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Todo mundo merece morrer
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E-book192 páginas2 horas

Todo mundo merece morrer

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Sobre este e-book

Um assassinato no metrô de São Paulo, treze vidas cruzadas. Cada indivíduo com suas certezas inquestionáveis e apenas uma verdade: ninguém é o que parece.
Treze vidas que se cruzam por acaso e se tornam ligadas por um assassinato. O massacre planejado é impedido por um corajoso jornalista. O padre ali presente logo chama socorro e abençoa a alma altruísta que ajudou a evitar a tragédia. Um pobre médico morreu, vítima de um crime sórdido, que acabou com a vida de um homem de bem. Felizmente os demais passageiros estão a salvo.
A narrativa padrão, habitualmente construída pela sociedade, é deixada aos pedaços por Clarissa Wolff nesta história em que ninguém é o que parece. Nesse grupo heterogêneo de pessoas, uma coisa é certa: não há possibilidade de salvação.
IdiomaPortuguês
EditoraVerus
Data de lançamento6 de ago. de 2018
ISBN9788576863717
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    Todo mundo merece morrer - Clarissa Wolff

    Paulo.

    Acho que ela vai ficar puta.

    Quando a gente se conheceu, há tipo uns dois anos, ela tomava uma bebida que eu ainda não conhecia e eu tava com uma Heineken na mão. A gente foi se esbarrando pela vida por causa de alguns amigos em comum — São Paulo nem é uma cidade tão grande assim — e ela sempre fazia questão de se apresentar novamente.

    — Oi, eu sou a Helena — oferecendo a mão, o perfume e a memória.

    — Como você lembra disso tudo? — foi a reação dela, na cama, nua, meses depois, quando eu revelei esses pequenos momentos que tínhamos compartilhado.

    Como eu lembro disso tudo? Talvez seja porque sempre gostei de ruivas, e, para me apropriar dos clichês, os cabelos dela pareciam chamas. Pode também ter sido o líquido âmbar me despertando a curiosidade, o gosto adocicado que eu não soube decifrar, o jeito que ela me olhou meio desinteressada quando pedi um gole. Eu sou moreno e bebia Heineken, então não perguntei por que ela não lembrava de mim.

    Eram umas três ou quatro daquela primeira madrugada na cama quando ela falou que nunca tinha jogado boliche. Eu tinha ido pra festa de um ex-colega da faculdade tipo no fim da tarde, depois do trabalho, com meu jeans surrado, e ela tava lá, sozinha na sacada, tipo cena de filme. A garota sozinha e meio perdida esperando que eu fosse até ela.

    Claro que não foi nada assim. Ela tava sozinha na sacada porque tava no telefone discutindo com alguém. Desligou em seguida, virou pra mim e disse:

    — Ei, você fuma?

    Peguei o maço de cigarros do bolso e entreguei pra ela.

    — Acende pra mim?

    Meu olhar inquisidor foi o suficiente para ela completar:

    — É que eu não fumo. Não tô acostumada.

    Tirei o cigarro da caixa, ainda em silêncio, acendi e entreguei pra ela. Ela botou na boca, tragou, tossiu um pouco e soltou a fumaça.

    — O que foi? Decidiu que era um bom dia pra cultivar um câncer? — perguntei.

    — Todo mundo tá fumando e eu tô tentando uma coisa nova. Se chama não ter personalidade própria.

    Eu ri, ela virou a cara e voltou a tragar. Ofereci um gole de cerveja.

    — Não bebo — ela negou, sorrindo. Depois indicou o cigarro na mão. — Estou trocando de vício.

    Conversamos por algumas horas enquanto a festa seguia nas outras peças daquele apartamento imenso que meu colega bem-nascido tinha ganhado dos pais e saímos de lá para o meu, minúsculo. Fizemos sexo duas vezes antes de ela falar que nunca tinha jogado boliche.

    — Eu te levo lá. Prometo. — Era a primeira manifestação de juras de garoto apaixonado.

    — Agora você vai ter que me levar — ela resmungou, se erguendo na cama e olhando séria pra mim. — Fico muito puta quando quebram promessas.

    Por isso eu sabia que ela ia ficar puta. Aqui estava eu, dois anos depois daquela primeira noite, quebrando novas promessas, porque não, claro que não tinha levado ela na porra do boliche. Hoje, tinha prometido buscar ela no metrô depois da aula de francês pra gente ir jantar num restaurante legal, porque tenho trabalhado até tarde por dias demais pra pagar meu duas-peças e hoje não ia levar trabalho pra casa. Bom, pelo menos eu tava indo buscar ela no metrô e tava na hora certa, mas tinha ainda uns quarenta minutos de entrevista pra transcrever antes de dormir, que facilmente se tornariam três horas de trabalho.

    A banda que eu tava entrevistando dessa vez era inglesa, tinha mais de duas décadas de carreira e um som barulhento e cheio de guitarras, perfeito para agradar garotos púberes. O vocalista passava dos quarenta e agia como se tivesse vinte, e Helena ficava irritada quando eu colocava o disco deles para tocar. Revirava os olhos com aquela arrogância adequada só para quem realmente não trabalha com música e desatava a falar como tudo aquilo era bobo.

