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O manuscrito
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E-book485 páginas9 horas

O manuscrito

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Sobre este e-book

Da autora best-seller de 10 minutos e 38 segundos neste mundo estranho e A ilha das árvores perdidas
Ella não está nem um pouco feliz com o caminho que seguiu até agora. Aos quarenta anos, em um casamento fracassado, está perdida e frustrada. Mas, ao ser contratada em uma agência literária, o primeiro manuscrito com o qual tem contato se torna responsável por mudar sua vida completamente, levando-a a embarcar em uma jornada espiritual guiada por Rumi, um religioso famoso por seus sermões, e Shams, um dervixe sábio, que preenchem as páginas do romance de um misterioso escritor.
De uma das vozes mais potentes da literatura contemporânea Elif Shafak, O manuscrito disseca uma narrativa sobretudo sobre amor e propósito, e uma mulher que enfim encontra o caminho de volta para si.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento17 de jun. de 2024
ISBN9786560051737
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    O manuscrito - Elif Shafak

    Ella

    Northampton, 17 de maio de 2008

    Os pássaros cantavam diante da janela da cozinha naquele dia úmido de primavera. No futuro, Ella lembraria da cena tantas vezes que não pareceria um fragmento do passado, mas algo que estivesse acontecendo naquele exato instante em algum lugar do universo.

    Ali estavam eles, sentados em torno da mesa, almoçando em família naquela tarde de domingo. O marido enchia o próprio prato de coxas de frango fritas, sua comida predileta. Avi brincava com o garfo e a faca como se fossem baquetas, enquanto sua irmã gêmea, Orly, calculava quantas colheres de comida poderia ingerir sem arruinar a dieta de 650 calorias por dia. Jeannette, que era caloura na Mount Holyoke College, ali perto, parecia perdida em seus pensamentos, passando cream cheese em mais uma fatia de pão. Estava também à mesa a tia Esther, que passara para deixar um de seus famosos bolos marmorizados e acabara ficando para o almoço. Ella teria muito trabalho a fazer depois, mas por enquanto não estava querendo sair da mesa. Eles não haviam tido muitas refeições familiares ultimamente, e ela via naquilo uma ótima chance de se reconectarem.

    — Esther, Ella já te contou a boa notícia? — perguntou David de repente. — Ela arrumou um excelente emprego.

    Embora tivesse se formado em Literatura Inglesa e adorasse obras de ficção, Ella não chegara a fazer muita coisa nessa área depois da universidade, além de publicar pequenos artigos em revistas femininas, participar de clubes de leitura e ocasionalmente escrever resenhas para alguns jornais locais. Mais nada. Houve um tempo em que ela sonhara em se tornar uma crítica literária importante, mas tinha aceitado que a vida a levara em outra direção, transformando-a em uma ótima dona de casa, com três filhos e infindáveis responsabilidades domésticas.

    Não que ela reclamasse. Ser mãe, esposa, passear com o cachorro e cuidar da casa já eram ocupação suficiente. Ela não tinha necessidade de ganhar o pão de cada dia além de tudo isso. Embora nenhuma de suas amigas feministas da Smith College aprovasse a escolha, Ella estava satisfeita em ser dona de casa, e agradecia por ela e o marido poderem bancar essa situação. Além disso, ela jamais abandonara sua paixão por livros e ainda se considerava uma leitora voraz.

    Alguns anos antes, as coisas haviam começado a mudar. As crianças estavam crescendo, deixando claro que já não precisavam tanto dela como antes. Ao perceber que tinha muito tempo vago, e ninguém para preenchê-lo, Ella começara a pensar em como seria se arrumasse um emprego. David a encorajara, mas, mesmo conversando sempre sobre o assunto, ela nunca procurava aproveitar as oportunidades que surgiam; e, quando isso acontecia, os potenciais empregadores sempre estavam à procura de alguém mais jovem ou com mais experiência. Temendo ser rejeitada vez após outra, ela deixou o assunto para lá.

    Porém, em maio de 2008, todos os obstáculos que a tinham impedido de arrumar um emprego desapareceram de repente. Duas semanas antes de seu aniversário de quarenta anos, Ella se viu trabalhando para uma agência literária de Boston. Foi o marido que arranjou o emprego, através de um de seus clientes — ou, quem sabe, através de uma das amantes.

    — Ah, é bobagem. — Ella se apressou em explicar. — Vou trabalhar meio expediente, avaliando originais para uma agência literária.

