Paris Caraíva
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Sobre este e-book
O romance é ágil, trágico muitas vezes, engraçado outras tantas, e sempre inteligente. Não poderemos nos esquecer de tudo o que passamos, do que fizemos conosco, com o nosso país e com as nossas centenas de milhares de mortos. A literatura ajudará nesse esforço e com certeza Paris Caraíva será uma peça importante no mosaico que começa a ser construído.
Ricardo Lísias
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Paris Caraíva - Ricardo Righi
Ricardo Righi
PARIS CARAÍVA
Em memória de Juracy Waldette de Oliveira Albuquerque
Sumário
Paris Caraíva
Agradecimentos
Sobre o autor
As ideias vêm a nós como sucessoras das tristezas, e as tristezas, no momento em que se transformam em ideias, perdem parte de sua força para ferir o coração.
Marcel Proust
Todos as histórias do mundo são tecidas com a trama de nossa própria vida. Remotas, obscuras, são mundos paralelos, vidas possíveis, laboratórios onde se experimenta com as paixões pessoais.
A tensão entre objeto real e objeto imaginário não existe, tudo é real, tudo está aqui.
Ricardo Piglia
A OMS declarou a pandemia do SARS-CoV-21 na tarde de um dia frio e luminoso do inverno de 2020, atrapalhando meus planos de visitar a Borgonha. Eu estava em Paris, flanando pelos paradoxos da cidade, reencontrando meus lugares preferidos, ignorando os sinais da tormenta que se avizinhava. Passei muitos anos sem tomar vinho, por sofrer com enxaquecas incapacitantes, mas descobri que os de corpo médio feitos com uvas Pinot Noir, típicos da região central da França, não me fazem mal. Fascinado pelo universo dos vinhos, li muito sobre sua cultura e história. Planejava passar uma semana em Paris e depois pegar o trem até Dijon para visitar as vinícolas da época do Império Romano que produziam os vinhos que eu podia beber.
Essa viagem de férias à França foi muito desejada e planejada. Tomei notas, pesquisei o clima, comprei as roupas certas. Eu queria um descanso do pesadelo em que vivia no Brasil desde a eleição do inominável para presidente da República no final de 2018. Ainda vou dar notícias do que se passou à época, mas, por enquanto, desejo apenas me inebriar das ilusões que perdi com a avalanche da Covid. Li metade da internet sobre a anunciada exposição dos renascentistas italianos que entraria em cartaz no Louvre. Anotei tudo em dez páginas de caderno sobre o que planejava visitar, com os nomes e endereços das livrarias, cafés e restaurantes.Organizei as férias pensando em visitar as vinícolas borgonhesas, sem contar com uma pandemia que dizimaria sete milhões de pessoas, setecentas mil no Brasil, muitas delas por culpa do negacionismo e da desídia de um presidente miliciano que combinava um nacionalismo tacanho com fundamentalismo religioso. Eu sobrevivi, mas não muito.
A peste veio desgraçar o mundo no meio das minhas férias, de maneira muito inconveniente, no fim do inverno europeu, quando eu estava em Paris na companhia do meu amigo Eduardo Damasceno, sentindo um friozinho agradável ao caminhar pelas ruas desertas da cidade luz, desejando a primavera e a saúde.
Na varandinha do apartamento da rua Cláudio Manoel, me acomodei na poltrona para ler Derrubar árvores, de Thomas Bernhard. Essa bergère onde estou sentado, forrada de tecido vermelho, foi o primeiro móvel que comprei após o divórcio e o único que carrego comigo depois de inúmeras mudanças. Estranhei bastante a escrita do austríaco no início. Conforme avancei na leitura, estranhei ainda mais. Um texto pesado, sem paragrafação ou divisão em capítulos, exalando amargura e misantropia. Esse primeiro contato foi breve, pois buscava leveza e logo abandonei o livro, implicado com a repetição excessiva da notícia de que o narrador estava sentado numa poltrona de orelhas, arrependido de ter aceitado o convite do casal Auesberger para uma noite artística. Me dei conta de que eu também estava sentado numa poltrona de orelhas, pois a minha bergère vermelha com estampa florida é uma poltrona de orelhas. Me ocorreu que as repetições em Derrubar árvores queriam soar como música, em ponto e contraponto, e que Bernhard detesta o leitor. Afundei um pouco mais na poltrona, achei que deveria escrever sobre isso, mas acabei escrevendo sobre outra coisa.
