Sherlock Holmes: Obra completa
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Sobre este e-book
Em 1887, o escritor escocês Ssir Arthur Conan Doyle criou Sherlock Holmes, o infalível detetive a quem os agentes da Scotland Yard recorriam para solucionar os mistérios mais intrigantes da Inglaterra vitoriana. Desde então, as aventuras do mestre da investigação atraem leitores ávidos por chegar à última página e ver o enigma desvendado.
Para desvendar mistérios, o faro e a astúcia de Sherlock Holmes levam às fontes menos óbvias, às informações mais precisas. Um modelo que influencia até hoje a literatura policial e revela fôlego para impressionar gerações de leitores através dos tempos.
Cada livro deste box de luxo contém...
- Volume 1: Um estudo em vermelho (romance) – 1887, O sinal dos quatro (romance) – 1890, As aventuras de Sherlock Holmes (contos) – 1892.
- Volume 2: Memórias de Sherlock Holmes (contos) – 1894, O cão dos Baskerville (romance) – 1902.
- Volume 3: A volta de Sherlock Holmes (contos) – 1905, O vale do medo (romance) – 1915.
- Volume 4: Os últimos casos de Sherlock Holmes (contos) – 1917, Histórias de Sherlock Holmes (contos) – 1927.
Arthur Conan Doyle
Arthur Conan Doyle was a British writer and physician. He is the creator of the Sherlock Holmes character, writing his debut appearance in A Study in Scarlet. Doyle wrote notable books in the fantasy and science fiction genres, as well as plays, romances, poetry, non-fiction, and historical novels.
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Sherlock Holmes - Arthur Conan Doyle
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Centro — Rio de Janeiro — RJ
Tel.: (21) 3175-1030
Um estudo em vermelho — tradução de Louisa Ibánez
O sinal dos quatro — tradução de Branca de Villa-Flor
As aventuras de Sherlock Holmes — tradução de Edna Jansen de Mello
Memórias de Sherlock Holmes — tradução de Áurea Brito Wissenberg
O cão dos Baskerville — tradução de Arnaldo Viriato Medeiros
A volta de Sherlock Holmes — tradução de Flávio Mello e Silva
O vale do medo — tradução de Luiz Orlando C. Lemos
Os últimos casos de Sherlock Holmes — tradução de Adailton J. Chiaradia
Histórias de Sherlock Holmes — tradução de Myriam Ribeiro Güth
CIP-Brasil. Catalogação na fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
D784s
v. 1-4
Doyle, Arthur Conan, Sir, 1859-1930
Sherlock Holmes : obra completa / Arthur Conan Doyle ; [tradução Louisa Ibañez; Branca de Villa-Flor; Edna Jansen de Mello; Áurea Brito Wissenberg; Arnaldo Viriato Medeiros; Flávio Mello e Silva; Luiz Orlando C. Lemos; Adailton J. Chiaradia; Myriam Ribeiro Güth]. - Rio de Janeiro : HarperCollins, 2017.
512 p. (vol1) ; 23 cm.
Volume 1 - Tradução de: A study in scarlet; the sign of four; the adventures of sherlock holmes
Volume 2 - Tradução de: Memoirs of Sherlock Holmes; The Hound of the Baskervilles
Volume 3 - Tradução de: The Return of Sherlock Holmes; The Valley of Fear
Volume 4 - Tradução de: His last bow; the case book of sherlock holmes
Obra completa | ISBN 978.85.209.2410-5
Volume 1 | ISBN: 978.85.209.2411-2
Volume 2 | ISBN: 978.85.209.2414-3
Volume 3 | ISBN: 978.85.209.2416-7
Volume 4 | ISBN: 978.85.209.2417-4
1. Holmes, Sherlock (Personagem fictício) - Ficção. 2. Detetives particulares - Inglaterra - Ficção. 3. Ficção policial inglesa. I. Título.
15-19925
CDD: 823
CDU: 821.111-3
SUMÁRIO
VOLUME 1
UM ESTUDO EM VERMELHO
Primeira parte
Reimpressão das memórias do dr. John Watson, ex-oficial médico do Exército britânico
1. O sr. Sherlock Holmes
2. A ciência da dedução
3. O mistério de Lauriston Garden
4. O que John Rance tinha a dizer
5. Nosso anúncio atrai um visitante
6. Tobias Gregson mostra o que pode fazer
7. Uma luz nas trevas
Segunda parte
O país dos santos
1. Na grande planície alcalina
2. A flor do Utah
3. John Ferrier fala com o profeta
4. Fuga desesperada
5. Os anjos vingadores
6. Continuação das memórias do dr. John Watson
7. Conclusão
O SINAL DOS QUATRO
1. A ciência da dedução
2. A exposição do caso
3. Em busca da solução
4. A história do homem calvo
5. A tragédia de Pondicherry Lodge
6. Sherlock Holmes faz uma demonstração
7. O episódio do barril
8. Os auxiliares de Baker Street
9. A corrente se quebra
10. O fim do ilhéu
11. O fabuloso tesouro de Agra
12. A estranha narrativa de Jonathan
AS AVENTURAS DE SHERLOCK HOLMES
Escândalo na Boêmia
A liga dos ruivos
Um caso de identidade
O mistério do Vale Boscombe
Os cinco caroços de laranja
O homem de lábio torcido
A pedra azul
A banda pintada
O polegar do engenheiro
O nobre solteiro
A coroa de berilos
As faias roxas
VOLUME 2
MEMÓRIAS DE SHERLOCK HOLMES
Silver Blaze
O rosto amarelo
O corretor
Gloria Scott
O Ritual Musgrave
Os senhores de Reigate
O aleijado
O paciente interno
O intérprete grego
O tratado naval
O problema final
O CÃO DOS BASKERVILLE
1. O sr. Sherlock Holmes
2. A maldição dos Baskerville
3. O problema
4. Sir Henry Baskerville
5. Três fios partidos
6. A mansão Baskerville
7. Os Stapleton da casa de Merripit
8. Primeiro relatório do dr. Watson
9. Segundo relatório do dr. Watson
10. Resumo do diário do dr. Watson
11. O homem sobre o pico rochoso
12. Morte no pântano
13. Prendendo as redes
14. O cão dos Baskerville
15. Um retrospecto
VOLUME 3
A VOLTA DE SHERLOCK HOLMES
A aventura da casa vazia
A aventura do construtor de Norwood
A aventura dos homenzinhos dançantes
A aventura da ciclista solitária
A aventura da Priory School
A aventura de Black Peter
A aventura de Charles Augustus Milverton
A aventura dos seis Napoleões
A aventura dos três estudantes
A aventura do pincenê dourado
A aventura do Three-Quarter
Desaparecido
A aventura de Abbey Grange
A aventura da segunda mancha
O VALE DO MEDO
Primeira parte
A tragédia de Birlstone
1. O aviso
2. Sherlock holmes se pronuncia
3. A tragédia de birlstone
4. Trevas
5. Os personagens do drama
6. A primeira luz
7. A solução
Segunda parte
Os Scowrer
1. O homem
2. O chefe
3. Loja 341, vermissa
4. O vale do medo
5. A pior hora
6. Perigo
7. A armadilha para birdy edwards
Epílogo
VOLUME 4
OS ÚLTIMOS CASOS DE SHERLOCK HOLMES
Prefácio
O caso da Vila Glicínia
O caso da caixa de papelão
O caso do círculo vermelho
O caso dos planos do Bruce-Partington
O caso do detetive agonizante
O caso do desaparecimento de lady Frances Carfax
O caso do pé do diabo
Seu último caso: Um epílogo de Sherlock Holmes
HISTÓRIAS DE SHERLOCK HOLMES
Prefácio
A aventura do cliente ilustre
A aventura do soldado descorado
A aventura da pedra mazarin
A aventura das três cumeeiras
A aventura do vampiro de Sussex
As aventuras dos três garridebs
O problema da Ponte Thor
A aventura do homem que andava de quatro
A aventura da juba do leão
A aventura da hóspede velada
A aventura de Shoscombe Old Place
A aventura do negro aposentado
Sobre o autor
v1_capa.jpgv1_03.jpgPrimeira parte:
Reimpressão das memórias do dr. John Watson, ex-oficial médico do Exército britânico
1
O SR. SHERLOCK HOLMES
Em 1878 formei-me em medicina pela Universidade de Londres e fui para Netley, a fim de fazer o curso indicado para os cirurgiões do Exército. Quando terminei os meus estudos ali, fui designado cirurgião assistente do Quinto Regimento de Fuzileiros de Northumberland. Nessa época, o regimento estava acantonado na Índia e, antes que eu pudesse juntar-me a ele, explodiu a segunda guerra afegã. Ao desembarcar em Bombaim, fui informado de que minha unidade já avançara pelos desfiladeiros, internando-se profundamente em território inimigo. Entretanto, parti com vários outros oficiais que estavam na mesma situação e conseguimos chegar sãos e salvos a Kandahar, onde encontrei meu regimento e assumi imediatamente minhas novas funções.