    Mas David parecia empenhado em não deixar que ela menosprezasse o novo emprego.

    — Ah, não, Ella, conte para eles que é uma agência muito conceituada — exigiu, cutucando-a.

    E, quando ela se recusou a obedecer, ele concordou entusiasticamente consigo mesmo, prosseguindo:

    — É um lugar de grande prestígio, Esther. Você precisava ver os outros assistentes! São jovens recém-saídos das melhores universidades. Ella é a única que está voltando a trabalhar depois de anos sendo dona de casa. Vamos lá, Ella, não seja modesta.

    Ella se perguntou se, lá no fundo, o marido não se sentia culpado por tê-la afastado da carreira, ou por traí-la — porque essas eram as únicas explicações que via para entender tanto entusiasmo da parte dele.

    Ainda sorrindo, David concluiu:

    — É o que eu chamo de chutzpah! Estamos todos muito orgulhosos dela.

    — Ela é muito especial. Sempre foi — disse tia Esther, com uma voz tão emocionada que pareceu que Ella tinha deixado a mesa e iria embora para sempre.

    Todos a fitaram com um olhar carinhoso. Nem mesmo Avi fez um comentário sarcástico, e, por um momento, até Orly pareceu ligar para outra coisa que não fosse a própria aparência. Ella se esforçou para apreciar aquele momento de gentileza, mas sentiu uma exaustão que jamais experimentara. Secretamente, rezou para que alguém mudasse de assunto.

    Jeannette, a filha mais velha, deve ter ouvido suas preces, porque de repente exclamou:

    — Também tenho uma boa notícia!

    Todos se voltaram para ela, as expressões radiantes de expectativa.

    — Scott e eu decidimos nos casar — anunciou a jovem. — Ah, já sei o que vocês vão dizer! Que ainda não terminamos a faculdade e tudo o mais, mas precisam entender que nós nos sentimos prontos para dar esse passo.

    Um silêncio constrangido se abateu sobre a cozinha, enquanto a sensação calorosa, que até pouco pairava sobre todos, se evaporou. Orly e Avi trocaram olhares espantados, e tia Esther ficou paralisada, com a mão segurando firme um copo de suco de maçã. David pôs o garfo de lado como se tivesse perdido o apetite e perscrutou Jeannette, os olhos castanho-claros cheios de rugas causadas por sorrisos. No entanto, naquele momento, ele estava longe de sorrir. A boca se contraíra, como se ele tivesse acabado de beber um gole de vinagre.

    — Que ótimo! Achei que vocês iam ficar tão felizes quanto eu, mas em vez disso me vêm com essa frieza toda — choramingou Jeannette.

    — Você acabou de dizer que vai se casar — retrucou David, como se Jeannette não soubesse o que acabara de dizer e precisasse ser informada.

    — Papai, eu sei que parece um pouco cedo, mas Scott me pediu em casamento outro dia, e eu aceitei.

    — Mas por quê? — perguntou Ella.

    Pelo jeito com que Jeannette a encarou, pensou a mãe, essa não era a pergunta esperada. A filha preferia que ela tivesse perguntado quando? ou como?. Em qualquer um desses casos, significaria que ela já podia começar a procurar um vestido de noiva. A pergunta por quê? foi algo bem diferente, e a deixara completamente sem ação.

    — Porque eu o amo, acho — respondeu Jeannette, com uma leve condescendência.

    — Meu bem, o que eu quis dizer foi: por que a pressa? — insistiu Ella. — Você está grávida?

    Tia Esther se mexeu na cadeira, o rosto tenso, a angústia visível. Tirou um tablete de antiácido do bolso e começou a mastigá-lo.

    — Eu vou ser titio — disse Avi, dando um risinho.

    Ella segurou a mão de Jeannette e apertou com carinho.

    — Você pode nos contar a verdade, sempre. Sabe disso, não sabe? Nós sempre vamos ficar do seu lado.

    — Mãe, quer parar com isso? — repreendeu Jeannette, puxando a mão. — Não tem nada a ver com gravidez. Você está me deixando sem graça.

    — Só estou tentando ajudar — respondeu Ella, com toda a calma, sendo que a calma era um estado de espírito cada vez mais difícil ultimamente.

