Terra firme e outras histórias
De Noemi Jaffe
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Sobre este e-book
Como peças desencaixadas, os personagens deslocam-se em busca de sentidos, recomeços, recompensas. E terra firme.
Cortázar disse que se o romance vence por pontos, o conto deve vencer por nocaute. As histórias desta coletânea seduzem o leitor antes de imobilizá-lo, antes de abandoná-lo em estado de suspensão. A intensidade dos personagens é constituída por nenhum maniqueísmo e muitos matizes.
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Terra firme e outras histórias - Noemi Jaffe
PREFÁCIO
Os contos desta coletânea, Terra Firme e outras histórias, foram todos produzidos ao longo das oficinas de escrita de ficção que coordeno. Nessa oficinas, não existe o objetivo de conduzir ou de padronizar as formas da escrita literária. Ao contrário, a ideia é aguçar a escuta e descobrir, aos poucos, os traços que constituem, em cada escritor, a sua linguagem e o seu estilo. A escrita literária é um processo sempre incompleto, que se transforma gradualmente e cujas mudanças são tanto mais percebidas quanto mais consciência se tem delas. O escritor é um ser em formação constante, que gosta de se perder e de se arriscar para depois se encontrar, somente para se perder de novo. Um de seus recursos mais importantes é o estranhamento, uma forma de sempre se surpreender com o mundo, desde as coisas mais banais até as mais inusitadas; o escritor não pode se permitir a banalidade e nem ao hábito, sob pena de, com isso, perder a busca da originalidade e do olhar inquiridor, sempre a perguntar: trouxeste a chave?
.
Os encontros que realizamos semanalmente são momentos de troca, em que lemos e discutimos textos de outros autores e pesquisamos, em sua linguagem, marcas autorais, formas inumeráveis de explorar a realidade e a linguagem. A escrita de qualquer escritor é a combinação das influências recebidas, desde as mais sofisticadas às mais simples, desde as leituras até os sotaques familiares. Em nossas conversas, valorizamos e experimentamos as marcas de outros autores, transformando-as, lentamente, em nossas próprias marcas, assimiladas e recombinadas.
A demora, o tempo de cura
de cada escritor é um dos aspectos mais importantes das oficinas, para que cada um se dê conta de como a lentidão é amiga da literatura: tempo de pesquisar, tempo de refletir, tempo de ler, tempo de escrever, tempo de reescrever, tempo de compartilhar. Como um pão, a escrita precisa fermentar devagar.
O leitor vai perceber, nesses 38 contos tão diferentes um do outro, como algo em comum resiste: o trabalho individual, o apuro na linguagem e no estilo, a tentativa permanente de fazerem coincidir significante e significado, gerando contos que, se variam tematicamente, impressionam todos pela qualidade e talento. Acredito na aquisição do talento e, para mim, isso é algo que nunca termina.
Cada um dos contos dessa coletânea é resultado do trabalho pessoal e coletivo de escritores diversos: alguns já publicados, alguns com vários livros, outros em vias de publicação e outros, ainda, sem intenção de publicar. Não importa. Todos escrevem porque gostam, porque acreditam na verdade da ficção e porque querem conhecer a si e ao mundo por meio da literatura, essa face da linguagem que permite o avesso, a dança, o jogo e o estranhamento, todos fundamentais para vivermos com mais tolerância e respeito ao outro.
Boa leitura.
noemi jaffe
MANDAMENTOS
alcino bastos
Mano,
Tenho tanta coisa a dizer que nem sei. No colégio pensei entender que o nosso mundo torna o conflito um valor, desde a competição corporativa, esportiva, até a luta de classes, e que o empreendedor de um lado e o ativista de outro é que são nossos heróis. Sempre quis ser aguerrido e, se não pude ser nem empreendedor nem atleta, pelo menos tentei ser ativista. E, no entanto, nunca cheguei a ser herói pois apesar de meus esforços, sempre me rotularam de inconstante e de uma debilidade suspeita.
Depois explico melhor. Veja o que achei:
"Você quer apostar? Spassky na cabeça, nem preciso pensar. Os seus vinte mais vinte e dobro. Jogo tem que ter regra. É como o ordenamento jurídico do país: leis complementares, leis ordinárias, leis delegadas, decreto-lei, decretos legislativos, atos normativos, resoluções, artigos, parágrafos, incisos, alíneas, portarias e normas. Quais são as Sete Maravilhas do Mundo Antigo?
