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DAS INCONVENIÊNCIAS DO CORPO COMO


RESISTÊNCIA POLÍTICA
 Categoria: Artigos  Imprimir
 Criado: Terça, 12 Novembro 2019 08:46
 Publicado: Terça, 12 Novembro 2019 09:04
 Escrito por Silviano Santiago (Imagens: Eduardo Azerêdo)

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Inconveniência: “ação, dito ou fato que não é conveniente, que não


atende ao gosto, aos costumes ou ao bem-estar de outrem;
indelicadeza, incivilidade, indiscrição, grosseria”.
(Dicionário Houaiss)

Experiência com... de preferência a engajamento em...


(Michel Foucault, Pour une morale de l’inconfort; in: Dits et écrits, III)
Guardo a definição que Méral me dava da amizade: “um amigo, dizia
ele, é alguém com quem se é feliz ao dar um golpe inconveniente...”.
(André Gide, Le journal des faux-monnayeurs)

Adio e, ao mesmo tempo, preanuncio a discussão histórica e teórica


sobre o desempenho inconveniente do corpo do cantor popular
brasileiro [nota 1] em performance aberta ao público. Adio a
discussão histórica e teórica, estabelecendo antes as balizas estreitas
e cronológicas que delimitam, na cultura brasileira nossa
contemporânea, um importante e curto período no decorrer da
ditadura militar de 1964, a ser analisado. Julgo que a leitura da
performance inconveniente do ator no palco e sua avaliação como
como forma de resistência política, paralela à resistência ideológico-
partidária ao golpe militar, está de modo geral ausente das melhores
interpretações históricas e sociológicas do período de exceção.

Eis a originalidade da análise de caso, a ser feita, e da discussão


histórica teórica, a ser proposta.

Ofereço ao leitor e espectador o objeto específico de análise – o corpo


inconveniente e libertário do cantor no palco – e, ao mesmo tempo,
preanuncio a moldura teórica que reenquadra o acontecimento
político-cultural brasileiro nas teorias sobre a representação teatral
no Ocidente, desde os tempos greco-romanos. Por mais de dois
milênios, as sucessivas poéticas clássicas vêm reprimindo tanto o
autor do texto, o dramaturgo, quanto os responsáveis pela mise-en-
scène e a atuação, o diretor e o ator, respectivamente. Exigem de
todos que, com palavras excessivas, apenas aludam à exposição no
palco de cena julgada como indecorosa pela censura prévia (não há
como evitar a expressão). Em público, ou seja, diante de espectadores,
dramaturgo, diretor e ator devem obedecer às regras autoritárias do
decoro.

As poéticas teatrais canônicas desprezam a imagem indecorosa e ao


vivo no palco a fim de favorecer o texto dito pelo ator, que serve para
escamotear o episódio censurado. Uma imagem (ao vivo) vale mais
que mil palavras? Who’s afraid of Confucius – estou me referindo,
claro, ao autor chinês da expressão que encantou os publicitários
modernos até o momento em que o fantasma do #MeToo bate à porta
da justiça, exigindo reparação de dano à mulher ofendida no outdoor
ou na vida profissional. O filósofo Aristóteles (384 a.C-332 a.C), o
poeta Horácio (65 a.C-8 a.C) e o crítico francês Boileau (1636-1711)
têm medo do bordão inventado pelo sábio chinês. Por isso é que, ao
invocá-los, virarei pelo avesso a opção deles pelo decoro. Só pelo
avesso das poéticas clássicas do teatro é que melhor se avalia a
exposição inconveniente do corpo do cantor popular em espaço
público como transgressora aos costumes em vigor.

Contemplemos o corpo do cantor Ney Matogrosso em performance


no estádio repleto do Maracanã, em 1973, ou na telinha da TV Tupi, no
mesmo ano. Interpreta a canção Sangue latino, de João
Ricardo e Paulinho Mendonça. [nota 2] Apesar de não ter sido
prevista por ideário ideológico nem programada por partido político,
a imagem ao vivo do corpo inconveniente do cantor no palco (ou em
gravação transmitida por canal de televisão ou por videocas-sete)
alcança as gerações contemporâneas e futuras de jovens, e as seduz.
É tal o poder da imagem ao vivo do cantor – diante da plateia
enlouquecida do Maracanã ou do jovem espectador no quarto de
dormir –, que ela redunda numa conquista de participação política
popular e indireta que, já na fase de “abertura” do processo de
democratização do país, se transforma em projeto sociopolítico da
juventude brasileira, que se afiança por inesperadas vitórias na luta
dos grupos marginalizados, ou sem voz ativa, pela cidadania
identitária. Em 2019, as primeiras vitórias da cidadania civil, datadas
de meados do século passado, já se apresentam como enraizadas e em
vias de serem absorvidas pelos poderes Legislativo e Judiciário; em
suma, pela sociedade brasileira como um todo.