    — Mas está me insultando. Pelo visto, acha que a única maneira de Scott e eu nos casarmos seria se eu tivesse grávida! Por acaso já lhe ocorreu que eu poderia, simplesmente, querer casar com o meu namorado porque estou apaixonada por ele? Nós já estamos juntos há oito meses.

    A hipótese fez Ella dar uma risada.

    — Ah, claro, dá para conhecer muito bem o caráter de um homem em oito meses! Seu pai e eu estamos casados há vinte anos, e nem assim podemos dizer que sabemos tudo sobre o outro. Oito meses de relacionamento é quase nada!

    — Deus só precisou de seis dias para criar o universo inteiro — disse Avi, empertigando-se, mas os olhares gélidos de todos à mesa fizeram com que ele voltasse a ficar em silêncio.

    Percebendo que a tensão aumentava, David interveio, com os olhos fixos na filha mais velha e a testa franzida, como se estivesse preocupado.

    — Meu anjo, o que sua mãe está querendo dizer é que namoro é uma coisa, e casamento é outra bem diferente.

    — Mas, papai, você acha que nós íamos ficar namorando eternamente? — perguntou Jeannette.

    Depois de respirar fundo, Ella falou:

    — Para ser bem sincera, nós esperávamos que você deixasse esse namoro de lado. Você é jovem demais para se envolver num relacionamento sério.

    — Sabe o que eu acho, mãe? — disse Jeannette, com uma voz tão neutra que soa­va irreconhecível. — Acho que você está projetando seus próprios medos em mim. Só porque você se casou muito jovem e teve filho com a idade que tenho hoje, não significa que eu vou cometer o mesmo erro.

    Ella ficou vermelha, como se tivesse levado um tapa. Lá no fundo, lembrou-se da gravidez difícil, que resultara no nascimento prematuro de Jeannette. Quando bebê, e depois quando criança, Jeannette drenara toda sua energia, e fora por isso que ela esperara seis anos antes de engravidar outra vez.

    — Meu bem, nós ficamos felizes por você quando começou a namorar o Scott — disse David, cauteloso, tentando uma estratégia diferente. — Ele é muito simpático. Mas como podemos ter certeza de que você vai continuar com os mesmos planos depois de formada? Pode ser que até lá as coisas mudem muito.

    Jeannette fez um leve gesto de cabeça, como se concordasse apenas para ser gentil. E então falou:

    — Tudo isso é pelo fato de Scott não ser judeu?

    David revirou os olhos, incrédulo. Sempre se orgulhara de ser um pai evoluído e de mente aberta, que evitava comentários negativos sobre raça, religião ou gênero em casa.

    Mas Jeannette não desistiu. Virou-se para a mãe e perguntou:

    — Você tem coragem de me olhar nos olhos e dizer que faria as mesmas objeções se Scott fosse um jovem judeu chamado Aaron?

    A voz dela estava imersa em amargura e sarcasmo, e Ella temeu que houvesse mais daqueles sentimentos prestes a transbordar da filha.

    — Meu bem, eu vou ser completamente honesta, mesmo que você não goste. Eu sei bem como é maravilhoso ser jovem e estar apaixonada. Pode acreditar que eu sei. Mas se casar com alguém de origem diferente da sua é uma loteria. E, como seus pais, nós queremos ter certeza de que você está fazendo a escolha certa.

    — E como você sabe se o que é certo pra você também é certo pra mim?

    A pergunta desconcertou a mãe. Ella deu um suspiro e massageou a testa, como se estivesse começando a ter dor de cabeça.

    — Eu amo o Scott, mãe. Isso significa alguma coisa para você? Por acaso ainda se lembra da palavra amor? Ele faz meu coração bater mais forte. Eu não consigo viver sem ele.

    Ella se ouviu dando um risinho. Não era sua intenção debochar dos sentimentos da filha, de jeito nenhum, mas talvez aquilo significasse que estava rindo de si mesma. Por razões que desconhecia, estava muito nervosa. Já tivera discussões com Jeannette antes, centenas de vezes, mas parecia que estava tendo uma discussão diferente, algo maior.

    — Mãe, alguma vez você se apaixonou? — falou Jeannette, com uma pontinha de desprezo.

    — Ah, dê um tempo! Pare de sonhar acordada e caia na real, está bem? Você está sendo tão… — disse Ella, indo até a janela em busca de uma palavra dramática. Por fim, encontrou: — Tão romântica!

    — E o que há de errado em ser romântica? — questionou Jeannette, parecendo ofendida.