Não seja ridículo, Fischer vai ganhar. Fácil. Oitenta e dobro. Aberturas criativas (variante Najdorf da defesa siciliana), linhas raramente percorridas, de defesa e ataque. Foge às regras, gosta do conflito. Não é um pasmado a serviço de um governo. Tenha em mente os embargos, ainda que infringentes. Código Penal e Código Florestal. Marco Legal do saneamento. A norma a que você se refere se encontra na alínea A, do inciso iii, parágrafo quinto do artigo sétimo da lei 9511/98, lei complementar 107/2001 e decreto 4176/2002. É isso que chama de ordenamento? Quais são os Sete Pecados Capitais?
Perdeu a primeira partida e desistiu da segunda. Ainda mantém a aposta? O barulho das câmeras de tv está incomodando o Wonder Boy? Nas leis, a divisão do artigo não é obrigatória, pois ele pode ser dividido apenas em incisos, apenas em parágrafos ou alíneas e ainda ter somente o caput, sem desdobramentos. Quais são as Três Moiras que determinam o destino?
Que tal a abertura inglesa? Com essa ninguém contava. Estamos na sexta partida e você tem que estar abalado. O Spassky está embaixo da mesa? Pensando na Sibéria? Outra coisa: o texto legal, se muito longo, pode também ser dividido em partes, livros, títulos, capítulos, seções e subseções. Nem assim fica claro. Quais são as Três Górgonas? Se não souber, me diga: quais são as Três Greias?
Para com isso. Só acho que o Boris tem que usar mais os seus segundos, especialmente o Geller e o Krogius. Concordo que a variante Paulsen da defesa siciliana foi um erro. Mas o que me incomoda mesmo é o fato de que não há hierarquia entre lei complementar, lei ordinária, lei delegada, medida provisória, decreto legislativo e resolução. A eventual distinção entre tais espécies normativas seria fixada pela Constituição Federal mediante a reserva a cada uma das espécies. Como se sabe, a lei ordinária é residual, pois trata das matérias para as quais a Constituição não exige regulamentação por lei complementar, decreto legislativo ou resolução. Então me diga: quais são os Quatro Cavaleiros do Apocalipse?
Abertura inglesa. Afinal, é possível fazer estripulias no xadrez? As regras não são simples? Todo mundo sabe mexer as peças, todo mundo conhece o objetivo do jogo. O acaso não vigora, não se jogam dados. Estamos na décima partida e Spassky só ganhou uma. A outra foi porque Fischer não compareceu. Portanto, não me fale em lei orgânica e inorgânica, em medidas provisórias e definitivas, em embargos e desembargos. Embargos, sempre, ainda que infringentes. Quais são os Dez Mandamentos? Se quiser, quais são os Doze Trabalhos de Hércules?"
Quando olho agora para essa nossa troca de mensagens em 1972, tudo me parece quase impossível. Como fazíamos se nem havia internet? Tenho diante de mim uma folha datilografada à máquina com esses parágrafos acima. Você fez um resumo de nossa troca de bilhetes? Organizou tudo e me mandou uma cópia? Quando foi isso? Me lembro de você quando era jovem advogado, recém-casado, vivendo pelas regras da família, das leis do Estado, dos ensinamentos dos mais velhos, pela aprovação da sociedade a seus atos e pensamentos. Preocupado com jogos, regras e o ordenamento jurídico do país. Agora que tudo acabou, deste vantajoso ponto de vista do futuro, preciso fazer uma montanha de comentários. Você é meu irmão querido e, apesar das diferenças, eu te amo. Primeiro quero dizer que não acho ridículo o seu jeito de ser. Pelo contrário. É sério, trabalhador e cuidou de sua família da melhor maneira que alguém possa imaginar. Então, naquela ocasião, ter apostado no Spassky foi o certo. Ele era o esforçado, ele se preparou e recebeu por isso todo o apoio do governo soviético, os melhores analistas para serem seus segundos. Além disso, ele sempre foi educado, um cavalheiro. Aceitou as exigências e idiossincrasias do Fischer, os adiamentos, concordou com tudo. Jogou sempre com as regras, escritas e não escritas, da boa convivência e da esportividade.
