O telefone toca, frio
De Ivani Rossi
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Sobre este e-book
Brasileira ou Italiana, enfrentando situações conflitantes relativas à sua origem.
Em geral cria fantasia para as situações, mas para isso Milady, sua gata,
serve como alter ego. Madura decide ir em busca das suas raízes. A difícil
investigação é cheia de inconsistências. Escolhe um dos avôs, o paterno, para iniciar a
pesquisa na Itália e aprofundar as razões de sua vinda ao Brasil. Com raras
informações disponíveis de locais e datas, tanto da chegada ao Brasil como da saída
da Itália, após vários percalços, encontra a cidade onde o avô tinha nascido. Conhece
um jovem, parente distante, que lhe serve de guia e amante. O choque da descoberta
do vilarejo e restos de uma possível casa onde havia crescido é emocionalmente
impactante, mas agora, por fim, tem raízes e se sente parte de uma genealogia. Volta
ao Brasil acreditando ter resolvido a angústia de sua origem. Usufruindo, feliz, a nova
realidade recebe uma confissão inesperada.
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O telefone toca, frio - Ivani Rossi
Dedicada à Vincenzo e Salvatore
No meio do caminho desta vida
me descobri em uma selva escura,
pois a direita via era perdida.
(Divina Comédia — Dante Alighieri / Inferno — Canto I — primeira tercina / Editora Cia. das Letras)
Nel mezzo del cammin di nostra vita
mi ritrovai per una selva oscura
ché la diritta via era smarrita.
(Divina Commedia — Dante Alighieri /Inferno — Canto I — prima terzina/ Editora Cia das Letras)
Nota Explicativa
Entrei na vida de Angelina por puro acaso. Fui deixada por um ser humano implicante na porta de um apartamento. Eu tinha fome, frio. Quando aquela mulher, com olheiras profundas, cabelos revoltos, vestindo melancolia e blusa de lã, com fiapos aconchegantes — confesso que ajudei a criar alguns —, me viu, intuí um futuro. Ela até tentou se livrar de mim. Eu percebi que nos daríamos muito bem. Eu tinha certeza. E de imediato a entendi: ela era uma pessoa carente de afeto, companhia, alegria; confusa, indecisa. Boa pessoa. Tentou de um jeito bem atrapalhado e resmungando me alimentar. Achou que eu era um gato, nem parecia que na infância havia tido muitos animais de estimação, inclusive uma gata. Me deu um nome até descobrir estar errada. Por fim, me chamou de Milady. Gostei, fez jus à minha linhagem de felinos nobres, vindos do antigo Egito. Tive e tenho um papel importante, trazendo aquela cabeça cheia de fantasia à realidade: não tem sido fácil conviver com uma devaneadora por excelência. Desempenho meu papel com seriedade, tentando trazê-la de volta à realidade. Nem sempre consigo. Tem sido uma aventura compartilhar uma vida cheia de altos e baixos. Em alguns momentos implica comigo, mas tenho meus recursos para ignorá-la e fazê-la se arrepender, me pegando no colo, o que, por sinal, detesto, mas deixo porque sei que é o jeito dela se desculpar. Há momentos em que fico preocupada porque ela sofre por umas coisas que tento compreender, parecem bobagem; no entanto, respeito seu sofrimento. Seu encantamento quando descobre algo para montar seu esdrúxulo quebra-cabeças pessoal me faz sentir parte de seu mundo. Sua frustração me faz triplicar meus cuidados por ela. Eu também tenho meus problemas e tento resolver da melhor maneira, sem incomodá-la, mas confesso sentir muita falta de caçar um ratinho e levá-lo de presente para ela. Sobrou perseguir umas lagartixas magricelas, sem graça, e uns mosquitos irritantes. Não gosto nada quando ela me expulsa da cama para namorar. Se bem que nesse quesito ela é até bem-comportada. Procuro entender. Entendo. Não muito. Quero por fim afirmar que tenho cumprido muito bem minha missão. E a da Angelina? Ah! Essa eu não sei dizer.
Milady
1
Angelina mal consegue sair do labirinto, conectar fatos, histórias, novidades; apoia a cabeça nas mãos com veias saltadas: flutua na repentina notícia, agora um novo desafio, e nem sabe por onde começar. Desestruturada, desenraizada, de novo. Nem consegue apreciar a chegada de Giovani. Milady pula em seu colo, encosta suavemente a cabeça em seu pescoço, seu rabo faz movimentos lentos, se aninha, com autoridade sussurra: respire, tenha calma, a vida é cheia de surpresas, não é mesmo?