    De fato, o que havia de errado em ser romântica?, perguntou-se Ella. Desde quando o romantismo a incomodava tanto? Sem conseguir resposta para as perguntas que se acumulavam no fundo de sua mente, ela respondeu:

    — Ah, minha filha. Em que século você vive? Ponha isso na sua cabeça: as mulheres não se casam com os homens por quem se apaixonam. Na hora H, elas escolhem um homem que será um bom pai e um marido confiável. O amor não passa de um doce sentimento passageiro.

    Quando terminou de falar, Ella virou-se para o marido. David havia unido as mãos à frente em um movimento lento, como se estivessem debaixo d’água, e olhava para ela como se nunca a tivesse visto em toda a vida.

    — Sei muito bem por que você está fazendo isso — retrucou Jeannette. — Você tem inveja da minha felicidade e da minha juventude. Quer que eu me torne uma esposa infeliz. Você quer que eu seja você, mãe.

    Ella foi tomada por uma sensação estranha na boca do estômago, como se uma pedra gigante o esmagasse. Ela era uma esposa infeliz? Mãe de meia-idade, presa na armadilha de um casamento falido? Era assim que os filhos a viam? E o marido também? E o que pensariam os amigos e vizinhos? De repente, teve a impressão de que todos tinham pena dela, e essa suspeita foi tão dolorosa que ela arfou.

    — Peça desculpas à sua mãe — ordenou David, virando-se para a filha com a testa franzida.

    — Tudo bem. Eu não espero desculpas — disse Ella, desapontada.

    Jeannette deu um sorriso sarcástico para a mãe, e, em seguida, empurrou a cadeira para trás, jogou o guardanapo na mesa e saiu da cozinha. Passado um instante, Orly e Avi a seguiram em silêncio, ou por solidariedade à irmã mais velha, ou porque estavam cansados daquela conversa de adultos. A próxima a sair foi tia Esther, murmurando uma desculpa qualquer e mastigando com força seu último tablete de antiácido.

    David e Ella ficaram sentados, um constrangimento enorme dominando o silêncio entre os dois. Ella lamentava muito ter que enfrentar aquele vazio, pois ambos sabiam que aquilo nada tinha a ver com Jeannette ou com qualquer um dos filhos.

    David pegou o garfo que deixara de lado e ficou olhando para ele por um tempo.

    — Então eu devo concluir que você não se casou com o homem que amava?

    — Ah, por favor. Não foi isso que eu quis dizer.

    — E o que foi, então? — disse David, ainda conversando com o garfo. — Eu achava que você estava apaixonada por mim quando nos casamos.

    — Eu estava apaixonada por você — respondeu Ella. Mas não conseguiu deixar de acrescentar: — Naquela época.

    — E quando foi que você parou de me amar? — insistiu David, contido.

    Ella olhou espantada para o marido, como alguém que se vê diante de um espelho sem nunca ter olhado a própria imagem. Ela deixara de amá-lo? Era uma pergunta que jamais se fizera. Queria poder responder, mas lhe faltavam a vontade e as palavras. Lá no fundo, sabia que era com si próprios que eles deviam se preocupar, não com os filhos. Mas, em vez disso, ambos vinham fazendo o que era sua especialidade: deixavam correr os dias, a rotina tomar conta, e o tempo seguir seu curso de torpor inevitável.

    Ella começou a chorar, sem conseguir conter a tristeza que sentia e que, sem ela saber, tornara-se parte de quem era. David virou o rosto angustiado para o outro lado. Sabiam que ele detestava vê-la chorar, tanto quanto ela odiava chorar na frente dele. Por sorte, o telefone tocou naquele momento, salvando-os.

    David atendeu.

    — Alô… está, está aqui, sim. Um momento, por favor.

    Ella se recompôs e falou, fazendo esforço para parecer animada:

    — Oi, sou eu.

    — Olá, aqui é a Michelle. Desculpe incomodar no fim de semana — disse uma mulher de voz jovial. — Ontem, Steve me pediu que checasse com você, e eu simplesmente esqueci. Por acaso chegou a começar a trabalhar no original?

    — Ah… — Ella suspirou, lembrando-se do trabalho que a esperava.

    Sua primeira tarefa na agência literária era ler um romance de um escritor europeu desconhecido. Depois, teria que escrever um extenso relatório sobre a obra.

    — Diga a ele para não se preocupar. Já comecei a leitura — mentiu Ella.

