O Frevo no Discurso Literomusical Brasileiro
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Sobre este e-book
emergente, ao lado da população marginalizada e excluída. Também são enfocados momentos da trajetória que definirá a configuração musical do gênero carnavalesco cuja origem está na música das bandas civis e militares, sob influência de outros gêneros musicais brasileiros e estrangeiros. A obra é destinada a pesquisadores e estudiosos de áreas como a linguística, os estudos culturais, a música popular e o carnaval brasileiro.
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O Frevo no Discurso Literomusical Brasileiro - Julio Vila Nova
Sumário
CAPA
INTRODUÇÃO
CAPÍTULO 1
BASE TEÓRICA PARA UMA ANÁLISE DISCURSIVA DO FREVO
Parte 1 – Dialogismo e Gêneros do Discurso, contribuições do Círculo de Bakhtin
1.1 OS GÊNEROS, DA ANTIGUIDADE CLÁSSICA À ATUALIDADE
1.2 O GÊNERO CANÇÃO
1.3 FREVO-CANÇÃO, UM GÊNERO E ALGUMA POLÊMICA
1.4 ASPECTOS DE INTER-RELAÇÃO GENÉRICA: CANÇÃO E CRÔNICA
Parte 2 – A Análise do Discurso
2.1 AD FRANCESA
2.2 SEGUNDA E TERCEIRA ÉPOCAS
2.3 PRÁTICA DISCURSIVA
2.4 POSICIONAMENTO
2.5 COMUNIDADES DISCURSIVAS
2.6 INVESTIMENTO GENÉRICO
2.7 ETHOS DISCURSIVO
2.8 ETHOS E INCORPORAÇÃO
2.9 ETHOS E CENA ENUNCIATIVA
CAPÍTULO 2
TRAÇANDO OS PASSOS DA ANÁLISE: ASPECTOS METODOLÓGICOS
2.1 DELIMITANDO E CARACTERIZANDO O OBJETO
2.2 OBJETIVOS E HIPÓTESES
CAPÍTULO 3
O FREVO NO DISCURSO LITEROMUSICAL BRASILEIRO
3.1 PRIMEIROS MOVIMENTOS
3.2 A MARCHA RUMO AO FREVO
3.3 A MÚSICA NO DISCO, O FREVO NA MÚSICA POPULAR
3.4 FREVO E IDENTIDADE CULTURAL
3.5 FREVEDOURO, FREVOLÊNCIA: A EXPERIÊNCIA SINESTÉSICA E AS PRIMEIRAS LETRAS DO FREVO NAS RUAS
3.6 A DANÇA DOS NOMES: FREVO FESTA, FOLIA E COREOGRAFIA
3.7 ENTRE SALTOS, PERNADAS E RASTEIRAS, O FREVO QUE NÃO ERA BRINCADEIRA
3.8 VOZES DO FREVO NAS ONDAS DO RÁDIO
3.9 PASSIONALIZAÇÃO DA CANÇÃO E REGULAÇÃO DA FOLIA
3.10 CAPIBA, CANCIONISTA MALABARISTA
3.11 A ERA DA ROZENBLIT E OUTROS PASSOS DO FREVO
CAPÍTULO 4
APITO E ACORDE FINAL
CANÇÕES ANALISADAS - QUADRO-RESUMO
CANÇÕES ANALISADAS - LETRAS
REFERÊNCIAS
SOBRE O AUTOR
CONTRACAPA
capa.jpgO frevo no discurso
literomusical brasileiro
Editora Appris Ltda.
1.ª Edição - Copyright© 2023 dos autores
Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.
Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98. Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores. Foi realizado o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nos 10.994, de 14/12/2004, e 12.192, de 14/01/2010.
Catalogação na Fonte
Elaborado por: Josefina A. S. Guedes
Bibliotecária CRB 9/870
Livro de acordo com a normalização técnica da ABNT
Editora e Livraria Appris Ltda.