No entanto, a reação conservadora sustentada pelo governo Jair


Bolsonaro julga que, na condução do processo político democrático
brasileiro, as conquistas dos grupos marginalizados, ou sem voz
ativa, têm de ser erradicadas das leis de direito das cidadãs e dos
cidadãos em virtude de serem tão indecorosas quanto o gestual
público de inconveniência do corpo do artista. Na verdade, hoje se
percebe melhor como, no palco da arte e no palco da vida, o gestual de
inconveniência do cantor e dos espectadores foi e continua sendo uma
forma paralela de resistência política a autoritarismos e a
perseguições tradicionalmente preconceituosas, acentuados desde o
golpe militar de 1964. [nota 3]

O curto e complexo núcleo histórico em análise será alegorizado pela


figuração no palco dos cantores e das cantoras que definem dois
movimentos culturais que se sucedem na segunda metade do século
XX – a Bossa Nova (circa 1958) e a Tropicália (circa 1967). Embora
interligados pelos historiadores da MPB, os cantores de um e do outro
grupo não transitam necessariamente de um para o outro movimento.
A imagem inconveniente do corpo do cantor marca a ruptura que
condicionava a todas e a todos em performances artísticas
estacionárias. Interessa-me menos a comparação entre os cantores da
Bossa Nova e da Tropicália; interessa-me mais o contraste radical
entre os corpos que, pela perspectiva teórica e concreta em pauta, não
envolve a análise per se do mérito da execução instrumental e das
letras das canções. Foco o momento em que, no palco, o corpo do
cantor torna-se inconveniente. É mutante e significa.

Contrastarei primeiro os corpos em cena, ou seja, contrastarei a


performance do cantor bossa nova e do tropicalista. Por exemplo,
Vinicius de Moraes de um lado e Ney Matogrosso do outro. Em
seguida, extrairei do contraste o surgimento da noção teatral de
inconveniência, tomada no sentido dicionarizado em língua
portuguesa (v. primeira epígrafe). Contrastarei o comportamento
compenetrado, comedido e palavroso do cantor bossa nova com o
comportamento expresso por corpo fantasiado e maquiado, de
gestual inconveniente, do cantor tropicalista.

Num segundo momento, deslocarei meu olhar crítico-teórico para a


plateia, onde está o jovem e anônimo espectador de shows de música
popular nos anos travados e sem-esperança. Sensível ao impacto
causado pelo fenômeno da espetacularização da cultura, cujo
fundamento remonta ao sucesso extraordinário do filme
hollywoodiano nas metrópoles e nas cidades provincianas, o jovem
espectador de shows musicais passa por processo em que sua
personalidade privada e pública, em fase de formação, se mediatizada
pela figura irreverente do cantor, ressurge mais autêntica e mais forte.

Apesar de singular e anônimo, o jovem espectador quer também atuar


para viver mais feliz. Atuar sua vida em liberdade plena. Na plateia, no
seu quarto de dormir ou nos espaços públicos por que circula, quer
ser semelhante ao ator que performa no palco.

E será semelhante ao cantor na dita vida real.

No ambiente público em que vive o dia a dia, o jovem repete a atuação


em cena aberta do cantor, prolongando-a. Torna-a coletiva. À
semelhança de Caetano Veloso ou de Ney Matogrosso, ele é a imagem
viva do hoje que rompe com o ontem. [nota 4] Sua performance
cotidiana não se encontra mais condicionada pelo comportamento
convencional, o de estudioso e ajuizado jovem pequeno-burguês;
inspirada pelo comportamento endiabrado e alucinado do cantor, a
performance cotidiana se lhe acopla de jeito imprevisto e de maneira
emotiva. No processo de reconfiguração da nova identidade, o
enriquecimento semântico do sujeito – sua rebeldia − não é mera capa
epidérmica e passageira, embora muitas vezes o dia a dia venha
revigorado por alucinógeno. Ao assumir o hoje da sua identidade, o
espectador põe em xeque as diversas ordens disciplinares e camadas
comportamentais do sistema repressivo. Sofre muitas represálias,
muitas delas seríssimas e assassinas.

