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Revelação e experiência do Espírito
Revelação e experiência do Espírito
Revelação e experiência do Espírito
E-book348 páginas5 horas

Revelação e experiência do Espírito

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Sobre este e-book

Este primeiro volume trata da revelação e da experiência do Espírito. Começa por um estudo das Escrituras canônicas, por reconhecer nelas, de forma inspirada e normativa, o testemunho da revelação e o critério para avaliar nossa experiência de Deus.
Mas justamente aí se encontra um delicado problema. As escrituras abarcam dezenas de escritos, oriundos de épocas e autorias diferentes, com distintas teologias. O evidente desenvolvimento na revelação do Espírito não apaga certa diversidade na apresentação que dela se faz. Por outro lado, a Igreja sempre afirmou a unidade de fundo da revelação, fruto da unidade do próprio Deus.
Ciente disso, Congar apresenta o desenvolvimento das experiências e manifestações do Espírito, primeiro nas Escrituras, depois na história da vida da Igreja.

Mas reconhece que, embora seu propósito seja o ensino, esse conhecimento só tem sentido se gerar comunhão e amor. Só será fecunda a pneumatologia que souber aliar o estudo teológico a uma vida de louvor.
IdiomaPortuguês
EditoraPaulinas
Data de lançamento27 de set. de 2022
ISBN9786558080374
Revelação e experiência do Espírito

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    Pré-visualização do livro

    Revelação e experiência do Espírito - Yves Congar

    Introdução geral

    Há anos desejávamos escrever esta obra dedicada ao Espírito Santo. O movimento atual da Renovação chamada muitas vezes de carismática aparecerá aqui, mas não na fonte de um desejo que a precedeu. O movimento apenas dá à nossa obra uma atualidade, até uma urgência da qual somos cúmplices de uma maneira simpática.

    De onde falamos? A partir do quê? Em que condições? Isso se dará segundo as regras clássicas da fé à procura de entender o que ela defende e o que ela vive. O que ela defende o deve a um dom recebido das Escrituras inspiradas ou canônicas, através das quais Deus nos fala e nos comunica o que precisamos conhecer para responder ao desígnio de amor que ele projeta para nós. O cristão, porém, é um homem precedido. Gerações de fiéis refletiram antes de nós e viveram do Espírito Santo. É com eles, e não sozinhos, que vamos procurar o entendimento da fé. E também com as testemunhas atuais da experiência cristã, pois o Espírito sopra tanto hoje como ontem.

    Essa interrogação da experiência é tanto mais necessária quando a Revelação e o conhecimento do Espírito são marcados por certa falta de mediações de ordem conceitual. Para falar do Pai e do Filho, dispomos de noções bem mais definidas e acessíveis de paternidade e de geração ou de filiação. Esses termos significam especificamente a primeira e a segunda Pessoas, e são termos relativos, que caracterizam essas Pessoas em suas relações mútuas. Espírito, porém, não diz nada disso. Só nos é falado da terceira Pessoa em termos comuns e absolutos: Espírito convém também ao Pai e ao Filho; igualmente o termo Santo: não são termos que significam uma pessoa. Processão se aplica igualmente ao Verbo-Filho. Não há revelação objetiva da Pessoa do Espírito Santo como da Pessoa do Filho-Verbo em Jesus e, por ele, da Pessoa do Pai. Sobre esse assunto, falou-se de uma espécie de Kénosis do Espírito Santo; ele se esvaziaria de certo modo de sua própria personalidade para ser inteiramente relativo, de um lado, para Deus e para Cristo; de outro lado, para os homens chamados a realizar a imagem de Deus e de seu Filho. Para se revelar, não utilizou – como Iahweh no Antigo Testamento e Jesus no Novo – o pronome pessoal ‘Eu’.¹ O Espírito Santo nos é revelado e conhecido, não em si mesmo, ao menos não diretamente, mas porque ele age em nós.² Além disso, enquanto as atividades de entendimento dele são não apenas perceptíveis, mas transparentes e, portanto, definíveis, as da afetividade e do amor não foram analisadas do mesmo modo.³ Vamos encontrar essas dificuldades quando tratarmos de uma teologia da terceira Pessoa.

