O fim da picada
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Sobre este e-book
Que sorte a nossa!
O grande contador de casos agora alça voos na criação literária... Não dá para perder estas histórias. Quer saber por quê? Vá até o fim desta picada...
Roberto Loureiro
Roberto Loureiro é cuiabano, engenheiro eletricista e servidor público aposentado com grande experiência nas áreas de Planejamento e Gestão Pública. É autor do livro “Cultura Matogrossense: festas de santos e outras tradições”, hoje um clássico de referência no assunto. Desde menino e durante toda a sua juventude, participou ativamente de mais de centena de festas de santos nos municípios dos vales dos rios Cuiabá e Paraguai, onde tocava os instrumentos musicais tradicionais e dançava o siriri, o rasqueado e a dança de São Gonçalo... Completamente integrado às tradições mato-grossenses, conviveu com o universo mítico do garimpo, da poaia, da borracha, dos pecuaristas e do homem pantaneiro, a partir da década de 1940. Estas vivências e as intermináveis prosas com ‘os antigos’, a fonte para este seu novo livro.
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O fim da picada - Roberto Loureiro
A casa mal dita
Dizem que dinheiro na mão é tentação.
Se não, parece. Pessoas tidas e havidas como de comportamento ilibado na guarda ou comando de quantias de dinheiro jamais sonhadas perdem a compostura e cometem os piores desatinos. Esquecendo o decoro e status adquiridos ao longo da vida, se apropriam daquilo que não lhes pertence como se fosse esta atitude a coisa mais natural do mundo. A ocasião…
, dizem.
Corriqueiros hoje esses desvios, antigamente, além de raros eram alvo de críticas e rejeições do povo, que protestava, indignado, contra essas atitudes.
Em Mato Grosso, uma maneira de revidar esses mal feitos era apelando para o deboche dos envolvidos nessas situações.
Era através de chistes e malícias inteligentes que o povo se vingava dos entortados, levando ao ridículo os autores desses delitos. Nessa arte de ridicularizar, os cuiabanos eram mestres imbatíveis.
Vejam este exemplo…
Terminada a Guerra com o Paraguai, o governo brasileiro instituiu um prêmio em dinheiro para agraciar os bravos combatentes que pelearam naquele conflito. Medida justa e esperada, já que os guerreiros, em sua maioria, participaram dessa luta como voluntários por puro patriotismo. Por isso mesmo chamados, apropriadamente, de patriotas.
Mato Grosso foi contemplado com significativo quinhão desse dinheiro, posto que dos milhares de soldados que compunham as tropas nacionais, grande parte era oriunda do Estado, por ter sido o Pantanal um dos palcos principais dessa guerra. Por isso a euforia, em Cuiabá e região, com o anúncio da medida federal. Justiça com os combatentes e dinheiro, aúfa
, no comércio.
Cumpridas as formalidades legais pelo governo central, relativas à distribuição da recompensa, coube a um graduado funcionário federal lotado em Cuiabá, conhecido pela conduta ilibada, a tarefa de distribuir o benefício em Mato Grosso.
Tão logo os sacos de dinheiro enviados pelo Governo foram recebidos pelo servidor, começou o calvário dos patriotas.
Primeiro a burocracia, acachapante, que foi exacerbada pelas artes de um especialista, não fosse o responsável um funcionário público.
Atestado daqui, documento dali, carimbo pra cá, assinaturas pra lá, exigia o executor do pagamento. Um inferno! Pior, descobriram os soldados, que as refregas da guerra. Era a fase de criar dificuldades para vender facilidades. Forma de exercer o mando em causa própria, e tirar vantagens da situação. Favores e contrapartidas, bem-vindos. Mercadoria muito cara aos que se veem investidos de poder de Estado.
Vencida a etapa de aprovação documental, se e quando, vinha a segunda frustração dos patriotas: o minguado dinheiro recebido, montante que nem de perto correspondia ao valor anunciado e esperado.
Com desculpas surradas do tipo: informaram o senhor errado!
, essa quantia é só para os oficiais
, esse valor que lhe passaram é o total sem os descontos
…, o servidor acabava encostando os favorecidos na parede. A informação final, de que o dinheiro seria recolhido caso não fosse aceito, a pá de cal. Endividados até o pescoço por conta do recebimento futuro, os voluntários não tinham escapatória. Metiam o dedo ou o jamegão no recibo e pronto, dinheirinho na mão. Ficava, entretanto, nos heróis da guerra, aquele travo amargo de quem pressente que foi passado para trás. Sentimento que ficou mais forte com os visíveis sinais de riqueza mostrados pelo pagador.
