Biografia José Saramago
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Sobre este e-book
«Trata-se de um trabalho honesto, sério, sem especulações gratuitas. Ao cabo de trinta e cinco anos, pela primeira vez, o caso dos despedimentos de jornalistas do Diário de Notícias, de que fui director-adjunto, é correctamente descrito no livro de João Marques Lopes. Fiquei muito satisfeito com a leitura.»
José Saramago
«É um trabalho notável e seriamente interessante porque, para além dos inúmeros episódios desconhecidos (e, alguns, de teor eminentemente cómico), quando chegamos ao final sentimo-nos, mesmo que com ele nunca tenhamos privado, muito mais próximos do escritor.»
João Tordo
Prémio Literário José Saramago 2009
João Marques Lopes
É doutorado em Literatura Brasileira pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. É autor de várias biografias de escritores portugueses, nomeadamente José Saramago, Almeida Garrett, Eça de Queiroz e Fernando Pessoa, bem como de diversos artigos e comunicações em revistas e colóquios. Trabalhou como docente de literaturas lusófonas na Universidade de Oslo. Licenciado em Filosofia e em Ensino da Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, exerceu também actividade docente no ensino secundário ao longo de uma década.
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Biografia José Saramago - João Marques Lopes
biografia – josé saramago
Título: Biografia – José Saramago
Autor: João Marques Lopes
© Autor e Guerra e Paz, Editores, Lda., 2021
Reservados todos os direitos
A presente edição não segue a grafia do novo acordo ortográfico.
Revisão: Guerra e Paz
Design: Ilídio J.B. Vasco
Ilustrações: Lucy Pepper
Isbn: 978-989-702-697-3
Guerra e Paz, Editores, Lda
R. Conde de Redondo, 8–5.º Esq.
1150-105 Lisboa
Tel.: 213 144 488 / Fax: 213 144 489
E-mail: guerraepaz@guerraepaz.pt
www.guerraepaz.pt
Índice
Prefácio
1. O menino pobre (1922-1933)
O País e a família
Entre Lisboa e a Azinhaga
A escola primária
A família
2. O serralheiro autodidacta (1934-1946)
A Escola Industrial Afonso Domingues
Serralheiro mecânico
As bibliotecas
O ano de 1936
3. A Terra do Pecado e o silêncio (1947-1965)
O romance da juventude
O amanuense no tempo da repressão
Na Editorial Estúdios Cor
Por uma bibliografia crítica actualizada
4. Poesia, crónica e jornalismo (1966-1973)
Os Poemas Possíveis e Provavelmente Alegria
Cronista e crítico literário
Editorialista no Diário de Lisboa
A poesia de Saramago à margem da vanguarda poética dos anos 60
5. O Diário de Notícias ao serviço da classe operária e do socialismo (1974-1975)
O PREC
O DN, o gonçalvismo e a revolução socialista
Saramago e os saneamentos
Variações da campanha contra o papel de Saramago no DN
6. O Memorial do Convento e a consagração do romancista (1976-1990)
Levantado do Chão e o estilo saramaguiano
Memorial do Convento
O Ano da Morte de Ricardo Reis e outras obras
O encontro com Pilar del Río
Na génese do «estilo saramaguiano»
7. O veto do Governo PSD a O Evangelho segundo Jesus Cristo e o «exílio» (1991-1994)
O evangelho herético
O veto
O «exílio» em Lanzarote
Cartas de leitores pró e contra O Evangelho segundo Jesus Cristo
8. O ciclo da alegoria e outras obras (1995-2008)
O fim da razão?
O Ensaio sobre a Cegueira e os romances alegóricos
As memórias, o tema da morte e A Viagem do Elefante
O mundo em números ou o apocalipse segundo Saramago
9. Todos os prémios
Antes do Nobel
O Nobel
Superstar
Excertos do texto da atribuição do Nobel a José Saramago
10. Outras polémicas
Saramago e o PCP
A democracia, a questão palestiniana, o iberismo
Os Cadernos de Lanzarote
A Fundação José Saramago
Posfácio
Cronologia
Bibliografia
Obras de José Saramago
Bibliografia essencial sobre a obra e a vida
Prefácio
de João Tordo
No filme José e Pilar, que tardou mais do que este livro a chegar ao público, existe um episódio singular, logo no princípio, que serve, ao mesmo tempo (e em escassos segundos) para arrebatar o espectador até ao final e oferecer uma dimensão nova, para muitos desconhecida, àquele que foi o único Prémio Nobel da Literatura em português. Esse episódio apanha Saramago num flagrante que nem sequer é flagrante, uma vez que o escritor não o esconde: vendo-o concentrado no ecrã do computador, e julgando, pela sua pose idónea e semblante carregado, que matuta a laboração de uma obra, descobrimos segundos mais tarde que, na realidade, está a jogar Solitaire, um jogo de cartas virtual, regozijando-se logo em seguida da dança que as cartas fazem no ecrã quando vence. «É uma coisa bonita», comenta Saramago.
