Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                

Resistência e Teatro

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 37

1 TEATRO E RESISTNCIA Maria Slvia Betti A realizao de um trabalho teatral como expresso desejada de resistncia a um regime autoritrio est

indissociavelmente ligada, no contexto brasileiro, ao show musical Opinio, que estreou em 11 de dezembro de 1964 no Rio de Janeiro. Entre essa data e o incio do perodo da chamada abertura democrtica, em 1979, grande parte dos espetculos teatrais e da produo dramatrgica do pas foi motivada pelo desejo de mobilizar os setores artsticos e a sociedade civil para uma ampla frente de oposio ao governo militar implantado com o golpe. O show Opinio foi a primeira manifestao organizada de rearticulao dos artistas e intelectuais provindos do Centro Popular de Cultura da UNE (Unio Nacional dos Estudantes) ao golpe militar impetrado oito meses antes, em 31 de maro de 1964. Posta na clandestinidade logo aps a tomada do poder pelos militares, a entidade estudantil teve seu prdio-sede, na Praia Vermelha, esvaziado e dilapidado sob rajadas de tiros das foras policiais. A estria da pea Os Azeredo mais os Benevides, de Oduvaldo Vianna Filho, programada para estrear no dia 31 de maro como espetculo inaugural do Teatro da UNE, foi suspensa em carter definitivo. Opinio era um espetculo musical com roteiro de Oduvaldo Vianna Filho, Armando Costa e Paulo Pontes, direo cnica de Augusto Boal, direo musical de Dori Caymmi e co-produo do Teatro de Arena de So Paulo. Sua divulgao na imprensa procurou, tanto quanto possvel, evitar chamar a ateno da censura para o fato de que os responsveis pela concepo eram provindos do CPC. O show caracterizou-se pela intercalao de msica brasileira de gneros variados (sambas, marchinhas carnavalescas, canes de protesto, etc.) a relatos autobiogrficos dos trs cantores, provenientes de diferentes classes sociais e regies do pas: um sambista dos morros da zona norte carioca (Z Kti 1), um compositor maranhense (Joo do Vale2) e uma jovem cantora ligada bossa nova e intelectualidade de classe mdia do Rio de Janeiro (Nara Leo3). Alternando depoimentos e canes, o show enunciava, por meio de aluses de estratgico duplo

1 2

Jos Flores de Jesus [1921-1999] Joo Batista do Vale [1934-1996] 3 Nara Lofego Leo [1942-1989]

2 sentido, a convico, compartilhada pelo pblico que a ele afluiu, de inequvoco repdio ao quadro poltico instaurado com a tomada do poder pelos militares. Como na letra do samba-ttulo de Z Kti 4, declarava-se que nada poderia abalar a opinio comum de protesto contra a ditadura instaurada: nem a perseguio poltica ou a mesmo a tortura. Dessa forma o espetculo procurava, antes de mais nada, construir nas conscincias de seu pblico a determinao em no ceder ao desnimo e derrota diante das circunstncias. O uso estratgico de metforas nas letras e nos textos do espetculo permitia que se driblasse a censura, construindo assim o subtexto do espetculo com imagens de vigorosa (ainda que metafrica) manifestao contestatria. Mesmo que no se vislumbrasse at aquele momento qualquer perspectiva de derrubada do regime recm imposto, considerou-se fundamental que todos, artistas e pblico, se unissem com urgncia na opinio compartilhada. Logo aps a estria essa opinio, aclamada calorosamente, passou a ser encarada como o passo inicial para uma articulao de foras contra o regime: ante a impossibilidade de ao revolucionria imediata, cantar em prol de uma convico poltica assumiu o papel de um ato concreto (mesmo que simblico) de mobilizao e resistncia. Grande parte da fora expressiva do show Opinio provinha da forma como o espetculo resolvia, no plano artstico, a tenso que se apresentava diante da situao poltica do pas: o golpe havia sufocado de forma sumria projetos culturais de fundamental importncia desenvolvidos nos anos anteriores (alm do CPC, o do Movimento de Cultura Popular e o das Ligas Camponesas de Pernambuco). A inevitvel constatao da derrota havia surpreendido intelectuais e artistas que se encontravam, ento, no pice de sua capacidade de criao e trabalho, como era o caso de Vianinha (Oduvaldo Vianna Filho) e de todos os que se ligaram ao processo de criao do show. O dramaturgo Dias Gomes, quadro de longa data do PCB, relata em seu livro de memrias que, uma semana antes do golpe, Prestes havia emitido um documento que avaliava ser impossvel a realizao de um golpe de direita naquele momento 5. Diante do equvoco logo evidenciado, a desarticulao completa e sumria de todas as formas de trabalho poltico e cultural sobreveio de forma cabal e inexorvel para os setores alinhados com as polticas do partido e com a perspectiva revolucionria.

4 5

Podem me prender, podem me bater, podem at deixar-me sem comer, que eu no mudo de opinio! GOMES, Dias. Apenas um Subversivo. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 1998.P. 192

3 Ao proclamar a viabilidade e a pertinncia de um eixo comum de pensamento para artistas e intelectuais dentro desse contexto, o show Opinio acabou proporcionando simbolicamente, a sensao vivencial da mobilizao poltica e da luta. No foi casual, assim, a acolhida entusistica que teve na temporada carioca e na paulista: artistas e pblico passaram a compartilhar a idia de que estavam, naquele momento, desempenhando um papel ativo na luta contra a ditadura militar e a supresso das liberdades civis. Dentro daquelas circunstncias, nada parecia ser mais gratificante. A idia de uma ampla e estratgica frente de oposio e resistncia indicava uma grande afinidade entre o pensamento poltico implcito no show Opinio e as posies do Partido Comunista Brasileiro, ao qual se ligavam, formal ou informalmente, importantes expoentes do contexto intelectual e artstico do pas naquele momento 6. Tambm o CPC havia contado, desde sua criao, com a participao de um nmero considervel de artistas identificados ao pensamento do PCB, embora no existisse vnculo propriamente dito entre um e outro. possvel que em alguma medida grande parte dos membros do CPC tenha partilhado das expectativas otimistas geradas pela avaliao conjuntural do PCB pouco antes do golpe, e acreditado que o pas estava efetivamente s vsperas da ecloso de um processo revolucionrio. Para todos os que assim pensavam, a amarga constatao do engano e a sensao de impotncia diante da nova conjuntura vieram impor um angustiante desafio: todas as formas de trabalho poltico ou cultural realizado anteriormente com o proletariado ou o com o campesinato haviam sido abortadas, e a revoluo tida como iminente fora desmentida pelo prprio andamento dos fatos. Em vista desse quadro, o show Opinio pode ter representado, para grande parte dos egressos do CPC, a aplicao, na esfera do trabalho artstico, da estratgia do recuo ttico organizado, transmitida pelo PCB aos militantes que, em 31 de maro, resistiam s bombas e tiros no prdio da UNE durante o cerco policial. Para a pesquisadora In Camargo Costa, em seu livro A Hora do Teatro pico no Brasil 7, a palavra de ordem do Partido teria acabado por nortear tambm a concepo esttica que, em pouco tempo, viria a ser difundida e tacitamente aceita pelos
6

Veja-se, a esse respeito, o ensaio A Poltica Cultural dos Comunistas, de Celso Frederico: No imediato ps-64, os artistas e intelectuais ligados ao PCB deram inicialmente o tom na produo artstica. A preocupao com o carter nacional e popular fez-se acompanhar da urgncia da mobilizao coletiva, da poltica de unidade no front cultural, tendo em vista a necessidade de lutar pela redemocratizao do pas.In QUARTIM DE MORAES, Joo (org.). Histria do Marxismo no Brasil Volume III. Teses e Interpretaes. Campinas: Editora da UNICAMP, 1998. P. 281 7 Costa, In Camargo. A Hora do Teatro pico no Brasil So Paulo: Graal, 1996; p. 110

4 artistas provenientes do CPC a partir de Opinio e de seus sucedneos teatrais nos anos que se seguiram: o recuo recomendado no mbito estratgico teria sido aplicado tambm ao campo da criao, contribuindo assim para implantar a idia de que o trabalho realizado deixado para trs no mbito agitativo do teatro de rua era menos complexo artsticamente do que as circunstncias demandavam. Essa teria sido, presumivelmente, a operao de pensamento que, nos anos subseqentes, levaria muitos dos prprios ex participantes do CPC a posies de relativizao ou mesmo de franco descarte da importncia artstica e poltica do trabalho que antes haviam realizado. O papel desempenhado pelo pblico de classe mdia logo aps o golpe tambm teve peso considervel nesse processo por ter demonstrado, desde a estria do show Opinio, total apoio idia de uma resistncia simbolicamente enunciada por uma frente de esquerda e em pleno mbito do teatro comercial. No foi casual, portanto, o fato de o trabalho iniciado no show ter recebido rapidamente o aval irrestrito de toda a gerao de atores e dramaturgos oriundos do CPC, constitudos, pouco depois, como fundadores do grupo teatral Opinio. No perodo que assim se iniciou a estrutura de trabalho artstico inaugurada pelo show Opinio passou a ser encarada de fato como uma forma de mobilizao e luta, enquanto os antigos participantes do CPC, num processo paralelo de reviso autocrtica, passariam sintomaticamente a taxar de equivocadas as perspectivas desenvolvidas na fase anterior. Conforme indicam os estudos histrico-crticos e os depoimentos relacionados relao PCB-CPC, o PCB tendeu sempre a acompanhar distncia as atividades do CPC, embora o contato entre um e outro tenha tido sempre um carter descontnuo: a cpula partidria costumava prestigiar os eventos promovidos pelo CPC, mesmo sem a existncia de um dilogo contnuo entre ambos. O PCB havia passado os anos precedentes absorvido com a campanha pelas reformas de base, e apenas tardiamente indicou um representante oficial, Marcos Jaimovich 8, para atuar dentro da entidade estudantil 9. Apesar disso, parcela considervel dos cepecistas mais ativos e representativos ligavam-se informalmente ao PCB. Se a informalidade dessa ligao constitua uma forma menos assdua do exerccio da militncia, ela em momento algum indicava um
8 9

Marcos Jaimovich [1921-2009] BARCELOS, Jalusa. CPC da UNE: Uma Histria de Paixo e Conscincia. Rio de Janeiro, RJ : Editora Nova Fronteira : IBAC/MINC, 1994.Entrevista concedida por Ferreira Gullar. P. 212. Entrevista concedida por Lus Werneck Vianna. p. 316.