    Pretendemos desenvolver nosso estudo em três partes e cada uma delas será assunto de um volume. Quanto aos detalhes de seus conteúdos, trata-se mais de um projeto, ou mesmo de uma intenção, do que de um plano acabado. Eis a divisão da matéria:

    Volume 1

    REVELAÇÃO E EXPERIÊNCIA DO ESPÍRITO

    Primeira Parte

    AS ESCRITURAS CANÔNICAS

    I. Antigo Testamento

    II. Novo Testamento

    Segunda Parte

    NA HISTÓRIA DO CRISTIANISMO

    I. Experiência do Espírito na Igreja antiga

    II. Rumo a uma teologia e a um dogma sobre a terceira Pessoa

    III. Destino do tema do Espírito Santo, amor mútuo do Pai e do Filho

    IV São Simeão, o Novo Teólogo. Uma experencia da Espírito

    V. O Espírito Santo na oração do Ocidente durante a Idade Média

    VI. O Espírito Santo segundo os teólogos

    VII. Joaquim de Fiore. Destino do Joaquimismo

    VIII. Pneumatologia na história do protestantismo

    IX. O Espírito Santo: seu lugar no catolicismo da Contrarreforma e da restauração pós-revolucionária

    X. A pneumatologia do Concílio Vaticano II

    Explicação de alguns termos

    Volume I

    ELE É O SENHOR E DÁ A VIDA

    Primeira Parte

    Introdução

    O ESPÍRITO ANIMA A IGREJA

    I. A Igreja é feita pelo Espírito. Ele é o seu co-instituinte

    II. O Espírito faz com que a igreja seja una. Ele é princípio de comunhão

    III. O Espírito Santo é princípio de catolicidade

    IV. O Espírito mantém a igreja apostólica

    V. Espírito, princípio de santidade da igreja

    Segunda Parte

    O SOPRO DE DEUS EM NOSSAS VIDAS PESSOAIS

    I. O Espírito e o homem no plano de Deus

    II. O Dom do Espírito nos tempos messiânicos

    III. Deus enviou aos nossos corações o Espírito do seu Filho (Gl 4,6)

    IV. A vida no Espírito e segundo o Espírito

    V. O Espírito Santo e nossa oração

    VI. Espírito e luta contra a carne. Espírito e liberdade

    VII. Os dons e os frutos do Espírito

    Terceira Parte

    A RENOVAÇÃO NO ESPÍRITO. PROMESSAS E INTERROGAÇÕES

    A) O positivo da renovação carismática. Em que ela contribui para a igreja

    B) Nossas questões sobre a Renovação Carismática

    I. Que título usar? carismática?

    II. Carismas espetaculares: falar e orar em línguas, profecia, curas

    III. O batismo no Espírito

    IV. Renovação e ecumenismo

    Conclusão

    NA UNIDADE DO ESPÍRITO SANTO, TODA A HONRA E TODA A GLÓRIA

    A) Em Jesus, Deus se deu um coração de homem para que seja um coração perfeitamente filial

    B) Em Jesus, nós somos destinados a ser Filhos de Deus; ele nos comunica a vida filial por seu Espírito

    C) O Espírito de Deus enche o universo. Ele recolhe aí tudo o que é para a Glória do Pai