Epigramaticamente, posso afirmar que, naqueles poucos anos, não é


só o gay quem sai do armário. De modo coletivo e em ritmo
imprevisto, a maioria dos jovens brasileiros começa a sair dos
respectivos e próprios armários onde se guardam e se enclausuram as
variadas e múltiplas formas da vergonha de ser e de estar em público.
As novas identidades partem de atitude única na história do
comportamento social do jovem brasileiro, embora tenham de ser
diferenciadas por uma razão simples. No movimento sociopolítico
que leva à generalização do princípio, a inconveniência desenquadra
da moldura social e política ditatorial formas variadas de bom
comportamento e de hipocrisia social.

Por mais lógica que nossa leitura possa parecer, o comportamento


inconveniente da juventude se apresenta aos olhos críticos de modo
contraditório. O jovem vive o cotidiano tão mais artificialmente
quanto mais se conforma à sua paisagem íntima. O anonimato
singular e rebelde torna-se uniformidade coletiva revolucionária.[nota
5]

Ainda que a autenticidade do indivíduo, ou a sinceridade singular do


jovem, se apresente aos olhos da sociedade como inconvenientemente
fantasiosa, ela se torna moeda corrente e valiosa no processo de
ajuntamento em diferentes grupos-de-ação (ainda que desprovidos
originariamente de saber, apud Foucault) dos associados. Recordem-
se as duas expressões que Foucault grafa em separado para
configurar a “moral do desconforto”: “Experiência com... de
preferência a engajamento em...”. A experiência transitiva, amiga,
conflita com o engajamento político tradicional embora, de modo
paralelo, o apoie, visto que a visualização dos novos conjuntos de
rebeldia jovem se destaca, em período histórico ditatorial, pela
inconveniência no comportamento cotidiano. Dados preciosos são
oferecidos à análise pela vestimenta e pelo corte de cabelo, pelo
gestual exagerado ou afetado e pelo palavreado (ou pelas novas
atitudes existenciais recobertas por vocabulário sem significado
semântico dicionarizado, como desbunde, curtição etc.).

Com o correr das décadas, a lenta e difícil adequação da vida


“prazerosa” juvenil à vida “profissional” adulta pode ter epílogo
cômico, aburguesado, sofrido, trágico ou feliz. Depende e, se a
conquista não for definitivamente ceifada pela atual política
governamental, será matéria para outro capítulo, o do envelhecimento
em comunidades fraternas, devidamente direcionado por Eros e
Thanatos. Esqueça-se Ney Matogrosso e pense-se, como exemplo, em
Caetano Veloso.

Tal como proposto no primeiro parágrafo, o estabelecimento


preliminar de balizas cronológicas estreitas se justificará
teoricamente pelo fastidioso voo histórico que se lhe sucede. A nave
teórica decola nos tempos greco-romanos. Decola na apologia do
“decoro” que se desenvolve no capítulo XIV da Poética, de
Aristóteles. Sobrevoa o conselho horaciano de “manter longe da
vista” do espectador tanto a metamorfose de Procne em pássaro
quanto a de Cadmo e sua esposa em serpentes.[nota 6] Aterrissa na
França em pleno século XVII, quando a lei clássica da “bienséance”
(conformismo às regras sociais estabelecidas por determinado grupo
social) é imposta à escrita e à mise-en-scène da peça de teatro.

Resumo a fastidiosa viagem teórica com dois versos retirados da Arte


poética de Boileau (1674). Resumo-a, caso nosso leitor vire os dois
versos pelo lado do avesso como, aliás, o faz a inconveniência do
cantor tropicalista no palco: “Mas há objetos que a arte judiciosa /
Deve oferecer às orelhas e distanciar dos olhos”.[nota 7] A
inconveniência vem obnubilada pela imagem expressa pelo texto e,
pelo avesso da palavra, é iluminada pela imagem-ao-vivo do corpo do
cantor que a representa.

As balizas que delimitam o núcleo histórico central levam o leitor ou


ouvinte a focar primordialmente o objeto de análise – o corpo
inconveniente. Isso evita que sua atenção se esgarce por longa
digressão teórica antes de estar a par do objeto de estudo que é a
razão de ser desta proposta de leitura do contraste entre o cantor da
Bossa Nova e o da Tropicália. A composição desta nossa fala pelo lado
do avesso das poéticas clássicas inventa uma nova ordem dos fatores
políticos à espera de que o produto não seja alterado.