5 teor menor de adeso ao pensamento poltico do partido. A expressividade e a relevncia do elo com o PCB demonstrou no sofrer abalos, durante os trs anos de atividades do CPC. Embora no seja fcil avaliar o grau de determinao da palavra de ordem do Partido naquele conturbado contexto ps-golpe, o que parece indiscutvel que a idia da frente democrtica, cujas razes se encontram nas teses do V Congresso do PCB, de 1960, passaria a servir de base a todo o movimento de resistncia constitudo no teatro brasileiro nesse momento que vai de 1964 e se estende at a decretao do Ato Institucional Nmero 5, em 1968.10. Os anos que se seguiram a 1964 caracterizaram-se, para o PCB, como um perodo de sucessivas dissidncias de quadros histricos, como Carlos Marighella
11

Joaquim Cmara Ferreira12. O partido, nesse contexto, tornou-se alvo de crticas contundentes por parte de entidades que ento se passaram a organizar-se no sentido de preparar a ao direta e a luta armada. Diante dessa tensa e complexa situao, a proposta poltica inerente estrutura do show Opinio encarnou simbolicamente, no plano do espetculo, as coordenadas de pensamento do PCB: o alinhamento das classes sociais, representadas por meio dos
10

Frederico, Celso. Loc. Cit. Veja-se tambm, guisa de ilustrao, este trecho da Resoluo aprovada pelo V Congresso do PCB em 1960: [....] A contradio antagnica entre o proletariado e a burguesia, inerente ao capitalismo, tambm uma contradio fundamental da sociedade brasileira. Mas esta contradio no exige soluo radical e completa na atual etapa da revoluo, uma vez que, na presente situao do pas, no h condies para transformaes socialistas imediatas.[...] O principal inimigo da revoluo brasileira constitudo pelo imperialismo norte-americano e por seus agentes internos. A fim de manter o seu domnio em nosso pas, o imperialismo ianque conta com o apoio de setores de latifundirios e capitalistas, cujos interesses so vinculados ao sistema de explorao imperialista, e que, por sua vez, se apiam nos monoplios estrangeiros para assegurar seus privilgios. Estas foras constituem o apoio social interno do imperialismo, atuam dentro e fora dos rgos do Estado para manter e agravar a situao de dependncia do pas. Embora minoria nfima, dispem de grande poder poltico e de fortes posies no aparelho estatal. Ao inimigo principal da Nao se opem foras muito amplas e poderosas: o proletariado, que a classe mais firme e conseqente na luta pela libertao nacional e a mais interessada em profundas transformaes democrticas; os camponeses, interessados em liquidar uma estrutura agrria retrgrada que se apia na dominao imperialista; a pequena burguesia urbana, que no pode expandir suas atividades em virtude do atraso do pas; a burguesia ligada aos interesses nacionais, que prejudicada pela ao dos monoplios imperialistas. Em certas circunstncias, de modo temporrio e instvel, podem tambm opor-se ao imperialismo ianque alguns setores de latifundirios e grupos capitalistas ligados a monoplios estrangeiros rivais dos norte-americanos. Fonte: Trechos da Resoluo Poltica do PCb aprovada no V Congresso do Partido em 1960 http://www.gedm.ifcs.ufrj.br/upload/documentos/1.pdf [acesso em 25-01-2011] 11 Carlos Marighella [1911-1969] optou pela luta armada em 1966, aps ser libertado da priso por deciso judicial e escrever o livro A Crise Brasileira, onde teceu severas crticas ao PCB. 12 Joaquim Cmara Ferreira. [1913-1970]. Foi um dos signatrios do Manifesto do Agrupamento Comunista de So Paulo , de 1967, documento-embrio da Ao Libertadora Nacional, organizao de ao revolucionria.

6 trs artistas no palco, evocava a poltica de frentes postulada pelo partido desde muito antes. A concepo do espetculo distinguia-se das praticadas por outros grupos de teatro ou coletivos de ao cultural nesse momento, e surgia como proposta de uma nova forma de trabalho para o teatro. Em funo de todos esses fatores acreditou-se ter-se configurado, com o show Opinio, uma forma no s vivel mas estrategicamente signficativa de mobilizao e de resistncia por parte dos setores mdios da sociedade civil. No contexto urbano do Rio de Janeiro e de So Paulo aps o golpe, a enorme receptividade dada ao espetculo foi encarada por seus realizadores como forma de redirecionamento possvel, ainda que parcial e em condies adversas, do prprio projeto cultural abortado do CPC. A perspectiva de um trabalho pico e de natureza agitativa nos moldes do teatro de rua do CPC havia, realmente, se tornado invivel na nova conjuntura. O fato, porm, que a atuao para um pblico de classe mdia considerado progressista passou cada vez mais a ser saudada como estratgia capaz de assegurar no apenas o trabalho em si, agora que se dependia de atuar no teatro comercial, mas balizas de criao e pensamento tidas como capazes de superar as praticadas anteriormente no CPC. Os meses que se seguiram confirmaram as tendncias verificadas durante a temporada do show Opinio: alm de ter inspirado o surgimento do grupo teatral que levou seu nome, o espetculo inaugurou uma estrutura de trabalho e de expresso que se tornaria dominante no panorama cultural durante todo o perodo compreendido entre o final de 1964 e a implantao do Ato Institucional nmero 5, em dezembro de 1968. O quadro que assim se constituiu viria a ser examinado por Roberto Schwarz, algum tempo depois, no ensaio Notas sobre Cultura e Poltica 1964-1969
13

, de

fundamental importncia para a anlise crtica da esttica teatral de resistncia. Examinando a produo cultural no perodo aps o golpe, o crtico discutiu os mecanismos pelos quais, sob a gide de um regime poltico de direita, uma hegemonia cultural de esquerda havia se organizado e consolidado a partir do show Opinio. Essa anomalia da qual trata Schwarz foi fartamente confirmada por vrios dos sucedneos do espetculo: num contexto como o do ps-golpe de 64, de refluxo da atuao agitativa do CPC, havia se tornado gratificante para a classe mdia progressista prestigiar um trabalho que lhe proporcionava a sensao vivencial da luta e da mobilizao.
13

Schwarz, Roberto. Notas sobre Cultura e Poltica 1964-1969. In O Pai de Famlia e Outros Ensaios. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1978.

7 Com o show, letras de canes e depoimentos de vida carregados de conotao poltica haviam provado ter um efeito capaz de ir muito alm do inicialmente visado, de mera resposta tpica ao golpe pela via metafrica. E foi por meio do contedo simblico dessas canes que veio a ser posto em circulao, em um mercado cultural nascente, um repertrio ltero-musical que passou a alegorizar a situao do pas sob a ditadura. O disco com a gravao dos trechos mais expressivos de Opinio
14

lanado comercialmente, bateu recorde de vendas num curto espao de tempo. Vrias das mais contundentes canes de protesto contra a supresso das liberdades civis passaram a ser tocadas exaustivamente nas principais emissoras de rdio e de televiso por todo o pas. A efervescncia gerada pela acolhida do espetculo e pelo sucesso dos discos relacionados foi encarada, pelos artistas provenientes do CPC, como indicativa de uma disposio de luta dentro da nova conjuntura, entendendo-se que lutar, nesse contexto, passara a ser entendido como sinnimo de externar publicamente uma postura antagnica ao regime, ou seja, uma postura de resistncia. O fenmeno de mercantilizao de contedos originalmente crticos e contestatrios ocorreu tambm em outros contextos alm do brasileiro: nos Estados Unidos, por exemplo, algumas das mais radicais criaes da esttica do protesto, desde a gerao beat at a contracultura, passaram, a certa altura, a alimentar amplos setores do mercado cultural, gerando uma variada gama de sub produtos que abrangia discos, filmes e eventos de massa de grande proporo. Em um pas como o Brasil, onde a indstria cultural era ainda incipiente, a peculiaridade desse processo residiu no fato de ter dado origem a uma seara de criao que fertilizou profundamente a seara mercadolgica, assinalando com isso o surgimento do prprio conceito de msica popular brasileira ou da chamada MPB. O CPC havia priorizado sempre o chamado elemento popular na arte, contribuindo assim decisivamente para a divulgao de formas caractersticas da msica nordestina, do samba de partido alto, do cordel e da poesia. A descoberta de compositores como Z Kti, Joo do Vale e Cartola15, entre outros, foi fruto do trabalho desenvolvido no s no Rio de Janeiro, mas tambm nas UNE Volantes, excurses de ativismo cultural e poltico realizadas em vrias capitais do nordeste e norte do Brasil entre 1962 e 1963.
14 15

LP Show Opinio. Nara Leo, Z Keti, Joo do Vale. Philips, 1965. Angenor de Oliveira.[1908-1980]

8 Os frutos gerados nesse caminho de pesquisa viriam a revolucionar o setor fonogrfico, fazendo-o, primeiramente, atravs de subgneros musicais como a cano de protesto e o afro samba, e algum tempo depois atravs de composies de diversas estruturas, que por meio de metforas e alegorias passaram a expressar a angustiante crnica das conscincias sufocadas e cooptadas sob o autoritarismo. A fora expressiva da msica dentro do show Opinio chegou a suscitar, em alguns momentos, discusses sobre a natureza do prprio espetculo. Respondendo aos que o classificavam como um musical, Augusto Boal, responsvel pela direo, argumentou sempre em prol da natureza teatral da concepo de base, observando que a prpria forma como os depoimentos dos artistas haviam sido trabalhados compunha uma linha de contedos que transcendia o carter de show propriamente dito
16

. Em

sua autobiografia, intitulada Hamlet e o Filho do Padeiro17, Boal comenta que as solues que aplicou na concepo final tinham razes em O Processo, trabalho anterior que ele havia concebido e dirigido 18. A estrutura do show Opinio empreendia em cena uma sntese pica do pas. A expresso de uma posio comum de resistncia ao golpe era eficientemente alegorizada tanto pela colagem de textos, comentrios, e ilustraes musicais, diferentes repertrios. A frente nica era, conforme j ressaltamos anteriormente, um dos elementos centrais das teses e propostas formuladas pelo PCB 19. Dada a afinidade de pensamento entre os criadores do show Opinio e o partido, a idia de uma coalizo com vistas resistncia foi aplicada como perspectiva para os trabalhos realizados desse momento em diante nos trabalhos do grupo teatral que ali se formava. Foi dos desdobramentos, das descobertas e das contradies resultantes desse espetculos e dessa concepo que se constituiria, no teatro brasileiro, o fio inicial da esttica teatral de resistncia. Dramaturgia e Espetculos como pela presena cnica dos trs artistas que a enunciavam de diversas formas e atravs de

16 17

BARCELOS, Jalusa. Op. Cit. Entrevista concedida por Augusto Boal. Pginas 202 e 226. BOAL, Augusto. Hamlet e o Filho do Padeiro. Rio de Janeiro: Record, 2000. 18 BOAL, Augusto. Hamlet e o Filho do Padeiro. Op.cit.p. 224 19 Histria do Marxismo no Brasil, volume III, op. Cit. p. 264. BARCELOS, Jalusa. Op. Cit. Entrevista de Lus Werneck Vianna, p. 316

9 Em 1965, pouco tempo aps a estria do show Opinio no Rio de Janeiro, os artistas e dramaturgos ligados ao Teatro de Arena de So Paulo viriam a posicionar-se por meio de uma srie de espetculos manifestando sua opo por uma forma diversa da poltica de frentes preconizada pelo grupo Opinio. O objetivo, no caso do Arena, era o de angariar apoio, entre os setores da classe mdia de que se constitua o pblico, para as iniciativas de luta armada j ento em processo de articulao. Com essa perspectiva estreou, ainda em 1965, Arena conta Zumbi, o primeiro espetculo de uma srie intitulada Arena conta...., apresentado no Teatro de Arena de So Paulo com texto de Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal e msicas de Edu Lobo. A figura do lder revolucionrio Zumbi e da luta histrica no interior do Quilombo de Palmares foi figurada como representao simblica da conscincia de luta revolucionria, servindo ao mesmo tempo como estmulo para a sua ativao no contexto brasileiro sob a ditadura. Com essa perspectiva de trabalho, o ncleo de artistas do Teatro de Arena tornou explcita a sua recusa em aderir poltica de alianas e de frentes definida pelo Opinio, e deu incio a uma srie de espetculos to calorosamente acolhidos pelo pblico em So Paulo quanto o show Opinio, pouco antes, no Rio de Janeiro. Sucederam-se, assim, trabalhos apoiados numa estrutura pica de dramaturgia e concepo cnica e no uso alegrico de canes: Arena conta Tiradentes (1966), de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri, Arena conta Bahia (1967), de Augusto Boal com msicas de Gilberto Gil e Caetano Veloso, e a Primeira Feira Paulista de Opinio (1968), iniciativa que assinalou o momento culminante de conclamao linha revolucionria reunindo esquetes teatrais de um grupo de jovens dramaturgos cujo trabalho tinha afinidades estticas e polticas com a idia de um teatro de resistncia. Como observa Celso Frederico, pesquisador da histria cultural da esquerda neste perodo, a apologia da guerrilha segue, no mbito dos trabalhos do Teatro de Arena, um destino anlogo ao da apologia da aliana de classes preconizada pelo grupo Opinio, apoiando-se fortemente na receptividade que encontra no movimento estudantil nesse momento. Assim como a iniciativa da resistncia, irradiada a partir do grupo Opinio, no Rio de Janeiro, o apoio guerrilha expresso e manifestado, nos espetculos Arena conta.., de forma igualmente simblica e politicamente circunscrita aos setores de esquerda do prprio movimento estudantil
20

20

. Quando, em

FREDERICO, Celso. A Poltica Cultural dos Comunistas in Histria do Marxismo no Brasil. Op. Cit. P 282.

