Hockmah
De Solyen Davö
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Hockmah - Solyen Davö
Hoje, depois de muitas lutas, eu sei que ninguém consegue fugir das determinações do destino. Não sei se são fatalistas as minhas conclusões, prefiro dizer que não podemos desenhar nossas vidas como num projeto arquitetônico, e sim viver cada instante procurando tirar proveito do aprendizado que a vida nos proporciona. A sabedoria é a relíquia que todo ser humano traz consigo desde seu nascimento e, que poderá ou não, utilizá-la durante toda a vida. A prática cotidiana de enfrentar os obstáculos é que produz o seu amadurecimento. Foi em busca dos meus sonhos e ideais que me deparei com todos os fatos que compõem essa história, que nada mais foi que a busca do entendimento de tantos fatos imutáveis.
Ontem, quando iniciei as últimas páginas do que chamava de uma vida, percebi que estava começando a escrever uma nova história, uma nova vida.
A chuva tilintava na janela me mostrando o ciclo inacabável da natureza. Detive-me por alguns instantes em seu som antes de continuar digitando as palavras que pipocavam na tela. No início eram somente palavras, mas aos poucos foram tomando corpo e compondo um texto, um fragmento de vida ou de morte!
Fiz minha viagem no tempo e iniciei minha busca por novas criaturas moldadas por minhas mãos.
Solyen Davö
Nove de Tishrê de 5753, ou seja, mais de vinte anos atrás, iniciou-se uma busca rumo ao seu eu desconhecido. Tudo começou por acaso. Lis era diferente. Pensava de forma diferente. Não pertencia ao tempo em que vivia, não pertencia ao mundo que a rodeava. Era tão difícil fingir que aceitava tantas coisas que não faziam parte do seu eu. Lembrava-se de velhos costumes, fragmentos de lembranças ao longo dos seus vinte e tantos anos. Palavras meio sem sentido, palavras jogadas ao vento.
Chegou das compras no mercado, instintivamente, não pisou na soleira da porta e procurou com a mão por algo que não estava pendurado lá, mas que imaginariamente sentiu, fez uma prece qualquer, diferente de tudo que aprendera, depois beijou os umbrais da entrada e adentrou o apartamento que dividia com uma amiga.
Preparou um lanche rápido e foi para o trabalho, mas sua mente guardava a cena ao entrar em casa. Lembrou-se de dona Nathasja. Sua voz terna chegou-lhe aos ouvidos como brisa suave. A tranquilidade de alguém que vivera muito e intensamente tudo o que a vida lhe ofertara. Quando desceu do metrô na estação do Tatuapé, antes de dirigir-se para o ponto do ônibus, foi até um orelhão e discou um número que há muito não discava. Sentiu uma sensação de desconforto até ouvir aquela voz carregada com um sotaque inconfundível:
– Alô!
– Dona Nathasja, sou eu, a Lis!
– Que bom ouvi-la, shalom! Faz tempo que você não se lembra de mim!
– Lembrar, eu me lembro sempre, mas acabo não ligando... Estou trabalhando muito longe, quando chego em casa é muito tarde. Hoje me deu uma vontade incontrolável de falar com a senhora. Desci do metrô e estou telefonando de um telefone público...
– O meu filho está para chegar. Dentro de mais uns três ou quatro dias... Ele me ligou a mais ou menos umas duas horas atrás... E, adivinha por quem ele perguntou?
– Por mim?
– Ele nunca te esqueceu. Acho que vai sempre cultivar a esperança de um dia ficarem juntos. Por que você não vem para cá? Assim ele mata as saudades... E eu também!
– Ele vai ficar quanto tempo aqui no Brasil?
– Uma semana, talvez um pouco mais. Ele não para. Não vejo a hora dele tirar férias, mas isso só em janeiro... Tanto que ele passou todos os feriados nossos longe de casa... Esse trabalho dele!
– Desta vez eu ainda não o verei, mas em janeiro, certamente nos veremos.
– Além do seu trabalho, você tem escrito alguma coisa, Lis?
– Ultimamente ando meio confusa. Parece que minha fonte inspiradora anda secando.
– Não! Isso não é verdade, está apenas adormecida. Sinto na sua voz um tom descontente, estou enganada?
– Não, não está!
– A vida continua! Ela nunca para, mesmo quando nós queremos que pare! Se você não buscar a beleza da vida, certamente, encontrará as dores que ela oferece. Já está na hora de você refazer sua vida e esquecer todo o passado. Eu sei o quanto é difícil, mas tem que querer! Aproveite o feriado de amanhã e reflita sobre isso. Eu sei que você ainda não se encontrou, talvez ainda leve algum tempo para que isso aconteça, mas comece a refletir sobre tudo o que passou, o que está vivendo hoje e, principalmente, o que deseja viver amanhã.
– Eu sei! Essa minha mistura de costumes, esses desencontros que nem sempre sei explicar... Mas, foi bom falar com a senhora... A sua voz me acalma...
Seguiu o seu caminho rumo ao trabalho e, por algumas horas esqueceu tantas dúvidas que inquietavam o seu ser.
O fim do ano se aproximava e ela estava cheia de planos. Queria mudar-se, conhecer outras pessoas e iniciar uma nova vida. Tentaria esconder os seus conflitos mais íntimos e viver como todos que a rodeavam.
Na repartição onde trabalhava as pessoas gostavam dela, mas achavam seus costumes estranhos. Em geral, as pessoas criticavam, o que eles chamavam, falta de fé, os seus hábitos alimentares, e a forma com que se vestia... Enfim, ela era uma estranha no ninho. Por isso, queria ir para um lugar onde as pessoas não a conheciam e tentar viver da forma tal qual elas viviam.
Todos os planos são perfeitos quando elaborados, mas nem sempre seus resultados são eficazes na prática. Foi isso o que aconteceu.
No seu novo trabalho ela seria igual a todos, sem nenhuma das suas manias, sem véus, sem restrições alimentares, sem guardar dias especiais, sem beijos e orações nas paredes... Sem a sua essência. Uma personagem criada com muito carinho para executar seus trabalhos e agradar a quase todos que lhe cercavam.
Logo no início do ano resolveu passar alguns dias no Rio. Ao chegar ao aeroporto sua ideia inicial era a de tomar um táxi e ir para um hotel simples, mas no meio do caminho mudou de ideia e pediu ao motorista que a levasse para Santa Tereza. Por mais que negasse ela queria rever dona Nathasja e... Yoasckin!
A casa com muro baixo, o jardim extenso antes da varanda e o arco na entrada feito com trepadeiras floridas... Nada tinha mudado desde sua última visita. Pediu para o táxi esperar enquanto verificava se tinha alguém, mas assim que desceu, deparou-se com Kin que chegava da padaria trazendo pães quentinhos. Abriu-lhe um sorriso e apressou-se em pegar as malas e pagar o táxi.
– Para que deixar o táxi esperando. São tantos anos de saudade que não sairá daqui tão cedo!
– Só queria saber se tinha alguém em casa...
– Você sabe que sempre tem alguém... Mamãe não sai de casa... Depois que meu pai morreu, ela não vai a lugar algum, nem mesmo na casa da Martina.
Entraram e ele lhe indicou a cozinha, enquanto abraçava dona Nathasja, ele acomodou as coisas no quarto de hóspedes. Levou algum tempo para retornar, mas quando