A obrigação de ser genial
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Sobre este e-book
Em uma sociedade que muitas vezes impõe a "obrigação de ser genial", sobretudo às mulheres, ela nos convida a refletir sobre as dificuldades enfrentadas pelas escritoras que buscam se destacar no mundo da literatura. "Não basta ser boa: é preciso ser genial. A obrigação de ser genial se internaliza então pelo que é: um mandato social, a autoexigência de produzir uma obra extraordinária para que o crime cometido na solidão seja perdoável. O genial é a forma mais efetiva de censura para uma escritora, a meta impossível, algo tremendamente nocivo ao trabalho diário de fazer coisas com palavras", aponta a autora, que escreve o texto inteiramente no feminino, utilizando a estranheza dessa escolha como uma forma de performance e de afirmação de sua identidade. Ela define a escrita como um ato de deslocamento, um convite para abraçar a incerteza e construir uma poética autêntica.
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A obrigação de ser genial - Betina González
© Otras Prosas, 2021
© desta edição, Bazar do Tempo, 2024
TÍTULO ORIGINAL La obligacíon de ser genial
Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei n. 9610, de 12.2.1998.
Proibida a reprodução total ou parcial sem a anuência da editora.
Este livro foi revisado segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009.
EDIÇÃO Ana Cecilia Impellizieri Martins
COORDENAÇÃO EDITORIAL Joice Nunes
ASSISTENTE EDITORIAL Olivia Lober
TRADUÇÃO Silvia Massimini Felix
REVISÃO DE TRADUÇÃO Larissa Bontempi
COPIDESQUE Sávio Alencar
REVISÃO Marina Montrezol
CAPA, PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO Fernanda Ficher
IMAGEM DE CAPA Manuela Eichner, A língua do tato, 2021
CONVERSÃO PARA EBOOK Cumbuca Studio
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
G652o
González, Betina, 1972-
A obrigação de ser genial / Betina González ; tradução Silvia Massimini Felix. 1.ed. - Rio de Janeiro : Bazar do Tempo, 2024.
240 p., recurso digital
Tradução de: La obligacíon de ser genial
Formato: epub
Requisitos do sistema: adobe digital editions
Modo de acesso: world wide web
ISBN 978-65-85984-04-1 (recurso eletrônico)
1. Ensaios literários. 2. Literatura - História e crítica. 3. Livros eletrônicos. I. Felix, Silvia Massimini. II. Título.
24-91445
CDD: 809
CDU: 82.09(82)
Gabriela Faray Ferreira Lopes - Bibliotecária - CRB-7/6643
22/04/2024 26/04/2024
Rua General Dionísio, 53, Humaitá
Cep: 22271-050 — Rio de Janeiro, RJ
contato@bazardotempo.com.br
www.bazardotempo.com.br
"Se você não é a pessoa livre que deseja ser, encontre um lugar onde possa contar a verdade sobre isso. Você poderia sussurrar diante de um poço.
Você poderia escrever uma carta e colocá-la em uma gaveta. Você poderia inscrever uma maldição em uma fita de chumbo e enterrá-la para que ninguém a lesse por mil anos. Não se trata de encontrar um leitor, trata-se de contar."
Anne Carson
"O processo de escrever é difícil?
Mas é como chamar de difícil o modo extremamente caprichoso e natural como uma flor é feita."
Clarice Lispector
SUMÁRIO
PREFÁCIO
A imaginação que habilita a escrita
ANDREA DEL FUEGO
Introdução
PARTE I
A AVENTURA TEXTUAL
O coração na página
No princípio, tudo: sobre o começo de um romance
O medo da imaginação: a história vs. os fatos reais
na ficção literária
Ritmo e narrativa: um olhar a partir de duas tradições
O aparecimento da forma: sobre o fim de um romance
Parte II
SILÊNCIO, EXÍLIO E ASTÚCIA
O chocolate mais caro do mundo e eu
A obrigação de ser genial
A língua equivocada
A menina na cédula de dez pesos. Notas sobre escrita e violência de gênero
EPÍLOGO
Fazer silêncio
Referências bibliográficas
PREFÁCIO
A imaginação que habilita a escrita
Este ensaio chega quando a produção literária feita por mulheres alcança patamares nunca vividos. São mais mulheres escrevendo, publicando, revisando, ilustrando, editando, resenhando, traduzindo, mediando clubes de leitura; para fechar o círculo, são também a maioria dos leitores do país. Betina González é autora premiada, pesquisadora e professora de literatura. É chegada a hora de o Brasil conhecer mais uma das grandes autoras argentinas que também participa de um boom feminino que não acontece apenas na América Latina, mas na Europa, nos Estados Unidos, na Ásia, na África e onde houver terra para se nascer.