10 1968, a ofensiva da direita se acirrou e espetculos de orientao revolucionria tornaram-se alvos de ataques de foras militares e para-militares, estudantes passaram a posicionar-se estrategicamente como seguranas de modo a proteger a integridade fsica dos atores e a assegurar a continuidade das apresentaes. No que diz respeito perspectiva dramatrgica e cnica, o Teatro de Arena d um passo importante na direo do pico com a formulao do chamado Sistema Coringa, criado e desenvolvido a partir das concepes de Augusto Boal. A representao da histria no oficial do pas sob o ngulo das aes de carter coletivo e revolucionrio teve papel importante para o debate acerca das possibilidades de realizao efetiva de um teatro e de uma dramaturgia nacionais, apoiados sobre uma base pica de trabalho. Apesar disso, ironicamente, a criao do Sistema Curinga acabou por distanciar Boal das concepes picas de Brecht, como observa Anatol Rosenfeld 21. O crtico, que foi o mais importante interlocutor do Teatro de Arena nesse momento, colocou em questo o aspecto crucial que ali se apresentava: o da representao de protagonistas hericos (Zumbi e Tiradentes) como contradio interna para a efetividade pica e dialtica desejada.22 Em Arena conta Tiradentes, primeira aplicao prtica do Coringa, o protagonista era um heri mitizado que, ao contrrio dos demais personagens, possua conscincia apenas de si prprio e era representado em cena por um nico ator protagnico, no sendo, portanto, objeto de narrao por parte do Coringa no espetculo 23. A mitizao do heri era realizada cenicamente em estilo naturalista, em contraste com o distanciamento aplicado na representao das demais personagens. A forma emptica com que esse heri se apresentava contrapunha-se exegese crtica visada pela voz narrativa do Coringa
24

. O resultado atingido, porm, era saudado por

Boal como um recurso necessrio e desejvel diante da situao poltica atravessada pelo pas: no somos um povo feliz. Por isso precisamos de heris 25. Este mesmo aspecto viria posteriormente a ser objeto de reviso crtica no j citado trabalho de In Camargo Costa, A Hora do Teatro pico no Brasil: a condio herica de uma personagem como Tiradentes comprometia na base a execuo de um
21

ROSENFELD, Anatol. O Mito e o Heri no Moderno Teatro Brasileiro. So Paulo: Perspectiva, 1996.Pgina 15. 22 ROSENFELD, Anatol.loc.cit. 23 ROSENFELD, Anatol. Op. Cit. P 16 e 23 24 ROSENFELD, Anatol.op. cit. P. 16 e 23 25 ROSENFELD, Anatol. Op. Cit. P. 28

11 trabalho de cunho dialtico. Esse dado, somado s dcadas de censura que viriam a seguir, debilitaria inevitavelmente, por longo tempo, as expectativas de um florescimento efetivo das sementes picas antes plantadas com o teatro de rua do CPC.26 O teatro de resistncia constitudo a partir do surgimento do grupo Opinio, construiu a perspectiva de que resistir havia se tornado, para todo um grande setor da cultura e do teatro, no s um objetivo fundamental, mas o objetivo por excelncia dentro da nova conjuntura. A resistncia pressupunha a coalizo de foras e ao mesmo tempo a presena da classe mdia de esquerda de que se constitua o pblico. Liberdade Liberdade, o espetculo que se seguiu ao show Opinio no Rio de Janeiro, em 1965, corroborou as coordenadas de pensamento e expresso estabelecidas por seu predecessor: por meio de uma colagem ltero-musical, os autores, Millr Fernandes27 e Flvio Rangel28 (que tambm atuou como diretor), organizaram uma antologia cnica sobre a histria dos diversos momentos em que as liberdades sociais e polticas haviam sido sufocadas sob o arbtrio dos opressores ao longo da histria. As fontes do espetculo remetiam a textos de consagrados dramaturgos, poetas e pensadores gregos, latinos, europeus, norte-americanos e latino-americanos, e eram, assim, potencialmente insuspeitas, perante a censura, de qualquer possvel carter subversivo. Millor Fernandes, o autor principal, era conhecido, desde o perodo anterior ao golpe, por seu declarado anticomunismo. Tambm Paulo Autran29, ator que encabeava o elenco do espetculo ao lado de Tereza Raquel30, Nara Leo e Oduvaldo Vianna Filho, tinha um histrico de trabalho em nada identificado, at aquele momento, a qualquer forma de teatro poltico ou politizante. O espetculo abria-se ao som do refro do Hino Proclamao da Repblica (Liberdade, liberdade, abre as asas sobre ns...) e encerrava-se incisivamente com a ltima palavra de Prometeu na tragdia homnima de squilo: resisto. Ao mesmo tempo em que exortava a todos unio simblica das foras de oposio, o grupo Opinio procurava entender e discutir as razes da derrota
31

, e isto

requeria um fundamento terico capaz de sustentar a anlise. Pela primeira vez, nesse contexto, uma poltica cultural passava a se mostrar urgentemente necessria ao prprio
26 27

COSTA, In Camargo. Millor Fernandes. [1923-] 28 Flvio Nogueira Rangel. [1934-1988] 29 Paulo Autran. [1922-2007]. 30 Tereza Raquel. [1939-] 31 FREDERICO, Celso.A Poltica Cultural dos Comunistas, op.cit.p. 279.

12 PCB 32: a cultura tinha ganho centralidade e se tornado o epicentro da discusso poltica
33

. A questo cultural vinha a ser, tambm, a questo de base para que o prprio grupo

pudesse formular uma plataforma de trabalho capaz de avanar em relao s conquistas do show que o originara. Liberdade Liberdade havia sido recebido desde o incio como um espetculo inovador: um artigo do New York Times publicado quatro dias aps a estria mencionava, por exemplo, a nova viso dramtica que nele transparecia34.Situando-se esteticamente na seara da cronologia das lutas histricas pelas liberdades civis, seu roteiro padecia, na verdade, dos mesmos limites em que esbarrara o espetculo antecessor: a potencialidade pica, que se apresentava em bruto nos paralelos histricos e polticos com o momento ento vivido, ficava confinada no campo da figurao simblica da resistncia civil. O contexto pedia um amadurecimento da reflexo terica, e o poeta Ferreira Gullar35, um egresso do movimento concretista que havia aderido ao projeto do CPC, teria papel importante nesse sentido: reiterando as posies que assumira ao desligar-se do concretismo, Gullar escreve uma srie ensaios em torno da idia de uma arte nacional, procurando aproxim-la a uma assim chamada grande arte. O ponto de apoio conceitual era a categoria da particularidade, extrada das concepes estticas de Gyorgy Lkacs. Atravs dele Gullar forneceria ao grupo Opinio os elementos que serviriam para destacar a linha nacional e popular, a poltica de frentes, e os elementos destinados contestao das crticas feitas por entidades que defendiam a ao armada e a luta de classes em oposio perspectiva frentista do PCB.36 O carter terica e esteticamente hbrido que resulta dessa perspectiva de pensamento formulado a partir da experincia de criao da pea Se correr o Bicho pega, se ficar, o Bicho come, escrita a quatro mos por Oduvaldo Vianna Filho (Vianinha) em parceria com Ferreira Gullar entre 1965 e 1966. Sua estrutura combina elementos da farsa nordestina e da comdia de situaes, de um lado, ao distanciamento (V-effekt) brechtiano e procura de um alinhamento com obras consagradas da literatura burguesa de outro. Um longo texto de apresentao que integrou o programa do espetculo serve de introduo edio do texto pela Editora Civilizao Brasileira em 1966, e trata de
32 33

FREDERICO, Celso.Op. Cit. 282-283 FREDERICO, Celso.Poltica Cultural dos Comunistas, p. 279;. 34 O New York Times comenta Liberdade, Liberdade. In: FERNANDES, Millr & RANGEL, Flvio. Liberdade, Liberdade. Porto Alegre: L&PM, 2006. p. 9-11. . 35 Jos Ribamar Ferreira. [1930-] 36 FREDERICO, Celso. Op. Cit.

13 definir as razes estticas e polticas que se materializavam no trabalho. Nele o Bicho referido no ttulo apresentado como a imagem alegrica do impasse vivido diante da situao poltica do pas aps o golpe, e os percalos enfrentados pelo protagonista Roque (personagem vivido no palco por Vianinha) so tratados como uma perspectiva de conjunto do prprio trajeto de ambigidades e de contradies da classe mdia. No contexto histrico do Nordeste e dos latifndios, o jovem Roque (papel vivido pelo prprio Oduvaldo Vianna Filho no espetculo) serve simultaneamente a dois coronis arqui-inimigos entre si: Honorato, cuja filha Mocinha namora s escondidas, e Nei Requio, de cuja esposa Zulmirinha amante. Por obras do acaso e tambm de um voluntarismo inconseqente ainda que bem intencionado, Roque acaba por liderar uma revolta de camponeses que culmina com um saque ao armazm da fazenda, e preso logo a seguir. Na cadeia, transformado em mrtir, ele acaba por dar pretexto para a candidatura de Jesus Glicrio, opositor dos dois poderosos coronis. A popularidade do protagonista, provinda tanto de seu carisma pessoal como dos folhetos de cordel que comeara a escrever na priso, acaba sugerindo a Honorato e a Nei Requio a necessidade de se unirem para estrategicamente derrotarem o incmodo opositor. A pea encerra-se, sintomaticamente, com trs diferentes finais, tal como a pera dos Trs Vintns de Brecht, e com uma literal ressurreio de Roque. Esse elemento corrobora na prtica o efeito visado de encantamento, definido como o ponto em comum entre a chamada grande literatura e a literatura popular, e ao mesmo tempo apresentado como um dos recursos que Brecht teria vislumbrado para a dramaturgia pica. A estruturao em versos e o contexto nordestino presentes em Se correr... so elementos comuns a um trabalho bastante diverso em sua estrutura e pressupostos estticos, mas que exerce papel igualmente marcante nesse perodo de surgimento de formas dramatrgicas de resistncia: Morte e Vida Severina, auto de natal pernambucano de Joo Cabral de Melo Neto, encenado pelo TUCA (Teatro da Universidade Catlica de So Paulo) , em 1965. com canes de Chico Buarque de Hollanda. O espetculo viria a ser premiado no Festival de Teatro Amador de Nancy, na Frana, no ano seguinte, juntamente com o mimodrama O&A, de Roberto Freire, sob a direo de Silnei Siqueira. O indiscutvel sucesso de pblico de todos estes trabalhos (Morte e Vida Severina, Se correr o Bicho pega, se ficar o Bicho come, Arena conta Zumbi e Arena conta Tiradentes) levados cena nos anos que seguem ao golpe, no havia

14 afastado a preocupao com a necessidade premente de desenvolvimento de uma dramaturgia capaz de lidar eficazmente com as novas condies do pas. Com o intuito de encontrar formas mais combativas de lutar contra a represso e o autoritarismo e tambm de fomentar um possvel novo ciclo de criao dramatrgica, o Teatro de Arena de So Paulo prope-se a organizar um ciclo de Seminrios de Dramaturgia nos moldes do realizado nos final dos anos 1950. Afinal, a perspectiva de um trabalho dramatrgico vigoroso e continuado constitua uma forma importante de trabalho do teatro brasileiro frente ao regime de direita. Os novos Seminrios reuniram dramaturgos, e diretores internos e externos ao Arena: Augusto Boal, Antunes Filho, Walter Negro, Anatol Rosenfeld, Renata Pallotini, Carlos Murtinho e Walter Avancini estavam entre os participantes principais
37

. Em fins de 1968, uma Primeira Feira Paulista de Opinio foi organizada

tendo como mote uma pergunta feita aos artistas envolvidos: O que pensa voc do Brasil de hoje? O objetivo era apresentar as peas que, empenhadas em responder a essa questo, procurassem aprofundar a figurao crtica e o enfrentamento poltico do regime. Alguns dos mais representativos dramaturgos de esquerda do perodo foram reunidos - Augusto Boal, Brulio Pedroso, Gianfrancesco Guarnieri, Lauro Csar Muniz, Jorge Andrade e Plnio Marcos - alm de compositores como Ary Toledo, Caetano Veloso, Edu Lobo, Gilberto Gil e Srgio Ricardo. O espetculo foi dividido em dois atos: do primeiro faziam parte Tema, de Edu Lobo, Enquanto o Seu Lobo No Vem, de Caetano Veloso, O Lder, de Lauro Csar Muniz, O Sr. Doutor, de Brulio Pedroso, ME.E.U.U. Brasil Brasileiro, de Ary Toledo e Animlia, de Gianfrancesco Guarnieri. Do segundo constavam Espiral, de Srgio Ricardo, A Receita, de Jorge Andrade, Verde Que Te Quero Verde, de Plnio Marcos, Miserere, de Gilberto Gil, e A Lua Muito Pequena e A Caminhada Perigosa, de Augusto Boal. Dado o nmero de cortes sofrido pelo texto submetido Censura (setenta e um), A Primeira Feira Paulista de Opinio foi apresentada em junho de 1968, mesmo com o veto dos censores, num ato pblico de resistncia.

