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Coletanea de Ensaios

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Programa de Pós-Graduação em Letras

Instituto de Letras – UFRGS


Literatura, Sociedade e História da Literatura
Volume I
Sumário
Antônio Marcos V. Sanseverino – Esquisitas e desmioladas: o narrador, o adultério e a
representação feminina no conto machadiano
Carlos Augusto Bonifácio Leite - Sobre o peso de si e maestrias: uma análise de parte
da cena atual da canção popular brasileira
Giuliana Ragusa e Rafael Brunhara – Paideia na ‘lírica’ grega arcaica: a poesia elegíaca
e mélica
Homero José Vizeu Araújo – A peripécia brasileira de Robinson Crusoé: o herói bur-
guês e negreiro na origem da ascensão do romance
Karina de Castilhos Lucena – História, História da literatura, História da tradução: a ta-
refa-renúncia
Luís Augusto Fischer – A Formação vista desde o sertão.
Regina Zilberman – A História da Leitura e suas repercussões na História da Literatura
Esquisitas e desmioladas: o narrador, o adultério e a representação feminina no conto
machadiano1
Antônio Marcos V. Sanseverino2
Resumo
No presente ensaio, a partir da leitura de dois contos de Machado de Assis, é analisada e discutida a re-
presentação feminina no conto realista, de um lado, e uma teoria do gênero elaborada de forma alegórica,
de outro. Dona Paula traz um elemento singular na ficção novecentista, uma senhora viúva, mais velha
como protagonista de uma história de adultério. Academias do Sião, uma alegoria, apresenta a história
que ilustra um problema: por que é que há homens femininos e mulheres masculinas? Como ponto de ar-
ticulação entre diferentes modalidades de conto, o foco recai sobre a posição do narrador, que, mesmo es-
tando na terceira pessoa, pode ser caracterizado como parte da elite patriarcal burguesa, masculino.
Palavras-chave: Machado de Assis. Realismo. Alegoria. Gênero. Narrador.
Abstract
In the present essay, from two short stories by Machado de Assis, the female representation in the realistic
story, on the one hand, and an allegorically elaborated theory of the genre is analyzed and discussed. Do-
na Paula brings a singular element in fiction of Nineteen Century, a widowed lady, older as the protago-
nist of a story of adultery. Academies of Siam, an allegory, presents the story that illustrates a problem:
why are there feminine men and masculine females? As a point of articulation between different modali-
ties of short story, the focus falls on the position of the narrator, who, even being in the third person, can
be characterized as part of pratiarchal and bourgeoise elite, masculine.
Keywords: Machado de Assis. Realism. Allegory. Genre. Narrator.
Dona Benedita, Dona Camila, Dona Paula são mulheres respeitáveis, da elite
fluminense, que expõem a complexidade do lugar da mulher na sociedade brasileira do
século XIX. Dona Severina não é da elite, não tem condições financeiras para ter ao
menos um vestido com mangas, mas se torna respeitável aos olhos de Inácio, um ado-
lescente fascinado com os braços dessa senhora de 30 anos. Maria Olímpia (traída), Ma-
riana (da revolta à acomodação), Rita (adúltera) – chamadas pelo primeiro nome – são
outras mulheres de elite, ou em ascensão, que vivem os conflitos do casamento. Maria
Regina, por sua vez, ambiciona casar-se, mas vive presa a uma imaginação vetusta, o
sonho de um homem ideal. Genoveva é uma mulher pobre que jura fidelidade a Deolin-
do Venta-Grande, marinheiro que parte para sua primeira viagem, mas ela acaba traindo
esse juramento e se junta com um meirinho português. Outro caso interessante é de Ma-
rocas, uma ex-prostituta. Esse passado é revelado pela voz de um homem, que conta ao
seu interlocutor que a aparente mulher respeitável, a D. Maria de Tal, tinha a mais baixa
e, para ele, inominável profissão feminina. Aí se cristaliza um temor masculino, de que
por trás da aparência controlada das senhoras se esconda uma prostituta.
Essas são algumas personagens dos contos machadianos, a partir de 1882, que
desvelam as tensões vividas dentro dos limites da vida doméstica, do casamento. Nesse
conjunto, ainda que incompleto, através de uma forma realista, parece haver uma ambi-
ção de colecionar vários casos, talvez histórias sem data, que sejam capazes de mostrar
a diversidade de conflitos vividos pelas mulheres no Brasil do século XIX, na transição
(nunca concluída) de uma sociedade patriarcal para a ordem burguesa. O cotidiano do
Rio de Janeiro é o universo que serve de cenário para esses vários papéis avulsos.

1
SANSEVERINO, Antônio Marcos. Esquisitas e desmioladas: o narrador, o adultério e a representação
feminina no conto machadiano. Cerrados, v. 26, p. 55-73, 2017. Endereço:
https://periodicos.unb.br/index.php/cerrados/article/view/22748.
2
Professor Associado de Literatura Brasileira, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Letras
(UFRGS). Pesquisador Produtividade em Pesquisa CNPq. Este trabalho é resultante do pós-doutorado
junto ao Departament of Portuguese and Brazilian (Brown University), com bolsa concedida pela CA-
PES.

2
Não é com pouco surpresa que vemos junto com o conto realista, uma expressão
alegórica presente em diversos momentos da ficção machadiana: Na arca, Segredo do
Bonzo, Sereníssima República, Igreja do Diabo, Apólogo, Viver, O cônego e a metafí-
sica do estilo... No presente ensaio, o interesse recai sobre As Academias do Sião, pois
aparentemente temos aí a ilustração de um debate sobre gênero. Depois retomaremos
sua análise, mas agora interessa partir da pergunta chave do conto: “por que é que há
homens femininos e mulheres masculinas?" Para ilustrar a tese, a narrativa apresenta a
troca de almas entre um rei e sua principal concubina. A construção da imagem alegóri-
ca se articula com um sentido abstrato que é atribuído a ela. A relação, não natural, é ar-
bitrária e condicionada por um sistema que impõe o nexo entre imagem e sentido. Na
alegoria barroca, o termo de mediação é a morte. Na alegoria moderna, a mercadoria,
colocada como falsa universalidade. Na alegoria “brasileira”, unida a essa mediação
moderna da mercadoria, parece que lidamos com o patriarcalismo, de um lado, e com a
escravidão, de outro, como mediadores de um sentido cristalizado na imagem alegórica.
De que modo isso aparece em Academias?
Tanto nos contos realistas, quanto alegóricos, há ainda outro ponto de articula-
ção, um narrador muito atuante, que se apresenta em primeira pessoa mesmo nos contos
que se voltam para uma terceira pessoa. O arbítrio e a ironia não existem enquanto mo-
vimentos genéricos, ou universais, mas localizados na voz de um narrador que tenta de-
finir e impor um sentido à história narrada para seus interlocutores. A corrosão irônica
revela uma posição em falso e ambivalente. É possível, pelas pistas por ele deixada no
discurso, caracterizá-lo na condição masculina, letrada e de elite. Este narrador se põe a
apresentar narrativas de personagens femininas em que destaca pontos cegos de histó-
rias inusitadas que revelam mais sentidos do que aquele atribuído nas explicações e co-
mentários.
A posição do narrador no conto machadiano funciona como ponto de aproxima-
ção entre contos realistas e alegóricos. Nos dois casos, temos um narrador que se apre-
senta e interrompe o relato para explicar, esclarecer ou interpelar o leitor. Esses índices
que trazem descontinuidade para a narrativa são reveladores do arbítrio narrador e da
ambivalência de sua posição. Além disso, há um movimento esquisito que faz com que
o conto realista tenha procedimentos alegóricos, enquanto o alegórico traga procedi-
mentos realistas de construção da personagem. Nas Academias do Sião, Kinara é cons-
truída como se fora um personagem realista, com alta complexidade e densidade psico-
lógica. Em Dona Benedita: um retrato, D. Benedita é exemplo do microrealismo ma-
chadiano, capaz de expor o conflito da personagem através do simples olhar que ela
lança para o roidinho de barata numa chinela. O conto acaba, no entanto, com uma ima-
gem fantástica, quando a fada que presidiu o nascimento da mulher revela o sentido de
sua existência.
Vale se ater um tanto mais nesse conto que narra um tempo da vida de Dona Be-
nedita, a partir do aniversário de 42 anos. Ela mora longe do marido, em missão no nor-
te do país, mas nunca vai visitá-lo, pois compra a passagem do paquete e logo desiste da
viagem. A falta de vontade e o afinco aos desejos imediatos são mostrados em todos os
atos da mulher, dos mais comezinhos, como um livro iniciado com entusiasmo para ser
logo deixado de lado, até uma amizade esquecida sem outra razão do que a mudança de
gosto. Ao final, ela fica viúva e, cortejada, não sabe se casa de novo ou não.

Uma noite, volvendo D. Benedita este problema, à janela da casa de Botafogo, para
onde se mudara desde alguns meses, viu um singular espetáculo. Primeiramente
uma claridade opaca, espécie de luz coada por um vidro fosco, vestia o espaço da

3
enseada, fronteiro à janela. Nesse quadro apareceu-lhe uma figura vaga e transpa-
rente, trajada de névoas, toucada de reflexos, sem contornos definidos, porque mor-
riam todos no ar. A figura veio até ao peitoril da janela de D. Benedita: e de um
gesto sonolento, com uma voz de criança, disse-lhe estas palavras sem sentido:
Casa... não casarás... se casas... casarás... não casarás... e casas... casando...
D. Benedita ficou aterrada, sem poder mexer-se; mas ainda teve a força de pergun-
tar à figura quem era. A figura achou um princípio de riso, mas perdeu-o logo; de-
pois respondeu que era a fada que presidira ao nascimento de D. Benedita: Meu
nome é Veleidade, concluiu; e, como um suspiro, dispersou-se na noite e no silên-
cio. (Machado de Assis, 1989, p. 323)

Essa figura pode ser uma alucinação ou projeção fantasiosa da personagem, ou


ainda um fato fantástico que rompe com a verossimilhança do conto. O elemento estra-
nho é, de todo modo, um eixo possível de interpretação da narrativa, pois ele mostra
como devemos compreender D. Benedita. Os traços da imagem alegórica (figura vaga e
transparente; trajada de névoas, toucada de reflexos, sem contornos definidos, voz de
criança...) materializam de modo integral um conceito, Veleidade. Ela é uma fantasia
projetada no céu, a se desfazer sem se definir, que carateriza a falta de vontade, a inca-
pacidade de se decidir que redunda no movimento volúvel de um desejo imediato a ou-
tro, sem que haja realização. Essa figura revela à personagem sua identidade, em que se
apaga como indivíduo, na medida em que vive sob o domínio de uma força incoercível.
A ambiguidade entre exterior e interior cria uma fluida indistinção entre a mu-
lher e a alucinação. O exterior torna-se projeção de uma imagem mágica que explica o
caráter do indivíduo. Nesse caso, temos a Dona Benedita, incapaz de agir, de superar
seus impasses: não viaja para encontrar o marido e, depois, viúva, não decide casar-se.
A alegoria caracteriza sua incapacidade de qualquer transformação. O imobilismo de-
monstra como o tempo lhe é exterior, como ela não se constitui como um sujeito capaz
de ação transformadora, na medida em que envelhece, mas permanece sempre idêntica a
si mesma, exemplo de veleidade. D. Benedita não é jovem, nem de condição marginal,
não supera provas em busca do ideal; ao contrário, é uma senhora de elite, mulher co-
mum, já mais velha, com dois filhos, presa em sua condição limitadora. A vida cotidia-
na é uma rotina vazia, em que o tempo é preenchido de modo descontínuo e arbitrário.
A leitura desse conto ficaria incompleta se não falássemos de Eulália, que sofre
uma tristeza máscula, própria dos resolutos. Ela é objeto de interesse de Leandrinho, fi-
lho de D. Maria dos Anjos. O projeto de casamento é reforçado pelo cônego e, em certo
momento, pela própria mãe. Eulália, no entanto, não se desespera, diz apenas que não
quer casar-se e lida astuciosamente com sua mãe, pois sabe que os planos maternos
nunca chegavam à realização. Ela casa com o namorado de quem gosta, um oficial da
marinha, e constrói sua história. Sem fugir ao destino reservado às mulheres de elite
(casamento e maternidade), ela consegue compor sua história no vazio deixado pela au-
sência do pai e pela veleidade da mãe.
Assim, de um lado, a alegoria da Veleidade, identidade da mulher; de outro, a
relevância da mulher comum, sem idealização, que interessa à literatura por sua condi-
ção humana singular, seja a própria D. Benedita, seja Eulália. Há um salto de um regis-
tro realista para outro fantástico, parece ser intencionalmente feito a fim de salientar a
descontinuidade entre ambos. Trata-se de falha risível, porém amarga, já que releva a
condição precária de um indivíduo dominado por uma força que desconhece e se lhe
apresenta como mágica. De todo modo, aquela mulher retratada (realismo) já se torna o
modelo encarnado da própria veleidade (alegoria).

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Quem faz a mediação é um narrador em terceira pessoa, que se apresenta aos lei-
tores num diálogo em primeira pessoa. Interrompe a narrativa, comenta, avalia, interpe-
la à própria personagem.

Um dos pontos mais obscuros desta curiosa história é a pressa com que as relações
se travaram, e os acontecimentos se sucederam. Por exemplo, uma das pessoas que
estiveram em Andaraí, com D. Benedita, foi o oficial de marinha retratado no car-
tão particular de Eulália, 1º tenente Mascarenhas, que o conselheiro Beltrão pro-
clamou futuro almirante. Vede, porém, a perfídia do oficial: vinha fardado; e D.
Benedita, que amava os espetáculos novos, achou-o tão distinto, tão bonito, entre
os outros moços à paisana, que o preferiu a todos, e lho disse. (Grifo meu)

Esse é um dos muitos comentários do narrador. Em um outro, ele chega a inter-


pelar D. Benedita justamente por não saber do namoro escondido de Eulália. Na presen-
te citação, ele mostra o início da amizade entre duas famílias, simulando não saber do
plano de Eulália para aproximar seu pretendente, o oficial da marinha, e sua mãe. O tom
irônico chama a atenção, inclusive, para a farda, como instrumento de sedução da futura
sogra. O gesto do narrador, interrupção do enredo, é uma constante no conto e culmina
na aparição fantástica da fada que presidiu casamento de D. Benedita.
No presente ensaio, vamos debater, então, duas formas do conto machadiano, re-
alista e alegórico, mas sem perder de vista a ambivalência, como a que se mostra em D.
Benedita, em que as fronteiras ficam borradas. Nosso ponto de chegado é a outra ambi-
valência, a do narrador dos contos. Ele se mostra realista pelo esforço em captar o con-
flito social que se apresenta na vida cotidiana de mulheres comuns. Ao mesmo tempo,
ele se revela arbitrário, no esforço de definir (e, às vezes, de moralizar) o sentido do
conflito apresentado. Esse gestus, no sentido brechtiano (cf. Benjamin, 1985, p. 81), re-
vela o conflito social presente nesse olhar masculino, do homem letrado (e moderno)
preso a uma sociedade patriarcal e, assim, escandalizado com a possível igualdade das
mulheres.
Dona Paula: a adúltera austera e pia
A leitura do conto no jornal em que foi publicado traz algumas surpresas interes-
santes. No caso, "Dona Paula" apareceu na Gazeta de Notícias, na primeira e segunda
páginas, em 12 de outubro de 1884. A diferença relevante, em relação à edição em livro,
é uma epígrafe, um trecho de uma cantiga de amigo do Cancioneiro Vaticano. Trata-se
de um poema de João Zorro:
Per ribeira do rio
Vi remar o navio,
E sabor hei da ribeira!
CANCIONEIRO DA VATICANA, 753.

O trecho mostra o lamento da mulher que vê o amado partir enquanto ela fica à
margem. A leitura da epígrafe encaminha uma interpretação do conto. No caso, o narra-
dor adere ao ponto de vista de Dona Paula. No processo de subjetivação, na sua relação
com o casamento, o marido desaparece no esquecimento, nenhuma única vez é nomina-
do. O que se apresenta é uma nostalgia do amor adúltero, mesclado com uma nostalgia
de um tempo irrecuperável, que aparecem na narração enquanto restos de algo aconteci-
do trinta anos antes. No tempo presente, na margem da atualidade, ela olha para o pas-
sado em que se foi, como na voz da cantiga.

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A aventura acabou; foi uma sucessão de horas doces e amargas, de delícias, de lá-
grimas, de cóleras, de arroubos, drogas várias com que encheram a esta senhora a
taça das paixões. (Grifo meu)

A senhora "austera e pia" do presente da narração olha nostalgicamente para seu


passado, para o amor apaixonado. Talvez por induzir uma interpretação, pelo nexo com
as cantigas de amigo, a epígrafe tenha sido retirada. Afinal, não há nessa senhora sauda-
de do marido morto, apenas do amante perdido. Ao ser recuperada, no entanto, a epígra-
fe nos ajuda a entender um pouco melhor o conflito dessa senhora, que defende o casa-
mento da sobrinha, mas sabe que o melhor da experiência amorosa está fora dele.
Dona Paula, um nome, uma saudade do amor adúltero e nenhuma explicação da
origem. Vamos a ela. O conto abre com essa senhora chegando à casa da sobrinha, Ve-
nancinha, que chorava muito depois da briga com o marido, Conrado, que ameaçou se
separar dela. Dona Paula se dispõe a resolver o conflito, indo conversar com o marido.
No escritório, ao conversarem, ele não somente se mostra irredutível, como ainda decla-
ra que “não tinha dúvida de que eram namorados”. Dona Paula, apesar disso, paciente-
mente consegue um meio termo, um plano de recuperação do casamento, levando Ve-
nancinha para morar com ela na Tijuca, por alguns meses. Nesse momento, o conflito
dela aparece, quando ela ouve o nome do suposto namorado, Vasco Maria Portela. Era o
nome de seu antigo amante, agora um velho diplomata, morando na Europa, cujo filho
estava envolvido com Venancinha.
Na Tijuca, D. Paula percebia o amor da sobrinha pelo jovem Vasco, mas não
conseguia que ela falasse. Depois da visita de Conrado, as coisas começam a mudar, o
“terror de perder o marido foi o principal elemento da restauração”. Logo depois Ve-
nancinha vê o possível amante e se abre para a tia. No desabafo, a sobrinha conta em
detalhes suas experiências amorosas, não mais do que um prólogo intenso, e a história
finaliza com a insone D. Paula, tentando recuperar seu passado. A cena do desabafo é o
ponto máximo de tensão que abre a possibilidade de analisar essa senhora tão intrigante.

Nessa mesma noite, Venancinha contou-lhe tudo, depois da primeira palavra que
ela lhe arrancou. [...] D. Paula, inclinada para ela, ouvia essa narração, que aí fica
apenas resumida e coordenada. Tinha toda a vida nos olhos; a boca meio aberta,
parecia beber as palavras da sobrinha, ansiosamente, como um cordial. E pedia-lhe
mais, que lhe contasse tudo, tudo. Venancinha criou confiança. O ar da tia era tão
jovem, a exortação tão meiga e cheia de um perdão antecipado, que ela achou ali
uma confidente e amiga, não obstante algumas frases severas que lhe ouviu, mes-
cladas às outras, por um motivo de inconsciente hipocrisia. Não digo cálculo; D.
Paula enganava-se a si mesma. Podemos compará-la a um general inválido, que
forceja por achar um pouco do antigo ardor na audiência de outras campanhas.

Dona Paula está inclinada sobre a sobrinha para ouvir sua narração, vida nos
olhos e boca aberta, bebendo "as palavras da sobrinha" como se fosse um cordial, um
tônico, que lhe dá nova energia. Pela narração da sobrinha, a velha senhora ganha um ar
“tão jovem”. Ela consegue unir, mesmo que de modo momentâneo, as lembranças da
cabeça e os afetos do coração. O narrador nos indica que não se trata de hipocrisia cons-
ciente, não é encenação: "D. Paula enganava-se a si mesma". A construção da frase re-
vela a duplicidade dessa senhora. D. Paula, apaixonada, ardente e curiosa, engana D.
Paula, a senhora austera e pia que se propõe a restaurar o matrimônio da sobrinha. A
mulher precisa se dividir em duas para se relacionar com os homens na sociedade patri-
arcal. No casamento, a moça sonsa e submissa ao marido. No universo proibido e astu-
tamente guardado em segredo, a mulher se entrega ao desejo erótico.

6
Nesse gesto de Dona Paula, revela-se, então, um conflito central na posição da
mulher no século XIX, no Brasil. Para as mulheres de elite, não há vida fora do casa-
mento, que, enquanto instituição, dá guarida para o reconhecimento e a aceitação social.
Já vimos a relevância do tema em Dona Benedita, preocupada em casar bem a filha. De
certo modo, esse senso comum, pragmático e cotidiano, é sintetizado por outra persona-
gem machadiana. Em Quincas Borba, D. Fernanda, aconselha sua jovem amiga, Maria
Benedita, sobre relacionamentos amorosos:

– Virgem Santíssima! Que blasfêmia! Duas blasfêmias, menina; a primeira é que


não se deve amar a ninguém como a Deus – segunda é que um marido, ainda sendo
mau, sempre é melhor que o melhor dos sonhos.

D. Fernanda eleva a preceito religioso a regra de que a mulher só tem vida quan-
do se casa com um homem, quando tem um marido. É interessante observar como a lin-
guagem comum, muitas vezes, um homem casado refere-se a sua esposa como "minha
mulher". Especificamente, na tautologia, ser casada é ser mulher de um homem, quase
como um objeto possuído. O amor recíproco, a paixão ou o afeto são componentes aci-
dentais, enquanto o casamento é condição necessária para realização feminina. O temor
de D. Paula, em relação à sobrinha, é similar ao D. Fernanda, pois ela sabe que o reco-
nhecimento social da mulher se dá através do casamento. Por isso, para a solteira, é ne-
cessário casar-se; para a casada, é necessário manter o casamento, mesmo que seja ne-
cessário sacrificar uma paixão. A cuidadosa D. Paula conseguiu preservar o casamento e
viver sua paixão em segredo. Desde o início do conto, quando encontra a sobrinha cho-
rando, D. Paula faz questão de fechar as portas para que as escravas não vejam seu cho-
ro, não possam divulgar seu segredo. A própria confissão de Venancinha se dá no espa-
ço interior da casa, a portas fechadas, um lugar para guardar a intimidade e o segredo
femininos.
Voltando ao gesto de D. Paula, que se embriaga com as palavras da sobrinha, a
ponto de se abandonar à fruição da narrativa, a dimensão recalcada vem à tona e revela
uma necessidade feminina que não encontra satisfação da vida rotineira do casamento,
no espaço institucional. Em outra dimensão, também se revela a surdez masculina, no
caso específico, a incapacidade de Conrado, do marido, que não consegue compreender
sua mulher:

Confessou que fora excessivo em algumas coisas, e, por outro lado, não atribuía à
mulher nenhuma índole perversa ou viciosa. Só isso; no mais, era uma cabeça de
vento, muito amiga de cortesias, de olhos ternos, de palavrinhas doces, e a levian-
dade também é uma das portas do vício. (Grifo meu)

Ele diz para D. Paula que Venancinha é "uma cabeça de vento", entre outras coi-
sas. A velha senhora ouve com paciência, usa os próprios termos de Conrado, para per-
suadi-lo à reconciliação, mas certamente sabe da importância e da intensidade da paixão
da sobrinha. Ela se propõe a escutá-la, e a imagem de Venancinha se mostra muito dife-
rente dessa sonsa desenhada pelo marido. Vale destacar dois pontos. A vida da mulher
se restringe ao casamento, pelo menos na projeção pública. Apenas com dissimulação e
segredo é possível conseguir a experiência de outras esferas da vida, mas as duas partes
ficam separadas. Deste modo, Dona Paula age dentro do esperado pelo sobrinho, mas
sabe que isso faz parte da encenação necessária que envolve o exercício social dos pa-
péis de homem e de mulher.

7
Outro aspecto relevante, pelo ponto de vista masculino, desse Conrado, assim
como seu homônimo de "Capítulo dos Chapeus", é que a mulher é alguém sem profun-
didade, sem capacidade de compreensão, um ser frágil e superficial. Em outros termos,
os papéis estão postos: ao homem, a cabeça, e a vida pública; a mulher, a vida domésti-
ca, o cuidado do lar. No caso do conto, o gesto de D. Paula suspende essa divisão mos-
trando outra faceta feminina, mais complexa, recalcada pela relação de poder posta em
cena no casamento.
Vale notar como a linguagem do narrador faz uso de termos retirados do discur-
so político para falar do casamento. Por exemplo, o narrador mostra como o “terror de
perder o marido”, o silêncio de Conrado, pode mais do que o desterro para a restaura-
ção. Apresenta ainda D. Paula como general inválido, permitindo ver sua vida como
longa campanha militar. O conto, no entanto, não é uma alegoria da vida pública. Trans-
formá-lo em alegoria seria devolvê-lo à esfera masculina dos "assuntos sérios". Trata-se
ao contrário de revelar o quanto há de importância e complexidade na esfera da vida
privada. Mais diretamente, há uma disputa de poder que se coloca no núcleo da institui-
ção do casamento, em que a mulher é silenciada na posição de esposa, como alguém in-
capaz de ter vida interior complexa.
D. Paula encena uma divisão insolúvel. Ela tem um segredo que não pode reve-
lar a ninguém. As esferas do casamento e do adultério, bem-sucedido, são separadas.
Uma isolada da outra. Não é possível que o conflito venha à tona, que seu desejo amo-
roso possa ser narrado a outra pessoa. Nem mesmo a sobrinha. Não se trata de máscara
que recobre a interioridade, mas de cisão e de recalque do desejo. O discreto narrador
do conto faz questão de declarar que não se trata de cálculo, dando ainda maior relevân-
cia a uma experiência que, autêntica, foge ao controle de D. Paula.