    A gente tava se encontrando e fazendo sexo fazia um ou dois meses e eu comprei ingressos para irmos juntos no show do Noel Gallagher, certeza que ela iria se abrir em sorrisos e emoção, porque todas as minhas ex-namoradas ouviam Wonderwall em repetição eterna. Ela sorriu, agradeceu, disse que pelo menos a gente ia ver o Gallagher menos pior e mudou de assunto. No dia do show, nos encontramos na Paulista. Ela vestia um jeans curto, camiseta do Blur, jaqueta de couro e um sorriso irresistível. Me contou que tinha ouvido Oasis na adolescência pseudorrebelde de menina riquinha da capital e que hoje tinha um pouco de preguiça de acompanhar a ideia de que tudo que tornava Liam Gallagher insuportável era na verdade legal. Fomos embora enquanto o Noel cantava Don’t Look Back in Anger e no táxi de volta pra casa ela largou a bolsa no meu colo e disfarçadamente, por baixo do couro do acessório, enfiou a mão na minha calça enquanto Rihanna tocava no rádio.

    Demorou três meses para eu dizer que a amava e implorar que ela ficasse comigo para sempre.

    A verdade é que eu vivia pra música, e a música vivia pra ela. Enquanto meu aparelho de som tocava em volume alto os discos que ouvíamos juntos, meus dedos corriam pelo teclado do computador e eu me dedicava a reportagens e entrevistas, e ela tinha um caderno aberto no colo e desenhava ou escrevia poemas curtos que ninguém jamais iria ler.

    Qual é o seu livro preferido de música? era uma pergunta frequente entre meus amigos, todos jornalistas de cultura, e os debates incluíam biografias bem escritas de ídolos da música e épicos jornalísticos como Mate-me por favor ou O resto é ruído. O dela era um dos livros de poesia do Leonard Cohen.

    Acho que ela vai ficar puta, chegar em casa, ligar o som e botar Leonard Cohen pra tocar. Queria eu ser o homem capaz de acalmar minha namorada, mas era ele.

    Não acredito que você não ama Cohen era provavelmente a repreensão mais frequente que eu tinha ouvido naqueles dois anos. Ela me deu de presente o primeiro disco dele e sentou na ponta do sofá enquanto os primeiros acordes enchiam com facilidade o espaço pequeno do meu apartamento.

    — Vocês não escutam música, não de verdade — ela tinha murmurado, a cabeça encostada na parede, os olhos fechados e a respiração ficando pesada. Olhando pra ela daquele jeito, pensei que ela ouvia música com o corpo todo, absorvendo pelos poros cada nota e se arrepiando a cada movimento.

    Talvez ela tivesse razão.

    Na primeira vez que esteve na minha casa, ela só foi embora na segunda-feira, vestindo uma camiseta minha e o mesmo jeans que tinha usado na festinha do meu ex-colega. No sábado, ela levantou da cama no meio da tarde, nua e preguiçosa, e arrastou o olhar pelas minhas estantes de livros e discos, fazendo comentários aleatórios.

    — Você tem algumas coisas boas aqui — comentou, as costas inclinadas para mexer na prateleira.

    — Tipo o quê?

    Anna Karenina.

    Se é pra ser sincero, confesso que fiquei surpreso. Não imaginava que aquela menina toda linda, que eu trouxe pra casa vestindo jeans justinho, blusa curta que deixava as costelas ao ar livre e batom vermelho, tivesse lido Tolstói. Não combinava com os olhos inocentes cobertos de camadas de rímel e o corpo miúdo. Eram coisas que não podiam ser misturadas. Uma mulher linda demais e Tolstói.

    — É mesmo? Você já leu?

    — Quatro vezes — ela respondeu, sem se virar.

    — Prefiro Dostoiévski.

    — Ah, é ok. Não curto muito algumas personagens femininas.

    — Você tá falando isso do cara que inventou o romance psicológico.

    Ela nem se dignou a me olhar.

    — É um homem tentando criar uma personagem de mulher. Fica tipo uma pilha de estereótipos.

    Devagar, ela continuou observando minhas estantes até pegar um disco da prateleira — In Utero, do Nirvana — e colocar no som, enquanto voltava pra cama.

    Meu celular vibrou e me trouxe pro presente. Tô na linha amarela era a mensagem, o que significava que ela chegaria na Consolação em coisa de cinco minutos. Eu já tava na Paulista e chegaria antes dela na plataforma do metrô, seguiríamos juntos pela linha verde por cinco estações, até minha casa. Mais uma mensagem: O horóscopo do metrô tá dizendo que eu vou encontrar um novo amor. Ler o horóscopo do metrô era uma das nossas piadas internas desde que nos conhecíamos, e a tradição tinha o potencial de ainda durar muito.

    (Mesmo assim, a ideia de ela encontrar um novo amor, ainda que por causa do absurdo de conjunções estelares, era capaz de me deixar ligeiramente desconfortável. Dois anos e o pensamento de viver sem ela induzia uma pequena crise de pânico.)