37

VARGAS, Maria Thereza & MAGALDI, Sbato. Cem Anos de Teatro em So Paulo: 1875-1974. So Paulo: SENAC, 2000.

15 Em texto intitulado O que pensa voc da arte de esquerda?, escrito para o programa do espetculo, Augusto Boal procurou mapear as tendncias e perspectivas dominantes nos diferentes setores da esquerda naquele momento. O reconhecimento de diferenas servia de prembulo para um alerta acerca da necessidade da unio estratgica de todos, fosse qual fosse a orientao esttica ou poltica postulada. A perspectiva de uma resistncia, embora no explicitamente definida, ficava claramente subentendida em termos bastante compatveis com o teor de Um pouco de pessedismo no faz mal a ningum, que Vianinha publicaria, nesse mesmo ano de 1968, num nmero especial da Revista Civilizao Brasileira destinado discusso das questes do teatro brasileiro nesse perodo. A idia de uma linha de trabalho voltada expresso de uma resistncia ao golpe havia se consolidado no setor teatral, e passara a se evidenciar nos espetculos dos principais ncleos do teatro de esquerda nesse momento. Em 1967 o grupo Opinio havia encenado Meia Volta vou ver, texto de Vianinha com forte ressonncia do show Opinio e de Liberdade Liberdade, combinando o uso estratgico de poesia, msica popular e esquetes cmicos. Ao aplicar expedientes do humor para fazer a crnica das mazelas polticas nacionais, Meia Volta... reacendeu o interesse de Vianna pela forma da revista teatral e pela criao de um novo ncleo onde espetculos dessa linha pudessem ser priorizados. Moo em Estado de Stio, escrita em 1965, havia sido proibida pela censura, e o grupo Opinio havia anunciado, na seqncia temporada de Se correr..., a encenao de O Inspetor Geral, de Gogol, indicando que o compromisso com a exclusividade de peas nacionais no estava entre as prioridades do grupo naquele momento. Diante desse quadro, o desejo crescente de continuar a aprofundar seu trabalho dramatrgico motivou Vianinha a desligar-se do grupo Opinio e a criar o Teatro do Autor Brasileiro, nesse mesmo ano de 1967, juntamente com Armando Costa. O desligamento de Vianna no representou qualquer tipo de rompimento: seu interesse era experimentar estrategicamente a forma da revista, historicamente associada a importantes realizaes no teatro poltico no contexto europeu. Ao mesmo tempo, ele identificava a necessidade de procurar, de forma contnua e sistemtica, um tratamento cada vez mais eficaz da expresso teatral capaz de potencializar a representao artstica de questes polticas imediatas. Foi essa, alis, a meta anunciada no texto de

16 apresentao de Dura Lex sed Lex, no cabelo s Gumex, stira poltica com estrutura de revista musical que Vianna escreveu como espetculo inaugural do TAB (Teatro do Autor Brasileiro). Embora a idia de uma resistncia propriamente dita ao golpe no se fizesse explcita nesse trabalho como no show Opinio e em Liberdade Liberdade, Dura Lex indicava, da parte de Vianna e dos demais realizadores envolvidos, o desejo de realizar, por meio da revista musical, o levantamento crtico e a crnica dos problemas nacionais. Sob o autoritarismo e a ditadura vigentes, esse exerccio assumia uma feio de indiscutvel resistncia ao estado dominante de coisas, j que implicava a sobrevivncia de um pensamento crtico e de um esprito de denncia combinados a um olhar satrico e analtico sobre a situao reinante no pas. A idia da dramaturgia como veculo fundamental de trabalho se apresentaria, na mesma poca, como fruto de outra iniciativa paralela encabeada por Vianna: no mesmo ano de 1967 estreava O Santo Inqurito, de Dias Gomes, outro egresso do grupo Opinio. Utilizando um expediente de criao semelhante ao do norte-americano Arthur Miller em As Bruxas de Salm (The Crucible), a pea de Dias Gomes colocava em foco um episdio histrico real: o processo inquisitorial movido contra a jovem Branca Dias, acusada e julgada por heresia na Paraba de 1750. Na corajosa disposio da protagonista, de enfrentar seus inquisidores e algozes, projetava-se simbolicamente a associao metafrica com o compromisso consciente de oposio e resistncia ao arbtrio e autoritarismo. Em As Bruxas de Salm, escrita em 1953, Arthur Miller tambm havia lanado mo de episdios reais da histria colonial norte-americana: a condenao de dezenove moas acusadas da prtica de bruxaria na cidade de Salem, Massachussets, no nordeste dos Estados Unidos, em 1692. A histeria coletiva rapidamente disseminada e a onda vertiginosa de delaes que se instaurara na comunidade foram tratadas pelo dramaturgo como alegoria que figurava, no plano simblico, a condio da sociedade norte-americana sob o macartismo. De forma anloga a essa Dias Gomes debruou-se sobre o processo inquisitorial impetrado contra Branca Dias para representar, em circunstncias historicamente verdicas, o empenho de uma conscincia modelar na resistncia necessria violncia e ao arbtrio. A representao dramatrgica da luta do intelectual derrotado mas ainda assim inabalvel diante de foras obscurantistas tambm compunha a matria dramatrgica de

17 outra pea de Dias Gomes, Vamos soltar os demnios, escrita no ano anterior (1966) e reelaborada alguns anos mais tarde com o ttulo de Amor em Campo Minado. Tal como em Mo na Luva, escrita por Vianinha nesse mesmo ano e s encenada uma dcada aps sua morte, o assunto representado na pea de Dias Gomes era o do confronto poltico entre um casal, travado de forma turbulenta entre as pulses do afeto, do desejo, e da conscincia debilitada por diferentes formas de cooptao. Para Anatol Rosenfeld a anlise psicolgica delineada por Dias Gomes em Vamos soltar os demnios turvava a viso da realidade poltico social latente
38

. Em

O Santo Inqurito, por outro lado, quando uma herona representativa irrompia em cena, o crtico detectava elogiosamente um realismo nutrido de esperana 39. Dentro do contexto poltico desses anos sombrios, essa caracterstica a de suscitar o entusiasmo diante da adversidade - acabava funcionando como forma de uma desejada (ainda que ilusria e simblica) resistncia. Nos difceis anos que se seguem a 1968 um dos expedientes mais recorrentes de figurao dramatrgica associada idia de resistir se deu por meio de personagens ou relaes emblemticas, capazes de subsumir em si os traos essenciais do contexto poltico de autoritarismo e de cerceamento das liberdades de expresso. Sob a gide da censura e com a imprensa e os meios de comunicao sob o total controle do regime militar, havia uma tendncia a encarar como politicamente empenhado e crtico todo e qualquer trabalho que se dedicasse a apresentar situaes representativas da atmosfera de sufocamento e de falta de perspectivas reinante. No necessrio dizer que essa forma de figurao era radicalmente oposta do imaginrio veiculado nas campanhas estatais e no farto material de cunho cvico distribudo pelos poderes estatais e divulgado abundantemente na mdia impressa e falada. Em alguma medida textos e espetculos voltados para a representao do beco sem sada em que se debatia a classe mdia tendiam a ser associados idia de resistncia, muito embora representassem, j, perspectivas diferentes das do show Opinio logo aps aps o golpe. Cordlia Brasil, escrita pelo ento estreante Antonio Bivar em 1968, um dos textos que podem ser vistos sob esse ngulo. 40 A falta de horizontes de transformao e o fechamento de perspectivas para o futuro, figurados por meio de estruturas como as praticadas por Bivar nessa pea, so
38 39

ROSENFELD, Anatol. Op. Cit. P 82-84. ROSENFELD, Anatol. Op. Cit. P. 86. 40 Para uma anlise dramatrgica aprofundada de Cordlia Brasil e das demais peas de Bivar e de seus contemporneos, veja-se o captulo intitulado... pgina... deste volume.

18 retomadas pouico depois em outro trabalho seu, Abre a janela e deixa entrar o ar puro e o sol da manh, e passariam a ser empregadas, paralelamente, por um nmero cada vez maior de dramaturgos em espetculos com diferentes perspectivas dramatrgicas e cnicas. Essa tendncia seria particularmente representativa do perodo compreendido entre 1968 (com o AI-5) e 1979-80, com a entrada na chamada fase de abertura democrtica, quando as primeiras levas de peas proibidas comearam a ser gradualmente liberadas, num contexto j bastante diferente daquele em que haviam sido escritas. A estrutura do musical seria revisitada, em 1968, num espetculo do Teatro Oficina que vinha assinalar a radicalizao das propostas tropicalistas pouco antes configuradas com a encenao de O Rei da Vela, de Oswald de Andrade: tratava-se de Roda Viva, pea de Chico Buarque de Hollanda concebida como crtica corrosiva ao mecanismo alienante e massificador da indstria fonogrfica e da sociedade de consumo, ento em processo de expanso no pas. A transformao de um simplrio cidado comum, Benedito Silva, no dolo de massas Ben Silver abordada por meio de uma esttica cnica de carter grotesco, que no se deixava intimidar diante de instituies como a Igreja e o mercado, e que se dispunha a demolir mitos e esteretipos do pensamento dominante. Apesar da temporada de sucesso que cumpriu no Rio de Janeiro, Roda Viva teve o poder de dividir opinies e de polarizar admiradores e detratores tanto entre o pblico como entre a crtica. Essa polarizao explica o acirramento dos nimos da direita reacionria, que viria a desencadear agresses contra o elenco e depredaes do cenrio tanto na temporada de So Paulo como na de Porto Alegre. Ainda que numa chave diversa da anteriormente praticada, o Arena daria seqncia sua empreitada no gnero musical com Marta Sar, de Gianfrancesco Guarnieri. A pea, escrita por encomenda da atriz Fernanda Montenegro, colocava em cena a saga de uma jovem nordestina pobre transformada em prostituta rica e famosa no Rio de Janeiro. O espetculo viria trazer ao compositor Edu Lobo o segundo lugar no Festival da Msica Popular Brasileira da TV Record em So Paulo em 1968. Entre esse ano e 1979, enquanto as gavetas da censura iam progressivamente se abarrotando de peas vetadas em todo o pas, a dramaturgia que efetivamente conseguia ganhar os palcos mostrava fazer uso de formas cada vez mais hbridas, movida pela necessidade de figurar em chave metafrica aquilo que as circunstncias polticas do pas proibiam sumariamente. Esse continuava a ser o fulcro propulsor de trabalhos que

