de ajuntamentos populares espontâ­neos, suscetíveis de substituir instituições enfraquecidas ou de exercer uma pressão decisiva sobre elas.

    Não são sempre as mesmas circunstâncias que favorecem tais fenômenos. Por vezes são causas externas, como as epidemias ou ainda a seca extrema, ou a inundação, que acarretam uma situação de fome. Outras vezes são causas internas, como agitações políticas ou conflitos religiosos. A determinação de causas reais, felizmente, não se coloca para nós. Quais sejam, com efeito, as causas verdadeiras, as crises que desencadeiam as grandes perseguições

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