    Nota sobre tu és o meu pai na eternidade da vida intradivina

    Volume III

    O RIO DA VIDA CORRE NO ORIENTE E NO OCIDENTE

    INTRODUÇÃO. GREGOS E LATINOS NA TEOLOGIA TRINITÁRIA

    Primeira Parte

    O ESPÍRITO SANTO NA TRI-UNIDADE DIVINA

    I. Conhecimento do mistério trinitário

    II. Etapas e formas de uma teologia da terceira pessoa

    III. Reflexões teológicas

    IV. Elementos em vista de um acordo

    Segunda Parte

    O ESPÍRITO SANTO E OS SACRAMENTOS

    I. O Selo do Dom do Espírito. Reflexões sobre o sacramento da confirmação

    II. A Epiclese Eucarística

    III. O Espírito Santo em nossa comunhão com o Corpo e o Sangue de Cristo

    IV. A vida da igreja é toda ela epiclética

    Nos começaremos da maneira mais clássica: por um estudo das Escrituras. De fato, quaisquer que sejam a extensão e a variedade da ação do Espírito, isto é, de suas manifestações, o sentido dessa ação e dessas manifestações é entregue a nós de forma inspirada e, portanto, normativa para nós, nas Escrituras canônicas. Não vamos entrar aqui numa discussão das relações entre a história da salvação, co-extensiva à da humanidade, e a história da Revelação, entre Revelação transcendental e Revelação categorial.⁴ Todo teólogo católico afirma que as Escrituras canônicas são o testemunho da revelação e que elas tem valor de critério para avaliar a experiência de Deus que os homens podem fazer.

    Com isso, nem tudo está dito. O testemunho das Escrituras abarca 46 escritos para o Antigo Testamento, 27 para o Novo, redigidos ao longo de mais de um milênio por autores diferentes ou grupos de autores, muitos dos quais nos são desconhecidos. Não podemos, honestamente, tratá-los de forma global, indistintamente. Sem pretender chegar a um estudo completo, que suporia uma série de monografias eruditas, seguiremos a ordem cronológica de nossos testemunhos escritos. Isso nos levará a reconhecer não só um desenvolvimento, até mesmo um progresso, na revelação do Espírito, mas certa diversidade na apresentação que se faz dela pelos diferentes autores. Há um problema que foi posto pelos progressos da exegese. Hoje ela usa métodos refinados, mas que a conduzem muitas vezes a fazer estourar, de certo modo, os conjuntos clássicos dos textos-provas. Por exemplo, mostra-se que são Lucas apresenta a ação própria do Espírito diferentemente de São Paulo. Todavia, muitas vezes acontece de aquilo que um exegeta acreditou estabelecer ser contradito por outro. Uma monografia afasta a outra e desenvolve uma originalidade nova. É claro que a Igreja não pode esperar, para viver sua vida e confessar sua fé, que os exegetas entrem de acordo ou que se faça sobrepor rigorosamente Lucas e Paulo, Marcos e João. Ela nunca cedeu à tentação de fundir os quatro evangelhos num só. Ela viu os quatro evangelistas como os animais de Ezequiel que caminham por conta própria. Ela falou de evangelho tetramorfo e os contou, tais como eram, num cânon cuja unidade corresponde à unidade do próprio Deus.

    É à imagem do próprio Deus que a Igreja honra a diversidade na unidade. Ela defende e vive essa unidade na sua Tradição, isto é, nessa transmissão viva de tudo o que é e tudo em que crê.⁵ A Tradição corre, porém, o risco de assim apagar os matizes mais acentuados dos testemunhos dos quais ela vive, matizes que são uma riqueza. A Tradição os deixa se buscar e se afirmar dentro dela mesma, um pouco como, nas famílias, em que cada filho tem seu caráter e seus gostos. Ela, porém, não deixa de ser a família, o lar, a casa que habitamos. A unidade da Igreja é plenamente católica.

    É a partir dessas observações que vamos apresentar um desenvolvimento, certamente elementar e incompleto, das experiencias e manifestações do Espírito, antes no nível da Revelação atestada nas Escrituras, depois no nível da vida da igreja através de uma história bimilenar.

    Não temos ilusões. Nosso trabalho parecerá demasiado árduo para muitos de nossos leitores, demasiado elementar para os especialistas. A matéria de cada de suas mini-seções poderia ser assunto para uma abundante e erudita monografia. Com frequência, aparecem belas monografias. Nós lemos, usamos e citamos uma porção delas, mas preservando apenas o essencial para nosso propósito.

