Crônicas de um bipolar
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Sobre este e-book
Com passagem por diversas agências de publicidade do Rio de Janeiro, Marcelo mostra que é uma pessoa empreendedora e criativa. No livro, ele deixa que o leitor tire suas próprias conclusões sobre a influência da doença em sua vida. Marcelo ainda busca esta resposta, que pode ser a chave para o entendimento de diversos fatos. A fúria criativa é uma delas. O publicitário é responsável por projetos tão interessantes quanto inusitados.
No ano de 1980, por exemplo, bastou descobrir que o nome do aguardadíssimo cometa Halley não havia sido registrado nem no Brasil nem nos EUA para que Marcelo imediatamente abandonasse a sólida carreira numa grande empresa para se aventurar a fazer do fenômeno a sua marca registrada. O seu cometa; megalomania, ingenuidade, inconsequência ou mero efeito da doença? Lembrando que estamos falando de alguém que ao ser avisado que o seu carro roubado estava estacionado em perfeito estado em frente a uma determinada casa em plena favela do Complexo do Alemão, não hesita: vai sorrateiramente até lá munido com a chave reserva trazer de volta o que lhe é de direito, claro.
Estas e outras histórias inusitadas, tanto das crises quanto dos períodos de normalidade, estão aqui reunidas, para o leitor matar um pouco da curiosidade sobre como deve ser o comportamento de um bipolar. Ou, quem sabe, até se reconhecer."
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Crônicas de um bipolar - Marcelo C. P. Diniz
Diniz
PARTE 1
ANTECEDENTES
Nesse período eu ainda não era bipolar. Ou não sabia que era. Só sabia que a família da minha mãe tinha um histórico bem rico em doenças mentais, coitada. E que a minha tia, quando me via ainda menino atravessando o quintal, fazia da janela alguns sons e gestos como se estivesse chamando um gato.
— O Marcelo é gato.
Ao que o meu tio acrescentava.
— Gato da bunda branca!
Eu chegava a ficar vermelho de tanta raiva, era um garoto nervoso pra burro.
SEXO RESOLVE TUDO?
Quando eu era adolescente, virava e mexia tinha uma depressão. Ficava triste, tinha gastrite, me isolava dos amigos por uns dias, era introspectivo, sofria de enxaquecas fortíssimas que me atacavam o fundo do olho direito... Quando ia ao médico, a resposta era sempre a mesma.
— Isso é normal nessa idade. Isso passa.
E passavam um remedinho qualquer, porque a crise passava mesmo. Já tratei de enxaqueca até com colírio Mirus. O que não passava era o quadro geral, o que já devia ser um prenúncio da minha bipolaridade, mas por enquanto deixa pra lá.
Um belo dia, meu pai vislumbrou a solução.
— Esse menino tá precisando é de mulher!
E lá fui eu. Minha iniciação tinha sido um desastre. Eu tinha só 11 anos, mas, como meu pai costumava dizer que eu havia nascido com 10, estava mais do que na hora. Primeiro aconteceu uma festinha no terraço da casa de uma vizinha. Todos os meus amigos foram, todos na faixa de 14 a 17 anos, as meninas também. Foi quando a Rebeca e a Beatriz se dispuseram a experimentar os beijos de todos os presentes. Fizemos fila. Eu achei aquilo uma maravilha e devo ter agradado um pouco, senão pela técnica, pelo menos pela carne fresca e os olhos verdes. Uns dias depois, estávamos eu e o Marcílio vendo televisão na casa de Rebeca, e ela se aninhou comigo no sofá. Beijo aqui, mão ali, desabotoa esse botão, aquele desajeitamento, ela me pegou pelo braço e me levou para o quarto. Fechou a porta, baixou a persiana, continuou a tirar a roupa, aquele esfrega daqui e dali — eu já estava com o pau na garganta, ela chegava a roxear o rosto e o pescoço. Foi quando o idiota do Marcílio gritou:
— A Dona Marieta tá chegando!
Que correria! Aperta o sutiã, bota o vestido, abotoa a camisa, sobe as calças, ajeita o cabelo, passa um pó de arroz. Mas o alarme era falso. Filho da puta!
A dona Marieta estava na aula da autoescola, não tinha chegado coisa nenhuma. Mas ia chegar. E lá se foi o clima pra cucuia.
Passavam-se as semanas e não acontecia uma nova oportunidade. Meu cobertor já estava engomado de tanta porra — não sei como eu tinha coragem de encarar minha mãe fazendo a cama pela manhã. Foi quando a Rebeca chegou pra mim, junto com uma colega lindíssima do colégio onde ela estudava, e jogou a maçã:
— Você não quer passar o carnaval com a gente? Nós vamos para o sítio da Cecília, aquela do internato, você conheceu.
