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Ultraje!
Ultraje!
Ultraje!
E-book531 páginas6 horas

Ultraje!

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Sobre este e-book

Advogado jovem e atraente apaixona-se obsessivamente por uma travesti madura, pouco atraente e tendenciosamente autodestrutiva. Esse rapaz terá a missão de fazer crível o seu sentimento , tentando levar essa inusitada figura à um final redentor.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento28 de out. de 2016
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    Pré-visualização do livro

    Ultraje! - Marcelo Bossler De Toledo

    1

    ULTRAJE!

    Marcelo Bossler de Toledo

    2

    3

    INTRODUÇÃO

    Sempre me questionam, intrigados, acerca da finalidade

    desse trabalho...afinal, já me dedico a ele há quase quatro

    anos !

    Quando isso acontece, com mais frequência do que

    esperava, sem hesitar, cito a palavra edificação.

    Não edificação num contexto subliminar, que nos remeta à

    espiritualidade exacerbada ou condignidade vazia...edificação à

    guisa de restauração ou preenchimento de uma existência

    outrora oca, sem substancia.

    Inicialmente, fazia parte integrante de uma série de livretos

    informativos sobre ‘Diversidades Sexuais’, idealizados por uma

    das universidades a qual presto serviços ocasionais, como

    ilustrador e autor; A coleção seria difundida em escolas, com o

    propósito de introduzir o assunto aos alunos do ensino médio.

    O projeto, com todas as suas boas intenções, para o bem

    ou para o mal...não vingou.

    Seu conteúdo era minimalista e os fascículos, na minha

    opinião, pouco ou nada serviriam para instruir ou suscitar o

    interesse em adolescentes, hoje em dia já habilitados a

    4

    enxergar com razoável discernimento a natureza multiforme

    da sexualidade humana.

    A proposta original foi eclipsada em favor de outras,

    consideradas mais profícuas , justificando o tempo e o

    empenho dos envolvidos, doravante voltados aos seguros

    temas de ‘Recursos Naturais’, ‘Reciclagem’ e ‘Adoção

    Consciente’ de cãezinhos e gatos.

    Meu ‘Ultraje!’, já então um trabalho muito grande e pessoal,

    talvez muito ousado para os padrões acadêmicos vigentes, foi

    elegantemente recusado.

    Como ilustrador , sempre iniciei meus projetos literários

    desenhando minhas personagens, tentando compreender suas

    intenções através das figuras que criava em minha mente. O

    que elas querem, o que elas buscam, seus méritos, suas

    grandes falhas.

    " Mostrem para mim como vocês são ! Contem como vão

    alcançar seus objetivos ! Me falem de suas tristezas e medos

    imensos ! Provem que merecem estar aqui !"

    Para criar alguém com uma personalidade tão discrepante

    como a de Eric Bauffmann, pensei que seria melhor pesquisar

    a fundo a rotina de uma travesti. Me dei conta que ele era

    completamente diferente do que se espera nessa esfera. Então,

    5

    me fotografei em diversos ângulos e pretensas situações,

    condizentes à estória que vagamente esboçara e me desenhei ,

    transformando-me em Hoshabell, alegorizando as desventuras

    dessa bizarra criatura.

    Durante meses, me familiarizei com meu próprio rosto,

    maquiado em tons fortes, cuja cosmética eu extraia de lápis de

    cor e aquarela. Processo constrangedor...e divertido.

    Foi quando eu senti que minhas personagens precisavam –

    e queriam - falar.

    O livro foi escrito, em sua totalidade, com diálogos.

    A parte descritiva foi propositalmente suprimida.

    É através da prosa que nos apercebemos do ‘quem’, do

    ‘onde’ e do ‘porque’.

    Antes, eu tencionava mostrar apenas o vazio abissal da

    vida de alguém genuinamente incrédulo com relação ao amor

    verdadeiro, monogâmico e perene; Lentamente, percebi que

    era imperativo mostrar um pouco da extensa coleção de

    preconceitos que nossa própria tribo cultiva.

    Precisei entender – e acreditar ! – no intrínseco desenrolar

    de uma estória de amor. No caminho, pronunciei diversos

    mantras...que não isso fique açucarado, que isso não fique

    asqueroso !