Exercendo seu poder para regular o corpo feminino, a ideologia dominante criou
uma série de mitos culturais que atendem à forma masculinista de desejo: a reifica-
ção da criança e da adolescente; a mulher infantilizada como sinônimo de "ser fe-
minino"; a invisibilidade das mulheres de meia idade e idosas; a sexualidade das
mulheres da classe trabalhadora e as mulheres de cor como sendo facilmente nego-
ciáveis; e dispositivos similares "(Ferreira-Pinto, 2004, p. 35, tradução minha)3

Assim como Dona Benedita, mulher de meia idade, Dona Paula, mulher idosa e
respeitável, ganha protagonismo no conto machadiano. Como mostra Cristina Ferreira-
Pinto, a ficção mais trivial, no século XIX, tendia à representação estereotipada de per-
sonagens femininas, expressão do desejo feminino. Assim, o conto machadiano ganha
interesse, quando vemos o gesto ambivalente do narrador de mostrar os pontos de ruptu-
ra da ideologia dominante, mas, ao narrar essas histórias desviantes, tende a representá-
las como desvios condenáveis da norma.
As academias, uma ilustração para a teoria do gênero
Machado de Assis, como vimos, compôs alguns contos de feição evidentemente
alegórica. Igreja do Diabo, Conto Alexandrino, Apólogo são alguns exemplos. Na pre-
sente seção do ensaio, interessa focar um eles, “As academias do Sião”:

3
Exerting its power to regulate the female body, the dominant ideology has created a number of cultural
myths catering to masculinist form of desire: the reification of the female child and adolescent; the child-
ish woman as synonym for "being feminine"; the invisibility of the middle-aged and elderly women; the
sexuality of the working-class women and the women of color as being easily negotiable; and similar de-
vices" (Ferreira-Pinto, 2004, p. 35)

8
Deu lugar a essa enorme ascensão de pensamentos o fato de quererem as quatro
academias de Sião resolver este singular problema: — por que é que há homens
femininos e mulheres masculinas? E o que as induziu a isso foi a índole do jovem
rei. Kalaphangko era virtualmente uma dama. Tudo nele respirava a mais esquisita
feminidade: tinha os olhos doces, a voz argentina, atitudes moles e obedientes e um
cordial horror às armas. (Machado de Assis, data, p. X)

O conto traz duas histórias. A primeira é a disputa entre as quatro academias do


Sião que debatem a natureza da alma, a partir da interrogação destacada: “por que é que
há homens femininos e mulheres masculinas?" Para três academias, a alma era neutra.
Para uma delas, a alma era sexuada, masculina ou feminina. Daí, “a anomalia que se ob-
serva é uma questão de corpos”, formulou esta academia. A divergência começou no
debate acadêmico, passou para a injúria, continuou na agressão e terminou na violência
extrema. A academia da alma sexuada literalmente exterminou seus oponentes, matando
e, depois, fazendo um colar com as orelhas cortadas dos derrotados, colar e braceletes
para o presidente dos vencedores, U-Tong. A afirmação dessa “verdade” passa pela su-
pressão da divergência e da existência mesma do outro. Essa primeira história prossegue
ao longo das outras três partes, mas passa para o fundo da cena. O rei, Kalaphangko, de-
cretou que a doutrina era legítima e verdadeira.
Aí começa a segunda história, pois o rei, “virtualmente uma dama”, apenas to-
mou essa iniciativa por ter sido convencido pela principal concubina, Kinnara, “a mu-
lher máscula – búfalo com penas de cisne”. Na sequência, ela consegue ainda convencer
o rei de fazerem secretamente um ritual em que as almas dos dois trocariam de corpos.
E assim foi feito durante à noite, em uma embarcação real, com a combinação de que,
depois de seis meses, desfariam a troca.

A primeira ação de Kalaphangko (daqui em diante entenda-se que é o corpo do rei


com a alma de Kinnara, e Kinnara o corpo da bela siamesa com a alma do Kala-
phangko) foi nada menos que dar as maiores honrarias à academia sexual. Não ele-
vou os seus membros ao mandarinato, pois eram mais homens de pensamento que
de ação e administração, dados à filosofia e à literatura, mas decretou que todos se
prosternassem diante deles, como é de uso aos mandarins.

Depois que as almas trocaram de corpos, Kalaphangko puniu severamente al-


guns os contribuintes com impostos atrasados. Os outros passaram a pagar. Incrementou
a religião depois de expulsar missionários cristãos. Fortaleceu o rigor da justiça e com-
pletou sua obra com uma guerra fulminante, da qual voltou vitorioso. Aqui as duas his-
tórias se encontram, pois Kalaphangko (homem com alma masculina) tinha o plano de
matar Kinnara, para permanecer no poder. Só não o fez por medo, temor de que, matan-
do Kinnara, pudesse vir a morrer também. Para dirimir sua dúvida, chamou os membros
da academia sexuada. E agora aparece sua perplexidade, pois vieram apenas 13 dos 14
membros, pois U-Tong estava doente. Eles declararam que este era um camelo, apesar
de ter boa alma. Quando U-Tong veio sozinho, disse o mesmo de seus colegas acadêmi-
cos. E, assim, cada membro que veio só repetia o mesmo, fosse diretamente ou por cir-
cunlóquios. O Rei não entendia como juntos eram a “claridade do mundo” e separados,
um bando de camelos. Depois de desistir de consultá-los, Kalaphangko passou a refletir
sobre a pertinência de eliminar Kinnara para se manter no poder. Apenas deixou de co-
meter o assassinato, quando Kinnara contou que estava grávida. Ao fim de seis meses,
na mesma piroga real, quando destrocaram os corpos, viram ao longe o barco da Aca-
demia que cantavam loas em homenagem a si. Kinnara (antes Kalaphangko) contou o
que sucedera e ficou sem solução seu enigma.

9
Este último conto de Histórias sem data, Academias de Sião, um conto filosófi-
co, possui três níveis. Primeiro, temos a ação do narrador que no preâmbulo do conto
pergunta a um interlocutor indeterminado se conhecem as academias de Sião. Ele decla-
ra que elas não existem, desloca para a suposição e conclama a ouvir sua história. Note-
se que, para sua ficção, ele escolhe o país do oriente (Sião, atual Tailanda) que não so-
freu a colonização ocidental. Mais do que isso brinca com o fascínio que esse Oriente
inventado tinha do século XIX. Ao longo do conto, a presença do narrador é forte e se
ocupa de fazer comentários. Fala da sua dificuldade de narrar a violência extrema da
academia sexuada, exalta sua própria qualidade inventiva, quando, por exemplo, se co-
loca como superior a Dante e finaliza convocando o leitor a enviar uma resposta a Kin-
nara, caso fosse capaz de resolver sua dúvida sobre as academias (junto, sábios; em se-
parado, camelos). As intervenções do narrador, vale destacar, podem ser lidas como
gestos arbitrários que tentam definir para o leitor um viés de interpretação, de modo se-
melhante à história inventada que coloniza discursiva e ficcionalmente um país do ori-
ente.
Além disso, há aí um problema interessante. Edgar Allan Poe formulou a teoria
do conto, no século XIX, dando autonomia à forma. Não interessa aqui debater em
pormenor as importantes observações de Poe que deram dignidade a essa forma breve
em prosa. Nesse gesto fundador de nova forma, ela se apresenta como uma unidade fe-
chada e, principalmente, é pensada a partir de sua autonomia estética. Publicado em pe-
riódicos, recolhido posteriormente em livro, o short story centra-se na emancipação da
forma em relação à situação narrativa. O autor separa-se de seu conto, deixando no texto
um narrador, que muitas vezes evita marcas de pessoalidade discursiva. Na outra ponta,
a posição de interlocução pode ser preenchida por qualquer um, qualquer leitor que pe-
gue o livro ou o periódico para ler. Como ressalta Rancière (1995, 2010), em relação a
escrita, há uma indiferença pera essa letra muda aberta para qualquer um, qualquer lei-
tor. Como se observa nesse conto de Machado, bem como nos de Poe e de outros auto-
res, o autor constrói um narrador ficcional, que pode se afastar, mais ou menos, da sua
posição autoral. O que se pode dizer, no entanto, que quase sempre esse narrador deixa
marcas de uma relação particular de interlocução. De certo modo, simula uma relação
próxima do leitor, como se ele fosse único e determinado. Em outros termos, o short
story é uma forma que se emancipa do nexo pessoal com seu autor, de um lado, e que
pode alcançar qualquer um que se coloque na posição de leitura. Ao mesmo tempo, há
uma tendência de construir um texto que incorporem marcas de uma interlocução parti-
cular e pessoal. O exemplo mais óbvio é do conto que faz uso do gênero epistolar.
Essa presentificção do narrador, nas Academias do Sião, não é exterior à matéria
narrada, na medida em que se constrói um conto feição filosófica, em que a história ten-
de a ilustrar um problema conceitual, que veremos a seguir. Desde já vale lembrar a
análise feita por Abel Barros Baptista (2014). Sua leitura dos contos de Machado de As-
sis está centrada na autonomia da forma do conto (2014, p. 106), enquanto “materializa-
ção completa e autônoma”: “a lógica inexorável da forma breve exige que a história seja
capaz de contar a si mesma” (p.106). Dentro dessa forma, segundo sua leitura, “emanci-
pada”, inclusive, das condições brasileiras de produção e leitura, Baptista concentra-se
na análise das variações do narrador, que, enquanto modernos, buscam impor uma auto-
ridade que se revela vazia, ausente. A autoridade se faz autoritária, uma necessidade pa-
ra estabelecer o nexo entre história narrada e interpretação atribuída (p. 121). Essa leitu-
ra é importante, pois mostra no núcleo do conto machadiano uma cisão entre a história
(anedota) e a interpretação que seu próprio narrador dá. A partir daí, agora contrariando
o crítico português, podemos encontrar uma situação de arbítrio (como veremos mais

10
tarde) das próprias condições brasileiras, próprias da sociedade escravocrata e patriarcal.
Por enquanto, importa destacar que o narrador de “Academias de Sião” conta uma histó-
ria e ao mesmo tempo lança questões interpretativas, que não só não resolvem o sentido
do conto, como o deixam mais aberto.
Assim, chegamos ao segundo nível, aos sábios de Sião que debatem um grande
problema, a natureza da alma. “Por que é que há homens femininos e mulheres masculi-
nas?”. A interrogação parte da constatação de que o rei é virtualmente uma dama. Há
um incômodo dado pela realidade, supostamente uma incongruência ou anomalia que
demanda explicação. O resultado é interessante, pois parte de uma disjunção entre corpo
e alma, separados como dois termos que podem se combinar de diferentes formas.

When the constructed status of gender is theorized as radically independent of sex,


gender issue becomes a free-floating artifice, with the consequence that man and
masculine might just as easily signify a female body as a male one, and women and
feminine a male body as easily as female one. (Butler, 2007, p. 9, grifo meu)4

A partir de Judith Butler, Gender trouble (2007), podemos entender que o tom
leve e irônico do narrador põe em cena uma disjunção importante, na separação entre
sexo e gênero. Na teoria perfomativa de Butlher, o gênero se produz pela repetição esti-
lizada de gestos, que se mantém no tempo e que produzem a impressão de estabilidade,
de uma identidade reconhecível. Não se trata mera escolha do agente, mas de uma cris-
talização de padrões performativos que se reificam e se apresentam como se fossem na-
turais e capturam o indivíduo em suas determinações. No conto de Machado, o narrador
tende a definir a condição masculina ligada ao exercício do poder, de um lado, e do pen-
samento, do outro. A condição do rei (centralidade política, princípio dominante) se re-
flete na sociedade inteira (administração política, religião, comportamento), e os aca-
dêmicos, apenas homens, revelam que a ciência não está desligada do desejo de supre-
macia e da busca do poder definidor da verdade, mesmo que isso se dê pela violência.
Ao fazer do rei um homem feminino (virtualmente uma dama), ele mostra como o reino
parece frágil, sem rigor para punir devedores e aberto à presença de missionários es-
trangeiros. Quando Kalaphango ganha alma masculina, o reino se mostra “másculo”, ri-
goroso com devedores, intolerante com a entrada de cultura diferente e satisfeito pela
imposição violenta e guerreira sobre reinos vizinhos.
A disjunção entre o corpo e alma, entre o sexo e o gênero, abre-se para quatro
possibilidades combinatórias: homem com alma masculina; homem com alma feminina;
mulher com alma feminina; mulher com alma masculina. Talvez pareça pouco, mas,
através dessa fábula moderna, Machado faz um corte, uma interrupção na aparente con-
tinuidade entre corpo (homem) e gênero (performance). Essa descontinuidade aparece
com um problema para a ciência, através das academias, que deve ser não apenas resol-
vido, mas ter sua solução normatizada e legitimada como doutrina a ser aceita. Mesmo
que seja pela violência. Quando as almas são trocadas, unificando alma e corpo, isto é
posto como mais aceitável, mais normal. Como vimos, o reino passa a ser governado
com mão de ferro, torna-se “bem” administrado, com estrita aplicação da lei (punição
com morte dos contribuintes omissos), com a purificação da religião local (expulsão de
missionários estrangeiros) e com afirmação da soberania do Estado pela guerra. A con-

4
Quando o status construído de gênero é teorizado como radicalmente independente do sexo, a questão
do gênero torna-se um artifício fluente, com a consequência que o homem e a masculinidade podem jus-
tamente tão facilmente significar o corpo feminino quanto o masculino, e a mulher e o feminino, um cor-
po masculino tão facilmente como um feminino. (Tradução minha)

11
tinuidade manteria essa lógica não fosse a gravidez da rainha, e o desejo do Rei voltar a
ser mulher para experienciar a maternidade. O conto deixa o final em aberto. Não se ex-
plica o enigma dos 14 acadêmicos que são sábios quando reunidos, mas camelos quan-
do separados, nem se revela o que sucedará com o rei e a rainha depois da experiência
da troca de corpos. Primeiro, homem com alma feminina, mulher com alma masculina;
depois, homem com alma masculina e mulher com alma feminina e, ao final, simples-
mente uma volta à situação inicial? Ou haveria possibilidade de modificação da perfor-
mance do gênero? E como ficaria a relação e interlocução entre os dois?
Depois de uma revisão do modo como o gênero era definido, enquanto categoria
de análise, Joan Scott propõe uma definição que serve de ponto de partida para a pes-
quisa histórica, considerando métodos de análise, hipóteses operativas e o estudo das
mudanças. Vale ressaltar alguns pontos de seu texto.

Minha definição de gênero tem duas partes e várias subpartes. Elas são ligadas en-
tre si, mas deveriam ser analiticamente distintas. O núcleo essencial da definição
baseia-se na conexão integral entre duas proposições: o gênero é um elemento
constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e
o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder. (Scott, 1995, p.
21)

A partir da separação produtiva de que sexo e gênero são esferas distintas, a au-
tora propõe a definição de gênero como “elemento constitutivo das relações sociais”.
Trata-se da forma organizadora das relações que se baseiam nas diferenças percebidas
entre os sexos. Há uma negação de qualquer essencialidade, ou de pressuposto natural
que anteceda a história. Obviamente o corpo é uma base natural, biológica, mas a di-
mensão humana começa quando consideramos a dimensão material do trabalho, da lin-
guagem e dos valores. Nesse momento, o corpo (e o sexo) são também construídos e
significados historicamente, mas, principalmente, o gênero institui o modo como a dife-
rença dos corpos é organizada e institucionalizada. O ponto seguinte, fundamental, co-
loca o gênero enquanto forma primeira de “significar as relações de poder”. Esse aspec-
to é essencial, pois, assim como raça, etnia, classe social, gênero é uma categoria cons-
truída que se sedimenta na vida cotidiana e expressa como forma política de ordenação
e de divisão dos papeis. No caso específico dos contos de Machado, esse é um ponto
importante, pois muitas vezes o conflito interpessoal é expresso através de uma dimen-
são política. A leitura de Roncari de O capítulo dos chapéus enfatiza uma dimensão po-
lítica do conto, tratando da dimensão emancipatória da revolução francesa que não tem
espaço no Brasil. (Roncari, 2005) O caminho que seguiremos é um pouco diferente.
Como vimos, o uso de vocabulário político em contos que tratam do cotidiano feminino
não significa necessariamente uma alegoria política5. Talvez seja uma forma de valori-
zar a condição feminina, dando a própria dimensão cotidiana uma importância política.
Vale atentar, então, para o modo como a posição que emerge como dominante é,
apesar de tudo, declarada a única possível. A história posterior é escrita como se essas
posições normativas fossem o produto de um consenso social e não de um conflito. As-
sim, mesmo o que parece natural, é socialmente construído e expressa um conflito laten-
te. No caso dos contos, vemos a narração da violência como fator constitutivo do saber

5
O uso da alegoria no presente artigo parte da leitura de Origem do Drama Trágico Alemão. No caso es-
pecífico, o foco está na passagem da personagem realista (mutável, inserida no cotidiano social, atraves-
sada pela histórica, psicologicamente complexa...) à personagem alegórica (cristalização de um conceito).
O exemplo já dado é o de Dona Benedita.

12
(supressão das academias rivais), da lei (execução de devedores), da religião (expulsão
da diferença) e do Estado (guerra). No mais íntimo de Dona Paula, a norma se impõe
como barreira que impede, inclusive, a possibilidade de compartilhar sua vivência com
sua sobrinha.
Ao explodir a rigidez pela exposição do conflito, descobre-se a natureza da re-
pressão que leva a aparência de uma permanência eterna na representação binária dos
gêneros. No caso, está implícita na posição ambivalente do narrador, cuja teoria abre pa-
ra a disjunção entre sexo e gênero, mas afirma como anômala a mistura (homem femi-
nino, mulher masculina). Vale insistir na dimensão política da normatização que define
o modo como um indivíduo deve se relacionar com o gênero para configurar sua identi-
dade. Entra aí um terceiro aspecto das relações de gênero definido Joan Scott.

A natureza desse processo, dos atores e das ações, só pode ser determinada especi-
ficamente se situada no espaço e no tempo. Só podemos escrever a história desse
processo se reconhecermos que “homem” e “mulher” são ao mesmo tempo catego-
rias vazias e transbordantes; vazias porque elas não têm nenhum significado defini-
tivo e transcendente; transbordantes porque mesmo quando parecem fixadas, elas
contêm ainda dentro delas definições alternativas negadas ou reprimidas. (Scott,
1995, p. 28-29)

Da citação acima feita, vale destacar que as categorias de “homem” e “mulher”


são vazias, por não terem significado fechado, e transbordantes, porque, mesmo fixadas,
trazem “dentro delas alternativas negadas ou reprimidas”. Esse ponto final é particular-
mente interessante para pensar uma derivação desse conto alegórico para o realismo dos
outros contos de Machado de Assis. Quanto ao realismo, nesse caso, são produtivas as
leituras de Fredric Jameson (2013), que pressupõe um conflito constitutivo entre o im-
pulso narrativo e as dimensões cênicas, descritiva e afetiva6, e de Rancière que destaca a
força realista e disruptiva ao abrir o campo da ficção para qualquer objeto ou para qual-
quer ação e, por isso, romper com a lógica da ação (2010). Nesse sentido, é possível
pensar que o realismo, no século XIX, se constitui quando traz à tona experiências “al-
ternativas negadas ou reprimidas” por um conceito de gênero que tende a ser fixado pela
ordem burguesa e corroborada por uma dimensão científica. E, assim, de certo modo, o
conto alegórico revelaria a base epistêmica que sustenta a visão realista presente em his-
tóricas como as de D. Paula, D. Camila, Mariana ou Maria Olímpia.
Voltando à dimensão perfomática do gênero, vale insistir no nexo entre papéis
vividos na vida e encenados no drama. Assim, o conceito brechtiano de “gestus” torna-
se produtivo para pensar a ficção curta de Machado. Mais adiante, voltaremos ao tema
do narrador, mas se pode desde já levantar a hipótese de que a quebra dramática da
identificação (efeito V brechtiano) se apresenta no conto no narrador forjado e nas que-
bras de seu discurso. Para Florian Becker, as definições de realismo e de “gestus” estão
interligadas. O realismo representa os eventos conforme a partir das mesmas leis que
governam os eventos da realidade. O objeto da representação faz parte de uma rede de
relações sociais. O “gestus” pressupõe um conjunto de gestos, expressões faciais e fala

6
Jameson constrói sua definição de realismo, a partir da simbiose de duas forças contrárias. De um lado,
há o impulso narrativo que aparece nos contos populares, que apresenta uma história já acontecida, aca-
bada, completa. Trata-se de narrar o que é memorável e pode ser narrado de novo e de novo, no sentido
como Walter Benjamin define a narrativa, vinculada à tradição, à transmissão oral, à experiência e à co-
munidade de artesãos ou de camponeses. De outro lado, temos um “impulso de elaboração cênica, descri-
ção e, acima de tudo, todo investimento afetivo” (2013, p. 22).

13
comum, mas ele pressupõe uma relação de interlocução em que se atualiza o conflito
social.

A sua descrição deve ter uma menção, implicação ou uma indicação a pelo menos
um fator institucional na situação da causalidade histórica. De modo crucial, entre-
tanto, não é necessário que a pessoa cujo movimento é descrito desse modo esteja
consciente de qualquer um desses fatores. (Becker, 2008, p. 36)7

Creio que seja importante insistir na leitura que Walter Benjamin faz de Brecht
(1985). O gesto ganha força no momento de interrupção, que estabelece uma quebra no
fluxo ficcional do andamento dramático e quebra a ilusão. É o fundamento do conheci-
mento que o teatro traz tanto para quem atua quanto para quem assiste. Nesse momento,
forma-se aquilo que Benjamin estabelece como imagem dialética. A cristalização do
conflito social. Assim, desvela-se tanto o conflito pessoal, quanto a instituição que se
mostra como construção social, como parte de uma relação de poder e de imposição de
um padrão de comportamento e de um nexo impositivo e hierárquico.