De fato! Logo após a liquidação do bônus, funcionário e família passaram a ostentar um nível de vida bem diferente daquele que levavam antes da realização da tarefa. Roupas novas, botinas de marca, cavalos de raça, relógios e colares de ouro e diamantes, uma chácara, entre outras utilidades, passaram a fazer parte do portfólio dos bens da família. Como a tentação de gastar dinheiro em excesso é pior que comichão coçada, não para, o novo rico resolveu construir uma casa. Não uma casa qualquer, daquelas de parede e meia e de adobe, comuns na cidade, que dessas já tinha. Uma nova casa, soberana e isolada em um imenso terreno, digna de um cidadão endinheirado. Semelhante ou melhor que aquelas dos coronéis donos de usinas de açúcar e charqueadas. Decidido e escolhido o local, o novo casarão ergueu-se às margens do rio Coxipó. Enorme, com eiras e beiras, janelas e portas bordadas. O edifício solitário era orgulho do novo rico. Tanto que para comemorar o feito o donatário resolveu fazer com a família uma viagem até a terra natal, enquanto os carpinteiros cuidavam das mobílias.
Foi o seu erro!
A imensa construção recém-caiada inspirou e estimulou a desforra. Ainda na lancha os viajantes, na calada da noite, um vate anônimo, precursor dos atuais grafiteiros, escreveu no oitão da mansão, com carvão e em letras garrafais, a estrofe fatídica:
ESTA CA-Z-A-ZÁ
FOI FEI-T-A-TÁ
COM GRA-N-A-NÁ
DE PATRIO-T-A-TÁ
Exposto, até a volta do proprietário, como se fosse um gigantesco outdoor extemporâneo, o verso, mnemônico e hilário, caiu na boca do povo. A quadra, recitada por toda parte da cidade, repercutiu tão fortemente na comunidade que o Governo se viu obrigado a punir o estroina.
O alto escalão
foi transferido para uma cidadezinha nos confins do Estado. Impedido, assim, de usufruir da casa sonhada.
A vingança do bardo da parede, consumada.¹
_____________
1Nota do autor: O episódio relatado, e o descalabro em que vive a nação, com as graves denúncias de desvios de dinheiro público, me levaram a pensar: será que não estariam a nos faltar os poetas?
O fim da picada
Era dia de festa na casa de Filogônio Pereira. Seu Filó, como era conhecido.
Chegara finalmente, trazido pelo vapor, o esperado automóvel Ford modelo T, comprado há meses em uma casa importadora.
Vermelho com para-lamas preto e capotinha de lona, o conversível, sem dúvida, uma graça, ícone dos ricaços à época. Garboso com a aquisição, Filó e família sonhavam com as possibilidades.
Entre as muitas possíveis, passeios pela cidade nas casas das comadres. Participação no Corso (imagina), com as duas filhas mocinhas, viagem à fazenda e umas escapadinhas suspeitas do patrão, que de ferro ninguém é. Todos, excitadíssimos.
Desembarcada, experimentada e aprovada a fubica, uma volta com a família, com direito a uma paradinha em frente do Palácio do Governo e da Catedral, com fotos de lambe-lambe e o fom-fom da buzina para chamar a atenção do povo, selaram a afeição.
Daí por diante nada mais justo que a realização dos sonhos de consumo.
Por isso mesmo, Filó, exultante com a máquina – e sua habilidade de chofer –, numa calorenta tarde de sexta-feira, resolveu e determinou:
— No fim de semana vamos para a fazenda todos. De automóvel – complementou.
Acompanhou a sentença os ‘vivaaa, vivaaa’ da família, curiosa e ansiosa pela aventura prometida.
No fundo mesmo, o desejo de Filó era exibir a novidade aos vizinhos, ainda usuários de charretes. Imagina só!.
Na mesma tarde do anúncio, dona Ondina, esposa de seu Filó, acionou as cozinheiras.
Viagem para a fazenda incluía, entre outras coisas, a matula no córrego Traíras – farofa de galinha, bananinha e rapadura –, o acepipe preferido de Filó, sabia a esposa. Distante léguas da cidade, alcançar a propriedade demorava um dia inteiro… Isso quando o roteiro é feito a cavalo ou de charrete, como de costume. Daí a necessidade da matula.