A transformação na performance do corpo dos cantores se dá, repito,


em cena aberta. Ocorre durante o show ao vivo, ou televisionado ou,
ainda, gravado em vídeo comercial. Por isso, a imagem inconveniente
do corpo do cantor extrapola os limites estreitos do palco e da sala de
espetáculos e vai além − se transmitida ou, posteriormente,
reproduzida − dos limites da telinha e do ambiente doméstico. Na era
da reprodutibilidade técnica da arte, para retomar o ensaio precursor
de Walter Benjamin, a performance ao vivo e em cores pode intervir
de modo ameaçador e sedutor, amigável numa só palavra, na vivência
cotidiana da juventude de classe média brasileira. A experiência do
corpo inconveniente será acoplada ao corpo do espectador jovem em
pílulas homeopáticas. De maneira lenta e orgânica, talvez definitiva.

Na experiência semântica do espetáculo inconveniente, a letra da


canção, recheada com frases críticas, ferinas ou ostensivamente
satíricas, é jogada pelo jovem espectador apaixonado para o segundo
plano. Não há que acender, como nos programas de auditório, um
aviso premonitório: Atente-se mais para o corpo e menos para a letra.
A atenção do espectador é produto da paixão do corpo pelo corpo
alheio e pelas novas e arriscadas exigências do ser e estar no hoje.
Embora a nação brasileira estivesse sendo tomada por um dos mais
sombrios períodos pelos quais passou uma população jovem, muitos
deles vivem alegremente o dia a dia daqueles anos. Durante os 365
dias do ano, sobrevivem e revivem desrespeitosa e alegremente nos
três dias do carnaval.

Nocauteia-se o bordão clássico de Tom Jobim e Vinicius de Moraes


sobre o dia em que termina o Carnaval, bordão que discretamente
endossa os valores religiosos de Ash-Wednesday, poema clássico de
T. S. Eliot. [nota 8] “Tristeza não tem fim / Felicidade sim”.

Felicidade não tem fim. [nota 9]

Em tempos de chumbo, ao se abrirem diferentes direções ao


comportamento tradicional e metamorfoses impensadas para o corpo
jovem em formação, opera-se uma remodelação do sujeito de classe
média, de fundo teatral. Reafirma-se um processo de
“ressubjetivação”, para retomar Michel Foucault e Gilles Deleuze.
[nota 10]

Não voltemos a cair em equívoco fomentado pela sociologia da época


e apenas criticado por algum antropólogo antenado com o hoje. Em
virtude das intrincadas consequências sociais na difusão do
espetáculo cultural em escala nacional, as artes da inconveniência do
cantor no palco se igualam às artes da metamorfose do ator nos filmes
e vão também se acoplar aos corpos dos jovens interioranos e dos
jovens das classes populares e os atingir em cheio. Tal ocorre em
virtude de também coexistir em todos eles o desejo de se adaptar
mimeticamente ao hoje e à esperança de melhores dias, sem
compromisso com os constrangimentos familiares e os preconceitos
políticos que padecem na carne. Retomo o exemplo da peça Hoje é dia
de rock (v. nota 5). O jovem interiorano, ou das classes populares,
passa também por uma espécie confusa de bricolagem cultural e em
tudo e em nada artificial. O paradoxo é de praxe.

Acrescente-se que a televisão é bandeira forte na difusão livre da


propaganda oficial e o é, ainda, nos espetáculos da contracultura
jovem, ainda que reprimida e censurada pelos organismos
governamentais. Para iluminar a dubiedade, tome-se como farol o
verso da letra assinada por Chico Buarque com o pseudônimo de
Julinho da Adelaide: “Você não gosta de mim, mas sua filha gosta”
(1970). Refere-se, evidentemente, à censura de responsabilidade do
coronel Ernesto Geisel e ao gosto rebelde de sua filha Amália Lucy
Geisel. O aparato tecnológico-visual e ambivalente da televisão e da
reprodução em videocassete aviva e agiganta tanto a palavra quanto o
corpo do cantor. Palavras inconvenientes de Chico Buarque, corpos
inconvenientes de Caetano Veloso e de Hélio Oiticica. As pessoas −
escreve Ney Matogrosso em Vira-lata de raça (2018) − “quando me
viam no palco, maquiado, com bigode e uma grinalda na cabeça,
requebrando como um ser híbrido, ficavam ainda mais confusas”.

(Abro parêntese para complementar o resumo proporcionado pela


citação de dois versos de Boileau e explicar, pela etimologia, o
significado da lei de bienséance que evita a cena inconveniente –
censura-a – na dramaturgia francesa no século XVII. Séance vem do
verbo latino sedere, sentar-se. Portanto, o prefixo bien se refere à
necessidade de o ator deixar o espectador bem-sentado e confortável
no espaço da poltrona. O corpo do ator no palco não deve agir de
modo a perturbar o bem-estar compenetrado do corpo que assiste ao
show, ao programa de televisão ou ao vídeo. Visa a não deixar o
híbrido da performance confundir a mente do espectador, daí a
recomendação greco-latina de obnubilar pela palavra a imagem ao
vivo.)