A campanha rendeu honrarias e promoções para muitos, mas para mim só trouxe infortúnios e desastres. Fui transferido de minha brigada para a de Berkshire, com a qual participei da batalha fatídica de Maiwand. Ali, fui atingido no ombro pela bala de um mosquete afegão que me fraturou o osso e roçou a artéria subclávia. Eu teria caído em poder dos ferozes ghazis, se não fosse a coragem e a dedicação de meu ordenança, Murray, que me pôs atravessado no lombo de um cavalo de carga e conseguiu levar-me em segurança até as linhas britânicas.
Abatido pela dor e debilitado pelas contínuas privações a que fora submetido, fui removido para o hospital da base em Peshawar, em um trem que transportava outros feridos. Ali eu me recuperava, e já melhorara o suficiente para andar pelas enfermarias, até mesmo tomar um pouco de sol na varanda, quando fui atacado pelo tifo, essa praga de nossas possessões indianas. Fiquei com a vida em perigo durante meses e, quando finalmente voltei a mim e entrei em convalescença, estava tão enfraquecido e tão magro que uma junta médica determinou a minha volta imediata para a Inglaterra. Assim, fui embarcado no navio de transporte de tropas Orontes, e um mês depois desembarcava no cais de Portsmouth, com a saúde irremediavelmente comprometida, mas tendo a permissão paternal do governo para tentar melhorá-la nos nove meses seguintes.
Eu não tinha conhecidos nem parentes na Inglaterra, de modo que era livre como o ar — ou tão livre como pode ser um homem com uma renda de 11 xelins e seis pence diários. Nessas circunstâncias, era natural que eu fosse atraído para Londres, a grande cloaca para a qual são drenados irresistivelmente todos os ociosos e vagabundos do Império. Fiquei ali durante algum tempo, em um hotel retirado no Strand, onde levei uma vida sem conforto e sem sentido, gastando todo o dinheiro que recebia muito mais livremente do que deveria. A situação de minhas finanças tornou-se tão alarmante que eu logo percebi que teria de deixar a metrópole e me estabelecer em algum lugar no campo, ou modificar completamente o meu estilo de vida. Escolhida a última alternativa, resolvi deixar o hotel e instalar-me em moradia menos pretensiosa e mais barata.
No mesmo dia em que cheguei a essa conclusão, eu estava no bar Criterion quando alguém bateu no meu ombro. Ao virar-me, reconheci Stamford, um rapaz que fora meu assistente em Bart. A visão de um rosto amigo no vasto deserto londrino é algo realmente agradável para um homem solitário. Nos velhos tempos, Stamford nunca fora um companheiro mais íntimo, porém eu agora o acolhia com entusiasmo, e ele também parecia satisfeito em me ver. Na exuberância da minha alegria, convidei-o para almoçar comigo no Holborn e, juntos, partimos em um cabriolé.
— Diabo, o que andou fazendo, Watson? — perguntou ele, sem dissimular o espanto, enquanto sacolejávamos pelas ruas apinhadas de Londres. — Está magro como um sarrafo e queimado como uma castanha.
Fiz-lhe um breve relato de minhas aventuras e mal o concluíra quando chegamos ao nosso destino.
— Coitado! — exclamou, penalizado, após ter ouvido meus infortúnios. — O que pretende fazer agora?
— Procurar um lugar para morar — respondi. — Tento resolver o problema de encontrar cômodos confortáveis a um preço razoável.
— Curioso — disse meu companheiro. — Hoje você é a segunda pessoa que me diz a mesma coisa.
— E quem foi a primeira? — perguntei.
— Um sujeito que trabalha no laboratório de química do hospital. Lamentava-se, ainda essa manhã, por não encontrar alguém com quem dividir o aluguel dos ótimos cômodos que encontrara, mas que são caros demais para as suas posses.
— Formidável! — exclamei. — Se ele procura mesmo alguém para dividir a casa e as despesas, sou exatamente o homem indicado. É melhor ter um companheiro do que morar sozinho.
Stamford olhou-me de modo estranho por cima do seu copo de vinho.
— Você ainda não conhece Sherlock Holmes — disse. — Talvez não gostasse dele como companheiro permanente.
— Por quê? O que há contra ele?
— Bem, eu não disse que há alguma coisa que o desabone. Ele tem ideias um tanto estranhas, é apaixonado por alguns ramos da ciência. Pelo que sei, é uma pessoa bastante correta.
— Estudante de medicina? — perguntei.
— Não, e não tenho a mínima ideia a respeito do que ele pretende fazer. Parece entender muito de anatomia, além de ser um químico de primeira. No entanto, que eu saiba, nunca fez nenhum curso regular de medicina. Seus estudos são um tanto desregrados e excêntricos, mas com esse sistema irregular ele acumulou uma quantidade de conhecimentos que deixaria seus professores surpresos.
— Nunca lhe perguntou o que pretende fazer no futuro? — indaguei.
— Não; ele é desses que não se abrem em confidências, embora possa ser bastante comunicativo quando é dominado pela imaginação.
— Eu gostaria de conhecê-lo — disse. — Se vou morar com alguém, preferiria um homem que aprecie os estudos e tenha hábitos tranquilos. Ainda não me sinto bastante forte para suportar muito barulho ou agitação. Já tive o suficiente de ambos no Afeganistão... o suficiente para o resto da vida. Como poderei entrar em contato com esse seu amigo?
— Ele deve estar no laboratório — respondeu meu companheiro. — Às vezes ele evita o lugar durante semanas, ou então trabalha lá de manhã à noite. Se quiser, iremos ao seu encontro depois do almoço.
— É uma boa ideia — respondi, e nossa conversa passou para outros temas.
Quando estávamos a caminho do hospital, depois que saímos do Holborn, Stamford forneceu-me maiores detalhes sobre o cavalheiro que eu me propunha a aceitar como companheiro de moradia.
— Não me responsabilize se por acaso você não se der bem com ele — avisou-me. — Não sei nada a seu respeito além do que fiquei sabendo quando o encontrava ocasionalmente no laboratório. Este arranjo foi ideia sua, portanto não me culpe por alguma coisa.
— Se não nos dermos bem, será fácil separarmo-nos — respondi. — Está me parecendo, Stamford — acrescentei, olhando com firmeza para meu interlocutor —, que você tem algum motivo para lavar as mãos em relação a esse assunto. O temperamento desse homem é tão terrível ou existe algo mais? Vamos, fale sem receio!
— É difícil exprimir o inexprimível — respondeu Stamford, rindo. — Holmes talvez seja científico demais para o meu gosto, chega a beirar a insensibilidade. Posso imaginá-lo dando a um amigo uma pitadinha do último alcaloide vegetal, não por maldade, compreenda, mas apenas por espírito investigativo, para ter uma ideia precisa dos efeitos. Para ser justo, acho que ele próprio tomaria o alcaloide com a mesma presteza. Parece ter paixão pelo conhecimento definido e exato.
— Não vejo nada demais nisso.