Conheci Betina González quando ela me entrevistou sobre meu romance As miniaturas (2013) para um periódico argentino. A conversa girou em torno da imaginação na criação literária como o elemento central e irradiador desse processo. Para quem escreve e publica, a irradiação tão íntima não se dará apenas no ambiente privado da escrita, mas será compartilhada, trazendo a terceira estaca que completa o tripé da literatura: autor, livro e leitor, este também um polo da imaginação. Tivemos, Betina e eu, novos encontros em que os assuntos foram as condições de escrita, a posição da escrita, o arco não apenas da narrativa, mas também da autoria, não a escritora numa saga do herói, mas na saga da paisagem literária.
Betina também oferece oficinas de escrita literária; segundo ela, lugar privilegiado para presenciar a força do texto na vulnerabilidade da escrita em curso e compreender os elementos em disputa corporal com a palavra, pois as oficinas deixam nuas muitas das estruturas da compreensão narrativa.
O título A obrigação de ser genial já lança a questão que Virginia Woolf também enfrentou no clássico Um quarto só seu.¹ 1Em Virginia, aborda-se a condição material para que a produção textual se faça possível, o espaço físico e moral. Em Betina, há mais provocações, que também incluem o nosso território latino. Dizer que uma escritora como Clarice Lispector é genial seria justamente isolar a autora do campo da literatura. Arrastada para além do suposto gênero feminino, indo falecer no gênero genial, afastando a literatura feita por mulheres do mundo real e da vida, e muitas vezes colocando nessa produção a terrível pecha do sentimentalismo. Betina traz à luz a diferença entre sentimento e sentimentalismo; inclusive, estes são apenas repertórios para a composição do texto que somente prestam contas à linguagem. Não há nada fora da linguagem, dirá a psicanálise, mas há repertórios submetidos a ela. É uma discussão que não começa neste ensaio nem se encerra aqui; é importante ter em mente a experiência da escrita como, ainda no privado, um ato singular e indomesticável.
Pensar essa diferença entre sentimento e sentimentalismo é outra ocasião para refletir o sentimentalismo como diapasão da escrita feita por mulheres, para muitos, no campo literário. Betina cruza as condições materiais com as ferramentas mentais de criação, uma discussão que instiga a escrever e a ler como usufruto da capacidade humana de fabular. Para começar, a autora afirma que escrever ficção não é explicá-la, é aceitar e desfrutar a incerteza que produz a própria realidade. Sustentar a incerteza não seria a premissa do ato de escrita? A questão não é se é possível ou não iniciar um texto, mas segurar o peso do processo tão desafiador quanto exigente.
Betina abre com o ensaio sobre a emoção, para ela um dado misterioso do ato criativo. Lembrando a etimologia da palavra como movimento
, a emoção está nos três pilares da literatura: no leitor, no texto e na autoria. Mas como? Betina traça a diferença entre a emoção e o sentimental. A emoção como algo sem nome, um modo de pensamento não representativo. O sentimental como uma descrição de estados de ânimo sem que as personagens tenham, de fato, os vivenciado em suas ações. Nessa operação, a autora pode desconfiar da linguagem, seu próprio instrumento. No entanto, no lugar de escrever amor
, há a possibilidade de deixar o amor não dito, mas usado como um rio subterrâneo que habilita os movimentos da personagem. Efeito que pode se dar na leitura, o mesmo subterrâneo habilitando sentidos para o leitor. O sentimentalismo é complacente e espera empatia, mas a literatura arrisca justamente a incompreensão, o mal-entendido, o subentendido e o sentido negociado com o leitor.