Av. Manoel Ribas, 2265 – Mercês
Curitiba/PR – CEP: 80810-002
Tel. (41) 3156 - 4731
www.editoraappris.com.br
Printed in Brazil
Impresso no Brasil
Julio Vila Nova
O frevo no discurso
literomusical brasileiro
A Severino e Alzenir Vila Nova,
que me apresentaram os primeiros
acordes do Frevo, na infância.
A Cristiane e Lívia,
pelo amor de toda a vida.
AGRADECIMENTOS
Aos deuses da Música e do Carnaval, pelo ritmo que pulsa no coração e embala os sonhos de todos nós.
A Nelly Carvalho, orientadora, pela confiança e pela partilha generosa.
Aos professores e colegas do curso de Letras da UFPE, da graduação e da pós-graduação, pela sabedoria, aprendizado e amizade compartilhados.
A Diva Rego e Jozaías dos Santos, colegas servidores do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPE, pelo carinho, atenção e generosidade de sempre.
Aos colegas de trabalho na UFRPE, pela amizade e companheirismo no convívio diário, em especial as amigas Dorilma Neves e Sandra Melo, pela presença no cordão do Bloco Carnavalesco Lírico Cordas e Retalhos.
Aos amigos compositores Bráulio de Castro (in memoriam), Fátima de Castro e Edson Rodrigues, pela amizade, pelo aprendizado e pela generosa disponibilidade para me esclarecerem muita coisa sobre o Frevo e sua História.
Aos amigos e amigas do Instituto Brasileiro do Frevo, do Comitê Gestor de Salvaguarda do Frevo e do Paço do Frevo.
Ao compositor e musicólogo Samuel Valente e aos radialistas Mirian Leite e Hugo Martins, da Rádio Universitária da UFPE, pela gentileza, atenção e disponibilidade.
Ao músico e colecionador Raimundo Floriano, pela disponibilização de seu acervo musical no trabalho de pesquisa.
A todos os amigos e amigas foliões, compositores e músicos do Bloco Carnavalesco Lírico Cordas e Retalhos, onde o amor pelo carnaval pulsa vinte quatro horas por dia, sete dias por semana, desde 1998.
Aos amigos e amigas foliões e carnavalescos dos clubes, troças e blocos de Olinda, escolas vivas de cultura e resistência, onde não me canso de aprender, do Varadouro ao Guadalupe, do Carmo ao Amparo, da Sé ao Bonsucesso, da Rua da Boa Hora à Rua do Bonfim, passando sempre pelos Quatro Cantos, evidentemente.
Alô passageiros
do século vinte
alô alô foliões
do século vinte e um
segura esse frevo
no pé da garganta
no espaço que resta
de toda essa onda que vem
(Carlos Fernando, Século XXI, 1981)
Como se as ruas e praças do Recife enfim explicassem para que tinham sido feitas.
Como se vozes humanas enfim cantassem
a capacidade de prazer que era secreta em mim.
Carnaval era meu, meu.
(Clarice Lispector, Restos de Carnaval)
São belos igualmente os usos peculiares a cada povo
e tudo quanto manifesta as práticas estimadas
no seio de cada comunidade
(Aristóteles. Arte Retórica)
APRESENTAÇÃO
Este livro é o resultado de um trabalho de pesquisa iniciado há alguns anos, pelo Programa de Pós-Graduação em Letras (PPGL) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Começou após a conclusão de outro trabalho acadêmico, publicado posteriormente como livro pela Fundação de Cultura Cidade do Recife, sob o título de Panorama de Folião - O Carnaval de Pernambuco na Voz dos Blocos Líricos. Em ambos, contei com a orientação da querida professora Nelly Carvalho, que me incentivou a enveredar pelo estudo desta manifestação cultural que nos concerne e nos distingue: o Carnaval, e muito especialmente o Frevo, porque somos de fato bons pernambucanos. Sugestão acatada, primeiro me debrucei sobre o Frevo-de-Bloco, daí resultando a dissertação de mestrado Panorama de folião: cultura e persuasão no discurso do frevo-de-bloco
, que deu origem ao livro anteriormente referido. Agora, chega às mãos do leitor, da leitora o resultado das reflexões sobre o Frevo-Canção, a partir da tese de doutorado intitulada O Frevo no discurso literomusical brasileiro: ethos discursivo e posicionamento
, em que ressalto a importância do Frevo-Canção como gênero que descortinou para o Brasil a riqueza multifacetada deste fenômeno cultural arrebatador, através de algumas das maiores e melhores vozes da nossa música popular, no disco e no rádio.