— Concordo, desde que tudo fique dentro de certos limites. Evidentemente, a situação assume uma forma bizarra quando ele chega ao cúmulo de dar pauladas em cadáveres na sala de dissecação.
— Dar pauladas em cadáveres?
— Exatamente, a fim de verificar quanto tempo depois da morte o corpo pode apresentar escoriações. Eu o vi fazendo isso, com meus próprios olhos.
— E ainda insiste em dizer que ele não é estudante de medicina?
— Não é. Só Deus sabe qual a finalidade de seus estudos. Bem, aqui estamos, e você precisa formar sua própria opinião sobre ele.
Enquanto Stamford falava, dobramos para uma ruela e entramos por uma pequena porta lateral, que dava para uma ala do grande hospital. O terreno agora me era familiar e não precisei ser guiado quando subimos a fria escadaria de pedra e seguimos pelo corredor comprido, de paredes caiadas e com várias portas castanho-escuras. Quase no final, uma passagem de arcada baixa levava ao laboratório de química.
Era uma sala ampla, com paredes cheias de prateleiras entulhadas de incontáveis frascos. Havia mesas baixas e largas espalhadas por ali, juncadas de retortas, tubos de ensaios e pequenos bicos de Bunsen, com suas chamas azuis oscilantes. Na sala só vi um estudante, curvado sobre uma mesa afastada, absorvido no seu trabalho. Ao ouvir nossos passos, ele olhou em volta e ergueu-se, com uma exclamação satisfeita.
— Descobri! Descobri! — ele gritou para meu acompanhante, correndo para nós com um tubo de ensaio na mão. — Descobri um reagente que é precipitado pela hemoglobina e por nada mais!
Se ele tivesse descoberto uma mina de ouro, seu rosto não demonstraria uma alegria maior.
— Dr. Watson, sr. Sherlock Holmes — apresentou Stamford.
— Como vai? — disse ele cordialmente, apertando minha mão com uma força de que eu não o julgaria capaz. — Vejo que esteve no Afeganistão.
— Como é que sabe? — perguntei, espantado.
— Não vem ao caso agora — ele respondeu dando uma risadinha para si mesmo. — No momento, a questão é sobre a hemoglobina. Percebe a importância da minha descoberta, não?
— Quimicamente é interessante, sem dúvida, mas na prática... — respondi.
— Como? Meu caro, é a descoberta mais prática da medicina legal dos últimos anos! Não percebe que, com isso, teremos um teste infalível para manchas de sangue? Venha cá!
Em sua ansiedade, segurou-me pela manga do casaco e me puxou para junto da mesa onde estivera trabalhando.
— Tomemos um pouco de sangue fresco — disse, enfiando um comprido estilete no dedo. Aparou numa pipeta a gota de sangue que saiu. — Agora, adiciono esta pequena quantidade de sangue a um litro de água. Perceberá que a mistura tem a aparência de água pura, pois a proporção do sangue não pode ser maior que um para um milhão. Entretanto, não tenho dúvida de que obteremos a reação característica.
Enquanto falava, ele jogou alguns cristais brancos dentro do recipiente, acrescentando em seguida algumas gotas de um fluido transparente. O conteúdo adquiriu imediatamente uma tonalidade escura de mogno, ao mesmo tempo que um pó acastanhado se concentrava no fundo do recipiente de vidro.
— Ah! Ah! — exclamou ele, batendo palmas e parecendo tão encantado quanto uma criança com um brinquedo novo. — O que acha disso?
— Parece um teste bastante delicado — observei.
— Ótimo! Ótimo! O antigo teste com o guáiaco era muito rudimentar e impreciso. O mesmo se pode dizer do exame microscópico dos glóbulos do sangue. Este último é inútil se as manchas já tiverem algumas horas. Isso aqui, no entanto, parece funcionar perfeitamente, seja o sangue novo ou antigo. Se esse teste já tivesse sido inventado, centenas de homens que agora andam por aí em liberdade estariam pagando por seus crimes há muito tempo.
— É mesmo? — murmurei.
— Casos e mais casos criminais esbarram seguidamente nesse ponto. Um homem se torna suspeito de um crime talvez até meses depois que ele foi cometido. Suas roupas de baixo ou as calças são examinadas e revelam manchas pardacentas. Serão manchas de sangue, lama, ferrugem, frutas, de quê? Esta é uma questão que tem confundido muitos especialistas. E por quê? Porque não havia um exame de laboratório confiável. Mas agora temos a reação Sherlock Holmes
, de modo que não haverá mais dificuldades daqui por diante.
Seus olhos cintilavam enquanto ele falava e, levando a mão ao peito, fez uma mesura, como se agradecesse a alguma multidão gerada por sua imaginação.
— Aceite os meus parabéns — falei, bastante surpreso com o seu entusiasmo.
— Houve o caso de Von Bischoff em Frankfurt, no ano passado. Se esse teste já existisse, ele certamente teria sido enforcado. Houve também o caso Mason em Bradford, o do famigerado Müller, o de Lefèvre em Montpellier e o de Samson em Nova Orleans. Enfim, eu poderia enumerar uma série de casos em que esse teste teria sido decisivo.
— Você parece um calendário ambulante de crimes — disse Stamford, rindo. — Poderia lançar um jornal nessa linha. O título seria Noticiário Policial do Passado
.
— Sem dúvida, seria também uma leitura muito interessante — observou Sherlock Holmes, colocando um pequeno emplastro no local da espetadela em seu dedo. — Preciso ser cauteloso — continuou, virando-se para mim com um sorriso —, porque estou sempre lidando com venenos.
Estendeu as mãos enquanto falava e reparei que estavam salpicadas de emplastros semelhantes, além de descoradas pela ação de ácidos fortes.
— Viemos aqui tratar de negócios — disse Stamford, acomodando-se em uma banqueta alta de três pernas e empurrando outra, com um pé, na minha direção. — Este meu amigo anda à procura de moradia, e como você se queixava de não encontrar ninguém para dividir as despesas, achei que seria interessante pô-los em contato.
Sherlock Holmes pareceu encantado com a ideia de dividirmos acomodações.
— Estou de olho em um apartamento na Baker Street — anunciou — que seria perfeito para nós. Espero que o cheiro de tabaco forte não o incomode.
— Costumo fumar tabaco de marinheiro — respondi.
— Muito bem. Em geral, tenho produtos químicos em casa e, de vez em quando, costumo fazer experiências. Isso o incomodaria?
— De modo algum.
— Vejamos quais são os meus outros defeitos... Volta e meia fico irritadiço e de boca fechada dias inteiros. Não vá pensar que estou zangado quando me comporto dessa maneira. Basta deixar-me em paz e logo tudo voltará ao normal. E você, o que tem para confessar? É muito melhor que dois sujeitos fiquem conhecendo seus piores defeitos antes que comecem a morar juntos.
Achei graça naquele interrogatório.
— Tenho um filhote de buldogue — falei — e faço objeção a qualquer tipo de barulho, porque estou com os nervos abalados. Além disso, costumo levantar-me em horas impróprias e sou terrivelmente preguiçoso. Ainda tenho outros defeitos quando estou bem de saúde, mas, no momento, estes são os principais.
— Inclui o som do violino em sua categoria de barulhos? — ele perguntou ansioso.
— Depende do executante — respondi. — Um violino bem tocado é um presente para os deuses, mas quando acontece o contrário...
— Oh, então está tudo bem! — exclamou Holmes, com uma risada satisfeita. — Acho que podemos considerar o assunto resolvido, isto é, se ficar satisfeito com os aposentos.
— Quando iremos vê-los?
— Venha encontrar-me amanhã ao meio-dia e iremos juntos para resolver tudo — respondeu ele.
— Certo, ao meio-dia em ponto — falei, apertando-lhe a mão.
Deixamos que ele voltasse ao trabalho com seus produtos químicos e, juntos, eu e Stamford seguimos para o meu hotel.
— Por falar nisso — soltei de repente, parando e virando-me para meu companheiro —, como, diabo, ele soube que vim do Afeganistão?
Meu companheiro esboçou um sorriso enigmático.