    6

    Vejo os jovens, meus iguais, vivendo hoje com uma

    liberdade de expressão impensável para homossexuais há 15,

    20 anos atrás. Eu os felicito, mas espero que não se encare

    como um mito, o preconceito , por vezes manifestado com

    violência, em muitas localidades, no Brasil e no mundo. É

    preciso atentarmos para o fato de que, para alguns, somos

    apenas tolerados.

    Conquanto leis promulgadas, embasem direitos muito

    básicos que desfrutamos como a um festim , a linha tênue

    entre aceitação e desprezo velado, é sempre aterradora.

    Mas, porque ‘Ultraje!’, no exclamativo ? – outra pergunta

    bem regular no extenso circulo onde divulguei previamente

    minha estória...

    Tentei, como quem se desculpa, citar incontáveis obras

    literárias, filmes, peças teatrais, novelas e unitários, onde uma

    personagem como a que criei, teria invariavelmente, um final

    solitário ou trágico. Mesmo nas versões mais amenas ou

    cômicas, figuras como essa jamais teriam um destino redentor.

    No contexto de minha crônica , de onde advém seu titulo ?

    Ora, é ultrajante e indigesta a ideia de um homem maduro,

    feio e moralmente disforme, encontrar o amor verdadeiro nos

    7

    braços de um jovem, bonito , nobre e profundamente

    apaixonado !

    É ultrajante e inaudito, o fato desse príncipe, dotado e

    obstinado, amar obsessivamente essa figura hedionda,

    passando por toda uma série de percalços, afim de obter o

    responso de seu genuíno sentimento.

    Ultraje, afronta e descrença, são os sentimentos que

    primeiramente assumem o leme, quando as convenções nos

    chamam à ordem e lidamos, não apenas com o tema da

    homossexualidade, mas também – senão principalmente –

    com paradoxos como o feio, em comparação ao belo, o jovem

    e o velho, o palatável e o inconcebível.

    A vida, a sociedade e nossa formação, nos ensinam por

    meio de códigos indeléveis, que existem afrontas maiores do

    que uma orientação sexual diversa.

    Hoje, as pessoas aceitam casais do mesmo sexo,

    namorando em publico, se casando e até adotando

    crianças ...mas, essas mesmas pessoas, inclusive os belos casais

    que há pouco adquiriram, com justeza, direitos à equidade

    social, torceriam seus narizes, indignados, diante da visão de

    um gay, maduro e nada atraente, desfilando com um homem

    belíssimo, muito mais jovem e indisfarçadamente fascinado.

    8

    ‘Ultraje!’, é a única provável resposta que consegui articular

    para os pequenos e tácitos preconceitos sedimentados que se

    enfrenta por falhas morais ou aspectos

    naturais...homossexualidade, idade, beleza...

    Como autor, é interessante atestar minhas próprias

    máximas, observando uma parcela, não pequena , de leitores

    ultrajados.

    É quando, não pela primeira vez, volto a pensar em

    edificação.

    Preciso ressaltar, que não criei minha fantasia para

    comiserar uma classe minoritária de desvalidos ! Não ! Nunca

    precisamos disso ! Ninguém, eu creio, precisa.

    Hoje, somos muitos, somos fortes e beligerantes ...e

    estamos aqui !

    Bem considerado, criando, inventando e mentindo, eu fui

    absolutamente verdadeiro e inteiro em minha ficção. Espero

    que as pessoas se apercebam disso nas vozes das criaturas que

    vão conhecer aqui. Espero que gostem delas...que acreditem

    nelas...

    ...eu acredito !

    9

    MARCELO

    BOSSLER de TOLEDO

    2016

    10

    AGRADECIMENTOS

    Para mim sempre foi embaraçoso agradecer. O gesto implica em

    sinceridade, humildade e um desprendimento imensos...estou aprendendo.

    Obrigado ao meu grande amor, real e ficcional, Nelson Hinsch ! Você

    mostrou que o Carlo existe ! Você me ensinou a andar de bicicleta ! Você me

    pediu em casamento e me colocou uma absurda aliança na mão esquerda !

    Também não posso deixar de agradecer à minha família ! Ela, com todos

    os seus embaraços, compõe o que é sempre inspirador, num contexto

    deliciosamente amargo e passional.

    Muito obrigado ao ator Paulo Vilhena ! Como hóspede no hotel onde

    trabalho, ele me via escrevendo e desenhando. Sempre quis saber do que se

    tratavam aquelas ilustrações onde eu aparecia como uma travesti careca !

    Tão humilde e visionário quanto é talentoso, ‘viajou’ no projeto, antevendo

    para ele coisas maiores !

