ESCRITURA E AUTORITARISMO Perspectiva de anlise do conto O Poo, de Mario de Andrade Zoraida Ahumada

RESUMO: Pretendemos visualizar em O poo, do livro Contos Novos de Mario de Andrade elementos que apresentam o modo patriarcal de relacionamento entre um patro e seus dependentes com plena vigncia na sociedade brasileira ao mesmo tempo que questionado o autoritarismo do Estado Novo de Getlio Vargas no Brasil e no contexto mundial com predomnio de governos paternalistas. PALAVRA CHAVE: autoritarismo, patriarcado, Mario de Andrade, O Poo, Intelectuais

Objetivo Analisar as relaes patriarcais no texto O Poo e o questionamento do autoritarismo pelo autor Mario de Andrade

Introduo O autor Mario de Andrade desenvolveu sua obra num momento histrico complexo, final da primeira dcada do sculo XX. Colaborou com a fervilhante produo artstica que toma forma nas diferentes rupturas exercidas pelas vanguardas ao mesmo tempo assistiu ao desmoronamento do idealismo das revolues, sobreviveu as duas guerras e suportou o autoritarismo no plano nacional e internacional entre os anos 30 e 40. Seu papel como intelectual comprometido com seu tempo se refletiu nas inovaes formais do texto e temticas. Na obra Contos Novos encontramos relatos que tem uma unidade em si mesmos porm, se relacionam uns com os outros. H uma tendncia entre narrar em primeira pessoa em alguns deles e em terceira pessoa como se de alguma maneira esta dinmica se correspondesse com os mundos subjetivos y mundos sociais e suas correspondentes tradies no mesmo cenrio moderno. Sem cair numa atitude de panfleto o autor trabalhou cuidadosamente na incluso de certas temticas com apoio da teoria de Karl Marx e na construo de personagens desde noes que apelam psicologia de Sigmund Freud. Resgatamos o trabalho lingstico que se reflete nos Contos Novos, onde o autor cuida da fluidez na linguagem de suas personagens diferenciando suas correspondentes vozes sem artificialidade e abordando com respeito as diferenas. No conto, O poo podemos identificar a fala do patro que para uma melhor performance comunicativa com seus empregados se adequa ao dialeto caipira, modificando palavras e expresses que imaginamos no so do uso corrente no mbito da cidade.

Cavando o prprio poo No conto o poo Mario de Andrade1 narra em terceira pessoa o episdio que ocorre na casa de fim de semana do fazendeiro Joaquim Prestes e seus dependentes entre eles os irmos Pedro e Albino. Este o quinto dos nove contos e ocupa exatamente o centro do livro, posio que no casual dado que o autor transmite uma grande tenso no relato provocada pela violncia do autoritarismo em aumento. Apresenta 1) a chegada do patro construo; 2) o encontro com os empregados parados pelo mal clima, 3) a perda da caneta do patro, que os obriga a trabalhar no poo apesar do frio, 4) a resistncia de alguns trabalhadores a continuar o servio, 5) o desfecho com a sada do patro. Esta poderia ser na superfcie a primeira histria, a segunda trama a inverso do autoritarismo que comea pelo capricho do patro mas termina no fundo do poo com a atitude senhorial na lama. Desde a primeira parte fica explcita a violncia social e o desequilbrio propiciado pelo sistema patriarcal: a opulncia do fazendeiro, evidenciada nos trs automveis importados possvel devido misria revelada nas roupas esfarrapadas e condies infra-humanas dos trabalhadores. Assim a autoridade exigida por Joaquim Prestes se baseia na submisso familiar e opresso econmica retratada pelo narrador. Ao longo do relato encontramos marcas dessa vocao de mando explicada em ntima relao com sua origem social e extrema avareza: o exemplo das meias feitas pela prpria mulher para economizar e o constante mal trato aos trabalhadores. (...)Caprichosssimo, mais cioso de mando que de justia tinha a idolatria da autoridade(...) Aqui de notar a metfora das abelhas s quais Joaquim Prestes se dedica incondicionalmente e se desilude ante a desobedincia das mesmas. Estas obreiras abelhas nacionais que se rebelam compartilhando o mel com