— Esta é justamente a pequena peculiaridade de Holmes — disse ele. — Muita gente gostaria de saber como ele consegue descobrir as coisas.
— Oh! Então é um mistério? — exclamei, esfregando as mãos. — Isso é muito estimulante! Sou-lhe grato por ter feito o contato. Como sabe, o homem é o estudo adequado da humanidade
...
— Pois então, estude-o — disse Stamford ao despedir-se. — Imagino que Holmes seja um problema intrincado. Aposto como ele descobrirá mais coisas a seu respeito do que você conseguirá descobrir a respeito dele. Até breve, Watson.
— Até breve — respondi, e entrei em meu hotel sentindo um profundo interesse por meu novo conhecido.
2
A CIÊNCIA DA DEDUÇÃO
Encontramo-nos no dia seguinte, conforme o combinado, e inspecionamos os aposentos da Baker Street, 221 B, sobre os quais havíamos falado na véspera. Eram dois dormitórios confortáveis e uma sala de estar espaçosa e arejada, mobiliada com jovialidade e iluminada por duas amplas janelas. O conjunto era atraente em todos os aspectos, e o preço, tão módico, se dividido entre nós, que acertamos tudo ali mesmo e tomamos posse de nossos domínios. Na mesma tarde retirei meus pertences do hotel e Sherlock Holmes chegou na manhã seguinte, com várias caixas e maletas. Durante um ou dois dias ficamos em franca atividade, tirando nossas coisas das malas e arrumando-as da melhor maneira possível. Feito isso, aos poucos começamos a nos adaptar ao nosso novo ambiente.
A convivência com Holmes não foi nem um pouco difícil. Ele tinha maneiras tranquilas e hábitos regulares. Era raro vê-lo de pé após as dez horas da noite, e quando eu me levantava de manhã, ele invariavelmente já tomara o breakfast e saíra. Às vezes, passava o dia no laboratório de química, outras vezes nas salas de dissecação e, de vez em quando, fazia longas caminhadas, que pareciam conduzi-lo às zonas mais baixas da cidade. Nada parecia superá-lo em energia quando era dominado por um acesso de atividade; mas volta e meia era acometido por uma reação e permanecia durante dias a fio no sofá da sala de estar, mal proferindo uma palavra ou movendo um músculo, da manhã à noite. Nessas ocasiões, eu percebia nos olhos dele uma expressão tão vaga e sonhadora que poderia ter suspeitado que ele era viciado em algum narcótico, se a temperança e a lisura de sua vida não proibissem uma ideia desse tipo.
À medida que as semanas passavam, meu interesse por ele e a curiosidade a respeito de seus objetivos na vida aumentaram e aprofundaram-se aos poucos. Ele próprio e sua aparência chamavam a atenção do observador mais desatento. Tinha mais de 1,80 metro de altura, mas a magreza excessiva fazia com que parecesse ainda mais alto. Seus olhos eram atentos e penetrantes, exceto durante aqueles intervalos de torpor a que já me referi; e o nariz delgado, aquilino, dava à fisionomia um ar de vigilância e determinação. Também o queixo, saliente e quadrado, indicava um homem decidido. Suas mãos estavam sempre manchadas de tinta e de produtos químicos, mas mostravam uma extraordinária delicadeza de toque, como tive ocasião de observar várias vezes, enquanto ele manipulava seus frágeis instrumentos de alquimista.
O leitor poderá considerar-me um bisbilhoteiro incurável, quando eu confesso o quanto aquele homem espicaçava a minha curiosidade, e com que frequência tentei descobrir alguma coisa por entre a reticência que ele mostrava em relação a tudo que lhe dizia respeito. Antes que seja pronunciada a sentença, no entanto, devo lembrar como a minha vida era monótona, e que havia pouca coisa que prendesse minha atenção. Meu estado de saúde impedia que eu me aventurasse fora de casa, a menos que o tempo estivesse excepcionalmente bom, e, por outro lado, eu não tinha amigos que pudessem visitar-me e, assim, romper o tédio daquela existência diária. Nessas circunstâncias, saudei com avidez o pequeno mistério que envolvia meu companheiro e passei boa parte do meu tempo tentando decifrá-lo.
Holmes não estudava medicina. Em resposta a uma pergunta, havia confirmado a opinião de Stamford a respeito disso. Também não parecia ter feito algum curso regular que lhe desse um título científico ou lhe garantisse uma via de entrada para o mundo erudito. Entretanto, era notável a dedicação que mostrava por determinados ramos do saber e, dentro de limites incomuns, seu conhecimento era tão extraordinariamente vasto e minucioso que eu ficava abismado com suas observações. Certamente, nenhum homem trabalharia com tanto afinco ou adquiriria informações tão precisas se não tivesse um objetivo definido em vista. Leitores sem método raramente se destacam pela exatidão de seus conhecimentos. E homem algum sobrecarregaria a mente com questões insignificantes, a menos que tenha bons motivos para fazer isso.
A ignorância de Holmes era tão surpreendente quanto o seu conhecimento. Ele parecia não saber quase nada sobre literatura, filosofia e política contemporâneas. Quando citei Thomas Carlyle certa vez, Holmes, mostrando a mais perfeita ingenuidade, perguntou quem era ele e o que havia feito. Mas minha perplexidade atingiu o auge quando descobri por acaso que ele ignorava a Teoria de Copérnico e a composição do sistema solar. Para mim, um ser humano civilizado do século xix que não soubesse que a Terra girava em torno do sol era algo tão extraordinário que quase me recusava a acreditar.
— Você parece admirado — disse ele, sorrindo da minha expressão de surpresa. — Pois agora que já aprendi isso, farei o possível para esquecê-lo.
— Esquecê-lo?
— Procure entender — falou. — Para mim, o cérebro de um homem, originalmente, é como um sótão vazio, que deve ser entulhado com os móveis que escolhermos. Um tolo o enche com todos os tipos de quinquilharia que vai encontrando pelo caminho, a ponto de os conhecimentos que lhe seriam úteis ficarem soterrados ou, na melhor das hipóteses, tão misturados às outras coisas que ficaria difícil selecioná-los. Já o trabalhador especializado é extremamente cauteloso em relação às coisas que coloca em seu cérebro-sótão. Depositará lá apenas as ferramentas que poderão ajudá-lo a realizar o seu trabalho, mas, destas, ele terá um vasto sortimento e todas arrumadas na mais perfeita ordem. É um engano pensar que esse pequeno recinto tem paredes elásticas, que podem ser distendidas indefinidamente. Dependendo disso, chega o momento em que, para cada novo acréscimo de conhecimento, esquecemos algo que já sabíamos antes. Portanto, é da maior importância evitar que dados inúteis ocupem o lugar dos úteis.
— Certo, mas o sistema solar! — protestei.
— Que importância tem isso para mim? — ele me interrompeu, impaciente. — Você disse que giramos em torno do sol. Se girássemos em torno da lua, isso não faria a mínima diferença para mim ou para o meu trabalho.
Estive a ponto de perguntar-lhe que trabalho era esse, mas alguma coisa no seu jeito indicava que a curiosidade não teria boa acolhida. Mesmo assim, meditei sobre o nosso curto diálogo e esforcei-me para tirar disso alguma conclusão. Ele dissera que não queria adquirir conhecimentos inadequados às suas finalidades. Então, todos os conhecimentos que possuía tinham de ser úteis para ele. Mentalmente, enumerei os vários pontos em que ele se revelara excepcionalmente bem-informado. Cheguei a pegar um lápis e a anotá-los. Não pude deixar de sorrir quando concluí o documento. Ficou assim:
Conhecimentos de Sherlock Holmes
1. Literatura: zero.
2. Filosofia: zero.
3. Astronomia: zero.
4. Política: fracos.
5. Botânica: variáveis. Versado nos efeitos de beladona, ópio e venenos em geral. Não sabe nada sobre jardinagem e horticultura.
