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Por Trás Do Tapete Mágico
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Por Trás Do Tapete Mágico
E-book666 páginas9 horas

Por Trás Do Tapete Mágico

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Sobre este e-book

O sonho arquetípico de voar está presente na alma da humanidade desde sempre. O lendário tapete voador das Mil e Uma Noites traduz esse anseio na liberdade poética da arte. Estamos nos aproximando de 100 anos – um simples piscar de olhos no tempo – apenas em que a civilização humana começou a traduzir essa força simbólica em algo prático, grandioso, fenomenal, acessível cada vez mais a bilhões de seres, encurtando distâncias, aproximando povos, dinamizando as trocas culturais e comerciais. Em 1919, decolava a indústria do transporte aéreo para se tornar a magnífica atividade que é hoje. Big business, sim, dos mais fundamentais. Complexo. Envolve política, economia, alta tecnologia, ciência, arte, cultura, grandes riscos financeiros. Desafios, aventuras. E gente. Gente que sonha, carregando no âmago do ser, escondida talvez por detrás da praticidade dos negócios altamente competitivos que marcam a aviação comercial, e por detrás do trabalho preciso, rigoroso, a rebeldia resistente da paixão. Pilotos, executivos, comissários, atendentes de aeroportos e reserva, engenheiros, mecânicos, homens e mulheres, muitos desse mundo são movidos pela emoção ardente que o ato de voar evoca. Nesta antologia de reportagens – muitas em estilo vibrante do jornalismo literário -, um voo direto ao coração deste reino e aos seus muitos voadores de vários tipos que o fizeram acontecer, no Brasil e no exterior, na época dramática em que a aviação comercial mudou para sempre, entre os anos 1980 e 2000. De figuras lendárias – Omar Fontana, Rolim Adolfo Amaro – a anônimos, de mergulhos intensos nos bastidores – o centro de controle de tráfego aéreo Cindacta, os meandros do aeroporto de Congonhas, a base da Lufthansa em Frankfurt, um voo de 747 na cabine de comando – a pioneiros – o último remanescente da época de Saint Exupéry, a primeira mulher no cockpit de um Boeing no Brasil, o primeiro brasileiro comandando jato num Oriente Médio conturbado -, de entrevistas memoráveis a uma noite inteira na operação aérea dos Correios em Viracopos, da criação e lançamento do avião que elevou a Embraer a um patamar de ponta na indústria aeronáutica mundial até uma epopeia aérea de Bandeirante pela Amazônia, um grande resgate histórico de retratos no tempo que ajudam a entender o que foi a aviação recente e a alma que vibra em seus personagens agora e sempre.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento10 de ago. de 2016
Por Trás Do Tapete Mágico

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    Por Trás Do Tapete Mágico - Edvaldo Pereira Lima

    Passageiros do Tempo

    A aviação de nossos dias é um dos fenômenos mais extraordinários do veloz e globalizado mundo que vivemos. Junto com as transmissões de televisão via satélite, com a internet e seus múltiplos usos, torna esta nossa aldeia planetária um caleidoscópio dinâmico de complexas interações culturais, sociais, econômicas, humanas. Torna o distante muito perto.

    Se você reside numa grande metrópole como São Paulo ou o Rio de Janeiro, pode se dirigir ao aeroporto internacional e dali partir – muitas vezes em voos diretos – para dezenas de outros grandes centros mundiais. Em poucas horas poderá estar em Londres, Madrid, Nova York, Dubai, Bogotá, Miami, Toronto, Istambul, Pequim, Tel Aviv, Sydney, Mumbai. Você escolhe.

    Se reside noutra metrópole um pouco menor, como Porto Alegre, Belo Horizonte, Natal, Brasília, na ausência de voo sem escala pode fazer conexão e dali igualmente alcançar o mundo. Se sua cidade é ainda menor, talvez possa tomar um voo regional em algum lugar próximo e viajar para um dos grandes centros-troncais de voos e dali partir para onde quiser.

    É tão fácil que virou quase banal. Aviões grandes decolando e pousando, passando por sua cabeça, nas proximidades de aeroportos em milhares de cidades pelo mundo afora. Se não presencia ao vivo, vê na televisão ou na telinha do computador uma cena de uma nova e fantástica máquina voadora de dois andares recebendo centena de passageiros para um voo transcontinental. Ou um jato cargueiro gigantesco transportando baleias ou equipamentos monstros para uma nova usina em construção em algum canto do planeta.

    O cotidiano nos anestesia para o espetacular que se esconde por trás do aparentemente trivial. E, no entanto, a magia está ali, instalada, em silêncio ou não, em cada ato ordinário de você ser recebido no balcão de check in da empresa aérea e sem nenhum papel na mão, só o documento comprobatório de quem você é, ser atendido para uma viagem de aventura que o vai deixar daqui a pouco nas férias de sonho nas águas de encontro de dois rios amazônicos em Alter do Chão.

    A magia está, camuflada ou não, nas pessoas que você ouve, mas muitas vezes não vê. Na voz do comandante que pelo serviço de som dá-lhe as boas-vindas a bordo. No sorriso da comissária que lhe acalma a ansiedade escondida. Pode estar – e você nem sabe – no homem ou na mulher que dos centros de controle de tráfego aéreo conversa com seu piloto em frases enigmáticas e rápidas, transmitindo ordens precisas que ajudam a orientar seu voo. Está nas mãos do profissional que cuidou da manutenção de seu avião, para que tudo esteja em ordem agora que você está pronto para viajar. Está na cabeça do empresário que um dia sonhou criar uma empresa aérea e então movimentou capital, energia, força, ideias, gente e dores de cabeça para fazer você agora partir para sua lua de mel quem sabe nas montanhas românticas de Bariloche ou nos esplêndidos castelos alemães do Reno. Ou uma celebração de bodas de ouro nos campos da Toscana ou ainda no aroma florido da Provence francesa. Ou ainda férias com as crianças em Orlando. Nem isso, talvez, apenas uma produtiva viagem de negócios imediata para Kuala Lumpur. Quem sabe?

    A magia, simbólica e metafórica, é uma das faces do transporte aéreo regular. Uma outra é seu lado business, prático e operacional.