19 tomavam a si, com diferentes recursos dramatrgicos e cnicos, a continuidade da tarefa visada de resistncia. As estratgias formais que Dias Gomes tomara emprestadas a Arthur Miller e que utilizara em O Santo Inqurito viriam a ser empregadas por vrios outros dramaturgos nesse mesmo perodo do teatro brasileiro: fontes bibliogrficodocumentais e/ou pesquisa historiogrfica de momentos de luta pela liberdade dariam base a peas como a impactante tragdia histrica As Confrarias, de Jorge de Andrade (1968), os musicaisCastro Alves Pede passagem, de Gianfrancesco Guarnieri (1971) e Calabar (1972), de Ruy Guerra e Chico Buarque de Hollanda (1972) e Frei Caneca(1972) , de Carlos Queiroz Telles, dramaturgo que fez farto uso da figurao das questes histricas em seu teatro
41

. Nesse mesmo ano de 1972

Queiroz Telles escreveria, ainda, A Semana. Esses Intrpidos Rapazes e sua Maravilhosa Semana de Arte Moderna (1972), pea qual coube a tarefa de, em pleno contexto das comemoraes cvico-militares do Sesquicentenrio da Independncia do pas, promovidas pela ditadura, contrapor um foco de ateno voltado para o cinquentenrio do movimento de renovao das artes e da literatura de 1922, o que contribuiu para conferir pea um carter implcito de resistncia. Tambm de base histrica o Auto da Barca de Camiri, de Hilda Hilst, impregnado porm de forte cunho cristo. A pea alude em seu ttulo cidade boliviana prxima ao local do assassinato do lder revolucionrio Ernesto Che Guevara, e joga com a ambigidade de sentidos entre o auto processual e o sacramental, de origem medieval e jesutica. A propsito do trabalho teatral de Hilda Hilst oportuno observar que as oito peas que compoem sua obra foram criadas entre 1967 e 1968, precisamente no momento em que o pas vivenciava o perodo de maior represso s liberdades expressivas e ao pensamento criador. E certamente no casual o fato de as situaes figuradas em suas peas remeterem a contextos de confinamento, colocando oprimidos e opressores em contato e em confronto em espaos como uma capela cercada por muros (O Rato no Muro), uma instituio psiquitrica (A empresa, tambm intitulada A Possessa), uma pequena casa em um vilarejo do interior (O Verdugo) e um campo de concentrao (As Aves da Noite).

41

A este respeito veja-se GUERRA, Marco Antonio. Histria e Dramaturgia em Cena (dcada de 70). So Paulo, Annablume, 2004.

20 O Rato no Muro, juntamente com Pedro Pedreiro (1967), texto de Renata Pallotini inspirado na msica homnima de Chico Buarque de Hollanda, foi dirigido por Thereza Aguiar, e integrou o primeiro espetculo da Escola de Arte Dramtica de So Paulo a excursionar ao exterior, tendo participado do Festival de Teatro Universitrio de Manizales, na Colmbia, em 1967. A figurao dramatrgica de situaes de enclausuramento poltico e de cerceamento da liberdade tornou-se recorrente, e diante das circunstncias histricas do pas, passou a ser encarada como manifestao latente de um impulso de resistncia ditadura. Um exemplo importante dessa tendncia Prova de Fogo: escrita por Consuelo de Castro em 1968, e sumariamente proibida pela Censura e veio a ser reelaborada com o ttulo de A Invaso dos Brbaros em 1974, quando recebeu o prmio do Servio Nacional de Teatro. A pea, s encenada em 1993 sob a direo de Aimar Labaki, abordava o momento de confronto entre as foras da represso (policiais militares e Comando de Caa aos Comunistas), e estudantes de diferentes faces da esquerda concentrados no prdio sitiado da Faculdade de Filosofia, Cincias e Letras da Universidade de So Paulo, na Rua Maria Antonia, na capital paulista.A Cidade Impossvel de Pedro Santana (1975), tambm de Consuelo de Castro, daria seqncia figurao dos desafios e dos equvocos de uma conscincia potencialmente transformadora confinada nos limites de uma iniciativa individual idealista: num contexto de operrios de uma usina siderrgica, interesses de vrias ordens associam-se aos poderes locais para inviabilizar o projeto de construo de uma cidade com padres mais dignos de moradia e de vida para os trabalhadores. Premido diante do poder dominante, o proponente, um arquiteto idealista, v-se acuado entre as sombrias perspectivas da auto-destruio ou da capitulao. Papa Highirte (1968), de Oduvaldo Vianna Filho, texto premiado com o primeiro lugar no concurso de dramaturgia do Servio Nacional de Teatro, reiterou uma inquietao recorrente de seu autor desde Moo em Estado de Stio (1965) e Mo na Luva (1966): a de encontrar recursos dramatrgicos e cnicos compatveis com as necessidades de figurao e anlise que se impunham diante da ausncia cada vez mais angustiante de perspectivas de transformao e luta. Os impasses da esquerda so figurados por ele, em Papa Highirte, propsito do ocaso de um caudilho (Juan Maria Guzamn Highirte, denominado Papa por seu carisma populista, tal como Papa Doc ou Papa Duvalier) em uma repblica fictcia na Amrica Latina em face dos novos interesses do capitalismo norte-americano, acobertados pela bandeira da

21 democratizao. A Longa Noite de Cristal (escrita em 1970 mas encenada em 1973), tambm de Oduvaldo Vianna Filho, trataria, algum tempo depois, de um assunto at ento praticamente intocado como matria de figurao dramatrgica no Brasil: a exposio sem meias tintas da manipulao e da censura interna das informaes veiculadas nos noticirios televisivos. Sob prisma formalmente anlogo mas com uma gama de diferentes temas, a dramaturgia deste perodo registra e denuncia, paralelamente, outros processos de confinamento e de luta poltica. No monlogo Corpo a Corpo (1971), por exemplo, Oduvaldo Vianna Filho coloca em foco um protagonista de classe mdia s vsperas do ato final de sua cooptao, aps uma longa e angustiante noite ao fim da qual derrotado por suas prprias contradies. Em Botequim (1972), Gianfrancesco Guarnieri lana mo do confinamento como recurso formal estratgico: ao representar um grupo de pessoas abrigadas no interior de um bar numa noite de tempestade, o autor cria o pretexto formal para a construo de um painel das conscincias de classe mdia, acuadas diante da falta de perspectivas e da precarizao de todas as suas premissas de vida. A chave alegrica esboada em Botequim seria aprofundada por Guarnieri em Um Grito parado no Ar (1973), pea que evidenciava a busca intensa do autor por tcnicas que lhe permitissem tratar ao mesmo tempo das questes imediatas e dos impasses vividos pelo teatro, simbolicamente representado por um diretor teatral e cinco atores. Guarnieri voltaria a lanar mo da alegoria combinada parbola em um trabalho posterior tambm associado a uma esttica de resistncia: Ponto de Partida (1976), texto que remetia situao do assassinato do jornalista Vladimir Herzog nas dependncias do DOI-CODI42 de So Paulo, em 1975, aonde havia sido levado a depor. Esse mesmo terrvel episdio seria novamente tratado em Pattica (1977), de Joo Ribeiro Chaves Neto, com a utilizao de expedientes meta teatrais e por meio da linguagem do circo, e tambm em Fbrica de Chocolate (1979), de Mrio Prata. Dentro do contexto contexto poltico da primeira metade dos anos 1970, a necessidade de dar substncia artstica resistncia tornou-se um impulso premente a ponto motivar o surgimento de uma nova autora teatral: Maria Adelaide Amaral, cuja pea de estria, escrita em 1975, viria a chamar-se justamente A Resistncia. O texto
42

Destacamento de Operaes e Informaes e Centro de Operaes de Defesa Interna. rgo subordinado ao Exrcito e criado em 1969 com o intuito de combater as organizaes da esquerda armada.

22 colocava em foco a ameaa iminente de demisso coletiva que pairava sobre os funcionrios de uma redao de jornal e que criava, assim, um clima sufocante e insuportvel. Tratava-se de uma situao que a autora estava enfrentando precisamente naquele momento de sua carreira profissional como jornalista. Na pea uma pequena galeria de personagens, todas tipicamente associadas a perfis extrados da agenda poltica e comportamental da classe mdia de esquerda, trazia pauta os impasses produzidos no mundo do trabalho pelo modelo econmico imposto pela ditadura. Inscrita no concurso de Dramaturgia do Servio Nacional de Teatro em 1976, a pea foi classificada em quarto lugar, mas o veto da censura retardou a sua encenao, que s viria a ocorrer em 1979. No mesmo ano de 1975 um texto tele-dramatrgico intitulado Media, escrito dois anos antes por Oduvaldo Vianna Filho, daria ensejo criao de uma pea emblemtica da dramaturgia da resistncia: Gota dgua, de Paulo Pontes e Chico Buarque de Hollanda. Baseada na tragdia homnima de Eurpedes, o texto de Vianna havia sido criado para um programa de teleteatro da Rede Globo de Televiso intitulado Caso Especial43. Tal como na Media televisiva de Vianna, o enredo trgico de Gota dgua era contextualizado num conjunto habitacional da Zona Norte carioca, e colocava em foco o tringulo amoroso constitudo entre um compositor de sambas (Jaso), a mulher com quem ele vivera durante anos e que lhe dera dois filhos (Joana), e a bela jovem de quem acabara de ficar noivo, Alma, filha de Creonte, o proprietrio do conjunto habitacional. Em texto de apresentao escrito sobre a pea, Paulo Pontes e Chico Buarque de Hollanda declaravam buscar, apoiados na concepo de Vianna, a representao do proletariado, procurando para isso um padro esttico que em alguma medida superasse o que consideravam uma crise da razo: lembre-se, a esse respeito, que esse perodo (primeira metade da dcada de 1970) assinalava no pas o pice da chamada contracultura, e que esta antagonizava e depreciava explicita e contundentemente as principais premissas da arte de esquerda. Ao alegorizar as classes figuradas nas personagens da tragdia, Gota dgua dava pistas importantes sobre as transformaes em curso na sociedade brasileira naquele momento. Tal como a classe
43

Caso Especial foi transmitido pela Rede Globo de Televiso entre 10 de setembro de 1971 e 5 de dezembro de 1995, com dia, horrio e periodicidade de exibio variados, tendo totalizado 172 episdios com durao mdia de uma hora cada um. Media, de Oduvaldo Vianna Filho, foi ao ar em 14 de fevereiro de 1972. http://www.teledramaturgia.com.br/caso.htm [31-01/2011]

23 mdia brasileira no contexto ps-golpe, o Jaso carioca traia a ligao que tinha com suas razes proletrias, associadas a Joana, e aderia sem conflitos ao conforto imediatista da ascenso social e da cooptao. A estrutura e a concepo de peas como Corpo a Corpo e Gota dgua indicavam claramente que a questo mais premente quanto matria representada passara a ser a de detectar e de tornar visveis os impasses e as contradies da sociedade civil diante do estado autoritrio. Parecia ficar subentendido que, ao se procurar enxergar as formas pelas quais algum sucumbia diante da opresso ou era cooptado pela ideologia dominante, estava-se j um passo adiante no sentido de intervir nelas e de super-las. Dentro das formas de prtica teatral e cultural que subsistiram aps o golpe, este era, nesse momento, o horizonte mximo de representao esttica e de reflexo crtica a que se chegava. Alegorizar e denunciar situaes e temas de resistncia a diferentes formas de opresso foi um dos recursos mais freqentemente empregados, na dramaturgia deste perodo, para tratar do contexto da ditadura, das perseguies e da tortura sem atrair a ateno sempre vigilante e cerceadora da censura federal. Torquemada (1971), de Augusto Boal, e Missa Leiga (1972), de Chico de Assis, esto entre os textos mais representativos dessa tendncia. Torquemada foi escrita num momento crucial para Boal, seja no sentido poltico, seja no esttico. Os assuntos mais prementes do contexto imediato - o cerceamento das liberdades civis, as prises, as torturas, e o crescente nmero de desaparecidos polcos - eram sumariamente vetados pela censura. As perspectivas do pico, plenamente compatveis com a representao dramatrgica e cnica da matria histrica e das questes coletivas, haviam demonstrado, em Arena conta Tiradentes e Arena conta Bolvar, a necessidade de se reavaliar a relao entre distanciamento crtico e empatia: afinal, uma contradio se apresentara, naquelas peas, devido coexistncia do sistema curinga com a presena do heri. Ao centrar a pea sobre a figura de Toms de Torquemada, um inquisidor espanhol do sculo XV, desaparecia o desafio de figurar em cena uma personagem dotada de uma caracterstica modelar, herica e inspiradora como Tiradentes. Ficavam implcitas, ao mesmo tempo, as analogias entre os procedimentos inquisitoriais na Espanha e a ao do Estado militar sob a ditadura brasileira, e entre os inssurrectos de Castela e Arago e os militantes revolucionrios de organizaes de esquerda presos e torturados nos rgos de segurana brasileiros.