6. Geologia: práticos, mas limitados. À primeira vista, sabe reconhecer solos diferentes. Quando chega de suas caminhadas, mostra-me manchas e respingos nas calças e, por sua cor e consistência, me diz em que parte de Londres as recebeu.
7. Química: profundos.
8. Anatomia: acurados, mas pouco sistemáticos.
9. Literatura sensacionalista: imensos. Ele parece conhecer todos os detalhes de cada horror perpetrado neste século.
10. Toca bem violino.
11. É perito em esgrima e boxe, além de hábil espadachim.
12. Tem um bom conhecimento prático das leis inglesas.
Quando cheguei a esse ponto da minha lista, joguei-a no fogo, desanimado.
Se eu só posso descobrir o objetivo desse homem conjugando todas essas habilidades e encontrando uma profissão que as utilize
, disse para mim mesmo, é melhor desistir já da tentativa
.
Vejo que me referi acima aos seus dotes de violinista. Sem dúvida, eram notáveis, mas tão excêntricos quanto todas as suas outras habilidades. Eu sabia perfeitamente que Holmes era capaz de executar peças difíceis porque, a meu pedido, tocara alguns Lieder de Mendelssohn e outras músicas de minha preferência. Quando entregue a si mesmo, no entanto, ele raramente interpretava qualquer música ou tentava alguma ária identificável. À tardinha, recostado em sua poltrona, fechava os olhos e passava descuidadamente o arco pelas cordas do violino em seus joelhos. Algumas vezes, os acordes eram sonoros e melancólicos; outras, fantásticos e alegres. Refletiam, sem dúvida, os pensamentos que invadiam sua mente, mas eu não conseguia determinar se a música os ajudava ou se o ato de tocar era simplesmente o resultado de um capricho ou fantasia. Eu teria me rebelado contra aqueles solos exasperantes, se ele não tivesse o hábito de encerrá-los tocando, em rápida sucessão, séries completas de minhas peças prediletas, como uma pequena compensação por testar minha paciência.
Durante a primeira semana ou pouco mais, não tivemos visitas, e eu já começava a pensar que meu companheiro também era um homem sem amigos. Mas, pouco depois, descobri que ele tinha muitos conhecidos nas mais variadas classes sociais. Havia um homenzinho pálido, com cara de rato e olhos escuros, que me foi apresentado como sr. Lestrade e que apareceu três ou quatro vezes na mesma semana. Certa manhã foi a vez de uma jovem, elegantemente vestida, que se demorou por meia hora ou mais. Naquela mesma tarde, Holmes foi procurado por um visitante de cabelos grisalhos e ar fatigado, parecendo um negociante judeu, muito excitado. Logo em seguida veio uma mulher idosa, desmazelada e com sapatos cambaios. Em outra ocasião, meu companheiro teve uma entrevista com um cavalheiro de cabelos brancos; e numa outra, recebeu um carregador da estrada de ferro em seu uniforme de belbutina.
Sempre que surgia algum desses estranhos visitantes, Sherlock Holmes pedia para usar a sala de estar, e então eu me retirava para meu quarto. Ele sempre se desculpava por causar-me este inconveniente.
— Preciso usar a sala como lugar para tratar de negócios, e essas pessoas são meus clientes — dizia.
Mais uma vez, surgia a oportunidade de interrogá-lo diretamente e, como antes, a discrição impedia que eu o forçasse a confiar em mim. Na época, pensei que Holmes devia ter fortes motivos para evitar o assunto, mas ele logo fez com que eu afastasse essa hipótese, ao abordá-lo voluntariamente.
Estávamos no dia 4 de março, tenho bons motivos para recordar a data, e levantei-me um pouco mais cedo que de hábito. Vi que Sherlock Holmes ainda não terminara seu breakfast. A criada estava tão acostumada à minha demora em sair da cama que ainda não arrumara meu lugar à mesa nem preparara o meu café. Com a petulância irracional do gênero humano, toquei a sineta e anunciei secamente que estava pronto. Em seguida, peguei uma revista em cima da mesa e tentei matar o tempo com ela, enquanto meu companheiro mastigava silenciosamente sua torrada. Deparei-me com um artigo cujo título fora sublinhado a lápis e, naturalmente, passei os olhos por ele.
O título um tanto pretensioso era O livro da vida
, e o artigo se propunha a demonstrar o quanto um homem observador poderia apreender por meio do exame minucioso e sistemático de tudo que lhe caísse sob os olhos. Tive a impressão de que aquilo era uma extraordinária mistura de absurdo e sagacidade. A argumentação era compacta e intensa, mas as deduções pareciam rebuscadas e exageradas. O autor afirmava que uma expressão momentânea, um repuxar de músculo ou um movimento dos olhos podiam denunciar os pensamentos mais íntimos de um homem. Segundo ele, era impossível que alguém bem-treinado na observação e na análise fosse iludido em suas deduções. As conclusões seriam tão infalíveis como tantas proposições de Euclides. Para os leigos, esses resultados pareceriam tão extraordinários que, enquanto não aprendessem o método pelo qual haviam sido obtidos, considerariam o homem que chegara a eles uma espécie de adivinho.
A partir de uma gota d’água
, dizia o autor, um pensador lógico poderia inferir a possibilidade de um Atlântico ou de um Niágara, sem jamais ter visto um e outro ou ouvido falar deles. Assim, toda vida é uma grande cadeia, cuja natureza é revelada pela simples apresentação de um único elo. Como todas as artes, a Ciência da Dedução e da Análise só pode ser adquirida após um aprendizado demorado e paciente, mas a vida não é suficientemente longa para permitir que algum mortal atinja a perfeição máxima nesse campo. Antes de se concentrar nos aspectos morais e mentais do assunto que apresenta as maiores dificuldades, o pesquisador deve começar pelo domínio dos problemas mais elementares. Ao encontrar um semelhante, que ele aprenda, em um relance, a distinguir a história do homem e o ofício ou profissão que ele exerce. Por mais infantil que esse exercício possa parecer, ele aguça as faculdades de observação, ensinando para onde se deve olhar e o que procurar. Pelas unhas de um indivíduo, pela manga do seu paletó, seus sapatos, o joelho das calças, as calosidades do polegar e indicador, pelos punhos da camisa... em cada um desses detalhes, a profissão de um homem é nitidamente revelada. Que tudo isso junto deixe de esclarecer um investigador competente é quase inconcebível.
— Quanto disparate! — exclamei, jogando a revista sobre a mesa. — Nunca li tamanha tolice na vida!
— O que é? — perguntou Sherlock Holmes.
— Ora, este artigo — disse, apontando-o com a colher ao me sentar para o breakfast. — Vejo que já o leu, pois está assinalado a lápis. Não posso negar que foi escrito com inteligência, mas ainda assim me irrita. Evidentemente, são as teorias forjadas por algum desocupado, que desenvolve todos esses pequeninos paradoxos sem sair da poltrona de seu gabinete. Nada têm de prático. Eu gostaria de vê-lo na barulheira de um vagão de terceira classe do trem subterrâneo para então perguntar-lhe quais eram as profissões de todos os seus companheiros de viagem. Apostaria mil por um contra ele.
— E perderia seu dinheiro — observou Holmes calmamente. — Quanto ao artigo, fui eu que escrevi.
— Você?
— Exatamente. Tenho certa tendência a observar, a deduzir. Todas as teorias que expus aí, e que a você parecem tão fantasiosas, na verdade são extremamente práticas, tão práticas que dependo delas para viver.
— Como? — perguntei involuntariamente.
— Bem, eu trabalho por conta própria. Imagino que seja o único no mundo nesse ramo. Sou um detetive-consultor, se é que entende o que isso significa. Aqui em Londres temos punhados de detetives oficiais e particulares. Quando estão em apuros, eles me procuram, e tento colocá-los novamente na pista certa. Fornecem-me todos os indícios e, graças ao meu conhecimento da história do crime, geralmente consigo descobrir e corrigir as falhas. Existe uma grande semelhança entre os delitos, de modo que, se temos todos os detalhes de mil casos na ponta dos dedos, seria estranho não conseguirmos desenredar o milésimo primeiro. Lestrade é um detetive conceituado. Recentemente, ficou perdido ao investigar um caso de falsificação, e foi isso que o trouxe aqui.