Uma coisa que me deixa triste é que, quando eu digo que agora acabou, não estou me referindo apenas à disputa entre os dois campeões na Islândia. Eu acho que o xadrez, como a gente conhecia, acabou foi aí, nesse encontro. Explico: veja que nossa troca de mensagens acaba na décima partida. A 11a foi uma vitória do Spassky que você preferiu não comentar. Foi brutal, um jogo rude, imitando a Rússia de Stalin formando a União Soviética, avançando sobre Estados fracos e dominando-os com mão de ferro. Fischer foi surpreendido e perdeu. Penso que você não gostou da agressividade. A 12a partida foi um empate e a 13a marcou o fim do xadrez. Até aquela data, num jogo de xadrez entre grandes mestres, quando no final de uma partida cada lado tem o rei e dois bispos e alguns peões, o empate é certo. Mas quando chegaram a esse ponto, continuaram. Fischer porque queria ganhar e Spassky talvez por curiosidade. Depois de vários lances, Spassky estendeu a mão julgando estar propondo o empate. Fischer entendeu que ele admitia a derrota, levantou-se e foi descansar. Spassky não conseguiu se levantar da mesa, os segundos sentaram-se junto a ele e ficaram ali por um bom tempo até entenderem que tinham perdido. Bom, o russo teve um desarranjo mental do qual não se recuperou mais. Chegou a pensar que Fischer tivesse rearrumado o tabuleiro sem que ele percebesse e os assistentes custaram a dissuadi-lo. Não ganhou mais nenhuma partida, rapidamente propondo empates aceitos por Fischer. Tudo muito burocrático. Na 21a e última partida, Spassky tombou o rei depois de uns cinquenta movimentos. Admitiu a derrota, mas surpreendentemente ficou satisfeito. Tinha entendido que de certo perderia a partida com 26 movimentos de antecedência. Percebeu que sua cabeça estava voltando a funcionar porque, de novo, entendia o que se passava dentro do tabuleiro. Após o apogeu, ápice, fastígio, pináculo, zênite, o inevitável declínio. Fischer abandonou o xadrez e foi perdendo a sanidade e o discernimento. Spassky passou a gostar de jogar tênis, casou-se com uma moça da Borgonha e adquiriu nacionalidade francesa. Como sabe, as futuras disputas pelo título mundial foram sem graça, nunca mais o xadrez empolgou como daquela vez. O golpe final, para acabar com a agonia do jogo, foi quando o computador Deep Blue venceu Gary Kasparov. A partir daí, o xadrez saiu do radar da mídia e, para piorar, houve a disputa entre as federações, fide versus pca. Entendeu? Nada mais funcionava, acabou.
Enquanto você foi Boris, eu pensei que podia ter sido Bobby. E, no entanto, não realizei, não ganhei, não fui campeão. Ganhei no Brasil e perdi na Alemanha. Lembra? Você me falou que eu era dispersivo e que atacava moinhos de vento que nem existiam e que enxadrista barbudo, mal-encarado e metido a briguento não podia mesmo avançar na vida. Ainda mais se o visual agressivo escondesse uma mansidão incurável. Te escrevo antes de perder minha sanidade e discernimento. Reconheço: você se saiu bem. Arrumou os filhos, não falha ao providenciar a tempo e a hora os remédios apropriados para a mulher deprimida e, com o diploma de bom homem debaixo do braço, vive tranquilo ao lado dessa argentina formidável. Embora não trabalhe mais, dança tango como ninguém. Eu continuo desassossegado, apavorado com o fim das coisas. Mas não quero terminar essa mensagem sem deixar de te perguntar: quais são os 613 Mandamentos da Torá?
alcino bastos Nascido em Leme (sp), atualmente vive na capital com a esposa, duas filhas e cinco netos. Engenheiro aposentado, tem extensão universitária pela Fundação Getúlio Vargas e pela Kellogg School of Management (Chicago). Participou das antologias 336 horas (Casa da Palavra, 2013) e Ninguém humano (Terceiro Nome, 2014), ambas organizadas por Noemi Jaffe.
QUARESMA
álvaro uliani
É pirangueiro! É pirangueiro!
As crianças riam do homem, que respondia coisas sem sentido, caído no chão. Os meninos brincavam com Ala Ursa na praça, sem deixar de implicar com o bêbado, quando chegamos, envergonhados, pra tirar ele dali. Joguei uma moeda e os moleques, rindo ainda mais, nos deixaram em paz. É gente boa! É gente boa!
