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Pandemos
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E-book159 páginas1 hora

Pandemos

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Sobre este e-book

Diário produzido por grupo de trabalho da USP registra e analisa a pandemia

Fundado em 2011, o GENAM (Grupo de Estudos e Pesquisa em Literatura, Narrativa e Medicina da USP) busca analisar e interpretar os diferentes tipos de narrativas produzidas durante o ato médico. Uma doença poderia ser pensada como um personagem, a partir das categorias da literatura comparada? Médico e paciente não são também personagens de uma narrativa? De forma pioneira no Brasil, o projeto realizado pela parceria entre a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas e a Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo visa a um aprimoramento da prática clínica pela via da literatura e da arte. Em mais de uma década de trabalho, o grupo já produziu dissertações, teses, livros e apresentações.

Organiza também um clube do livro, com encontros quinzenais. Da primeira temporada desse clube, conduzida on-line em 2020, resultou o livro "Pandemos ― Diário da Peste", editado no Brasil pela Rua do Sabão.

Sendo um grupo de estudo dos pontos de contato entre medicina e literatura, o grupo não poderia se furtar de escrever, justamente, sobre a experiência radical da pandemia.

São autores do Pandemos: Ana Beatriz Tuma, Andrea Funchal Lens, Andrea Mariz, Andressa Petinatte, Angela Zucchi, Carla Kinzo, Carlos Pompilio, Cristhiano Aguiar, Dandara Baçã, Davina Marques, Denise Stefanoni, Fabiana Carelli, Fabiana Prando, Gustavo Fagundes, Hélio Plapler, Henrique Moura, José Belém Neto, Lígia Queiroz, Liliane Oraggio, Lucélia Paiva, Milena Narchi, Paulo Motta Oliveira, Rita Aparecida Santos, Rosely Silva, Samara de Moura, Silvia Cariola, Simone Leistner, Tatiana Piccardi, Vera Lucia Zaher-Rutherford.

As ilustrações são de Fabiana Carelli ― iluminuras sobre um fio único, que "costura" todas as histórias.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de mai. de 2022
ISBN9786586460377
Pandemos

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    Pré-visualização do livro

    Pandemos - Fabiana Carelli

    Apresentação

    Em maio de 2020, aproximadamente dois meses após o início da quarentena devida à pandemia da COVID-19, nós, os membros do GENAM-USP, estávamos, como todos afinal, isolados e perplexos.

    Havíamos iniciado um seminário teórico quinzenal e transdisciplinar na Faculdade de Medicina da USP em fevereiro — interrompido.

    Não podíamos ministrar cursos, não podíamos nos reunir para partilhar leituras — todos em compasso de espera.

    Foi então que um telefonema mudou tudo.

    Uma das participantes do GENAM, membro de longa data do grupo, estava desanimada, sem estímulo.

    Fiquei preocupada.

    Pensei — como acolher, como cuidar, como oferecer um continente a todas essas sensações e emoções, ao sentido de perda, de mundo à revelia, de navio sem leme dos membros do meu grupo? E me lembro de também ter pensado: acho que a arte talvez possa ser uma resposta a isso.

    Desse pensamento, nasceram o Book Club do GENAM e também o podcast Ciência Poética. Tentativas de retornar ao básico. De reafirmar a certeza de que a arte e a literatura têm, sim, o poder de figurar, configurar, nossa experiência humana, conferindo a ela um sentido. Ainda que precário. Mas válido.

    No Book Club, produzido on-line, a proposta foi, ao longo da primeira temporada (junho a dezembro de 2020), a de lermos juntos textos literários (entre prosa e poesia) que tematizassem doença e saúde, especialmente relacionados a males infectocontagiosos. Começamos e terminamos com a peste negra, do Decameron de Boccaccio a Um Diário do Ano da Peste, de Daniel Defoe. Mas também falamos da tuberculose e da pólio, do câncer e da loucura, da malária e da COVID-19.

    Foi uma viagem de aprendizado e partilha!

    Agora, os palestrantes e membros do Book Club — ١ª temporada apresentam aos leitores os seus registros do primeiro ano da COVID — o seu diário da peste.

    Organizados na cronologia dos dias, eles representam uma visão — a nossa visão, tão particular — da pandemia, nos sentidos peculiares que nos são próprios e que nos foram dados a experimentar nesse ano difícil.

    Pandemos (Πάνδημος, em grego antigo) significa aquilo que é comum a todas as pessoas. Era um dos epítetos de Afrodite, enquanto inspiradora dos amores vulgares, carnais, mundanos.

    Acredito sinceramente que, enquanto humanidade afligida pela COVID-19, sejamos todos, sim, vulgares, carnais e mundanos. A doença nos atinge, igualmente, a todos. A esperança é fazermos, dessa experiência, um sentido.

    Que Afrodite, a deusa da beleza e da (re)criação amorosa da vida, nos resgate do Hades comum e cotidiano que a pandemia nos tem feito visitar.

    Que possamos viver.

    Fabiana Buitor Carelli

    Coordenadora do GENAM-USP e do Book Club

    2020

    E foi assim que tudo começou...

    Lucélia Elizabeth Paiva

    Saudade e o abraço... Foi isso que mobilizou o desejo do encontro.

    Tenho um grande amigo, muito querido, o Guto, que mora em outra cidade e há muito tempo não nos encontrávamos. Mas, naquela semana, ele viria para São Paulo e encontramos, naquela sexta-feira, uma brecha em nossas agendas para um encontro, com um café e um abraço, para conversarmos sobre livros, desejos, projetos, afetos...

    Que delícia!!! Finalmente estaríamos juntos, por uma eterna horinha.