Quando o comandante português anunciou a aterrisagem para breve, eu havia me esquecido do meu medo de voar, as mãos não estavam mais suadas e já conseguia respirar tranquilamente. Pelos alto-falantes ele nos informou sobre o tempo, dizendo que tínhamos um dia claro com temperatura amena pela frente. Avisou que logo aterrissaríamos na capital francesa. Desejou as boas-vindas a Paris. Olhando sobre os ombros da senhora idosa de cabelos imaculadamente brancos, sentada à janela ao meu lado, vislumbrei o perfil metálico da Torre Eiffel e o palácio de Chaillot ao norte do Campo de Marte. Fechei os olhos e suspirei em tempo de sentir o trem de pouso tocar o chão. Obedeci às ordens da aeromoça sisuda e permaneci sentado com o cinto de segurança afivelado até que a aeronave parasse completamente. Me surpreendi com a civilidade das pessoas que aguardavam o desembarque sendo realizado fila por fila, na mais absoluta ordem e racionalidade. Apanhei a minha mochila remendada com silver tape do compartimento acima das cabeças e avistei Eduardo Damasceno acenando duas filas atrás de mim, sorridente. Pelos corredores do aeroporto eu lia as placas e ouvia os recados dados por uma voz feminina aveludada que pronunciava as palavras com clareza cristalina, numa dicção perfeita. Sem me dar conta, comecei a repetir rue Gracieuse
em voz baixa, retomando um exercício que fazia para melhorar a pronúncia do francês, enferrujado depois de seis anos sem prática. A rua Graciosa fica próxima à Faculdade de Direito da Sorbonne, onde estudei, nas vizinhanças do Panthéon, na margem esquerda do rio Sena. Não fica muito longe da montanha Santa Genoveva onde Emmanuel Carrère pratica ioga. Dudu se aproximou e perguntou se estava ficando doido, ao me ver fazendo tanta careta para pronunciar rue Gracieuse
.
Recuperei as bagagens depois de alguns instantes de preocupação, pois a mala de vinhos emprestada por Maurício Gontijo só foi encontrada no balcão destinado aos grandes volumes, embora se trate de uma pequena caixa de isopor forrada de acrílico, que acomoda bem onze garrafas. Atravessei o saguão observando um grupo de mulheres vestidas com coloridas capulanas, conversando em idioma do qual não entendo uma só palavra. Aproveitei para comprar um chip da Vodaphone com direito a ligações locais e horas de internet ilimitadas. Enquanto assinava o contrato e pagava, convenci Eduardo a comprar o Paris Museum Pass de quatro dias, que permite entrar e sair de quantos museus se desejar e com isso matar minha vontade acalentada desde os tempos de estudante sem dinheiro. Dudu deixou de lado sua sovinice e desinteresse por artes plásticas por pura camaradagem e me acompanhou na saga cultural. Quase desistiu quando descobriu que custava sessenta e oito euros, mas já era tarde.
Diante do quiosque de acolhida ao turista fomos atendidos por um jovem franco-argelino que nos descobriu brasileiros e ofereceu sua hospitalidade em bom português, para a satisfação do monoglota Eduardo Damasceno, e minha contrariedade, pois desejava praticar o francês. Camaradagem por camaradagem, continuei a falar em português para que Dudu pudesse entender a conversa. O gentil atendente vendeu os passes de quatro dias por sessenta e oito euros cada um, desejou uma boa estada, recomendou a exposição sobre os gênios italianos do Renascentismo no Louvre, mas alertou sobre a necessidade de agendar pela internet a visita, exigência sanitária de controle do fluxo de visitantes motivada pelo coronavírus que já causava estragos na Itália. Na Itália? Como assim na Itália? Essa merda não estava na China, o coronavírus? Infelizmente não, respondeu o oficial de turismo. O SARS-CoV-2 já fez vítimas na Europa, no norte da Itália. Mas as autoridades europeias estão tomando todas as providências necessárias para debelar a emergência, logo a questão estará encaminhada. Milão não pode parar. Não há nada a temer. Todavia, havia muito o que temer. Ele não fazia ideia, eu tampouco.
O primeiro AirbnB onde nos hospedamos não era a primeira opção. Eu havia reservado um outro, bem melhor, mas o proprietário cancelou às vésperas da viagem. Restituíram o dinheiro, mas me deixaram na mão do calango, pois a oferta tinha sido reduzida sensivelmente e os preços aumentaram na mesma proporção. Como eu queria ficar na mesma região do apartamento cancelado, escolhi o melhor que pude dentro das nossas possibilidades. O estúdio era muito diferente das fotos e cheirava mal, mas ficava perto do canal St. Martin, no décimo arrondissement, em frente ao metrô Goncourt na linha onze, dando ares livrescos à vizinhança. Goncourt é o prêmio literário mais prestigiado da França. Menos badalado que o Marais, mas próximo dele, o 10ème ficava a meio caminho da ladeira de Belleville e era o lugar ideal para se gastar menos dinheiro e mais sola de sapato.