Por mais que a autora — escrevo autora
porque é assim que Betina se refere a quem ela se dirige no ensaio, às escritoras — fortaleça a arquitetura textual, não se trata de tirar os adjetivos para evitar o sentimentalismo. A emoção vívida, na experiência da autora, serve como repertório. Partir de uma emoção conhecida é possível sem que isso exclua o trabalho da imaginação, pelo contrário. Betina defende que, ao criar um mundo, se entrega uma fantasia tão íntima como contar um sonho, já que escrever é descobrir tanto o conhecido como o encoberto.
Ao longo do livro, Betina pensa ao lado de autores como Flannery O’Connor, Nabokov, Deleuze, Bachelard, Vonnegut, Piglia, Ursula K. Le Guin, Joan Didion, Clarice Lispector, Margaret Atwood, Alejandra Pizarnik, Coetzee, Cynthia Ozick, María Negroni, Susan Sontag, Mariana Enríquez, Ricoeur, César Aira, Borges, entre outros. Estes são traduzidos de forma a ampliar ainda mais a questão, são eles também os rios subterrâneos do ensaio.
Outros pontos são ofertados, como a tensão entre origem e começo. Nesse sentido, é preciso fazer um exorcismo da origem como permissão para narrar. Betina evidencia a importância do começo do texto, suas primeiras linhas como um programa completo do texto que seguirá. O primeiro parágrafo como declaração de princípios, o arco de tensão que se abre até as últimas linhas; arco aqui não se trata apenas da trama, arco da intenção, do gesto da escrita como a mão de um pintor. Betina cita A hora da estrela, de Clarice Lispector, como exemplo de uma narrativa onde nada começa, onde há uma desobrigação do início. Não é uma contradição: Betina deixa claro, em diversas passagens, que não há regras na literatura. O ensaio e a teoria existem a partir do fenômeno literário, daquilo que não se explica, já que a obra de arte é enraizada, mas sempre aberta, como dirá Merleau-Ponty. Betina lembra que o primeiro parágrafo de um livro é uma porta que se abre. Essa porta pode apresentar logo de cara a trama, por exemplo, em Peter Pan: Todas as crianças crescem, exceto uma.
Pode também abrir para a personagem, para o tom, para o espaço ou para uma hipótese, como em Anna Kariênina, cuja porta nos abre para: todas as famílias felizes são parecidas, as infelizes o são cada uma à sua maneira.
Betina segue trazendo outro ponto irradiador destes ensaios: a questão do medo da imaginação. Ela lembra que a origem do conto, por exemplo, se parece mais com um devaneio do que com um sonho, pois este ainda contaria com alguma lógica do inconsciente. Entendendo o devaneio como simultaneidade, nesse sentido, a escrita nunca está à altura da imaginação. É impossível escrever a simultaneidade. Independentemente do estilo de escrita, como o autobiográfico, não basta ter vivido a história. Betina nos sopra uma proposta: e se fizermos um realismo desobediente? Para a autora, a imaginação não é o verossímil, é salto no vazio, a vertigem de inventar algo que não sabemos de onde vem, entrar num lugar que não pertence ao reino autônomo. Ou seja, usufruir dos processos que não sabemos quais são, para onde nos levam, assim como a boa literatura nos faz perguntas que abrem para outras.
Ao falar sobre o ritmo, talvez alcancemos melhor o que Betina pensa sobre a imaginação e a linguagem. A autora afirma que o ritmo das coisas é mais antigo que a linguagem, e a música foi a primeira a captá-lo. A literatura também capta essa ordem ao fazer a linguagem entrar no compasso das coisas. Linguagem inclui a língua como pinça que captura as coisas, de modo que os objetos do mundo não são apenas os artefatos, a natureza ou a fisicalidade dos fenômenos, mas também os objetos mentais, como a memória. Betina chega, então, a uma das mais poéticas definições da memória: a língua é a música da memória que conserva a presença (objeto) na ausência (palavra). A temporalidade em Ricoeur é trazida como intérprete desta, outra camada de um texto literário, também para dizer que, se o ritmo é tempo, ele só pode ser dito na poesia; é ela que apreende o tempo da lógica e o tempo do mundo. Ao levar isso para a escrita, o ritmo do texto é como espaço e limite, dança com pausas e limitação dos movimentos. Betina afirma que ritmo é ordem, limite imposto ao que parece não o ter; aqui a trama é concatenação das coisas, sujeita ao ritmo.