A condição descoberta pelo teatro épico é a dialética em estado de repouso. Assim


como para Hegel o fluxo do tempo não é matriz da dialética, mas somente o meio
em que ela se desdobra, podemos dizer que no teatro épico a matriz dialética não é
a sequência contraditória das palavras e ações, mas o próprio gesto. (Benjamin,
1985, p.89)

Vale destacar aqui a dimensão nuclear do gesto para Benjamin. Quando comenta
Franz Kafka, em 1934, a partir do teatro chinês, de Oklahoma (America), ele fala que o
mundo de Kafka é o “mundo dos gestos”: “uma das funções mais significativas desse
teatro ao ar livre é a dissolução do acontecimento no gesto” (p. 146). De tal modo, isso
é importante que “toda obra de Kafka representa um código de gestos, cuja significação
simbólica não é de modo algum evidente” (p.146). Desse modo, a imagem dialética (a
mônada) está presente no teatro épico brechtiano, enquanto interrupção do fluxo, en-
quanto possibilidade despertar do fluxo da história, para que a consciência permita a de-
liberação e a ação no mundo.
Quanto aos contos de Machado de Assis, principalmente depois da viravolta
com Memórias Póstumas de Brás Cubas, ele traz à cena quaisquer situações do cotidia-
no (principalmente do Rio de Janeiro) em que se condensam um conflito entre a fixação
de um lugar e de um papel social, de um lado, e de uma força disruptiva, de difícil defi-
nição, de outro. Nos termos de Jameson (2013), impõe-se a narração, mas há uma situa-
ção nova, afetiva, que parece escapar a capacidade expor essa nova tensão. Especifica-
mente, quando os contos põem o protagonismo na mulher, esse conflito se impõe de di-
versas formas. No nível da narração, quando são homens que contam a história, o con-
flito se evidencia no mal-estar com a ruptura do papel fixado na ordem (patriarcal em
transição para o padrão burguês). Um exemplo notório está no conto Singular Ocorrên-
cia. Dois homens dialogam na rua. Um deles diz que “há ocorrências singulares” e
aponta para uma mulher de meia idade, vestida de preto, que entra na igreja. O interlo-
cutor, mais jovem, supõe um amor mais antigo do outro, que discorda, dizendo, através
de eufemismo, que se trata de uma prostituta. A cena é chocante, pelo gesto violento (e
fofoqueiro) do homem, pois ele revela que a mulher que aparenta ser uma viúva respei-

7
“Its description would have to mention, imply, or point to at least one of the institutional factors in the
situation’s causal history. Crucially, however, it is not necessary that the person whose movement is de-
scribed in this fashion be himself aware of any these factors” (tradução minha)

14
tável esconde uma figura degradada e rebaixada. Há despeito e desconcerto do homem e
do membro da elite que não tolera a invasão de classe e de gênero, na circulação livre de
uma ex-cortesã que anda na rua e entra numa igreja. Assim, no caso dos contos macha-
dianos, com narrador masculino, o gesto narrativo se dá quando os padrões sociais são
quebrados, especificamente a instituição do casamento revela-se como imposição social,
para a qual nem todas as mulheres são convidadas. No caso de uma prostituta, como
Marocas, ela não pode nem mesmo encenar os gestos da viuvez e da caridade.
O cotidiano se apresenta como uma esfera não problemática em que as ações ro-
tineiras trazem a repetição de padrões que definem o lugar da mulher e do homem. No
Segundo Reinado, há um processo de modernização que se dá na passagem da família
patriarcal para a família burguesa. No caso que nos interessa, como se evidencia na lei-
tura das publicações destinadas às mulheres, há uma redefinição nos papéis masculinos
e femininos.
Não se trata, portanto, de advogar um Machado feminista8, mas de evidenciar
um interesse continuado do autor por questões que lhe eram contemporâneas, como a
educação feminina.9 Emery Marques (2012) contrasta as posições de Nísia Figueira e de
Maria Amália Carvalho. Esta última se volta para o público feminino e trata da esfera
doméstica, da educação da mulher numa nova época. A primeira, excede à esfera do
privado, e debate os problemas da sociedade brasileira, como a família extensiva e a es-
cravidão, além de advogar um novo espaço para atuação das mulheres. As duas autoras
afirmam um valor positivo para a voz da mulher, para o novo lugar ocupado, na socie-
dade em modernização. Maria Amália não afronta os limites de atuação da mulher: ca-
sa, família, filhos, casamento, moda, culinária, criados... Apresenta um modelo de aco-
modação da mulher ao novo ambiente, de tal modo que a mulher acompanha o homem,
mas não põe em questão a divisão binárias dos papéis. Apenas propõe um novo dese-
nho. Por sua vez, Nísia ataca justamente essa delimitação dos espaços de atuação. Por
fim, não é demais lembrar que estamos no universo letrado dos jornais e dos opúsculos
em países, Portugal e, principalmente, Brasil, em que predominam o analfabetismo.
Nelas se evidencia que Machado põe em cena um conflito candente do seu tem-
po. Jurandir Freire Costa (1989), mostra como esse ideal de modernização burguesa,
presente na medicina higienista, é construir um cidadão burguês, reprimido em seus ins-
tintos primitivos e arcaicos, que se baseie em relações impessoais preservando o interes-
se do estado nacional. Branco, com o corpo saudável, casado, reprimindo seus impulsos
(comer muito, beber muito, sexo com prostitutas...), respeitando sua mulher (pela qual
nutre um amor natural) e seus filhos (em quem identifica uma pessoa autônoma), esse é
o padrão normal de indivíduo segundo a medicina higienista. Esse padrão é estendido
para todos como norma, inclusive para a urbanização da cidade, para organização das
escolas... Sua força ideológica está na aparente neutralidade do discurso científico, que
apenas apresenta a verdade natural, para além da história. O resultado, no Brasil oito-
centista, é uma contradição histórica, como já mostrou Roberto Schwarz (1988). Há

8
John Gledson, numa introdução ao conto machadiano, mostra a participação de Machado de Assis em
periódicos destinados a mulheres (Jornal das Famílias e, depois, A Estação). A partir dos anos de 1880, a
escrita para o público feminino e sobre mulheres revelaria um tipo de feminismo, presente, por exemplo,
em Singular Ocorrência.
9
Gusmão, Emery Marques. De bates sobre educação feminina no século XIX: Nísia Floresta e Maria
Amália Vaz de Carvalho. Est. Hist., Rio de Janeiro, vol. 25, nº 50, p. 269-289, julho-dezembro de 2012.
O artigo "Debates sobre a educação feminina˜ apresenta a obra de duas autoras importantes no século
XIX, Nídia Floresta e Maria Amália Carvalho.

15
uma oscilação entre a dimensão moderna e liberal, que penetra e altera o cotidiano prin-
cipalmente urbano, e a base escravocrata que vai do trabalho rural, passa pela diversida-
de de ofícios urbanos e entra na casa da elite através de mucamas, copeiras, mordomos,
etc. O humanismo higienista, como ideologia, aliava o padrão burguês (modernidade
brasileira pela europeização dos costumes) e mantinha o liberalismo escravista. A famí-
lia da elite se transformava, mas excluía o escravo (demônio familiar) contra quem era
mantida a lógica punitiva e colonial, pela repressão física violenta. Quer dizer, não hou-
ve de fato a passagem de um sistema patriarcal para um liberal, burguês, mas um uso
decorativo, desse segundo.
Machado de Assis mostra atenção aguda a esta transformação. Em 1881, em A
Estação, Machado publicou um pequeno texto, Cherchez la femme, em que defende a
educação feminina.

Vinde, rio abaixo dos séculos, e onde quer que pareis, a mulher vos aparecerá, com
o seu grande influxo, algumas vezes maléfico, mas sempre irrecusável; achá-la-eis
na origem do homem e no fim dele; e se devemos aceitar a original teoria de um fi-
lósofo, ela é quem transmite a porção intelectual do homem.
Assim, amável leitora, quando alguém vier dizer-vos que a educação da mulher é
uma grande necessidade social, não acrediteis que é a voz da adulação, mas da ver-
dade. O assunto é decerto prestado à declamação; mas a idéia é justa. Não vos que-
remos para reformadoras sociais, evangelizadoras de teorias abstrusas, que mal en-
tendeis, que em todo caso desdizem do vosso papel; mas entre isso e a ignorância e
a frivolidade, há um abismo; enchamos esse abismo.

Lendo o trecho acima, é possível destacar a preocupação com a educação da mu-


lher, mas, de modo decoroso, não propõe reforma social. O que interessa destacar é que
essa atenção para uma categorização, em que homem e mulher definem-se mutuamente
na relação que estabelecem entre si. Esse é um ponto fundamental para pensar sua fic-
ção. Seja na prosa, seja no romance. E, não me parece exagerado, que sua ficção tem
uma dimensão mais radical do que o tipo de educação que Machado advoga acima. De-
ve-se também atentar para o veículo em que escreve, A Estação, que possui uma aparen-
te modernidade na sua apresentação e na circulação internacional, mas constrói uma in-
terlocução com uma mulher de elite, cujos interesses ficariam restritos à vida privada.
Em A Estação, não entra, por exemplo, a posição proposta por Nisia Floresta que repen-
sa mais radicalmente o lugar da mulher.
Assim, a partir da atenção para o debate que se trava sobre a posição da mulher
na sociedade e sobre a educação feminina, podemos voltar para os contos machadianos,
como se fosse uma coleção de cenas em que os padrões de representação feminina são
postas em questão. E através disso, no protagonismo feminino, os padrões de gênero (a
performance padronizada e retificada) aparecem como formas de engessamento e de so-
frimento para algumas mulheres. Não se trata da definição de uma categoria, mulher
machadiana, mas de mostrar o quanto as relações patriarcais, mesmo com aparência
burguesa, impedem novas possibilidades de comportamento feminino, que fica desloca-
do para a sombra ou são vistas como anomalia.
Aí entra um nó interessante. Ou melhor, entra em cena um narrador que, mesmo
quando no uso discreto de uma terceira pessoa, revela um ponto de vista da elite, que se
apresenta moderna; masculino, oscilando entre o refinamento burguês e o mando patri-
arcal; elitista, que reserva o gesto civilizado para si, mas não dispensa o escravo domés-
tico; letrado, com referências cultas e eruditas, mas sem perder a expressão vulgar. Tra-
ta-se uma contradição instalada na prosa narrativa dos contos. A cena vem à tona, des-

16
perta interesse, mas é narrada a partir da estranheza, da esquisitice, a partir da dificulda-
de de compreender e, propriamente, de narrar, de tornar inteligível.
Agora cabe retornar às Academias do Sião e destacar um terceiro nível de análi-
se do conto e atentar uma encenação singela e reveladora.

— Mas cumpre-lhe escolher: — ou crer na alma neutra, e punir a academia viva,


ou crer na alma sexual, e absolvê-la.
— Que deliciosa que é a tua boca, minha doce Kinnara! Creio na tua boca: é a fon-
te da sabedoria.
Kinnara levantou-se agitada. Assim como o rei era o homem feminino, ela era a
mulher máscula — um búfalo com penas de cisne. Era o búfalo que andava agora
no aposento, mas daí a pouco foi o cisne que parou, e, inclinando o pescoço, pediu
e obteve do rei, entre duas carícias, um decreto em que a doutrina da alma sexual
foi declarada legítima e ortodoxa, e a outra absurda e perversa. Nesse mesmo dia,
foi o decreto mandado à academia triunfante, aos pagodes, aos mandarins, a todo o
reino. A academia pôs luminárias; restabeleceu-se a paz pública.

Esse trecho me parece fundamental para a pensar o gênero como performance.


Kinnara tenta argumentar com o rei. De nada vale, pois para ele havia apenas o corpo,
sua linda boca. Na sequência, ela abandona o búfalo e se concentra no cisne. Com as ca-
rícias de cisne, ela alcança aquilo que o argumento não produziu efeito. Em outros ter-
mos, a feminilidade não é um atributo corporal da mulher, mas uma ação que responde
a uma expectativa do outro. No caso, ela atuou performaticamente. Na cena, há um des-
lizamento importante, um gesto. O casamento impõe uma distinção entre o homem
(destinado à vida pública e ao exercício de atividades ligadas ao poder) e a mulher (des-
tinada à esfera doméstica e, no caso, ao jogo erótico). Na cena em questão, o rei não
mostra apetite algum pela questão pública, muito menos se for discutir na alcova com
sua principal concubina. A concubina não demonstra outro desejo que a doutrina da al-
ma sexuada fosse declarada oficial, mas, e aí entra a quebra importante, ela encena a
feminilidade (cisne) que é esperada dela, apesar de sua masculinidade (touro). Kinnara
compreende que uma mulher não poderia ser rei, não ter acesso ao poder real, a não ser
que sua alma tomasse o corpo do homem, de Kalaphango. Há uma restrição que impõe
o lugar de cada um, em que, para a mulher, aceder a funções públicas implicaria ser
homem.
Não se pode esquecer, no entanto, na posição do narrador, que adere ao ponto de
vista masculino. Ele expõe uma crise, mas aparenta tomar partido.

A ficção de Machado de Assis oferece uma avaliação convincente das tribulações


da sensibilidade masculina sob uma ordem patriarcal que concebe o mundo em
termos de oposições e torna difícil incorporar a diferença. Incapaz de cumprir as rí-
gidas expectativas do que um homem deve ser e como um homem deve se compor-
tar, muitos dos personagens masculinos de Machado são assombrados pelo espec-
tro de inadequação e impotência, uma situação que inflige feridas psicológicas e
morais dolorosas sobre eles. Essas feridas controlam perversamente seu senso de si
mesmo e distorcem permanentemente suas relações com os outros, particularmente
com as mulheres (Valente, 2001, p.18)10

10
Machado de Assis's fiction offers a compelling assessment of the tribulations of male sensibility under
a patriarchal order that conceives the world in terms of oppositions and makes it difficult to incorporate
difference. Unable to fulfill the rigid expectations of what a man should be and how a man should behave,

17
Luis F. Valente, ao analisar Cantiga dos Esponsais, Missa do Galo e Dom Cas-
murro, foca na construção da personagem masculina. Interessa particularmente pensar a
construção dos narradores não confiáveis em primeira pessoa, Nogueira e Bento Santia-
go, que traduzem “as tribulações da sensibilidade masculina sob a ordem patriarcal”
numa narrativa em que procuram compreender e definir sua relação com uma mulher.
Nogueira recupera um episódio de sua adolescência, Bento se volta violentamente con-
tra Capitu.
Em Roberto Schwarz (1990), o princípio formal do narrador volúvel traduz uma
conduta de classe. A cada momento (frase ou capítulo) o narrador vai mudando de esti-
lo, de tom e de máscara (mundano, moralista, cronista...), buscando a cada vez uma
“supremacia qualquer” em relação ao leitor. Além disso, há sempre um pecadilho, uma
transgressão, um desvio, uma quebra. De modo recorrente, o modelo realista, a elevação
de estilo ou ordem discursiva são rompidas. A exceção torna-se regra; agressão ao leitor
uma constante; e o escândalo, recorrente. Essa supremacia faz com que o defunto pres-
cinda dos modelos para compor suas memórias, pondo-se fora e, claro, acima deles. Es-
sa volubilidade corresponde à precipitação na forma do conflito social insolúvel. No ca-
so da sociedade brasileira, a elite escravocrata e patriarcal apresenta-se como liberal e
moderna; dois princípios excludentes e conflitivos que convivem e negam-se mutua-
mente reaparecem na estruturação do narrador machadiano. Roberto Schwarz não nega
a relação forte de Machado com a tradição ocidental, mas prioriza em sua leitura a rela-
ção dessa forma com o contexto histórico em que o romance se insere.
No caso, podemos pensar as atribulações do narrador que adere tanto ao ponto
de vista masculino, quanto da elite letrada, que sofre as tensões entre perspectiva mo-
derna, burguesa e patriarcal. No deslocamento da análise do romance para o conto, é
possível dizer que mesmo um narrador de terceira pessoa, externo, apresenta marcas
discursivas dessa posição que tende a distorcer sua relação com o outro, seja com a per-
sonagem representada, seja com o interlocutor.
Voltemos à cena da troca das almas, ao narrador das Academias do Sião e a um
comentário narrativo nada modesto:

Quando a aurora começou a aparecer, fustigando as vacas rútilas, Kinnara proferiu


a misteriosa invocação; a alma desprendeu-se-lhe, e ficou pairando, à espera que o
corpo do rei vagasse também. O dela caíra no tapete.
— Pronto? disse Kalaphangko.
— Pronto, aqui estou no ar, esperando. Desculpe Vossa Majestade a indignidade da
minha pessoa...
A alma do rei não ouviu o resto. Lépida e cintilante, deixou o seu vaso físico e pe-
netrou no corpo de Kinnara, enquanto a desta se apoderava do despojo real. Ambos
os corpos ergueram-se e olharam um para o outro, imagine-se com que assombro.
Era a situação do Buoso e da cobra, segundo conta o velho Dante; mas vede aqui a
minha audácia. O poeta manda calar Ovídio e Lucano, por achar que a sua meta-
morfose vale mais que a deles dois. Eu mando-os calar a todos três. Buoso e a co-
bra não se encontram mais, ao passo que os meus dois heróis, uma vez trocados,

many of Machado's male characters are haunted by the specter of inadequacy and impotence, a situation
that inflicts painful psychological and moral wounds on them. These wounds perversely control their
sense of self, and permanently distort their relationships with others, particularly with women (Valente,
2001, p. 18)

18
continuam a falar e a viver juntos — coisa evidentemente mais dantesca, em que
me pese à modéstia.

O narrador refere-se ao canto XXV do Inferno, Dante, em que estão os ladrões.


O poeta mostra uma metamorfose peculiar. Frente a frente, Buoso fica mesmerizado pe-
lo olhar da serpente, e um se reverte no outro. O poeta não esconde o horror do que pre-
sencia e deve narrar.11 No conto, vale guardar a linhagem da metamorfose, acentuada
pela dimensão do horror e do grotesco que a reversão de uma identidade na outra, na
troca de corpos. Trata-se de algo antinatural, mediado pela magia. A natureza se apre-
senta nas combinações possíveis (homem com alma feminina ou masculina; mulher
com alma feminina ou masculina). Quatro possibilidades, como vimos, indiciam um
deslizamento que separa sexualidade e gênero, biologia e cultura.
Nesse momento, a dimensão alegórica (parabólica) se revela com plenitude no
arbítrio do narrador. Não se trata apenas da falta de humildade, que o põe na linhagem
de Ovídio, Lucano e Dante, para superá-los. É sempre interessante observar a recorrên-
cia com que o narrador machadiano, volúvel, busca uma supremacia qualquer sobre a
tradição, sobre o leitor. (Schwarz, 1990) Vale, então, insistir na tese de que, no caso
desconjuntado, brasileiro, a objetividade do narrador externo é arruinada pela invasão
personalíssima da veleidade que desfaz a autonomia do objeto narrado, subordinando-o
a sua vontade.
O princípio formal do narrador volúvel, em Memórias Póstumas de Brás Cubas,
traduz uma conduta de classe. A cada momento (frase ou capítulo) o narrador vai mu-
dando de estilo, de tom e de máscara (mundano, moralista, cronista...), buscando a cada
vez uma “supremacia qualquer” em relação ao leitor (Schwarz, 1989). Além disso, há
sempre um pecadilho, uma transgressão, um desvio, uma quebra. De modo recorrente, o
modelo realista, a elevação de estilo ou ordem discursiva são rompidas. A exceção tor-
na-se regra; agressão ao leitor uma constante; e o escândalo, recorrente. Essa volubili-
dade corresponde à precipitação na forma do conflito social insolúvel. No caso da soci-
edade brasileira, a elite escravocrata e patriarcal apresenta-se como liberal e moderna;
dois princípios excludentes e conflitivos que convivem e negam-se mutuamente reapa-
recem na estruturação do narrador machadiano. Roberto Schwarz não nega a relação
forte de Machado com a tradição ocidental, mas prioriza em sua leitura a relação dessa
forma com o contexto histórico em que o romance se insere.
E mesmo no narrador em terceira pessoa, num conto alegórico como As acade-
mias, essa posição interlocutora se mostra com nitidez, “mando-os calar a todos os
três”. Creio que essa posição social também se mostra na mistura da leveza humorística
do comentário com o horror. Fazendo uma apropriação auerbachiana, seria uma mistura
entre realismo (horror) e humor, que aqui cumpre a função de revelar o mal-estar mas-
culino (patriarcal e burguês) quando (re)conhece que o gênero é uma performance soci-
almente sedimentada, uma imposição que define os papéis atribuídos a homens e mu-
lheres. Não se pode perder de vista a ambivalência desse narrador que encena numa ale-
goria uma complexa teoria de gênero, mas, ao mesmo, não consegue esconder plena-
mente no humor o horror que essa troca de corpos provoca. Em termos menos metafóri-

11
“A divina comédia”, lida através do canto dedicado a Farinata e Cavalcanti, serve para mostrar o rea-
lismo figural de Dante. No caso dos cantos XXIV e XXV, há um deslizamento para a alegoria. O horror
da cena fica evidente na apresentação detalhada da metamorfose do homem em serpe e da serpe em ho-
mem. Talvez valesse retomar a leitura que Auerbach faz de Baudelaire, em que o realismo ganha uma co-
loração específica, o apego ao detalhe escabroso que se mistura ao tema elevado.

19
cos, é chocante a revelação de que o nexo entre mulher e feminilidade não é natural,
mas uma reificação fetichizada e naturalizada.
Considerações finais (ou da volta do parafuso)
Para fechar o ensaio, interessa abordar ainda um último conto, “Trio em lá me-
nor”, um conto dividido em quatro partes: Adagio Cantabile, Allegro ma non tropo, Al-
legro Apassionato e Minueto. Não se trata propriamente da estrutura de uma sonata,
pois o movimento de oposições fica suspenso, “uma estranha sonata sem desenvolvi-
mento, repetindo eternamente o motivo ostinato de uma nota só, cuja fixidez encobre
mal o balanceio sem fim dos opostos incompletos, cuja diferença não se decide nem se
move do lugar” ( Wisnik, 2004, p.66-67).
Na abertura do conto, temos Maria Regina sozinha em seu quarto, imaginando
uma conversa com seus dois pretendentes, “as palavras de Miranda e os belos olhos de
Maciel”. No segundo capítulo, segundo “a técnica do destino”, Maciel se joga à frente
do carro de Maria Regina e sua avó para salvar uma criança, para entusiasmo da moça.
No terceiro movimento, à noite do mesmo dia, na sala aparecem primeiro, o heróico
Maciel, e depois o velho Miranda. Pelo primeiro, a admiração cai em fastio à medida
em que o homem apresenta as futilidades da corte. Pelo segundo, a admiração por suas
palavras, “tradutor maravilhoso e fiel de uma porção de ideias que lutavam dentro dela,
vagamente, sem forma ou expressão”. A última parte representa uma quebra no anda-
mento, pois o tempo é distendido e resumido rapidamente. Os dois namorados desistem
da espera, Maria Regina fica sozinha e, ao final, em sonho, imagina oscilar entre dois
astros magníficos e uma voz do abismo afirma: — É a tua pena, alma curiosa de perfei-
ção; a tua pena é oscilar por toda a eternidade entre dois astros incompletos, ao som des-
ta velha sonata do absoluto: lá, lá, lá...
O enredo se concentra em Maria Regina, como está explicado logo no início do
conto:

A verdade pede que diga que esta moça pensava amorosamente em dois homens ao
mesmo tempo, um de vinte e sete anos, Maciel — outro de cinqüenta, Miranda.
Convenho que é abominável, mas não posso alterar a feição das coisas, não posso
negar que se os dois homens estão namorados dela, ela não o está menos de ambos.
Uma esquisita, em suma; ou, para falar como as suas amigas de colégio, uma des-
miolada. Ninguém lhe nega coração excelente e claro espírito; mas a imaginação é
que é o mal, uma imaginação adusta e cobiçosa, insaciável principalmente, avessa
à realidade, sobrepondo às coisas da vida outras de si mesmas; daí curiosidades ir-
remediáveis.

É interessante observar que não há transformação. Maria Regina, ao final, se en-


contra no mesmo estado que estava, incapaz de decisão. Ao final, inclusive, o sonho faz
com que a personagem se cristalize, presa num movimento pendular sem fim. Além dis-
so, o narrador explica ao leitor, que não pode mudar, nem negar a natureza das coisas,
pior mais abominável que fosse. O mal de Maria Regina – esquisita e desmiolada – é a
imaginação, insaciável e avessa à realidade, sobre a qual sobrepõe sua fantasia.
De certo modo, temos aí um conto que trata, através de uma personagem realis-
ta, de um conflito típico da condição humana, o confronto entre imaginação (subjetivi-
dade) e realidade (objetividade). A peculiaridade é a incapacidade de síntese, de forma-
ção. Há várias personagens machadianas de igual feição, tais como Rangel, de O diplo-
mático, e... de Manuscrito de um sacristão. São personagens que, encerrados em seus
sonhos, sofrem por serem incapazes de transporem o mundo desejado para a realidade.

20
Há, no entanto, uma mediação social importante que dá termos materiais para
esse conflito. De um lado, temos no enredo a configuração realista, que nos apresenta
uma mulher de elite, jovem casadoira. Já na abertura vemos a macuma, familiar a Maria
Regina, que diz que “Nhanhã estava muito séria”. Isso remete ao leitor à sociedade es-
cravocrata, que faz da protagonista, uma jovem que vive ao piano, que sai à rua de carro
com sua avó e, principalmente, deve se casar para se tornar mulher realizada. Ainda aí
ouvimos na fala de Maciel, um misto afetado de francês e português, o quanto é impor-
tante a vestimenta, a jóia, o comportamento no salão e, novamente, o casamento. Nesse
nível, Maria Regina escapa ao padrão feminino e se interessa reflexivamente sobre a
música, entrando numa esfera supostamente masculina, o que encontra voz nos comen-
tários de Miranda. De certo modo, deslocado para a imaginação encontramos uma ten-
são da realidade feminina, cuja papel se restringia ao casamento, à conversa de salão e a
uma peça alegre ao piano. Nesse nível, ao final, o conflito de feição realista (cf. teoria
do romance) ganha feição alegórica, numa espécie de expressão moralista sobre os ma-
les da imaginação que condena a moça a vagar indecisa de um astro a outro. (Cf. Pasta,
duplo e oscilação) E alegoria ganha feição realista, pois revela um impasse social dentro
da sociedade patriarcal que tem fumos burgueses.
O outro plano diz respeito ao narrador, que diz mostrar a realidade, sem negá-la,
mas reconhece o caráter abominável desse amor por dois homens ao mesmo tempo.
Uma esquisita e desmiolada, em suma. Essa condenação (posta no início, pelo narrador,
e no fim, pela voz do abismo) aparece como punição social, porque a Maria Regina su-
perpõe sobre o real um desejo irrealizável e não consegue casar-se. Na especificação re-
alista, Machado traduz um conflito realista à dimensão local, mas o faz na cristalização
alegórica. E a voz é a do narrador moralista, masculino, que vê na imaginação um mal,
pois traduz um desejo que põe em questão o universo restrito a que estão presas as mu-
lheres.