— E quanto às outras pessoas?
— Na maioria, são enviadas por agências particulares de investigação. Todas são pessoas com problemas que procuram algum esclarecimento. Ouço as histórias que me contam, elas ouvem meus comentários e depois embolso meus honorários.
— Está querendo dizer que sem sair do quarto você consegue desatar um nó insolúvel para outros homens, embora eles próprios tenham observado todos os detalhes pessoalmente? — perguntei.
— Sem tirar nem pôr. Tenho uma espécie de intuição nesse sentido. De vez em quando aparece um caso mais complicado que os outros. Então, preciso caminhar por aí e ver as coisas com meus próprios olhos. Como sabe, tenho uma boa dose de conhecimentos especiais que, aplicados ao problema, facilitam extraordinariamente as coisas. Aquelas regras de dedução no artigo que provocou o seu desdém são inestimáveis no meu trabalho prático. Observação é a minha segunda natureza. Você pareceu surpreso quando eu lhe disse, no nosso primeiro encontro, que estava retornando do Afeganistão.
— Alguém lhe contou, sem dúvida.
— Absolutamente! Eu sabia que você vinha do Afeganistão. Devido a um hábito antigo, o encadeamento de pensamentos passou pela minha mente com tamanha rapidez que cheguei à conclusão sem ter consciência das etapas intermediárias. Mas essas etapas existiram. O meu raciocínio foi o seguinte: Aqui temos um cavalheiro com aparência de médico, mas também com modos de militar. Portanto, sem sombra de dúvida, um médico do Exército. Acabou de chegar dos trópicos, pois tem o rosto queimado e essa não é a cor natural de sua pele, já que os pulsos são claros. Passou por privações e doenças, como demonstra nitidamente seu rosto macilento. Foi ferido no braço esquerdo, já que o mantém numa posição rígida e pouco natural. Em que lugar dos trópicos um médico inglês do Exército enfrentaria tantas agruras e seria ferido no braço? No Afeganistão, evidentemente.
Toda esta fieira de pensamentos não levou mais de um segundo. Então, comentei que você viera do Afeganistão e percebi que ficou espantado.
— Tudo parece muito simples, da maneira como você explica — respondi, sorrindo. — Você me lembra o Dupin de Edgar Allan Poe. Nunca pensei que esse tipo de gente existisse na vida real.
Sherlock Holmes levantou-se e acendeu seu cachimbo.
— Sem dúvida imagina estar me fazendo um elogio quando me compara a Dupin — observou. — Bem, na minha opinião, Dupin era um tipo bastante inferior. Aquele seu truque de interromper os pensamentos do amigo com um comentário oportuno, após um silêncio de 15 minutos, além de espalhafatoso, é superficial. Não duvido que ele tivesse um certo dom analítico, mas não era de modo algum o fenômeno que Poe parecia imaginar.
— Já leu as obras de Gaboriau? — perguntei. — Lecoq corresponde à ideia que você faz de um detetive?
Sherlock Holmes fungou com ironia.
— Lecoq era um grande trapalhão — disse ele, irritado. — Sua energia era a sua única qualidade. Esse livro me deixou francamente enojado. A questão consistia em identificar um prisioneiro desconhecido. Eu teria feito isso em 24 horas, enquanto Lecoq levou uns seis meses. Um livro assim poderia ser um manual para os detetives aprenderem o que devem evitar.
Fiquei bastante indignado ao ver menosprezados dois personagens que eu tanto admirava. Fui até a janela e fiquei olhando a rua movimentada.
Este sujeito pode ser muito esperto
, pensei, mas certamente é bastante presunçoso
.
— Hoje em dia, não há mais crimes nem criminosos — disse ele, em tom de lamento. — De que adianta a inteligência em nossa profissão? Sei muito bem que tenho capacidade para tornar meu nome famoso. Não há e nunca houve alguém que contribuísse com tamanha dose de estudo e talento natural para investigação criminal como eu. E qual foi o resultado? Não há crimes a desvendar ou, no máximo, algum delito desajeitado, com um motivo tão transparente que até um funcionário da Scotland Yard consegue resolver.
Eu continuava irritado com sua maneira presunçosa de falar e achei melhor mudar de assunto.
— O que será que aquele sujeito está procurando? — perguntei.
Ao falar, apontei para um indivíduo corpulento e vestido com simplicidade, que caminhava devagar pela calçada oposta, consultando os números das casas com ansiedade. Tinha um grande envelope azul na mão e, evidentemente, era portador de alguma mensagem.
— Está falando daquele sargento aposentado da Marinha? — perguntou Sherlock Holmes.
Quanta fanfarronice!
, pensei. Ele sabe que não posso confirmar o que disse.
O pensamento mal tinha cruzado a minha mente quando o homem que observávamos descobriu o número de nossa porta e atravessou a rua às pressas. Ouvimos a batida forte, uma voz grave no andar de baixo e, em seguida, o ruído de passos firmes subindo a escada.
— Para o sr. Sherlock Holmes — disse ele, entrando na sala e estendendo a carta ao meu amigo.
Ali estava a minha oportunidade de acabar com sua arrogância. Ele nem havia pensado nisso quando fez sua observação casual.
— Escute, amigo — falei com a voz mais branda possível —, posso perguntar-lhe qual a sua profissão?
— Mensageiro, senhor — respondeu de modo rude. — Meu uniforme está sendo consertado.
— E o que fazia antes? — tornei a perguntar, com um malicioso olhar de esguelha para meu companheiro.
— Era sargento, senhor. Da infantaria ligeira da Marinha. Sem resposta, sr. Holmes? Perfeitamente, senhor.
O homem bateu os calcanhares, ergueu a mão em continência e saiu.
3
O MISTÉRIO DE LAURISTON GARDEN
Confesso que fiquei absolutamente perplexo com aquela nova prova da natureza prática das teorias de meu companheiro. Meu respeito por sua capacidade analítica aumentou de maneira considerável. Mesmo assim, eu ainda nutria a secreta desconfiança de que tudo não passasse de um episódio previamente combinado com o objetivo de me deixar deslumbrado, embora não pudesse compreender qual a sua intenção ao enganar-me daquele jeito. Quando olhei para Holmes, ele terminara de ler a nota e seus olhos haviam adquirido aquela expressão opaca e distante que indicava abstração mental.
— Diabo, como conseguiu deduzir aquilo? — perguntei.
— Deduzir o quê? — replicou ele, com petulância.
— Ora, que o homem era sargento reformado da Marinha.
— Agora não tenho tempo para futilidades — respondeu com rispidez. Depois, acrescentou com um sorriso: — Desculpe-me o modo rude. Você interrompeu o fio dos meus pensamentos, mas talvez até seja melhor assim. Então, não conseguiu perceber que aquele homem era um sargento da Marinha?
— De modo algum.
— Foi mais fácil descobrir isso do que explicar como eu sei. Se lhe pedirem para provar que dois e dois são quatro, você talvez encontre alguma dificuldade, embora tenha certeza disso. Mesmo quando aquele homem estava do outro lado da rua, pude ver uma grande âncora azul tatuada no dorso de sua mão. Isso indicava alguma ligação com o mar. Ele tinha uma postura militar e, além disso, usava as suíças próprias da Marinha. Tínhamos, então, um marinheiro. Notava-se nele um certo ar de importância, de quem está acostumado a comandar. Você deve ter notado o modo como ele movia a cabeça e manejava a bengala. Além disso, seu rosto era o de um homem resoluto, respeitável e maduro... um conjunto de características que me levou a acreditar que ele fora um sargento da Marinha.
— Incrível! — exclamei.
— Corriqueiro — disse Holmes, embora, pela sua expressão, eu percebesse que ele tinha ficado satisfeito com minha visível surpresa e admiração. — Ainda há pouco eu lhe dizia que não há mais criminosos. Tudo indica que eu estava enganado — veja isto!