    Michelle, ambiciosa e cheia de iniciativa, era o tipo de pessoa que ela não queria contrariar, ainda mais em sua primeira responsabilidade.

    — Ah, ótimo! E que tal?

    Ella ficou parada, sem saber o que dizer. Não sabia nada sobre a obra, apenas que era um romance histórico baseado na vida do famoso poeta místico Rumi, que, segundo ficara sabendo, era considerado o Shakespeare do mundo islâmico.

    — Ah, é bem… místico — respondeu com uma risadinha, tentando disfarçar com uma brincadeira.

    Mas Michelle estava falando sério.

    — Certo — disse, sem rodeios. — Olhe, Ella, acho que você precisa começar a ler isso logo. Talvez seja necessário mais tempo do que você pensa para fazer um relatório sobre um romance como este…

    Michelle parou de falar, e Ella ouviu um murmúrio distante. Imaginou-a fazendo várias coisas ao mesmo tempo — checando e-mails, lendo uma resenha de um de seus autores, dando uma mordida no sanduíche de pasta de atum e pintando as unhas —, tudo enquanto falava ao telefone.

    — Oi? Você está me ouvindo? — perguntou Michelle um minuto depois.

    — Estou, claro.

    — Ótimo. Então ouça, aqui está uma loucura. Preciso desligar. Mas não esqueça que o prazo é de três semanas.

    A verdade era que Ella não tinha certeza se queria mesmo fazer a avaliação daquela obra. No início, sentira-se animada e confiante. Era instigante ser a primeira pessoa a ler uma obra ainda não publicada, escrita por um autor desconhecido, e desempenhar um papel, por menor que fosse, no destino dele. Mas agora já não tinha certeza se conseguiria se concentrar em um assunto tão irrelevante para sua vida quanto o sufismo e uma época tão distante quanto o século XIII.

    Michelle deve ter percebido sua hesitação.

    — Algum problema? — perguntou.

    Como não houve resposta, ela insistiu:

    — Ella, você pode confiar em mim.

    Depois de um breve silêncio, Ella decidiu contar a verdade.

    — Não, é que eu não tenho certeza se, atualmente, estou com cabeça para me concentrar em um romance histórico. Quer dizer, eu me interesso pelo Rumi e tudo o mais, mas, ainda assim, tenho pouca intimidade com o assunto. Talvez você pudesse me passar outro romance, alguma coisa com a qual eu me identifique mais, sabe?

    — Meio enviesada essa sua abordagem — retrucou Michelle. — Você acha que trabalharia melhor com livros sobre os quais tem mais conhecimento? De jeito nenhum! Só porque mora aqui, não vai querer publicar romances que se passam apenas em Massachusetts, não é?

    — Não foi isso que eu quis dizer… — disse Ella, dando-se conta, imediatamente, de que já usara a mesma frase várias vezes naquela noite.

    Olhou para o marido, para ver se ele também notara isso, mas a expressão de David era indecifrável.

    — Na maioria das vezes, lemos livros que não têm nada a ver com a nossa vida. Faz parte do trabalho. Esta semana eu terminei um livro escrito por uma iraniana que trabalhava num bordel em Teerã e teve que fugir do país. Você acha que eu devia ter dito a ela para mandar o livro para uma agência iraniana?

    — Não, claro que não — murmurou Ella, sentindo-se tola e culpada.

    — Conectar pessoas de diferentes terras e culturas é um dos pontos fortes da boa literatura, não é?

    — É claro. Olhe, esqueça o que eu disse, está bem? Você terá o relatório na sua mesa antes do prazo — prometeu Ella, odiando ­Michelle por tratá-la como se fosse a pessoa mais idiota do mundo, e odiando a si mesma por ter deixado isso acontecer.

    — Ótimo! É assim que se fala — incentivou Michelle, no tom de quem estava falando com uma criança. — Não me leve a mal, mas acho que você precisa ter em mente que há por aí dezenas de pessoas loucas para ter o seu emprego. E muitas delas têm metade da sua idade. Isso vai manter você motivada.

    Quando Ella desligou, viu que David a estava observando com uma expressão solene e reservada. Parecia estar esperando para recomeçar a conversa de onde tinham parado. Mas ela não estava com a menor vontade de continuar a discutir o futuro da filha, se é que fora essa sua preocupação.