Julgo que, nesses anos precisos da ditadura militar, no seu pós-1968,


é que se dá uma nova formação-em-coletividades (insisto no plural de
coletividade) de boa parte da juventude brasileira – formação-em-
coletividades irreverente, escandalosa e irredutível. Repito uma das
epígrafes e a ela acrescento uma segunda. Retomo: “Expérience avec...
plutôt qu’engagement dans...”. Acrescento: “Je retiens la définition que
Méral me donnait de l’amitié: ‘un ami, disait-il, c’est quelqu’un avec qui
on serait heureux de faire un mauvais coup’.” Resumo: a experiência
transitiva é o fundamento da amizade entre corpos inconvenientes.

Permitam-me, pois, que acrescente duas palavras pessoais sobre a


expressão formação-em-coletividades. É importante distinguir esse
processo de formação dos três principais processos tradicionais de
formação positiva do jovem – a formação familiar, a religiosa e a
educacional. Às formações homogeneizadoras e castradoras se opõe
a experiência até então inédita em show de música popular para
jovens.[nota 11] Ela desviará o adolescente do aprendizado oferecido
pelo constrangimento familiar, religioso e educacional, delegando-lhe
a total responsabilidade pelo modo como se encaminha alegre e
rigorosamente para a nova e emancipatória identidade privada e
pública. A rebeldia não se dá apenas no espaço dito público, mas
também e sobretudo no espaço escolar.

Vejo aqueles poucos anos como os que preparam e sub-repticiamente


fomentam a criação de futuras e idôneas categorias de pensamento
crítico que vão para além das teses clássicas do filósofo Louis
Althusser sobre os aparelhos ideológicos. Refiro-me aos
“dispositivos”,[nota 12] para valer-me uma vez mais do linguajar de
Michel Foucault. São os dispositivos postos ao alcance dos jovens
pelo cantor inconveniente que movimentam os sujeitos a novas
identidades emancipatórias e a novas estratégias de combate à
ditadura militar. No presente caso, movimentam a novas estratégias
de resistência política que coexistem em paralelo à História oficial e à
História a contrapelo dos anos 1970, ambas de fundo ideológico-
partidário. Por todo o Brasil, surgem novos agrupamentos sociais de
rebeldia jovem, com propostas revolucionárias variadas, singulares e
originais. Pouco importa se alguns discursos dominantes deixaram-
nas escapar pelas brechas dos estudos. Precisamos recuperá-las no
seu tempo e espaço para melhor entender o presente.

Novos e diferentes coletivos de jovens se afirmam e se cristalizam em


dispositivos com interesse amplo e reivindicações emancipatórias
comuns, e não mais se significam por palavra de ordem partidária ou
autoritária. Ao se manifestar em diferentes e coexistentes
formulações sociopolíticas e ações revolucionárias, a juventude se
manifesta coletivamente. Formulações e ações empurram o sujeito a
se emancipar menos em direção ao campo da ideologia e mais em
direção ao campo do presente compartilhado e inventado.
(Metaforicamente, o sujeito passa a ser e a estar no mundo pelas
cosquinhas que faz na pele da História e da Sociologia.) A
configuração concreta da utopia está muitas vezes no “paraíso
artificial”, para retomar Charles Baudelaire, porque não há fuga ao
real conservador que distancie o corpo em formação do viver o hoje
em sua plenitude. Sem a palavra de autoridade vinda do passado, os
olhos jovens se voltam para onde têm de voltar inevitavelmente – para
o presente. E, ao mesmo tempo, para o futuro, a ser inventado pela
frágil e apaixonada experiência do hoje. São menos lavradores do
pensamento crítico tradicional e mais marinheiros em alto mar, com
vistas a outros portos de circulação livre e genuinamente igualitária.

Fato notável é que são esses dispositivos sociopolíticos e


emancipatórios que serão mais contra-atacados no terceiro milênio,
que nos toca viver. Estão sendo contra-atacados por imposição de
regras religiosas e de ideário tacanho e populista sobre governo,
regras e ideário nitidamente negativistas e repressivos. Refiro-me à
atual perseguição (para usar palavra ainda branda) aos novos
conjuntos de jovens e adultos emancipatórios e libertários –
pertencentes a “classe social” plural, ou indefinida, − que inauguraram
e, no momento, fortalecem novas formas de congraçamento pela
cumplicidade subjetiva na identidade étnica e na identidade sexual.
As manifestações de rebeldia, de luta e de pleitos das cidadãs e dos
cidadãos junto aos três poderes voltam a pipocar no panorama
nacional e se transformam em reivindicações mais agressivas e,
evidentemente, mais perigosas.