Se um objeto, sob o olhar da melancolia, se torna alegórico, se ela lhe sorve a vida
e ele continua a existir como objeto morto, mas seguro para toda eternidade, ele fi-
ca à mercê do alegorista e dos seus caprichos. E isto quer dizer que, a partir de ago-
ra, ele será incapaz de irradiar a partir de si próprio qualquer significado ou sentin-
do; o seu significado é aquele que o alegorista lhe atribui. Ele investe-o desse signi-
ficado, e vai ao fundo da coisa para se apropriar dele, não em sentido psicológico,
mas ontológico... (Benjamin, 2004, p. 198-199)

A alegoria não é construída aqui como ilustração de uma ideia abstrata (veleida-
de), não é inverossímil (figuras divinas, magia, etc.). No primeiro plano, temos Maria
Regina, uma personagem situada no mundo secular construído por seres humanos, num
lugar e tempo específicos. Estamos na dimensão histórica. De modo verossímil, ela fi-
gura uma mulher da elite fluminense do século XIX, psicologicamente particularizada
por imaginação adusta que a faz ficar indecisa nas escolhas e a coloca em situação de
sofrimento. O andamento do conto, leva-o à repetição do mesmo, no caso, Maria Regina
é retirada do âmbito da história e alçada à eternidade.
Vale aproximar, então, o alegorista do narrador machadiano, que, pelo olhar irô-
nico, transforma a vida em objeto morto, “seguro por toda eternidade, ele fica à mercê
do alegorista e dos seus caprichos”. Maria Regina e sua história ficam à mercê dos ca-
prichos do narrador. Como mostrou Roberto Schwarz (1989), a viravolta machadiana se
dá não pelo desprezo da matéria local, mas pela reflexão de como se constitui enquanto
forma e, especificamente, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, em um narrador não
confiável, volúvel, expressão senhor escravocrata, com fumos de burguês.

21
Assim também nos contos machadianos. E o narrador machadiano, deste conto
em especial, atua como alegorista que suga a dimensão histórica de sua personagem,
transforma em figura empalhada e eterna de uma ideia. A violência do gesto está dire-
tamente ligada a uma performance inadequada de uma mulher, de uma personagem fe-
minina. Sua imaginação, seu mal, vai condená-la a não escolher entre dois homens, sua
pena é oscilar entre dois astros incompletos. Ela não se constitui como sujeito, alguém
capaz de formular uma decisão, de confrontar seu ideal com a realidade, de sair de sua
imaginação.
Assim, os narradores dos contos machadianos se defrontam com personagens
femininas que fogem ao padrão do casamento, do cuidado do lar e dos filhos, da aco-
modação à vida doméstica, do interesse restrito à moda, em suma, de uma vida simpló-
ria e sem complexidade interior. Dona Paula e o adultério secreto, Dona Camila e sua
vaidade (capaz de sacrificar a própria filha), Maria Olímpia e a admiração dos outros
(desejo da carícia pública), Dona Inácia, pobre e apaixonada por um adolescente... Na
captação do gesto feminino, o conto traz à primeiro plano o momento de ruptura das
normas burguesas e patriarcais.
O narrador se impõe o dever realista de mostrar e de narrar. Quando o faz, no
entanto, entre em cena sua posição de classe, seu gênero, o que embasa o olhar alegoris-
ta-irônico, que faz das mulheres uma imagem regredida da natureza. Ou seja, elas dei-
xam de ser agentes de sua história, para se tornarem alegoria de algum aspecto da con-
dição humana. Genoveva, de Conto de Almirante, ou Marocas, de Singular Ocorrência,
geram maior espanto e indignação aos narradores masculinos (em primeira ou terceira
pessoa). São mulheres de classe baixa, uma mulata que se amiga com um português e
uma prostituta que se alça ao direito de amar e de se comportar como viúva respeitável.
O gesto violento do narrador define seu comportamento como expressão da natureza
mais primitiva e incontrolável. Ele impõe, mais do que um sentido, uma condenação.
A personagem realista (complexa, atravessada por relações sociais, mergulhada
na história e inserida no cotidiano) se converte em alegoria no conto machado. A trans-
formação é regida pelo condão discursivo do narrador masculino e patriarcal, da elite
brasileira. Este narrador se esforça por adotar o padrão burguês e realista, apresenta as
personagens no contexto histórico, mas acaba por alegorizá-las, como cristalização de
um lugar social que enforma a individualidade e barra a subjetivação. Presa à norma so-
cial, ideológica, perde a capacidade de transformação, e a experiência do tempo históri-
co-social se metamorfoseia em vivência de uma repetição do mesmo, como se fora uma
condenação a uma eternidade infernal e sofrida na ordem patriarcal-burguesa.
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2017. doi:http://dx.doi.org/10.11606/issn.2447-8997.teresa.2003.116360.

24
Sobre o peso de si e maestrias: uma análise de parte da cena atual da canção popular
brasileira12
Carlos Augusto Bonifácio Leite13
Resumo
Este artigo trata de uma parte da cena atual da canção popular brasileira, comparando artistas cuja produ-
ção se iniciou nos anos 1960, e que seguem lançando trabalhos inéditos – Chico Buarque e Caetano Velo-
so – a artistas cujos primeiros trabalhos autorais foram lançados recentemente – Siba, Apanhador Só e Ju-
çara Marçal. Neste cotejo, este texto busca identificar algumas transformações na produção dos primeiros
e traçar semelhanças entre as estéticas destes últimos. No horizonte, se vislumbram os efeitos de matura-
ção da indústria cultural para a canção popular no Brasil.
Palavras-chave
Canção popular, indústria cultural, contemporaneidade.
Por todas as perspectivas que vislumbro, este ensaio é um salto no abismo. Sua
vertigem é divisar a cena contemporânea da canção popular brasileira cujos acentos se
dão nas práticas de hiperconsumismo e da ubiquidade da internet, a partir da delimita-
ção de dois grupos: o primeiro, representado pelos cancionistas Chico Buarque e Caeta-
no Veloso, que chegaram ao centro da cena nos festivais de música popular dos anos
1960 e que ainda lançam, quase cinquenta anos depois, álbuns autorais inéditos; o se-
gundo, de cancionistas que surgiram para o grande público na última década e que já
são observados pela crítica e pela academia com interesse, aqui exemplificados por Si-
ba, a banda de rock Apanhador Só e Juçara Marçal14.
Aos sacerdotes da tradição pode parecer descabido alinhar artistas tão desiguais
em termos da extensão de suas trajetórias no cancioneiro popular e do alcance de suas
realizações estéticas. Para esses mediadores, haveria uma divisão da cena contemporâ-
nea, seja da canção popular, seja de outros gêneros, entre artistas que já teriam mostrado
a que vieram, e, portanto, estariam desobrigados de seguir sendo criativos, e aqueles que
ainda precisariam mostrar a que vieram, sem ter sido definitivamente validados pela
obra criada até então. Distancio-me dessa postura, ao propor que, independente da cele-
bração merecida pela pertença ao cânone da canção popular brasileira, todos sempre
precisam mostrar a que vêm quando produzem obras inéditas, não podendo se escorar
em suas trajetórias a não ser que se neguem a seguir produzindo, o que é mais comum
do que gostaríamos – a sombra ou o peso das trajetórias, aliás, terá considerável impor-
tância neste trabalho. Ser artista é estar na arena, e, por isso, há interesse e proveito na
aproximação dessas duas colunas.
Na consideração da canção popular como processo social decantado e observan-
do as condições materiais em que produziam aqueles artistas há cinquenta anos e como
esses mesmos artistas produzem hoje, em cotejo com o lugar ocupado pelo segundo
grupo na atual indústria cultural, grupo que se caracteriza por não manter contrato com
gravadoras, ter um traço profundamente pessimista em suas dicções e serem autores de
notável grau de complexidade, creio que seja possível divisar alguns traços da cena con-

12
LEITE, Carlos Augusto Bonifácio. Sobre o peso de si e maestrias: uma análise de parte da cena atual da
canção popular brasileira. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 59, p. 213-228, dez. 2014.
Endereço: http://www.scielo.br/pdf/rieb/n59/0020-3874-rieb-59-00213.pdf.
13
Carlos Augusto Bonifácio Leite (Guto Leite) é poeta, cancionista e professor de Literatura Brasileira na
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
14
Juçara Marçal, como intérprete que assina a proposta estética de seu mais recente trabalho autoral –
mobilizo uma expansão prevista por Tatit para a noção de “cancionista”, in TATIT, Luiz. O cancionista.
2. ed. São Paulo: Edusp, 2002, p.10.

25
temporânea e flagrar a manifestação peculiar de um dos paradoxos do nosso tempo
quanto à produção cancional. Este é o objetivo do presente ensaio.
***
O surgimento de Chico Buarque e Caetano Veloso é resultado de um conjunto
de fatores bastante favorável à canção popular existentes na segunda metade da década
de 1960. A formação, em termos candidianos, da canção popular urbana e em moldes
modernos nos anos 193015, tornando-a linguagem estética disponível e consumida pela
classe média, o processo modernizador promovido pela Bossa Nova a partir de 1958, e
que permitiu recuperar a tradição da canção em novo patamar, o crescente mundo uni-
versitário brasileiro dos anos 1960, o surgimento da televisão como nova mídia hege-
mônica – hegemonia que se consolidaria na década seguinte – e mesmo a maneira como
o governo militar reprimiu primeiramente aqueles que faziam política em cais e fábri-
cas, dando certo tempo aos contestadores agentes de cultura16, são todos ingredientes
que explicam a conjuntura que forjou os festivais de música popular naqueles anos, pla-
taforma inicial destes dois compositores.
Ao filho de Sérgio Buarque de Holanda, após as participações destacadas nos
festivais, coube desenvolver uma dicção que prima pela profundidade17 e que percorre
uma gama impressionante de formas e de temas, ocupando, no campo da canção, uma
importância correlata à que Carlos Drummond de Andrade assume para a poesia, uma
voz central na produção de uma forma estética em determinada cultura. Noutros termos,
todo cancionista refletido passa pela produção de Chico Buarque, mesmo que para ne-
gá-la, seja por sua condição de mestre da forma cancional – não se mobiliza aqui, ne-
cessariamente, a formulação de Pound18, embora seja adequada, mas compreende-se
“mestre” como um artista para o qual certa linguagem não mais apresenta segredos –,
seja por sua condição de intérprete do Brasil, assumida ao longo da década de 70, pelas
faixas de seus discos. A herança da alcunha de “intérprete do Brasil” do sociólogo e in-
telectual de ponta para o imberbe cancionista, que depois enveredará para os caminhos
do drama e do romance, não deixa de ser a materialização do acerto da tese do Holanda
pai, ao que se soma a possibilidade forte de a dicção do Holanda filho ser permeada de
certa “utopia cordial”, a “imbricação do plano coletivo (político) e do plano individual
(erótico)”19.
Ao filho de Dona Canô, ele, também figura importante nos festivais, mas menos
vitoriosa a princípio, coube capitanear o movimento tropicalista, concretizado no álbum
Tropicalia ou panis et circencis (1968)20. Estética cancional inovadora no deslocamento
15
LEITE, Carlos Augusto Bonifácio Leite. Catulo, Donga, Sinhô e Noel: o processo de formação da can-
ção popular urbana brasileira. 2011. 157 f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande
do Sul. Porto Alegre-RS. 2011 [não publicada].
16
SCHWARZ, Roberto. Cultura e política 1964-1969. In: ___________. O pai de família e outros estu-
dos 2. ed. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1992, p.62.
17
TATIT, Luiz. O cancionista., p.234.
18
POUND, Ezra. ABC da Literatura; organização e apresentação da edição brasileira Augusto de Cam-
pos; tradução de Augusto de Campos e José Paulo Paes. 11. ed. São Paulo: Cultrix, 2006, p.42.
19
GARCIA, Walter. Melancolias, mercadorias: Dorival Caymmi, Chico Buarque, o Pregão de Rua e a
Canção Popular-Comercial no Brasil. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2013, p.215.
20
Em aula-espetáculo por comemoração dos 80 anos da UFRGS, em 04/05/2014, Gilberto Gil frisou a
centralidade de Caetano Veloso na organização e na feitura do disco, da concepção do projeto ao convite
e à motivação dos artistas. VELOSO, C., GIL, G. et alii. Tropicalia ou panis et circencis. Produzido por
Manoel Barenbein. Philips, 1968.

26
da crítica dos temas abordados para seus elementos constitutivos21, foi especialmente in-
flamável ao pôr em questão os modos de organização da vida burguesa – família, reli-
gião, trabalho e ordem – em tempo que estes valores estavam sendo resguardados pela
ditadura armada desde o golpe de 196422. Caetano Veloso estrutura o tropicalismo como
a autoproclamada ponta de lança da linha evolutiva da canção popular brasileira, assu-
mindo a missão de vanguarda reiterada do gênero cancional, a quem sempre, ainda nos
dias de hoje, se recorre com a pergunta: o que há de novo?
A síntese breve, quase criminosamente breve, dos dois prováveis principais can-
cionistas brasileiros da segunda metade do século XX é importante para notarmos que
sobre eles repousam expectativas muito distintas da parte do público que os aprecia. Por
mais que, obviamente, haja grande força de inovação em Chico Buarque – a mobiliza-
ção da linguagem do rap em “Subúrbios” e “Ode aos ratos”, ambas em Carioca
(2006)23, são indícios disso – e reconheça-se o intérprete do Brasil e a maestria de Cae-
tano em diversas canções – “Estou triste”, in Abraçaço (2012)24, é uma obra-prima da
representação entoativa da tristeza profunda, em sua cadência grave e repetitiva, com di-
reito ao esmero poético de “Eu me sinto vazio / E ainda assim farto / Estou triste tão
triste / E o lugar mais frio do Rio é o meu quarto”, que constrói uma série de rimas natu-
rais internas e externa (vazio/frio/Rio e farto/lugar/ quarto)25 –; creio que não exagero ao
dizer que a recepção contemporânea desses cancionistas tende a esperar o magistral in-
térprete do Brasil em Chico Buarque e o incansável inovador em Caetano Veloso, ora se
vendo recompensada, ora decepcionada. As maneiras distintas como se materializa nos
álbuns a diferença ao lidar com essas expectativas começa a desvelar uma questão intri-
gante sobre suas atuais produções.
Por este caminho, ouvir Chico (2011)26 é encontrar ali a excelência que o consa-
grou como o mais virtuoso cancionista brasileiro dos últimos cinquenta anos. No referi-
do álbum, a riqueza da dicção do cancionista27 assombra, ao passear por blues, sambas,
baião e outros gêneros, bem como seu perfeccionismo técnico, que esbanja habilidade
figurativa e poética, por exemplo, em “Sou eu”, ao ouvirmos nitidamente o eu cancio-
nal, “dono da mulher” que samba, se gabar pelo domínio que exerce, em “Nina”, capaz
de rimas como “toca/vodka”, e em “Essa pequena”, com brincadeiras semânticas sofis-
ticadas (penar / pena / pequena) – “artesanato sonoro” já observado por Walter Garcia
em artigo no prelo28.
Nesse mesmo texto, Walter Garcia aponta para a predominância de dois temas
no álbum: “o da herança da sociabilidade brasileira formada durante o predomínio da

21
FAVARETTO, Celso. Tropicália: Alegoria, Alegria. 3. ed. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2000, p.21.
22
SCHWARZ, Roberto. Cultura e política 1964-1969, p.77.
23
BUARQUE, Chico. Carioca. Produção de Luiz Claudio Ramos. Rio de Janeiro: Biscoito Fino, 2006.
24
VELOSO, Caetano. Abraçaço. Produzido por Moreno Veloso. São Paulo: Universal, 2012.
25
Interessantemente, há uma canção siamesa, “Sem você 2” no CD Chico.
26
BUARQUE, Chico. Chico. Produção de Luiz Claudio Ramos. Rio de Janeiro: Biscoito Fino, 2011.
27
As noções de “dicção”, “figurativização” e outras são oriundas das proposições de Luiz Tatit, mormen-
te em O cancionista. Embora pouco atenta às relações entre sociedade e forma cancional, a obra de Tatit é
pressuposto de todo o trabalho, como plataforma que promove uma visada privilegiada da canção em suas
especificidades semióticas.
28
GARCIA, Walter. Elementos para a crítica do disco Chico (2011). In: GARCIA, Tânia da Costa &
FENERICK, José Adriano (org.), História e Música. São Paulo: Alameda Editorial, no prelo.

27
economia agrário-exportadora” e o “da ordem do lirismo amoroso nos dias atuais”, ao
que modulo um pouco, a partir da perspectiva de alguém cujos valores foram formados
noutros tempos, no “antigamente”, o que resulta tanto na beleza perfeita da representa-
ção da angústia de se amar alguém mais novo, de “Essa pequena”, quanto no machismo
mais ou menos charmoso, mais ou menos evidente, de “Sou eu”. Avançando mais, tam-
bém é possível o resultado ambivalente de “Nina”, uma canção sublime na escolha de
imagens e na minúcia da construção, mas que expressa a condição de alguém para quem
amar virtualmente e à (muita) distância uma russa das mais sagazes só pode resultar
mesmo em melancolia e alcoolismo, e não em possibilidades suficientemente concretas
de afeto.
No entanto, mais do que nas canções do amante renitente, nas quais a maestria
de Chico segue recompensadora, é nas canções do intérprete do Brasil que recaem as
atenções deste ensaio. A perspectiva assumida pelo eu da canção parece se aproximar da
visão de quem perscruta os fenômenos a partir da velhice, espreitado pela morte na cur-
va do rio (“Querido diário”) e que estiliza de maneira meio canhestra a gíria da amante
mais nova (“Tipo um baião”) – até quando o assunto se centra no amor, como visto, ob-
serva-se uma tensão análoga. É tentador concluir que, no tipo particular de performance
que é o gesto na canção popular, a possibilidade de interpretação do país seja construída
preferencialmente a partir de um eu cancional maduro, mas talvez não demasiado madu-
ro, como o que propõe o cancionista. Quando Chico opta por um ethos idoso, as sínteses
de Brasil são também vistas com desdém e enfado, como uma tarefa de moços, ao passo
que o cancionista habilmente erige uma voz que depura com sofisticação os grandes
sentimentos: o amor, a tristeza, o medo da morte, os ciúmes etc. Se, porventura, o can-
cionista ainda se incumbe da reconstrução crítica da história, como em “Sinhá”, o des-
compasso é patente e os equívocos são muitos, da oscilação rude entre um e outro nar-
rador à apropriação explícita do olhar do escravo pelo misticismo patriarcal da casa-
grande (“Estava lá na roça / Sou de olhar ninguém / Não tenho mais cobiça / Nem en-
xergo bem”).
Se em Chico nos depararíamos com um velho mestre que parece abdicar aos
poucos do legado paterno, Caetano Veloso faz fogo da reafirmação constante de um
ethos jovem em seus mais recentes trabalhos: Cê (2006)29, Zii e Zie (2009)30 e Abraça-
ço. O óbvio, mas que precisa ser enunciado, é que o cancionista não largou o osso, nem
a boquinha, de seguir de posse do uniforme de herói da vanguarda da canção popular
brasileira31 e para isso intensifica sua relação com músicos mais novos, de sonoridade
relativamente inovadora, e até mesmo cunha criticamente novas classificações para o
que vem produzindo (“trans-rock” e “trans-samba”), jogando nos dois times, o da pro-
dução e o da crítica.
O menos evidente é a condição passiva do cancionista diante desse processo que
aparenta e busca ser figura de proa. Adorno já observou que, no panorama moderno, “o
consumidor não é rei, como a indústria cultural gostaria de fazer crer, ele não é o sujeito
dessa indústria, mas seu objeto”32. Pode-se desdobrar essa afirmação para os auto-

29
VELOSO, Caetano. Cê. Produzido por Kassin. São Paulo: Universal, 2006.
30
VELOSO, Caetano. Zii e zie. Produzido por Moreno Veloso e Pedro Sá. São Paulo: Universal, 2009.
31
O mito da Górgona costumava nos ensinar o preço a ser pago pelo herói vaidoso, a suplantação do ser
por sua imagem – proposição rica de sentidos neste trabalho e no mundo contemporâneo.
32
ADORNO, Theodor W. A indústria cultural. In: COHN, Gabriel (org.) Comunicação e indústria cultu-
ral. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1977, p. 287-288.

28
res/produtores ou, ao menos, questionar sua condição de quem frequenta ileso as estru-
turas do mercado da música popular (e as explode por dentro, como o brado do discurso
célebre). Nesse sentido, proponho uma posição antípoda à observação de Tatit quanto à
capacidade de Caetano em reverter as expectativas e obedecer somente aos impulsos de
criação33, embora parta de outra observação do mesmo crítico para tentar entender a
produção atual do cancionista.
Tatit afirma que “os fatos do mundo exterior frequentam as canções de Caetano
apenas ao adquirirem valor subjetivo e nunca ultrapassam essa medida”34. Não só a dic-
ção de Caetano está fortemente centralizada na exuberância do eu, como também en-
contramos outros exemplos dessa “medição do mundo pela régua subjetiva” em suas
memórias, Verdade tropical35 – em que, para além da anedota infantil da descoberta de
que só há mundo a partir do eu, nada é surpresa para o narrador e tudo já havia sido fei-
to antes, na Bahia –, no documentário Coração vagabundo36 – em que Caetano aparece
ratificando a semelhança, notada antes por Moreno, entre Nova Iorque e Santo Amaro
(na aula-espetáculo de Gilberto Gil já citada, o compositor recordou que Caetano, quan-
do conheceu Jimi Hendrix na Inglaterra, comentou a semelhança entre o guitarrista es-
tadunidense e os baianos negros e esguios) – ou em suas resenhas atuais no jornal O
Globo – em que frequentemente objeta os críticos que não entenderam o que ele quis
dizer com tal canção ou saúda os que mataram a charada embutida em sua arte.
Não é simples analisar materialmente as contradições do eu hipertrofiado da dic-
ção de Caetano Veloso e como isso se manifesta em Abraçaço. O comentário mais co-
mum diz respeito a uma suposta vaidade do cancionista, mas o que pode parecer extre-
mamente agressivo pela referência à biografia, pelo argumento ad hominem, é, com
efeito, uma crítica amena, ao não contemplar as razões históricas do problema, que pas-
sam pela encarnação xamã do vanguardista, impulsionado por um ambiente capaz de
reificar todas as esferas, em que o sujeito poderia figurar como casamata da autenticida-
de artística, último reduto da “aura”37 em um mundo dominado por uma indústria cultu-
ral rápida e agressiva.
A saída utópica do eu, que ganha ares de retorno ao primitivo no começo da car-
reira do cancionista, estende-se à sua criação e encontramos no mais recente trabalho
um álbum que oscila preponderantemente entre falar de si e falar do tropicalismo, direta
ou indiretamente – falar do tropicalismo, em parte, é um modo de falar de si. Para que
não pensem arbitrária minha colocação, os exemplos são muitos: em “Abraçaço”, fala
de si e do tropicalismo, em diálogo entoativo com “Eclipse oculto” e temático com
“Aquele abraço”; em “Estou triste”, a canção constrói o lugar do gênio depressivo, que
sente o mundo mais do que os outros; em “O império da lei”, há a fusão tropicalista dos
ritmos rumo ao interior do país; em “Funk melódico”, a fusão tropicalista de ritmos ru-
mo à periferia das cidades; em “Vinco”, uma canção romântica cujos versos que encer-
ram cada uma das partes são quatro repetições do termo “de mim” e quatro do termo
“eu”; e em “Parabéns”, um e-mail pessoal habilmente trabalhado pelo cancionista para
se tornar canção. (Dentre as possíveis exceções, destaque para “Um comunista”, recu-

33
TATIT, Luiz. O cancionista, p.236.
34
Idem, ibidem.
35
VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
36
ANDRADE, Fernando Grostein. Coração vagabundo. Documentário, Brasil, 2009.
37
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas, volume 1: magia e técnica, arte e política. 3. ed.; tradução: Sér-
gio Paulo Rouanet. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987, p.167.

29
peração afetiva da história de Carlos Marighella, mas que contém os seguintes versos
“O baiano morreu / Eu estava no exílio / Eu mandei um recado / ‘Eu que tinha morrido /
E que ele estava vivo’”). Todas, vale dizer, absolutamente todas, maravilhosas canções!
Reservei, para uma análise mais detida, por sua sinuosidade, “A Bossa Nova é
foda”. Salvo melhor leitura, esta canção representa bem alguns impasses decisivos da
obra atual de Caetano Veloso. A um ouvido desatento, poderia parecer altruísta o elogio
à escola de Jobim, Vinícius & João, contudo, trata-se de recurso argumentativo conhe-
cido, de elogio indireto, do tipo: bom não sou eu, bom é meu mestre. Estando a síntese
colocada no ponto mais baixo, mais grave, do plano entoativo, o verso “A Bossa Nova é
foda”, que intitula a canção, é emitido como asserção indiscutível. E se meu mestre é
foda, indiscutivelmente foda...
Há também um conjunto de signos mais ou menos cifrados (todo hermetismo
tem um quê de descalabro subjetivo?), que vão de “restos de rabada”, “ergométricas”,
“o bardo judeu romântico de Minessota” (Bob Dylan), “magno instrumento antigo”
(Carlos Lyra), “bruxo de Juazeiro” (João Gilberto) – os artistas não são nomeados na
canção, somente os lutadores –, à impressão ingênua de que “Lá fora o mundo se torce
para encarar a equação”. Adorno já advertira que:

Se a tendência social objetiva da época se encarna nas intenções subjetivas dos di-
retores gerais, são estes os que integram os setores mais poderosos da indústria:
aço, petróleo, eletricidade, química. Os monopólios culturais são, em comparação
com estes, débeis e dependentes [grifo meu]38.