Estendeu-me a carta que acabara de receber do mensageiro.
— Oh! — exclamei, assim que corri os olhos por ela. — Isto é terrível!
— Parece um tanto fora do comum — ele observou calmamente. — Poderia lê-la para mim em voz alta?
Esta é a carta que li para ele:
Prezado sr. Sherlock Holmes,
Esta noite houve uma grave ocorrência no nº 3 de Lauriston Gardens, nas proximidades da Brixton Road. Por volta de duas da madrugada, nosso policial de ronda avistou luz nesse endereço e, como a casa estava vazia, desconfiou que havia algo errado. A porta estava aberta e, na sala da frente, sem nenhuma mobília, ele se deparou com o cadáver de um cavalheiro, bem-vestido e tendo em um dos bolsos cartões de visita em nome de Enoch J. Drebber, Cleveland, Ohio, USA
. Não houve roubo e não há nenhuma pista sobre a maneira como o homem morreu. Existem marcas de sangue na sala, embora o corpo não apresente nenhum ferimento. Não imaginamos o que ele teria ido fazer naquela casa desabitada; aliás, o caso todo é um enigma. Se puder ir até lá, a qualquer hora antes do meio-dia, irá encontrar-me. Deixei tudo tal como estava, até ter notícias suas. Se não puder vir, enviarei maiores detalhes e ficarei imensamente grato pela gentileza de sua opinião.
Cordialmente,
Tobias Gregson
— Gregson é o homem mais esperto da Scotland Yard — observou o meu amigo. — Ele e Lestrade são os únicos que têm valor, em meio a um punhado de incompetentes. Ambos são rápidos e decididos, mas convencionais... terrivelmente convencionais. Por outro lado, há uma grande rivalidade entre eles e são ciumentos como duas beldades profissionais. A coisa promete ser divertida, se Gregson e Lestrade forem designados para o caso.
Era espantosa a calma com que ele murmurava aquilo.
— Sem dúvida, não há um momento a perder! — exclamei. — Desço e chamo um coche para você?
— Ainda não tenho certeza se irei ou não. Sou o sujeito mais incuravelmente preguiçoso que já houve neste mundo... embora possa ser bastante ativo quando estou disposto a isso.
— Ora, mas esta é justamente a oportunidade que esperava!
— Meu caro amigo, que diferença faz para mim? Supondo-se que eu resolva todo o caso, pode ter certeza de que o crédito será todo de Gregson, Lestrade e Cia. É isso que acontece quando não se é um investigador oficial.
— Bem, mas ele pede a sua ajuda.
— É verdade. No fundo, sabe que sou superior a ele e reconhece o fato, mas seria capaz de cortar a língua antes de admiti-lo a mais alguém. Enfim, sempre podemos ir e dar uma espiada por lá. Trabalharei à minha maneira, sem ajuda. Se não conseguir nada, pelo menos rirei deles. Vamos!
Enfiou o sobretudo e passou a movimentar-se de uma maneira que indicava que a apatia de antes fora substituída por um acesso de energia.
— Pegue o seu chapéu — disse.
— Quer que eu vá também? — perguntei.
— Sim, caso não tenha nada melhor para fazer.
Um minuto depois, estávamos em um cabriolé, rodando a toda a velocidade para a Brixton Road.
Fazia uma manhã nublada e nevoenta. Um véu acastanhado pairava acima dos telhados, parecendo o reflexo das ruas lamacentas. Meu companheiro estava na melhor disposição de ânimo, tagarelando sobre violinos de Cremona e a diferença entre um Stradivarius e um Amati. Quanto a mim, permanecia calado, porque o mau tempo e o assunto melancólico em que estávamos envolvidos me deixavam deprimido.
— Você não me parece nada preocupado com o caso que tem pela frente — falei por fim, interrompendo a explanação musical de Holmes.
— Por enquanto, ainda não dispomos de dados — ele respondeu. — É um erro capital formular teorias antes de contarmos com todos os indícios. Pode prejudicar o raciocínio.
— Em pouco tempo terá os seus dados — observei, apontando com o dedo. — Esta é a Brixton Road e, se não me engano, aquela é a casa.
— Tem razão. Pare, cocheiro, pare!
Ainda estávamos a uns cem metros de distância, mas ele insistiu em descer ali mesmo, de modo que fizemos a pé o resto do trajeto.
O número 3 de Lauriston Gardens tinha uma aparência agourenta e ameaçadora. Era uma das quatro casas que ficavam um pouco recuadas da rua, sendo duas ocupadas e duas vazias. A última espiava para fora através de três filas de janelas tristes e abandonadas, com uma aparência vaga e opaca, a não ser pelos cartazes de Aluga-se
, que surgiam aqui e ali, como cataratas sobre as vidraças encardidas. Havia um pequeno jardim salpicado de plantas raquíticas entre cada uma das casas e a rua, cortado por um estreito caminho amarelado, parecendo ser uma mistura de saibro e argila. Tudo ali estava lamacento, por causa da chuva que caíra durante a noite. O jardim era circundado por uma parede de tijolos com mais ou menos um metro de altura, encimada por grades de madeira. Nessa parede, estava recostado um policial robusto, cercado por um pequeno grupo de desocupados, todos esticando o pescoço e aguçando os olhos, na vã esperança de um vislumbre do que acontecia no interior.
Imaginei que Sherlock Holmes entraria imediatamente na casa, para atirar-se ao estudo do mistério. Entretanto, nada parecia mais distante de sua intenção. Com ar despreocupado que, em vista das circunstâncias, me parecia próximo à afetação, ele caminhou de um lado para outro pela calçada, fitando o chão com expressão absorta, depois o céu, as casas opostas e a linha das grades sobre os muros. Terminada a sua inspeção, ele começou a andar lentamente pelo caminho do jardim, ou melhor, pelo gramado vizinho, de olhos pregados no chão. Parou duas vezes e eu o vi sorrir uma vez, ouvindo-o também soltar uma exclamação satisfeita. Havia muitas marcas de pegadas impressas no terreno molhado e argiloso, mas, como os policiais já tinham ido e vindo por ali, não pude imaginar como meu companheiro poderia descobrir uma pista no local. De qualquer modo, já que tivera provas tão extraordinárias da rapidez de seus dotes perceptivos, acreditava que ele conseguiria distinguir muitas coisas que para mim eram invisíveis.
À entrada da casa, fomos recebidos por um homem alto e claro, de pele alva e cabelos muito louros, com um caderno de notas na mão, que se precipitou ao encontro de Holmes, apertando-lhe a mão efusivamente.
— Foi muita gentileza ter vindo — disse ele. — Nada foi tocado ainda.
— Exceto aqui fora! — replicou meu companheiro, apontando para o caminho no jardim. — Se uma manada de búfalos tivesse passado por ali, a confusão não seria pior. Mas imagino que já havia tirado suas conclusões, Gregson, antes de permitir que isso acontecesse.
— Fiquei muito ocupado dentro da casa — respondeu o detetive, evasivamente. — Meu colega, o sr. Lestrade, também está aqui. Esperava que ele cuidasse dessa parte.
Holmes fitou-me de esguelha e ergueu as sobrancelhas sardonicamente.
— Se dois homens como você e Lestrade já estão na pista, não resta muita coisa para um terceiro fazer — disse.
Gregson esfregou as mãos, satisfeito consigo mesmo.
— Creio que já fizemos tudo que era necessário — respondeu. — De qualquer modo, é um caso estranho e sei o quanto aprecia o gênero.
— Veio para cá de cabriolé? — perguntou Sherlock Holmes.
— Não.
— Nem Lestrade?
— Também não.
— Então, vamos dar uma espiada na sala.
Com esta observação inconsequente, ele entrou na casa em largas passadas, seguido por Gregson, cujas feições exprimiam espanto.
Um corredor curto, de assoalho nu e empoeirado, levava à cozinha e às dependências de serviço. Duas portas se abriam para ele, uma à direita e outra à esquerda. Era evidente que uma delas ficara fechada por muitas semanas. A outra dava para a sala de jantar, o aposento onde ocorrera o misterioso fato. Holmes entrou e eu o segui, com o coração apertado por aquela sensação que a presença da morte inspira.