Dissociemos passageiramente os três poderes. O Legislativo da


nação e de cada estado ganha e ocupa o lugar do antigo palco onde se
exibiu o corpo do cantor durante o período da ditadura militar de
1964. Os novos mediadores da emancipação libertária são hoje eleitos
como “representantes do povo”, para usar o apelativo clássico, e são
nomeados no Congresso Nacional pelo nome próprio. Marielle Franco
e Jean Wyllys, por exemplo. Defendem causas políticas que já
ganharam nome e têm tradição.

Saem em busca de torná-las entendidas e aceitas pelas leis da


cidadania civil. E, no entanto, estão sendo mais e mais implicadas pela
repressão e pela censura e, ainda, pela intolerância constitucional. Em
pleno Congresso Nacional, tais são a violência da linguagem e dos
atos repressivos de muitos dos nossos representantes oficiais, que os
parlamentares dissidentes são levados a resistir na tradição da
inconveniência em público do cantor popular nos anos de chumbo.
Assim agem sob as lentes dos jornalistas. Passam pelo perigo de
padecer algo além da tortura mental. Suas vidas estão em perigo.

Chega o momento de dedicar-me mais cuidadosamente aos dois


movimentos de música pop elencados. Bossa Nova e Tropicália. De
ampla configuração cultural, eles se sucedem um ao outro, gerando,
entre os jovens espectadores e entre os fãs em geral, a revolução
emancipatória no comportamento adolescente e juvenil a que venho
me referindo. A postura libertária do jovem, julgo, não pode ser
separada – a não ser em perspectiva de análise disciplinar, ou em
postura ideológica estreita, como é o caso já clássico dos estudos
feitos pelo pesquisador José Ramos Tinhorão [nota 13] − e ser
analisada separadamente das manifestações de resistência política à
ditadura militar, então exteriorizadas publicamente pelas formas de
atuação que se apresentam tradicionalmente como passeata pelas
ruas da cidade e concentração e comício em praça pública. No período
em questão, a atuação tradicional se radicalizou no Brasil sob a forma
de movimentos de guerrilha urbana e rural.

Julgo, pois, que a revolução comportamental insuflada pela


inconveniência na representação do corpo do cantor em local público
– repito: paralela aos variados e tradicionais movimentos de
resistência propriamente político-partidária – entusiasma a juventude
desejosa de participação coletiva contra o status quo e rende frutos
rebeldes e transformantes da sociedade brasileira no decorrer das
décadas seguintes. Na época – recordo-me –, apresentou-se
orgulhosamente como germe de “sociedade alternativa”, projeto
adubado pelas letras de alguns compositores e, em particular, pela voz
do cantor Raul Seixas. Com a ajuda de mãos amigas, Raul Seixas
escreve um manifesto de caráter esotérico, baseado nos escritos de
Aleister Crowley, que é distribuído ao público sob a forma de folheto
em show no ano de 1973. Posteriormente, os folhetos são recolhidos
pela Polícia Federal e queimados como “material subversivo”. Raul foi
preso e torturado pelo DOPS e “convidado” a se retirar do país.
Saliento detalhes para mostrar como o poder ditatorial macro também
contamina, pela censura, pela repressão e pela tortura, personalidades
artísticas micro, em destaque no palco de teatro ou no palco da
telinha.

O aparelho repressor adivinha com maior perspicácia que os partidos


de esquerda o peso e o valor da resistência oferecida pelo corpo nas
performances inconvenientes do cantor popular e de seus jovens
seguidores.

Com dois exemplos sucessivos explicito finalmente as balizas


cronológicas da Bossa Nova e da Tropicália, personificando-as
também. Armemos as duas cenas.

O primeiro exemplo serve para abrir a comparação contrastiva em


que está em jogo o comportamento do corpo do artista em público.
Lembre-se duma apresentação típica, em teatro ou televisão, de João
Gilberto ou de Vinícius de Moraes. [nota 14] Optemos por este. O
poeta, letrista e cantor carioca se faz acompanhar de Toquinho, seu
violonista preferido. Vinicius permanece sentado durante todo o show
e mantem o corpo imóvel e sedutor diante do microfone. Numa
mesinha ao lado, repousam a garrafa de uísque e um copo. De vez em
quando, o embaixador brasileiro − a ser cassado pelo AI-5 em 1969 −
bica um gole de uísque.