    A realidade da aviação deste século XXI em pleno voo de cruzeiro é fruto de uma mudança estrutural que começou no final da década de 1970. Teve partida nos Estados Unidos com o nome de deregulation. No Brasil se manifestou com turbulências que fizeram mudar totalmente o panorama do setor. Onde estão as três grandes empresas aéreas de então, a Varig, a Transbrasil, a Vasp? Perdidas no limbo recente da memória empresarial. O mesmo a se dizer da grande Pan American. E o que comentar da TAM, agora em transição, seu nome deslizando para o passado, substituído pelo novo, LATAM, e reestruturada dentro de uma concepção e de uma realidade empresarial inimaginável há apenas 40 anos?

    O conjunto de textos que você encontra aqui forma um painel de vários capítulos. A história recente da radical transformação do transporte aéreo no Brasil e, algo, no mundo. É uma viagem no tempo. Seu foco direcionador, contudo, viaja especialmente pelas pessoas, pelos profissionais para quem essa história é vida vibrante. O passado que está aqui foi um dia presente, um hoje pulsante, difícil ou glorioso. Ou tudo isso junto, no dinamismo dramático com que as coisas acontecem neste mundo. É memória resgatada, novamente ativa, de homens e mulheres de distintos níveis hierárquicos, em distintas áreas dessa atividade magnífica de múltiplas faces.

    Você entra junto, com este autor, nas entranhas desse gigante. Você vai conhecer mundos do seu universo invisível, para quem dele apenas se utiliza para se deslocar de um ponto a outro pelo ar. É uma viagem para dentro da essência que perdura, embora a configuração do que você verá e vivenciará aqui se refira a um passado de há pouco tempo.

    E se você é profissional da área, dos tempos de hoje, terá a oportunidade de conhecer algo mais dos passos que precederam a realidade que você vive agora. Saberá um pouco mais de movimentos que alteraram – para sempre – o que havia, abrindo espaço para a situação atual. Reconhecerá os seus colegas de campo profissional, os que o antecederam, ontem. E se você viveu aquela época, creio que poderá sentir e refletir novamente o que perdura de legado.

    Mas, se você nada tem a ver com aviões, nem muito menos na condição de usuário, as histórias que estão aqui compõem um painel multifacetado de cenas do drama da vida, mesmo. Tire os aspectos particulares desse tempo e dessa atividade específica, verá, na essência, elementos da mesma aventura universal que afeta e condiciona as trajetórias de todo homem e toda mulher na existência. Aqui, lances do mundo profissional daqueles que escolheram a aviação. Por trás dessa estrutura, os elos de conexão com você, comigo, com pessoas de todos os tempos e lugares.

    É uma viagem ao passado. Traz de volta ecos que se refletem no presente. E avançam, quem sabe, sinais para o futuro.

    Antologia de reportagens selecionadas que escrevi ao longo de três décadas e meia de produção para periódicos especializados, este livro faz um registro de instantâneos da história contemporânea da aviação comercial, no país e no exterior.

    Momentos significativos estão aqui plasmados também para o resgate histórico de profissionais da área, pesquisadores, estudiosos, curiosos, personagens reais do setor e pessoas das novas gerações que por ele se interessam ou dele se aproximam profissionalmente. Imagino que possa ser útil igualmente a estudantes de graduação ou do nível técnico das várias especialidades relacionadas ao campo abrangente da indústria do transporte aéreo regular de passageiros, carga e correios.

    As matérias selecionadas foram produzidas para distintos veículos. A maioria carrega elementos importantes do estilo narrativo do jornalismo literário, essa modalidade especial da literatura de não ficção que procura cumprir quatro objetivos essenciais.

    O primeiro é buscar entregar narrativas que empolguem pelo estilo esteticamente envolvente do texto, visando, mais do que simplesmente passar informação, proporcionar o deleite que uma história bem contada pode proporcionar ao leitor.

    O segundo é ajudar o caro leitor, a prezada leitora, a embarcar junto com o escritor no mergulho intenso naquele mundo que está sendo exposto pelo autor da maneira a mais completa, vivencial – visceral até – possível. A leitura de um texto de jornalismo literário transcende a captação puramente intelectual de uma realidade apresentada. Pode ser também uma viagem sensorial, emocional e simbólica conduzida pelo autor – que se torna um embaixador de quem lê – na jornada de descoberta e aventura pela história factual que está sendo contada e pelo tema subjacente, sutil e significativo, a que remete.

    O terceiro é contribuir para que os fatos, as situações e o mix de fatores que formam a realidade sob escrutínio da matéria tragam aos leitores uma compreensão integrada, dinâmica e contextualizada da questão sob foco. Evitando limitar-se a apresentar a superfície rasa de um assunto, o jornalismo literário sobe à tona os diversos elementos que se cruzam e se conflitam na configuração complexa de qualquer acontecimento ou situação.

    A nossa cultura, a nossa educação e boa parte das mensagens dos meios de comunicação de massa – e também dos novos canais digitais – transportam, no geral, um conteúdo fragmentado do que é real. A visão de mundo é tosca, um samba do crioulo doido que não faz muito sentido. No jornalismo literário que se preze, porém, a intenção é costurar a junção dos nós que estão soltos à primeira vista, revelar a interação dinâmica de tudo o que contribui para aquela dada realidade. É colocar para quem lê, respeitando sua inteligência e sua habilidade cognitiva, a possibilidade de compreender o mais amplamente possível o assunto em pauta, causas e consequências, origens distantes no passado, desdobramentos e consequências eventuais no futuro.

    A realidade, no jornalismo literário, é constituída tanto pelos fatos concretos quanto pelo conteúdo simbólico inerente a cada acontecimento. O mundo não é linear e raso, mas sim complexo, múltiplo. A lógica concreta só consegue nos mostrar uma parte da realidade, pois a existência é orgânica – e não uma máquina –, coexistindo, além da factual, suas dimensões psicológicas, simbólicas, emocionais, arquetípicas. Tendo como rumo o encontro dos significados das coisas, o jornalismo literário ousa navegar por todos os níveis de voo que a capacidade do autor e as delimitações editoriais do veículo para o qual escreve alcançam. Essa jornada abarca de algum modo as mentalidades reinantes e os modelos de realidade intrínsecos à época e aos atores das histórias que as matérias contam.

    O quarto objetivo é fazer tudo isso centrado essencialmente na figura humana. O que torna os textos de jornalismo literário realmente cativantes é sua capacidade de abordar qualquer assunto do vasto leque de atividades humanas – da ciência à política, do esporte ao comportamento, da economia ao show business – a partir do indivíduo. Jornalismo literário é uma narrativa centrada na pessoa. São os nossos semelhantes, somos todos nós que fazemos as histórias acontecerem. Por detrás dos números frios e do panorama asséptico pelo qual muitas vezes a comunicação de massa trata as notícias, existe gente de carne e osso, com sua grandeza e sua pequenez, com suas glórias e suas derrotas, suas alegrias e sofrimentos, vivendo na pele as histórias reais.

