Grupos e intervenção em conflitos
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Grupos e intervenção em conflitos - Maria da Penha Nery
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
N369g
Nery, Maria da Penha, 1962-
Grupos e intervenção em conflitos [recurso eletrônico] / Maria da Penha Nery. - 1. ed. - São Paulo : Ágora, 2014.
recurso digital : il.
Formato: ePub
Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions
Modo de acesso: World Wide Web
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7183-158-2 (recurso eletrônico)
1. Psicoterapia de grupo. 2. Conflito (Psicologia). 3. Psicodrama. 4. Grupos sociais. 5. Psicologia social. 6. Sociodrama. 7. Livros eletrônicos. I. Título.
01/10/2014 02/10/2014
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GRUPOS E INTERVENÇÃO EM CONFLITOS
Copyright © 2010 by Maria da Penha Nery
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Editora executiva: Soraia Bini Cury
Editoras assistentes: Andressa Bezerra e Bibiana Leme
Capa: Daniel Rampazzo/Casa de Ideias
Diagramação: Raquel Coelho/Casa de Ideias
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Aos meus pais, José Francisco Filho
e Maria Inês Nery (in memoriam),
que lideraram uma linda família de
dezesseis filhos e me ensinaram, desde
pequena, a trabalhar com grupos.
A luta do grito para libertar o poder-fazer
do poder-sobre, a luta para libertar o fazer do
trabalho alienado, a subjetividade da objetivação.
JOHN HOLLOWAY
(Mudar o mundo sem tomar o poder.
São Paulo: Boitempo, 2003, p. 60)
Agradeço a todos que me auxiliram
neste solitário e povoado ato de
escrever, principalmente a Jaqueline
Zaina de Oliveira, Auxiliadora Nery,
Cristiane Nery, Liana Fortunato Costa,
Maria Inês Gandolfo Conceição, Letícia
Sumário
Prefácio
Introdução
1. Teoria dos grupos
2. Afetividade grupal e intergrupal
3. Processos de identidade – Uma visão socionômica
4. Dinâmicas de poder e conflitos grupais
5. O coordenador de grupos e sua práxis revolucionária
6. Métodos para intervenção em conflitos
7. Técnicas socioterapêuticas e a unidade funcional
8. O sociodrama: um método de intervenção e de pesquisa social
9. Análise de sociodrama para produção de conhecimento científico
10. O sociodrama em uma pesquisa sobre inclusão racial
11. Sociatria em um órgão público e uma intervenção comunitária
12. Da inserção do diretor no grupo
Referências bibliográficas
Prefácio
Onome psicodrama e a sua prática sempre estiveram associados, predominantemente, ao trabalho com grupos, ainda que também tenham sido aplicados no contexto do atendimento individual (aplicação menos conhecida em um plano geral).
Surpreendentemente, a produção teórica do psicodrama brasileiro e internacional – embora muito diversificada, calcada sobretudo no trabalho com grupos e voltada para o desenvolvimento e aperfeiçoamento dos conceitos criados por J. L. Moreno – poucas vezes se dirige especificamente para a discussão de aspectos que compõem uma teoria de grupos.
Mais surpreendente ainda tal constatação se torna quando a confrontamos com o fato de Moreno ter se dedicado intensamente, e por muitas décadas, ao estudo de grupos e à sistematização dos fenômenos grupais por ele observados, construindo um arcabouço teórico que nos permitiu olhar a vida grupal como um acontecimento novo, intimamente tecido por movimentos coconscientes e coinconscientes, revestindo o grupo, assim entendido, com um manto criativo e participativo capaz de diferenciá-lo de um simples amontoado de pessoas.
No Brasil, apesar da grande variedade de publicações psicodramáticas, são esporádicos os artigos que tratam especificamente da teoria de grupos, retomando Moreno, e é exemplo isolado o livro Grupos – A proposta do psicodrama (organizado por Wilson Castello de Almeida e publicado pela Editora Ágora em 1999).