Meu interesse em abordar a canção como objeto de estudo na área de linguagens, porém, é mais antigo, desenvolvido na prática docente, nas aulas de língua portuguesa e de língua inglesa no início da década de 1990, em escolas de Ensino Médio. A riqueza da canção como gênero discursivo de grande circulação e inegável importância sociocultural sempre foi ressaltada por mim, em sala de aula, como objeto de fruição, para deleite do ouvido, e também como fonte de reflexão e debate sobre os temas enfocados nas letras. O aprofundamento dos estudos sobre gêneros do discurso e sobre a análise do discurso, na universidade, permitiu-me ampliar o olhar analítico para compreender melhor os processos de construção de sentido elaborados na canção.
São precisamente essas as duas áreas selecionadas como embasamento para o estudo apresentado aqui, e resumidas no Capítulo 1. A canção é enfocada como gênero discursivo, ou seja, como manifestação da língua viva, em movimento, como elaboração sociodiscursiva com propósitos comunicativos e traços composicionais peculiares. Aqui, tomamos como referência básica a teoria dialógica desenvolvida pelo Círculo de Bakhtin. Argumentamos que a canção, gênero que conjuga as linguagens verbal e musical, tem enorme importância para a cultura brasileira, seja como possibilidade de acesso à linguagem poética para vastas camadas da população, seja como lócus de variadas propostas estéticas e diferentes posicionamentos político-ideológicos. O discurso literomusical brasileiro é, assim, atravessado por uma heterogeneidade marcante, em sua riqueza de vozes, de sons e de sentidos. Para identificar alguns posicionamentos do Frevo no discurso literomusical brasileiro, são tomados conceitos como ethos discursivo, incorporação e cena enunciativa, na perspectiva do linguista francês Dominique Maingueneau.
No Capítulo 2 apresento, resumidamente, a proposta metodológica e as hipóteses que nortearam a pesquisa; e no Capítulo 3 a análise do Frevo-Canção, a partir do recorte histórico que inclui o período dos anos de 1930 a 1970, contemplando a chamada Era de Ouro do Rádio, seu posterior declínio e a ascensão da televisão como meio de comunicação de massa, a partir dos anos 1960, até o período de atuação da Fábrica de Discos Rozenblit, responsável pela produção e difusão fonográfica do Frevo para o Brasil, a partir do Recife. Ainda no Capítulo 3, apresento a contextualização histórica do surgimento das primeiras formas do Frevo cantado, vinculadas a agremiações carnavalescas nascidas ainda em fins do século 19, e analiso o percurso de consolidação do nome Frevo, inicialmente designando o ajuntamento frenético da população em ebulição, nas ruas, passando depois a nomear também a dança e a música. O início da história do Frevo no disco é enfocada com destaque para a obra do compositor Capiba (Lourenço da Fonseca Barbosa), cujas canções foram gravadas por grandes intérpretes da música brasileira.
Este livro é ao mesmo tempo o resultado de um esforço para preencher uma lacuna nos estudos do discurso literomusical, quanto ao Frevo, e uma pequena homenagem às mulheres e aos homens, às meninas e aos meninos que formam a imensa comunidade de fazedores e amantes das artes que integram o fenômeno cultural do Frevo, Patrimônio Imaterial da Humanidade: de poetas a porta-estandartes e flabelistas; de compositores e compositoras a artistas visuais; de pesquisadores e pesquisadoras a frevistas que mantêm viva a coreografia frenética, todo ano enchendo as ruas, praças e ladeiras em busca de viver o sonho imemorial do carnaval, no embalo dos acordes e dos versos cantados nos dias de festa.
