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De Kim Thúy
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Sobre este e-book
Kim Thúy
im Thúy has worked as a seamstress, interpreter, lawyer and restaurant owner. In 2010 Thúy won the Governor General's Award for French language fiction. She lives in Montreal, where she devotes herself to writing.
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Ru - Kim Thúy
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DAS ANDERE
Kim Thúy
Ru
Ru
© Les Éditions Libre Expression, Montréal, Canada, 2009
© Editora Âyiné, 2022
Todos os direitos reservados
Tradução: Letícia Mei
Preparação: Mônica Kalil
Revisão: Andrea Stahel, Juliana Amato
Ilustração de capa: Julia Geiser
Projeto gráfico: Luísa Rabello
Conversão para Ebook: Cumbuca Studio
ISBN 978-65-5998-015-4
Âyiné
Direção editorial: Pedro Fonseca
Coordenação editorial: Luísa Rabello
Coordenação de comunicação: Clara Dias
Assistente de comunicação: Ana Carolina Romero
Assistente de design: Lila Bittencourt
Conselho editorial: Simone Cristoforetti,
Zuane Fabbris, Lucas Mendes
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info@ayine.com.br
Kim Thúy - RU - tradução Letícia Mei - Editora ÂyinéEm francês, ru significa «pequeno riacho» e, em sentido figurado, «fluxo (de lágrimas, de sangue, de dinheiro)» (Le Robert historique). Em vietnamita, ru significa «canção de ninar», «embalar».
À gente da terra.¹
1 Referência à canção Gens du pays, criada pelo poeta e compositor quebequense Gilles Vigneault em parceria com Gaston Rochon, por ocasião da Festa Nacional do Quebec de 1975. É considerada por muitos o hino não oficial da província do Quebec. [N. T.]
VIM AO MUNDO durante a ofensiva do Tet,² nos primeiros dias do novo Ano do Macaco, quando as longas baterias de rojões penduradas diante das casas explodiam em polifonia com o som das metralhadoras.
Vi a luz pela primeira vez em Saigon, lá onde os fragmentos dos rojões rebentados em mil pedaços coloriam o chão de vermelho como pétalas de cerejeira, ou como o sangue dos dois milhões de soldados mobilizados, espalhados nas cidades e vilarejos de um Vietnã dividido ao meio.
Nasci à sombra daqueles céus ornados de fogos de artifício, decorados com guirlandas luminosas, atravessados por mísseis e foguetes. Meu nascimento teve por missão substituir as vidas perdidas. Minha vida tinha o dever de dar continuidade à vida de minha mãe.
2 Ataque empreendido pelos norte-vietnamitas e vietcongues contra o exército americano e os sul-vietnamitas, em 30 de janeiro de 1968, durante a Guerra do Vietnã. [N. T.]
EU ME CHAMO NGUYỄN AN TỊNH, e minha mãe, Nguyễn An Tĩnh. Meu nome é uma simples variação do seu, já que apenas um ponto sob o i me diferencia dela, me distingue dela, me dissocia dela. Eu era uma extensão dela, até no significado do meu nome. Em vietnamita, o seu quer dizer «ambiente tranquilo», e o meu «interior tranquilo». Com esses nomes quase intercambiáveis, minha mãe confirmava que eu era um prolongamento dela, que eu continuaria a sua história.
A História do Vietnã, aquela com «H» maiúsculo, frustrou os planos da minha mãe. Jogou os acentos de nosso nome na água quando nos fez atravessar o Golfo da Tailândia, há trinta anos. Também destituiu o nosso nome de seu sentido, reduzindo-o a sons ao mesmo tempo estrangeiros e estranhos na língua francesa. Acima de tudo, veio interromper meu papel de prolongamento natural da minha mãe quando fiz dez anos.
