Da vida de um imprestável
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Da vida de um imprestável - Joseph Freiherr von Eichendorff
Ruínas
Nota do Tradutor
Em primeiro lugar, gostaria de dizer que, sem a presença de Marina Ernst, este livro não teria sido possível. Não digo ajuda, pois o que houve foi mesmo co-laboração, meticuloso e dedicado trabalho em conjunto. Relendo a obra, nem eu nem ela sabemos dizer qual frase é de quem. Do Eichendorff, portanto.
Também mais que ajuda foi o trabalho de Luis Maffei, no lidar com aquilo que poucos poderiam lidar como ele, ou seja, com os poemas.
Não me deterei na obra nem no autor, pois para isso está o posfácio de uma das poucas estudiosas de Eichendorff, no Brasil, Nathaschka Martiniuk, da USP.
Como tradutor, revelo apenas algumas poucas linhas do trabalho: primeiramente, uma atenção ao aspecto singelo desta novela de linguagem simples, por vezes repetitiva, e longe de virtuosismos. Uma atenção ao leitor moderno, ao mesmo tempo em que tentávamos manter certa estranheza temporal
de uma obra publicada na primeira metade do século XIX e que não pode ser, portanto, simplesmente infestada de maneirismos hodiernos. Por fim, um trabalho de pontuação baseado em dois ensaios de Theodor W. Adorno, Em memória de Eichendorff e
Sinais de pontuação", em Notas de Literatura I. Com isso, convidamos o leitor a imaginar outro ritmo, outra paisagem, outras passagens.
Cotejamos nossa tradução com a de Germán Garrido, feita para o espanhol e publicada pela Ediciones Cátedra, de Madrid, sob o título De la vida de un tunante. Foi sempre proveitoso reparar nas coincidências e, sobretudo, nas interpretações diferentes – muitas vezes, discordamos com veemência de Garrido. Acreditamos, portanto, que este método tenha nos servido de alerta e guia.
O título canônico seria Da vida de um Bom-para-nada, usado por Otto Maria Carpeaux, em A literatura alemã, cuja referência em língua inglesa é semelhante: Life of a Good-for-nothing. No entanto, seguimos a sugestão da editora e encontramos o título no interior da própria obra; logo na primeira página, será possível identificar por que do imprestável
como tradução para Taugenichts.
Por fim, resta-me contar uma anedota: em conversa com Johannes Kretschmer, tradutor e professor da UFF, contei sobre as dificuldades e os desafios de traduzir Eichendorff, autor para ele bastante próximo. A resposta foi simples: citando algum colega, ele me disse, no fim, o tradutor sempre perde. Não se preocupe
.
Aprende-se. E que o leitor, este sim, ganhe.
Tradutor também agradece: Raquel Menezes, Susana Kampff Lages, Gabriel Alonso, Anna Schaefer e Johannes Kretschmer.
Capítulo 1
Rangia novamente a roda do moinho do meu pai, fazendo um barulho engraçado;do teto, a neve caía sem parar; os pardais gorjeavam, voando para lá e para cá; sentado à soleira da porta, eu coçava os olhos sonolentos, sentindo a felicidade de estar sob o brilho morno do sol. Meu pai apareceu, vindo de dentro de casa, resmungando outra vez;com a touca de dormir repousada na cabeça, virou-se para mim e disse: tu, um imprestável, novamente aí tomando sol, te espreguiçando, te esticando todo que nem um paxá e eu aqui fazendo todo o trabalho sozinho. Não posso mais te sustentar. A primavera já bate à porta, vai de uma vez por todas para o mundo e ganha tu mesmo o pão de cada dia
. – Bom
, eu disse, se sou um imprestável, ótimo, vou partir mundo afora e conquistar minha felicidade
. E isso realmente me caiu muito bem, porque um pouco antes tinha justamente pensado em viajar, pois ouvia o citrinela que no outono e no inverno sempre cantava consternado à nossa janela – camponês, apanha-me, camponês, apanha-me!
– e na primavera, cantando orgulhoso e graciosamente: mantém o teu serviço!
Entrei em casa e peguei meu violino, que eu tão bem sabia tocar. Meu pai ainda me deu algum trocado, e assim fui andando vagarosamente pelo vilarejo. Fui tomado por uma enorme alegria quando vi todos os meus velhos conhecidos e camaradas, como ontem, anteontem e sempre, saindo para o trabalho, para lavrar e arar a terra, enquanto eu me lançava na imensidão do mundo. Gritei um adeus de peito aberto e cheio de felicidade para todos eles, mas ninguém deu muita atenção. Nunca tinha me sentido tão bem! Quando finalmente cheguei num campo aberto, peguei meu amado violino e toquei e cantei, seguindo a estrada:
Agraciados por Deus serão aqueles
Que ao vasto mundo Ele envia
A estes mostra seus milagres
Montanhas e florestas, rios e pradarias.
Os indolentes, que em suas camas permanecem
Não gozam da brisa à luz da manhã
Cuidar dos filhos é tudo o que sabem
Carregar o fardo em troca de pão.
Rolam águas montanha abaixo
No alto zunem as cotovias
Como ignorar tão belo canto
A plenos pulmões e aberto peito?
Ao bom Deus deixo que opere;
Riachos, cotovias, florestas e prados
E terra e céu, que os preserve,
Pois tudo o mais foi abençoado!