Mario de Andrade, O poo em Contos Novos, So Paulo, Livraria Martins Editora,1947.

outras raas insubordinadas. Tal fato contado como uma desiluso amorosa ao citar que por causa disso ele nunca mais foi feliz. P maiscula: pai/patro As descries de Pedro e Albino partem de uma referencia uma infncia tribulada e de padecimentos. Filhos de um pai alcolatra e diferentes mes eles acabam rfos, podemos imaginar que protegidos ou cuidados pelo fazendeiro. Estes meninos se fazem jovens, fora de trabalho disponvel requeridos para qualquer tarefa na fazenda. Sinnimo de jornaleiros so chamados de camaradas, por ser pagos ao dia. A dificuldade que Albino tem uma sade delicada, padece tuberculose. Joaquim solcito, paga pelo remdio dezoito mil ris submetendo-os troca de favores entre ambos. Esta relao de precariedade laboral se funda, pelo oferecimento da fora de trabalho2 em troca de um pago mnimo que apenas se destina compra de alimentos para repor a energia vital e poder retornar ao trabalho, gerando uma cclica dependncia deste pago. Em conseqncia, ele o produtor do excedente no capitalismo agrrio atravs do seu trabalho est margem do consumo capitalista sendo a base econmica sobre a qual se assentam as relaes de dominao do fazendeiro-jornaleiro. Mario de Andrade ao construir esses personagens e o desenrolar dessa histria denuncia neste relato a dependncia servil e o autoritarismo vigentes nas relaes sociais e econmicas sob o Estado Novo na dcada de 30 a 40. No se explicita nenhum postulado marxista porm est muito clara a perspectiva da narrao: impossvel uma adeso ao violento discurso do patro Joaquim Prestes, assim tambm a solidariedade tecida ao redor dos trabalhadores est fortemente estabelecida neste conto. No texto de Ivone Dare Rabello 3 tal capricho do patro, termina socavando sua prpria atitude senhoril ao tratar de submeter os empregados condies extremas. Essa autora tambm analisa a relao entre a
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Marx, Karl, O Capital, Tomo I, Capitulo V, O processo de trabalho e processo de valorizao, Seo III, Ed. bibliovirt. 3 Dare Rabelo, Ivone, A camino do encontro,uma leitura de Contos Novos, Cap. O estratagema da palavra, Ateli Editorial, So Paulo, p. 175,

personagem de Joaquim Prestes sugerida no pai de Juca falecido em Peru de Natal conto seguinte, e a figura paterna em Tempo da Camisolinha.

Parricdio simblico O autoritarismo e arbitrariedade vividos na realidade sob o governo do ditador populista Getulio Vargas se torna una presena sufocante, repressora no Brasil. Na fico esta sensao est presente ao longo dos Contos Novos, inclusive no ritual antropofgico do Peru de Natal, o leitor compreende o desejo parricida de Juca de se livrar simblicamente do pai. O enfrentamento de Jos/filho/empregado ao autoritarismo de Joaquim/pai/patro sugere a necessidade de dar morte a essa relao de submetimento4: (...)Jos traz as mos nas ancas, devagar, numa calma de morte. O olhar no pestaneja, enfiando no do inimigo. (...). O exerccio para a passagem da maturidade emocional justamente matar simblicamente o pai. O parricdio simblico, acaba ocorrendo quando ao final do conto Joaquim reclama para si a autoridade de um pai: doutra vez veja como fala com seu patro, em geral uma recriminao de pai para filho diante de uma resposta atrevida. Aqui no se v a severidade do patro com o empregado, que muito bem poderia demiti-lo seno a brandura do conselho paterno. O patro teve sua superioridade questionada mas ainda est no mando, evidente na sua atitude corporal (...) Prestes ferido desse jeito (...) Recuou um passo na defesa instintiva (...) Os olhos de Joaquim...afinal baixaram fixando o cho. Depois foi a cabea que baixou (...) Os ombros dele tambm foram descendo aos poucos. Como se livrar deste tipo de dominao to perniciosa? Como roer a paternidade de quem se arroga a autoridade? Como desautorizar as prticas paternalistas de Vargas na poltica nacional? Mario de Andrade intelectual perseguido, acurralado como tantos outros na dcada de 30 a 40, com a dinmica de seus Contos Novos desde a fico ajudou a cavar o poo para soterrar o anacrnico Estado Novo.
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La viena de fin de siglo, Sigmund Freud: Poltica y parricidio, en la Interpretacin de los sueos.