    Interessam ao jornalismo literário não apenas as pessoas que ocupam uma destacada posição social, num dado momento histórico e numa certa circunstância. Interessam todas, dos mais diferentes extratos sociais. Através delas todas, poderosas e humildes, famosas e anônimas, é que refletimos a história de todos nós, como membros de uma mesma espécie, a humana, vivendo em diferentes cores individuais de cada um o mesmo padrão-matriz de dores e alegrias que marcam a trajetória do homem e da mulher. Quando colocamos em destaque a história de um indivíduo, estamos ao mesmo tempo semeando pistas que permitem ao leitor encontrar em cada caso específico o retrato no espelho da condição universal de todos nós, humanos. Quando leio a história de alguém, as particularidades daquele indivíduo podem me remeter ao encontro do que nos une, mesmo que na aparência não tenhamos nada em comum. Num nível sutil estamos todos interconectados pelos fios subjetivos que nos fazem membros de uma mesma espécie, vivendo de modos distintos e em circunstâncias particulares a mesma história coletiva do drama humano da existência. E, então, podemos tocar os tecidos sutis da nossa própria vida e entender que, de algum modo, as histórias dos outros nos levam também de volta a nós próprios.

    Uma jornada. Uma viagem. Um mergulho no desconhecido. E uma descoberta.

    É isso o que propõe o jornalismo literário. Contar histórias reais, ao mesmo tempo estimulando o leitor a refletir.

    A jornada que este livro oferece faz um corte no tempo entre a década de 1980 e a primeira deste século XXI, situando nessa janela temporal flashes históricos da aviação comercial. São flashes isolados de episódios marcantes, de situações representativas de momentos importantes desse setor, de pessoas do ramo, de acontecimentos e situações. Sem nenhuma intenção de exibir um encadeamento histórico linear e completo de páginas do passado recente da aviação, o livro compartilha, muito mais, um caleidoscópio de distintas histórias. Aparentemente dissociados, são, de fato, retratos, registros de memória que, no conjunto, formam instantâneos de situações específicas. Essas, por sua vez, fazem também sentido, sob uma perspectiva mais ampla, colocando em evidência um quadro dinâmico de várias das realidades menores que compõem a macro dimensão global do instigante mundo da aviação. São retratos no tempo.

    Têm potencial, porém, para escapar do destino infame das peças de museu à moda antiga, abandonadas em canto empoeirado sem serventia. Pois a vida que pulsa nessas histórias reverbera também, estejamos conscientes ou não, na aviação de hoje. Muito diferente da aviação dessa época retratada nas matérias aqui presentes, a indústria do transporte aéreo atual carrega, em essência, os mesmos princípios duradouros e profundos que governavam a do final do século XX. A leitura desses textos possibilita ao leitor localizar algumas das questões cruciais que despontaram lá atrás, fazendo a aviação se transformar no que é agora.

    Unindo o fio desses dois tempos – o do passado, reproduzido nesses textos, o do presente – está a importância majestosa da aviação no mundo contemporâneo, assim como no Brasil, em particular.

    O mercado doméstico de aviação comercial no Brasil é hoje um dos maiores do mundo. O aeroporto internacional de São Paulo – Guarulhos é o principal eixo de conexão da América do Sul com a Europa. A nossa frota de aviões comerciais é das maiores do planeta. A Embraer ocupa a posição de honra de terceiro maior fabricante de aviões de passageiros em toda a Terra.

    Por essa dimensão, o transporte aéreo merece a cobertura que recebe dos veículos de imprensa. Mas ainda é pouco. Merece muito mais registros narrativos históricos. A memória desse setor tem ainda muitos vazios. Falta-nos uma cultura sólida de cultivo e preservação de sua história, em que pese uma ou outra iniciativa.

    Este livro é uma modesta contribuição neste sentido. As reportagens aqui reproduzidas, quando escritas, em sua época, nasceram com essa intenção consciente de também constituírem pequenas contribuições de registro para a posteridade.

    Durante muitos anos parte da minha carreira profissional esteve ligada ao jornalismo de aviação presente em periódicos especializados. Fui repórter e depois editor do Guia Panrotas, colaborador da Voar – hoje não mais existente no mercado – e também atuei como repórter e editor-contribuinte de uma das mais importantes publicações especializadas mundiais, a Air Transport World, sediada nos Estados Unidos. Assim como colaborei com o mais tradicional veículo dirigido em espanhol, a Revista Aérea, de Nova York, e esporadicamente com distintas outras revistas internacionais.

    Nessa longa fase de atuação regular junto aos veículos especializados, tive a oportunidade de conhecer, interagir com e fazer parte de um pequeno grupo de jornalistas, escritores e editores que remando contra a maré do pouco ou baixo interesse público dedicaram alguma porção – quando não elas inteiras – de suas carreiras à aviação. Ao contrário do que ocorre nos Estados Unidos, onde a magnitude de importância do transporte aéreo gera uma produção literária de alguma relevância e forma uma confraria de escritores dedicados ao assunto, os poucos de nós que aqui fazemos algo compatível com a consistência do setor no Brasil, somos teimosos. Damos murro em ponta de faca muitas vezes, movidos pela adrenalina intelectual e emocional que os aviões nos despertam.

    São colegas – e suas memórias – desse ciclo da minha vida a quem homenageio com estes meus textos, por contribuírem, cada um a seu modo, como jornalistas, escritores, editores, na preservação de uma cultura de comunicação pública centrada em aviação. Lenildo Tabosa Pessoa, Roberto Pereira de Andrade (ambos in memoriam). E mais Ernesto Klotzel, Hélcio Estrella, Carlos Spagat, Paulo Fernando Laux, Mário Vinagre, Gianfranco Beting, o Panda.

    O guarda-chuva dessa homenagem abre-se para homens e mulheres, do passado e do presente, que fizeram e fazem a aviação acontecer. Sãos eles e elas, de pilotos a presidentes de empresas, de comissárias a gerentes de entrega de produto ao cliente, de engenheiros a gerentes de aeroporto, os personagens principais cujas vidas e cujo trabalho procurei honrar com essas matérias. Nessas reportagens, tive o privilégio de poder mergulhar em seus mundos, estimulado também pelo meu passado mais distante de, no início da vida profissional, ter trabalhado no setor como agente de reserva e de emissão de passagem em empresas como a Varig, a Aerolíneas Argentinas e a Alitalia. E de ter exercido posteriormente funções do outro lado do balcão, como assessor de imprensa nessa indústria.