Nisso, quando me viro num instante, aproxima-se uma bela carruagem, que provavelmente já vinha me seguindo havia um tempo sem que eu tivesse me dado conta –bem devagar ao meu lado – pois meu coração estava totalmente entregue à música. Para me ouvir, duas damas distintas puseram a cabeça para fora da carruagem. Uma delas era especialmente bonita e mais jovem que a outra; mas de fato as duas me agradavam. Quando parei de cantar, a mais velha rompeu o silêncio e me disse amavelmente: Ei, simpático rapaz, sabe mesmo cantar belas canções.
Sem pestanejar, retruquei: se me permitem, sei outras muito mais belas.
Ela, então, perguntou: Para onde vai já a esta hora da manhã?
Envergonhei-me, pois eu mesmo não sabia dizer, e respondi de forma insolente: para Viena.
Uma falou com a outra em alguma língua estrangeira que eu não podia entender. A mais jovem sacudiu a cabeça, a outra sorriu e logo me gritou: pule aí atrás e venha conosco, também vamos para Viena.
Havia nesse mundo alguém mais feliz que eu? Fiz uma reverência e num pulo só subi na carruagem. O cocheiro bateu com as rédeas e nós partimos pela estrada esplêndida, com o vento soprando no meu rosto.
Vilarejos, castelos e torres de igreja iam ficando para trás, e surgiam novos vilarejos, castelos e montanhas. Passávamos sobre sementeiras, arbustos e prados floridos, inúmeras cotovias sobrevoavam o céu azul – eu teria sentido vergonha de gritar bem alto, mas por dentro explodia de júbilo e esperneava e dançava pela carruagem, tanto que deixei o violino cair. Como o sol subia cada vez mais, surgiam grandes nuvens brancas no horizonte e tudo no ar e na superfície ficava tão vazio e abafado e calmo sobre o milharal ondulado que de repente me vieram à cabeça meu vilarejo e meu pai e nosso moinho, quão aconchegante era lá, sob a sombra junto ao lago, e como tudo parecia tão, mas tão longe agora. Senti-me estranhamente mal, como se tivesse que retornar. Coloquei meu violino entre o casaco e o colete, me sentei na escada da carruagem,e, perdido nos meus pensamentos, adormeci.
Quando abri os olhos, a carruagem se encontrava sob as altas tílias. Atrás delas uma escada larga entre as colunas levava a um magnífico castelo. Entre as frestas das árvores vi a torre de Viena. Aparentemente as damas já tinham descido havia algum tempo e soltado os cavalos. Fiquei tão assustado em ver-me assim sozinho que pulei rapidamente para dentro do castelo; foi quando ouvi risadas vindas da janela lá de cima.
Neste castelo me aconteceram algumas coisas estranhas. Primeiro, enquanto eu olhava em volta da ampla e fria antes sala, alguém bateu nos meus ombros com uma bengala, virei-me rapidamente e lá estava um senhor alto, vestido com uniforme oficial e uma cartucheira comprida de ouro e seda, pendurada até a altura dos quadris, segurando um bastão prateado e com um nariz absurdamente grande e arqueado, como o de um príncipe, imponente como o de um peru envaidecido. Ele me perguntou o que eu queria aqui. Eu estava tão perplexo que não consegui dizer nada. Enquanto isso, vários criados subiam e desciam correndo a escada, sem falar nada, mas me fitando de cima a baixo. Em seguida, veio uma dama (como eu viria a saber mais tarde) em minha direção e disse que eu era um jovem muito charmoso e que os estimados amos gostariam de saber se eu não estaria disposto a trabalhar como jardineiro. Tateei o colete, minhas poucas moedas, sabe lá Deus, devem ter caído da bolsa enquanto eu dançava na carruagem. Não tinha nada além do meu violino, pelo qual o senhor com o bastão não me quereria dar nem um centavo sequer, como falou ao passar por mim. Angustiado, disse para a donzela: sim
, ainda olhando de relance para aquela figura sinistra, que continuava rodeando como o pêndulo de um relógio, imponente e assustador. Finalmente veio o jardineiro, murmurou alguma coisa com um jeito caipira e me conduziu ao jardim, enquanto pregava um longo sermão: como eu deveria ser simples e trabalhador, não sair vagando pelo mundo, não perder tempo com prazeres fúteis nem coisas inúteis, desta maneira, eu poderia, com o tempo, prover algo de bom. Ainda houve muito mais coisas boas, bonitas, ensinamentos úteis, mas que eu desde então já esqueci. Na verdade, não sei nem como isso tudo foi acontecendo, apenas respondia: sim
– pois para mim era como se fosse um pássaro, a quem estivessem dando de beber.E foi assim que, graças a Deus, consegui meu ganha-pão.
O jardim estava cheio de vida, eu tinha diariamente meu prato de comida e mais dinheiro do que precisava. Infelizmente, também tinha muito o que fazer. Também os templos, as folhagens e as lindas veredas me encantavam demais. Ah, se eu só pudesse caminhar tranquilamente por elas, entabulando um diálogo inteligente, como os senhores e as damas que passeavam por ali todos os dias. Assim que o jardineiro ia embora e eu ficava sozinho, acendia meu cachimbo, me sentava em algum canto e deixava o pensamento vagar,