    Obrigado à Julia.. minha menininha independente e corajosa. A primeira

    criaturinha que me ensinou a amar.

    Obrigado ao Icaro, porque ele mostrou a surpreendente ligação de

    minha estória com ‘Freak on the Leash’, do Corn !

    Obrigado , Marcos e Lucilene . .por tudo.. tudo mesmo . . principalmente

    pela Julia !

    Obrigado à Clélia Bossler . .ela nunca leu um de meus livros, mas seu

    amor grandão sempre disse . .Vai !

    Obrigado à Valéria Toledo, por que ela dizia ‘Vai !’ , mesmo antes de ler o

    que eu havia escrito.

    Obrigado, Verônica e Dani ! Vocês mostram que é possível . .o tempo

    todo !

    11

    Obrigado, Adeilton e Vanessa ! Deus ! Vocês são um exemplo da beleza e simplicidade que não tenho !

    Obrigado, Sandra Tenório ! Você sempre foi e será minha irmã

    gêmea . .anos mais nova do que eu !

    Obrigado ao Sandro, meu gerente de recepção. Ele foi o primeiro a me

    chamar de Eric Bauffmann e me municiou de ideias preciosas . . muitas das

    quais, tão absurdas ,que não aproveitei !

    Obrigado aos meus colegas de trabalho, Wagner Venancio , Sergio Casari,

    Jefferson, Ailson, Bruno e Aline. Todos eles clicaram fotos minhas nas poses

    mais absurdas ! Felizmente, a maior parte delas foi deletada.

    Obrigado ao Fabio Marques de Castro ! Ele leu o primeiro tratamento do

    livro e, mesmo assim, devido provavelmente ao seu elevado nível espiritual,

    apaixonou-se pela estória !

    Muito obrigado ao Sr. Ari Rosa, que ao contrário de todas as expectativas,

    é um romântico incorrigível e indignou-se diante da possibilidade de eu não

    dar um final feliz para Carlo e Eric.

    Obrigado à Laeticia Maris Coeli de Souza, minha revisora não oficial. Ela

    formatou meu texto, me ajudou em tudo nessa publicação.. e tirou umas

    listras muito estranhas que – só Deus sabe - eu consegui inserir enquanto

    digitava !

    Se esqueci de alguém, sinto muito. .mas esse alguém não deve estar na

    minha listinha V.I.P. !

    Beijão !

    12

    13

    ‘Ultraje, é a combinação de sentimentos como o

    choque, raiva, censura e desamparo;

    É, provavelmente, a mais desmoralizante de todas as emoções

    humanas’

    Margery Allingham – Escritora - 1904/1966

    14

    15

    PRÓLOGO

    16

    17

    *

    - Não aperte o talher. Segure-o com leveza, com

    naturalidade.

    - Que é isso ?

    - É um ruivo ao vinagrete. Sirva-se de uma posta e

    destrinche-o com o talher, delicadamente, sempre

    conversando, com gestos casuais e...NÃO ! Não esmigalhe

    o peixe ! Você parece um filisteu !

    - Ai !

    - Não faça cena ! Você me fez perder a calma. Ficou

    apenas vermelho, foi só um cortezinho. Depois ponha a

    mão no gelo. Nem percebi que estava batendo com a

    lamina. Você desperta em mim o que tenho de pior.

    - Desculpe, mama...

    - Observe ! Vê ? Um gesto rápido, simples...muito bem.

    - Mama, não beba mais vinho...

    - Cuide de sua taça e concentre-se no peixe.

    - Não precisa gritar. Ele vai nos ouvir.

    - Não vai. Está meio morto na cama. Bêbado. Vai

    acordar lá pelas três da tarde. Não fique me olhando com

    essa cara de bobo ! Você tem cara de bobo, sabia ?

    - Sabia.

    18

    - Enfie esse peixe na boca, enfie ! Assim ! Desculpe...me

    perdoa, meu amor ! Está vendo o que me obriga a fazer ?

    Enxugue no guardanapo. Ah, é só um pouquinho de

    sangue, oh, elohim ivarech et habait ! Sabe o que quer

    dizer ? Traduza !

    - Deus abençoe meu filho.

    - Isso...Deus abençoe meu filhinho desgraçado !

    - Não faz mal, mama...não faz...

    - É você que me provoca ! Você !

    - Mama, por favor...