INTRODUÇÃO
No processo de formação da cultura brasileira, com seus múltiplos gestos e vozes, a canção popular desempenha um papel de relevância inegável. Se é bem verdade que houve um tempo em que artistas da canção eram estigmatizados, alvo de preconceito, vinculados à boemia e à malandragem, em geral, associadas a instrumentos musicais populares, como o violão e o pandeiro; também é certo que a música popular conquistou espaço privilegiado de enorme reconhecimento entre as manifestações artísticas mais representativas da nossa identidade — ou, para dizer mais apropriadamente, das nossas identidades, plurais. Nesse percurso, a canção passa a figurar também como objeto de estudo sob diferentes enfoques: historiografia, análises sócio-históricas e antropológicas, resenhas jornalísticas, estilística, análises semióticas etc.
Ao longo do século 20, a canção consolidou sua posição como gênero discursivo¹ de grande relevância e enorme circulação na sociedade brasileira, como etapa de um processo iniciado ainda nas primeiras décadas, concomitantemente ao surgimento e aprimoramento das técnicas de registro fonográfico e ao desenvolvimento do rádio como veículo de comunicação de massa. Segundo o linguista e compositor Luiz Tatit, é um período de consolidação e disseminação de
[...] uma prática artística que, além de construir a identidade sonora do país, se pôs em sintonia com a tendência mundial de traduzir os conteúdos humanos relevantes em pequenas peças formadas de melodia e letra. (TATIT, 2004, p. 11).
Em depoimento colhido no documentário Palavra (En)Cantada (2008, direção de Helena Solberg), José Miguel Wisnik — professor, cantor e compositor — argumenta que a importância da canção na cultura brasileira se deve em grande parte à força das manifestações populares, essencialmente marcadas pelas práticas orais, numa realidade reconhecida historicamente pela carência de oportunidades de acesso à cultura letrada, ao longo das diversas etapas do desenvolvimento do país. Para Wisnik, a canção cumpre, por exemplo, o importante papel cultural de permitir a uma vasta parcela da população brasileira o acesso às formas de expressão poética constituídas nas letras. Ele afirma que, no Brasil,
[...] criou-se uma situação que não existe propriamente em nenhum país desse jeito, que é uma canção popular fortíssima que ganhou uma capacidade de cantar para auditórios imensos e levar para esses auditórios uma poesia de densa qualidade, de sutileza, de riqueza. (PALAVRA (EN)CANTADA. Depoimento de José Miguel Wisnik, 2008).
No mesmo filme, o rapper e escritor paulista Ferréz, depois de relembrar que lia literatura de cordel com o seu pai, reconhecendo uma relação entre o cordel e o rap, observa que a sua carreira como cantor é, na verdade, [...] uma grande mentira, só para cativar os moleques para a literatura [...]
(PALAVRA (EN)CANTADA. Depoimento de Ferréz, 2008). Ele diz que, quando grava um CD de rap, coloca no encarte, entre as letras, um conto, por exemplo. Sua posição é de combate a uma visão elitista da literatura, em geral, fechada em círculos acadêmicos ou entre intelectuais.
Analisando a questão na perspectiva da produção, no momento histórico em que o surgimento da tecnologia de gravação permite o registro fonográfico, Luiz Tatit salienta a importância da canção como possibilidade de expressão artística com base em práticas quotidianas:
A canção brasileira, na forma que a conhecemos hoje, surgiu com o século XX e veio ao encontro do anseio de um vasto setor da população que sempre se caracterizou por desenvolver práticas ágrafas. Chegou como se fosse simplesmente uma outra forma de falar dos mesmos assuntos do dia-a-dia, com uma única diferença: as coisas ditas poderiam então ser reditas quase do mesmo jeito e até conservadas para a posteridade. (TATIT, 2004, p. 70).