    — Qual é o seu signo? — foi uma das primeiras coisas que ela perguntou no nosso primeiro encontro, um pouco retardatário por causa do fim de semana inteiro juntos que inaugurou o começo do nosso relacionamento.

    — Você não acredita nessas besteiras, né?

    — Vai, fala — insistiu, sobre a taça de vinho tinto que ela tinha escolhido no restaurante francês que eu tinha escolhido por saber quanto ela gostava do país.

    — Áries.

    — Independente, individualista. Impulsivo. Não tanto quanto sagitário, mas ainda assim.

    — Só vale usar adjetivos que comecem com i? — perguntei, meio babaca, eu sei, mas ela riu. — Você tá ligada no efeito Forer?

    — Hmmm, não.

    — Então, é a falácia da validação subjetiva. Tipo, mapas astrais e signos e outras coisas são meio vagos, e daí qualquer pessoa pode se identificar com qualquer coisa. Se eu falar que você é organizada, por exemplo, você pode pensar na hora que não porque, sei lá, seu guarda-roupa é uma bagunça, mas daí cê vai pensar na sua estante de livros, toda arrumada, e vai pensar que é. No fundo essas coisas todas servem pra todo mundo.

    — Pode ser — ela respondeu, ainda sorrindo, como se soubesse algo que eu não sabia. — Você sabe que eu não dou a mínima pra isso, né?

    — Cara, como não? Você tá se respaldando numa informação completamente falsa. Essa ideia de signos é apoiada numa necessidade de desejabilidade social e autocentrismo.

    — Só que quase todo mundo acredita em signos.

    — E daí? É mentira!

    — E daí que... — ela deu uma garfada e começou a mastigar, como se organizasse a ideia — se você sabe mais ou menos como os signos se identificam e sabe que a maior parte das pessoas acredita nisso, com uma informação você consegue delinear com facilidade a forma como a pessoa se vê no mundo. — Tomou mais um gole de vinho. — Não interessa se celestialmente é verdade ou não. Quase todo mundo acredita. Um dado e você tem grandes chances de sacar a autoimagem da pessoa na sua frente.

    — Que... manipuladora.

    — Eu prefiro curiosa.

    E naquele primeiro encontro eu sabia que não tinha mais volta: estava com vinte e oito anos e tinha encontrado a mulher da minha vida.

    Mais tarde, com alguns meses, talvez um ano de relacionamento, ela viria a revelar mais coisas sobre sua visão da metafísica do universo.

    — Acho que deixei de acreditar em Deus antes de deixar de acreditar no Papai Noel — ela confessou, numa madrugada chuvosa no inverno suave de São Paulo. — Mas é que eu acreditei no Papai Noel por muito tempo.

    — Cê tá falando sério? — Ergui levemente o corpo para me virar pra ela, deitada de barriga pra cima encarando o teto, e passei a observar seus traços delicados, os olhos esverdeados e os cabelos vermelhos estirados de forma bagunçada pelo travesseiro branco. Ela tinha sardas espalhadas pelas maçãs do rosto, onde os cílios longos faziam sombra. Meu Deus, como ela é linda.

    — Talvez... Não sei. — Ela respirou fundo e o silêncio foi se formando aos poucos, como se feito de fumaça. — É que, quando eu perguntava coisas do Papai Noel, todo mundo tentava inventar explicações e se perdia, e eu pensava que eles não tinham como saber tudo do Papai Noel, e a gente nunca sabe tudo de alguém. Mas todo mundo sempre sabia tudo de Deus. Sei lá.

    Ela descreveu em detalhes o altar de Natal que a mãe montava na sala imensa com lareira de sua casa em Moema, e que tinha estudado em escola católica até o ensino médio, e falou do choque que foi a mudança. Catequizada contra a vontade, a freira costumava mandar bilhetes sobre sua teimosia exagerada, que influenciava negativamente os colegas. Ela tinha beijado na boca pela primeira vez aos treze anos, escondida, no recreio da escola. Tinha sido com seu melhor amigo, Fábio, um ato mais de curiosidade e rebeldia iniciante do que verdadeiramente de algum sentimento infantil de paixão. Perdera a virgindade com quinze, na casa do primeiro namorado (os pais achavam que estava na melhor amiga).

    — E depois, sei lá, o Papai Noel vivia pra dar presentes, era um propósito simples e plausível. Deus vivia pra que, controlar o mundo?

    Eu ri. Gostava de como ela exagerava algumas histórias pelo teor dramático ou humorístico, como se realmente tivesse sido verdade que ela tinha feito todas essas reflexões ainda na infância.

    — Mas, sei lá, não lembro direito a idade em que deixei de acreditar em Deus. Ou em qualquer outra coisa. Só aconteceu.

    Ela ainda encarava o teto.

    O metrô chegou e uma multidão desceu para fazer a baldeação entre as linhas. Estava esperando na plataforma que ia em direção à Vila Prudente e vi quando as esteiras rolantes de repente ficaram lotadas. Helena estava lá, um moletom (meu) maior que ela cobrindo seu corpo pequeno até quase os joelhos, os cabelos ruivos bagunçados e um livro — A

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