    - Deus, como você é feio ! Como conseguiu ser feio

    assim ? Vergonha minha, desgraça minha ! Oy Vey ! Oy Vey !

    Abominável ! Sabe o que é ter um filho anormal e

    abominável ? Pervertido e feio, além de tudo. Continue

    comendo ! Enxugue essa cara ! Em plena mesa ! E se

    houvessem convidados ? Você daria esse espetáculo ?

    Deus ! Deus ! Você é a criatura mais feia que eu já vi !

    *

    19

    20

    UM

    ‘DAS CRÔNICAS CÁUSTICAS,

    URBANAS

    E BURLESCAS

    21

    22

    I

    - Sinônimo de aviltamento. Sete letras. A terceira é ‘ T ’, a quarta é

    R’.

    - Ultraje.

    - Ai, Emanuelle... tu sabe tudo, biu ? É...travesti também é

    cultura.

    - Já fiz muita palavras cruzadas, Rosie. Não essas de celular...em

    revistinha mesmo. Antes de aplicativos e o cacete, era palavra

    cruzada, mímica e revista de fofocas... pra passar o tempo...distrair.

    - Revista de fofocas, hoje em dia, nem em ante sala de dentista, né

    Manu !

    - A mamãe é antiga, Katsumi. Bem antiga !

    - Cadê o veado ?

    - Deve ter ido direto pro trabalho. Pegou bofe tarde, né ? Não tem

    jeito ! Vai trabalhar virada, a criança teimosa da mamãe.

    - Porque quer, né bicha ? A Lôka !

    - Chega, Kat...são cinco e meia da manhã. Hora do veadeiro

    fechar a vendinha. Todo mundo pra cama, fazer nanã e descansar.

    Tenho 12 reais...dá pra fazer uma vacosa e comprar cafezão e três

    conto de pãozinho de queijo. Kat ?

    - Deixa que eu banco hoje, Manu.

    - Não. A gente divide. A gente sempre divide tudo ! Rô ?

    - Tenho oito reais.

    23

    - Tá. A gente vai ter um desjejum de rainhas antes de esticar as pernas. Bora, criançada da mamãe !

    II

    - Meu Deus ! Eric ! Você ainda trabalha aqui ?

    - Não é incrível ? Como vai, Sr. Arthur ?

    - E você já trabalhava nessa baiuca quando meu filho ainda era

    pequeno. Logo serei avô.

    - O tempo passa ! Fico feliz que, apesar dele, o senhor ainda

    escolha nossa... baiuca... para se hospedar.

    III

    - Hoje temos a ‘ Pablo & Navis’. Duas e meia. ‘Nós’ queremos um

    café ?

    - ‘Queremos’. ´ Pablo & Navis´. Litigio ?

    - Pró forma. Leia o processo, Carlo ! Está na sua mesa. Os sócios

    só precisam entender de forma licita o que fica com quem nos

    tramites de ruptura. Você tem lábia ... mas pouca memória. Você os

    convenceu a não brigar. ‘ Pablo & Navis’, criaturinha...acorde !

    - Ah ! Sei. Levam representante ?

    - Não. Divisão consensual de bens. Não derrube café na sua

    gravata bonita. E cheque sua agenda ! Sou seu assistente, não sua

    mãe. Você está bem longe, não é bebê ?

    24

    - René, você é um hibrido de secretário executivo e governanta

    bávara.

    - Com todos os predicados desse pacote, por isso , seja

    comportado.

    - Registrado. E ńós´ queremos outro café, Frau Gretl !

    IV

    - ...ar condicionado, uma bela porcaria ! O chuveiro não esquenta !

    Não muda nada ! A gente tenta, quer dar uma chance, pensa que as

    coisas melhoraram, mas...a mesma droga de sempre ! Só o fato de

    encontra-lo ainda aqui, depois de...quantos anos ? Vinte ?

    - Não saberia dizer. A idade, a rotina...tenho tido lapsos de

    memória.

    - Você está sendo sínico, Eric ?

    V

    - Você já pegou alguém na rua ?

    - Um GP ? Sim, às vezes, mas os de rua são Elza. Elza forte !

    - Elza ?

    - Eles podem te roubar e até fazer coisas piores. O que está se

    passando nessa cabecinha que não julgava promiscua, hem ?

    - Não sou promíscuo.

    25

    - Não. Você não é. É curioso, genuinamente bondoso e inocente.

    Um panaca. Um panaca muito, muito bonito.

    - Muito obrigado !