Ao longo do século 20, então, muito daquilo que se disse em forma de canção foi conservado para a posteridade e tem servido como objeto de estudo, em busca da compreensão da sociedade e da cultura brasileiras, sob diferentes perspectivas. Inúmeros autores têm dado sua contribuição para o estudo da canção em diferentes perspectivas, em áreas como a história social e política (CALDAS, 2005; NAPOLITANO, 2007), a crítica musical (TINHORÃO, 1990, 1991, 2005); a comunicação (MEDINA, 1973) e a semiótica (TATIT, 1986, 1996, 2004), por exemplo. No âmbito dos estudos discursivos, entre os quais se incluem, de modo abrangente, trabalhos que privilegiam a análise das letras e a construção de sentidos a partir da articulação entre texto e melodia, a produção também é considerável. Para mencionar alguns poucos exemplos, há trabalhos que se debruçam sobre a obra de autores específicos (CARVALHO, 1982, sobre canções de Chico Buarque de Hollanda), ou sobre um tema escolhido para análise a partir de obras musicais — por exemplo, a sexualidade (FAOUR, 2006), a construção da imagem da mulher (SANTA CRUZ, 1992) ou as relações entre música popular e futebol (XAVIER, 2009) e entre a música popular e a literatura (SANT’ANNA, 1986). Há, ainda, uma vasta bibliografia de cunho eminentemente biográfico, que aborda a produção discográfica de inúmeros artistas, sem empreender análises mais detalhadas de sua obra, mas de qualquer forma cumprindo importante papel documental na história cultural do país.
No Brasil, os estudos sobre canção e discurso literomusical têm ampliado seu espaço no meio acadêmico, em publicações como a Revista Brasileira de Estudos da Canção, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN); nas atividades de projetos — como o Núcleo de Estudos da Canção, vinculado à Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) — e grupos de pesquisa, dentre os quais se destaca o Grupo Discuta (Discurso, Cotidiano e Práticas Culturais), criado, em 2001, sob coordenação do Prof. Nelson Barros da Costa, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal do Ceará (UFC).
No cenário internacional, a produção acadêmica sobre música popular tem sido divulgada por meio de instituições como a Associação Internacional para o Estudo da Música Popular (IASPM), criada na década de 1980, nos Estados Unidos, e pela sua ramificação para a América Latina (IASPM-LA), que desde 1994 realiza congressos em todo o continente, com participações de estudiosos da música popular do mundo inteiro. De modo geral, a perspectiva interdisciplinar que norteia a atuação dos pesquisadores tem possibilitado o desenvolvimento de diálogos enriquecedores sobre diferentes temas.
Entretanto, considerando o reconhecimento de sua importância para a cultura brasileira, podemos observar que o número de trabalhos frutos de pesquisa enfocando a canção ainda é pequeno. Essa é uma impressão corroborada por Travassos (2005), que, fazendo uma revisão de algumas das várias linhas de pesquisa sobre música popular no Brasil², até meados da primeira década deste século, afirma:
[...] há tempos que a música popular atrai os eruditos, e o assunto nunca esteve de todo ausente das cogitações dos pesquisadores vinculados às universidades [...], a presença da música popular é constante, ainda que desproporcional ao seu lugar na cultura brasileira. (TRAVASSOS, 2005, p. 94).
No âmbito dos estudos linguísticos que enfocam a canção, duas áreas que se têm revelado muito profícuas são as teorias de gêneros do discurso e a Análise do Discurso (AD). Dissertações, teses e outros trabalhos acadêmicos publicados também em formato de livro para um público mais amplo têm abordado o discurso literomusical brasileiro na perspectiva dos estudos de gêneros com base em Mikhail Bakhtin e da análise do discurso de linha francesa — especialmente a desenvolvida por Dominique Maingueneau. Os dois autores são referenciais no desenvolvimento deste trabalho, que ora chega às mãos do leitor, da leitora.
Reconhecendo a validade das interlocuções entre as duas áreas, em nossa abordagem incorporamos contribuições de outros autores, que dão conta da definição de gêneros enquanto formas de ação social e cultural (BAKHTIN, 1981, 1992, 2000; MARCUSCHI 2004, 2005, 2007, 2008; BAZERMAN, 2005). Essa interlocução é destacada pelo próprio Maingueneau (2008), ao observar que [...] há um consenso entre analistas do discurso de que a noção de gênero ocupa papel central na disciplina [...]
(MAINGUENEAU, 2008, p. 151) e que [...] a análise do discurso e as correntes pragmáticas colocaram a categoria de gênero no centro de suas preocupações [...]