O exemplo concreto e contrastante é encontrado anos depois numa


apresentação do músico, letrista e cantor Caetano Veloso. Ele
raramente toma assento. Permanece de pé e atua em movimentos
inesperados. Lança a luso-brasileira Carmem Miranda [nota 15] como
modelo de atuação no palco e dela rouba, para a alegria dos
espectadores e fãs, alguns requebros e gingados, enquanto as mãos
retraçam no espaço teatral gestos típicos da Brazilian bombshell. No
palco, o corpo do cantor dança à semelhança do corpo de Carmem
Miranda que, por sua vez, seguia os passos ditados pelo coreógrafo
Busby Berkeley para os filmes de Hollywood. Lembre-se também,
como apêndice ao exemplo tropicalista, os shows ao vivo ou gravados
do grupo Secos e Molhados, de que fez parte o cantor Ney
Matogrosso.[nota 16]

De maneira mais discreta, mas não menos certeira, estou me referindo


à entrada dos sujeitos – cantor e/ou espectador − em diferentes
paraísos artificiais. Num momento, é a embriaguez causada pelo
consumo do álcool e, no outro, a sensação causada pelo efeito das
drogas ditas alucinógenas. Estou me referindo, ainda, a uma abertura
à discussão do comportamento sexual tradicional, de que será
modelo, no tempo, a que se chamou em termos da gíria norte-
americana aqui aclimatada, de “saída do armário”, e que chega aos dias
de hoje como possibilidade de uma sociedade não binária,
transgênero, com identidades étnicas precisas e com acessibilidade
regularizada por lei à maconha.

NOTAS

[nota 1]. Contraditoriamente, é por conveniência que uso o


substantivo cantor só no masculino. Ofereço a mão à palmatória. Aos
82 anos, o bom e escorreito estilo em português continua a me
reprimir. Também é do meu interesse acentuar menos o profissional
da música e mais o desempenho físico e alegórico do corpo humano,
sem gênero desenvolvido.

[nota 2]. Vídeo disponível em youtube.com/watch?v=-zLicyzaH5A.


Contraste-se a performance de Ney com a interpretação posterior de
Nando Reis, também excelente: youtube.com/watch?
v=hHRXxhYcEqk. Ambos foram acessados em junho de 2019.

[nota 3]. Neste 13 de junho de 2019, em que escrevo, o Supremo


Tribunal Federal julgou que a homofobia se equipara ao crime de
racismo. No dia seguinte, o presidente da República comenta a decisão
em entrevista. Cito notícia do UOL: “Na avaliação do presidente, um
ministro evangélico poderia se contrapor à criminalização da
homofobia com base em trechos da Bíblia e, se visse que sua posição
estava perdendo, pedir vista – mais tempo para analisar o processo –
e, então, ‘sentar’ em cima do processo. Ou seja, não permitir que o
caso voltasse a ser julgado num futuro próximo. ‘Não custa nada ter
alguém lá’ (no STF), falou”.

[nota 4]. “O cuidado em dizer o que acontece (...) não reside tanto em
querer saber como isso pode acontecer por toda parte e sempre, mas
antes pelo desejo de adivinhar o que se esconde debaixo deste
vocábulo preciso, flutuante, misterioso e totalmente simples: ‘Hoje’.”
Frase de Michel Foucault extraída de Pour une morale de l’inconfort,
texto citado na epígrafe.

[nota 5]. O desenrolar epigramático desses parágrafos pode ser


conferido com o enredo e o grande sucesso junto ao público jovem da
peça Hoje é dia de rock (1971), de José Vicente. Jovens interioranos
saem em busca de novas identidades. O título da peça explicita qual
será a forma de uma delas, a da imagem exibida nos filmes e vídeos de
Elvis, the Pelvis (exagerada, aliás, na interpretação de Ney
Matogrosso). Ao perder a casca da serpente, o interiorano não se
identifica a, “é” o próprio Elvis. Dá início a uma imprevisível forma de
camaradagem geracional.

[nota 6]. Opto pela excelente tradução em inglês: “But you will not
bring on to the stage anything that ought properly to be taking place
behinds the scenes, and you will keep out of sight many episodes that
are to be described later by the eloquent tongue of a narrator”.

[nota 7]. Cito o original francês: “Ce qu’on ne doit point voir, qu’un
récit nous l’expose: / Les yeux en le voyant saisiront mieux la chose; /
Mais il est des objets que l’art judicieux / Doit offrir à l’oreille et
reculer des yeux”. 