    - Carlo... não se ofenda. Você é um panaca encantador ! Ainda

    bem que nunca me apaixonei por você ! Isso evita o clichê do

    secretário que sofre escondido por amar seu chefe !

    - Seria ruim se apaixonar ? Por que ?

    - Porque dói.

    - Como vai o Josué ... ?

    VI

    - Escute bem o que vou dizer... quero que resolvam o problema do

    ar condicionado e quero tomar um banho, sem ser escaldado.

    - O senhor precisa regular as torneiras, fria e quente. Se bem me

    lembro, tem certa dificuldade com isso.

    - Está dizendo que não sei regular um chuveiro ?

    - Não. Estou dizendo que pode pedir, como sempre fez, para que

    o auxiliem na hora de seu banho. Isso evitará que seja escaldado.

    - Hotelzinho de merda ! Quero tudo resolvido quando voltar !

    Entendeu ?

    - Hum. Hum. Aproveite sua estada em São Paulo, Sr. Arthur.

    - E fale direito comigo !

    VII

    26

    - Pretérito. Ele se mandou sem dizer ‘ tchau’ e com as roupas novas que dei pra ele de aniversário. Soube que está com um

    garotinho vinte anos mais jovem do que eu. Demorou. É assim que

    funciona.

    - O que ? Idade ? Isso é uma idiotice.

    - Uma idiotice real como arroz e feijão.

    - Sinto muito, René. Vocês pareciam felizes.

    - Estávamos felizes. Não sinta. Ele tem só 24 anos. Quando

    pessoas de idades dispares partem para uma relação, são necessários

    cuidados que nunca levamos a sério. Eu, a partir dos 40, não levo a

    sério nem a mim mesmo. Pra que ?

    - Que cuidados ?

    - Autopreservação. Detesto o termo, com tudo o que está implícito

    nele ! Do alto dos meus 43 anos, relativamente experiente e estável,

    tenho uma vulnerabilidade insidiosa que age como veneno lento.

    Passamos de matronas blasés a refugiados que esmolam pelo pão.

    - De onde você tira esses conceitos ?

    - Do meu diário de pelúcia cor de rosa. Se você o lesse, choraria

    até ficar desidratado. Conta a minha estória melhor do que eu. AI !

    Olha o drama ! Olha o drama !

    - Você o amava ?

    - Eu...? Ah, Deus ! É claro que sim ! Não é uma merda? Mas você

    ainda está com 32 anos e é um escândalo de lindo, portanto...

    27

    - ...portanto, você se apoia em bobagens como idade e aspecto

    físico, usando isso como uma muleta bem frágil. Eu quero amar,

    sofrer, viver esse negócio ... de verdade ! Senão, não é amor !

    - Você é romântico e integro. Vai sofrer como um desgraçado se

    não tomar muito cuidado.

    - Não. Eu serei feliz, Senhor René. Eu serei bem feliz !

    - Não existem muitos como você, Carlo. Morro de inveja do

    felizardo que te conquistar, porque ... mesmo sem admitir, mesmo

    fingindo não acreditar, eu sempre estive ansioso para experimentar...

    - Experimentar ?

    - A sensação de ser amado, da forma incondicional e honesta que

    você ainda vai amar alguém. Isso aí é a única coisa que eu ainda não

    experimentei, que eu nunca tive. Ambiciono por isso, como

    ambiciono ampliar minha coleção de ímãs de geladeira ou dormir

    com o Zac Efron.

    VII

    - Olha só ! Tá, meu bem ? A grande autoridade, tomando

    cafezinho em boteco!

    - Fala, figura ! Tudo cero por aqui, Emanuelle ?

    - Na paz, Sandra. Comigo, é sempre na paz...e... se não estiver na

    paz...a gente arruma.

    - Certo. Certo. E as meninas ?

    28

    - Ótimas. Crianças levadas ! Nada que umas boas chineladas da

    mamãe não resolva. E na delegacia ? Tudo bem ? Muito trabalho ?

    - Tudo em ordem ! Vim acompanhar uma diligencia. Você

    acredita que a mulher espancou o marido, depois queria atirar ele

    pela janela ?

    - Bom...mulher espancando marido é uma mudança, pra variar.

    Apesar da violência é alentador.

    - Nada ! A mulher é alta, obesa, uns braços que parecem de

    estivador. O pobre do cara bate na minha cintura. Estava até

    chorando !