Parte do fascínio pela pessoa do escritor – tantas vezes contrária à sua persona pública, o Saramago que nos habituámos a ver nos jornais, na televisão e em conferências um pouco por todo o mundo – advém, como é normal, dos episódios caricatos que sua a vida proporcionou. Por ser o homem que era, frontal e com um toque subtil de humor britânico, estes episódios são raros, uma vez que os seus gestos eram, ao mesmo tempo, extremamente cuidados e minuciosamente escrutinados pela imprensa e pelos leitores; raras vezes se deixou trair pela tentação de fazer um esgar inusitado para a câmara ou de comportar-se de uma maneira que não se adequasse a essa persona (a que alguns, talvez com razão, chamaram de reservada e outros, sem razão nenhuma, de arrogante).
Esta biografia contém alguns desses episódios, em que um homem se desvela por trás dos biombos que uma obra magistral sempre urde em torno de um autor; episódios esses que, provavelmente, o leitor comum desconhecerá. Veja-se, por exemplo, a história em que Saramago, ainda serralheiro mecânico, se recusa a levantar-se perante a passagem do seu chefe, ao contrário de todos os seus colegas de trabalho, continuando a comer da sua marmita; ou a altura em que, ao escrever O Ano da Morte de Ricardo Reis, se aloja no mesmo Hotel Bragança, em Lisboa, que a personagem do romance para melhor entrar na sua pele e se passeia pelo Cemitério dos Prazeres visitando a campa de Pessoa. Neste livro, João Marques Lopes soube exemplarmente gradar estes momentos de puro deleite com outros de enorme importância social e política, como se, ao mesmo tempo que vamos conhecendo José – e não apenas a sua persona –, fôssemos, também, conhecendo as vicissitudes e contradições de um Portugal e de um mundo em constante mudança, vicissitudes essas que geraram e foram transformando aquela que é a obra maior dos últimos cem anos. Creio que Saramago também se regozijaria desta biografia: é um trabalho notável que expõe as grandes polémicas saramaguianas, contando ao pormenor o seríssimo caso da censura a’O Evangelho segundo Jesus Cristo e da conturbada fase do PREC em que o Nobel foi acusado de saneamento político no Diário de Notícias durante o Verão Quente; mas é um trabalho notável e seriamente interessante por outra razão: porque, para além dos inúmeros episódios desconhecidos (e, alguns, de teor eminentemente cómico), quando chegamos ao final sentimo-nos, mesmo que com ele nunca tenhamos privado, muito mais próximos do escritor. Poderia dizer-se, aliás, em relação a este livro, o mesmo que Saramago disse do jogo de cartas que logrou vencer no computador: «É uma coisa bonita.»
biografia
José Saramago
1. O menino pobre (1922-1933)
O País e a família
Entre 1968 e 1972, Saramago escreveu largas dezenas de crónicas para o diário A Capital e para o semanário Jornal do Fundão. Em algumas, como «Retrato de Antepassados», «Molière e a Toutinegra» ou «Carta para Josefa, minha avó», incidia particularmente na memória da genealogia e da infância. O bisavô berbere que carregava a mancha de um crime de sangue. O avô posto na roda da Misericórdia e guardador de porcos, mas que casara com a rapariga mais bela da aldeia. A casa de terra batida dos avós maternos, camponeses humildes e analfabetos numa aldeia perdida no meio do Ribatejo. A água-furtada de um sexto andar lisboeta onde vivia com os pais e havia apenas dois livros, um guia de conversação de português-francês e A Toutinegra do Moinho, de Émile de Richebourg, ambos pertencentes a outrem.