24 Missa Leiga deveria ter sido encenada na Igreja da Consolao, na cidade de So Paulo, mas o veto da censura e o repdio dos setores conservadores da Igreja no o permitiu, levando o espetculo a ser apresentado no Teatro Ruth Escobar, onde cumpriu temporada de enorme repercusso sob a direo de Ademar Guerra. A estrutura da pea remetia forma litrgica da missa catlica, expurgada porm da consagrao, e reorganizada maneira dos autos medievais. Passagens do Antigo e do Novo Testamentos foram intercaladas a narrativas da literatura crist. A parfrase das partes rituais constitutivas da liturgia as revestiu de um apelo social cenicamente enunciado com forte comoo. Um dos trechos mais impactantes, o Ato Penitencial, previa a descida dos atores at a platia com pequenos gravadores em que denncias e declaraes annimas sobre atos de tortura e crimes praticados pelo regime podiam ser livremente registrados. A tortura, o exlio e o desaparecimento de prisioneiros polticos seriam abordados, nos anos subseqentes, em inmeras peas: Milagre na Cela (1977), de Jorge de Andrade,Murro em Ponta de Faca (1978), de Augusto Boal, e em Sinal de Vida de Lauro Csar Muniz (1979). A matria histrica figurada nessas peas dava expresso dramatrgica e cnica aos horrores praticados pelo regime. Milagre na Cela, baseada em fatos reais, foi sumariamente proibida pela censura por colocar em cena a tortura e o estupro de uma freira militante, Joana de Jesus, por um delegado de polcia. Murro em Ponta de Faca, que viria a ser montada e dirigida por Paulo Jos, tratava da vida dos exilados polticos. Sinal de Vida, que teve grande sucesso de pblico, era fortemente apoiada nos impasses profissionais de Lauro Csar Muniz e nos desafios que este encontrara em seu trabalho de dramaturgo diante da represso, da censura e da perseguio poltica. A figurao metafrica ou alegrica de questes histricas ou de lutas polticas tendia a ser rapidamente identificada como um impulso implcito de resistncia ditadura, mesmo que o efeito mximo visado fosse o de conseguir varar a vigilncia crassa dos censores e ganhar os palcos. Abordar contedos suprimidos do prprio noticirio dos jornais era tratado, nesse momento, como avano esttico e poltico, e isso atendia expectativa de largas faixas do pblico de classe mdia. A luta pela expresso do que se encontrava vetado pela censura quase sempre representava uma ameaa sobrevivncia material dos dramaturgos e dos grupos teatrais no mbito comercial. Diante da exigidade crescente de trabalho teatral, autores como Oduvaldo Vianna Filho, Gianfrancesco Guarnieri e Armando Costa, e atores

25 como Paulo Jos, Flvio Migliaccio, Milton Gonalves e Dina Sfat, entre outros foram sendo progressivamente atrados pela televiso, aumentando assim consideravelmente o esvaziamento do teatro como forma de expresso crtica. Dentro desse contexto tornou-se corrente a idia de que as peas artstica e polticamente mais significativas encontravam-se, presumivelmente, nas gavetas da censura, j que a lista de proibies crescia em proporo idntica da proliferao de montagens de apelo estritamente comercial. Diante desse quadro no foi casual que o trabalho esttica e politicamente mais significativo tenha sido precisamente aquele ao qual caberia a mais rdua e longa batalha diante do veto da censura: Rasga Corao, de Oduvaldo Vianna Filho, pea concluda em 1974 s vsperas da prematura morte do autor e que s estrearia em 1979, j em pleno contexto da chamada pr abertura. A trajetria de Rasga Corao ligava-se a duas rduas e longas lutas travadas sucessivamente: a primeira delas foi a do prprio Vianna, que durante o processo de criao se viu obrigado a lidar com a premncia do tempo diante do estgio terminal da doena que viria a vitim-lo. A segunda foi a de Jos Renato, diretor e antigo companheiro do Teatro de Arena a quem Vianna confiara a direo do espetculo e as tentativas de obter a sua liberao. Apoiado por setores de frente do movimento teatral do Rio de Janeiro, de So Paulo e de outras capitais, Jos Renato apelou sucessivas vezes Censura Federal, mas a morte de Vianna acabou por ocorrer antes que qualquer sinal, por remoto que fosse, indicasse a possibilidade concreta da liberao. Ironicamente a pea havia sido inscrita no recm reaberto Concurso Nacional de Dramaturgia do Servio Nacional de Teatro logo que concluda, e veio a ser unanimemente classificada pelo juri em primeiro lugar. Isso a colocou na paradoxal situao de receber ao mesmo tempo a premiao mxima da dramaturgia nacional e o veto sumrio e irrevogvel que proibiu terminantemente tanto a sua circulao impressa como sua leitura pblica e encenao em todo o territrio. A comoo generalizada diante desse fato assinalou o incio de uma srie de mobilizaes por parte de segmentos significativos do meio teatral e da sociedade civil. Como forma de resistncia ativa diante da proibio, leituras dramticas passaram a ser promovidas a portas fechadas em diversos teatros das principais capitais, e exemplares mimeografados do texto comearam a ser impressos e distribudos artesanalmente por todo o pas.

26 Esse movimento latente e continuado de desobedincia civil e de resistncia democrtica estendeu-se at 1979, quando Rasga Corao, finalmente liberada, estreou sob a direo de Jos Renato no Teatro Guara, em Curitiba. Pouco tempo depois o SNT (Servio Nacional de Teatro) lanaria o volume com o texto da pea acompanhado pela ntegra do extenso dossi de pesquisa histrica e lingstica que servira de base a Vianna para a sua criao. De 1974 a 1979, Rasga Corao foi, sem sombra de dvida, a pea teatral mais lida e discutida nos setores ligados cultura e ao pensamento crtico no pas. A expectativa em torno de sua liberao norteou grande parte das discusses sobre o teatro e as perspectivas culturais. Entre os motivos que haviam contribudo para essa ansiedade crescente em torno de sua encenao estava o fato de o texto empreender a sntese pica de setenta anos da histria poltica do pas, registrando-a sob a tica dos militantes do PCB e das lutas travadas em seu cotidiano. Trs sucessivas geraes eram ali figuradas sob o prisma das esquerdas em plena gide da ditadura e do autoritarismo.Rasga Corao representou, com isso, o mais significativo avano do teatro nacional, at aquela data, no sentido do amadurecimento de uma forma dramatrgica visceralmente pica. As diversas perspectivas de mobilizao pblica para que Rasga Corao fosse liberada ocorreram dentro de um contexto de resistncia iniciado anos antes por meio da progressiva organizao de pequenos grupos amadores e independentes nas periferias dos principais centros urbanos. A orientao desses grupos convergia para a busca continuada de uma expresso dramatrgica popular e crtica em relao ao mercado e ideologia veiculada na mdia. Com o surgimento desses pequenos coletivos, estruturas de produo independente passam a se disseminar por todo o pas. Em So Paulo a fuso de dois grupos pr existentes (o Teatro do Onze, ligado originalmente Faculdade de Direito do Largo de So Francisco, e o Teatro Casaro, integrado por bancrios, porteiros, engraxates e outras categorias profissionais) daria origem, em 1966, ao Teatro Unio e Olho Vivo, um dos mais atuantes e significativos ncleos de prtica teatral associada ao teatro poltico e de resistncia. Por resistncia entenda-se, neste caso especfico, o resultado de trabalhos de criao e encenao de uma dramaturgia que, por se caracterizar como popular e apoiada numa perspectiva crtica e dialtica, resistia contra o estado vigente de coisas no mbito do teatro comercial e da cultura institucionalizada.

27 O Unio e Olho Vivo, fundado por Csar Vieira (nome artstico de Idibal Pivetta) revigorou consideravelmente a idia da resistncia ao estabelecer que a funo do teatro era representar e discutir tanto a explorao econmica e a distribuio desigual da riqueza como a dominao cultural promovida pelos meios de comunicao. O Evangelho segundo Zebedeu (1970), adaptao de Os Sertes, de Euclides da Cunha, foi o espetculo inicial do grupo, com utilizao de elementos da esttica circense. Com forte presena da cultura do Nordeste em sua dramaturgia, o Teatro Unio e Olho Vivo passou a contar, em seus quadros, com setenta por cento de atores provindos do proletariado, o que se caracterizava como inequvoca resistncia s formas institucionalizadas de trabalho cultural. Tambm em So Paulo, no final da dcada de 1960 mais precisamente no decorrer de 1969 - um grupo de cerca de vinte jovens entre dezessete e vinte e um anos inscreveu-se em um curso de interpretao oferecido pelo Teatro de Arena, vindo a desenvolver pouco tempo depois um trabalho de grande importncia no mbito do teatro poltico e de resistncia. Entre esses jovens estavam Celso Frateschi, Denise Faltico (Depois Denise Del Vecchio), Dulce Muniz, Edson Santana, Elsio Brando e Hlio Muniz, todos ligados, como o prprio Boal na poca, a organizaes de militncia clandestina de esquerda. Do trabalho que desenvolveram resultou a criao do TeatroJornal, que abriria uma florescente linha de esquetes agitativos apresentados nos bairros perifricos em escolas, sindicatos, sales paroquiais, galpes, clubes e entidades culturais na cidade de So Paulo e seu entorno. O curso que os atrara ao Arena era ministrado por professores encarregados do ensino tcnico de canto, de voz, de danas brasileiras, de histria e de interpretao. A formao interpretativa era ministrada em parte por Rodrigo Santiago44, mas principalmente por Heleny Guariba 45. Heleny tinha um histrico expressivo de trabalho ligado militncia poltica, e, ao Grupo de Teatro da Cidade de Santo Andr, (o GTC), fundado em 1968. Este grupo, juntamente com vrios outros organizados nesse mesmo perodo, como o Ncleo Expresso de Osasco, o Teatro-Circo Alegria dos Pobres, o Ncleo Independente, o Teatro Unio e OlhoVivo, o Grupo Ferramenta de Teatro e o Grupo de Teatro Forja, constituram o chamado teatro da militncia, ao qual coube a tarefa de, no perodo de
44 45

Rodrigo Santiago [1943-1999] ator e professor da Escola de Arte Dramtica de So Paulo. Heleny Ferreira Telles Guariba [nascida em 1941 e desaparecida em 1971] foi professora e diretora do Grupo de Teatro da Cidade de Santo Andr, tendo militado na VPR (Vanguarda Popular Revolucionria).