(MAINGUENEAU, 2006, p. 229). Neste livro, abordamos as concepções de gêneros do discurso em Bakhtin, a partir de suas formulações sobre o princípio dialógico, que evidencia a dimensão social da linguagem. Enfocamos também as relações entre os gêneros primários e secundários (BAKHTIN, 2000, p. 281-283), que ensejam uma interpretação da canção como manifestação cultural da linguagem numa esfera de produção artística elaborada a partir da fala cotidiana.
De fato, ao definirmos, com Costa (2007a), a canção como [...] gênero híbrido, de caráter intersemiótico [...]
(COSTA, 2007a, p. 107), reiteramos a compreensão de que sua produção se situa no limiar entre a oralidade e a escrita, conferindo-lhe um interesse peculiar enquanto objeto de pesquisa. A redução das fronteiras entre oralidade e escrita, com a superação de uma visão dicotômica por muito tempo presente na pesquisa linguística, é uma perspectiva em geral vinculada à constituição de novos gêneros, sobretudo a partir do desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação. Conforme salienta Marcuschi (2007), um aspecto central desses gêneros mais recentes é
[...] a nova relação que instauram com os usos da linguagem como tal [com] a redefinição de alguns aspectos centrais na observação da linguagem em uso, como por exemplo a relação entre a oralidade e a escrita, desfazendo ainda mais as suas fronteiras [...]. (MARCUSCHI, 2007, p. 21).
A inserção da canção nessa perspectiva é, sem dúvida, pertinente, embora não estejamos lidando com um gênero novo, absolutamente, já que a palavra cantada é uma das mais antigas manifestações da linguagem, remontando aos primórdios da história humana, disseminada praticamente em todas as culturas. A configuração da canção, ou seja, sua materialização, dá-se a partir dos padrões entoacionais da fala. Em alguns gêneros musicais — como o rap, por exemplo —, esses padrões são mais evidentes, reconhecidos, de modo geral, como uma fala cantada. Tal compreensão fundamenta, por exemplo, a análise de Luiz Tatit (1996, 1997, 2004, 2007) sobre a consolidação da canção no panorama da cultura brasileira ao longo do século 20. O autor argumenta que ela se deve a um princípio entoativo, segundo o qual as melodias [...] mimetizam as entoações da fala para manter o efeito de que cantar é também dizer algo, só que de um modo especial [...]
(TATIT, 2004, p. 73). Ao mesmo tempo, a canção tem uma dimensão escrita evidente, a qual, de acordo com Costa (2007a), está situada no momento da produção e da distribuição das obras, sendo, portanto, sujeita à [...] análise das disciplinas que privilegiam a matéria escrita [...]
(COSTA, 2007a, p. 112), entre as quais inclui-se a literatura, como ressalta o autor.
Para uma breve reconstituição do percurso sócio-histórico da canção, analisamos, a partir de Matos (2008) e outros autores, alguns laços de parentesco
verificados na relação entre poesia e música, procurando ressaltar a importância da canção em diferentes práticas culturais. Recorremos ainda a Zumthor (2005) para destacar a importância da voz na elaboração dessas práticas, bem como na definição de performance. Enfatizamos, ainda, alguns aspectos composicionais e contextos socioculturais específicos, que caracterizam a elaboração, circulação e recepção da música cantada, ao longo da formação da cultura brasileira.
Por fim, propomos uma aproximação entre os gêneros canção e crônica, considerando a análise de muitas obras em que a organização discursiva e os propósitos comunicativos permitem identificar nas canções analisadas traços comuns à crônica, gênero discursivo situado entre o jornalismo e a literatura. Em geral, são canções elaboradas na forma de narrativas sobre cenas da vida cotidiana, descrevendo personagens e costumes, incorporando usos linguísticos, comentando aspectos da vida social e política etc. Tal percepção não constitui propriamente um dado novo na análise da música popular brasileira, se considerarmos que [...] a prática musical brasileira sempre esteve associada à mobilização melódica e rítmica das palavras, frases e pequenas narrativas ou cenas cotidianas.