    Mais tarde, naquele dia, Ella estava sentada sozinha na varanda, em sua cadeira de balanço preferida, observando o pôr do sol alaranjado de Northampton. O céu parecia tão próximo e aberto que ela achou que poderia tocá-lo. Sua cabeça se acalmara, como se cansada de todo o turbilhão que havia lá dentro. O pagamento da fatura do cartão de crédito, os maus hábitos alimentares de Orly, as péssimas notas de Avi, tia Esther e seus bolos deprimentes, a saúde decadente de Spirit, o cachorro, os planos de casamento de Jeannette, as escapulidas secretas do marido, a falta de amor em sua vida… Um a um, ela foi trancando os assuntos em pequenas caixas em sua mente.

    Com esse estado de espírito, Ella tirou o original do envelope e o equilibrou na mão, como se sentisse o peso. O título do romance estava escrito na capa, em azul: Doce blasfêmia.

    Não se sabia muita coisa sobre o autor — um certo A. Z. Zahara, que morava na Holanda. Os originais tinham sido enviados para a agência literária de Amsterdã, com um postal dentro do envelope. Na parte da frente do postal havia um campo de tulipas, com incríveis tons de rosa, amarelo e roxo, e, no verso, viera escrito, em uma caligrafia delicada:

    Prezado(a) senhor(a),

    Saudações de Amsterdã. A história que envio aos senhores se passa no século XIII, em Konya, na Ásia Menor. Mas acredito sinceramente que ela alcança diferentes países, culturas e séculos.

    Espero que encontrem tempo para ler DOCE BLASFÊMIA, um romance histórico, místico, sobre o fabuloso laço entre Rumi, o maior e mais reverenciado líder espiritual da história do Islã, e Shams de Tabriz, um dervixe desconhecido e nada convencional, repleto de escândalos e surpresas.

    Que o amor esteja sempre com vocês, e que sejam sempre rodeados por ele.

    A. Z. Zahara

    Ella imaginou que aquele cartão-postal havia despertado a curiosidade do agente literário. Mas Steve não era homem de ler obras de um escritor amador. Sendo assim, passara os originais para sua assistente, Michelle, que o repassara à nova funcionária dela. Foi assim que Doce blasfêmia acabara nas mãos de Ella.

    Mal sabia ela que aquilo não seria apenas mais um livro, e sim o livro, que transformaria sua vida. Enquanto o estivesse lendo, sua vida seria reescrita.

    Ella abriu na primeira página. Havia uma nota sobre o autor.

    Quando não está viajando pelo mundo, A. Z. Zahara vive em Amsterdã com seus livros, gatos e tartarugas. Doce blasfêmia é seu primeiro romance, e provavelmente o último. Ele não tem qualquer intenção de se tornar escritor; só escreveu este livro por causa de sua admiração e seu amor pelo grande filósofo, místico e poeta Rumi, e seu adorado sol, Shams de Tabriz.

    Os olhos dela correram para a linha de baixo, e Ella encontrou algo que lhe soou estranhamente familiar:

    Apesar do que se diz, o amor não é apenas um doce sentimento passageiro.

    Seu queixo caiu ao perceber a negação da frase que dissera para a filha na cozinha naquele mesmo dia. Por um instante, ficou imóvel, tremendo ao pensar que alguma misteriosa força do universo, ou mesmo o autor, fosse quem fosse, a estivesse espionando. Talvez ele tivesse escrito o livro sabendo, de antemão, que tipo de pessoa o leria primeiro. Esse escritor a tinha em mente, como leitora. Por alguma razão desconhecida, Ella achava essa hipótese tão perturbadora quanto empolgante.

    De muitas maneiras, o século XXI e o século XIII são parecidos. Ambos serão lembrados pela história como tempos de embates religiosos sem precedentes, desentendimentos culturais e por uma sensação geral de insegurança e medo do Outro. Em tempos como esses, o amor é mais necessário do que nunca.

    Uma súbita lufada de vento soprou na direção dela, forte e fresca, remexendo as folhas na varanda. A beleza do pôr do sol se dirigira para o horizonte a oeste, e o ar parecia parado, sem alegria.

    Porque o amor é a própria essência e o próprio sentido da vida. Como Rumi diz, ele toca a todos, incluindo aqueles que desprezam o amor — mesmo aqueles que usam a palavra romântico como um sinal de desaprovação.