    Esse propósito é, sem dúvida, de conhecimento e de ensinamento. Sabemos muito bem que não devemos parar aí. No cristianismo, o conhecimento é para a comunhão e o amor. Acreditamos intensamente na união necessária de um estudo teológico e de uma vida de louvor: doxologia, prática da liturgia nas quais, ao celebrá-las, se entra em comunhão com os mistérios. Talvez devêssemos citar os textos, enquanto muitas vezes nos contentamos em nos referir a eles. É absolutamente necessário consultá-los, lê-los, saboreá-los. As Escrituras são o vestíbulo do reino de Deus. É exatamente o Espírito Santo que aí nos introduz. Que ele seja nosso Assistente, para nós, que falamos dele, e para os leitores de nossos pobres capítulos.

    Cada um tem os seus dons, os seus meios, a sua vocação. Os nossos são os de um cristão que ora e de um teólogo que lê muitos livros e toma muitas notas. Que nos seja permitido cantar nosso cântico! O Espírito é sopro. O vento canta nas árvores. Nós, humildemente, queremos ser uma lira cujas cordas o sopro de Deus fará vibrar e cantar. Vamos esticar e afinar essas cordas: será esse o trabalho austero de nossa pesquisa. E que o Espírito faça com que essas cordas soem um cântico harmonioso de oração e de vida!

    Volume i

    revelação e experiência do espírito

    O espírito santo na economia

    Nota sobre experiência

    A este volume demos o título de Revelação e experiência do Espírito. São, portanto, caminhos oferecidos ao nosso conhecimento objetivo do Espírito, não daquilo que vivemos e experimentamos pessoalmente.

    A Revelação consiste naquilo que o próprio Deus nos comunicou através da história do seu Povo interpretada por pessoas inspiradas, que foram os profetas e os sábios de Israel, e depois para o fato decisivo de Jesus Cristo, os evangelistas, os apóstolos e seus porta-vozes. Trata-se, portanto e antes de tudo, de interrogar as Escrituras canônicas. Entretanto, se Deus continua agindo na história e na vida além do período que podemos chamar de constitutivo – e não é isso que o Espírito faz? –, não temos algo a aprender daquilo que veio depois desse período constitutivo, que saiu radicalmente dele? A ideia de Revelação encerrada com a morte do último apóstolo não deve ser entendida de maneira simplista. Deus também nos deu a conhecer algo depois. A experiência do Espírito continuou. Ela é hoje tão atual e intensa como nunca, permanecendo normativa e referência ao que nos ensina o período constitutivo. É nisso que consiste o jogo entre Escritura e Tradição viva. É por isso que vamos traçar a história, não certamente da ação do Espírito – história impossível de ser feita! –, mas de alguns momentos significativos do conhecimento que se teve e que dele foi formulado. Não será propriamente uma história do dogma; será mais, no fio da história, informações sobre a ideia que foi expressa da ação do Espírito Santo, para além do dogma referente à terceira Pessoa.

    Experiência: sob esse termo entendemos a percepção da realidade de Deus vindo até nos, ativo em nós e por nós, atraindo-nos a si numa comunhão, numa amizade, isto é, num ser um para o outro. Tudo isso, é claro, aquém da visão, sem abolir a distância na ordem do conhecimento do próprio Deus, mas superando-a no plano de uma presença de Deus em nós como fim amado de nossa vida: presença que se torna sensível através dos sinais e nos efeitos da paz, alegria, certeza, consolação, iluminação e tudo aquilo que acompanha o amor. A experiência descrita pelos grandes místicos é um grau singular, até excepcional, dessa percepção de uma presença de Deus dada, pela qual se alegra, como objeto vivo de conhecimento e de amor. Aquém do excepcional, há o comum. Na oração, na prática dos sacramentos da fé, na vida da Igreja, do amor de Deus e do próximo, recebemos a experiência de uma presença e de uma ação de Deus nos chamados e nos sinais que nos são mostrados.