28 maior fechamento e represso poltica, construir na prtica a esttica teatral da resistncia poltica. A ligao do trabalho artstico e formativo de Heleny com a militncia de esquerda revolucionria representou um importante fator de motivao para os ingressantes inscritos no curso. O clima poltico do pas apontava cada vez mais na direo da luta revolucionria, e Boal desejava no apenas atrair novos quadros para o Arena, mas fomentar a procura por formas de teatro diretamente ligadas aos setores da sociedade potencialmente capazes de avanar na transformao do regime. O elenco de Arena conta Bolvar, sob a direo de Boal, havia recebido um convite para apresentar-se em Nova Iorque, no La Mama Experimental Theater Club, ncleo artisticamente importante de encenao do off off Broadway, circuito independente novaiorquino. A notcia da priso de Heleny Guariba sobreveio durante a fase de ensaios de O Casamento de Fgaro, de Beaumarchais, cuja direo, apoiada em concepo marxista, ela assumira apoiada na experincia da montagem de George Dandin, que havia dirigido em 1968 com o GTC em Santo Andr. O Arena no dispunha de condies financeiras para que o elenco de Arena conta Bolvar pudesse viajar aos Estados Unidos, e no podia pleitear verba para fazlo. Por isso, uma das expectativas em relao montagem da pea de Beaumarchais era a de captao da verba que viabilizaria a viagem. Com a priso de Heleny, Boal assumiu a direo da pea contando com a participao dos jovens ingressantes em papis secundrios e figuraes. O contato com esse grupo inquieto e desejoso de exercer um papel ativo na luta poltica levou-o a expor uma idia germinal que h tempos vinha acalentando: a da realizao de um teatro-jornal, ou seja, de um trabalho agitativo baseado na encenao crtica e distanciada de notcias previamente selecionadas dos jornais em circulao46. Como nessa poca a imprensa encontrava-se sob censura prvia, os textos de boa parte das matrias eram truncados e desprovidos de sentido, o que poderia dar margem, potencialmente a um trabalho importante de denncia e formao poltica. Com a viagem de Boal e do elenco principal aos Estados Unidos pouco tempo depois, os jovens atores receberam carta branca no sentido de desenvolver, adaptar e aplicar essa sugesto inicial de trabalho: uma seleo de notcias era feita pela manh,
46

Sobre o Teatro-Jornal praticado pelo Teatro de Arena de So Paulo: entrevistas concedidas por Dulce Muniz na sede do Teatro Studio 184, em So Paulo, em 23 de setembro de 2010, e por Celso Frateschi, no Centro Maria Antonia da Universidade de So Paulo, tambm na capital paulista, em 07 de fevereiro de 2011, autora e ao pesquisador e jornalista Eduardo Campos Lima.

29 adaptada e ensaiada tarde e apresentada noite num processo inequvocamente imbudo do esprito do teatro de agit prop.Tratava-se de uma forma de prtica teatral que s o exerccio do trabalho poltico conseguiria motivar. Sempre que oportuno o subtexto das notcias selecionadas era expandido e explicitado em cena por meio de inseres gestuais, textuais ou de alegorizaes.Temas vetados na imprensa escrita e na mdia passaram, assim, a ganhar expresso cnica nos palcos improvisados da periferia de So Paulo e do ABC: a tortura nas prises, delegacias e rgos de segurana, a explorao e a precarizao do trabalho, a misria generalizada, o trabalho infantil, a ausncia de condies bsicas de proteo integridade humana no trabalho, etc. Quando Boal retornou e tomou contato com a realizao dessas apresentaes, mostrou-se entusiasmado pelos resultados, e procurou prontamente sistematizar os procedimentos de execuo, criando inclusive um pequeno compndio interno ou cartilha (como veio a ser chamado pelos integrantes) de sistematizaes conceituais intitulado Categorias do Teatro Popular (incluindo Teatro-Jornal: a nova categoria do Teatro Popular. Os registros deixados por esta forma de trabalho so particularmente precrios, seja pela forte represso poltica e ao censria que teve que enfrentar, seja pela estrutura itinerante e informal que o caracterizou. Dulce Muniz, por exemplo, relata a realizao de uma mdia de cinco espetculos dirios de teatro-jornal em diferentes bairros e regies da cidade, e a criao de cerca de vinte ncleos teatrais dedicados a esta modalidade em diversas unidades do campus da Universidade de So Paulo47. Embora as reflexes de Boal sobre o teatro popular tenham tido incio muito antes dessa fase e j se encontrassem, nessa poca, em processo de formalizao terica, pode-se constatar que os germes de vrias das tcnicas de Teatro do Oprimido tm no Teatro-Jornal as suas razes, e ligam-se assim, estreitamente s prticas gestadas e aplicadas neste perodo, pelos jovens ingresantes do Arena, como formas de luta de resistncia no mbito do teatro. A dcada de 1970 viria a revelar-se particularmente prolfica quanto s prticas teatrais ligadas militncia teatral de resistncia. O crescimento e o fortalecimento do movimento sindical produziu o estmulo decisivo, na regio do ABC paulista, ao surgimento de grupos de teatro operrios como o Forja e o Ferramenta.

47

Entrevista concedida por Dulce Muniz. Op. Cit.

30 O grupo Ferramenta nasceu da organizao de trabalhadores vinculados ao Centro Educacional Tiradentes, do Sindicato, em 1975, e propunha-se realizar um trabalho cultural ligado divulgao do teatro popular nos meios fabris. Entre 1975 e 1978, o Ferramenta apresentou peas de Martins Pena, Augusto Boal, Osvaldo Dragn, Ariano Suassuna e Chico de Assis, entre outros, realizando debates aps as apresentaes, e discutindo as ligaes entre as peas e o contexto poltico do pas sob a perspectiva dos trabalhadores. Suas atividades se encerraram com o fechamento do Centro Educacional Tiradentes decorrente tanto da orientao que passara a ser dada ao movimento sindical (estmulo s comisses de fbrica e expanso dos meios de comunicao do sindicato) como de disputas entre a diretoria e o corpo docente encarregado das atividades culturais de formao 48. O Forja foi fundado em 1979 sob a direo de Tin Urbinatti, e era integrado por operrios ligados ao Sindicato dos Metalrgicos de So Bernardo do Campo. Tin Urbinatti, seu diretor, provinha do trabalho teatral do Grupo de Teatro de Cincias Sociais da USP, que em 1973, em pleno pice dos chamados anos de chumbo da ditadura, desafiara o veto da censura encenando em pleno campus da universidade a proibidssima Papa Highirte, de Oduvaldo Vianna Filho. A importncia poltica e artstica de seu percurso levara o sindicato a convid-lo a participar da fundao do novo ncleo teatral operrio. Uma srie de atividades culturais vinham sendo estimuladas pela poltica cultural implantada no Sindicato. Tratava-se de uma iniciativa que abrangia mltiplas frentes de trabalho, entendidas como formas de organizao e mobilizao da categoria no mbito sindical, nas fbricas e nos bairros operrios. Fundado e composto por operrios, o Forja optou por peas que tratavam dos acontecimentos sociais e polticos em sentido conjuntural, abordando temas como a represso poltica, a alienao social e a explorao do trabalho. O primeiro trabalho apresentado pelo grupo, O Contrato, foi escrito por Tin Urbinatti em menos de um ms com base em entrevistas e pesquisas sobre a campanha salarial. Na seqncia o Forja optou pelo processo de criao coletiva e por uma abrangncia maior quanto temtica tratada: Penso Liberdade, de 1981, foi a pea resultante, formalmente apoiada na construo de uma galeria de tipos sociais, polticos
48

PARANHOS, Ktia. Teatro e trabalhadores: textos, cenas e formas de agitao no ABC paulista . Revista Espao Acadmico n. 62 Julho/2006.Disponvel em: http://www.espacoacademico.com.br/062/62paranhos.htm

31 e comportamentais diversos reunidos no espao de uma pequena penso de trabalhadores e contextualizado diante da ascenso da TV como o grande veculo difusor da ideologia do sistema. Pesadelo, de 1982, estruturou-se cenicamente em trs planos e colocou em pauta a questo do desemprego. A pea foi premiada em vrias categorias dentro do II Festival de Teatro Amador do ABC, e permaneceu em cartaz durante parte de 1982 e no incio de 1983. As montagens subseqentes do Forja confirmariam o vigor dessa frente de trabalho: seguiram-se, Brasil S.A (1983), stira poltica sobre os acordos esprios entre o ministro Delfim Neto e o Fundo Monetrio Internacional, e Operrio em Construo e Diretas volver (ambas em 1984). Em 1985, na seqncia de Dois Perdidos numa Noite Suja, de Plnio Marcos, o Forja apresentou Boi Constituinte, utilizando as formas de duas danas populares brasileiras, o boi bumb e a congada. Por um perodo de dois anos as apresentaes em vrios sindicatos e espaos teatrais absorveram a pauta do grupo. Em 1987, aps a montagem de A Revoluo dos Beatos, de Dias Gomes, ocorreu a sua dissoluo, decorrente de divergncias entre os participantes e os dirigentes sindicais. Em 1991 uma breve rearticulao do Forja resultou na apresentao de guia do Futuro, pea que colocava em questo o futuro da humanidade abordado sob o prisma de uma famlia de trabalhadores e de seu cotidiano. Com perspectivas de trabalho bastante afins s do Forja e cronologicamente paralelas a ele, vrios outros grupos, como o Unio e Olho Vivo, o Ncleo Expresso de Osasco, o Ncleo Independente, o Circo-Teatro Alegria dos Pobres, o Cordo-Truques Traquejos e Teatro, e o T na Rua, entre outros, procuraram, ao longo desse perodo, estreitar seus vnculos com os movimentos sociais de bairros, com os sindicatos e as comunidades eclesiais de base, articulando assim um antagonismo culturalmente vivo a todo o autoritarismo vigente e articulando formas culturais de luta pela reorganizao da sociedade civil. quase inexeqvel a tarefa de mapear-se com a devida abrangncia e o necessrio cuidado documental a diversidade das formas, linguagens e espaos mobilizados com o intuito da resistncia poltica nas diferentes regies do Brasil. Uma histria minuciosamente circunstanciada de todas as manifestaes e trabalhos relacionados est ainda muito longe de ter sido levantada, e constitui-se numa empreitada fundamental. Num pas de dimenses continentais como o Brasil e com a sua precria preservao de fontes e acervos de memria, a dificuldade da tarefa

32 consegue ser to grande quanto a importncia que tem para o estudo e a prtica do teatro no pas. Ncleos de trabalho teatral de resistncia constituram-se em diferentes partes do Brasil e com histricos de trabalho que remetem a diferentes percursos e filiaes estticas e polticas. Em Porto Alegre, por exemplo, onde o Teatro de Equipe (19581962) j havia anteriormente inaugurado a idia de um teatro atento s questes sociais e polticas, criou-se, em 1967, o Teatro de Arena de Porto Alegre, fruto da iniciativa de um ncleo de atores do Grupo de Teatro Independente liderados por Jairo de Andrade.O Teatro de Arena de Porto Alegre viria a ser responsvel, nos anos seguintes, pela encenao de espetculos como O Santo Inqurito de Dias Gomes (1967), Entre quatro paredes, de Jean-Paul Sartre (1968), No Comeo sempre difcil, Vamos Tentar outra vez, Cordlia Brasil, de Antonio Bivar (1968-69), Jornada de um Imbecil at o entendimento, de Plnio Marcos (1970), Teatro Jornal e Prometeu Acorrentado (1971), Flor da Pele (1973),e Corpo a Corpo, de Vianinha (1974), entre outros, representando assim uma importante frente de uma linha de encenaes estreitamente identificadas ao iderio da resistncia. No Rio de Janeiro, em 1974, articularam-se os grupos T na Rua, dirigido por Amir Haddad, e Vento Forte, dirigido por Ilo Kugli, que se transferiu para So Paulo em 1981. Ambos os grupos realizaram, desde o seu surgimento, trabalhos representativos voltados construo de formas teatrais localizadas na contra-mo do sistema ideolgico e cultural dominante. No contexto do teatro de resistncia no Paran merece meno e destaque um pequeno ncleo de trabalho teatral ainda plenamente atuante: trata-se do Teatro de Bonecos de Euclides Coelho de Souza e Adair Chevonika, conhecido como Teatro de Bonecos Dad, fundado em 1977, mas com razes que remontam ao trabalho do CPC e das UNE Volantes (as viagens de ativismo cultural realizadas pelo CPC por vrias capitais do pas) 49. Na verdade o ano de 1977 assinalou a retomada do trabalho dos dois artistas no Brasil aps um perodo de itinerncia por vrios pases da Amrica Latina durante os anos de chumbo da ditadura. As atividades foram rearticuladas, inicialmente, num
49