Não gostávamos do Carnaval. O pai não deixava ninguém brincar, tomava pileque atrás de pileque e dormia na rua. Voltava pra casa na Terça-Feira Gorda todo cagado, carregado por mim e pela minha irmã mais velha, que aguentava também os gritos – Puta!
– e os apertões na bunda.
Éramos quatro filhos, dois homens e duas mulheres. De início, fomos cinco, mas a menor descansou. No dia do acidente, gritamos. A Nazinha caiu no poço! A Nazinha caiu no poço!
Ah, cala a boca, moleque!
Quando viu, foi tarde. Desceu pendurado numa corda, conseguiu agarrar a criança, que ainda mordeu sua mão. Mas no que foi subir, deixou Nazinha escorregar e, quando conseguiu pegar a menina de novo, só deu para içar o corpo. Estava bêbado naquele dia. Nunca se perdoou, mas tampouco parou de beber. Passou a cumprir a Quaresma, por ordem do padre. Guardava o vestido que ela usava no dia da morte dobrado numa gaveta. Lavava no Leite de Rosas e o acariciava escondido, rezando, nos dias de sobriedade. A mãe tinha pena, dizia que o pai bebia de tristeza. Eu tinha ódio.
Na Quarta-Feira de Cinzas, a casa amanhecia pronta pro ritual. Todos sabiam seu papel. O pai tomava um banho e vestia roupa limpa, a camisa branca de algodão com cheiro de coco. Caminhava até o quintal e sentava na cadeira que eu tinha preparado. Minha irmã mais nova penteava os cabelos dele, lisos e pretos, com óleo de amêndoa e um pente bem fino. A mãe trazia uma xícara de café forte. O pai batia a mão no bolso direito da calça. Canivete, tinha esquecido. Meu irmão corria pro quarto buscar. O olhar que recebia na volta ordenava que fosse também atrás do fumo de corda e da palha. O pai picava o tabaco, eu esquentava a água e a irmã, terminando o cabelo, providenciava as toalhas. A mãe afiava a navalha. A mais velha faria a barba do pai todas as quartas-feiras pelos quarenta e seis dias seguintes.
Barba feita, íamos à missa. Na volta, ele abria o cadeado do guarda-comida e podíamos comer biscoitos. Todos ficavam felizes. Eu já não era de biscoitos, nem de esperanças. As meninas tiravam a roupa de missa e brincavam no quintal. Eu ficava de olho no poço.
O pai passava aqueles dias sem beber. Acordava cedo e ia à paróquia, toda manhã. Confessava e comungava uma vez por semana. Voltava a trabalhar. Era ferreiro. Eu o ajudava a preparar arreios, estribos e esporas para vender à selaria. Era conhecido na região. Quando chegava a Quaresma, recebia encomendas sem parar. Saldava as dívidas, comprava uma muda de roupa nova para cada filho, às vezes, um sapato. Sua fisionomia mudava, ganhava peso, a pele ficava mais alva, o olhar deixava de mirar o infinito, tomava reparo e conversava com a gente, não batia na mãe. As irmãs faziam novena agradecendo a cura do pai. Nos finais de tarde, ele e a mãe iam pro rio e traziam peixe, única mistura que comíamos até o Domingo de Ramos.
No Sábado de Aleluia, a mãe acendia uma fogueira e recolhia varas de bambu para fazer caniços. Tinham de ser perfeitas, sem nó. As irmãs limpavam, eu alinhava e o pai salpicava no fogo pra pegar verga. Meu irmão punha os bambus pra secar. Caniços de vários tamanhos. Os mais curtos pra pescar lambaris. Os mais compridos davam conta de bitelos de até vinte, trinta quilos, a depender da habilidade do pescador pra contar estórias. À medida que o trabalho avançava, aumentava a ansiedade das irmãs. Ele sabia. Aguardava até a última hora pra dar a ordem, rindo. Cada criança escolhia uma vara da sua altura, limpava e devolvia pro pai passar na fogueira. Era com elas que apanharíamos até a Quarta-Feira de Cinzas do ano seguinte. O cheiro do bambu no fogo nunca saiu da memória.
Foi no Domingo de Ramos de 1978 que o pai mandou vir fotógrafo. A mãe fez