O que nos faz concluir que o mundo não se torce lá fora para encarar a equação,
o mundo segue o ritmo dos negócios, independentemente da trilha sonora que esteja ao
fundo – não raras vezes, inclusive, a Bossa Nova ocupa essa função de trilha sonora do
mundo cosmopolita.
De todas as questões, no entanto, a mais desconfortável em relação à atual dic-
ção de Caetano me parece ser a reutilização de um recurso que causou estrondo em
1967, mas que agora soa mais como um referendo a um estado de reificação do que sua
impugnação. Em “Alegria, alegria” lá estão os famosos versos “Eu tomo uma coca cola
/ Ela pensa em casamento / Uma canção me consola”, em que o alinhamento da bebida
industrializada, da instituição burguesa e da criação artística põe em xeque o distancia-
mento entre as três “coisas”, suas particularidades, e apresenta-se como possibilidade,
talvez demasiado drástica, talvez demasiado utópica, de revolução, mediante a acusação
de um mundo para o qual tudo é produto, tudo é objeto e pode ser vendido.
Em 2012, quando o recurso é repetido, lutadores de MMA e a estética que su-
postamente “transformou o mito das raças tristes” são, de fato, produtos em um merca-
do ubíquo e voraz, em que aqueles são mais valorados do que esta, inclusive. A formu-
lação de Caetano tende a ser sinal de reificação da própria forma estética, o tropicalis-
mo, e faz questionar o quanto não há de fetiche na mobilização exagerada do filtro sub-
jetivo para cantar o mundo, uma reificação do eu, a transformação de Caetano em sua
própria estátua.
(Vale a nota de que o cancelamento do show de João Gilberto em Porto Alegre
em 2011 – o motivo alegado foi uma forte gripe, mas se sabe que o motivo real foi o
preço exorbitante dos ingressos, não abraçado pelo público consumidor – concomitante
38
ADORNO, Theodor W. Indústria cultural e sociedade; seleção de textos Jorge Mattos Brito de Almei-
da; traduzido por Juba Elisabeth Levy [et alii]. 5. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2009, p.7.

30
aos primeiros e bem-sucedidos eventos de MMA na cidade não deixa de ser uma piada
macabra das circunstâncias na periferia da periferia do capitalismo).
***
Até aqui procurei perscrutar a maneira com que dois dos maiores cancionistas da
nossa história lidam com a longevidade de suas dicções. A hipótese é de que, magis-
tralmente, ambos sigam produzindo canções impecáveis, embora pese sobre a recepção
e a produção de Chico Buarque o fardo de intérprete do Brasil e sobre a recepção e a
produção de Caetano Veloso o fardo da eterna juventude criadora – ambas construções
feitas há pelo menos quatro décadas a respeito de suas obras e que resistem até hoje. Ao
propor que influam em suas criações, não pretendo analisar qualquer agrura pessoal ou
angústia, mas o resultado estético obtido, a partir da tradição, em especial a tradição de
suas obras pregressas sobre suas obras atuais. Não creio também que seja absurdo de-
fender que somente os “completamente desligados” podem adquirir um CD de um dos
dois com os mesmos anseios que comprariam a obra de um artista recente no mercado –
há, portanto, ainda, uma tradição de recepção a ser considerada.
Em contraste ao range-rede merecido dos nossos dois canônicos cancionistas,
surge na cena da canção contemporânea brasileira, a partir da internet e não mais da te-
levisão, em um mundo em que de fato é possível comprar uma Coca-Cola, um casamen-
to ou uma canção, e tudo de casa, um grupo interessante de artistas que busca interpretar
este entorno de uma condição mais incômoda, mas não dotados (ainda, talvez...) de ma-
estria análoga à de Chico ou de Caetano. Dentre esses novos artistas, destaco o recifense
Siba, ex-integrante da banda Mestre Ambrósio, que lançou seu segundo CD solo, Avan-
te39, em 2012; os porto -alegrenses da Apanhador Só, autores de quatro trabalhos auto-
rais, sendo Antes que tu conte outra, de 201340, o mais recente; e a paulistana Juçara
Marçal, uma das componentes do trio Metá Metá, intérprete que lançou o primeiro disco
solo, Encarnado, em 201441 – não é fortuito que os três tenham produzido independen-
temente seus trabalhos, fora do universo das gravadoras, e que disponham gratuitamente
os álbuns para download.
Além da condição material relativamente insegura em que todos vivem – sendo
mais preciso, nenhum desses artistas poderia deixar de trabalhar para viver de direitos
autorais, como Chico e Caetano (a Apanhador Só, que conheço mais de perto, não rece-
beu da música sequer sua autonomia financeira plena) –, duas características parecem
unir de maneira reveladora esses três artistas.
As dicções de Siba, da Apanhador Só e de Juçara Marçal são certamente mais
disfóricas do que eufóricas, construindo certo tom de ruína, de desamparo, de desacerto,
de poucas saídas em vista – afastando-se, por essa característica, da dicção de Caetano
em Abraçaço, por exemplo. Embora este traço percorra os álbuns de ponta a ponta, po-
demos exemplificá-lo nos versos que abrem cada um dos trabalhos: “Não vejo nada que
não tenha desabado / Nem mesmo entendo como estou de pé / Olhando um outro num
espelho pendurado / Me reconheço, mas não sei quem é” (“Preparando o salto”, Siba,
em Avante); “Essa balela aqui não vai colar / Não tá tão fácil assim de convencer”

39
SIBA. Avante. Produção de Fernando Catatau. Independente, São Paulo, 2012. O álbum pode ser obti-
do gratuitamente em http://mundosiba.com.br/downloads. Acesso em: 27 jun. 2014.
40
APANHADOR SÓ. Antes que conte outra. Independente, Porto Alegre, 2013. O álbum pode ser obtido
gratuitamente em http://www.apanhadorso.com/. Acesso em: 27 jun. 2014.
41
MARÇAL, Juçara. Encarnado. Independente, São Paulo, 2014. O álbum pode ser obtido gratuitamente
em http://www.jucaramarcal.com/. Acesso em: 27 jun. 2014.

31
(“Mordido”, de Alexandre Kumpinski, em Antes que tu conte outra) – essas duas can-
ções entoadas bem próximo à curva prosódica, em chave de figurativização –; e “Não
diga que estamos morrendo / Hoje não” (“Velho amarelo”, Rodrigo Campos, em En-
carnado). Neste último caso, em chave passional, o impasse é mais nuançado: estamos
morrendo, mas não o diga hoje, ou hoje não diga que estamos morrendo? De todo mo-
do, parece paradigmático que três artistas de lugares e formações distintas, a serem re-
tomadas adiante, formulem um prognóstico bastante negativo a respeito do estado de
coisas. Não se trata do desencanto maduro expressado nas canções de Chico comenta-
das aqui, exemplificado também na vacilação da memória de “Barafunda” (Ivan Lins &
Chico Buarque), mas da expressão de quem busca ativamente uma saída razoável sem
conseguir vislumbrá-la.
Também une os três cancionistas uma textura ou sonoridade que tenciona, pro-
voca, distende, e não harmoniza, conjuga, comunga com o que está sendo entoado –
afastando-os igualmente, portanto, da produção voltada para ir ao encontro do “gosto
médio” ou para fundá-lo, o que seria a marca de uma produção pop ou mainstream. A
canção de abertura de Avante, de Siba, “Preparando o salto” traz compassos compostos,
ou seja, seus ciclos de regularidade se constroem a partir de tempos ímpares, desacomo-
dando o ouvinte e distanciando-se do que se espera de uma canção pop. De maneira
análoga, Juçara Marçal, na canção que abre Encarnado, “Velho amarelo”, começa a en-
toar a letra em certo contraponto com a guitarra que descerra o álbum – e mais próxima
a uma segunda guitarra que só entra no arranjo um pouco adiante.
Talvez o exemplo mais evidente seja o da banda Apanhador Só, que desenvol-
veu nos últimos trabalhos o que chamam de “estética sucateira”. A partir de panelas, la-
tas de manteiga, para-lamas de bicicleta e outros “inutensílios” – cito alguns dos ins-
trumentos referenciados no encarte –, além de técnicas específicas, como o circuit ben-
ding42, o grupo conseguiu construir certa textura, ubíqua no álbum, que sugere um mun-
do que range (não a rede), que entra em curto, que sobeja, um mundo de excesso de coi-
sas, que, recuperadas da condição de badulaques, tornam-se instrumentos musicais nas
mãos dos artistas.
A diferença de proposta entre esses três cancionistas e a acalantada canção que
principia Chico é flagrante. Mesmo tratando do congelamento da vida presente, que to-
ma forma num “Querido diário”, a entoação é conduzida sem fios soltos e a completude
de sua composição corresponde a um mundo que ainda faz sentido, que ainda pode ga-
nhar forma coerente.
Recupero esses artistas mais recentes menos para apontar que eventualmente
pertençam a um grupo comum – aliás, friso que eles não pertencem a um mesmo mo-
vimento, como também não percorrem os mesmos espaços da atual cena musical – e
mais para flagrar uma interessante conjuntura: se os artistas são aqueles que represen-
tam na forma estética as vicissitudes de seu tempo, e isso vale mesmo em contexto pré-
romântico, já que são sensíveis as decantações subjetivas nos modelos quando estes
eram seguidos à risca, me parece que temos diferenças consideráveis na representação
do nosso tempo a partir da voz desses “novos cancionistas” e da voz de dois dos maio-
res cancionistas de nossa história recente.

42
Em audição comentada do álbum Antes que tu conte outra, pertencente ao Núcleo de Estudos da Can-
ção (UFRGS), a 20 de maio de 2014, o guitarrista Felipe Zancanaro definiu a técnica como a provocação
deliberada de um curto-circuito em instrumentos eletrônicos. Definição que vem a calhar para o argumen-
to.

32
***
A síntese que ora vislumbro é razoavelmente a seguinte.
Busquei argumentar que a dicção recente de Chico Buarque se move, a partir da
herança de “intérprete do Brasil”, como uma voz que se encontra na universalidade dos
grandes temas, mas de uma perspectiva bastante delimitada, a de um homem demasiado
maduro ou velho, que olha para as coisas num misto de enfado, perplexidade, reverência
à tradição e medo da morte. Sendo mestre do gênero, suas canções são geralmente per-
feitas. No entanto, é possível identificar os desacertos (sempre profícuos para a análise)
da revisão histórica e o assombro diante das novidades nas esferas dos afetos e da mo-
ral. Ousando um pouco, a voz de Chico envelheceu e agora usufruímos das delícias e
das limitações desta nova perspectiva. Esteticamente, um grande sinal de amadureci-
mento do artista.
Por sua vez, a dicção recente de Caetano Veloso insiste em reconstruir obsessi-
vamente a imagem do maestro da novidade e da vanguarda. Pode-se argumentar que es-
ta busca pela inovação seja um imperativo em seu trabalho, como afirmou Tatit: mesmo
recuperando a tradição, Caetano o faz em contracorrente, almejando a diferença. Contu-
do, ensaiei aqui as contradições dessa atitude estética e o quanto o cancionista mais
obedece, atualmente, aos ditames da indústria cultura do que os subverte. A presença
destacada de um tropicalismo reificado – mobilizado como coisa, fórmula, e não mais
como decantação de dinâmicas importantes do processo social43 – e de um eu sempre
jovem, ídolo de ouro com ares de fetiche, apontam nesse sentido. Tal como Chico, é um
mestre do gênero e trabalha sempre em grau premiado e “premiável” de excelência (o
Grammy por seu recente trabalho não deixa dúvidas a respeito).
Distantes desses dois e distantes entre si, três cancionistas se incumbem de inter-
pretar seu tempo a partir de uma posição menos confortável materialmente e sem sofre-
rem peso análogo da própria produção no momento criativo: Siba, Juçara Marçal e
Apanhador Só. O primeiro, jovem mestre pernambucano de maracatu, mobiliza o rigo-
roso esquema poético de sua formação para construir belas imagens e uma sensação ge-
ral de desencanto. Juçara Marçal, por sua vez, a menos “iniciante” do grupo, se move a
partir do que há de melhor na nova cena da música paulistana, com arranjos exigentes,
sinceridade de interpretação e belas canções para forjar um mundo em desconcerto para
uma voz lírica e combativa. Por fim, a Apanhador Só acusa o sucateamento – físico,
moral, ideológico, representativo – de seu entorno por meio de uma sonoridade estri-
dente e na consistente tradição do rock gaúcho, que mantém dicção própria e peculiar
desde a banda Liverpool, nos anos 1960.
Não creio que sejam mestres no ofício como os dois cancionistas canônicos, ou
seja, pela definição adotada, mesmo numa dicção de arestas, ainda é possível perceber
certos impasses. Algumas canções de Siba são amarradas pelo rígido esquema de rimas
seguido pelo cancionista, conferindo-lhe aspecto um tanto parnasiano. O álbum de Juça-
ra Marçal, por sua vez, pode ser demasiado cerebral em algumas passagens – a canção
“E o Quico?” (Itamar Assumpção) parece tão deslocada quanto a gíria usada em má ho-
ra de “Tipo um baião”, em Chico. Por fim, o disco da Apanhador Só sofre de uma au-
sência rematada de auto-ironia ou ceticismo em relação à própria posição que enuncia
os problemas dos outros – talvez pela profunda identificação entre os protestos e essa

43
Em artigo anterior, mas ainda no prelo, “Tropicalismo: crítica & história”, disserto especificamente a
respeito deste aspecto.

33
posição satírica e acusatória, o som da banda tenha se tornado trilha sonora e sido esco-
lhido para compor o clipe não oficial das manifestações de junho de 2013.
A despeito dessas limitações, gostaria de frisar o quanto destoam o mundo repre-
sentado por Chico e Caetano, de um lado, e o mundo representado por Siba, Juçara
Marçal e Apanhador Só, de outro. Creio que não seja disparatado pensar que esta con-
juntura relativamente nova dos grandes cancionistas de há quarenta, cinquenta anos, que
seguem produzindo provocou configurações inéditas para a cena contemporânea da
canção popular brasileira. Os filhos de Sérgio Buarque e Dona Canô, não entre si, preci-
sam lidar com o que significam para a canção popular brasileira e seguir criando em co-
tejo com essa posição moldada por suas trajetórias. Ambos seguem elaborando obras-
primas a partir da imensidão de suas humanidades, ambos soçobram de maneira diversa
na arte de sobreviverem a si mesmos. Complementarmente, talentosos e relativamente
desobrigados de estar à altura do que foram, novos cancionistas acusam um mundo em
ruína e propõem alternativas a essa desintegração, só de longe sentida pelos já bem pos-
tos Chico e Caetano.
Se em “O império da lei”, em Abraçaço, Caetano Veloso comenta o midiático
assassinato de Dorothy Stang – “Quem matou, meu amor, tem que pagar / E ainda mais
quem mandou matar” –, em “Damião” (Douglas Germano & Everaldo Ferreira da Sil-
va), em Encarnado, Juçara Marçal canta o caso quase desconhecido do doente mental
espancado e tratado com negligência pela Casa de Repouso Guararapes, em Sobral (CE)
– “Dá neles, Damião! / Dá sem dó nem piedade / E agradece a bondade / E o cuidado de
quem te matou”.
Não quero aqui validar o dogma de que cabe aos novos artistas cantar o mundo e
aos velhos artistas, os grandes temas, mas é interessante como a maturação do campo da
canção popular brasileira modificou de fato a posição de onde cantam seus atores, suas
visadas e suas questões. A indústria cultural, ora a pleno vapor na canção popular brasi-
leira, age transformando profundamente a dicção de seus principais cancionistas, seja a
maneira como são produzidas, seja a maneira como são recebidas. No limite, talvez pos-
samos pensar na ascensão social como uma estratégia sutil, mas muito eficiente, do
mercado para calar seus artistas magistrais sobre os aspectos ou tensões mais candentes.
Se este ensaio foi mesmo um salto no abismo, o impacto derradeiro seria um
tempo em que todos os cancionistas fossem rastreados, contatados, contratados e remu-
nerados quase de imediato por um mercado que financia e lucra com as mais talentosas
vozes dissonantes, amenizando-as. O inferno ou o céu que disso decorrem depende das
crenças de cada um.

34
Paideia na ‘lírica’ grega arcaica: a poesia elegíaca e mélica44
Giuliana Ragusa45
Rafael Brunhara46
Resumo
O artigo trata da dimensão paidêutica da “lírica” grega arcaica em dois dos gêneros abarcados nessa de-
signação: elegia e mélica (canção). Naquele, observamos um gênero cuja ocasião de performance preva-
lente era o simpósio; neste, na modalidade coral, o festival cívico-cultual. Lidamos, pois, com poesia es-
sencialmente oral, que só existe de fato quando apresentada à audiência adequada, formada pela comuni-
dade da polis, em diálogo que pensa, celebra, revalida seus valores e tradições, agregando à essencial fun-
ção estética a paideia do homem grego. Mostram-no a elegia de Teógnis (Megara) e a canção para coro
de virgens de Álcman (Esparta), dois representativos nomes em seus respectivos gêneros.
Palavras-Chaves: elegia, mélica, paideia.
Abstract:
The article discusses the paideutic dimension of the so-called archaic Greek “lyric”, namely elegy – a
genre designed mainly for performance at the symposium – and melic – a genre for the civic and religious
Greek festival. Thus, poetry that is essentially oral, its existence made real when presented to an audience
composed by the polis community to which it speaks in a dialogue that reflects on, celebrates and revali-
dates its values and traditions. By doing so, it conjugates to its essential function (to entertain) the paideia
of the Greek man, as shown in the elegy of Theognis (Megara) and in the songs for maidens chorus of
Alcman (Sparta), two of the great poets in each of these genres.
Keywords: elegy, melic, paideia.
A elegia
Teógnis, o aristocrático poeta de Megara (ativo em c. 600 a.C.), assim adverte
Cirno, seu amado efebo, aspirante à nobreza: “Eu te ensinarei boas coisas, como um pai
faz a um filho”. Em um poema, o legislador ateniense Sólon (c. 630-560 a.C.) emoldura
as suas lições com um preâmbulo às Musas, filhas de Zeus e Memória, conferindo a
graça e a solenidade de um hino aos preceitos entesourados pela tradição; Tirteu de Es-
parta (ativo em c. 625 a.C.) detalha as virtudes que um bom soldado deve demonstrar.
Todos estes nomes têm um aspecto em comum: foram poetas que veicularam
seus ensinamentos e exortações no gênero poético conhecido como elegia.
Hoje, quando falamos em elegia, entendemos poesia de temas tristes em contex-
to lutuoso. Pode parecer estranho a um leitor do século XXI que os gregos se utilizas-
sem da poesia como meio para educar e aconselhar, e que o fizessem, ainda, em um gê-
nero literário que associamos ao lamento. Entretanto, o modo como este gênero era con-
cebido em suas origens, no século VII a.C., pode explicar este fenômeno.
Dotada de vasta abrangência temática, dois elementos unificavam a elegia arcai-
ca: metro e performance. O gênero era identificado pelo critério rítmico, primeiramente:
o dístico em que se alternam o hexâmetro dactílico, o metro das célebres epopeias de
Homero, e o chamado “pentâmetro”, feito da junção de dois hemistíquios predominan-

44
RAGUSA, G.; BRUNHARA, R. Paideia na "lírica" grega arcaica: a poesia elegíaca e mélica. Filosofia
e Educação, v. 9, n. 1, p. 45-62, 26 mar. 2017. Endereço:
em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/rfe/article/view/8648422/15258.
45
Giuliana Ragusa é professora associada de língua e literatura grega na Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP;
46
Rafael Brunhara é professor adjunto de língua e literatura grega na Universidade Federal do Rio Gran-
de do Sul (UFRGS).

35
temente dactílicos, de maneira que se assemelhava a um hexâmetro ao qual faltaria um
pé métrico.47
Evidências arqueológicas e documentação literária nos mostraram que o dístico
elegíaco se difundiu rapidamente na Grécia, dadas a facilidade de sua apropriação, a re-
gularidade maior que a do hexâmetro épico, e a diversidade menor do que dos metros
mélicos. Além disso, combinava sua brevidade com uma natural elevação estilística,
advinda das fórmulas e vocábulos tradicionais do arcabouço épico. Isso tornava o dísti-
co elegíaco elegante e de simples manipulação: qualquer grego minimamente instruído
poderia compor nesse metro que, por esse motivo, a partir do século VII a.C., já se tor-
nara o preferido para a composição de epigramas, isto é, inscrições votivas, funerárias
ou dedicatórias (Fowler, 1987, p. 98). Não é difícil inferir que estas mesmas concisão e
elevação da linguagem que o dístico facultava ao epigrama também encorajaram a com-
posição de poemas de tom sentencioso e aforismático. De fato, muitos poetas se servi-
ram dele para transmitir ensinamentos de modo memorável. Assim é que, concomitan-
temente aos epigramas, surgira outro gênero bem difundido na Grécia arcaica a empre-
gar o dístico elegíaco: a elegia.
Embora elegia e epigrama compartilhassem o metro, havia uma distinção signi-
ficativa entre eles, pelo menos até o séc. VI a.C. Enquanto o epigrama destinava-se às
inscrições sobre um objeto – um túmulo ou uma oferenda a uma deidade –, a elegia é
essencialmente um discurso em dísticos elegíacos, acompanhada musicalmente pelo au-
lo, instrumento de sopro similar ao oboé, e marcada por uma 1ª pessoa que se dirige a
um destinatário específico em ocasião de performance determinada (West, 1974, p.1-2).
Em um universo anterior à maior difusão da escrita, em que a circulação de versos se
dava estritamente em performance, reconhecer a ocasião desta é fundamental para nos
dar indícios da conformação de um poema a um gênero e um contexto específicos.
Hoje consolidou-se o pensamento de que a elegia tinha no simpósio sua princi-
pal, senão única, ocasião de performance. Talvez a mais difundida e influente institui-
ção a se desenvolver no mundo grego arcaico (séc. VII-V a.C.), o simpósio era uma
reunião altamente ritualizada, exclusivamente composta por homens aristocratas48 de
igual estatuto social. Começando depois do banquete, nele privilegiava-se o consumo do
vinho e a recitação de discursos e canções que abarcavam desde a esfera política até in-
cursões ao mundo de Eros (Rossi, 1983, p. 44). Como espaço ritualizado, o simpósio
também permitia celebrar e idealizar valores ético-morais compartilhados pelos convi-
vas (Vetta, 1995, p. lxi). As definições desse evento apresentam essencialmente a pres-
crição de um ēthos, constituindo-se, portanto, o simpósio como um espaço para a exibi-
ção de educação, cultura, e valores aristocráticos, bem como para a sua transmissão
(Vetta, 1992, p. 178).
De um lado, a elegia com sua simplicidade rítmica, concisão, clareza e tendência
para um tom sentencioso; de outro, o simpósio enquanto espaço para transmissão de va-
lores éticos, políticos e sociais: a conjugação destas características responde à nossa
aparente estranheza inicial perante uma “elegia educativa”: a elegia grega arcaica, como
sói à poesia antiga, instruía e deleitava, e o simpósio era cenário propício a ambas as

47
Para conceituação mais aprofundada do gênero, remeto a West (1974, p. 1-14). Sobre o dístico elegía-
co, ver Adkins (1985, p. 1-33).
48
Entende-se aristocracia conforme a definição de Sacks (2005, p.45): “(...) forma antiga de governo em
algumas cidades gregas, em que o poder era partilhado por um pequeno círculo cujos membros eram de-
finidos pelo privilégio de um nascimento nobre”.