    É claro, nós tomamos consciência dessa experiência e a explicitamos somente nas expressões ou numa interpretação conceitual que são nossas. O próprio Espírito se une ao nosso espírito para testemunhar que somos filhos de Deus (Rm 8,16). Nós nos agarramos em relação com Deus. É exatamente essa a experiência religiosa.⁶* Não podemos duvidar. A experiência carrega a sua própria certeza. Esta é também corroborada pela coerência, pela homogeneidade de nossa experiência e de suas expressões como testemunho de outros fiéis e dessa nuvem de testemunhas de que nos fala a carta aos hebreus (Hb 12,1). Todavia, praticamente assegurados, não podemos afirmar com certeza infalível – salvo revelação particular – que estamos em estado de graça. Aquém de uma visão imediata de Deus sem conceito criado, não existe percepção de Deus e de sua ação que não passe por nossos próprios recursos mentais e não esteja misturada a eles.

    Os indícios de que isso não vem de nosso fundo, mas de Deus, são conhecidos: o contexto de toda a vida, o serviço efetivo da caridade, chamados ou exigências contrárias ao carnal de nós mesmos. O tema evangélico e paulino da luta entre a carne e o Espírito corresponde a uma realidade que faz parte da experiência cristã.

    Essa experiência nós a seguiremos nas expressões de sua realidade vivida, a das narrativas espirituais, das vidas dos santos. Nós nos dedicaremos à sua interpretação teológica, e não através de um estudo ou de uma exposição da vida espiritual, mas através de uma teologia do Espírito Santo e de sua função na Igreja. Nós nos preocuparemos com aspectos teóricos ou momentos objetivos do conhecimento do Espírito.

    Primeira Parte

    As escrituras canônicas

    I.

    Antigo Testamento

    O termo

    O hebraico ruah, quase sempre traduzido para o grego como pneuma, significa sopro, respiração, ar, vento, alma. De modo especial, quando se trata do Antigo Testamento, mas às vezes também do Novo Testamento, a tradução pelo termo sopro dá aos fatos relatados e aos textos bíblicos um realismo, um destaque que nosso termo espírito corre o risco de não sugerir com clareza. É a tradução que adotam D. Lys e M.-A. Chevalier (cf. nota 1) e, em livros sem pretensões científicas, porém substanciais, os padres Jean Isaac, A.-M. Henry, Th. Maertens, G.-A. Maloney etc.

    As 378 utilizações de ruah no Antigo Testamento se distribuem em três grupos de importância quantitativa sensivelmente igual. É o vento, o sopro do ar; é a torça viva no homem, princípio de vida (respiração), sede do conhecimento e dos sentimentos; é a força de vida de Deus, pela qual ele age e faz agir, tanto no plano físico como no plano espiritual.

    Ruah-sopro não implica oposição ao corpo ou ao corpóreo. Mesmo no grego profano e em seu uso filosófico, pneuma expressa a substância viva e geradora difundida nos animais, nas plantas e em todas as coisas. É uma corporeidade sutil mais do que uma substância não corpórea. Na Bíblia, a ruah-sopro não é desencarnada, ela é antes a animação de um corpo. Ela se opõe à carne, mas carne não é idêntica a corpo, é a realidade puramente terrestre do homem, caracterizada pela fraqueza e pelo perecível: O egípcio é um homem, e não um deus, seus cavalos são carne e não espírito, diz Isaías (31,3), a fim de fazer com que os judeus deixem de procurar um apoio no Egito. Trata-se de saber de onde vêm a verdadeira força e a vida. Em Gn 6,3, a sanção do dilúvio é preparada por esta constatação de Deus: Meu sopro não dirigirá sempre o homem, em razão dos seus erros; ele não passa de carne. Os homens viviam unicamente de seu próprio princípio terrestre!

    Se o mundo de cultura grega pensa em categorias de substância, o judeu pensa em força, energia, princípio de ação. O espírito-sopro é aquele que age e faz agir e, quando se trata do Sopro de Deus, anima, faz agir para realizar o Desígnio de Deus. E sempre uma energia de vida. É isso que o cardeal Daniélou expressava (de maneira um tanto carregada no tocante à oposição entre o grego e o hebraico, mas interessante e pedagogicamente bem-sucedida):

    Quando falamos de espírito, quando dizemos Deus é espírito, o que queremos dizer? Falamos grego ou hebraico? Se falamos grego, dizemos que Deus é imaterial etc. Se falamos hebraico, dizemos que Deus é um furacão, uma tempestade, um poder irresistível. Daí todas as ambiguidades quando se fala de espiritualidade. A espiritualidade consiste em se tomar imaterial ou em ser animado pelo Espírito Santo?