Claro que eu conhecia. As meninas do internato estiveram numa festinha nossa nas últimas férias. Eram lindas e dominavam todas as nossas fantasias. Meus amigos diziam que elas não eram mais virgens, que topavam tudo. Imagine, naquela época isso não existia, era como se fosse um presente dos deuses. Mas a grande sacanagem foi que o meu pai não deixou que eu fosse. Falou que eu era muito novo — agora eu não tinha mais nascido com 10 anos —, que não conhecia as pessoas que me convidaram, melou tudo.
Frustração que segue, o Marcílio, que tinha acabado de fazer 18 anos, resolveu reparar a empatada que deu na minha foda.
— Vou te levar num randevu. Você vai gostar.
E lá fomos nós. Av. Pedro II, em Belo Horizonte, uma bela amostragem do baixo meretrício. Três da tarde, eu fiquei do lado de fora enquanto o Marcílio ia lá dentro combinar. Pouco depois ele chegou à porta e me chamou.
Quero dizer, pouco depois só se foi no relógio, porque pra mim demorou um século. Eu estava um pouco pálido e com as mãos suando. Veio uma loura oxigenada meio gorda, com um vestido verde brilhante, sandália tipo havaiana, e foi me arrastando pro quarto.
— Vem cá, bem.
Puxou o fecho e tirou o vestido com uma prática de segundos. Tinha uns peitos branquelos, meio caídos, e a calcinha não me lembro mais, tão depressa ela se desfez do inconveniente. Pulou naquele colchão de molas cheio de calombos, e eu ainda estava desabotoando a camisa, encostado num guarda-roupa assim de quina, uma forma sui generis de decorar o quarto.
Guarda-roupa de quina, penteadeira de quina — depois eu fui reparar que as putas adoravam decorar os quartos daquela maneira. Vai entender!
— Pode tirar a roupa toda, bem. Vem cá, vem cá.
E batia com uma das mãos no espaço da cama que sobrava. Da minha parte, estava mais focado naquele monte de cabelos pretos em forma de triângulo. Me deitei sem saber se eu queria ter prazer ou me ver livre daquele martírio.
Com o pintinho tipo bico de chaleira, pois ainda não tinha feito minha operação de fimose, fui me aprochegando
ao meio das pernas dela. Mas não é que a filha da puta não me deixou trepar? Ficou deitada de lado e, enquanto eu tentava fazer o que imaginava ser uma relação sexual, a desalmada cutucava o esmalte das unhas.
Não preciso dizer que fiquei um bom tempo sem procurar uma mulher. Haja mão direita, mão esquerda e quadrinhos do Carlos Zéfiro! Quando aparecia uma revista estrangeira com fotos de mulher pelada, então, nossa senhora!
A experiência pra valer veio aos 15 anos. Mamãe tinha contratado uma empregada razoavelmente gostosa, e eu ficava me corroendo pelos cantos da casa, inquieto e deprimido. Meu pai sacou que podia ser falta de mulher. Me chamou na conversa.
— Não é nada não, pai, estou preocupado com as provas. Tenho dificuldade em matemática, não estou conseguindo me concentrar...
Para quem sabe ler, um pingo é letra. Isso foi logo depois do almoço, naqueles bons tempos em que todos almoçavam em casa.
— Vou te ligar do escritório. Me espera.
Ele não disse o que ia fazer. Fiquei na expectativa.
— Marcelo, faz o seguinte: vai na rua Mariana número tal e procura a dona Zélia. Ela está te esperando. Quatro da tarde, não falha.
— Ok, pai.
Toquei a campainha às quatro em ponto. Atendeu uma senhora, e eu disse o meu nome. No primeiro passo porta adentro, vi uma morena deslumbrante, com uma saia justa de lã mostrando as coxas e uma blusa branca propositalmente desabotoada na medida certa da imaginação dos seios. Fui direto, me sentei e lhe tasquei um beijo na boca. Ainda deu pra vê-la arregalando os olhos pra dona Zélia, como quem diz: Nossa, este chegou com tudo!
Mas, a partir daí, foi um carinho só. Agora, sim, eu tinha arranjado alguém pra valer.
— Vem, meu querido, vem aqui pra dentro.
Eu tinha chegado ao paraíso.
Na semana seguinte eu queria de novo, e de novo, e de novo. Só que eu tinha que pedir dinheiro ao meu pai, que não era tão abonado assim. Três mil dinheiros por vez, o lugar era um dos melhores. Fiquei com vergonha de continuar pedindo e tratei de arranjar um trabalho. Recebia por semana, mas era pouquinho. Então, a Luana concordou em me dar uns descontos. Como tudo tem um preço nesta vida, ela pedia que eu fizesse sexo oral, o que não era tão corriqueiro naquele tempo.
— Beija aqui, meu amor. Só aqui em cima, que é limpinho.
Eu não gostava, mas atendia, meio que rapidamente.
Acontece que uma experiência dessas tinha que ser contada, caso contrário não valia. Levei alguns amigos meus lá. A gente ia nas tardes de sábado e ficava nos fundos, onde tinha uma mesinha redonda e umas cadeiras, ambiente ideal para a nossa chacrinha. Chegava uma, chegava outra, e a gente ficava ali de galinhagem. Até que um dia a Luana estava ocupada, e uma novata lourinha, muito bonita, se engraçou comigo. Não tive dúvidas: executei a moçoila.