Betina reflete a aventura textual na primeira parte do livro; na segunda, discorre sobre sua experiência na área literária, sobre ser escritora e continuar sendo. No capítulo que dá título a este livro, ela reitera que a genialidade é uma forma de enunciar a escrita produzida por mulheres feita, pelo campo literário, como anomalia ou exceção. Betina termina com o silêncio, na verdade com dois silêncios: o silêncio do texto e o silêncio da autora, este um verdadeiro agradecimento.
ANDREA DEL FUEGO
Escritora brasileira, autora dos livros A pediatra (2021),
As miniaturas (2013), Os Malaquias (2010), entre outros.
[1] Virginia Woolf, Um quarto só seu, trad. Júlia Romeu, Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.
Introdução
O silêncio, diz Maurice Maeterlinck,¹ é o elemento em que se formam as grandes coisas, no qual crescem as ideias, as amizades, o amor.² Falar sobre elas, então, não é aconselhável, porque se corre o risco de deter seu crescimento. Quem pensa, quem escreve, quem ama está profundamente sozinho com esses verbos. Algo semelhante acontece quando falamos ou escrevemos sobre ficção: temos de aceitar que estamos diante de algo que está sempre do lado do incomunicável, do que já foi feito ou será feito em uma cadeia exata de palavras e que, portanto, resulta arriscado pôr em outras.
Além disso, quando falamos em escrita, corremos o risco de quebrar um pacto muito antigo, de achar que um percurso é o único possível, de acreditar que se ocupar de ficção consiste em discutir técnicas
ou dar instruções. É difícil pensar a escrita como processo e como pensamento vivo, apresentá-la em movimento, mas há situações em que isso acontece, há casos em que o silêncio da escrita é cultivado e aprendido com os outros, em que o pensamento ocorre no diálogo. Os ensaios que reuni neste livro foram baseados nessas situações.
Quando reúne pessoas que apostam tudo nas palavras, uma oficina ou uma aula de ficção é uma dessas situações. A maioria desses ensaios surgiu desses encontros. Uma oficina de escrita cria uma atmosfera muito particular, íntima o suficiente para sustentar a vulnerabilidade de um texto em processo e, ao mesmo tempo, rigorosa o suficiente para acompanhar seu crescimento. Quem coordena essas ocorrências da narrativa em outros encontra o turbilhão de seu próprio processo, enxerga-o, por assim dizer, com mais clareza; é confrontado com suas convicções, com sua necessidade de esclarecê-las, debatê-las e, às vezes, descartá-las. Sou muito grata, portanto, àqueles que passaram por minhas aulas nos últimos cinco anos — especialmente pelas duas oficinas que ministrei em casa — e àqueles que me confiaram seus projetos de livros. Foram situações que iluminaram meus pensamentos, momentos de troca e leituras apaixonadas. Cada uma dessas experiências foi extraordinária, assim como a coragem de compartilhar o segredo da criação. Agradeço também os convites que me permitiram organizar as ideias que surgiram dessas aulas para voltar a discuti-las com outros públicos. A Koichi Hagimoto, do Wellesley College, e a Ana Merino e Horacio Castellanos Moya, da Universidade de Iowa, agradeço as palestras que moldaram A língua ‘equivocada’
, um texto que escrevi originalmente em inglês. À Conabip, à Biblioteca de San Carlos Centro e aos organizadores do festival Basado em Hechos Reales [Baseado em Fatos Reais] o convite para falar sobre invenção na narrativa, que mais tarde se tornou O medo da imaginação
. A Victoria Schcolnik e Marcelo Carnero, que criaram e apoiaram o Espacio Enjambre por tantos anos, um verdadeiro refúgio para o pensamento no qual ministrei vários seminários. Também aos organizadores de Bogotá Contada, que me levaram a repensar em uma crônica o papel que nós escritoras ocupamos hoje.