O táxi que nos trouxe de Orly custou vinte e dois euros por cabeça, pois descemos na margem direita do rio Sena. A porta da rua ficava entre o café Floréal, na esquina da rue du Faubourg du Temple, e a loja de produtos orgânicos Naturália, bem em frente às escadas da estação de metrô Goncourt. Notei uma bicicleta vermelha amarrada nas grades. Pouco depois do buraco do metrô ficava um ponto de ônibus debaixo de uma serena amoreira branca, cuja copa alcançava a altura do terceiro andar do prédio. Peguei o telefone celular em busca do código para abrir a pesada porta de madeira. Digitei 5AO49 e nada; pensei que pudesse ter digitado errado e tentei de novo, sem sucesso. A porta continuava fechada. Depois de dez longos minutos respirando o ar glacial defronte ao número 152 da Avenida Parmentier, a sorte nos enviou um vizinho do estúdio 2C que nos deu um bonjour
, abriu a porta e sumiu escada acima, sem prestar atenção às minhas explicações. O pequeno saguão interno fedia a lixo, mas protegia do frio do fim do inverno. A mensagem da anfitriã dizia que as chaves estariam na caixa de correio debaixo do seu nome, mas era mentira. Telefonei para o celular dela, que tocou até desligar. Na segunda tentativa, atendeu uma voz feminina quase inaudível, que se desculpou e disse que estava no metrô e temia que a ligação caísse. Caiu.
Nesse intervalo, um idoso de expressão severa apareceu descendo as escadas e nos ofereceu os préstimos. Era o pai da mulher do AirbnB, que gentilmente apontou a caixa de correio correta. Aparentemente eles alugavam outros estúdios para hospedagens curtas no mesmo edifício. Explicou que a filha trabalhava muito e deve ter se enganado. Aliviado com a solução repentina, peguei as chaves e subi as escadas estreitas do prédio sem elevador, esbarrando as malas nas paredes, ansiando por um banho quente.
O ar estava parado no corredor acarpetado que levava ao Estúdio Cactus. Cheirava a poeira e morrinha. Voltei ao celular para conferir o número do apartamento: o segundo à direita, virado para a rua. A primeira impressão não foi das melhores. A segunda foi ainda pior, e só não foi pior que a impressão final, a que ficou na memória. A roupa de cama não tinha sido trocada e o mau cheiro do banheiro empesteava o quarto, mas lá fora era o final do inverno em Paris, e já se anunciava a primavera, embora fizesse mais frio do que o esperado.
Eu planejava visitar o museu Picasso na manhã do primeiro dia, já que não ficava muito distante do estúdio nauseabundo. Bastava uma caminhada de vinte minutos percorrendo pouco mais de um quilômetro, com a vantagem de se ter Paris por todos os lados. O leitor atento pode se perguntar sobre a razão da escolha do museu Picasso, muito mais modesto que o Louvre ou o D’Orsay. O Louvre exigia o agendamento da visita, que só consegui para dali a dois dias. Mas esse não era o único motivo. Eu tinha uma pendência com Pablo Picasso que remontava a 2014, quando estive em Paris depois de passar muito frio no norte da África e o encontrar fechado para reformas.
Naquele inverno gelado, na virada de 2013 para 2014, eu me recusava a gastar dinheiro com um casaco novo, comprovando toda a minha burrice e teimosia. Me hospedei no Grand Hotel Malher por dever de gratidão. Explico. O charmoso hotel do Marais foi o único que aceitou meu pedido de emprego quando estava em apuros financeiros no velho continente. Assim como Hemingway e Vila-Matas, fui muito pobre em Paris, pois não tinha bolsa de estudos e me virei com as economias que fiz em poucos anos de advocacia depois de formado. Eu precisava de algum trabalho que não conflitasse com a minha grade de aulas, isto é, alguma coisa de madrugada ou nos finais de semana, e a única possibilidade que encontrei foi a vaga de recepcionista de hotel no turno da noite. Mandei currículos para toda a rede hoteleira das margens direita e esquerda do Sena, e apenas o Grande Hotel disse sim, venha trabalhar de madrugada com a gente. Muito possivelmente por saber que os estudantes de mestrado da Sorbonne faziam boa figura para os hóspedes exigentes do quarto arrondissement, vizinhança abastada, gay e judaica. Felizmente, antes de assumir o compromisso de trabalho, recebi uma ligação do Gustavo Raposo contando a novidade de que havíamos sido aprovados no concurso da Procuradoria Federal e pude agradecer ao Hotel Malher e declinar do trabalho nas madrugadas frias do Marais.