(TATIT 2004, p. 69). Nesse sentido, muito já se disse acerca de, por exemplo, um Noel Rosa como cronista de Vila Isabel, seu bairro de origem, no Rio de Janeiro; ou um João Santiago, cronista do Batutas de São José, bloco carnavalesco do conhecido bairro central do Recife, ao qual o artista dedicou grande parte de sua obra. Pretendemos, então, identificar no conjunto das obras selecionadas aquelas que se enquadram neste espaço de intersecção entre a canção e a crônica.
O referencial teórico da Análise do Discurso (AD) que incorporamos neste trabalho baseia-se principalmente na obra de Dominique Maingueneau. Conforme salienta o professor Nelson Barros da Costa, os trabalhos que se utilizam do dispositivo teórico-analítico baseado no autor francês têm por característica principal [...] lançar um olhar atento à articulação entre a materialidade da canção, ou seja, sua substância verbo-melódica, e o contexto mediato ou imediato que ela pressupõe.
(COSTA, 2007, p. 15). Para o trabalho de análise do Frevo neste livro, destacamos os conceitos de posicionamento e de ethos discursivo, integrados à noção de cena enunciativa, que enfocamos adiante. Optando por situar o trabalho nessa perspectiva, buscamos articular, com a análise das obras musicais selecionadas, [...] um funcionamento discursivo e sua inscrição histórica, procurando pensar as condições de uma ‘enunciabilidade’ passível de ser historicamente circunscrita.
(MAINGUENEAU, 2008, p. 16). Nosso desafio, portanto, é abordar o conjunto de obras aqui selecionadas a partir de seu contexto de produção, observando ao mesmo tempo os aspectos composicionais que as definem como Frevos-canção e as peculiaridades (linguísticas, estéticas, musicais) que corroboram a inserção do Frevo no grande painel da música popular brasileira.
A tarefa, entretanto, não é simples. Por um lado, estamos lidando com um campo teórico que se caracteriza por uma grande heterogeneidade de conceitos e de procedimentos analíticos. Nascida a partir da aproximação entre a Linguística, a História e a Psicanálise, nos anos de 1960, daí tendo ampliado seu alcance em diálogos cada vez mais produtivos com outras vertentes das ciências humanas (a antropologia, a sociologia, a literatura, a teoria da comunicação e outras que produzem e interpretam textos nas suas metodologias de coleta e análise), a Análise do Discurso se ocupa da língua em funcionamento, buscando compreender a produção de sentidos elaborados nos diversos gêneros discursivos que circulam na sociedade, em diferentes contextos sócio-históricos. De forma sucinta, Eni Orlandi (2003, p. 15) observa que o discurso é [...] a palavra em movimento, prática de linguagem [...]
e que [...] na análise do discurso, procura-se compreender a língua fazendo sentido, enquanto trabalho simbólico, parte do trabalho social geral, constitutivo do homem e da sua história [...]
.
Por outro lado, estamos nos debruçando sobre um objeto de investigação não menos complexo, o discurso literomusical brasileiro, também marcado por uma grande heterogeneidade de posicionamentos, pela riqueza da multiplicidade de opções artísticas e de orientações estéticas, consolidadas ao longo de diferentes momentos históricos e contextos socioculturais.
Nossa proposta é enfocar a produção linguístico-discursiva do Frevo procurando compreender como se dá a sua inserção no panorama da música popular brasileira, a partir das primeiras décadas do século 20. Abordaremos especificamente a produção literomusical do Frevo-Canção, um dos dois tipos de Frevo que admitem a palavra cantada³, constituído a partir do Frevo-de-Rua e vinculado à atuação dos primeiros clubes carnavalescos do Recife.
A noção de interdiscursividade, basilar para a AD, é incorporada na perspectiva desenvolvida por Maingueneau (2008, p. 20), a partir do que ele define como primado do interdiscurso:
[...] o interdiscurso tem precedência sobre o discurso. Isso significa propor que a unidade de análise pertinente não é o discurso, mas um espaço de trocas entre vários discursos convenientemente escolhidos [...].
Os procedimentos analíticos