Dois livros sobre escrita — The Wave in the Mind [A onda na mente], de Ursula K. Le Guin,³ e Let Me Tell You [Deixa eu te contar], de Shirley Jackson⁴ — incentivaram-me a publicar estes ensaios. São textos em que essas autoras descrevem e analisam seus modos de escrever, expõem seus modos de fazer magia narrativa ao escrutínio de quem lê, com quem elas supõem que compartilham o mesmo encantamento (é o que chamo de generosidade). Em seus ensaios, a escrita assume a forma de um segredo compartilhado; lê-los é a coisa mais próxima de escrever com elas. Há poucos textos assim em espanhol: nossa tradição não costuma favorecer esse tipo de exposição dos processos. Partilhar minha experiência é, portanto, também uma forma de replicar a generosidade dessas autoras, com quem aprendi tanto.
E, finalmente, há aquelas amizades que são ocasiões excepcionais para o pensamento. Várias das ideias destes ensaios simplesmente nunca teriam existido se não fossem os livros de Esther Cross, María Negroni, Alicia Genovese, Christian Ferrer e as conversas que se seguiram. Para eles vai o meu maior agradecimento.
BETINA GONZÁLEZ
[1] Maurice Maeterlinck (1862-1949) foi um renomado escritor belga, conhecido por suas obras literárias e peças teatrais, tais como La princesse Maleine [A princesa Maleine] (Paris: Space Nord, 2012), Pelléas et Mélisande [Pelléas e Mélisande] (Paris, Prodinnova, 2020)
e Les oiseaux [Ed. bras.: O pássaro azul, trad. Alexandre Teixeira de Mattos, Divinópolis: Apollo, 2021]. Foi laureado com o prêmio Nobel de Literatura em 1911. (N.E.)
[2] Maurice Maeterlinck, La inteligencia de las flores, Madri: Gallo Nero Ediciones, 2022.
[3] Ursula K. Le Guin, The Wave in the Mind: Talks and Essays on the Writer, the Reader, and the Imagination, Boston: Shambhala, 2004.
[4] Shirley Jackson, Let Me Tell You: New Stories, Essays, and Other Writings, Nova York: Penguin Random House, 2016.
PARTE I
A AVENTURA TEXTUAL
Aquele que nunca saiu para caçar, mas uma noite contou aos homens como arrebatou o megatério da escuridão púrpura de sua caverna ou como matou um mamute em combate corpo a corpo, foi o verdadeiro criador das relações sociais.
Oscar Wilde
O coração na página
A emoção é o fato misterioso do ato criativo. Talvez por isso não seja um tema frequente nos tratados de escrita ou nos festivais literários. Também não é bem-vista pela crítica, que acha suspeitos os assuntos do coração. E encontro poucos escritores que se referem diretamente ao assunto, o que é surpreendente, dado o papel que ele ocupa na escrita e na leitura. Por acaso a emoção não está no impulso que nos move para a página, que nos leva a narrar o que vivemos ou imaginamos? Eu, pelo menos, estou convencida de que assim é. Se examinar as razões pelas quais abandonei um texto que não funcionou, percebo que, na maioria das vezes, a ideia narrativa à qual eu estava tentando dar vida foi despojada de seu componente emocional. Eu tinha pensado no mundo, nos personagens, até no que ia acontecer com eles, mas não tinha ideia do porquê de suas ações, do nó de sentimentos, afetos e sensações que os movia a fazer as coisas que faziam.
A emoção na ficção — em seu sentido mais primário, etimológico, de movimento
— é tão importante que a encontramos nos três pontos do processo criativo: na autora, no texto e na leitora. É uma corrente subterrânea que os atravessa. Em parte, penso, é responsável pela sobrevivência da ficção escrita, apesar de o fato de sua morte ter sido anunciado tantas vezes. A emoção proporcionada pela leitura é diferente de qualquer outra que conheço: é um movimento da mente difícil de definir ou localizar. Vladimir Nabokov a imaginava como um tremor, um choque na coluna. Para mim, acontece como uma cambalhota ou um salto do coração dentro do peito: esses momentos em que uma palavra cai na outra e redobra uma pulsação no texto, ou outros, quando pulamos de uma cena para sua realização inesperada. Nabokov escreveu sobre