36
atividades. Teógnis, entre outros poetas, encareceu a elegia como meio de oferecer à
audiência preceitos éticos e políticos, como veremos em excertos de uma obra cujos
numerosos versos conservados refletem uma poesia quase que exclusivamente voltada à
paideia. Tais excertos serão, pois, guia exemplar para compreender a indissociável liga-
ção entre elegia, simpósio e paideia.
Teógnis, Cirno, elegia e paideia simposial arcaica
Com Teógnis encontramos um caso distinto no que tange à preservação da obra:
se para os demais poetas elegíacos contamos com corpora fragmentários e exíguos, dele
diversos manuscritos conservam, sob seu nome, cerca de 1400 versos elegíacos em bom
estado, na chamada Teognideia. Nem todos, porém, lhe pertencem: diversos seguramen-
te são de outros poetas que viveram antes ou depois de Teógnis; e alguns sugerem datas
tão distantes uma das outras que não poderiam ser reunidas no tempo de uma vida. O
que os versos da Teognideia teriam em comum entre si é a composição para performan-
ce nos simpósios. É uma coleção que parecia auxiliar a récita de poesia no simpósio,
bem como celebrar um programa poético adequado ao evento. Uma das elegias que abre
a Teognideia institui um programa poético que projeta o simpósio como espaço ideal
para a educação dos valores aristocráticos (versos 27-38):
Σοὶ δ' ἐγὼ εὖ φρονέων ὑποθήσομαι, οἷά περ αὐτός,
Κύρν', ἀπὸ τῶν ἀγαθῶν παῖς ἔτ' ἐὼν ἔμαθον·
πέπνυσο, μηδ' αἰσχροῖσιν ἐπ' ἔργμασι ἥδε' ἀδίκοισιν
τιμὰς μηδ' ἀρετὰς ἕλκεο μηδ' ἄφενος.

ταῦτα μὲν οὕτως ἴσθι· κακοῖσι δὲ μὴ προσομίλει


ἀνδράσιν, ἀλλ' αἰεὶ τῶν ἀγαθῶν ἔχεο·
καὶ μετὰ τοῖσιν πῖνε καὶ ἔσθιε, καὶ μετὰ τοῖσιν
ἵζε, καὶ ἅνδανε τοῖσ', ὧν μεγάλη δύναμις.
ἐσθλῶν μὲν γὰρ ἄπ' ἐσθλὰ μαθήσεαι· ἢν δὲ κακοῖσιν
συμμίσγηις, ἀπολεῖς καὶ τὸν ἐόντα νόον.
ταῦτα μαθὼν ἀγαθοῖσιν ὁμίλεε, καί ποτε φήσεις
εὖ συμβουλεύειν τοῖσι φίλοισιν ἐμέ.

A ti eu aconselharei benévolo, como eu mesmo,


Cirno, aprendi de bons homens ainda menino.
Age com prudência, e por atos torpes ou injustos
não te apropries de glória, mérito ou riqueza.

Assim, aprende o seguinte: não busques a companhia


de homens vis, mas apega-te sempre aos de valor.
Entre eles, come e bebe, e entre eles te assenta,
agrada àqueles cujo poder é enorme.
De nobres, aprenderás o que é nobre: mas, se aos vis
te misturares, até a tua razão perderás;
ciente disso, reúne-te aos bons, e um dia dirás
que aconselho bem os meus amigos.

Estes versos, não por acaso, vêm logo após a elegia em que Teógnis anuncia a si
mesmo49: depois de se apresentar, ele se ocupa de descrever os propósitos de sua poesia

49
Os versos 19 a 26, conhecidos como a “Elegia do Selo”.

37
e, por esse motivo, os excertos acima foram considerados programáticos50. De fato, os
versos 27-38 resumem o conteúdo paidêutico que permeia a maior parte da obra de
Teógnis e que lhe deu fama na Antiguidade. A enciclopédia Suda (século X d.C.) assim
define o poeta no verbete que lhe dedica: “Compôs uma coleção de ensinamentos em
versos elegíacos, para seu amado Cirno”. Muitos séculos antes, Platão (Mênon, 95 c-d)
evoca seu nome e cita os versos 33-36 para mostrar que Teógnis julgava a virtude
(aretē) como passível de ser ensinada. As primeiras palavras do verso 27, soi (“para ti”)
e egō (“eu”), são apropriadas à perspectiva do gênero elegíaco: não lhe é próprio reme-
ter ao passado longínquo, mas delimitar sua matéria ao momento presente e assim colo-
car em primeiro plano sua audiência. O “Eu” poético Teógnis, distinto do narrador épi-
co (Canevaro, 2014, p. 29), não é voz distanciada que se confunde à da tradição.
Teógnis se revela nas circunstâncias do presente, e adota deliberadamente a persona de
um preceptor.
Convém observar como este “Eu elegíaco” constrói sua figura: ele não colhe
seus ensinamentos das Musas, deusas responsáveis pela palavra poética e avatares da
tradição, mas os extrai dos ensinamentos que, por sua vez, recebera de outros nobres
quando menino (v. 28). A educação transmitida de pai para filho, de nobre para nobre:
verifica-se aí a importância que Teógnis dá à ascendência aristocrática. A virtude
(aretē) é para ele uma prerrogativa da nobreza, e como tal, apenas pode ser ensinada no
seio da aristocracia. Um poema da Teognideia mostra que é o nascimento que determina
se um indivíduo será capaz ou não de aprender a virtude. Se nasce nobre (agathos), é
possível lhe passar pensamentos nobres (phrenas esthlas); se não, estará para sempre
condenado a ser vil (kakos) (vv. 429-431).
A companhia de “bons homens” (agathoi) para produzir uma boa juventude re-
vela-se um dos princípios da paideia grega arcaica (Levine, 1985, p. 178). O que garan-
te a validade das admoestações políticas, civis e até mesmo eróticas de Teógnis não são
as Musas, mas os valores tradicionais que enformam a vida aristocrática, passados de
geração para geração, e que têm no simpósio o principal local de transmissão, uma vez
que este é caracterizado, justamente, como espaço de reunião da nobreza.
O pronome de 2ª pessoa (soi, “a ti”) no verso 27 também é importante, mostra
sua posição no verso, que produz de maneira clara a presentificação da audiência e ao
mesmo tempo singulariza o interlocutor, estabelecendo forte separação entre ele e o
“Eu” que pronuncia os versos. Como resultado, cria-se uma hierarquização retoricamen-
te eficaz ente “tu” e “Eu”, muito frequente na literatura de cunho sapiencial e caracterís-
tica fundamental da poesia didática desde as suas origens orientais, em obras como a
suméria Instruções de Surupakk, Conselhos de um pai para o desacertado filho e a
egípcia Instruções de um homem ao seu filho (Canevaro, 2014, p. 30). São exemplos
que mostram como Teógnis ampara-se nesta tradição, dela se distanciando, pois en-
quanto elas registram precipuamente os conselhos de um pai para um filho, a Teogni-
deia situa seus aprendizados na atmosfera simposiástica de divertimento e convivialida-
de aristocrática (versos 31-32). Note-se que o receptor destes ensinamentos, o “tu” ao
qual o “Eu elegíaco” se dirige, é bem delimitado, e atende por nome próprio: Cirno (v.
28).
No espaço aberto pela ficção poética, não convém perscrutarmos se Cirno exis-
tiu ou não como figura histórica, mas as ressonâncias que este nome produz são interes-

50
Colesanti (2011, p. 310) chama-a de “manifesto programático”, e Rösler (2006, p. 64), defendendo seu
lugar na coleção, argumenta a favor do caráter proemial desta elegia.

38
santes: estudiosos antigos viram em Cirno o amado (erōmenos) de Teógnis. Para além
da mera intenção biografista, essa relação se vincula à própria concepção de paideia ar-
caica aqui comentada: em uma sociedade em que os mundos masculino e feminino vivi-
am cindidos e as relações sexuais com mulheres eram vistas como meio de procriação
ou apenas satisfação física, era natural que a iniciação sexual de um jovem fosse feita
por um homem mais velho, pertencente aos mesmos círculos aristocráticos que ele. Este
aristocrata assumia o papel de amador (erastēs) e também se incumbia da educação do
amado (erōmenos) nos códigos morais e políticos que norteavam a aristocracia. A rela-
ção entre Cirno e “Teógnis” proposta por biógrafos antigos nada mais do que particula-
rizaria e reduziria a uma dimensão interpessoal aquilo que é eminente na Teognideia:
certos conselhos de conduta e preceitos que deveriam ser aprendidos para a vida política
e aristocrática equiparam-se aos que o amador exige de seu amado: a pistis (“lealdade”),
a kharis (“reciprocidade”) e a dikē (“equilíbrio”).
No entanto, o personagem Cirno é exclusivamente destinatário de poemas de
fundo político ou paidêutico. Poemas eróticos, uma seção à parte na Teognideia, nunca
o têm como interlocutor. Essa constatação levantou a suspeita, já entre os antigos, de
que Cirno não fosse uma figura histórica, mas antes uma ficção deliberadamente engen-
drada pelo poeta, e que usar o seu nome poderia ter um sentido específico em versos de
conteúdo didático.
Fato é que a atribuição de um “Eu elegíaco” bem marcado que até se nomeia, e a
criação de um interlocutor genérico, que possa servir de receptáculo para todo o tipo de
ensinamento político e aristocrático, circunscreve a paideia a um âmbito poético: tudo
se resolve nos limites da poesia que dissemina os preceitos políticos e éticos para a vida
na pólis. Com isso, revela-se uma característica central da poesia didática: emoldurar
narrativas para transmitir conteúdo sapiencial (Edmunds, 1997, p. 44). Na ficção do
amador Teógnis e do amante Cirno, questiona-se aos ouvintes implicitamente qual o po-
tencial de cada um: nobres, se compreendem e apreciam a poesia de Teógnis; vis, se fa-
lham. Assim, a elegia demonstra o quanto poesia e paideia são inseparáveis entre os
gregos arcaicos, e como o simpósio revela-se um espaço para a performance de ambas.
Mas a poesia não circulava unicamente em âmbito simposial. Uma boa parcela das pro-
duções poéticas classificadas como “líricas” se dava também fora dele, nos festivais pú-
blicos da cidade. O modo como se articulava a relação entre poesia e paideia nesse con-
texto é o que nos ocupará a seguir.
A mélica – a lírica propriamente dita51
Passemos ao outro gênero contemplado neste artigo: a mélica, nome menos usu-
al, embora mais preciso, para a lírica, este prevalente sobretudo a partir da edição dos
poetas na Biblioteca de Alexandria, notavelmente por Aristófanes de Bizâncio (c. 258-
180 a.C.). Ambas as nomenclaturas guardam a ideia-chave da definição do gênero: can-
ção para performance com acompanhamento da lira – daí lírica (ou lyrikē)52, que vem a
substituir outros mais antigos, com destaque para melos (canção), que origina o termo
mélica (ou melikē) e que está presente no léxico musical de nossa língua.
Na Grécia arcaica, em que a oralidade sobrepuja a escrita, estamos no que se designa
song culture (Herington, 1985, p. 3); nela, a poesia é “o veículo principal à dissemina-

51
Essa etapa tem por base estudos prévios mais detalhados: Ragusa (2010, pp. 23-97; 2013, pp. 11-35). O
texto oscila entre síntese e acréscimos.
52
Na acepção moderna, muito usada, mas imprecisa, o termo designa todos os gêneros poéticos não-
hexamétricos e não-dramáticos da Grécia antiga.

39
ção de ideias morais, políticas e sociais” (id., ib.) – poesia esta que é eminentemente
discurso composto segundo práticas tradicionais nos diferentes gêneros, plenamente in-
serida na vida da pólis e, portanto, pragmática, articulada a certo contexto e modo de
performance (Rösler, 1985, p. 139). Isso se faz particularmente nítido em alguns gêne-
ros poéticos, em especial na mélica, cuja natureza a plasma “em contexto ritual e per-
formativo” (Swift, 2010, p. 14), realizado pela e para a comunidade da pólis, e cujas es-
pécies (eidē) têm um papel, uma função “no mundo externo ao poema” (id., p. 15).
Ainda que se deva ressaltar que a definição de um gênero de poesia arcaica, in-
serido em cultura oral, deva ser encarada como flexível (Carey, 2009, p. 22), fato é que
os tipos de mélica estão estreitamente articulados à performance à qual se destinam; “e
é o papel que a ocasião [de performance] desempenha na comunidade que dá forma à
natureza da poesia e às reações da audiência a ela” (Swift, 2010, p. 34).
Muito distinto deste era o cenário à época da edição da mélica em Alexandria.
Lá, debruçados sobre as composições no gênero, os eruditos pareciam interessados “ex-
clusivamente nas palavras dos poetas” (Most, 1982, p. 78) cujas canções se tinham
transformado em textos para leitura, comentário e cópia, despidos da lira tornada antiga
(e fugidia) recordação na nova nomenclatura (lírica) – ou seja, despidos de sua natureza
oral, performática, pragmática. Retornando, pois, ao mundo da mélica arcaica, falemos
de características pertinentes ao tema da paideia no gênero.
Há para a mélica duas modalidades de performance: solo, com acompanhamento
da lira, e coral, com a soma de diversos instrumentos à dança. Esta configura a molpē, a
canção na sua “unidade de canto, dança e música” (Webster, 1970, p. xiii), dimensões
de responsabilidade do poeta53. Ambas as modalidades têm traços característicos. A
canção solo tem estruturas métricas antes estrofadas do que lineares, e menos comple-
xas e longas do que as estruturas estróficas da canção coral. Aquela tem variedade temá-
tica e de tratamento da linguagem, enquanto esta tem na narrativa mítica, na autodrama-
tização da performance e autorreferencialidade do coro, bem como na linguagem cele-
brativa, suas linhas de força. A mélica solo se liga com frequência à contemporaneidade
e temas correlacionados, projetando imediatismo (D’Alessio, 2004, p. 270), enquanto a
coral eleva-se do presente ao celebrar deuses e homens em tramas articuladas ao passa-
do mítico e à tradição, que superam os limites do tempo. Aquela se destina mais amiúde
aos simpósios, esta, aos festivais públicos cívico-cultuais das poleis que os organizavam
e patrocinavam. Trata-se de ocasião solene, cuja “tônica dominante” “é o prazer, huma-
no e divino” (Herington, 1985, p. 6).
A canção solo, está claro, é entoada por uma voz, enquanto a coral demanda um
coro. Façamos uma pausa: quem integrava os coros que podiam variar em número de 7
a 50 coreutas? Majoritariamente, membros socialmente integrados nas poleis, dado que
pode dar uma ideia do impacto de canções feitas para as comunidades e por elas, de
canções que constantemente se elaboram na conjunção entre o presente e o passado mí-
tico, a tradição – a memória coletiva e os valores nela preservados. Isso é possível por-
que, na Grécia, “participar de performance coral ou contemplá-la desempenhavam um
papel central na vida cultural e musical” (Swift, 2010, p. 1), delineando “os momentos
mais significativos da vida de indivíduos e da comunidade, de casamentos, a funerais, a
celebrações religiosas cívicas” (id., p. 2). Daí que, desde cedo, homens e mulheres eram
treinados para a atividade coral e tudo o que isso envolvia.

53
A música é a dimensão menos acessível a nós. A dança é atestada nas próprias canções que dela falam,
e em fontes iconográficas (Webster, 1970, p. 1).

40
Vale dizer, tudo somado, que a mélica coral “tinha papel central na afirmação
dos valores e da unidade da comunidade” (Segal, 1990, p. 165). Isso porque

tendia a ser cantada em celebrações formais que unificavam a cidade como um to-
do coerente ao reconhecer o benefício divino e a empresa humana, e servia social-
mente a garantir a integração completa da cidade, distinguindo-a de outras. (...)
Ademais, (...) enfatiza as relações entre homem e deus, ao observar rituais de culto
por meio dos quais uma cidade homenageia seus deuses, ao honrar o sucesso hu-
mano extraordinário que só alcançável através do favor divino, e ao testemunhar
momentos de transição nas vidas de indivíduos, que só podem ser concluídos de
modo exitoso pela graça dos deuses. (Most, 1982, pp. 90-1).

Dado o tema da paideia grega, concentramo-nos na mélica coral, olhando para


uma canção de inescapável dimensão formativa, a qual se vem somar à função precípua
do canto: dar prazer, entreter, deleitar. Pois justamente nessa função que desarma os
ânimos reside o impacto potencial de contribuir para a paideia do homem grego.
Álcman, o Partênio, as virgens: coro e paideia54
Preservada em papiro do século I d.C., o Partênio do Louvre ou simplesmente
Partênio, em geral editado como o Fragmento 1 de Álcman (ativo em c. 620 a.C.) – poe-
ta de uma Esparta distante da pólis estritamente militarista da era clássica, e afeita à ati-
vidade coral e a poetas e músicos estrangeiros –, é canção coral de 105 versos. Sua de-
nominação, Partênio, define sua espécie mélica – canção para performance por coro de
virgens (parthenoi). Sua composição traz três partes típicas: na primeira, cujo proêmio
se perdeu, a narrativa mítica (1-35), pouco legível, vinculada à tradição local, cantando
uma guerra entre heróis da linhagem dos Tindaridas – Tíndaro e Leda são os pais de He-
lena, Clitemnestra, e dos gêmeos Cástor e Polideuces; bem mais legíveis, a gnōmē
(“sentença, máxima”, 36-9) de transição e a 2ª parte, cujo tema é a autodramatização pe-
lo coro de sua própria performance (39-105).
Seja qual for o relato mítico, seu quadro é noturno, sombrio, pois canta a morte e
a destruição como frutos da inobservância dos limites inerentes à condição humana, vá-
lidos inclusive para os heróis – ou seja, por crimes de hybris (desmedida, excesso, vio-
lência, arrogância, pretensão, insolência), que repercutem no mundo dos deuses e ati-
vam o mecanismo do equilíbrio pela retribuição punitiva (tisis)55. As admoestações da
parte mítica não deixam dúvidas quanto a tal quadro:
Versos 16-17
[μή τις ἀνθ]ρώπων ἐς ὠρανὸν ποτήσθω que homem nenhum voe rumo ao céu,
[ μηδὲ πη]ρήτω γαμῆν τὰν Ἀφροδίταν e nem pretenda desposar Afrodite

Versos 34-9 [final da narrativa mítica e gnōmē, 36-9]


(...) ἄλαστα δὲ mas inesquecíveis
⸏Ϝέργα πάσον κακὰ μησαμένοι· feitos sofreram, males tendo planejado.
ἔστι τις σιῶν τίσις· Há algo como o castigo dos deuses;
ὁ δ’ ὄλβιος, ὅστις εὔφρων feliz quem alegremente

54
Para tradução, aqui citada, e comentário conciso: Ragusa (2013, pp. 39-53), com base em estudo ante-
rior mais detalhado (2010, pp. pp. 101-207).
55
Del Grande (1947, p. 1): hybris é “a ‘insolência’, a violência excessiva de quem, incapaz de pôr à sua
ação um freio – produto do respeito do direito dos outros, da consciência do justo, da piedade –, ultrapas-
sa (...) os limites do quanto seja correto, causando a injustiça”, e ofendendo “diretamente os deuses, tuto-
res da ordem social (...)”.

41
ἁμέραν [δι]απλέκει o dia entretece até o fim,
ἄκλαυτος· (...) sem pranto; (...)

Articulada aos versos 16-7 e 34-5, com suas admoestações quanto aos perigos de
incorrer em hybris e a certeza da punição divina, a gnōmē (36-9) encerra verdades con-
cretas, empiricamente provadas na experiência humana, para a qual os mitos – as narra-
tivas tradicionais – funcionam como exemplos modelares, essenciais à mélica e caros à
elegia, em que costumam ter “função moralizante” (Del Grande, 1947, p. 71). E os dize-
res da gnōmē enfatizam sonoramente a punição (tisis): Esti tis siōn tisis (“Há algo como
o castigo dos deuses”, 36), canta a síntese da “significação moral” (Too, 1997, p. 9) da
narrativa mítica, preparando a reflexão da gnōmē que conduzirá a canção ao presente da
performance, em que parthenoi, as moças ainda não casadas56, se apresentam à polis.
Tal reflexão, ancorada no tempo presente, define quem é “feliz” – olbios, termo que
nomeia a prosperidade material e imaterial, favorecida pelos deuses –, e o faz em lin-
guagem concisa, ágil, de transições bruscas, típica da estilística poética arcaica, marcada
pela oralidade. No canto das virgens, expressa-se a visão tradicional de que, ignorando o
futuro, o homem mortal “deve se contentar com sua jornada diária, e a máxima felicida-
de que pode alcançar é de transcorrer alegremente uma única jornada” (Pavese, 1992,
pp. 120-1) encarada como “momento fixo e conclusivo em si mesmo (e, sob esse aspec-
to, poder-se-ia dizer eterno)” (id., ib.).
Evidencia-se que a gnōmē dos versos 36-9 resume a conclusão ético-moral ex-
traída da narrativa mítica, ou, por outra, nela revalida a verdade que a experiência hu-
mana dá a conhecer, a ser lembrada para que não incorram os mortais do presente no er-
ro dos homens do passado, os heróis. O coro integrado pelas futuras esposas de Esparta,
ao cantar essa gnōmē e mesmo ao pontuar com admoestações gnômicas o relato mítico
(16-7, 34-5), revalida no presente valores tradicionais, compartilhados pela comunidade
no correr dos tempos, notadamente, da reverência aos deuses e da importância da obser-
vância dos limites da condição mortal. Contrapondo o presente luminoso ao passado de
violência e ruptura, as parthenoi desenham-se, em linguagem fortemente imagética e
sugestiva, “como representantes de uma sociedade que demonstra ordem e respeito pela
autoridade” (Too, 1997, p. 16). O coro assim exibe sólida formação ético-moral e firmes
elos com a comunidade, algo importante numa apresentação que propicia às virgens a
oportunidade de serem vistas como “potenciais e desejáveis parceiras de boda” (Ingalls,
2000, p. 6)57 pelos jovens aristocratas que as desposarão58. Mais do que exibir, o partê-
nio de Álcman viabiliza tal formação e a sedimentação de tais elos, funcionando a can-
ção do poeta e as demais dessa espécie mélica como “importantes instrumentos de pai-
deia, um processo que inculcava responsabilidade cívica, valores sociais e tradições (...)
codificados na performance, que servia [no caso específico dos partênio] para integrar o
indivíduo do sexo feminino em seu contexto social” (Clark, 1996, p. 144).

56
No imaginário grego, a virgindade não é pensada em termos de castidade pura e assexuada, mas da
condição de meninas-moças situadas entre a infância e a idade adulta marcada pelo casamento que con-
clui a integração social da mulher (Sissa, 1990, p. 76).
57
Isso se reflete na 2ª parte da canção, introduzida pelo elogio pelo coro de uma de suas coreutas (Agidó).
Daí em diante (39-105), desenrola-se a autodramatização da dança, do próprio canto e da figura graciosa
das virgens.
58
“A ilustração da gnōmē por narrativa de conflito marcial sustenta a ideia de que homens estavam pre-
sentes [à performance]. (...) Se essa performance era pública, servia a um dos propósitos atestados dos co-
ros de virgens: exibir mulheres desposáveis à comunidade para favorecer pretendentes potenciais” (Steh-
le, 1997, p. 32).

42
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44
A peripécia brasileira de Robinson Crusoé: o herói burguês e negreiro na origem da as-
censão do romance59
Homero José Vizeu Araújo60
Resumo
Robinson Crusoé, de Daniel Defoe, analisado enquanto herói burguês e individualista, nos termos de Ian
Watt e Franco Moretti, mas também na condição de traficante de escravos e de proprietário da produção
açucareira no Brasil, mais especificamente na Bahia do séc. XVII, isto é, examina-se aqui o impacto da
experiência periférica e colonial brasileira no enredo, na caracterização de personagens e na prosa do cé-
lebre romance.
Palavras-chave: romance - Daniel Defoe – Robinson Crusoe – escravismo – burguês
Abstract
Robinson Crusoe, by Daniel Defoe, analyzed as a bourgeois and individualistic hero, according to the
definition of Ian Watt and Franco Moretti, but also on the condition of slave trader and owner of sugar
production in Brazil, specifically in state of Bahia in the 17th century. This article examines the impact of
peripheral and colonial Brazilian experience in the plot, in the characterization of characters and in the
prose of the famous novel.
Keywords: novel – Daniel Defoe – Robinson Crusoe – slavery - bourgeois
A saga do aventureiro inglês que passa vinte e oito anos isolado em uma ilha de-
sabitada deixou de ser o enredo de um romance do século XVIII para se tornar uma es-
pécie de mito da cultura ocidental, na avaliação de Ian Watt. Vale lembrar que dentre as
personagens analisadas no livro Mitos do Individualismo Moderno: Fausto, Dom Qui-
xote, Dom Juan, Robinson Crusoe, de Ian Watt, o único mito que emerge do século
XVIII é Robinson Crusoé, os demais provém do século dos séculos XVI e XVII, o que
não deixa de ser um sinal da força do apelo do personagem de Defoe. Meu interesse
aqui é menos discutir, no romance Robinson Crusoé, caracterização do personagem, an-
damento da prosa, etc., e mais avaliar episódios que pouco interessaram à maioria dos
comentaristas, inclusive ao talvez mais célebre dentre eles, Jean Jacques Rousseau. O
meu foco vai para os momentos anteriores e posteriores às aventuras e desventuras na
tal ilha deserta, isto é, a proposta aqui é avaliar de onde Robinson sai para sua malfada-
da viagem e o que lhe ocorre depois de ser resgatado. Uma perspectiva marginal, ou
melhor, periférica para abordar o clássico tantas vezes referido, o que permite reivindi-
car uma ligeira supremacia aqui, afinal trata-se da estreia do Brasil entre os clássicos do
romance ocidental. Ou teremos um romance anterior a 1719 em que figure a Bahia de
Todos os Santos na condição de centro açucareiro escravista?
Por sinal, não se reivindica aqui maior originalidade em registrar um triunfo pre-
coce do romance realista europeu, que nos seus então primeiros esforços de mapear os
trajetos da burguesia já descreve uma distante e próspera colônia portuguesa tropical.
Neste sentido, trata-se aqui de contribuir para uma história do romance no Novo Mun-
do, que poderia incluir – mas isso seria mesmo uma surpresa? – o romance prestigiado
cujo herói converteu-se em mito, pois precocemente teria ocorrido a apreensão da expe-
riência colonial na tradição literária do ocidente. Na periferia do enredo de Defoe, inse-
riu-se a experiência brasileira, ou, melhor, segundo o argumento marxista revelou-se en-
tão a acumulação primitiva e sua violência, revelação que enquadra e relativiza o miolo
mais palatável da fábula do self-made man, que se tornou tão famoso.