    Evidentemente o sentido puramente léxico da palavra não é suficiente para esclarecer o significado real. Como James Barr mostrou em sua crítica do Wörterbuch de Kittel-Friedrich, é a utilização num determinado contexto, relacionado a um assunto e a uma intenção dadas, que determina o valor do termo. Ruah-pneuma pode ser simplesmente o vento (assim em Jo 3,8; At 2,1-4.6), ou o sopro de Deus que comunica a vida (Ex 15,8-10; SI 33,6), por consequência, a respiração do homem, princípio e sinal de vida (Gn 7,22; Sl 104,29-30; frequente em Jó). Nós dizemos tomar fôlego, expirar. É também o sopro, a animação que faz realizar uma obra, sobretudo se é, de certo modo, obra de Deus: é o caso de Besalel quanto à mobília do santuário (Ex 31,3s). É evidentemente ainda mais verdadeiro se se trata de conduzir o povo de Deus, de encabeçar suas guerras, de profetizar. Veremos isso detalhadamente.

    O sopro-espírito (o Espírito) recebe várias qualificações conforme os efeitos dos quais ele é princípio. É assim que a Bíblia fala de espírito de entendimento (Ex 28,3), de sabedoria (Dt 31,3; 34,9; 35,31), mas também de ciúme (Nm 5,14): são da fonte P todos esses textos.¹⁰ Fala até de um espírito mau vindo do Senhor (1Sm 16,14; 18,10 = fonte D; comparar com Jz 9,23).¹¹ Contudo, o qualificativo que mais nos interessa é o de espírito ou sopro de Deus, que expressa o sujeito pelo poder do qual são produzidos vários efeitos no mundo, no homem, naqueles que recebem dons de líder, de profeta, de homem religioso etc.¹² Às vezes o espírito do Senhor (de Deus) designa simplesmente o próprio Deus; por exemplo, em Is 40,13; 63,10: mas acabrunharam o seu Espírito Santo.

    Fomos buscar aí, como no Sl 51,13, nosso Miserere, essa expressão, espírito santo, para nós tão importante. Ele é santo porque é de Deus, porque sua realidade pertence à esfera da existência de Deus. Não se deve buscar outra razão de sua santidade. Deus é santo porque ele é Deus. Todavia, tratando-se desse espírito (Espírito), o Antigo Testamento expressa bem pouco o valor de santificação, ao menos no sentido de um princípio interior de vida perfeita: esta seria mais o fruto da observância da Torá. O Espírito-Sopro é antes de tudo aquele que faz agir de modo a realizar o Desígnio de Deus na história.

    A ação do sopro de lahweh

    Num período e segundo testemunhas mais antigas, atribui-se ao sopro-espírito (o Espírito) efeitos exteriores para os quais outras religiões oferecem paralelos e semelhanças. O xamanismo apresenta isso, mas o que ele atribui às forças da natureza é aqui referido a Deus (lahweh). O tempo dos profetas escritores traz novos dados, atingindo mais profundamente o interior do homem.

    O Espírito realiza efeitos e suscita uma experiência de vidência e de sabedoria. As narrativas javista e eloísta a respeito de Balaão mostram-no dirigido por Iahweh e pronunciando, contra a vontade, um oráculo de Deus.

    Levantando os olhos, Balaão viu Israel acampado por tribos. O espírito de Deus veio sobre ele, e ele proferiu seu encantamento neste trmos: Oráculo de Balaão, filho de Beor, oráculo do homem [...] que vê aquilo que o Poderoso lhe mostra, quando cai em êxtase e seus olhos se abrem [...] (Nm 24,2-4 = J).

