Racismo territorial: O planejamento urbano tem um problema de raça?
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Racismo territorial - Aramis Horvath Gomes
PREFÁCIO
Desigualdades raciais em assentamentos precários: um estudo sobre três favelas em São Bernardo do Campo – SP, primeiro livro de Aramis Horvath Gomes, é uma importante e madura reflexão que, iniciada na área do Planejamento Territorial, transborda pelas vielas da interdisciplinaridade que nos últimos anos invade, sem pedir licença, as áreas do conhecimento científico comprometidas com a transformação social e grita uma evidencia que muitos se negam a aceitar: O RACISMO É A ÚLTIMA FRONTEIRA DO ÓDIO.
E, como na história da humanidade revoluções sempre foram fenômenos produzidos pela juventude, apenas o olhar atento de um jovem pesquisador que envolvido com o campo não faz do empirismo um ato terceirizado, poderia produzir análises tão bem elaboradas sobre as situações de desigualdades sociais, econômicas e raciais, como as encontradas em favelas (ou serão comunidades?) de São Bernardo do Campo.
Pode-se dizer que os estudos sobre habitação e políticas de desenvolvimento urbano têm contemplado, no Brasil dos últimos anos, inúmeras análises relevantes sobre as condições da produção e reprodução da moradia popular, diversas faces da pobreza e das desigualdades em face à produção do espaço urbano.
Entretanto, ainda há muito que avançar no tocante à articulação desses estudos com a problemática das populações vulneráveis. Aramis Horvath desvela nuances importantes aos olhos de quem imagina que as favelas constituem territórios simplificadamente homogêneos. Ao cruzar dados sobre as condições de habitabilidade dos domicílios com a raça/etnia do chefe de família em três favelas de São Bernardo do Campo, o autor desfia o novelo quase indecifrável da história do Brasil, desde a presença do povo afro-brasileiro até a produção das cidades injustas, segregadas e insustentáveis como as conhecemos. Análises dos mapas temáticos gerados a partir de dados de órgãos públicos não deixam dúvidas: os domicílios mais precários das favelas, em boa parte dos casos, coincidem
com os domicílios chefiados por negros e pardos.
O último país do mundo a abolir oficialmente a escravidão e o país com maior população negra fora da África é também, coincidentemente
, um dos mais desiguais segundo a Oxfam e aquele com a maior concentração de renda do mundo, segundo estudos liderados pelo economista francês Piketti.
O que o trabalho de Aramis explicita é que a desigualdade se expressa para além das comparações entre o asfalto e o morro. Explicita-se também no interior dos territórios populares, periféricos e precários das cidades brasileiras, a desigualdade pode ser muito grande e expressa-se também pela raça e etnia. O que isso informa para as políticas públicas para as cidades? Para os programas de urbanização de favelas? O que isso informa para os formuladores de políticas públicas?
O livro aparece
no exato momento em que a sociedade brasileira se vê na obrigação de encontrar respostas reais para os problemas raciais, sociais e de gênero que foram sendo perpetuados por séculos e que empurram parte da humanidade para as fronteiras do ódio: as cracolândias, os presídios, o subemprego, os hospitais psiquiátricos, os IMLs.
A carne mais barata do mercado é a carne negra
Que vai de graça pro presídio E para debaixo de plástico Que vai de graça pro subemprego E pros hospitais psiquiátricos¹
Muitos são os trabalhos publicados, mas poucos são os que possuem uma base teórica tão instigante e provocativa. O tema expõe situações que não permitem que o leitor fique passivo aos acontecimentos narrados, nem tão pouco que ele deixe de estabelecer suas próprias análises sobre as situações de desigualdades produzidas no Brasil. Como diz Aramis,
O ensaio aqui proposto poderá servir para o aprimoramento de metodologias que possam aproximar e introduzir a questão racial dentro do planejamento urbano, oferecendo às três esferas de governo informações sólidas para a formulação e avaliação de políticas públicas transversais, que tenham como propósito diminuir as desigualdades sociais e raciais.
Trabalhos pioneiros abrem caminhos para novas interpretações da realidade e formulação de políticas para habitação e desenvolvimento que considerem a problemática de raça e etnia: o caminho está aberto e permitirá tecer novas articulações para a construção de cidades inclusivas, diversas, plurais, justas e democráticas.
Prof. Acácio Sidinei Almeida Santos – UFABC
Prof. Francisco de Assis Comaru – UFABC
Nota
1. A Carne, Marcelo Yuka, Ulisses Cappelletti, Seu Jorge.
APRESENTAÇÃO
A Região Metropolitana de São Paulo concentra 39 municípios e uma população de cerca de 19,6 milhões de pessoas, segundo o Censo do IBGE realizado em 2010. Além do grande contingente populacional, encontram-se polos industriais, comerciais e de serviços, impulsionados por uma economia dinamizada e ativa, além de abrigar a cidade de São Paulo, centro econômico e político no país.
Tais características sempre são resgatadas em momentos estratégicos, onde se entende a região no imaginário, sobretudo a cidade de São Paulo, como acolhedora e terra de oportunidades e crescimento para aqueles que aqui buscam novas condições de vida. Vide o atual slogan, por exemplo, da prefeitura da cidade de São Bernardo do Campo: São Bernardo, cidade do trabalho
. Entretanto, a RMSP, se revela um local extremamente desigual em diversos aspectos e a questão de acesso à cidade segue sendo central nos debates sobre sociedades socialmente justas e inclusivas. Porém, de forma geral, as discussões sobre acesso vem sempre alinhadas aos fatores familiares, econômicos e de classe social.
