Negritudes em tempo de cólera: Relações raciais no brasil contemporâneo
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Negritudes em tempo de cólera - Simone de Freitas Conceição Souza
saberes.
PREFÁCIO
Este livro integra coletâneas que advêm do Projeto Negritudes em Tempo de Cólera: relações étnico-raciais no Brasil contemporâneo
. Este projeto está vinculado ao Grupo de Estudos e Pesquisas Saberes e Práticas Educativas de Populações Quilombolas – Eduq/Uepa.
São coletâneas em Educação que fundamentam e refletem sobre temáticas em contextos étnico-raciais diante de um cenário brasileiro que se mostra conflituoso e encolerizado por medidas antidemocráticas e não populares. É um livro que denuncia esse cenário, mas que também anuncia possibilidades de atitudes axiológicas que convergem para relações plurais e inclusivas. Evidencia com isso uma interpretação à luz dessas possibilidades encontradas nas leituras realizadas desta coletânea, no sentido de superar atitudes isoladas, seletivas e fragmentadas. Valida um trabalho acadêmico de cunho reflexivo.
Portanto, mais do que um livro de consulta e estudo, é uma corrente de resistência e força diante desse cenário encolerizado no Brasil contemporâneo que fomenta discussões que venham desconstruir
atitudes preconceituosas e discriminatórias, e muitas das vezes desconhecidas por aqueles que fazem parte desse cotidiano brasileiro.
Fomenta ainda a democratização do processo de tomada de decisões e a instauração de um processo coletivo de natureza emancipatória diante das questões que ainda se mostram desfavoráveis nesse contexto. Nesse sentido, explicita em seu marco referencial aspectos evidentes de uma Educação Multicultural, entendendo que essa educação pressupõe materializar rumos pedagógicos para o exercício pleno da cidadania de grupos sociais excluídos, que no caso deste livro, inclui o negro.
A coletânea é um indicador cultural que denuncia o racismo provocado por uma assimetria cultural, visando fomentar a solidariedade por meio de um projeto coletivo que insere a opção multicultural contra a discriminação no campo da diversidade cultural e da identidade negra no contexto local.
Diante disso, corresponde, ainda a coletânea, ampliar e aprofundar as suas interfaces com as relações étnico-raciais no Brasil contemporâneo, no intuito de apontar meio de superar problemas e redimensionar as ações executadas em relação a aspectos étnico-raciais em que a escola pode se efetivar, não só como centro permanente de debate, de articulação dos objetivos e necessidades dos vários segmentos educacionais, mas que também busque alternativas pedagógicas e administrativas de manifestação e gerência de conflitos internos, de elaboração de propostas curriculares e de ação pedagógica voltadas para o debate étnico-racial.
Nesse contexto, coletâneas como estas ganham destaque e relevância pelo pressuposto de que o compromisso político é fundamental nesse processo, uma vez que esse comprometimento exige que os sujeitos tenham consciência das responsabilidades nas atividades previstas no processo. É o que chamamos por meio dessa coletânea de negritudes em tempo de cólera, considerando as relações étnico-raciais no Brasil contemporâneo.
Ana D’Arc Martins de Azevedo
Uepa/Unama
1. Currículo escolar para a diversidade: o caso de uma escola quilombola em Salvaterra/PA
Ana D’Arc Martins de Azevedo
Laís Rodrigues Campos
Introdução
Convém pontuar que o século XXI já se configura como o século da sociedade do conhecimento
(Feldmann, 2003, p. 142). Entretanto, a escola tem servido historicamente como instrumento nas mãos da classe dominante, a fim de manter o "status quo", o conservadorismo e perpetuar e/ou prolongar ao máximo o seu domínio no campo ideológico, fazendo dela a reprodução das relações de produção e, portanto, a exploração econômica e a dominação cultural.
É a educação ocupando ao lado da força de trabalho e dos meios de produção, o elemento principal na satisfação das demandas das classes sociais que integram a sociedade. Porém, a educação sendo mediadora entre o conhecimento e as práticas históricas, o campo educativo (currículo), no cenário da globalização, pode ter um papel conscientizador, a partir de princípios políticos pautados na ética, considerando que as práticas desenvolvidas pelos homens têm sido caracterizadas por símbolos. Suas ações utilizam o equipamento de cultura simbólica
(Severino, 2001, p. 59).
O currículo, enquanto instrução mecânica, limita-se em uma atividade burocrática e fundamentada na concepção de que o ensino se centraliza apenas no professor que transmite conhecimentos, que em contraponto podemos ressaltar que o currículo deve contribuir para a construção da identidade dos alunos na medida em que ressalta a individualidade e o contexto social, o qual estão inseridos. Todo currículo é desenhado e possui intencionalidade e concepções diferentes, e isto vai caracterizar as diferentes visões que se tem do caráter de intervenção curricular; isto define uma prática que deve ser pautada na realidade em que se vive. Além de ensinar um determinado assunto, deve aguçar as potencialidades e a criticidade deles. Temos então, nesse contexto, uma discussão de currículo para a diversidade.