    - Essa, eu queria ver. E os alibans, teus soldadinhos ? Mais

    obedientes ?

    - Ai...vamos levando. Alguns dias são mais fáceis, outros, nem

    tanto. Mas a gente chega lá. Delegada mulher enfrenta isso em

    qualquer lugar.

    - Ah...enfrenta. Mas a bronca dos teus meninos é porque tu gosta

    do mesmo que eles. É concorrência e homem não gosta disso.

    Sentem-se ameaçados no seu território.

    - Pode ser. Mas precisam entender que, de um jeito ou de outro,

    gostando ou não, estou botando ordem na casa.

    - E quem manda no pedaço, agora, é a Dona Sandra Malta !

    Porque ela é de lá !

    - É isso ai.

    - Mas ... pra ocorrência doméstica ... você saindo pra rua ? Tá

    com pouco contingente ?

    29

    - Não, não é isso. Gosto de dar uma passeada. Sair em diligência, olhar o meu quintal, mostrar a cara.

    - É. É bom. Mas nunca vi isso antes. Cê tá inovando, menina. O

    outro delegado ... delegava. Deixava os meninos soltos, faziam o que

    queriam, com a gente e com outros. Não tava na delegacia e não tava

    em lugar nenhum. É...hoje , temos sorte.

    - No ‘ ponto’, tudo certinho, né Manu ? Nenhuma novidade ?

    - Não. Não. Tudo direitinho, Sandra. Qualquer coisa diferente, te

    passo o plantão na hora.

    - Tem meu numero, né ?

    - Hum. Hum. Tenho sim.

    - Não hesita em ligar. A gente se ajuda, figura.

    - Tu é do bem, delega. Agora, as coisas mudam por esses lados.

    - Estou me esforçando pra isso . A gente se vê, Manu.

    - Beijão, Sandra ! Vai com Deus, criança.

    IX

    - Venha até minha sala, imediatamente !

    - Sim senhora. Vou levar um carão ?

    - Não sei. Mon Dieu, você merece levar um carão, Eric ?

    - Ah, sim, Angelina ! Sempre !

    - Então, vamos acabar logo com isso ! Não tenho o dia todo ! O

    grupo de nigerianos, chega daqui a pouco. Allons ! Allons !

    30

    - O que seria do meus dias, nesse lugar, não fossem os nossos

    embates ? Posso fumar na sua sala, não posso ? Estou precisando

    urgentemente de um café e um cigarro. Um cigarro do Paraguai, com

    filtro vermelho.

    - Eh, bien ! Me trate mais com o respeito que mereço como

    gerente ! Pelo menos finja !

    - Fingir é meu sobrenome, querida.

    X

    - Oi, Carlo . Vi você na academia ontem .

    - Hã ? Ah ! Viu ? Desculpe, não olho muito pros lados. Ponho os

    fones de ouvido, faço minha série e me mando. Nem vejo quem está

    por lá.

    - Percebi. Você deveria sair mais. Poderíamos marcar uma balada

    um dia desses. Escolhe um lugar.

    - Uma balada ?

    - É, uma balada. Não vai te matar. Todo mundo sobrevive a isso,

    sabia ? É saudável interagir, sair da sua toca, do seu mundinho,

    conhecer gente, ver quem está do teu lado. Essa vida de escritório pra

    academia, da academia pra casa do pai viúvo, depois pra casa, depois

    pro escritório...

    - Nossa ! Você está mais inteirado da minha rotina do que eu.

    - Hum...as pessoas falam.

    - Demais.

    31

    - Há um plano para duplas na academia ... poderíamos...

    - Olha só, Guilherme...

    - Julio. Julio Cesar. Puxa vida, Carlo ! Trabalho aqui há quase um

    ano e você ainda não sabe meu nome.

    - Desculpe. Eu sou fechado, cara. Gosto assim. Nada de duplas na

    academia ou uma baladas. Gosto eu mesmo de buscar, de descobrir.

    Não gosto que me busquem.

    - Se mudar esse jeitinho impossível de ser...

    - Te aviso.

    XI

    - Soube que teve problemas com o Senhor Arthur.

    - Não foram problemas. Ar condicionado, chuveiro e grosseria

    gratuita da parte dele. Normalmente não ligo, mas estou virado. Não

    durmo há dois dias.

    - Vamos aparecer no site da ‘ Reserve.com’, sob um enfoque nada

    favorável.

    - Muito provavelmente. Você vai me demitir ?