O lamacento ofcio de escrever Jos Emilio Major Neto Poe 5, alerta para a referncia da caneta no conto. Objeto associado ao prazer e trabalho intelectual pelo patro porm odiado pelos trabalhadores, encarna a viva a expresso do capricho da oligarquia que os submete. Tambm realiza comparao com a prpria existncia do intelectual brasileiro e a tenso de sua existncia entre estes dois grupos sociais: por um lado depende do consumo da oligarquia, mas por outro, se solidariza com o sofrimento da classe trabalhadora que poucas vezes usufrui a arte vanguardista. Desde a perspectiva psicanaltica a caneta aparece como smbolo flico, no caso de Joaquim na perda de uma, tem mais trs na gaveta, inclusive uma de ouro. Assim tambm os trs automveis, entre eles uma Limusine pretende indicar quanto ele poderoso social e economicamente. Esta necessidade de mostrar seu poder revela conflitos profundos relacionados afirmao da sua prpria masculinidade e auto-aceitao. J outra possvel interpretao, a perspectiva burguesa

preconceituosa que no imagina s classes populares capazes de lidar adequadamente com a caneta/literatura quando aqueles extraem-na

justamente da lama, atravs de um trabalho exaustivo e de transformao depois de buscarem nas condies mais impensveis. Um paralelo pode ser pensado na prpria prtica de resistncia de Mario de Andrade que como escritor se nutriu das expresses musicais populares e folclricas, ou seja se enlameou no barro da cultura popular e realizou complexas operaes de apropriao e recriao para efetuar sua escritura.

Ob.cit.

Concluso Analisamos no conto O poo a estrutura, principais personagens e temtica desenvolvida por Mario de Andrade. Focamos-nos na abordagem da opresso e autoritarismo levados a sua mxima expresso narrados em terceira pessoa acerca das relaes entre o patro Joaquim Prestes e os dependentes Pedro e Albino entre outros. O autor utiliza sutilezas psicanalticas para construir a personalidade autoritria do patro e como no tempo do relato questionada sua autoridade por um dos trabalhadores que toma conscincia das condies desumanas nas quais ele e seu grupo esto submetidos. Ao mesmo tempo est a prpria luta do escritor contra a opresso social e poltica que submergiu ao Brasil nas dcadas de 30 e 40 sob o Estado Novo. admirvel seu esforo em continuar um trabalho inovador e autocrtico em consonncia com seu compromisso ideolgico e social sem cair no panfleto e nos esteretipos sempre cuidadoso da forma e das temticas.

Referncia Bibliogrfica ANDRADE, Mario de, Contos Novos, O poo, So Paulo, Livraria Martins Editora,1947. DARE RABELLO, Ivone (1999) A caminho do encontro. Uma leitura de Contos Novos, Ateli Editorial, So Paulo. MAJOR NETO, Jos Emilio (2001) Contos Novos: idlios em fragmentos, Dissertao de Mestrado em Literatura brasileira, Universidade Federal de Campinas, So Paulo. MARX, Karl, O Capital, Tomo I, Capitulo V, O processo de trabalho e processo de valorizao, Seo III, Ed. bibliovirt. MELLO DE OLIVEIRA, Cristiano, Literatura e Marxismo Contribuies sociolgicas na obra O Turista Aprendiz de Mario de Andrade, Tese de Mestrado UFSC