59
ARAÚJO, Homero José Vizeu de. A peripécia brasileira de Robinson Crusoé: o herói burguês e negrei-
ro na origem da ascensão do romance. Cerrados, v. 14, p. 199-211, 2015. Endereço:
https://periodicos.unb.br/index.php/cerrados/article/view/25709.
60
Professor de Literatura na Ufrgs e autor de Futuro pifado na Literatura Brasileira e de Variados, mas
combinados: ensaios sobre literatura, entre outros livros.

45
Vale lembrar ainda que o livro de Defoe está literalmente no início do surgimen-
to do romance de acordo com Ian Watt, em outro texto célebre, A ascensão do romance,
cujo terceiro capítulo, e o primeiro dedicado a um romance específico, é “Robinson
Crusoe, o individualismo e o romance”. Para Ian Watt, em Robinson Crusoe já se mani-
festa com grande acuidade a alteração ocorrida em relação à regra e à convenção clássi-
cas: “Nas esferas literária, filosófica e social o enfoque clássico no ideal, no universal e
no coletivo deslocou-se por completo e ocupam o moderno campo de visão sobretudo o
particular isolado, o sentido aprendido diretamente e o indivíduo autônomo”(WATT,
1990, p. 57). Sendo assim, o realismo avançava com força rumo à desconvencionaliza-
ção que recrudesceria até estabelecer novas regras na ficção ocidental. Segundo Watt,
Defoe estabelece um novo patamar de expressão:

Defoe, cuja posição filosófica tem muito em comum com a dos empiristas ingleses
do século XVII, expressou os diversos elementos do individualismo de modo mais
completo que qualquer outro escritor antes dele, e sua obra apresenta uma demons-
tração única da relação entre o individualismo em suas muitas formas e o surgi-
mento do romance. Essa relação se evidencia com particular clareza em seu primei-
ro romance, Robinson Crusoe. (WATT, 1990, p. 57)

A interpretação de Ian Watt no livro em causa vem a ser reelaborada no instigan-


te e articulado livro de Franco Moretti, O burguês: entre a história e a literatura, cujo
segundo capítulo analisa e interpreta Robinson Crusoé enquanto síntese de atributos
burgueses. Uma parte do capítulo será retomada ao longo das próximas páginas e ficará
claro o quanto devo a ele para escrever este ensaio, embora para caracterizar seu Crusoé
burguês Moretti considere relativamente pouco o conjunto da narrativa e os episódios
anteriores e posteriores à ilha. Mas é Moretti quem dá a ênfase correta às circunstâncias
relevantes em que Robinson Crusoé finalmente tem acesso à condição de homem de
posses, o que é relativamente desconsiderado pelos estudos sobre a obra.
A desconsideração das “aventuras” de Robinson é recomendada por Rousseau
em Émile, de 1762, a fim de que se deixem de lado ou mesmo se evitem os trechos de
Robinson Crusoé que se referem a episódios externos à Ilha do Desespero e estranhos à
autoconstrução de Robinson, ou melhor, externos à disciplina e inteligência que dariam
o tutano do indivíduo isolado mas eficiente. Aqui seguimos a linha contrária a esta pres-
tigiosa orientação, o que nos leva a avaliar a presença do escravismo no livro. E sobre a
relação de Robinson com a escravidão, é de se notar que o personagem está longe de ig-
norar os procedimentos e violência da atividade, até porque ele próprio foi escravizado
na costa atlântica africana, antes de atracar em terras da Bahia. Lá ele teve que fugir,
com o auxílio do rapazote chamado Xuri, de um feroz escravocrata, o que não impede
Robinson de vender Xuri, quando se apresenta a oportunidade. A venda vem acompa-
nhada de cláusula atenuante que satisfaz os sentimentos dúbios de Robinson. Quem co-
menta é Ian Watt.

Considere-se, por exemplo, o tratamento que Crusoe dá a Xuri, o garoto mouro


com quem foge de Sale. Crusoe promete a Xuri, “se confiar em mim eu farei de
você um grande homem” (p.45), mais tarde a grande afeição e os admiráveis servi-
ços de Xuri levam Crusoe a dizer que o amará “para sempre”. Mas quando ambos
são salvos pelo capitão de um navio português, e Crusoe trata de acertar negócios
com ele, recebe de seu salvador a oferta de 60 reais de oito (uma antiga moeda ibé-
rica) – o dobro do preço pago a Judas – pela posse de Xuri. Durante alguns mo-
mentos Crusoe “reluta em vender a liberdade do pobre garoto, que me ajudara tão
fielmente a recuperar a minha”(...); mas acaba por não resistir ao dinheiro, e, para
salvar a cara, estipula que o rapaz “seja libertado dentro de dez anos, desde que se

46
torne cristão”. Crusoe terá oportunidade de lamentar a venda, mas isso só ocorrerá
quando se der conta de que Xuri poderia ser de grande utilidade na ilha. (WATT,
1997, p. 173)

O pragmatismo escravocrata de Robinson já estava definido, portanto, antes de


chegar às terras brasileiras, onde, de acordo com o relato em primeira pessoa do livro,
não se faz menção a escravos e açoites para narrar a evolução patrimonial de Robinson.
A fábula nem tão ingênua do self-made man e o perfil do sujeito burguês compenetrado
e disciplinado ganham literalmente contornos sinistros e mercantis, uma vez expostos os
motivos que levaram Robinson a embarcar de novo para cruzar o Atlântico rumo à costa
da Guiné. Ele sai de Salvador para obter escravos na África e retornar ao Brasil para en-
tregar a encomenda a seus amigos e sócios na Bahia, vale dizer, é um navio negreiro em
que Robinson naufraga e cujos destroços amenizarão seus vinte oito anos de isolamento.
Até aqui são condições fortuitas e menos relevantes (segundo quem?) para a trama, em-
bora longe de serem anódinas. Mas quando se aproxima o desfecho do romance o Brasil
retorna com destaque. Os vinte e oito anos de pertinácia, labor e disciplina na ilha não
renderam um guinéu furado a Robinson: serão os rendimentos escravistas de terras bra-
sileiras que garantirão o retorno tranquilo e próspero de Robinson (mediante letras de
câmbio!) à Inglaterra.
Para que Robinson Crusoé viesse a gozar do status adequado em sua pátria, as
rendas provenientes do circuito comercial escravista do Atlântico Sul tiveram que entrar
em cena, o que empurra o centro meritocrático do romance para a categoria da digressão
ideológica a encobrir a brutalidade da extração de valor do trabalho escravo, convenien-
temente distante e abstrato. Afinal, na hora de fechar as contas, todo o esforço e disci-
plina do bom burguês tornam-se vãos, e o que vale de fato é o investimento na zona
mercantil e escravista, isto é, o rendimento obtido no lombo dos africanos na América.
Rendimento a que Robinson tem acesso mediante golpe de sorte que o devolvera a Lis-
boa e a um comerciante honesto e gentil que se dispusera a pagar o que lhe devia. Isto é,
de novo, estamos no plano dos procedimentos arbitrários e aventureiros, com lances de
sorte que são decisivos em contraste com o cálculo, a disciplina e a projeção racional
que garantem a sobrevivência na ilha e a fama do livro. Um burguês em busca de lições
de prosperidade teria de desobedecer a Rousseau e ler os lances secundários de Defoe
para alcançar o lucro necessário, numa ironia que resulta em consequências formais a
incidir no andamento da prosa, na ênfase do narrador, etc.
O peregrino relutante no trópico escravocrata

Oh, Lord, won’t you buy me a Mercedes Benz.


Janis Joplin
Ao ser resgatado com Xuri na costa noroeste da África, onde se encontrava fora-
gido depois de ter sido reduzido a escravo, Robinson é gentilmente recebido pelo capi-
tão do navio, que também trata de, na sequência, comprar Xuri. Os dois cavalheiros ex-
cedem-se em cortesia mútua e tratam de negociar o jovem muçulmano, com uma cláu-
sula que satisfaz Robinson: “Contudo, quando transmiti meus motivos ao Capitão, ele
concedeu que eram justos e me ofereceu um meio-termo: que ele assumiria diante do
rapaz a obrigação de dar-lhe a alforria dentro de dez anos, se ele se tornasse Cristão. Di-
ante disso, como Xuri concordava em ir para ele, deixei que passasse a ser do Capitão”
(DEFOE, 2011, p. 83). Depois da cordial negociação escravista, o navio aporta no Bra-
sil, ou Brasis, como saborosamente refere Defoe e a excelente tradução de Sergio
Flaksman mantém. Ou melhor, chega-se à Bahia, mais especificamente, à Salvador de

47
meados dos seiscentos, onde o aventureiro inglês poderia cruzar com Gregório de Matos
Guerra e ouvir falar de um ilustre padre Vieira. O parágrafo é curto e enfático:

Fizemos uma ótima travessia até os Brasis, e chegamos à Baía de Todos os Santos,
no porto de São Salvador, dali a cerca de vinte e dois dias. Agora eu tinha sido sal-
vo outra vez da mais miserável de todas as condições. E precisava ponderar o que
faria a seguir da minha vida. (DEFOE, 2011, p. 83)

Mas bem tratado pelo capitão do navio, Robinson não tem de que se queixar,
pois tudo que carregava em seu pequeno barco ao ser resgatado pode tornar-se mercado-
ria: pele de leopardo, pele de leão, caixa de garrafas, duas armas, etc. “Numa palavra,
acumulei cerca de duzentos e oitenta pesos duros de prata com minha carga; e com esse
patrimônio desembarquei nos Brasis” (DEFOE, 2011, p. 83).
Munido de algum cabedal e não pouca sorte, Robinson trata de se dirigir a um
engenho (“a saber, uma plantação de cana e uma casa de refino de açúcar”) onde se fa-
miliariza com as técnicas de produção e percebe como viviam e enriqueciam os proprie-
tários coloniais. Ato contínuo, trata de comprar o máximo de terra que consegue e põe-
se a plantar alimentos e dali a pouco algum tabaco, além de manter contato com um
proprietário vizinho filho de ingleses, mas nascido em Lisboa. Burguês de bom cálculo,
Robinson lamenta a ausência de seu escravo juvenil: “Mas ambos precisávamos de
mãos; e agora eu percebia, mais que antes, que tinha errado ao me desfazer do meu ra-
paz Xuri” (DEFOE, 2011, p. 84).
Esta percepção deflagra a intervenção do narrador remetendo às páginas iniciais
do romance, quando optou por uma vida de aventura em detrimento dos conselhos pa-
ternos. A intervenção consiste em um parágrafo razoavelmente longo que transcreve-
mos abaixo. O tom patético da reflexão contrasta a frase curta e calculista já citada, de
lamento escravocrata pelo desatino de ter cedido Xuri ao Capitão português.

Infelizmente, porém, que eu sempre decidisse errado não era novidade. E agora não
tinha remédio senão seguir em frente. Tinha começado uma empresa muito distante
do meu temperamento, e diretamente contrário à vida que me dava prazer, pela
qual abandonei a casa do meu pai e ignorei todos os seus bons conselhos; não, eu
estava ingressando numa situação intermediária, ou na camada mais alta das posi-
ções inferiores, como meu pai me aconselhou antes, e que, se eu tivesse decidido
seguir, era o mesmo que ter ficado em casa, sem nunca me dar a todas aquelas fa-
digas mundanas. E eu costumava sempre dizer a mim mesmo que poderia ter ganho
o mesmo na Inglaterra, em meio aos meus amigos, do que a cinco mil milhas de lá,
cercado de desconhecidos e selvagens em terras por desbravar, e a tal distância que
nunca teria noticias da parte do mundo onde tinham algum conhecimento de minha
existência. (DEFOE, 2011, p. 84-85)

Os leitores um pouco familiarizados com a retórica entre complacente e patética


do narrador Crusoe recordarão várias passagens depois dessa em que se lamenta a falta
de discernimento e sabedoria que enfiam o herói em episódios desgraçados nos quais a
providência divina também é mencionada como irremediável e misteriosa. A posterida-
de compreenderá Robinson como um talentoso indivíduo em meio às adversidades do
mundo em vias de mercantilização, já o próprio Robinson se percebe, em geral, como
um protestante, um crente submetido à vontade divina, ou, ainda, um “peregrino relu-
tante”, na fórmula do crítico J. Paul Hunter, citado na introdução de John Richetti:

Os puritanos e outros protestantes devotos do século XVII e do início do XVIII


eram estimulados a manter diários religiosos e a escrever autobiografias espirituais,

48
relatos de como lhes ocorria a sensação de ter sido salvos, registros dos sentimen-
tos mais profundos que deviam garantir-lhes que eram alvo da graça divina, esti-
mulando-os a ter sempre em mente seu destino espiritual mais alto. O romance de
Defoe, produzido nesse período, encaixa-se no modelo, e pode se dizer que essa
abordagem foi sancionada pelo próprio Defoe, ao publicar, em 1720, Serious Re-
flections during the Life and Surprising Adventures of Robinson Crusoe (Sérias re-
flexões durante a vida e as surpreendentes aventuras de Robinson Crusoé), coletâ-
nea de ensaios e meditações religiosas apresentadas como reflexões religiosas de
Crusoé acerca do sentido de sua história. Ele desperta da indiferença religiosa e es-
piritual para a ideia da intervenção providencial de Deus em sua vida. Por mais
complexas e particulares que sejam as ocorrências de sua vida, acabam tomando
em sua mente a forma da narrativa central da salvação cristã. (RICHETTI, 2011, p.
25-6)

Para nossos fins neste ensaio, um peregrino relutante assediado por apelos es-
cravistas (o adeus precoce a seu Xuri, etc.) que lhe deflagram a reflexão sobre conselhos
paternos, sobre sua vontade um tanto rebelde, e o paradoxo de estar cumprindo os dese-
jos paternos a cinco mil milhas de distância da Inglaterra entre súditos católicos em um
trópico exportador. Paradoxo que só pode se tornar evidente mediante a razão capaz de
discernir interesses e posição de classe (“camada mais alta das posições inferiores”), em
um exercício de sociologia rudimentar que dá toque moderno aos remorsos do filho
pródigo de extração bíblica.
Em outros termos, estamos diante de uma prosa complexa e vívida em que os
motivos religiosos adotados por Robinson são contrastados pelo ímpeto empreendedor e
aventureiro do personagem que pode oscilar entre contrição cristã e cobiça individualis-
ta na vertigem de um parágrafo a outro, o que relativiza e determina melhor o purita-
nismo de Crusoé: “Agressivo e enérgico, independente e produtivo, Robinson também
se define, com o tempo, por sua paciente submissão à vontade de Deus, por sua aceita-
ção devota de um destino misterioso que não tem como alterar” (RICHETTI, 2011, p.
21).
Retornando à narrativa na altura em que a deixamos, isso é, com Robinson la-
mentando não dispor dos bons serviços de Xuri, deflagra-se uma série de bem-sucedidas
manobras da personagem para reaver cabedal, inclusive o que se encontrava na distante
Inglaterra. O resultado é que o previdente e organizado inglês alcança forte prosperida-
de, em parte resultado da revenda de bens manufaturados sob alta demanda na Bahia co-
lonial:

E ainda não era tudo. Minhas mercadorias sendo todas de manufatura inglesa, co-
mo tecidos, malhas, baetas e outros artigos especialmente valiosos e desejados na
terra, encontrei meios de vender tudo com grande lucro; de maneira que posso di-
zer que apurei mais de quatro vezes o valor da minha carga inicial, e fiquei infini-
tamente melhor que meu pobre vizinho, digo, no progresso da minha propriedade,
pois a primeira coisa que fiz foi comprar um escravo negro, além de um criado eu-
ropeu, sem contar aquele que o Capitão me trouxe de Lisboa. (DEFOE, 2011, p.
87)

E aqui se registra o movimento que leva da importação de manufaturas inglesas


para a aquisição de criados e de um escravo negro a fim de que melhor se produzam
bens exportáveis, assim o progresso técnico britânico intensifica a produção escravista
em uma fazenda de tamanho médio que promete estabilidade e lucros, mas que não sa-
tisfaz o irrequieto pecador em pauta:

49
Tivesse eu persistido na posição em que agora me encontrava, haveria espaço para
todas as coisas felizes visando as que meu pai me recomendava com tanto empe-
nho, uma vida tranquila e retirada, e das quais me disse, com tanta sensatez, ser re-
pleta a vida numa condição intermediária. (...)Todos esses extravios foram provo-
cados por minha adesão obstinada à minha tola inclinação pelas viagens ao estran-
geiro, e por ter cedido a essa inclinação, contradizendo as visões mais claras do
meu próprio bem, perseguindo de maneira justa e limpa os projetos e os recursos
que a Natureza e a Providência concorriam em me conceder e apontar como meu
dever. (DEFOE, 2011, p. 88)

De fato, Robinson deixa-se levar por sua inclinação pelas viagens e dispõe-se a
abandonar sua situação próspera e segura para aderir a um negócio talvez mais perigoso,
mas sem dúvida muito rendoso, não tivesse o capitalismo mercantil avançado em seu
ímpeto a ponto de transformar homens em mercadorias. Um Deus tão avassalador quan-
to o dos templos protestantes e católicos então se manifestava nas rotas atlânticas a unir
América e África: Robinson demonstra aqui uma devoção peculiar a esta força abstrata,
mas de fins nem tão inescrutáveis.
Os proprietários vizinhos na Bahia mantinham conversa muito interessante com
Robinson, que fala a língua local com fluência e os informa de suas viagens a Guiné e
se refere “à maneira como se comerciava com os Negros de lá, e como era fácil negoci-
ar naquela costa, trocando ninharias como miçangas, brinquedos, facas, tesouras, ma-
chadinhas, pedaços de vidro e coisas parecidas não só por pó de ouro, pimenta malague-
ta, presas de elefante etc., mas também por Negros em grande número para a servidão
nos Brasis” (DEFOE, 2011, p. 89). Diante de um interlocutor tão bem informado, os co-
lonos bahianos chegam à conclusão de que cabe proceder a uma expedição negreira pa-
ra abastecimento próprio, uma vez que não possuíam concessão régia para praticar a
venda de escravos nos Brasis:

(...) que como era um tráfico que não se podia praticar, pois não seria possível ven-
der publicamente os Negros que viessem, desejavam fazer uma única viagem, tra-
zendo Negros para suas terras particulares, dividindo o total entre suas proprieda-
des; numa palavra, a questão era se eu aceitava embarcar como comissário daquela
carga no navio, encarregado das negociações na costa da Guiné. E me propuseram
que eu ficaria com uma parte igual de Negros, sem precisar contribuir com dinheiro
algum para a empresa. (DEFOE, 2011, p. 90)

Robinson no próximo parágrafo lamenta sua imprevisão que o leva a embarcar


de comissário negreiro, pois se encontrava progredindo rápido e em breve teria alcança-
do, explorando sua propriedade, “uma fortuna de três ou quatro mil libras esterlinas, no
mínimo” (DEFOE, 2011, p. 90). E depois da avaliação relativamente negativa, o narra-
dor-personagem volta a lamentar sua disposição aventureira que o leva a não recusar a
proposta, que ele reconhece ser boa e rendosa, “da mesma forma como não fui capaz de
conter meus primeiros desígnios errantes quando não dei ouvidos aos bons conselhos do
meu pai” (DEFOE, 2011, p. 90).
Note-se que o motivo da imprevidência novamente deságua na denúncia de sua
incapacidade para aceitar os conselhos paternos, trazendo para o circuito patriarcal e
familista a avaliação dos procedimentos comerciais, agora dentro das rotas do tráfico
escravista. Mas depois da evocação da longínqua autoridade paterna, Robinson, consci-
ente dos riscos da viagem, trata de assinar documentos e preparar acordos para que sua
propriedade permaneça prosperando no Brasil, chegando a elaborar um testamento. A
configuração é de um capitalista aventureiro ma non troppo, disposto a estabelecer ga-

50
rantias e preparar documentos que resguardem seus direitos de propriedade. As evidên-
cias de que se incorre literalmente de um risco calculado são variadas e quase excessi-
vas, embora a ênfase retórica retrospectiva seja condenatória e um tanto supersticiosa:

Mas segui em frente, obedecendo cegamente aos ditames dos meus caprichos em
vez de ouvir a razão. E assim, o navio aparelhado e o carregamento concluído, tudo
segundo meu acordo com os sócios da viagem, subi a bordo em má hora, no dia 1º
de setembro de 1659, os mesmos dia e mês em que, oito anos antes, eu deixara meu
pai e minha mãe em Hull, rebelando-me contra a sua autoridade e me deixando le-
var estupidamente por meu próprio interesse. (DEFOE, 2011, p. 91)

Novamente parecemos lidar aqui com organização, disciplina e razão instrumen-


tal que mede, calcula e avalia, em contraste com o juízo moral que renega a própria ra-
cionalidade do procedimento, com o peregrino relutante embarcando em sua expedição
negreira que de fato vai levá-lo ao naufrágio no Caribe, ao largo da Ilha do Desespero
na qual passará longa temporada. Reconhecida a ênfase e o tamanho do comentário-
lamento, com o narrador interrompendo o relato dos preparativos para a viagem em no-
me da reflexão e da moral, o leitor um pouco desavisado pode relativizar o pragmatismo
e o interesse comercial em jogo, para se identificar com o narrador e concordar com ele.
É argumentável que é mesmo este o pacto de adesão procurado por Defoe, que não im-
pede o autor de expor em detalhes os preparativos que antecedem a viagem e as provi-
dências e atividades correspondentes, exposição que é decisiva para estabelecer a prosa
realista, na formulação de Franco Moretti.

E a mesma lógica é válida para os detalhes da prosa de apreensão literal: a signifi-


cância deles reside menos em seu conteúdo específico do que na precisão sem pre-
cedentes que eles introduzem no mundo. A descrição detalhada já não é reservada
para objetos excepcionais, como na longa tradição da écfrase: torna-se o modo
normal de observar as “coisas” desse mundo. Normal e valioso em si mesmo. Na
verdade, não faz diferença alguma se Robinson possui um jarro ou um pote de bar-
ro: o que é importante é a constituição de uma mentalidade que dá importância aos
detalhes mesmo quando eles não importam de imediato. A precisão pela precisão.
(MORETTI, 2014, p. 69)

O relato detalhado da expedição, entre outros episódios, de fato antecipa os pro-


cedimentos narrativos que imortalizarão Robinson enquanto burguês operoso em condi-
ções adversas, embora o negócio em curso seja muito menos palatável como operação
burguesa e civilizada. É de se perguntar sobre outra expedição negreira com tamanho
impacto na literatura ocidental.
Lisbon revisited ou o “Arranjei-me!” de Robinson Crusoé
... e o q não for vendido,
por alborque
de nossa mão passará, e trocaremos lavras por matas,
lavras por títulos, lavras por mulas, lavras por mulatas e arriatas,
q trocar é nosso fraco e lucrar é nosso forte.
Carlos Drummond de Andrade

A viagem à África resulta no célebre naufrágio “perto da embocadura do grande


rio Orinoco”, em que todos os ocupantes do navio morrem à exceção do narrador Ro-
binson. Na Ilha do Desespero, segundo o batismo de Robinson, fica definido o caráter
racional e organizado de Robinson Crusoé, cuja prosa detalhista enfatiza disciplina e
operosidade, como é de se esperar. “A precisão pela precisão”, nos termos de Moretti.

51
Na longa estada de vinte e oito anos, Robinson tem oportunidade de demonstrar várias
habilidades e recriar parte da natureza da ilha para seus fins. Daí que Jean Jacques Ro-
usseau considere que os episódios que interessam à boa educação sejam somente os que
se passam na ilha deserta, como notou Ian Watt em Mitos do individualismo moderno.