    Samuel é o primeiro dos profetas, e um dos maiores, mas é a seu respeito que 1Sm 9,9, redigido na época do rei Josias, diz: O ‘profeta’ de hoje outrora era chamado ‘vidente’. Samuel era de fato um profeta, mas ele tem consigo a ordem inspirada sobre o que deve fazer: ele diz a Saul, anunciando-lhe:

    Tu te defrontarás com um bando de profetas [...]. Eles estarão em transe profético. Então espírito [o sopro] do Senhor virá sobre ti, entrarás em transe com eles e serás transformado em outro homem (1Sm 10,5-6).

    E é o que acontece (vv. 10ss). Um fato parecido é mostrado mais adiante (1Sm 19,20-24) em relação a emissários enviados por Saul Junto a Samuel, que estava em pé, presidindo uma comunidade de profetas em transe profético: O Espírito [o sopro] de Deus se apoderou dos emissários de Saul e eles também entraram em transe. Sabendo disso, o próprio Saul foi atrás de seus enviados. Nota-se aqui, em condições bem elementares, aquilo que permanece verdadeiro até nas atividades mais elevadas da vida no Espírito, isto é, da parte do homem, de seu psiquismo nos casos de liderança e de inspiração atribuídas ao Sopro do próprio Deus. Não há influência de Deus sobre o homem que não coloque em cena o próprio homem até mesmo em suas disposições psicossomáticas.

    Contudo, também (e até mais) em camadas antigas de testemunhos, o espírito (o Espírito) vindo de Deus comunica um discernimento e uma sabedoria dentro da normalidade. Entretanto, essas experiências têm isto de comum com as precedentes: elas asseguram a realização do desígnio de Deus para seu povo.¹³ O Faraó declara a propósito de José: Acharemos nós um homem no qual esteja como em José, o Espírito de Deus? (Gn 41,38 = E). Deus reparte com os setenta anciãos um pouco do espírito que estava em Moisés (Nm 11,16-25). Eles se põem a profetizar e Josué se escandaliza que tal privilégio tenha assim sido concedido de forma pouco seletiva. Moisés lhe responde: Oxalá todo o povo do Senhor se tornasse um povo de profetas, sobre qual o Senhor pusesse seu espírito [seu sopro]! (v. 29). Quando, porém, Moisés, tendo chegado a avistar a terra prometida, for morrer, Deus lhe inspirará o ato garantindo sua sucessão: Toma a Josué, filho de Nun, homem em quem permanece o sopro [TEB: é um homem inspirado] (Nm 27,18).

    Os heróis, os juízes

    Estes são uma espécie de líderes ou de guerreiros carismáticos sucessivamente suscitados por Deus nas circunstâncias críticas em que Israel se encontrava, por sua falta, durante os cento e cinquenta anos que separam a conquista de Josué e a instituição da realeza:

    Otoniel: O espírito [o sopro] do Senhor esteve sobre ele [...] (Jz 3,10).

    Gedeão: O espírito [o sopro] do Senhor revestiu Gedeão [...] (Jz 6,34).

    Jefté: O espírito [o sopro] do Senhor estava sobre Jefté (Jz 11,29).

    Sansão: O espírito-sopro do Senhor começou a impelir Sansão (Jz 13,25); O espírito do Senhor penetrou nele, e Sansão, sem ter nada em mãos, dilacerou o leão em duas partes (Jz 14,6); Então o espírito-sopro do Senhor penetrou nele. Sansão desceu a Ascalon, matou trinta de seus habitantes [...] (Jz 14,19).

    Saul é, ao mesmo tempo, o último dos Juízes e o primeiro dos reis. A partir da instituição da realeza, o tipo de ação repentina e insólita do sopro-espírito que havíamos encontrado até aqui desaparece sob essa forma; depois de Saul, que ainda está voltado para o happening (1Sm 10,6-13), quando Samuel unge o último dos filhos de Jessé, "o espírito do Senhor desceu sobre Davi a partir desse dia (1Sm 16,13). É com Davi que algo de definitivo começou, cuja continuidade seguimos através da profecia de Natã (2Sm 7), da profecia de Isaías: Um ramo sairá da cepa de Jessé, um rebento brotará de suas raízes. Sobre ele repousará Espírito do Senhor [...] (Is 11,1-2), até Jesus, filho de Davi", como o atestam a genealogia

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