Maculada Odete
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Sobre este e-book
A aventura de Odete tem encantado e assustado leitores de todo o mundo.
Por sua determinação, teimosia e espírito empreendedor, o escritor Rogério Sacchi de Frontin assumiu os riscos e publicou os ebooks Maculada Odete e Tainted Odete.
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Maculada Odete - Rogério Sacchi de Frontin
VII
Capítulo I
Foram três anos de intensa paixão: de 1915 a 1918 – neste último ano, veio a falecer, na terra que foi sua derradeira razão de viver, o médico sanitarista Miguel Pereira, sem imaginar, talvez, que a grata Vila da Estiva e parte de seus arredores seriam, após 1920, reconhecidos pelo seu nome. O homem que pesquisava e combatia as doenças tropicais; que, na mocidade, pegou nas armas para lutar por um Brasil republicano; que, insanamente, queimou os originais de seu Tratado de Clínica Médica ao saber que fora acometido por doença incurável; ali estaria imortalizado. Bom pararmos por aí, pois não se trata aqui de uma biografia, mas do registro necessário de um sentimento visceralmente telúrico. Amar mais à terra que ao homem: este é o princípio de uma guerra que só termina quando, finalmente, somos transformados em carne a ser dada aos vermes, cuja tarefa é decompor os tecidos que ousamos vislumbrar, por alguns momentos da vida, como eternos. Para o ar que respiramos agradecidos e seguros, devolveremos gases mal cheirosos; para a terra, menos mal, seremos nutrientes.
Em função disso, é preciso que não nos enganemos com o jeito bucólico e pacato daquelas paragens – os seres sensíveis entendem que lá existam vísceras servindo há séculos para digerir a má história, armazenadas como excreta nas fontes, nascentes e lagos, entranhadas nos sulcos de um solo tantas vezes ressuscitado. A Serra do Tinguá respira com dificuldade, embora não se deixe mumificar. De suas largas narinas, sai um ar fresco, às vezes gélido, que torna mais leve o fardo carregado pelas montanhas de costas quase peladas.
As fazendas da Serra do Tinguá e de toda região do Vale do Paraíba tinham nome: Fazenda de Nossa Senhora da Piedade de Vera Cruz, Monte Alegre, Palmeiras, Pau Grande – uns mais lembrados, outros esquecidos. Porém, a década de 40 do século XIX anda tão fresca, tão nítida que se pode evocá-la e ouvir o canto das sabiás-cica em seu verde profundo buscando flores tenras para alimento, o chilreio dos araçaris coloridos alvoroçados pelo bananal, as águas lavando as pedras, as capivaras banhando-se ao rio, e o roçado, e os seixos agarrados aos dentes de um ancinho.
Um golpe de tambor abre o cântico triste de vozes torturadas, gargantas inflamadas, respiração arfante – na pele, lanhos e pústulas. Os pés negros em casco pisam a terra vermelha, afofam-na. Revolver para semear o café - pés de lama, pés que topam nas pedras que se lavam, as farpas encontram-nos em pequenos e dolorosos cortes. É o sangue a nutrir a riqueza de um ciclo, para uns tão belo quanto aquelas paisagens de plantas rasteiras que dão repouso aos olhos e adormecem as almas predispostas ao ócio.
(***)
Abrem-se as grandes portas de madeira entalhadas da igreja, com pórtico de mármore. Eis a voz do seu amado: Leopoldo Gusmão de Castro. Ele ri frouxamente e beija a boca de Luana de Albuquerque Dacotta, menina que conheceu aos dezessete anos. De mochilas nas costas ou de malas de rodinha, eles transpuseram montes, saltaram colinas, sentaram-se aos cafés do Boulevard D`Italiens, fumaram haxixe no porto de Amsterdam e abocanharam hambúrgueres na Rua 55. O amor é animal, mas animal galhofeiro: gazelas, corças, micos dos condomínios cariocas que matam a sede nas bordas da piscina, onde nadam nus e fagueiros os jovens amantes. Ei-la por detrás do muro, a olhar pela janela, a espreitar através das grades - é a sociedade a abençoar esta união. O padre, exulto, chama a palavra do Senhor:
"Levanta-te, minha amada, formosa minha, e vem. Minha pomba, escondida nas fendas dos rochedos, ao abrigo das encostas escarpadas, mostra-me o teu rosto, deixa-me ouvir a tua voz. A tua voz é suave e o teu rosto é encantador. O meu amado é para mim e eu sou para ele. Ele disse-me: grava-me como um selo no teu coração, como um selo no teu braço, porque o amor é forte como a morte e a paixão é violenta como o abismo. Os seus ardores são setas de fogo, são chamas do senhor. As águas torrenciais não podem apagar o amor, nem os rios o podem submergir."
A Igreja de São Francisco de Paula está cheia de convidados. As senhoras mais clássicas exibem seus chapéus como se de Chanel o fossem; as senhoritas, tão orgulhosas quanto, abusam nas meias de cor e nas quase mini que mal que lhe tapam o terço da coxa – são damas do funk sem favela. Todas abençoadas, e os senhores em seus ternos pretos, cinzas, suas cuecas atochadas e gravatas vivazes, joviais. Também abençoados. E os joelhos das moças. Você reparou no daquela mulata? Uma perfeição que rivaliza com o altar-mor, obra do mestre Valentim.
Um grito de desespero, de dor lancinante, ecoa pelo salão de festas daquele hotel no Leblon. Leopoldo, tão criança, finge com realismo se enforcar com o nó de sua própria gravata. Seus amigos dão urras e jogam-no para o alto. O vinho branco do Reno, a cerveja alemã, o uísque inglês, a água mineral francesa regam o banquete. Luana, ao mesmo tempo em que admira aquela alegria quase infantil do noivo que, em breve, completaria 30 anos, está ansiosa por resgatá-lo. Figura, bizarro, maneiro – este é o ser com quem havia se casado – lindo, lábios finos, tez alaranjada e cabelo loiro avermelhado. Daqui a pouco, estariam dormindo no quarto