    Organizei os textos em seções específicas, de acordo com a natureza das matérias. A ordem de inserção das reportagens não segue nenhuma linha cronológica, mas sim obedece a esse critério de classificação.

    Algumas delas.

    A seção Gente coloca em primeiro plano as pessoas que dão vida real à aviação, e que deram, em seu tempo. Entrevistas resgata conversas contundentes com executivos chave – alguns emblemáticos – e personalidades marcantes, servindo pontualmente de registro de questões polêmicas. Figuras, por exemplo, de porte do comandante Rolim, da TAM, que fez a empresa crescer de táxi aéreo para a posição de maior empresa aérea regular do país. E da magnitude de Omar Fontana, piloto, empresário, empreendedor com alma de artista, fundador da Transbrasil, pianista e compositor.

    Retrato é uma imersão nos bastidores operacionais, exibindo ao leitor o back office do transporte de passageiros, mas também o de material de correios e do funcionamento do sistema de controle de tráfego aéreo. Política recupera questões pontuais em que os princípios norteadores em larga escala da aviação comercial brasileira começaram a mudar para sempre. A seção Séries, por sua vez, é por excelência uma aventura de condução do leitor à exploração de histórias que representam o coração dessa atividade humana, assim como faz Voo.

    As matérias selecionadas tratam de casos brasileiros, mas também abrangem histórias centradas no exterior. Da mesma forma, incluo uma das minhas matérias publicadas em espanhol e umas poucas escritas e publicadas em inglês, replicando aqui o texto original, nessas línguas.

    As matérias estão inseridas com autorização das respectivas revistas onde foram originalmente publicadas. Agradeço as permissões concedidas por Beth Wagner em Air Transport World, Elaine Asch de Revista Aérea, e à diretoria do Chief Executive Group, LLC (ChiefExecutive.net), por matéria publicada em Chief Executive. Sou especialmente grato a José Guillermo Condomí Alcorta, do Guia Panrotas e a Paulo Fernando Laux, fundador de Voar.

    Como toda narrativa que aspira oferecer algo de valor a quem a lê, esses textos contam histórias, mas podem também fazer pensar.

    Debruçando-me sobre eles, minhas reflexões voaram para o território fugidio do tempo. Muitas das pessoas que são protagonistas dessas histórias não mais estão entre nós. Outras tantas estão aposentadas, afastadas desse campo que foi naquele momento retratado o centro de suas vidas profissionais. Algumas das empresas importantes que mereceram a atenção das publicações para as quais escrevi tampouco existem agora. O cenário de fundo da aviação comercial também passou por mudanças significativas, pouco preserva daquela era que se foi.

    Contudo, ecoa na minha mente o instante vivo de muitas dessas histórias, soam os timbres de voz de alguns dos personagens. Ativam minhas células de memória, como fogo recordador, o detalhe adormecido de uma ou outra experiência no meu ato de imersão focada naquele segundo, naquele minuto, naquela hora que já se foram. Parecem ontem, agora há pouco, hoje.

    Pura ilusão da mente, claro, truque da memória. A inexorável passagem do tempo. A inevitável ampulheta das vidas cuja dimensão temporal se esvaiu. O teatro do viver, o palco da existência, para o qual recebemos a graça misteriosa dele habitar por um tempo.

    Que papéis escolhemos representar? Que dramas selecionamos sentir? Que desafios nos colocamos a enfrentar? Que propósito damos ao nosso existir? Que uso fazemos do privilégio de aqui experimentar, até os ossos e a medula profunda das nossas almas, as dores e as alegrias, o suor e as lágrimas, o sorrir e o gozar de criaturas impulsionadas pela vida a ganhar e conquistar consciência cada vez mais elevada de nós próprios, do mundo, da existência? Que cenário elegemos para o nosso campo de jornada – luta ou prazer – profissional, teatro que ocupa uma parte tão essencial e grandiosa dos nossos ciclos de vida, senão de nossas vidas inteiras?

    Os personagens reais das histórias agora entregues a você, leitor, elegeram a aviação comercial. Aqui, você encontrará uma imagem narrativa, congelada no tempo, de um fragmento de memória do que foi, um dia, uma dinâmica realidade pulsante. Parecem agora um sonho que desafia a noção do que é real.

    Assim como as histórias de pessoas, as das organizações e atividades geradas pelo ser humano também são repletas de ciclos, momentos, instantes dinâmicos ilusoriamente detidos no tempo da memória. Tudo passa, tudo vem, tudo vai. Tudo muda. Tudo pode se transformar.

    Os personagens desta antologia escolheram um campo de atividade humana de dupla face. É um negócio, e dos grandes, um business gigantesco, grandioso e complexo. Mas é também um fascínio e uma paixão. A primeira da minha vida. Quando garoto, decidi que queria ser piloto de avião comercial, conhecer mundo e terras distantes, povos diferentes. Sonho abandonado cedo por circunstâncias do destino que me levaram, porém, a uma outra possibilidade criativa de cultivar esse encanto. Um fascínio e uma paixão tal qual é e foi para a maioria desses irmãos de espécie aqui retratados.

    Pois a aviação, prezada leitora, caro leitor, também está associada ao motivo arquetípico profundamente assentado na alma humana do desejo de voar. Daí a metáfora do tapete mágico.

    Daí o meu convite e o meu bilhete para você embarcar, também passageiro do tempo, no voo que ganha altura nas páginas seguintes. A decolagem já começou.

    *

    ***

    GENTE

    ***

    Eles voaram, fizeram voar, comandaram.

    Enfrentaram dramas, comédias, o pitoresco trivial da existência.

    Pulsam tocados pelo ritmo da nostalgia ou lançados em novas direções da trajetória possível aos seres humanos.

    São personagens da própria história da aviação comercial brasileira.