Tudo isso era então tornado público por José Saramago e serve hoje de fonte incontornável para situar a sua entrada na vida entre os desfavorecidos da sociedade portuguesa. O próprio País era ainda essencialmente agrícola, rural e atrasado. Em 1930, quando o menino já tinha oito anos, apenas um quinto dos portugueses habitava em centros urbanos e ainda havia metade da população activa na agricultura, contra somente um quinto na indústria e um quarto no comércio e serviços. A esmagadora maioria dos quase 1 300 000 activos agrícolas era constituída por pequeníssimos proprietários ou assalariados que viviam com grandes dificuldades. A taxa de analfabetismo andava em assustadores 61,8 %. A taxa de mortalidade infantil situava-se em 143,6 por mil e a esperança média de vida era somente de 47 anos. Lisboa e Porto, respectivamente com cerca de 600 000 e 230 000 habitantes, funcionavam como pólos urbanos de atracção dotados de indicadores demográficos, sociais e económicos mais favoráveis. Contudo, não alteravam o retrato mediano de um País desolador e também incorporavam toda a espécie de problemas. Nele cresceu a criança.
«O aniversario da proclamação da republica brasileira foi hontem festivamente comemorado em Lisboa e nas provincias». «Portugal e Brasil, a celebração literaria da gloria da Raça, numa homenagem aos dois maiores representantes das letras portuguesa e brasileira: Guerra Junqueiro e Coelho Neto». «Os terramotos no Chile». «Vitimas do 19 de Outubro». Tais eram os cabeçalhos n’O Século e no Diário de Notícias do dia 16 de Novembro de 1922, o dia em que o segundo filho de José de Sousa, jornaleiro de profissão, e Maria da Piedade, doméstica, veio ao mundo, na Rua da Lagoa, sita na aldeia da Azinhaga, concelho ribatejano da Golegã. Por estar a trabalhar longe, o pai só veria o menino um mês depois e ele seria oficialmente registado na Conservatória do Registo Civil da Golegã em meados de Dezembro como tendo nascido no dia 18 de Novembro, de modo a evitar uma multa por declaração do nascimento fora de prazo. A este erro intencional acrescia um outro que passou despercebido e apenas seria descoberto quando a criança precisou de ser matriculada na escola primária. Trata-se do conhecido pormenor da alteração do nome, mas não nos adiantemos mais por agora.
Muito provavelmente os pais, os familiares e toda a aldeia estariam mais ou menos alheados dos acontecimentos que a imprensa registava, talvez nem fizessem já caso dos ecos da «noite sangrenta» que em 19 de Outubro de 1921 levara ao assassinato de vários dos ministros do governo republicano e por cujas viúvas o DN anunciava repartir uma doação monetária provinda da comunidade lusa de Macau, mas por certo as dificuldades económicas dos jornaleiros e das mulheres circunscritas às tarefas domésticas pela fraca taxa de feminização do trabalho assalariado faziam parte do quotidiano da maioria. A migração para Lisboa e Porto era o caminho que muitos aldeãos pobres então tomavam para procurar obviar tais dificuldades. E foi igualmente esse o caminho que os pais do recém-nascido viriam a seguir quando ele ainda não tinha dois anos, ao que parece motivados não só pelas razões económicas do costume, mas também pelo desejo de vivenciar outras paragens mais desenvolvidas que o pai ganhara na sequência da sua passagem por França enquanto artilheiro das forças expedicionárias portuguesas que participaram na I Guerra Mundial.
A mudança da família para Lisboa efectuou-se por partes e tinha uma certa marca de mobilidade social, pois José de Sousa conseguira emprego na Polícia de Segurança Pública. Primeiro, entre o fim de 1923 e o começo de 1924, mudou-se ele. Depois, na Primavera de 1924, a esposa e os dois filhos.
Contudo, esta mudança seria rapidamente manchada por uma tragédia irremediável. No quarto volume dos Cadernos de Lanzarote, de 1996, José Saramago referiria várias vezes o infausto evento: no fim do ano, mais concretamente a 22 de Dezembro de 1924, o seu irmão e primogénito da família morre de broncopneumonia. Contava apenas quatro anos. O escritor haveria de ver nesta tragédia a causa de uma certa secura que a sua mãe lhe dispensaria durante a infância, chegando mesmo ao ponto de renegar os beijos que ele lhe pedia e de compará-lo desfavoravelmente com o irmão precocemente falecido.
Entre Lisboa e a Azinhaga
Nalgumas das crónicas d’A Capital e do Jornal do Fundão, nos diários dos Cadernos de Lanzarote e nas Pequenas Memórias, José Saramago foi disseminando elementos acerca da sua infância e adolescência. Da escola e das leituras. Das sucessivas casas lisboetas onde viveu – uma dezena entre os dois e os catorze anos – e dos ludismos da grande cidade. Das idas à Azinhaga com o rio Almonda, as oliveiras, os freixos, os choupos, as matas, os avós maternos e os animais.