Para uma abordagem detalhada da constituio do CPC no Paran e de suas relaes com as UNE volantes e o Mtodo Paulo Freire, veja-se a dissertao de mestrado de Ana Carolina Caldas. Centro Popular de Cultura no Paran (1959-1964) Encontros e Desencontros entre Arte, Educao e Poltica.Disponvel em http://ebookbrowse.com/gdoc.php?id=30743122&url=fbe6bb92663ba2dd57358748f25199c0

33 minsculo teatro improvisado numa das ruas centrais de Curitiba. O repertrio, composto por textos de Ceclia Meirelles (O Auto do Menino Atrasado), Ariano Suassuna ("Boca fechada no entra mosquito" ou "Torturas de um corao"), e Ilo Krugli ("O aniversrio do Rei"), empregava tcnicas de criao de bonecos e de expresso cnica diretamente enraizadas no trabalho do CPC e na perspectiva de um teatro de politizao formadora. Posteriormente os dois titeriteiros viriam a organizar um pequeno espao teatral em sua prpria residncia, nas adjacncias de Curitiba, e a engajar-se em agendas culturais oficiais, mas sempre dentro de um prisma crtico, popular e caractersticamente impregnado do esprito da resistncia s formas hegemnicas Euclides Coelho de Souza, ativista poltico paranaense, havia travado contato com o CPC justamente atravs de um auto de rua publicado pelo jornal O Semanrio em torno de 1960/61: o auto era Ptria o Muerte, de um coletivo de autores em que se destacava o nome de Vianinha. O contedo do texto e o entusiasmo diante da idia de encen-la para platias populares em ruas e praas constituiu-se no marco decisivo que ligaria o trajeto de Euclides ao trabalho poltico no teatro. Foi por meio de sua participao nas UNE Volantes que Euclides travou contato contato com linguagens que lhe eram at ento desconhecidas: o mamulengo, as danas dramticas populares do nordeste e norte, como o boi bumb, e o trabalho do titeriteiro argentino Ilo Krugli, que se encontrava no Brasil desde 1961. Do trabalho de Krugli Euclides Coelho de Souza e sua mulher Adair Chevonika (professora por formao) extrairam elementos importantes que vieram a adaptar e a aplicar no mbito da pedagogia do oprimido e da titeritagem poltica, que se constitui, sem dvida, numa forma importante e expressiva de resistncia s formas dominantes. A associao do teatro de bonecos com o teatro de resistncia e politizao tambm se apresenta no contexto cultural e teatral do rio Grande do Norte, principalmente atravs do trabalho do mamulengueiro Chico Daniel. A prtica do mamulengo dentro de uma era marcada pela tecnicizao da cena contempornea e pela crescente fragmentao das perspectivas de figurao dramatrgica e cnica, reveste-se de um carter fortemente associado idia de resistencia. Trata-se, neste caso, de uma resistncia contra a supresso ou o apagamento de formas de expresso de domnio pblico e de razes populares, que atestam o vigor criativo e crtico de figuras como o Joo Redondo potiguar.

34 Tambm no contexto teatral do Acre, na cidade de Rio Branco, o teatro de resistncia poltica teve, entre os anos de 1975 e 1985, um florescimento que no pode deixar de ser ressaltado: nesse perodo, de forma marcante, o teatro popular tornou-se a manifestao artstica mais orgnica dentro do contexto acreano, dando expresso dramatrgica e cnica a seringueiros e ex-seringueiros por meio de formas ligadas militncia poltica e a um imaginrio muito prximo ao do material lendrio amaznico. Diferentes gneros e mtodos constituram o repertrio desse teatro: moralidades, teatro frum, teatro-relmpago, dana do boi, recursos picos de distanciamento crtico. Esse repertrio foi posto em prtica por grupos como o Testa, Sacy, Gextu, Gruta, Fragmento, Cirkistilo, Apu e Poronga, e de peas como Sentindo na Pele (moralidade atualizada de Jos Marques de Souza, o Matias), Vila Beira do Barranco (teatro-frum de Antonio Manuel), Viva o Rio Branco Total Radiante (de Henrique Silvestre), Baixa da gua (criao coletiva do Grupo Testa), e Tributo a Chico Mendes (de Joo das Neves), entre outras. Durante vrios anos, entre o fim da dcada de 1980 e meados dos anos 1990, Joo das Neves, o dramaturgo provindo do CPC da UNE e do grupo Opinio, residiu e desenvolveu trabalhos teatrais na cidade de Rio Branco, tendo tido um importante papel formativo no mbito do teatro pico com atores amadores vindos da periferia da cidade e integrantes do Grupo Poronga. Esses trabalhos consistiram principalmente em oficinas de teatro pico e de estudo do trabalho de Bertolt Brecht. No campo da dramaturgia especificamente, o perodo acreano da dramaturgia de Joo das Neves est representado em sua Trilogia Acreana, composta por um Caderno de Acontecimentos (pea em estilo piscatoriano da qual consta um depoimento do lder sindicalista seringueiro Chico Mendes), a j citada Tributo a Chico Mendes (pea teatral e tambm radiofnica sobre os conflitos entre os seringueiros e os latifundirios na Amaznia e sobre o contexto poltico da morte de Chico Mendes) , e Yurai, o rio do Nosso Corpo (fruto e
de vrios meses de vivncia do autor em uma aldeia Kaxinaw, a pea enfoca a histria, a colonizao e a mudana da estrutura econmica do Estado e sua insero nas pequenas narrativas mticas daa comunidade indgena procurando ao mesmo tempo recuperar vivncias e costumes da cultura da regio.)

As prticas teatrais acreanas desse perodo situam-se na passagem da ditadura militar para o perodo de chamada abertura democrtica , e constituem-se em formas vigorosas de denncia de questes scio-econmicas cruciais como a imposio do modelo agropecurio de desenvolvimento na Amaznia, o progressivo sufocamento dos

35 seringais, o xodo rural acarretado por esse modelo econmico e todo o terrvel quadro de excluso e aculturao das populaes nativas e de baixa renda, constituindo um conjunto de formas vigorosamente apoiadas na proposta de uma interveo urgente intervir nas condies sociais e de uma resistncia sistemtica diante da opresso econmica e da alienao cultural. De modo geral, pode-se dizer que esse teatro faz uso expressivo da teatralidade presente nos rituais indgenas e na gestualidade do contador de casos, e que lana mo de procedimentos tomados ao Teatro do Oprimido de Augusto Boal, aos chamados autos de rua do CPC da UNE e ao Teatro Poltico de Erwin Piscator, combinados cultura popular medieval e ao folclore local.Seu repertrio emprega com freqncia a autoria coletiva, a interatividade com o pblico, a representao de personagens associadas a classes (e no a individualidades), a presena de um narrador-contador de casos e a valorizao das experimentaes formais. Em anos posteriores, o grande crescimento do movimento das comunidades eclesiais de base fixou a idia de resistncia como forma ativa de mobilizao, recolocando em termos dramatrgicos e cnicos a denncia tortura e ao desaparecimento de prioneiros polticos. A pea Paulo Wright, Desaparecido, escrita e dirigida por Cleide Marinho em 2003, trata da priso, tortura e morte do lder evanglico e poltico em 197350. No campo da dramaturgia no se pode deixar de mencionar, em filiao direta com o teatro de resistncia dos anos 1970, a trilogia dramatrgica intitulada A Mulher na Resistncia, escrita por Dulce Muniz e encenada pelo Ncleo do 184, grupo que ela fundou juntamente com Roberto Ascar e Dema de Francisco em 1997 e que se caracteriza como um plo permanente de debate e de apresentaes da dramaturgia, da poesia e da filmografia da resistncia. A trilogia mencionada composta por peas dedicadas representao da luta e do pensamento de mulheres militantes do socialismo revolucionrio: Iara, camarada e amante, sobre Iara Iavelberg (militante do Movimento Revolucionrio 08 de Outubro e companheira do Capito Carlos Lamarca, da Aliana Libertadora Nacional), Heleny, Heleny, Doce Colibri, sobre a professora e diretora teatral Heleny Guariba, e Rosa Vermelha. Concerto Mnimo para a Vida, Obra e Morte de Rosa Luxemburgo, sobre a

50

Paulo Stuart Wright, nascido em 1933 e desaparecido em 1973.

36 trajetria da militante do socialismo internacional e fundadora do Partido Comunista da Alemanha, Rosalia Luksenburg. Nessa mesma linha dramatrgica, que poderamos considerar representativa de uma memria histrica da resistncia, podemos mencionar a pea Lembrar Resistir, de Analy Alvarez e Izaas Almada, encenada em So Paulo em 1998 nas antigas dependncias do Departamento de Ordem Poltica e Social assinalando, precisamente, a sua reabertura pblica aps reforma e transformao em Memorial da Resistncia. A encenao foi realizada dentro dos locais originais das celas, corredores e salas de interrogatrio, e os espectadores, logo ao adentrarem o local, eram simbolicamente fichados to logo as grades da entrada se fechavam para o incio do espetculo. A montagem carioca se deu no ano seguinte, tambm no prdio que abrigara, no passado, as dependncias do DEOPS, na Rua da Relao. O diretor do espetculo carioca, Nlson Xavier, ressaltou, na poca, a natureza formativa e paradidtica do trabalho e sua importncai tarefa diante ds geraes mais jovens, s quais a formao escolar padro no dava conhecimento do sentido poltico das lutas de resistncia contra a ditadura. Essas duas montagens revelam de forma bastante clara uma das tendncias marcantes relacionadas ao teatro de resistncia: a revitalizao de espaos urbanos ou de casas de espetculos como espaos destinados a fomentar frentes de resistncia diante da ideologia alienante da sociedade do consumo, da impregnao mercadolgica das formas de criao e pensamento e das diversas formas de opresso do trabalho na sociedade contempornea. Muitas vezes essa refuncionalizao dos espaos teatrais resulta de iniciativas oficiais ou corporativas, como ocorreu no Acre, com o Teatro Barraco, smbolo de resistncia e de manifestaes culturais e polticas acerca das questes acreanas nos anos 1980. Em outros casos, o histrico de manifestaes coletivas de resistncia sediadas em casas de espetculos ou locais pblicos precisa ser resgatado para que se possa enxergar, nos espaos urbanos diversos, os marcos sobreviventes da histria da resistncia no setor teatral: o TUCA (Teatro da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo), foi palco de manifestaes de grande porte contra a censura e o regime militar; o Teatro Gil Vicente, no Rio Grande do Sul, e o Teatro Opinio, no Rio de Janeiro, sofreram atentados a bomba; o Theatro So Pedro, tambm na capital paulista, sediou espetculos poltica e artsticamente fundamentais como expresso de resistncia contra

37 o autoritarismo na dcada de 1970, assim como o Teatro Ruth Escobar, em So Paulo, alvo de invaso pelo Comando de Caa aos Comunistas e de ataque aos atores da montagem de Roda Viva, de Chico Buarque, na noite de 18 de julho de 1968. A idia do teatro como prtica de resistncia cultura hegemnica, ligada ao consumo e ao assim chamado mercado, est presente, na fase atual, na agenda de trabalho e de pensamento de praticamente todos os grupos que articularam, na cidade de So Paulo, em 1998, o Movimento Arte contra a Barbrie. Com a implantao da pauta neoliberal, nos anos 1990, muitos e importantes setores do teatro mais uma vez se impregnaram de um forte sentido de resistncia, desta feita direcionado contra o atrelamento da cultura ao mercado e a suas leis de pensamento e funcionamento. A multiplicao de pequenos grupos independentes, no s em So Paulo, mas em todo o pas, mostra que urgente e necessrio construir-se uma articulao concreta de
expresso artstica e de reflexo crtica sobre o estado de coisas criado pelas contradies do sistema econmico e pelo encolhimento cada vez mais palpvel do trabalho na sociedade capitalista. Esta a forma contempornea de resistncia qual o teatro se v desafiado a responder.

Você também pode gostar