    Dia de Lembrar

    Pleno meio–dia de quarta–feira, o grupo de simpáticos senhores – e senhoras – reúne–se numa churrascaria paulistana. A faixa etária começa nos 46, ultrapassa os 60 anos. Roupa esporte, jaquetas jeans, uma ou outra camisa vermelha. Muitos conservam o porte quase atlético, ar jovial, outros são vencidos pelos tufos de fios brancos nos cabelos, bigodes e barbas. Alguns perdem a luta contra a calvície, outros se rendem à necessidade dos óculos. Mas a postura, quase sempre, é de quem esteve sempre acostumado a mandar. Reflexo do ego forte e da autoconfiança indispensáveis ao seu antigo campo de trabalho.

    Vendo–os na rua, você talvez pouco notasse. Mas essas mãos já voaram comandando pesados aviões, expandindo fronteiras, conduzindo vidas. Você mesmo, quem sabe, talvez ainda criança, pode ter navegado pelos céus brasileiros, a vida depositada nos mistérios da existência e nos olhos terrenos daquele que respondia, naquele instante, pela continuidade de seu destino. Olhos que usufruíram o nascer da lua, nas alturas, cabine inundada de maravilha. Corpos que sentiram a chuva fria encharcando os músculos, penetrando o cockpit, em voo. Corações que se comprimiram, sufocados e contidos nos gemidos por aqueles que se foram, vencidos pela fatalidade de um tempo em que a aviação era mais romântica, desafiadora, menos eficiente, segura.

    Não, você custaria a adivinhar que aquela voz enérgica de mulher, ainda hoje, um dia murmurou preces silenciosas, as mãos crispadas pedindo a intervenção dos santos protetores, o sorriso enganoso acalmando e provendo, enquanto o avião se debatia, ferido, navegando em perigoso futuro incerto. Não, você jamais suspeitaria que aquele semblante tranquilo já varou nervosas madrugadas atendendo emergências, os braços fortes recuperando defeitos impossíveis, trazendo vida a motores em pane.

    Eles simbolizam vários passados. O passado mais distante da aviação pioneira, a do Junkers pousando cego, nos anos 40, precisando depois ser rebocado da cabeceira da pista até o terminal, de tanta neblina. A epopeia temerária do DC–3 e seus voos de conquista definitiva do território brasileiro, como Bandeirante do ar. O período sublime do Viscount e sua performance de nobreza. A época contemporânea do fim da aviação do arco e flecha, da entrada definitiva no mundo padronizado dos Boeing, Airbus.

    Sim, bata palmas, curve–se à figura desses que fizeram, com seu esforço, coragem, medo, limitações, acertos e erros, a trajetória da história, página do que vemos hoje, lembrança para o amanhã. Compreenda a dimensão humana daqueles que venceram essa etapa de suas vidas com galhardia e agora, valendo–se de sua energia anterior, fazem germinar novos terrenos de ação. Considere, com dignidade, a posição daqueles que, vencidos pelo tempo, não se libertam do passado, pássaros alados que custam a encontrar a metamorfose que os coloque fora da gaiola da memória, prontos para o novo crescimento possível.

    Mas, agora, não há motivos para apreensão. Tudo é risos ou lembranças suaves, até mesmo as trágicas. Vai começar o almoço mensal da Associação dos Funcionários Aposentados e Pensionistas da Vasp.

    Flash back

    Tancredo, Figueiredo e Sarney já assumiram suas posições à mesa. Chamados assim pela semelhança física com essas figuras da política brasileira, os comandantes Salvador Mucci e Milton Martins Costa, o assistente técnico de manutenção Bruno Fortunato Audino, são o presidente, secretário e tesoureiro da Associação. Do corpo dirigente, estão presentes também a comissária Mariza Irma de Meio, diretora social e o comandante Alfredo Francisco da Costa Ferreira, membro do conselho deliberativo.

    Pouco mais de vinte pessoas começam hoje o almoço, as conversas se ampliando entre aperitivos e garfos. Face muito vermelha, expressão forte, o comandante Nestor Gonçalves de Oliveira – o Mate Leão, pelo temperamento explosivo daquele que não aceita desaforo e já vem queimado –, apoiado em suas quatro décadas de carreira, iniciada na FAB, recorda o episódio maroto:

    – Decolando de Maringá para Campo Grande, com escala, o comissário avisou que não havia passageiros a bordo. Aproveitei para ir fazendo voo rasante até Presidente Prudente. Desci pelo Rio Tibaji, voltei, fui passeando. Chegando em Prudente, dei um rasante na pista, autorizado pela Torre, porque o avião estava vazio. Fiz manobra quase tipo avião de caça. Quando pousei, a maior surpresa do mundo: dois passageiros a bordo! Era de se ver eu pedindo desculpas a eles. Era de ser ver porque o Mate Leão queria pegar o comissário à unha. Eu morto de vergonha, fazendo os passageiros passarem por aquela situação toda, rasante para espantar gado, galinha. Os dois eram pai e filho e o pai estava muito doente, indo para o Mato Grosso para morrer, poucos dias de vida. Foi aí que o filho disse que eu não fazia ideia da alegria que o velho sentiu, quando viu aquele aviãozinho voando por cima do pasto daquele jeito, a boiada correndo. Com tudo aquilo que eu encarava como uma irregularidade, um absurdo, proporcionei mesmo assim uma alegria. Então fui achando tudo aquilo que eu fizera fabuloso. Foi uma emoção como eu nunca tivera antes.

    As emoções acontecem, e por diferentes motivos. Bruno de cueca, mecânico de voo, pronto para emergências na heroica travessia do Atlântico, os olhos grudados no indicador de pressão de gasolina. A questão chave é ligar um dos oito tanques extras de combustível, antes que acabe a gasolina do tanque em uso. Afinal, são mais de nove horas de Dacar a Recife. E estamos apenas em 1955, a primeira vez que o Scandia cruza o oceano com tripulação exclusivamente nacional. Colocadas num canto, as poltronas. O bote salva–vidas pronto na porta da cabine. Trinta anos atrás. Uma aventura!

    Bruno começou com o Junkers, o JU–52, responsável pelo motor central, bem na frente da cabine de comando. Mas com a Guerra e a falta de peças, tinham de improvisar. Só que aí o motor soltava óleo no para–brisa, impedindo a visão do piloto. E foi Bruno quem sugeriu a solução. Adaptar uma espécie de carenagem que cobriria os cilindros superiores.

    – O JU nem era a pistão, relembra ele, era à vela, um fogareiro. Mas tinha uma bússola de controle remoto na cauda que permitia o pouso e a decolagem com zero de visibilidade, algo que seria hoje o Cat III.A bússola se guiava pelo radiofarol instalado num carro alemão Opel, dotado de antena, que ficava estacionado na cabeceira do lado da Ruben Berta, em Congonhas. Os pilotos voavam com o instinto de pombo–correio. O JU sala às 07:45 para o Santos Dumont. Ia, pousava, voltava e ainda não haviam decolado os DC–3 das demais companhias.