Era uma grande sala quadrada, que parecia ainda maior pela ausência de móveis. As paredes estavam forradas com um papel vulgar e espalhafatoso, manchado de bolor em vários lugares e com enormes tiras rasgadas, aqui e ali, penduradas e expondo o reboco amarelado. Do lado oposto à porta havia uma lareira vistosa, com um consolo que imitava mármore branco. A um canto desse consolo da lareira via-se um toco de vela vermelha. A única janela estava tão suja que só deixava penetrar uma claridade opaca e incerta, que emprestava a tudo uma tonalidade acinzentada, acentuada pela espessa camada de poeira que cobria todo o aposento.
Foi mais tarde que notei esses detalhes. Naquele momento, minha atenção concentrava-se na figura imóvel e macabra estendida nas tábuas do assoalho, com os olhos abertos e sem vida fitando o teto desbotado. O homem devia ter uns 43 ou 44 anos, era de estatura mediana, tinha ombros largos, cabelos negros e anelados, a barba curta e hirsuta. Trajava fraque e colete de tecido grosso e de boa qualidade, calças claras, e tinha punhos e colarinho imaculadamente alvos. No chão, a seu lado, havia uma cartola bem-escovada e em bom estado. Ele tinha as mãos crispadas e os braços abertos, mas as pernas estavam torcidas, dando a impressão de que sua agonia fora extremamente penosa. Em seu rosto rígido estampava-se uma expressão de horror e também de ódio, segundo me pareceu, como jamais vi em um semblante humano. Aquela contorção malévola e terrível, juntamente com a testa baixa, o nariz chato e o queixo proeminente, davam ao morto uma singular aparência simiesca, acentuada pela postura torcida e pouco natural. Eu já vira a morte em formas variadas, porém nunca com um aspecto tão medonho como naquela sala sombria e sinistra, que dava para uma das principais artérias da Londres suburbana.
Esguio e com seu ar de furão, Lestrade estava parado junto à porta e cumprimentou-nos, a mim e a meu companheiro.
— Este caso vai dar o que falar — observou ele. — Supera tudo o que já vi, e note-se que não sou calouro.
— Nenhuma pista? — perguntou Gregson.
— Absolutamente nada — respondeu Lestrade.
Sherlock Holmes chegou perto do corpo e, ajoelhando-se, examinou-o atentamente.
— Têm certeza de que não há ferimentos? — perguntou, apontando para as numerosas gotas e salpicos de sangue espalhados em torno.
— Plena certeza! — exclamaram os dois detetives.
— Sendo assim, é evidente que esse sangue veio de uma segunda pessoa, presumivelmente o assassino, se é que houve assassinato. Isso me faz lembrar as circunstâncias da morte de Van Jansen, em Utrecht, em 1834. Lembra-se do caso, Gregson?
— Não, senhor.
— Pois procure ler... realmente, deveria lê-lo. Não há nada de novo sob o sol. Tudo já aconteceu antes.
Enquanto falava, seus dedos ágeis voavam daqui para ali, por todos os cantos, apalpando, pressionando, desabotoando e examinando, tendo nos olhos aquela mesma expressão absorta que já mencionei. Conduziu o exame com tal rapidez que dificilmente alguém perceberia a minúcia com que o fazia. Por fim, cheirou os lábios do morto e depois olhou as solas de suas botas de couro.
— Não o removeram do lugar? — perguntou.
— Apenas o suficiente para que o examinássemos.
— Então, podem levá-lo agora para o necrotério — disse Holmes. — Não há mais nada para se examinar.
Gregson tinha uma padiola e quatro homens ali perto. A um chamado seu, os padioleiros entraram na sala e retiraram o morto. Quando o corpo foi erguido, um anel caiu no chão, tilintando, e rolou pelo assoalho. Lestrade apanhou-o e olhou para ele com ar de mistério.
— Uma mulher esteve aqui! — exclamou. — Isso é uma aliança de mulher!
Ao falar, exibiu a aliança na palma da mão. Juntamo-nos em torno dele e fitamos o anel. Não havia dúvida de que aquele aro singelo de ouro já havia adornado o dedo de uma noiva.
— Isso complica as coisas — comentou Gregson. — E sabe Deus como já estavam complicadas.
— Tem certeza de que isso não as simplifica? — observou Holmes. — Nada descobriremos ficando aqui a contemplar a aliança. O que encontrou nos bolsos do homem?
— Temos tudo aqui — disse Gregson, apontando para alguns objetos amontoados sobre um dos últimos degraus da escada. — Um relógio de ouro, no 97.163, da casa Barraud, de Londres. Uma corrente de relógio, pesada e de ouro maciço. Um anel de ouro com o símbolo maçônico. Um alfinete de gravata de ouro, no formato de uma cabeça de buldogue, com olhos de rubis. Uma carteira em couro da Rússia, contendo cartões de visitas de Enoch J. Drebber, de Cleveland, correspondentes às iniciais E.J.D. na roupa de baixo. Nenhuma carteira de notas, mas dinheiro trocado nos bolsos, totalizando sete libras e 13 xelins. Uma edição de bolso do Decameron, de Boccaccio, com o nome de Joseph Stangerson na primeira folha em branco. Duas cartas... uma endereçada a E.J. Drebber e outra a Joseph Stangerson.
— Para que endereço?
— American Exchange, Strand, Londres, para serem entregues quando procuradas pelos destinatários. Ambas foram enviadas pela Guion Steamship Company e falam sobre a partida de seus barcos de Liverpool. É evidente que o infeliz estava prestes a voltar para Nova York.
— Investigou o homem chamado Stangerson?
— Imediatamente, senhor — disse Gregson. — Fiz publicar anúncios em todos os jornais. Enviei um de meus homens ao American Exchange, mas ele ainda não voltou.
— Pediu informações a Cleveland?
— Telegrafamos para lá esta manhã.
— O que disse?
— Apenas detalhamos as circunstâncias, acrescentando que ficaríamos gratos por qualquer informação que nos ajudasse.
— Não solicitou detalhes sobre algum ponto específico, que considerasse importante?
— Pedi informações sobre Stangerson.
— Nada mais? Não existe nenhuma circunstância que sirva de base para esse caso? Pretende telegrafar novamente?
— Já disse tudo o que tinha a dizer — respondeu Gregson num tom ofendido.
Sherlock Holmes riu para si mesmo e parecia prestes a fazer algum comentário, quando Lestrade, que ficara na sala da frente enquanto conversávamos no corredor, reapareceu em cena, esfregando as mãos de um jeito pomposo e satisfeito.
— Sr. Gregson, acabo de fazer uma descoberta da maior importância, algo que passaria despercebido se eu não tivesse examinado as paredes cuidadosamente — disse.
Os olhos do homenzinho cintilavam enquanto ele falava e, evidentemente, mal continha a euforia por ter lavrado um tento contra o colega.
— Venham ver! — chamou, voltando alvoroçadamente à sala, cuja atmosfera parecia renovada após a remoção de seu macabro inquilino. — Um momento, fiquem onde estão!
Riscou um fósforo na bota e o aproximou da parede.
— Vejam isto! — exclamou, triunfante.
Já mencionei que o papel de parede estava rasgado e com as tiras penduradas em vários lugares. Naquele canto da sala, um bom pedaço se rasgara, deixando à mostra um quadrado amarelado de reboco áspero. Nesse espaço descoberto via-se uma única palavra, garatujada em letras de sangue:
Rache
— O que me diz disso? — perguntou o detetive, com o ar de um mestre de cerimônias apresentando o espetáculo. — Passou despercebido porque ficava no canto mais escuro da sala e ninguém pensou em examinar aqui. O assassino escreveu isso com o próprio sangue, dele ou dela. Notem a mancha que escorreu pela parede! De qualquer modo, afasta a hipótese de suicídio. Por que teria sido escolhido esse canto? Eu lhes direi: vejam aquela vela sobre a