    Mas... São Paulo é uma surpresa. Sexta-feira, o céu nos surpreendeu com uma chuva não prevista, o trânsito complicou e nosso encontro, mais uma vez, não aconteceu. Mas tudo bem... fica para a próxima! E quando será a próxima???? Ah... um dia!!!

    Nunca perdemos a esperança do encontro que... um dia aconteceria.

    No entanto, o tal coronavírus que já aterrorizava o resto do mundo, finalmente chegou e, na terça-feira seguinte, foi decretado o distanciamento social por 15 dias, que nunca imaginávamos que viraria um tempo indeterminado. Pandemia!!

    Naquela noite, liguei para o Guto e logo perguntei: E agora... quando acontecerá nosso abraço?

    Conversamos por longo tempo refletindo sobre o momento, o desconhecido, o quanto nos aprisionamos na falta de tempo, sobre o sentido — a necessidade de sentido para o enfrentamento às adversidades. E como não podia deixar de ser, como em todos os nossos encontros, falamos sobre livros. E para essa ocasião, mencionamos Viktor Frankl e refletimos sobre sua obra Em busca de sentido. Conversamos longamente sobre a necessidade de dar sentido a esse momento.

    Dias depois fui surpreendida com o telefonema de meu querido amigo convidando-me a dar continuidade à nossa rica conversa, mas sugerindo que a fizéssemos publicamente, pelo Instagram, alegando que nossa motivação (a falta do encontro e do abraço) era uma questão de uma coletividade e não algo pessoal.

    Até então, nunca tinha feito uma live e aceitei o desafio.

    Foi uma experiência única, sensível, espontânea, empática. Várias pessoas acompanharam e participaram desse encontro, que foi o primeiro, dando início a tantos outros e a criação de várias ações solidárias, juntos e separados.

    Além de várias lives falando sobre o momento atual, oferecendo recursos para lidar com a ansiedade frente à pandemia, ao distanciamento social, ao adoecimento, às mortes e, principalmente, à falta de possibilidade de participar de rituais de despedida, decidimos por abrir um grupo de reflexão sobre o livro Em busca de sentido.

    Foi criado um grupo, por plataforma digital, com ampla participação de quase 100 participantes, de pessoas variadas, de várias localidades do Brasil e, inclusive, do exterior.

    Esse grupo estava previsto para acontecer em 4 encontros, semanais, para discutir trechos previamente estabelecidos da referida obra. Foram encontros que apresentaram riqueza e profundidade nas discussões, com amplo envolvimento dos participantes.

    Para nossa surpresa, ao finalizar o período estabelecido, grande parte desse grupo solicitou a continuidade dos encontros, referindo os benefícios que recebiam com as reflexões baseadas na literatura sugerida. Esses encontros se mantiveram por sete meses, quando foi observado que o grupo acabou se configurando numa rede de apoio.

    Foram momentos com ricas reflexões sobre medos, angústias, ansiedades, sobre a vida e sobre a morte, sobre enfrentamento, aprisionamento, autonomia, protagonismo, empatia, compaixão, acolhimento, distanciamento, isolamento, solidão, solitude, felicidade, possibilidades, cuidados, encontro, desamparo, fé, sentido, ressignificação...

    Quando os temas pareciam se esgotar, o grupo não queria colocar fim aos encontros. Vínculos foram criados entre pessoas que nem sequer se conheciam pessoalmente. Sentimento de pertença. Acolhimento. Corações aquecidos.

    Diante das solicitações, sugeriu-se novas leituras para que os encontros fossem continuados. Isso ocorreu por mais três meses, com reflexões a partir de textos mais curtos, mas não menos importantes, de livros escritos para o público infantil.

    Como trabalho com literatura como recurso terapêutico (principalmente a literatura dita infantil), selecionei alguns títulos que julguei que cabiam para o momento pandêmico e do grupo, tais como A cicatriz (abordando as histórias vividas que nos deixam marcas), Vazio (como lidar com o vazio e como torná-lo fértil), O ponto (protagonismo, empoderamento e autoestima), Margarida Friorenta (cuidados), A árvore generosa (relações, cuidados, doação); O frio pode ser quente? (várias formas de ver a mesma coisa) ...Foram momentos de interiorização e amorosidade, crescimento, vinculação, enfrentamento e doação.

    Em nosso último encontro falamos sobre o abraço, trazendo textos, poesia, música — recursos que sempre permearam e fortaleceram o grupo nesse momento atípico, ameaçador, que tirou a vida de muitos, acolhendo cada participante num abraço simbólico, principalmente àqueles que passaram por perdas significativas.

    Ao longo desse período, ofereci outras ações solidárias envolvendo a utilização de literatura, música e atividades de expressão criativa. Organizei workshops: Havia uma pedra no caminho — para trabalhar os pesos/as pedras que carregamos na vida; Chamando Dona Saudade para me fazer companhia — para refletir sobre o peso da saudade e como torná-la mais leve; Relembrar é viver (em Finados) — para trazer à memória aqueles que já não convivem conosco e ressignificar a despedida daqueles que amamos, principalmente neste momento em que nem sempre é possível dizer adeus.

    E assim passamos esse primeiro ano de pandemia, onde a ordem era a proteção e a prevenção, reforçando a necessidade do distanciamento social. Verificou-se, assim, a possibilidade do distanciamento social sem o isolamento afetivo.

    É possível sentir-se acompanhado apesar da distância. É possível suprimir a solidão quando a proposta é a solidariedade.¹

    19 de março

    Fabiana Prando

    Minha filha, você já esteve no inferno?

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