    Sua carreira começou trôpega, ajudando amigo no Campo de Marte em São Paulo, nos fins–de–semana. Depois, já na Vasp, não havia condução para o aeroporto, o bonde o deixava a dez quarteirões do hangar, que só podiam ser percorridos a pé. Mas ele chegou a alcançar a era do jato, com o BAC One Eleven. Antes, a frustração de fazer o curso de Caravelle, em Toulouse, 1963, e ver os quatro aviões, depois de pintados nas cores da Vasp, serem embargados por razões políticas, acabando entregues à Lan–Chile.

    Uma vida de emoções, mas também de dificuldades. De enfrentar falta de equipamentos. Como no Viscount 701, a versão menor – a Vasp também voava o 827 –, chamado de Vaiquinho pelos pilotos. Era um avião que no começo não tinha radar, lembra–se o comandante Cesar de Barros Bella, aposentado há nove anos. Você não podia prescindir do radar em certas altitudes e mesmo assim era obrigado a voar, enfrentando transtornos. Uma ocasião entrei numa turbulência violentíssima sobre Curitiba, que eu teria evitado se o avião tivesse radar. Parecia uma folha de árvore solta no vento. O comando não obedecia, os passageiros apreensivos. A aeromoça quebrou o pé na portinhola de vistoria da carga. Chegou um momento em que eu não esperava mais sair daquilo, porque quando você entra numa situação dessas fica desorientado, não sabe que atitude tomar.

    Uma vida toda de pequenos e grandes sacrifícios familiares. Não passar o Natal em casa, por exemplo, logo no primeiro ano de casado. Não ter participação no crescimento dos filhos, de repente eles estão grandes, quase estranhos em casa. Ou pior ainda, enfrentar o preconceito da sociedade, da própria família.

    Cecilia Lacava De La Volpi, digamos, agora ali sentada, sorridente, mulher de presença ainda marcante, certo brilho de seus anos jovens. A primeira aeromoça a conseguir aposentadoria no Brasil. E que antes enfrentara as limitações sociais da época, a – perdoável, compreensível? – mesquinharia humana querendo governar a vida dos outros. Fui afastada da família, recorda Cecilia, todos me olhavam de lado, eu não era convidada nem para festa de aniversário. Não fui chamada para as bodas de minha mãe. Até os vizinhos me olhavam por cima.

    Tempos de luta, incompreensões. Arrimo de família, Cecilia perdeu o emprego de secretária. Uma amiga a levou para a Real. Logo ela, que nunca havia entrado num aeroporto e de repente, aos 18 anos, aeromoça, primeiro da Real, depois da Vasp. Mas em 1956 estava a bordo de um avião que pousou de barriga em São Paulo, incendiou–se. Muitos políticos viajando, vindos do Rio – Adhemar de Barros, Franco Montoro. Um grande alvoroço no desembarque de emergência, ela e o comandante saindo por último, só queimaduras leves.

    Mas de longe, são e salva, a visão traumatizante: o Scandia explodindo, consumindo–se numa bola de fogo. Cecília abandonou a profissão, casou–se com piloto, ficou viúva, passou 25 anos sem pisar de novo num avião. Quatro anos de luta, porque na época não havia lei de aposentadoria. Cecília queria trabalhar em terra, sem perda de vencimentos. E finalmente em 1960 a causa ganha, a aposentadoria por invalidez, após 16 anos de profissão.

    Sim, a época era de heroísmo, de sangue frio. De perdas. Como relembra Ferreira: Tomei café com os comandantes Pinto e Torres em Congonhas e uma hora depois eles estavam mortos. Um bi motorzinho cruzou a aerovia para o Rio, chocou–se com o avião deles. Fiquei sabendo logo, mas tinha o meu próprio voo a fazer, em seguida. Decolei normalmente.

    Ah, o drible – ilusório? – no destino! A neutralização das emoções: O piloto tem de pensar que nunca vai morrer, porque o dia em que se convence de que vai sofrer um acidente, é hora de parar, explica ele. Eu participava de um jogo com a fatalidade. Havia um escalador na companhia, que através de seu lápis e de forças estranhas, tinha o dom de lhe escalar (para) ou de lhe riscar o nome fora de um voo fatídico.

    Mas também eram tempos bons, saudáveis. A tripulação, uma família que permanecia reunida sete, oito dias, subindo o Brasil afora pelo interior, na Rede de Integração Nacional. Em 31 de maio, o Dia da Aeromoça, aquela festa bonita, em benefício das crianças deficientes. As comissárias se reuniam, arrecadavam dinheiro. Mariza tomava sempre a iniciativa, saía pelas redações de jornais e emissoras de televisão promovendo o evento.

    Tempos de inícios lentos, bucólicos, uma quase inocência sem lugar no mundo desenfreado, competitivo de hoje. Francisco Freitas Lima, que depois se aposentaria como chefe de equipe no Airbus, conheceu a aviação no barzinho de seu pai, em aeroporto do interior. A mãe fazia comida caseira – imaginem! – para as tripulações e os passageiros. Lima era o boy, carregava mala, limpava avião. Depois foi ser graxeiro, abastecendo aeronaves com bomba natural. Quando os DC–3 paravam, ele era o primeiro a chegar, colocando as traves, os pinos, a escada. Mais tarde, a tarefa de vender passagens na agência, o grande e arriscado salto para a cidade grande, o sacrificado curso de comissário – seis mil cruzeiros! – em escolinha, a abençoada oportunidade nos Douglas.

    Momentos de outrora, em que se precisava burlar a vigilância da mãe – como fez Mucci –, frequentar o aeroclube sem autorização, antes dos 18 anos, tirar o brevê às escondidas. E voar o sonho romântico da aviação, o DC–4, que não era pressurizado e voava baixo, você respirando o ozônio do CB na cabine, reflete Fábio Bastos Bittencourt, um dos mais jovens da Associação, aposentado em 1984, comandante de A–300. No pistão,continua ele, você voava com a janela aberta, o vento batendo no rosto, no colo. Mas esse prazer não volta mais, a cabine do jato tem aquela artificialidade do ambiente de ar seco. Você tem de ser escravo dos instrumentos, policiado pelos sistemas de gerenciamento de voo.