Essa contradição se deve, talvez, à dificuldade de separar a macrovisão de grupos humanos – de um ponto de vista geral, como uma microssociologia inaugurada por Moreno na construção do que ele mesmo chamou de socionomia, englobando suas ideias que definiram uma sociometria e uma sociodinâmica que serviram para batizar os mais diversos fenômenos grupais – da microvisão de uma vida de pequenos grupos, observável no dia a dia das psicoterapias psicodramáticas grupais dos consultórios dos psicodramatistas. Como encaixar uma coisa na outra?
É justamente nessa encruzilhada que surge este livro oportuno de Maria da Penha Nery, Grupos e intervenção em conflitos.
Ser oportuna sem ser oportunista não é novidade para Maria da Penha (Penha, como é conhecida em nosso meio). Seu livro anterior, Vínculo e afetividade, já demonstrou o mesmo espírito criativo e inovador quando introduziu entre nós o conceito de lógicas afetivas de conduta, atualmente consagrado no psicodrama brasileiro e que veio facilitar muito a compreensão da transferência sob um ponto de vista psicodramático.
Penha nos guia, neste novo livro, numa viagem através das diversas estações da teoria de grupos, sem nunca abandonar o conceito de grupo como terreno para a cocriação. Vai além do simples cumprimento de um objetivo psicossocial, sempre se perguntando a serviço de quem estamos trabalhando. Marca, assim, uma posição ideológica que privilegia a liberdade de ser e de estar.
Nesse trajeto complexo, articula harmoniosamente as peças de um quebra-cabeça delicado que vai compondo as imagens tanto de uma teoria de papéis aplicada aos grupos quanto dos conceitos de coconsciente e coinconsciente morenianos, da sociodinâmica, das leis sociométricas de Moreno, das redes psicossociais, da função da afetividade grupal e intergrupal, dos processos cotransferenciais, das correntes psicossociológicas, compondo com tudo isso uma radiografia convincente da vida afetiva dos grupos.
Penha nos convida a refletir sobre os processos identitários dos grupos, na inclusão ou exclusão que nos dá a sensação de pertencer ou não pertencer em suas últimas consequências sociométricas de ancoragem grupal ou isolamento.
Ela ainda constrói um painel consistente das dinâmicas grupais de poder, relacionando-as com as leis sociodinâmicas de Moreno, levando em conta as desigualdades sociométricas presentes no grupo. O poder é dissecado em todas as suas instâncias inter-relacionais.
Penha nos remete ao estudo dos conflitos e de suas formas. Coloca diante deles, sob a ótica grupal, o coordenador de grupos e suas funções. Explicita os métodos de intervenção grupal que possam ser utilizados por ele, destacando o psicodrama e o sociodrama – entre outros métodos sociátricos, como teatro espontâneo, jornal vivo, teatro de reprise, teatro de criação etc. – e procura contextualizá-los numa perspectiva teórica.
O sociodrama como método de intervenção e pesquisa social recebe particular atenção: valoriza, e muito, os psicodramatistas brasileiros que contribuíram para sua redefinição e seu aperfeiçoamento. O sociodrama aparece, neste livro, com grande destaque, em razão de sua larga aplicação em várias frentes, sendo parte integrante do arsenal técnico do cotidiano de qualquer psicodramatista, e como instrumento fundamental para a produção do conhecimento científico. Como exemplo, Penha disseca um sociodrama sobre inclusão racial dirigido por ela na Universidade de Brasília (UnB) e um sociodrama realizado num órgão público federal (é possível!). Neles, a teoria se torna viva e clara, à medida que são relatados e comentados com riqueza de detalhes, incluindo as cenas temidas do coordenador de grupos e a sua práxis revolucionária, como ela mesma denomina sua ação e postura.
Enfim, irresumível e intraduzível. Só mesmo o contato direto do leitor com mais este livro utilíssimo e belíssimo de Maria da Penha é capaz de falar por si e de preencher a grande lacuna do psicodrama pós-moreniano, situando o trabalho com grupos numa vertente científica de chão, paredes e teto de uma construção sólida e irremovível.
Sergio Perazzo
Introdução
Ao findar meu livro Vínculo e afetividade, em 2003, senti que precisava dar-lhe continuidade, pois ele se centrou na psicoterapia e na teoria dos vínculos. Novos enredos, que apenas semeara em escritos anteriores, começaram a ter vitalidade em minha mente. Resolvi aprofundá-los por meio da ampliação da prática sociátrica e do doutorado na Universidade de Brasília (UnB), onde trabalhei com sociodramas da inclusão racial.