Três anos antes ela havia entrado no jogo de enigmas, uma estrada de curvas desconhecidas, pelo desejo de conhecer a origem dos avós. Tantos desejos não atendidos, tantas noites insones. Quando comentava com amigos, eles a incentivavam a buscar a cidadania italiana, mas não era isso. Desejava mapear e compreender a ascendência da família, curiosa por conhecer o nome dos bisavôs, fincar raízes e resolver a angústia de não se sentir nem brasileira nem italiana. O atual fluxo de refugiados, as notícias trágicas de mortes de famílias fugindo para uma vida diferente têm influenciado sua aparente tranquilidade.
Inquieta, começou a busca pela família paterna, agitando-a com perguntas, e dela recebia insignificantes pistas. Escolheu a pesquisa pelo avô paterno, Vicenzo Santini, morto quando ela sequer havia nascido. Cresceu com percepção, desvinculada da realidade, de um homem sisudo, cantor, bon vivant. Decerto por esse lado da família de cultivar os hábitos italianos. Deliciava-se com avó Ângela Gioda Santini — a nona — ao conversar num dialeto musical, quase inacessível. Identificava-se com as canções napolitanas, com o bom humor constante do pai e dos tios Santini ou por admirar o pai tocando violão acompanhando os irmãos nas tarantelas ou trechos de ópera, como o Barbeiro de Sevilha.
Longe de ser um patriarcado, as mulheres eram as mandonas. De pouco falar, intensas e, sem pudor, ciumentas. Nada sutis nos comandos. Quando uma pergunta sobre Vicenzo Santini soava descabida, os parentes ignoravam o assunto. Uma caixa de Pandora embrulhada e jogada ao mar. Imperativo encontrar os escassos instantâneos e caracterizar o lado desse avô. No início conseguiu, com um dos tios, algumas fotos e um bilhete envelhecido com dois nomes, Capo Nino e Giulieta. Os avós teriam vindo de Castellammare ou Castellabate, na comuna de Salerno, perto do Vesúvio. Era tudo. Os raros trechos de história aguçavam a fantasia de Angelina, sonhadora desde criança, como se um anjo meio colorido, meio cinza andasse ao seu lado, soprando possibilidades.
Mesmo jovem, percebia ao seu redor uma névoa e gastava um tempo ao declarar sua nacionalidade; o desejo era sorrir e se declarar: italiana. Criança, costumava desenhar árvores com raízes fragmentadas, mas ninguém na família havia se interessado por seu significado. Por ser temporã, nunca teve chance de ouvir, com detalhes, as histórias da família. Suspira, afasta os cabelos finos, de fios dourados e escassos, cobrindo, em parte, seus olhos azuis irrequietos; mignon, comparada aos irmãos, tez clara e carinha expressiva, como dizia Josefina. Era a tia-
-avó calabresa, que, junto com o irmão Salvatore, seu avô paterno e a mãe, Isabela, viajou para o Brasil, por conta própria, na falta de notícias prometidas pelo marido; ela, ao chegar, descobriu estar casado com outra mulher e, em desespero, atirou-se do viaduto do Chá.
Retira de uma caixa um envelope abarrotado de fotos: antigas, com pouca identificação, ampliadas, esmaecidas, três por quatro; das primas, com olhares de enjoo, ajoelhadas para celebrar a primeira eucaristia; do irmão, olhar malandro exibindo o diploma, embaralhadas com outras recentes; de festas familiares; do casamento de um compadre numa igreja famosa do interior, a mãe de óculos estilo retrô, segurando a cauda do vestido da noiva — um
charme —; vários rolos de negativos manchados, slides escapando das molduras encardidas, recortes velhos de jornais. Vem pensando em organizá-las por tema, data e local da foto, mas ao iniciar interrompe após dez minutos, interessando-se por outra coisa.
Ao começar a separá-las, a gata Milady se espreguiça; em seguida, arranha e espalha com as patas, sem se importar, as imagens embaralhadas, e irônica diz para sua dona: você arrumar? deixe isso pra lá, jogue uma bolinha de lã pra eu me divertir! Afaga a gata; pelo negro intenso, com um olho verde e outro índigo, que se fecham de prazer.
Milady havia chegado à sua casa num dia de manhã abafada, prenúncio de tempestade. Acordara cedo para trabalhar em casa — escolhera viver sozinha depois de ser chacoalhada pelo tsunami de um divórcio, simultâneo ao desmanche da empresa possuída —, quando ouve um ruído na porta de entrada. Levanta-se franzindo a testa e, ao abrir a porta, vê um ser, com olhos brilhantes, estampados no piche. Instintivamente, abaixa-se e pega com cuidado, aproximando-o de seu peito, e ele se aninha, trêmulo, levanta a cabeça e a olha ferino amigo. Não tem tempo nem de ficar com um gato; se tivesse, teria preguiça de um novo compromisso.
Depois da tempestade emocional, preza ter se livrado das obrigações diárias. O ex-marido chegou sedutor,