    Ella estava tão perturbada quanto se tivesse lido: O amor toca a todos, mesmo uma dona de casa de meia-idade em Northampton chamada Ella Rubinstein.

    Seu instinto disse para pôr o manuscrito de lado, entrar em casa, ligar para Michelle e dizer a ela que não tinha a menor possibilidade de fazer um relatório sobre aquele livro. Mas, em vez disso, Ella respirou fundo, virou a página e começou a ler.

    Doce

    blasfêmia

    A. Z. ZAHARA

    Os místicos sufis dizem que o segredo do Alcorão está no verso Al-Fatiha

    E que o segredo de Al-Fatiha está em

    Bismillahirrahmanirrahim

    E que a quintessência de Bismillah é a letra ba,

    E que há um ponto abaixo dessa letra…

    O ponto abaixo do B engloba o universo inteiro…

    O Masnavi começa com B,

    Assim como todos os capítulos deste romance…

    Prefácio

    Bombardeado por lutas religiosas, disputas políticas e intermináveis guerras por poder, o século XIII foi um período turbulento na Anatólia. No Ocidente, as Cruzadas, a caminho de Jerusalém, ocuparam e saquearam Constantinopla, provocando a divisão do Império Bizantino. No Oriente, os altamente disciplinados exércitos mongóis se expandiram depressa, sob a liderança do gênio militar de Gengis Khan. Em meio a tudo isso, inúmeros povos turcos lutavam entre si, enquanto os bizantinos tentavam reaver seu território perdido, assim como seu poder e sua riqueza. Foi uma época de caos sem precedentes, quando cristãos luta­vam com cristãos, cristãos lutavam contra muçulmanos, e muçulmanos lutavam com muçulmanos. Para qualquer lugar que alguém se virasse, havia hostilidade, angústia e um medo enorme do que ainda poderia acontecer.

    Em meio a esse caos viveu um ilustre estudioso islâmico, conhecido como Jalal ad-Din Rumi. Apelidado de Maulana — Nosso Mestre — por muitos, ele tinha milhares de discípulos e admiradores em toda a região e além, e era considerado um exemplo por todos os muçulmanos.

    Em 1244, Rumi conheceu Shams — um dervixe itinerante, de hábitos pouco convencionais e declarações heréticas. Esse encontro mudou a vida de ambos. Ao mesmo tempo, marcou o começo de uma amizade sólida, única, que, nos séculos seguintes, os sufis passaram a comparar com a união de dois oceanos. Ao conhecer esse companheiro excepcional, Rumi se transformou, passando de clérigo comum a místico devoto, um poeta apaixonado, um pregador do amor, originando a dança dos dervixes rodopiantes e ousando romper com todas as regras. Em uma era tão repleta de fanatismos e disputas, ele se destacou por sua espiritualidade universal, abrindo caminho para pessoas com todo tipo de passado. Em vez de um jihad orientado para fora — definido como a guerra contra os infiéis e, naquela época, assim como hoje em dia, exercido por muitos, Rumi preconizava um jihad interior, cujo objetivo era lutar contra, e por fim vencer, o próprio ego, nafs.

    No entanto, nem todos receberam bem essas ideias, assim como nem todas as pessoas abrem seus corações para o amor. O forte laço espiritual entre Shams e Rumi se tornou alvo de boatos, calúnias e ataques. Eles foram incompreendidos, invejados, vilanizados e, por fim, traídos por aqueles que lhes eram mais próximos. Três anos depois de se conhecerem, foram tragicamente separados.

    Mas a história não acabou aí.

    Na verdade, não acabou nunca. Quase oitocentos anos depois, os espíritos de Shams e Rumi ainda hoje estão vivos, vagando no meio de nós, em algum lugar…

    O assassino

    Alexandria, novembro de 1252

    Baixado às águas escuras de um poço, ele está morto. Porém, seus olhos me seguem por onde ando, brilhantes e imponentes, como duas estrelas escuras, ameaçadoras, lá em cima no céu. Eu vim para Alexandria esperando que, se viajasse para bem longe, pudesse escapar dessa lembrança lancinante, e do lamento que ecoa dentro da minha mente, aquele último grito que ele deu antes que seu rosto se encharcasse de sangue, seus olhos se arregalassem e a garganta se fechasse em um soluço eterno, o adeus de um homem esfaqueado. O uivo de um lobo caído em uma armadilha.