O que significa um currículo aberto, passível de mudanças, no sentido de se conhecer a realidade local, a fim de que esse currículo envolva práticas pedagógicas de maneira relacional, que sejam significativas para a comunidade escolar, e principalmente, aos alunos.
Assim, o currículo deve ser entendido não apenas como um plano formal de ensino ou plano de aula, mediante a organização de conteúdos e matérias, mas como um conjunto organizado do processo de ensino-aprendizagem em sala de aula, mediante o efetivo uso de livros didáticos, discussões, brincadeiras, projetos etc., sendo este considerado um dos principais objetivos da Lei n. 10.639/2003, pautada na arrumação
do currículo de maneira crítica, tratado como narrativa étnica e racial, de forma que possa [...] levar em conta também as desigualdades educacionais centradas nas relações de gênero, raça e etnia
(Silva, 1999, p. 99). É desafiador
desenvolver, na escola, novos espaços pedagógicos que propiciem a valorização das múltiplas identidades que integram a identidade do povo brasileiro, por meio de um currículo que leve o aluno a conhecer suas origens e a se reconhecer como brasileiro. (Moura, 2005, p. 69)
Com isso, o presente capítulo está relacionado nesse contexto, dialogando com uma pesquisa maior que discorre sobre o currículo escolar numa perspectiva de valorização da diversidade cultural em Salvaterra/PA, buscando elucidar como se dá o processo de construção de um currículo escolar quilombola em prol da diversidade cultural local.
A metodologia do trabalho se desenvolveu por meio da Pesquisa de Campo do tipo Participante em uma escola quilombola de ensino fundamental situada na comunidade Vila União/Campina, pertencente ao município de Salvaterra/PA. No primeiro momento, realizamos observações assistemáticas em campo e levantamento de documentos curriculares. E, posteriormente, a análises dos dados coletados de forma dialógica com os autores elencados na pesquisa que trazem discussões teóricas, a fim ao objeto de estudo.
Assim, o capítulo está organizando da seguinte maneira: introdução que apresenta o tema, o método; os aspectos teóricos sobre o currículo para a diversidade cultural; um recorte dos dados de uma pesquisa maior sobre o tema currículo escolar para a diversidade à luz de um Quilombo em Salvaterra.
1. Reflexões teóricas sobre o currículo escolar para a diversidade
A discussão sobre o Currículo Escolar para a diversidade se volta para aspectos teóricos que refletem na
valorização da diversidade, na convivência, no diálogo, de culturas e, também, na preservação de tradições, supõe a reflexão e o exercício de novos valores como a tolerância, o respeito, a solidariedade e a igualdade social, que se constituirão em fundamentos éticos do programa. (Ponce, 2006, p. 6, grifo nosso)
Essas práticas curriculares, quando não advêm das forças da natureza, compõem a cultura que emerge de produtos simbólicos no cotidiano (a linguagem, arte, religião, política etc.), numa relação em redes caracterizada pela ação intersubjetiva, e que se aparelha de instrumentos, cujas ferramentas são elementos simbólicos, produzidos e manuseados pela subjetividade; [...] conteúdos simbólicos da subjetividade dos educandos
(Severino, 2001, p. 72). E o Currículo sendo uma área do conhecimento da Educação, juntamente com a Didática, a História da Educação, a Sociologia da Educação etc., torna-se meio e condição para mergulhar no contexto histórico-social pela ação mediadora, norteada por uma prática técnica e política, intencionalizada pela prática simbólica.
Historicamente, o termo currículo foi discutido numa perspectiva teórica, um sentido maior de controle tanto ao ensino quanto à aprendizagem
(Hamilton, 1992, p. 43). Nesse contexto, remonta ao século XVII, por meio de registros do "Oxford English Dictionary [...] da Universidade de Glasgow como sua fonte mais antiga da palavra ‘curriculum’ (1663) (Hamilton, 1992, p. 5).
Palavra que aparece num atestadio concedido a um mestre quando de sua graduação (ibidem, p. 41); curriculum
derivado de uma raiz latina significando pista ou circuito atlético – tinha ressonâncias similares com ‘ordem como consequência’ e ‘ordem como estrutura’" (ibidem, p. 10). Termo, esse, associado por ocasião da reforma calvinista, quando supostamente trazia para a prática educacional, um tipo de controle explicitamente evidenciado na prática social calvinista (ibidem, 1992).
No século XX, para caracterizar as transformações ocorridas nas sociedades
(Sacristán, 1999, p. 147), observa-se uma educação pelo viés da escolarização universal (dotada de conteúdos), uma escola submissa à reprodução ou a transmissão da cultura objetiva menos restrita e conteudista; mais submissa às demandas dessas mudanças envoltas numa ideia de universalização, enquanto condição de igualdade para todos, como ideal democrático (visões filosóficas e políticas). Nesse sentido, o currículo é gerado num ambiente de conflitos e tensões que desenrolam no processo educativo (Sacristán, 1999).
Diante do exposto, o currículo desde a sua origem é evidenciado sob forma da ideia de controle, no qual se admite um conceito que subjaze a um campo