Observa-se que os territórios majoritariamente ocupados pela população negra nos grandes centros ainda são espaços precários e periféricos em sua maioria, com raízes profundas ligadas ao papel social dos negros ao longo dos anos na sociedade brasileira. Neste contexto, o estudo desenvolveu-se com o intuito de discorrer sobre a trajetória da população negra em São Paulo e na Região do Grande ABC, da senzala às periferias, apontando indícios do formato de operação do racismo estrutural brasileiro, e como isso se manifesta territorialmente.
Para fins metodológicos, adotaremos que população negra ou afro-brasileira, portanto, negros e afro-brasileiros, são mulheres e homens que se declaram pretos ou pardos, de acordo com o IBGE, e a população não negra envolve os brancos, amarelos e indígenas. Entendemos que a população indígena possui uma trajetória específica no país e a representação no grupo não negro foi adotada apenas para delimitar um campo de ação.
A hipótese aqui defendida é que mesmo na cidade informal, representada pelas favelas e loteamentos precários, os negros estão nos espaços menos favoráveis. Um dos objetivos é compreender se mesmo nas favelas, a segregação racial, fruto do racismo estrutural brasileiro, persiste como uma representação da cidade formal. Inicialmente debruçou-se sobre arquivos históricos de São Bernardo, buscando referências da presença negra na cidade desde o período colonial até os dias atuais, bem como o histórico de ocupação do território do ABC: quais foram os grupos raciais e sociais que aqui estavam e/ou se estabeleceram historicamente. Deste modo, montou-se um estudo com três assentamentos precários em São Bernardo do Campo em uma perspectiva de análise 1:1, ou seja, casa a casa. Posteriormente, construiu-se mapas de calor como forma de mensurar e sinalizar graficamente quais locais, dentro dos limites das favelas, possuíam mais atributos de precariedade, como falta de rede oficial de água e esgoto, ausência de banheiros individuais, entre outros, e assim sobrepor os resultados com a concentração populacional dividida entre negros e não negros. Os resultados foram validados em campo através de visitas acompanhadas de moradores e técnicos da prefeitura.
O município de São Bernardo do Campo não foi escolhido ao acaso. Durante passagem pela Secretaria de Habitação municipal e participação no mapeamento das áreas precárias e irregulares da cidade, tive a percepção de que na maioria das áreas mapeadas, as piores condições de moradia pareciam ser naturalmente designadas às pessoas negras, mesmo em locais onde já existe uma dificuldade de acesso à moradia e carência de serviços públicos. São Bernardo possui mais de 765 mil habitantes e mesmo que a cidade não tenha ocupado um papel central no século XIX, no que diz respeito à chegada de população africana escravizada, atualmente conta com cerca de 260 mil negras e negros que fazem da cidade sua morada.
Partimos da premissa de que nos locais com economias dinamizadas, como São Bernardo do Campo, encontram-se nos assentamentos precários e loteamentos irregulares uma diversidade de condições de moradia influenciadas pela posição geográfica, histórico da ocupação, entre outros fatores, tendo em comum o fato de que as famílias não tiveram alternativas ou não escolheram entrar no mercado habitacional formal. Para se ter uma ideia, a renda familiar necessária para se financiar um apartamento usado de 50 metros quadrados em São Paulo é superior a 11 mil reais².
O ensaio aqui proposto poderá servir para o aprimoramento de metodologias que possam aproximar e introduzir a questão racial dentro do planejamento urbano, oferecendo às três esferas de governo informações sólidas para a formulação e avaliação de políticas públicas transversais, que tenham como propósito diminuir as desigualdades sociais e raciais.
O texto está dividido em duas partes, na primeira discorre-se basicamente sobre o período entre o começo do século XIX e meados do século XX, com o despontar do Estado e da cidade de São Paulo através da produção cafeeira, a lei de terras e o impacto gerado sobre a população negra e pobre e como práticas urbanistas higienistas e eugênicas, apoiadas no racismo científico, foram responsáveis por segregar a população preta paulistana. Na segunda parte, disserta-se sobre a história da Região do Grande ABC e de São Bernardo do Campo, sempre sob um olhar racial. Discute-se, então, algumas desigualdades regionais e, por fim, apresenta-se o estudo de caso, resultados e conclusões.
Nota
2. Valores levantados pelo Canal do Crédito, com base no preço do metro quadrado divulgados pelo Índice FipeZap em dezembro de 2016. Disponível em: http://bit.ly/2PEc3Vn. Acesso em: 31 out. 2019.
INTRODUÇÃO
O último relatório sobre violência no Brasil publicado pelo IPEA (2017) reafirma a magnitude do número de pessoas que anualmente morrem assassinadas no país. Entre 2005 e 2015, houve um aumento de 22% no número total, passando de 48.136 para 59.080 homicídios, número que se aproxima dos 70 mil se considerados os homicídios ocultos, erroneamente não classificados como agressões letais. São índices expressivos, que beiram o cotidiano de países em situação de guerra. Estas estatísticas, desagregadas por grupo racial se agravam ainda mais: de cada 100 pessoas assassinadas, 71 são negras, sendo que os jovens negros entre 15 e 29 anos, gênero masculino, com baixa escolaridade, permanecem como as maiores vítimas. Dadas as condições regionais, em 2010, tendo a Paraíba como exemplo, foram assassinados 19 negros para cada não negro vítima de homicídio.
Cerqueira & Coelho (2017), apontam para o fato de que os pretos e pardos, que compõem o grupo negro, ao chegarem à idade crítica das chances de ser assassinado no Brasil (21 anos), possuem 147% a mais de chances de sofrerem homicídio do que a soma dos indivíduos não negros, sem levar em consideração características socioeconômicas. Entretanto, ao analisar uma amostra de população residente na cidade do Rio de Janeiro assassinadas em 2010, desagregando características de sexo, escolaridade, bairro de residência etc., os autores assinalam que:
os indivíduos negros possuem 23,5% a mais de chances