    - Não.

    - Aaaahhh...e lá se vão minhas esperanças pelo buraco do ralo...

    - Ele mereceu. Mas, se contar pra alguém que eu disse isso, digo

    que você é um mentiroso.

    - E todos vão acreditar. Minto que é uma beleza.

    32

    - Você está com olheiras.

    - Não dormi. Já disse, Angie...

    - Carrément ! Muito bem, conte...

    - Um idiota de Goiânia. Ou era de Minas ?

    - Bonito ?

    - Não lembro.

    - Que cést, Eric ? Você ao menos olha pra cara deles ?

    - Não. Geralmente estou sem óculos e não lembro de pôr as lentes

    de contato. O que mais quer saber ?

    - Principalmente, porque eu finjo não ligar para o que você faz a

    noite, apenas para ouvir seus relatos e me deliciar morbidamente

    com eles. Como eu me qualifico ? Pervertida ? E eu achei que

    estivesse mentindo quando me contou o que aprontava por aí. Achei

    que estivesse querendo me chocar.

    - Sobre isso, nunca menti. Você me conhece há 26 anos e sabe

    muito bem o que eu sou.

    - Sou uma irresponsável, há 26 anos !

    - Uma irresponsável pervertida.

    - Sim. Essa é uma das minhas muitas fraquezas. Eu temia que

    algum deles pudesse se hospedar conosco e te reconhecer. Hoje,

    penso que ganhei maturidade e rugas. Cá entre nós...uma situação

    como essa seria altamente instigante. Mon coeur ! Que dia seria esse !

    Eu me fecharia aqui e ficaria espiando tudo pela persiana.

    - Eu pediria demissão, é claro. Mas isso nunca aconteceu. Além

    disso, eles não me reconheceriam .

    33

    - Sim. Sempre esqueço que lá fora ... você usa outro tipo de

    uniforme.

    XII

    - Tu saiu ontem, Kat ?

    - Hum. Hum.

    - Com quem ?

    - Ai. Tem dó, bicha. Tava no Happy Hour. Meu happy hour é as

    seis da manhã...hora que a gente fecha a lojinha. Você mesma fala

    isso.

    - Sei. Quem é ?

    - Ah ! Um gatinho, Manu.! Malhado, tatuado...

    - Quietinha, Rosie. Perguntei pra Katsumi. Quem é Kat ?

    - Ai, Manu. O Washingto D.C.. Ele veio do Rio, tá desempregado

    ainda, porque tá difícil. Conheci ele no baguncinha. Tava tomando

    uma cerveja, me ofereceu uma...curte uma coisinha assim que nem

    eu...rolou.

    - Unzinho, todo tatuado que fica sempre sentado no canto ?

    Jaqueta de couro , calça rasgada e barbicha de bode ?

    - É. Ele me trouxe um chocolate outro dia. Tu viu ele.

    - É...eu vi. Eu vi muitos como esse. Já me fodi com quase todos.

    - Manu, eu acho que esse ai é bonzinho. Só tá sem emprego e

    gosta tanto da Kat ! Dá pra ver como ele trata ela. Um amor de

    menino.

    34

    - Fica quietinha, Rosie ! Tu, graças a Deus, nunca se fodeu ou foi lesada por bofe do mau, bofe filha da puta.

    - Cê nem conhece ele, Manu ! Que uó, bicha !

    - Conheço muitos iguais a ele, já disse.

    - Iguais, como ?

    - Fica de olho e fica espertinha, criança. Mamãe vai procurar

    saber um pouquinho mais desse erê que tu arrumou e... se eu falar

    que não...é não. Tamo conversadinha ?

    - Manu...

    - Tamo conversadinha, amor ?

    - Tamo.

    - Que bom ! Nossa, tô com fome ! Vamos pedir gente ? Hoje não

    tô com disposição pra cozinhar nem macarrão instantâneo.

    XIII

    - E ... uma travesti ?

    - Pelo amor de Deus, bebê ! Que está acontecendo com você ?

    Cansou da vida celibatária ? Com travestis, você pode fazer de um

    tudo, mas corre o risco de ficar sem carteira, celular e moral. Nem

    todas são assim mas, como saber ? Nada de travestis, nem qualquer

    coisa’ que esteja na rua ! De jeito nenhum ! Por que esse papo

    agora ? Nunca o imaginei pegando alguém na rua !

    35

    - Não estou pensando, especificamente, em pegar alguém na rua.