    Mas há gente que gostaria de ser mais jovem, viver a aviação atual. Milton, por exemplo, o Figueiredo secretário da Associação. Aproveitando–se dos bilhetes de cortesia que os aposentados têm direito, foi voar Londres–Paris num Airbus da Air France em 1978, antes desses aparelhos operarem no Brasil. Fez o voo no jump–seat, atrás do comandante. A lembrança o faz arrepiar–se até hoje: Era uma coisa extraordinária, a aeronave supermoderna, pousando automaticamente em Charles De Gaulle. Aquela tecnologia me tocou profundamente, porque eu sei: sou um homem adequado ao mundo desta tecnologia, gostaria imensamente de estar voando a aviação de hoje.

    Mas a existência diz não. A esses profissionais foi lhes dado o tempo e o lugar. Agora a vida lhes encerra uma fase, abre–lhes outras portas. Que na verdade precisam ser construídas, trabalhadas.

    Ventos de mutação

    A Associação tem como objetivo principal congregar força em defesa dos interesses de seus associados. Mucci explica que há situações específicas não muito claras, em aposentadoria, que necessitam de apoio jurídico. Mas ao lado dessa atuação maior, ele planeja, até o fim de seu mandato, no primeiro semestre deste ano, incentivar aulas explicativas para aqueles que, ainda na ativa, aproximam–se da aposentadoria – 25 anos de serviço e 45 de idade, no caso dos pilotos –, funcionários da Vasp, no ar ou em terra.

    Mas apesar desta abertura, quem mais aparece mesmo, nos almoços mensais de São Paulo e Rio, é o pessoal de voo, que também costuma frequentar a sede da Associação, próxima a Congonhas. Ali, os associados são estimulados a se interessar por outras atividades, empregar seu tempo útil em causas nobres. Como a campanha contra a caça à baleia, por exemplo.

    O pessoal de voo tem, em geral, situação financeira razoável, para os padrões brasileiros. Como a aposentadoria – no caso da Vasp, para aqueles que foram beneficiados pela complementação que lhes é acrescida aos rendimentos normais de aposentados – chega relativamente cedo, ainda há tempo para realizar antigos desejos pessoais, mais ou menos despreocupados com a segurança econômica.

    Mucci dedica seu tempo às atividades necessariamente políticas de presidente. Milton continua o hobby de fotografia, que já lhe rendia prêmios internacionais mesmo na época da ativa. Mariza pratica ioga, participou da campanha política de novembro e, solteira, assume família: a sobrinha, mais dois filhos, agora sob sua tutela. Fábio concretiza o sonho antigo, velejando seu barco Maeva em regatas. Ferreira continua a cultivar o hábito do cachimbo – tem uns 500, em sua coleção –, do mergulho submarino e abre uma porta embrionária para a literatura: escreve – como colaborador dos jornais Folha de São Paulo e Shopping News – regularmente sobre aviação e vida submarina; no futuro, os planos para livros, inspirado no grande mestre Somerset Maugham, com possível potencial para repetir as trajetórias literárias de ex e atuais pilotos como Ernest Gann, Richard Bach, Oswaldo França Júnior.

    O fato é que a aposentadoria, como pensa Fábio, representa apenas o fim de uma etapa, o começo de outra. Apoiando–se em Exupéry, ele diz que o avião deve ser entendido como um meio, não como uma finalidade. Ressalva, porém, que a decisão de se aposentar é coisa muito particular, a ser tomada exclusivamente pelo próprio indivíduo. E Ferreira acrescenta que o aposentado deve se conscientizar de sua capacidade para ter sucesso noutra atividade. Basta a chance, além de ser estimulado a desenvolver novas aptidões.

    Do passado, permanecem, como neste final de almoço, o compartilhar da vida de aeronauta, as mesmas lutas sindicais, as melhores amizades. Novos horizontes, mas germina a lembrança atávica, qual flor que aguarda o momento certo para desabrochar. Quando Ferreira realizou seu último voo, comandando um 737, há oito anos, sua esposa estava grávida do primeiro – e único – filho do casal. Ele tirou todo o uniforme, o quepe, guardou–o cuidadosamente num plástico, nunca mais o olhou. Só será aberto um dia, como símbolo honroso do passado, para a entrega, sensivelmente tocante, ao garoto Alexandre, que agora cresce, inocente e aberto, rumo a seu próprio destino.

    *

    Matéria publicada originalmente em Voar ano 4 número 41.

    Saga Oriental

    No Oriente Médio, o início da era do jato.

    Em cena, a paz mística do deserto, a guerra urbana das cidades. Atribulações, sobressaltos.

    E participação verde–e–amarela.

    O momento não podia ser pior. Junho de 67, a Guerra dos Seis Dias. Nem a posição geográfica menos favorável. De um lado, a incômoda fronteira com Israel. Mais ao norte, o Líbano. Preenchendo os espaços, em torno, as desconfortáveis presenças da Síria, do Iraque, do Egito. A base é Amã, capital da Jordânia, cuja Força Aérea já está inoperante, imobilizada pelos ataques de Israel, em conflito com o mundo árabe.

    A princípio, quando a Guerra estoura, a ALIA – Royal Jordanian Airlines – evita voar. Mas depois, decide reassumir sua missão, transportar gente. E o Caravelle decola para o arriscado voo no estreito corredor que vai dar em Beirute, então a bela capital da Suíça do Oriente Médio, terra dos antepassados fenícios, exímios navegadores da antiguidade. No comando, sobrevoando desertos, enfrentando tempestades de areia que em pouco tempo podem cobrir uma pista, atolar um avião, um piloto brasileiro.

    No dia 10 de fevereiro de 65, eu estava em Santiago do Chile, fazendo um voo da Panair, quando recebi o triste telegrama da suspensão das linhas da empresa. Fiquei cinco meses sem voar. Escrevi 27 cartas para companhias estrangeiras, porque eu não aceitava aquela falta de respeito à minha profissão e à minha cidadania de brasileiro, queria sair do país, trabalhar fora. Já estava quase acertado que eu iria voar para uma subsidiária da Sabena, no Congo Belga. Mas então fui chamado pela Sud Aviation – fabricante do Caravelle – para participar da equipe de instrução da ALIA, que acabara de receber três aeronaves da versão 10 R. Não pensei duas vezes. Para não dizer que não foi um salto no escuro, foi um salto no deserto! Viajei pela Swissair até Beirute, peguei um avião da ALIA. O voo foi até romântico, ao transpor as montanhas do Líbano, o Vale de Jericó, o Rio Jordão. A escala e o primeiro pouso de minha vida em Jerusalém. E depois a chegada a Amã.