Durante o período em que viveu com os pais, até aos vinte e um anos, Saramago passou por dez casas diferentes em Lisboa. Até 1937, quando por fim alugaram um pequeno andar independente no número 11 da Rua Carlos Ribeiro, à Penha de França, morou sempre em partes de casas e em partilha com outras famílias, nomeadamente com os Barata, que eram dois irmãos com as esposas e os respectivos filhos. Na Quinta da Perna-de-Pau, à Picheleira, onde só residiu alguns meses em 1924. Na Rua E do Alto do Pina (hoje Rua Luís Monteiro), de má memória para os seus por estarem aí à data do falecimento do pequeno Francisco. Na Rua Sabino de Sousa e na Carrilho Videira. Na Rua dos Cavaleiros, de que guarda recordações por, entre outras coisas, ter começado a frequentar salas de cinema com o amigo Félix Barata. Na Rua Fernão Lopes, onde parece ter vivido entre 1929 e 1933. Na Rua Heróis de Quionga, que é a casa ao tempo em que está no Liceu Gil Vicente, nos anos lectivos de 1933-34 e 1934-35. Outra vez na Carrilho Videira, antes de nova mudança, agora para a Rua Padre Sena Freitas, que parecem ter sido ambas moradas de curta duração e antecederam a instalação mais prolongada da família numa casa só para ela. Nesta, como já referimos o número 11 da Rua Carlos Ribeiro, à Penha de França, terá vivido entre 1937 e 1944, apenas de lá saindo por altura do seu casamento com Ilda Reis. Em todas elas, sempre a mesma geografia física e social da Lisboa popular e proletária. Provavelmente, sempre a ausência de sistemas de esgotos modernos que dava azo a cenas que descreveria muito mais tarde em Manual de Pintura e Caligrafia como alguém que leva um bacio com excrementos tapados por toalha e certamente uma matriz de indiferença face ao catolicismo, que aos seus pais não parecia interessar para lá do vago sentimento civilizacional comum à maioria da população e a cuja catequização mais séria uma família com a qual esteve em relação de vizinhança algum tempo pretendeu submetê-lo sem sucesso.
Desde cedo, segundo ele desde os seis anos, começou a ir ao cinema. No «Piolho», como era conhecido o Salão Lisboa, situado na Mouraria, via sobretudo filmes de terror. No Animatógrafo, na Rua do Arco da Bandeira, divertia-se com os cómicos. Charlot, Pamplinas, Bucha e Estica. Mais tarde, já no tempo do liceu, os cartazes do Salão Oriente e do Royal Cine despertar-lhe-iam a imaginação para longos enredos contados aos colegas a partir de filmes que não vira. Por vezes, ia mesmo ao teatro. Nesta altura seria sobretudo ao Parque Mayer: «A minha primeira memória forte de teatro é a Irene Isidro, por volta de 1932 ou 1933, toda vestida de branco, de calças, cantando Marlene numa revista.» Enfim, eram os divertimentos da grande cidade a estimular o jovem Saramago.
Por outro lado, as temporadas largas e recorrentes na aldeia natal, na «casa de telha vã e chão de terra batida» da avó Josefa e do avô Jerónimo, impregnam-no de vivências e imaginário rurais. Pés descalços. Banhos em pêlo nas águas límpidas do Almonda. Passeios solitários nos olivais e nas matas densas. O cimo das árvores galgado a custo com a lezíria em baixo e a perder-se no horizonte. O trabalho de deslocar coelhos, de mudar a palha e de ajudar na criação dos porcos. Os bácoros no meio da cama dos avós a aquecerem, os caminhos campo adentro com o tio e os porcos rumo à feira de Santarém, a atmosfera humilde dos camponeses e pastores de que provinha. Tudo isso deixaria rasto na memória e na escrita de Saramago.
Nas crónicas para a imprensa. Nos Cadernos de Lanzarote. Nas páginas das Pequenas Memórias, como, por exemplo, nesta passagem: «Olho de cima da ribanceira a corrente que mal se move, a água quase estagnada, e absurdamente imagino que tudo voltaria a ser o que foi se nela pudesse voltar a mergulhar a minha nudez da infância, se pudesse retomar nas mãos que tenho hoje a longa e