Preparativos terminados, carro carregado, barra do dia ainda tímida, sai a caravana motorizada rumo ao seu destino, Fazenda Princesa do Norte, a soberana da cachaça, rezava seu mote, o melhor produto do engenho da propriedade.
No banco da frente, Seu Filó ao volante e dona Ondina, garbosa e feliz, com os braços apoiados na janela da porta, forma de mostrar importância.
Atrás, aboletadas no banco traseiro, as duas filhas, Sebastiana e Selene, assanhadíssimas com a novidade, dando gritinhos e tchauzinhos aos passantes.
Assim, alegre e feliz, seguiu a comitiva para seu destino.
A chegada ao Traíras, às 8 horas, foi comemorada.
— Papagaio! – exclamava Selene – Mais rápido que um raio!
— Sinais dos tempos – reafirmava Filó, mostrando assombro e júbilo com a velocidade do veículo.
A chegada intempestiva ao córrego não atrapalhou os planos da refeição.
A matula, um hábito arraigado. A farofa de galinha, irrecusável. Por isso, mesmo fora de hora pararam e comeram o delicioso quitute. Com a pertinente observação de dona Ondina de que o almoço virou quebra-torto
, depois lavaram e se fartaram nas águas do riacho.
Estômago satisfeito, sede saciada, viagem continuada.
Só uma diferença notável. Dali, dos Traíras em diante, o percurso se dava pela planície pantaneira. Na estradinha de chão, naquele chuvoso mês de novembro, centenas de poças d’água salpicavam a via.
Por causa delas um fenômeno jamais visto se fez notado.
É que os pneus, ao passarem nas poças, levantavam uma cortina de água nunca vista, que brilhava ao sol à semelhança de um arco-íris, e dava origem a um barulhinho esquisito e suave, chuuuááááá…
Um espetáculo que encheu de alegria e curiosidade os passageiros. As filhas, com gritinhos e palmas, alegria e espanto. Os pais, mais contidos, apreciando calados, mas emocionados com a novidade.
Daí, o incentivo das meninas para fazer o carrinho passar por todas as poças, obedecidas por seu Filó. Até a velocidade foi aumentada para sublimar o efeito.
Seguia, assim, rumo ao engenho, a família num alegre e feliz zig zag de caça-poças, aos aissss e uiiisss das filhas e o fom-fom da buzina, uma concessão de Filó à sua época de criança.
É certo dizer que tudo terminaria às mil maravilhas não fosse o ‘porém’…
Aqui, o todavia se apresentou na forma de uma poça.
Aliás, a última, que a caravana do fordinho já próxima da porteira da fazenda.
Ali, já à vista dos moradores da Princesa do Norte, uma poça com ares de inocente, uma aguinha esparramada de uns três metros de diâmetro, verde de musgo, convidava Filó a uma exibição de gala para os agregados.
Empolgado com o êxito da viagem e o espetáculo das águas, Filó caprichou na demonstração. Acelerou o fordinho, no último, e adentrou na poça.
Deu-se, então, o desboque!
A pocinha
era, na verdade, um reservatório de lama e lodo. Armadilha cevada pelo carro de boi que passava por ali todo santo dia carregado de cana. As patas das juntas e a roda de pau construíram, lentamente, o poço fatal.
Por isso, das águas musguentas não brotou nem cortina
nem chuá
, como esperado. O que se viu e ouviu foi um ploft e uma ducha de lama que quase cobriu a fubica. Atolada a viatura! Aliás, atoladíssima, que o afundamento do veículo só parou quando alcançado o chassi. Começava ali a família Pereira a descobrir que o progresso tem um custo.
Ainda tentando entender o que acontecera, seu Filó resolveu arriscar uma manobra para escapar da arapuca: engatou uma prima e acelerou o fordeco.
Pra quê! Com a roda deslizando no lodo, o giro solto do pneu fez voar lama pra tudo quanto é lado. As filhas, já fora do carro, envolvidas numa ducha de barro e folhas podres, ficaram irreconhecíveis, como se fossem bonecas de barro, chorando dispararam para a casa-grande, acompanhadas da mãe que escoltava a dupla com palavras de consolo.
Seu Filó começava a dar