Com a posse no serviço público prevista para breve, me endividei, sabendo que poderia contar com os salários de procurador que receberia no regresso ao Brasil. Minha mãe me emprestou o dinheiro que pagou as contas vencidas e o primeiro aluguel em Brasília, minha primeira lotação. Tive pouco tempo para concluir as provas e exames. Fui submetido à derradeira prova oral, de Direito Administrativo, pelo professor Etienne Picard, um homem gentil e atencioso, que fez a melhor avaliação à qual já fui submetido. Tirou de mim tudo o que eu sabia. Ao final do processo, me desejou boa sorte com o novo trabalho, dizendo que me esperava no ano seguinte para a defesa da dissertação. Saí tão desgastado do exame que não reconheci meus amigos no corredor do Centro Malher. Só pensava em tomar um sorvete de doce de leite da Bertillon na ilha de Saint Louis, no meio do rio Sena. De lá tomei o metrô na estação Pont Marie e segui pela linha sete até Les Gobelins, onde desci e caminhei até o apartamento onde morava com Simone na rue des Cordelières. Ela me esperava para um café de despedida e não me acompanhou até o aeroporto pois não tínhamos dinheiro sobrando para isso. Embarquei para o Brasil depois de uma longa negociação sobre o excesso de bagagem, composto fundamentalmente de livros e fotocópias de artigos que eu considerava essenciais para a escrita da minha dissertação de mestrado. Àquela época não dispúnhamos das facilidades de acesso às boas revistas acadêmicas estrangeiras via internet.
Passei a noite em claro no avião, cheio de ansiedade pela vida nova. Do aeroporto de Confins segui para o edifício Maletta, na rua da Bahia, para me submeter aos exames médicos admissionais. Só então pude passar pela casa da minha mãe na Cidade Jardim, onde matei um pouco das saudades, almocei e vesti um terno, para, em seguida, tomar posse como procurador federal na praça da Liberdade, onde ficava a sede da Procuradoria naquela época. O prédio de estilo neoclássico foi projetado pelo arquiteto Luiz Signorelli e construído entre os anos de 1926 e 1930. Hoje é a sede do Centro Cultural do Banco do Brasil, o museu mais visitado da América Latina em 2023. Quem me deu posse foi o procurador-geral de então, Bonifácio Andrada, que, ao saber que optei por trabalhar no Distrito Federal, me advertiu:
— Brasília é cara, viu?
— A família da minha mulher mora em Goiás, doutor Bonifácio. Ela vai trabalhar também, assim que arrumar um emprego. Ela é advogada e professora. Tudo vai se arranjar.
Não me lembro se ele me desejou boa sorte. Acho que não.
Falando em Goiás, no fim da tarde eu já estava lá, no quadradinho de Juscelino Kubitschek, onde assumi o meu cargo de procurador e recebi os primeiros processos. Passei a tarde tentando entender do que se tratava e percebi que ia precisar de ajuda. Dadas as minhas circunstâncias, não tive acesso ao curso de formação ou a qualquer orientação prévia sobre a carreira ou até mesmo sobre as minhas funções. Por sorte, fui bem acolhido pelos colegas que me antecederam e a vida entrou aos poucos no lugar. À noite eu já estava hospedado num apart-hotel de paredes da espessura de uma folha de papel ofício construído pelo Paulo Octavio, aquele amigo do Fernando Collor que esteve preso por participação em esquema de alvarás, ou algo que o valha. Mal entrei no quarto, deixei a mala num canto e desmoronei na cama, de terno e tudo. O telefone tocou estridente, fiz o caso de atender, mas não era o meu aparelho que tocava. Era o do quarto ao lado. Uma mulher atendeu com a voz cansada e ouvi toda a conversa, contrariado, como se ela estivesse ao meu lado. Fiquei sabendo que ela voltou da consulta médica com diagnóstico de candidíase e precisaria tomar remédio. Estava explicada aquela coceira horrível. Detestei a intimidade e decidi que iria alugar um apartamento o mais rápido que conseguisse.
Não me lembro quanto tempo levou para que Simone concluísse o mestrado em Paris e voltasse para casa, mas não foi tanto assim. Pelo menos é o que me parece hoje. Fizemos muita festa, chamego e amor. Logo veio à tona um desejo reprimido depois de um ano em Paris fazendo as contas para qualquer despesa: ir ao cinema. Havia mais de um ano que não íamos ao cinema pelo motivo prosaico de que não tínhamos dinheiro para tamanho luxo na França. Eu até tinha esquecido de