Agora escrevo para todos nós, que vivemos em grupos e os pesquisamos, e para profissionais que trabalham com socioterapia, recursos humanos e educação.
Indubitavelmente, ser terapeuta, pesquisador social, agente de saúde física ou mental, educador, gestor de pessoas ou possuir cargos de liderança e chefia nos traz o grande desafio de contribuir para que sujeitos e grupos consigam fazer a história, emancipar-se e ter dignidade em sua vida social e psíquica. Nesse sentido, alguns objetivos que tanto almejamos em nossos projetos de intervenção grupal – dentre eles melhorar as relações humanas, conviver com as diferenças, diminuir a violência social, promover direitos humanos, desenvolver redes sociais favorecedoras do declínio da desigualdade social, incrementar a justiça social, melhorar a qualidade de vida no ambiente de trabalho, mediar conflitos familiares, contribuir para que sujeitos desenvolvam seu papel de cidadãos – vêm carregados de nossas boas intenções
.
Sabemos que a boa intenção, por si só, não nos ajuda a atingir tais objetivos. Ao contrário, ela pode nos enredar e aos grupos com os quais trabalhamos à alienação social e mental e pode ajudar a manter o status quo da sociedade que produz e reproduz o sofrimento humano em várias dimensões. Assim, geramos o que Popkewitz (2001) chama de efeito de poder
. Ou seja, uma intervenção socioterapêutica pode servir para empobrecer os recursos sociais e mentais dos sujeitos que queremos libertar
das opressões que vivem; ou apenas ser um anestésico para que suportem a dor social.
É preciso ir além dos objetivos de nossos projetos psicossociais e perguntar o porquê e o para quê deles. Estamos trabalhando a serviço do que e de quem? Em que nível está nosso grau de consciência em relação à determinada clientela e às outras que a circundam, numa leitura filosófica e sociológica críticas. É preciso um estudo cauteloso sobre os sujeitos com quem trabalharemos, seu contexto histórico, cultural e social, respeitar o saber local e com eles construir a intervenção socioterapêutica. O autoconhecimento é imprescindível para que nós coordenadores de grupos evitemos empregar nossas ideologias e valores como se fossem ideais para os sujeitos. O treino constante no uso dos métodos sociátricos nos ajuda a liberar a cocriação grupal, no sentido de que os sujeitos se emancipem e encontrem saídas para situações-problemas.
Cinco fatores são fundamentais para o terapeuta social adquirir a competência para lidar com grupos: estudar teorias de grupos, ampliar o conhecimento social e cultural sobre sua clientela e dela se aproximar, coconstruindo a intervenção, buscar o autoconhecimento e treinar constantemente o uso de métodos socioterápicos.
Este livro tem o objetivo de contribuir para profissionais que trabalham com grupos e estudiosos da área, aprofundando os cinco fatores acima citados. No capítulo 1, sintetizei a teoria dos grupos, no enfoque da socionomia, ciência criada por Moreno (1972, 1974). Nos capítulos 2 a 5, aprofundei fenômenos que considero fundamentais para a socioterapia: a afetividade grupal e intergrupal, os processos identitários e as dinâmicas de poder.
Nos capítulos 6 a 9, refleti a respeito do coordenador de grupos e da intervenção terapêutica sobre os conflitos, explanei acerca da excelência do sociodrama como método sociátrico e de pesquisa e apresentei a produção de conhecimentos com métodos de ação. Nos capítulos 10 a 12, demonstrei a prática sociátrica, por exemplo com a pesquisa realizada na UnB sobre afetividade e política de cotas para negros, uma intervenção socioterapêutica em um órgão público e outra em uma comunidade. Finalizei abordando as cenas temidas do coordenador de grupos e sua participação na sociedade do espetáculo.
Nota: em todos os estudos de caso apresentados neste livro, os nomes usados são fictícios.