    Quando se mata alguém, alguma coisa dessa pessoa passa para você — um suspiro, um cheiro, um gesto. Eu chamo isso de maldição da vítima. Ela se gruda ao seu corpo e se imiscui por sua pele, indo até o coração, e, assim, continua a viver com você. As pessoas que me veem na rua não conseguem enxergar isso, mas eu carrego comigo traços de todos os homens que matei. Uso-os em volta do meu pescoço como colares invisíveis, sentindo sua presença contra minha pele, pesada, sufocante. Embora seja algo desconfortável, eu me acostumei a carregar esse fardo, aceitando-o como parte do meu trabalho. Desde que Caim matou Abel, em todo assassino respira aquele que foi executado, sei disso muito bem. Não me perturba. Não mais. Então, por que será que fiquei tão perturbado depois daquele último acontecimento?

    Dessa vez, foi tudo diferente, desde o início. Por exemplo, a maneira como fui contratado para o trabalho. Ou, eu deveria dizer, a maneira como o trabalho veio até mim. No início da primavera de 1248, estava trabalhando para a dona de um bordel em Konya, uma hermafrodita famosa por sua fúria e braveza. Minha tarefa era ajudá-la a controlar as prostitutas e intimidar os clientes que não se comportassem bem.

    Lembro-me perfeitamente daquele dia. Eu estava caçando uma prostituta que tinha fugido do bordel para encontrar-se com Deus. Era uma bela jovem, de um tipo que me partia o coração, porque, quando a achasse, eu ia desfigurar seu rosto de um jeito que homem algum ia querer saber dela. Eu estava a ponto de agarrar a imbecil da mulher, quando encontrei um misterioso bilhete pregado na minha porta. Eu nunca aprendi a ler, por isso, levei o bilhete até a madraça, onde paguei a um estudante para que lesse para mim.

    Era uma carta anônima, assinada por alguns fiéis verdadeiros.

    Ficamos sabendo, de fonte segura, quem você é e de onde veio, dizia a carta. Um ex-membro da ordem dos Assassinos! Sabemos também que depois do assassinato de Haçane Saba e a prisão de seus líderes, a ordem já não é a mesma. Você veio a Konya para escapar da perseguição, e desde então está agindo disfarçado.

    A carta dizia que meus serviços eram necessários para um assunto de extrema importância. Garantia que o pagamento seria satisfatório. Fiquei interessado. Eu deveria me apresentar em uma taberna bem conhecida naquela noite, assim que escurecesse. Ao chegar lá, deveria me sentar à mesa mais próxima da janela, com as costas para a porta, a cabeça baixa, e os olhos fixos no chão. A pessoa ou as pessoas interessadas em me contratar logo se aproximariam. Elas me dariam todas as informações de que eu precisava. Nem quando elas chegassem ou saíssem, nem durante todo o tempo que durasse a conversa, eu deveria erguer a cabeça e olhar seus rostos.

    Era uma carta estranha. Mas, como sempre, eu estava acostumado a lidar com as peculiaridades dos clientes. Ao longo dos anos, tinha sido contratado por todo tipo de gente, e a maioria queria manter o nome em segredo. A experiência me ensinara que, na maior parte das vezes, quanto mais os clientes quisessem manter o anonimato, maior seria sua proximidade da vítima, mas eu não tinha nada a ver com isso. Meu ofício era matar, não ficar buscando motivos por trás da contratação. Desde que saí de Alamut, havia alguns anos, essa vinha sendo a vida que eu escolhera.

    De qualquer maneira, eu raramente faço perguntas. Por que faria? A maior parte dos seres humanos conhece ao menos uma pessoa da qual gostaria de se livrar. O fato de não o fazerem não significa, necessariamente, que sejam imunes à vontade de matar. Na verdade, todos temos dentro de nós a capacidade de matar, um dia. As pessoas não percebem isso até que aconteça com elas. Acham-se incapazes de cometer um assassinato. Mas é apenas uma questão de coincidência. Às vezes, um simples gesto é capaz de lhes acender o pavio. Um mal-entendido proposital, um desentendimento por uma bobagem, ou simplesmente o fato de estar no lugar errado, na hora errada, pode fazer surgir uma força destrutiva em pessoas que se consideram boas, decentes. Qualquer um pode ser um matador. Mas nem todos são capazes de matar um estranho a sangue-frio. É aí que eu entro na história.

    Eu fiz o trabalho sujo de outros. Até Deus reconheceu a necessidade de alguém como eu

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