[nota 8]. Católico por formação, é notável a presença de T. S. Eliot na


poesia de Vinicius. Leia-se a pouco conhecida e notável coleção de
poemas intitulada Cinco elegias.

[nota 9]. Em 1984, Martinho da Vila compõe samba-enredo para a


Unidos de Vila Isabel, em que endossa e desconstrói pela conjunção
adversativa os dois célebres versos sobre a tristeza que, na quarta-
feira de cinzas, baixa sobre o povo. Canta Martinho e justifica sua
felicidade no carnaval por ela não ter vida breve: “Sonho de rei, de
pirata e jardineira / Pra tudo se acabar na quarta-feira / Mas (grifo
meu) a quaresma lá no morro é colorida / Com fantasias já usadas na
avenida / Que são cortinas, que são bandeiras / Razão pra vida tão
real (idem) da quarta-feira / É por isso que eu canto.”

[nota 10]. Remeto o leitor a ensaio meu intitulado Cadê Zazá (2001), do
livro O cosmopolitismo do pobre (Editora UFMG, 2004).

[nota 11]. É curioso notar que é a partir da “abertura” que essa


vertente de resistência da produção artística se prolonga e se torna
altamente rendosa e perigosamente comercial. Pense-se na voga do
teatro infantil ou infantojuvenil, de que Maria Clara Machado será o
melhor bom exemplo, e não o mau. Pense-se no êxito extraordinário
dos livros infantojuvenis, êxito este que culmina com a instauração de
um novo e absurdo gênero literário reservado a determinada faixa
etária, o dos livros para Young adults. Estes não ajudam o jovem a
crescer, mas a permanecer na mesma idade.

[nota 12]. Uma apresentação sucinta sobre “aparelho ideológico” e


“dispositivo” se encontra em ensaio do autor incluído em Aos
sábados, pela manhã (Rocco, 2013). Dispositivo é, diz Foucault, “um
conjunto de estratégias de relações de força que condicionam certos
tipos de saber, e por ele são condicionados”. Ao somar poder e saber,
a noção de dispositivo instrumentaliza a indagação sobre o modo
como as expectativas emancipatórias do indivíduo se dobram ao
coercitivo e punitivo “governo dos homens”. O filósofo Giorgio
Agamben atualiza e amplia o conceito de Foucault: “chamarei
literalmente de dispositivo qualquer coisa que tenha de algum modo a
capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar,
controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os
discursos dos seres viventes” (in O que é o contemporâneo).
[nota 13]. O próprio crítico explicita retrospectivamente sua postura
sociológica na leitura da MPB, em vídeo produzido pelo Instituto
Moreira Salles: youtube.com/watch?v=RbBrJuvJ3vA (acesso em
junho de 2019). Se não for abusado da minha parte, proponho que o
depoimento dele seja contrastado com o ensaio que escrevi em 1972,
sobre Caetano Veloso. V. Caetano Veloso, como superastro, do livro
Uma literatura nos trópicos, nova edição pela Cepe Editora.

[nota 14]. Durante o transcorrer da Tropicália, Chico Buarque é o que


mais de perto se cola ao comportamento dos dois mestres. A
resistência política à ditadura está na letra das notáveis canções de
Chico. Ele é melhor poeta que intérprete no palco e, por isso, seu
legado não é o do corpo, mas o da permeabilidade à palavra-de-ordem
político-partidária, mais influente junto aos espectadores adultos. Seu
corpo é o de bom burguês, aquém das inconveniências perpetradas
pelos corpos de Caetano, Ney e Raul. Leia-se de minha autoria o
ensaio Bom conselho, escrito no calor da hora e reunido a outros
ensaios em Uma literatura nos trópicos.

[nota 15]. Sobre sua relação com Carmem Miranda, Caetano publica
no jornal The New York Times, de 20 de outubro de 1991, o longo
artigo Caricature and Conqueror, Pride and Shame. Dele extraímos o
primeiro parágrafo: “Para a geração de brasileiros que chegou à
adolescência na segunda metade dos anos (19)50 e à idade adulta no
auge da ditadura militar brasileira e da onda internacional de
contracultura – para a minha geração –, Carmen Miranda foi, primeiro,
motivo de um misto de orgulho e vergonha e, depois, símbolo da
violência intelectual com que queríamos encarar a nossa realidade, do
olhar implacável que queríamos lançar sobre nós mesmos”.

[nota 16]. Acaba de ser lançada uma biografia do grupo Secos e


Molhados. Miguel de Almeida, Primavera sem dentes (São Paulo: Três
Estrelas, 2019).

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