Quando saí do quarto, a Luana estava na porta.
— Filho da puta, me traindo! Agora me paga, agora me paga tudo que você me deve!
Só em puteiro desconto vira dívida. E eu tive que pagar.
Mas, como diz o ditado, quando você variar, não vai querer outra vida
. E foi o que aconteceu. Eu nunca fui um sujeito comedido. Quando fumava, eram três maços por dia. Quando bebia, era todo dia. Quando tomei gosto pelo sexo, chegava no puteiro e queria comer todas elas. Só que a quantidade me exigia preços menores. E da casa da Zélia eu passei por todos os becos de baixa categoria da cidade. Peguei quase todas as doenças venéreas da enciclopédia médica. Fiz tanta merda sem qualquer resquício de amor que acabei me cansando e me amarrando aos 23 anos. A partir de um sorriso bonito, minha mulher me fisgou fácil, fácil.
O Miguel, meu amigo de putaria, reclamou de coração.
— O Marcelo se casou e eu fiquei viúvo.
GAROTINHO PRECOCE
Foi lá nas vizinhanças da Rebeca e da Beatriz que meu pai comprou nosso primeiro apartamento. Era no bairro da Serra, em Belo Horizonte. Apesar da timidez, acabei conhecendo uma turminha que se reunia a uma quadra e meia lá de casa.
Eu vinha de um lugar um pouco temerário. Era pertinho do cemitério do Bonfim, e os meus amigos eram os filhos dos coveiros. Quando tinha um enterro de rico, com muita gente, nós íamos ver. Aquelas mulheres todas chorando, e eu não sentia nada! Será que não?
— Vamos embora. Pega o bodoque, vamos. Tem muito calango no tanque de ossos.
Cada um pegava seu carrinho de rolimã e se mandava, fazendo barulho pelo cemitério afora.
Quando chegava o dia de finados, a gente aproveitava para vender umas velas. Mas, com todos os apertos do meu pai, eu parecia rico perto daqueles meninos. Um deles, coitado, costumava engraxar o mármore das sepulturas para levar dinheiro pra família. Até que uma pedra se desprendeu e abriu a cabeça dele ao meio. Foi uma cena horrível, ver o corpo morto de um menino tão pobre, com a cabeça ensanguentada, deitado em cima da sepultura de uma família tão rica. Por essas e por outras, hoje em dia eu me recuso a comparecer a velórios, enterros e missas de sétimo dia.
— Não tenho que ir porra nenhuma.
Para mamãe, foi um alívio sair daquele lugar, tirar seu único filho, literalmente, do cemitério. Meu pai trabalhava na RKO Radio Filmes, que tinha sido comprada pela Rank. Na transição, ele foi indenizado e continuou empregado. Já dava para comprar apartamento, pois mais de dez anos de casa davam direito a estabilidade. A legislação trabalhista herdada de Getúlio Vargas funcionava mesmo. E, pela primeira vez, eu frequentava a classe AB. Meus novos amigos tinham casa própria, algumas de dois andares. Na garagem já apareciam os primeiros carros. Quem vinha do Bonfim, do outro lado da cidade, era visto com alguma reserva, mas, afinal, eu tinha olhos verdes, sacou?
Da minha idade só o Rogério, um coitado que tinha o rosto queimado. Nada que as plásticas de hoje em dia não pudessem amenizar, só que naquele tempo a medicina estava bem atrasada. Os outros caras eram uns quatro anos mais velhos. Alguns já tinham feito 18. E judiavam. Não sei quantas vezes me agarraram pelos braços, um de cada lado, e me fizeram correr pra trás. O problema era que, com o coração ferido, eu nunca soube perdoar. Um dia dei um bico com toda força na canela do Sérgio, que era um dos que mais me sacaneavam. Se eu soubesse que aquele chute seria o passaporte para o meu respeito, tinha lhe aplicado bem antes. Mas, quando se é pequeno, coragem não se ganha instantaneamente.
Naquela esquina da rua Muzambinho com a rua do Ouro, apenas três quadras abaixo da rua Ramalhete, que o Tavito e o Ney Azambuja tornaram famosa através de uma canção, eu ganhei minha alforria, embora de uma forma muito dolorosa. Minha segunda irmã, Margareth, estava com um aninho quando teve uma febre alta. Somente uma semana depois o médico suspeitou de meningismo. Ela foi internada no mesmo dia e morreu à noite: o exame do líquido da espinha apontou meningite. Minha mãe chorava muito, inconsolável. Foi quando papai me mandou sair à noite para encontrar os amigos, sair daquele ambiente pesado lá de casa. Até então, eu tinha que me recolher ao pôr do sol.
Sem querer fui me lembrar
de uma rua e seus ramalhetes
o amor