No mundo contemporâneo, os fenômenos grupais são exacerbados, em nível macrossocial, pela da globalização e, em nível microssocial, por meio da luta pelas experiências e identidades comunitárias e locais. Nesse processo, a abstração daquilo que denominamos eu
tem sua concretude na vida em grupos, que nos impinge processos identitários, conflitos afetivos e exercícios de poder. Assim, as dicotomias indivíduo e coletividade, psique e sociedade são superadas, pois o meu eu
é composto por vários eus
ou outros
dentro de mim e não se estrutura sem os outros com quem convivo e que têm muitos outros
dentro de si. Este é o pressuposto maior da teoria socionômica: o eu surge por meio do encontro com o outro (Moreno, 1972).
Para sairmos da abstração de eu
e outros
internos, Moreno (1974) propõe a teoria dos papéis sociais, pois ela nos ajuda a concretizar processos subjetivos e intersubjetivos e a pesquisá-los. Os papéis sociais existentes numa sociedade e cultura são preexistentes ao eu
, como formas de funcionamento do indivíduo em uma situação. Os papéis sociais estruturam e operacionalizam o eu
, fornecendo-lhe plasticidade e estética em adequação ao papel complementar do outro, ao contexto e ao momento. O comportamento humano é dominado por um leque de papéis, e a cultura se caracteriza por um conjunto imposto de papéis – com grau variado de sucesso – aos seus membros. Se o papel é uma unidade da cultura
(Moreno, 1984a, p. 29), há uma interação entre ego e papéis, uma integração de elementos sociais, culturais e individuais.
Naffah Neto (1997, p. 197), após uma análise marxista da obra moreniana, busca ampliar o conceito de papéis sociais, conjugando-os aos papéis históricos. Para o autor, os papéis, sociais e os vínculos por eles formados representam os nós cristalizados de uma rede no interior da qual se camufla o drama coletivo: é partindo deles, pois, que se pode ter acesso à dinâmica microssociológica de todo um processo social
.
Em consonância com nossos estudos anteriores, concluímos que a teoria dos papéis é a base da teoria de grupo de Moreno (Nery, 2003). O autor afirma que o grupo é um conjunto de pessoas, articuladas por papéis e por objetivos sociais comuns, no qual os estados (coconsciente e coinconsciente) dos indivíduos formarão padrões e dinâmicas relacionais próprias. A complementação de papéis sociais é um movimento/ação gerador do átomo social (Moreno, 1972; 1984a), ou seja, do núcleo de todos os indivíduos com quem uma pessoa está sentimentalmente relacionada, com quem vive sua história e pratica os exercícios de poder em todas as dimensões.
No desempenho dos papéis e nos átomos sociais estão as articulações dos mundos internos das pessoas – ou seja, a intersubjetividade, que em Moreno (1983) é concebida como estados coconsciente e coinconsciente. Esses estados são o intercâmbio mental entre indivíduos que promovem dinâmicas e padrões vinculares específicos às relações e aos grupos.
Moreno (1983, p. 65) diz:
O dilema a ser superado é a antítese natural entre o inconsciente individual (e coletivo) de A e o inconsciente individual (e coletivo) de B. [...] Pessoas que vivem numa íntima simbiose, como mãe e filho [...], desenvolvem ao longo do tempo um conteúdo comum, ou o que poderia ser chamado de coinconsciente.
Coconsciente e coinconsciente são, pois, os conteúdos comuns conscientes e inconscientes (sentimentos, desejos, atitudes, pensamentos etc.) trocados e criados pelas pessoas nos vínculos.
Sobre a socionomia
Os ramos da socionomia, ciência que estuda os grupos (Moreno, 1972; 1974), são a sociodinâmica, a sociometria e a sociatria. Os processos grupais podem ser desvelados por intermédio da sociodinâmica, que estuda os papéis e as funções dos indivíduos nos grupos, e da sociometria, estudo das estruturas grupais e das posições dos indivíduos nas interações grupais, ocasionadas pela distribuição da afetividade. A sociometria é especializada em compreender, por meio de métodos e testes sociométricos, os padrões afetivos que organizam os grupos sociais e as características das correntes psicossociais da população, uma infraestrutura psicossociológica inconsciente.
Segundo Lapassade (2005), Moreno contribuiu para o estudo da microssociologia ao se especializar no estudo dos grupos. A Socionomia é um tipo de microssociologia, pois aponta as contradições grupais resultantes das relações afetivas e