    Não sei no que estou pensando, René. E não sou celibatário ! Só

    estou de saco cheio de relações rápidas ... insipidas.

    - E de bater punheta, é claro.

    - É. Isso também.

    - Não seja absurdo ! Quando pode ter quem quiser !

    - Isso aí que é um absurdo. Ninguém pode ter quem quiser !

    - Olhe o ‘ bonitinho’, ele fura você com os olhos.

    - Que ‘ bonitinho’ ?

    - Julio Cesar. Todos, menos você, seu cretino, sabem que ele te

    persegue. Daqui a pouco, começa a andar por aqui com fotos tuas

    estampadas em camisetas, em toda a sua glória !

    - O estagiário ?! Ele é meio falador. Ele é chato.

    - Falador ?

    - Sabe mais da minha vida do que eu, aquele. E eu percebo que

    ele me persegue, sim ... até quando vou ao banheiro. Papinho de

    balada, duplas em academia...ele é muito confiante e não tem uma

    grama de autocritica. Alguém precisa dizer que ele é um pé no saco !

    - É... ele, só pra constar, não deve ser teu tipo. Pessoas bonitas

    como você gostam de gente mais velha...e feia. Lei tribal. Fórmula

    infalível.

    - Isso aí é uma lei ? Você, como os outros, considera isso uma

    regra ? Uma bula de remédio ?

    - Que tipo o atrai, Carlo ?

    - Tipo ? Como ‘ tipo’ ?

    36

    - Ai, bebê...você pelo menos sabe o que procura ? Jovem, velho, ativo, passivo, versátil, magro, gordo...

    - Rótulos ! Eu não busco um tipo. Busco um ser humano

    tridimensional. Ninguém feito de conceitos, o certo, o errado, o

    plausível para a digestão confortável dos meus iguais. Alguém que

    mesmo fazendo parte de nossa fauna intrínseca, não dê a sensação de

    ter sido feito numa forma. Nada pasteurizado. Diferente, sem se dar

    conta que é diferente. E não sou passivo, nem versátil.

    - Continua! Continua ! Está esquentando ! Passe todos os dados

    pro tio René. Vou buscar meu catalogo.

    - Pequeno, frágil, sem saber ou admitir que é frágil. Feminino,

    sem artifícios, sem ser pueril. Alguém que precise ser cuidado,

    protegido. Você me entende ?

    - Carlo, Carlo...

    - Estou cagando se é bonito ou se é feio. O que é bonito ou feio ?

    Não curto menininhos bonitinhos, muito jovens, embrulhados pra

    presente com uma etiqueta dizendo : ‘ Olha como sou lindo ! É

    impossível você não me querer ! ’.

    - Como o Julio Cesar ?

    - É. Quero alguém mais velho. Com uma história pra contar.

    - Tenha dó ! Não estou dizendo ?

    - Idealizo muito, eu acho. Meu pai diz que seu eu procurasse uma

    pessoa real, já teria encontrado, o que é um contra senso ! O que eu

    busco é uma pessoa bem real, bem crua.

    37

    - Porque não encontro alguém como você, hem ? Ah ! Vai ! Vai !

    Acaba se atrasando ! Levante esse traseirinho sonhador daí e mexa-

    se, Doutor Carlo. Audiências não esperam por menininhos

    românticos e libidinosos...

    XIV

    - Gorducho, mas interessante. Pedi pra ver o pau dele, claro.

    - Mon Dieu! Fecha a porta ! Fecha ! Pra que pedir isso ? Nunca

    entendi o porque !

    - Pra ver se está tudo em ordem . Sem sujeira, sem doença...

    - Avant !

    - Ele veio pra um congresso, não conhecia a cidade. Tudo correu

    bem até eu resolver leva-lo ao ‘ baguncinha’. Já falei do

    ´ baguncinha´, né ?

    -‘ Baguncinha’ ?

    - Não lembro do nome do lugar. Eu e as meninas chamamos de

    baguncinha’. Um lugar meio rasgueira. Tem de tudo ... mas nada

    pesado. Nada que termine em bafo.

    - Sei. Esse, tudo correu bem, até... parece interessante ! Ele era

    um mau negócio no fim das contas ?

    - Não. Era um ursinho muito gentil. Veio com papinho de que

    nunca tinha feito isso e o escambau...

    - Ursinho ?

    - Fofinho, peludinho, tímido e desajeitado.

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