    Dois anos mais tarde, não há lugar para o romantismo. Lá embaixo é a Terra Santa. Por ali transitaram profetas, videntes, mestres do islamismo, do judaísmo, do cristianismo. Ali viveu o homem desperto Jesus Cristo. Mas agora, embaixo, os homens lutam. A Jordânia, pressionada pelos irmãos árabes a entrar no conflito, está perdendo a batalha, vai ver seu território mais fértil e sua velha Jerusalém conquistados pelo adversário. E no ar, a 10.050 metros de altitude, o Caravelle recebe o alerta do centro de controle: no radar, quatro caças Mirage partem para a perseguição.

    Minha finalidade era adaptar as tripulações, já checadas pela Sud Aviation, aos voos de precisão por instrumentos. Comecei pelos comandantes, depois formei os primeiros e segundos oficiais. A companhia já existia desde 63, voava uns poucos aviões a pistão, o Viscount. Tudo ali na vizinhança mesmo. Mas era um sistema arcaico de aviação. Eles só voavam de dia. Eram pilotos de pé e mão, não operavam por instrumentos. A minha contratação foi para inaugurar a nova era do jato na empresa. Ela já tinha o projeto de chegar até a Europa, onde o céu não é, como no Oriente, azul oito meses por ano. Então, para isso você tem de ter o curso completo de voo por instrumentos.

    O comandante é o carioca Orlando Marques da Silva. No passado, a estreia em aviação como aprendiz da fábrica de aviões da Escola de Aviação Naval, no Galeão. Depois, mecânico da Panair do Brasil. Na II Guerra, o aproveitamento de uma bolsa americana para aprender a pilotar no Texas. Volta como instrutor do bombardeiro B-25. E em 47 retorna à Panair, desta vez como piloto.

    Mas agora pouco disso importa. O que vale mesmo é salvar a pele, preservar o avião. E está voando porque ele e o outro instrutor, o libanês Gaby Azar, contam com uma equipe de voo pequena. O preparo de cada novo piloto leva tempo, seis meses, até um ano. E Orlando se desdobra, substitui gente que vai embora com a Guerra, voa muito, sempre bem mais de 100 horas mensais. As áreas limitadas para o voo comercial são estreitas, restritas. Por onde opera a ALIA são apenas 100 quilômetros até a fronteira de Israel. Por isso, suas operações são vigiadas por radares israelenses. Daí o plano de voo todo cifrado, combinado para iludir o olhar eletrônico. Por exemplo, quando o comandante anuncia estar sobrevoando uma determinada posição fixada nos mapas normais de rota, na verdade ele se encontra num outro ponto qualquer do mapa, que os centros de controle amigos identificam por código. Assim, o radar inimigo, mesmo captando a aeronave, não consegue traçar sua trajetória, nem prever os tempos estimados para os próximos check points. Com isso, os aviões jordanianos contam fugir do alcance dos caças, cuja autonomia de apenas 50 minutos os impedem de se afastarem muito da base.

    Mas hoje esses aviões de combate estão mais ousados. Invadem as rotas especiais traçadas naquela área, durante a Guerra. E entram no espaço aéreo de Damasco.

    Cabia a mim ajustar o voo do pessoal da Jordânia aos padrões da OACI. Os pilotos esforçavam-se, eram competentes. Mas encontrei falhas na formação da maioria. Então eu tinha que parar meus cursos, meus voos, para dar explicações de formação básica. Tinha que regressar à era da China, de quando foi descoberta a magnetita, por exemplo, que dava a orientação na agulha magnetizada, para mostrar como funciona a bússola. E rever as leis de Newton, de Arquimedes, os principias da Física, para conseguir deles um rendimento melhor durante o voo.

    Desenvolvia também uma técnica toda pessoal de pouso em Jerusalém. Não se recomendava fazer reversão do Caravelle no ar. Alguns aviões a jato podem fazer reversão no ar, outros não. No Caravelle, você só podia usar o revés da aeronave pousada, rolando na pista. Mas com a prática, verifiquei que podia ser feito o revés no momento do approach stall. E que isso encurtaria muito a aterrissagem, se eu tivesse um vento de frente superior a 14 nós.

    Nas pistas mais curtas, eu aplicava essa técnica. Em São Luiz do Maranhão, pousava na pista 24, saía para a pista de táxi à esquerda. Na Pampulha, em Belo Horizonte, entrava para o táxi, depois do pouso, na primeira intersecção. E ousei empregar a técnica em Jerusalém. Como a pista é realmente muito curta, eu conseguia pousar o Caravelle em 400 metros. A decolagem tinha que ser feita também com muita precisão: eu atingia os 300 pés de altura, fazia imediatamente uma curva à esquerda. Para não ultrapassar a linha divisória entre os dois países e não invadir Israel.

    Só resta uma e única alternativa dramática: aplicar o speedbrake, mergulhar com tudo para 1.850 metros, entrar numa nuvem para fugir dos caças. Porque eles não podem baixar demais, senão perdem combustível e a autonomia para regressar. Mas nem há tempo para o suspiro de alívio. No solo estão as peças antiaéreas do exército sírio. Que com certeza, vendo aquele avião não identificado invadindo o espaço aéreo do país à baixa altura, vão abrir fogo. No sufoco, Orlando chama a Torre de Damasco, identifica rumo e trajetória. Pede para se comunicarem, via telefone de campanha, com as forças de terra. E escapa de ser derrubado.

    O mundo árabe tinha um serviço de apoio à navegação aérea muito precário. O apoio de radiocomunicação, à base de gônios, era antiquado. Não existia VOR intermediário, na travessia do deserto para Jidá, Arábia Saudita. Não existia na travessia do deserto para o Kuwait, para Bahrein. Como sempre me interessei pela segurança, envolvi-me também na questão. Com as minhas seguidas reclamações e sugestões, os VORs da região acabaram sendo instalados com prontidão.

    A luta não dura uma semana. A Jordânia, derrotada, assume de vez a posição de país moderado, dentre os árabes, à semelhança dos sauditas. Mas com o final do confronto, surge outro problema grave. O número de refugiados palestinos aumenta drasticamente no país. Muitos deles haviam se tornado árabes errantes, a

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