GRAÇAS AO EXÍLIO, meus filhos nunca foram prolongamentos meus, da minha história. Eles se chamam Pascal e Henri e não se parecem comigo. Têm os cabelos claros, a pele branca e os cílios volumosos. Não experimentei o sentimento natural da maternidade que eu esperava quando se agarravam ao meu seio às três da manhã, no meio da madrugada. O instinto materno me chegou muito mais tarde, na sucessão das noites em claro, das fraldas sujas, dos sorrisos gratuitos, das alegrias repentinas.
Somente então compreendi o amor daquela mãe sentada à minha frente no porão do nosso barco, segurando nos braços um bebê cuja cabeça estava coberta de fétidas crostas de sarna. Tive essa imagem diante dos olhos por dias, quem sabe até noites inteiras. A pequena lâmpada suspensa por um fio preso num prego enferrujado difundia no porão uma luz fraca, sempre igual. No fundo daquele barco, não se distinguia mais o dia da noite. A constância daquela iluminação nos protegia da imensidão do mar e do céu que nos circundavam. As pessoas sentadas no convés nos contavam que não havia mais linha de demarcação entre o azul do céu e o azul do mar. Não sabíamos, portanto, se nos dirigíamos ao céu ou se afundávamos nas profundezas das águas. O paraíso e o inferno tinham se entrelaçado no ventre do nosso barco. O paraíso prometia uma reviravolta em nossa vida, um novo futuro, uma nova história. Já o inferno expunha nossos medos: medo dos piratas, medo de morrer de fome, medo de se intoxicar com as torradas encharcadas de óleo de motor, medo de faltar água, medo de não mais poder ficar em pé, medo de precisar urinar naquele pote vermelho que passava de mão em mão, medo de que a cabeça sarnenta daquela criança fosse contagiosa, medo de nunca mais pisar em terra firme, medo de não mais rever o rosto dos nossos pais, sentados em algum lugar na penumbra, em meio àquelas duzentas pessoas.
ANTES QUE NOSSO BARCO levantasse âncora no meio da noite, às margens do Råch Giá, a maioria dos passageiros tinha apenas um medo, dos comunistas, por isso fugiam. Mas, assim que a embarcação foi envolvida, cercada por um único e uniforme horizonte azul, o medo se transformou em um monstro de cem cabeças que cortava nossas pernas, nos impedia de sentir o entorpecimento de nossos músculos imobilizados. Estávamos congelados no medo, pelo medo. Não fechávamos mais os olhos quando o xixi do bebê de cabeça sarnenta nos molhava. Não tapávamos mais o nariz diante do vômito de nossos vizinhos. Estávamos dormentes, aprisionados pelos ombros de uns, pelas pernas de outros e pelo medo de cada um. Estávamos paralisados.
A história da menininha que fora engolida pelo mar após se desequilibrar enquanto andava na beira do barco propagou-se no ventre odorífero da embarcação como um gás anestésico, ou hilariante, que transformou a única lâmpada em estrela Polar e as torradas encharcadas de óleo de motor em biscoitos amanteigados. Aquele gosto de óleo na garganta, na língua, na cabeça, nos adormecia ao ritmo da canção de ninar entoada pela mulher ao meu lado.
MEU PAI TINHA PLANEJADO, caso nossa família fosse capturada por comunistas ou piratas, nos adormecer para sempre, como a Bela Adormecida, mas com pílulas de cianureto. Durante muito tempo, quis lhe perguntar por que ele não cogitou nos deixar escolher, por que nos tiraria a possibilidade de sobreviver.
Parei de me fazer essa pergunta quando me tornei mãe, quando o senhor Vịnh, renomado cirurgião de Saigon, me contou como ele colocou seus cinco filhos, um após o outro, sozinhos, do menino de doze anos à menininha de cinco, em cinco barcos diferentes, em cinco momentos diferentes, para mandá-los ao mar aberto, longe das acusações das autoridades comunistas que pesavam contra ele. Estava certo de que morreria na prisão, já que o acusavam de ter matado camaradas comunistas em cirurgia, embora eles nunca tivessem colocado os pés em seu hospital. Tinha a esperança de salvar um, talvez dois de seus filhos, lançando-os ao mar.