Quarto ponto a ser considerado: já que apenas a parte do romance passada na ilha
deserta lida com o indivíduo isolado, Rousseau quer que o livro – como escreve,
em um tom insolente – seja “despojado de todos os seus penduricalhos”; ele quer
que o livro comece pelo naufrágio e termine com o resgate de Crusoe. É claro que
essa alteração privaria o conto de Defoe, em boa medida, dos seus aspectos religio-
sos e punitivos; como um verdadeiro precursor dos românticos, Rousseau não acei-
tava a ideia de que a obediência ao pai e a Deus fosse meritória. Para Rousseau, a
ênfase deveria ser dada à autenticidade do indivíduo em relação aos seus próprios
sentimentos, ao passo que a ideia de um dever supremo teria de ser vista como um
subjetivismo antinomiano. (WATT, 1997, p. 180)

Como estamos argumentando aqui, tal amputação radical rosseauniana não pri-
varia o relato apenas de seus aspectos religiosos e punitivos, mas também de seu caráter
brasileiro, isto é, de aventura de rapina na borda do capitalismo, ou, ainda, de trajetória
lapidar no âmbito da acumulação primitiva do capital. Como na sequência vem a argu-
mentar Ian Watt, Rousseau ajuda a estabelecer um padrão em que Robinson Crusoé tor-
na-se uma síntese da “filosofia básica do individualismo” (WATT, 1997, p. 182), o que
configura um passo crucial rumo ao estabelecimento de Robinson enquanto mito do in-
dividualismo moderno, segundo Watt. Robinson Crusoé vem a ser “o épico dos que não
desanimam”, do homem só cujo desempenho lhe permite vencer as maiores dificulda-
des, talvez mesmo “uma obra na maior parte dedicada ao egocentrismo imune à crítica”
(WATT, 1997, p. 176).
Teríamos ali um homem comum que, ao ver-se só, revela-se capaz de submeter a
natureza a seus objetivos e triunfar na adversidade. A fábula meritocrática em que traba-
lho duro, disciplina, racionalidade e dedicação garantem a sobrevivência, a vitória moral
e a simpatia dos leitores. Mas não garante prosperidade, quando vem a ser resgatado es-
tá tão pobre quanto naufragou, seus esforços de tanto mérito foram para garantir sua so-
brevivência. É depois de ter ido a Londres e seguido para Lisboa a fim de conferir o que
restou de seus negócios que Robinson descobre-se rico, como notou Franco Moretti,
que trata de registrar certo paradoxo em que a riqueza não resultou, de forma alguma,
do trabalho de Robinson.

Trabalhar para si mesmo como se ele fosse outrem: é exatamente assim que Robin-
son funciona. Um lado dele se torna carpinteiro, ou oleiro, ou padeiro e passa se-
manas e semanas buscando executar alguma coisa: aí Crusoé, o patrão, aparece e
aponta a inadequação dos resultados. E em seguida o ciclo todo se repete diversas
vezes. E se repete porque o trabalho se tornou o novo princípio de legitimação do
poder social. Quando, no final do romance, Robinson se vê “senhor (...) de mais de
5 mil libras esterlinas” e de tudo o mais, seus 28 anos de labuta ininterrupta estão
ali para justificar sua fortuna. Realisticamente, não há nenhuma relação entre as
duas coisas: ele está rico por causa da exploração de escravos sem nome em sua
plantação no Brasil, ao passo que sua faina solitária não lhe rendeu uma libra se-
quer. Mas o vimos trabalhar como nenhum outro personagem: como é possível que
ele não mereça o que tem? (MORETTI, 2014, p. 39-40)

O trabalho e o esforço na ilha, que ocupam quase todo o livro, são princípio de
legitimação social, mas Defoe não pode ser acusado de escamotear a origem da súbita

52
riqueza de Crusoé: foi a propriedade escravista no Brasil que lhe rendeu a prosperidade.
A notícia é de tal ordem que há certo lirismo na enumeração dos procedimentos (contra-
tos, recolhimento de tributos, registros, etc.) que literalmente quase matam de felicida-
de:

Agora bem posso dizer, sem dúvida, que a parte final do livro de Jó é bem melhor
que o seu início. Seria impossível descrever aqui as palpitações do meu coração
quando percorri essas cartas, e especialmente quando me vi coberto por toda a mi-
nha riqueza, pois, como os navios do Brasil vinham sempre em comboios, as mes-
mas naus que traziam minhas cartas também carregavam os meus bens, e as mer-
cadorias já estavam a salvo no rio quando as cartas chegaram às minhas mãos.
Numa palavra, empalideci e passei mal; e se o velho não me trouxesse um cordial,
creio que aquela surpresa inesperada teria derrotado a Natureza e eu morreria ali
mesmo. (DEFOE, 2011, p. 375)

E Robinson prossegue dando conta de como um médico, ao saber do impacto da


riqueza em seu paciente, trata de sangrá-lo “(...) se aquele mal não tivesse sido aliviado
por aquele escoadouro criado para os espíritos, eu teria morrido” (DEFOE, 2011, p.
376). Não é para menos, Robinson se descobre “dono de mais de cinco mil libras ester-
linas em dinheiro e de vastos domínios, como bem podem ser chamados, nos Brasis,
que produziam mais de mil libras por ano, com a mesma segurança de uma propriedade
senhorial na Inglaterra” (DEFOE, 2011, p. 376). O desfecho daquela sempre lamentada
desobediência ao pai não poderia ser melhor, embora tenha muito de fantasia na caracte-
rização da honestidade, lealdade e devoção dos parceiros comerciais e patrimoniais do
circuito lisboeta e baiano de Crusoé. Não é fácil de acreditar que na ponta escravocrata e
aventureira do capitalismo os sócios garantiriam bens e receitas de um comissário ne-
greiro inglês depois de aproximadamente 30 anos. Aqui a fé britânica de Defoe no res-
peito aos contratos parece se misturar à fantasia de aventuras da tradição, de acordo com
Moretti:

Quanto ao êxito financeiro de Robinson, sua modernidade é no mínimo questioná-


vel: embora o romance não traga a parafernália mágica da história de Fortunatus,
que fora o principal predecessor de Robinson no panteão dos self-made men mo-
dernos, o modo como sua riqueza se acumula em sua ausência e lhe é posterior-
mente restituída (“160 moidores de Portugal em ouro”, “sete belas peles de leopar-
do”, “cinco caixas de bombons excelentes e cem peças de ouro sem cunhar”, “mil e
duzentas caixas de açúcar, oitocentos rolos de fumo e o resto da conta toda em ou-
ro”) ainda tem muitíssimas coisas dos contos de fada. (MORETTI, 2014, p. 37-8)

Que de resto é assinalado pelo andamento da narrativa no desfecho do relato,


ainda Moretti:

Do aventureiro capitalista ao senhor que trabalha. No entanto, à medida que o ro-


mance se aproxima do fim, há uma segunda guinada: canibais, conflito armado,
amotinados, lobos, ursos, fortuna de conto de fadas... Por quê? Se a poética da
aventura fora “moderada” pelo seu oposto racional, por que prometer contar “al-
guns episódios muito surpreendentes de outras aventuras minhas” na última frase
do romance? (MORETTI, 2014, p. 42)

Retomando o registro certeiro de Moretti ali atrás, não há fantasia alguma em es-
tabelecer que a riqueza de Robinson provém da “exploração de escravos sem nome em
sua plantação no Brasil”. Aqui Defoe foi de um bom senso ameno e amoral, que não
aposta meio guinéu na versão meritocrática do trabalho recompensado, mas trata de

53
evidenciar o quanto o trabalho extenuante gera a riqueza alheia. O (realismo?) fantástico
é que os responsáveis pelo bom andamento da plantation brasileira venham a cumprir
os termos de um contrato celebrado por, digamos, brasileiros da geração anterior, trinta
anos antes. Se non è vero è ben trovato, poderia dizer um compatriota de Franco Moret-
ti. Por outro lado, há alguma evidência que corrobora, ao menos no plano ficcional, o
andamento fantasioso na aquisição de riqueza no lombo dos africanos escravizados. Na
Literatura Brasileira, num dos raros momentos em que se refere uma outra expedição
negreira, o desfecho também é lance de sorte. Estou me referindo ao capítulo nove “O -
arranjei-me! - do Compadre”, em Memórias de um sargento de milícias, o já clássico
romance de Manuel Antônio de Almeida. É capítulo no início do romance, que narra,
em retrospectiva, o método pelo qual o Compadre, que cria e sustenta materialmente
Leonardo dos sete anos até a juventude, adquiriu o patrimônio que lhe permite viver em
relativo conforto.
Na condição de homem pobre, o Compadre era um barbeiro e sangrador percor-
rendo as ruas do Rio de Janeiro apenas com uma bacia, navalhas e lancetas. Ao prestar
serviço, em plena rua, a um marinheiro, é convidado a embarcar em um navio que “via-
java para a Costa e ocupava-se no comércio de negros; era um dos combóis que traziam
fornecimento para o Valongo, e estava pronto a largar” (ALMEIDA, 2000, p. 115). Isto
é, trata-se de um navio rumo à África em busca de escravos. Depois de alcançar sucesso
salvando marinheiros e carga humana, o Compadre sangra, já na viagem de retorno ao
Rio de Janeiro, o capitão do navio, que adoecera. Mas o capitão do navio morre e o dei-
xa encarregado de entregar uma boa quantia de dinheiro à sua filha, a qual jamais recebe
o dinheiro. A traição da vontade do moribundo rende a estabilidade do compadre, que
por sua vez garante a boa vida da infância e juventude de Leonardo, o “nosso memoran-
do” para usar os termos de Manuel Antônio de Almeida. Assim, sendo é patrimônio de-
rivado do tráfico escravista que permite certo desafogo ao homem livre, que pode assim
sustentar sem maior esforço, mas sempre barbeando os clientes, a personagem que virá
a se tornar sargento de milícias. Não há nenhum sinal de condenação moral aqui, o em-
preendimento escravista está totalmente naturalizado, o que rende o toque transgressivo
ao “arranjei-me” é o descumprimento da vontade do capitão defunto.
Assim, há um pitoresco, e um tanto sinistro, encontro entre a estabilidade do he-
rói malandro de Almeida e a prosperidade do herói burguês de Defoe, ambos às voltas
com a sorte que lhes fornece patrimônio advindo dos negócios escravistas. Com um pé
no lance maravilhoso (“fortuna de conto de fadas”), os episódios lidam também com o
primitivo procedimento médico da época, com o Compadre enquanto sangrador, e Ro-
binson Crusoé sendo sangrado, o que aumenta a similitude dos casos.
Não se trata aqui de forçar um alinhamento entre os dois romances que cairia no
arbitrário, mas sim de notar que a aproximação procede, acho, ao enfatizar o lado aven-
tureiro das duas personagens e ao iluminar semelhanças no aproveitamento de temas e
formas induzidas pela experiência na periferia do capitalismo, a qual parece marcar
mesmo um ilustre representante do individualismo burguês em seus primórdios quando
ele se aventura nas margens e pelas águas do Atlântico Sul.
Referências
ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias. Apresentação e
notas Mamede Mustafa Jarouche. Cotia: Ateliê, 2000.
CANDIDO, Antonio. Dialética da malandragem. In O discurso e a cidade. São Paulo:
Duas Cidades, 1993.

54
DEFOE, Daniel. Robinson Crusoé. Trad. Sergio Flaksman. São Paulo: Penguin Classics
Companhia das Letras, 2011.
MORETTI, Franco. O burguês: entre a história e a literatura. Trad. Alexandre Mora-
les. São Paulo: Três Estrelas, 2014.
RICHETTI, John. Introdução. In DEFOE, Daniel. Robinson Crusoé. Trad. Sergio
Flaksman. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
WATT, Ian. A ascensão do romance: estudos sobre Defoe, Richardson e Fielding.
Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
___. Mitos do individualismo moderno: Fausto, Dom Quixote, Dom Juan, Robinson
Crusoe. Trad. Mario Pontes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.

55
História, História da literatura, História da tradução: a tarefa-renúncia61
Karina de Castilhos Lucena62
Resumo
Este texto propõe entender a noção tarefa-renúncia (Aufgabe), de Walter Benjamin, como um procedi-
mento orientador para a escrita de histórias. Encontramos em textos de Benjamin orientações sobre a tare-
fa do historiador, do historiador literário, do crítico e do tradutor. A proposta aqui é utilizar as premissas
benjaminianas sobre a escrita da história e da história literária para pensar a história da tradução. Para
ilustrar o argumento, apresentamos dois exemplos de histórias da tradução que poderiam ser compreendi-
das a partir do modelo benjaminiano exposto aqui: La Constelación del Sur: traductores y traducciones
en la literatura argentina del siglo XX, de Patricia Willson (2004) e Borges y la traducción: la irreveren-
cia de la periferia, de Sergio Waisman (2005).
Palavras-chave: Walter Benjamin. História da tradução. Literatura argentina.
Abstract
The aim of this text is to take Walter Benjamin's concept of task/renunciation (Aufgabe) as a guiding pro-
cedure to the writing of histories. In Benjamin's texts we find guidelines about the task of historians, liter-
ature historians, critics and translators. What we propose here is to use Benjamin’s premises about the
writing of History and Literature History to conceive the History of Translation. To elucidate our point,
we present two examples of Histories of Translation that could be understood by way of the Benjamin’s
model exposed in the text: Patricia Willson’s La Constelación del Sur: traductores y traducciones en la
literatura argentina del siglo XX (2004) and Sergio Waisman’s Borges and translation: the Irreverence
of the Perifhery (2005).
Keywords: Walter Benjamin. History of Translation. Argentine Literature.
O ensaio A tarefa do tradutor (1921), de Walter Benjamin, é um clássico da teo-
ria da tradução. Para o português, o texto tem pelo menos quatro traduções que, a cada
nova edição, passa por revisão dos tradutores, numa mostra da vitalidade do ensaio63.
Por exemplo, Susana Kampff Lages, tradutora que a cada nova edição do texto, revisa-o
e atualiza-o: em 2001 e 2008 traduziu o título por A tarefa-renúncia do tradutor, alte-
rando para A tarefa do tradutor em edições de 2010 e 201164. Nessa última edição –
presente no livro Escritos sobre mito e linguagem, com textos de Benjamin escritos en-
tre 1915 e 1921, organização, apresentação e notas de Jeanne Marie Gagnebin – a edito-
ra registra em nota:

No original, “Die Aufgabe des Übersetzers”. O verbo aufgeben, do qual provém o


substantivo Aufgabe, significa “entregar”, no duplo sentido do termo: “dar” (geben)
algo a alguém para que cuide disso (por exemplo, entregar uma carta ao correio),
mas também dar algo a alguém, abrindo mão da posse do objeto (por exemplo, en-
tregar uma cidade ao inimigo). A segunda acepção é mais forte no uso intransitivo
do verbo: ich gebe auf – “renuncio”, “desisto”, “me entrego”. Essa ambivalência
está presente no substantivo Aufgabe, entendido como “proposta”, “tarefa”, “pro-

61
Revista Linguagem & Ensino (UFPEL). v. 22, n. 2, 2019. Endereço:
https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/rle/issue/view/893/showToc.
62
Professora do Instituto de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul - UFRGS. Orcid: http://orcid.org/0000-0001-5254-514X.
63
Uma edição reunindo quatro traduções do ensaio de Benjamin para o português foi organizada por Lu-
cia Castello Branco: A tarefa do tradutor, de Walter Benjamin: quatro traduções para o português. Belo
Horizonte: FALE/UFMG, 2008.
64
Conheço as seguintes edições da tradução de Suzana Lages para o ensaio de Benjamin: em 2001, HEI-
DERMANN, Werner (org.). Clássicos da teoria da tradução: alemão-português. Florianópolis: UFSC;
em 2008, na edição de Lucia Castello Branco citada na nota anterior; em 2010, na segunda edição, revi-
sada e ampliada, do livro organizado por Werner Heidermann; e em 2011, na edição de Escritos sobre mi-
to e linguagem, a cargo de Jeanne Marie Gagnebin, para a Editora 34.

56
blema a ser resolvido”, mas no qual ressoam também as ideias de “renúncia” e “de-
sistência”. (GAGNEBIN in BENJAMIN, 2013, p. 101)

Proponho entender tarefa-renúncia como um procedimento benjaminiano para


além do canônico ensaio sobre o tradutor. Baseio essa premissa na recorrência da noção
em outros ensaios de Benjamin: João Barrento, editor e tradutor dos textos de Benjamin
reunidos em Linguagem, Tradução, Literatura65, inclui nesse livro A tarefa do tradutor
e A tarefa do crítico (1931). A argentina Mariana Dimópulos deu o título La tarea del
crítico para a sua edição de textos de Benjamin66. Jeanne Marie Gagnebian e Marcos
Lutz Müller, em sua tradução das teses Sobre o conceito de história (1940)67, registram
a tarefa do historiador segundo Benjamin. Minha ignorância em língua alemã me impe-
de de rastrear a Aufgabe nos originais de Benjamin. Por outro lado, a consistente tradi-
ção brasileira de crítica e tradução de Walter Benjamin me dá segurança para conjectu-
rar que tarefa-renúncia é mais do que um problema tradutório pontual; pode ser uma
noção iluminadora para o debate sobre escrita da história, da história literária e da histó-
ria da tradução.
A tarefa-renúncia do historiador
Não parece absurdo afirmar que as teses Sobre o conceito de história são para a
teoria da história o que A tarefa do tradutor representa para a teoria da tradução: um
texto fundacional. Em ambos os campos – a história e os estudos de tradução –, Benja-
min é nome incontornável, embora certa heterodoxia de pensamento (a fusão entre mes-
sianismo e materialismo, para ficar na ambiguidade mais evidente) não o localize ple-
namente em nenhuma área. Longe de constituir demérito, essa perspectiva de viés, de
quem exerce a liberdade do forâneo, provavelmente seja uma das potências do pensa-
mento benjaminiano, sempre desconfiado dos dogmatismos de sua época.
As teses Sobre o conceito de história são daqueles textos de espantosa comple-
xidade. Nas palavras de Jeanne Marie Gagnebin:

Ora, um dos grandes buracos negros do pensamento de Benjamin é certamente, e


apesar de várias interpretações simpáticas, mas redutoras, sua teoria da história,
mais especificamente da escritura da história e de sua ligação com uma prática
transformadora, ao mesmo tempo redentora e revolucionária. O que é, então, esta
narrativa salvadora que evocam as famosas teses “Sobre o Conceito de História” e
quem é este “historiador materialista” que saberia dizê-lo, enraizado na experiência
coletiva dos vencidos? (2013, p. 1)

Não conseguiria responder a essas perguntas, e mesmo correndo o risco da leitu-


ra redutora, vou isolar quatro das teses, na tentativa de demonstrar a tarefa-renúncia do
historiador:

65
BENJAMIN, Walter. Linguagem, tradução, literatura (filosofia, teoria e crítica). Edição e tradução de
João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.
66
BENJAMIN, Walter. La tarea del crítico. Edição de Mariana Dimópulos, tradução de Ariel Magnus.
Buenos Aires: Eterna Cadencia, 2017.
67
Utilizo a tradução presente em LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio – Uma leitura
das teses “Sobre o conceito de história”. Tradução de Wanda Nogueira Caldeira Brant. Tradução das te-
ses Jeanne Marie Gagnebian e Marcos Lutz Müller. São Paulo: Boitempo, 2005.

57
- Tese VI: “Articular o passado historicamente não significa conhecê-lo ‘tal como
ele propriamente foi’. Significa apoderar-se de uma lembrança tal como ela lampe-
ja num instante de perigo [...]”. (2005, p. 65)

- Tese VII: “[...] Nunca há um documento de cultura que não seja, ao mesmo tem-
po, um documento de barbárie. E, assim como ele não está livre da barbárie, tam-
bém não o está o processo de sua transmissão, transmissão na qual ele passou de
um vencedor a outro. Por isso, o materialista histórico, na medida do possível, se
afasta dessa transmissão. Ele considera como sua tarefa escovar a história a contra-
pelo”. (2005, p. 70)

- Tese IX: “Existe um quadro de Klee intitulado ‘Angelus Novus’. Nele está repre-
sentado um anjo, que parece estar a ponto de afastar-se de algo em que crava o seu
olhar. Seus olhos estão arregalados, sua boca está aberta e suas asas estão estiradas.
O anjo da história tem de parecer assim. Ele tem seu rosto voltado para o passado.
Onde uma cadeia de eventos aparece diante de nós, ele enxerga uma única catástro-
fe, que sem cessar amontoa escombros sobre escombros e os arremessa a seus pés.
Ele bem que gostaria de demorar-se, de despertar os mortos e juntar os destroços.
Mas do paraíso sopra uma tempestade que se emaranhou em suas asas e é tão forte
que o anjo não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente pa-
ra o futuro, para o qual dá as costas, enquanto o amontoado de escombros diante
dele cresce até o céu. O que nós chamamos de progresso é essa tempestade”.
(2005, p. 87)

- Tese XVII: “O Historicismo culmina de direito na história universal. Dela se des-


taca, pelo seu método, a historiografia materialista, de maneira talvez mais clara do
que qualquer outra. A primeira não tem armação teórica. Seu procedimento é aditi-
vo: ela mobiliza a massa dos fatos para preencher o tempo homogêneo e vazio. À
historiografia materialista subjaz, por sua vez, um princípio construtivo. Ao pensar
pertence não só o movimento dos pensamentos, mas também a sua imobilização.
Onde o pensamento se detém repentinamente numa constelação saturada de ten-
sões, ele confere à mesma um choque através do qual ele se cristaliza como môna-
da. O materialismo histórico se acerca de um objeto histórico única e exclusiva-
mente quando este se apresenta a ele como uma mônada”. (2005, p. 130 – todos os
grifos são meus)

Nas quatro teses, parece haver crítica a certo modelo historicista acumulativo, li-
near, em que o historiador pretensamente neutro acessa o passado tal como ele foi e o
organiza progressivamente rumo a um futuro. Benjamin indica que o centro de uma his-
toriografia que resiste a esse modelo estaria nos “instantes de perigo”, na dialética cultu-
ra/barbárie, na visada a contrapelo, nos escombros mais que na tempestade, na mônada
– essa “constelação saturada de tensões”. Para além do caráter messiânico e revolucio-
nário dessa concepção (que reafirma a complexidade das teses) quero evidenciar o apor-
te metodológico ali contido, a orientação para todos que nos dedicamos à escrita de his-
tórias.
Nesse sentido, a ideia de mônada parece ter grande valor. Segundo Löwy, “a
rememoração tem por tarefa, segundo Benjamin, a construção de constelações que li-
gam o presente e o passado. Essas constelações, esses momentos arrancados da conti-
nuidade histórica vazia, são mônadas, ou seja, são concentrados da totalidade histórica”
(2005, p. 131). A tarefa do historiador seria, então, reconhecer essas mônadas, identifi-
car esses concentrados de tensões que iluminam o todo. O historiador renunciaria, as-

58
sim, à grande narrativa linear em prol dos pequenos eventos que, metonimicamente,
lançam luz na totalidade do processo68.
A tarefa-renúncia do historiador literário
Ao pensar a história literária, Benjamin também faz uso de um raciocínio meto-
nímico. Em texto de 1931, História literária e ciência da literatura, publicado no jornal
alemão Die literarische Welt69, o autor, após avaliar diferentes histórias da literatura
alemã escritas da primeira metade do XIX até o seu tempo, cita Walter Muschg:

Quanto ao presente, pode dizer-se que ele está, nos seus trabalhos essenciais, quase
exclusivamente orientado para a monografia. A geração atual perdeu em grande
parte a crença no sentido de uma representação global. Em vez disso, confronta-se
com figuras e problemas que, naquela época das histórias universais, lhe pareciam
primar pela ausência”. (apud BENJAMIN, 2018, p. 138)

Benjamin referenda a leitura de Muschg – de que a tarefa do historiador literário


estaria orientada para a monografia, figuras e problemas pontuais em detrimento de uma
história global – e acrescenta:

Confronta-se [a geração atual de historiadores literários] com figuras e problemas –


pode ser que esteja certo. Na verdade, o que acima de tudo devia fazer seria con-
frontar-se com as obras. O ciclo global de vida e de influência das obras deve ser
tratado com igualdade de direitos, e mesmo preponderância, em face da história da
sua gênese, ou seja: o seu destino, a recepção pelos contemporâneos, as traduções,
a sua fama. Dessa forma, a obra configura-se no seu interior como um microcosmo,
ou melhor, como um micro-eon. Porque não se trata, realmente, de apresentar as
obras literárias no contexto geral do seu tempo, mas sim de levar à representação,
no tempo em que surgiram, do tempo que as reconhece – e que é o nosso. E assim a
literatura se transforma num organon da História. E a tarefa da história literária é
transformá-la nisso, e não as obras escritas em materiais da História. (BENJAMIN,
2018, p. 138)

A obra literária como um microcosmo, como um micro-eon que ilumina o todo.


Parece haver semelhança entre esse raciocínio e a mônada apresentada anteriormente.
Além disso, Benjamin acrescenta que a análise literária não se presta a somente com-
preender a gênese da obra: deve ocupar-se de seu “ciclo global de vida”, que inclui re-
cepção, tradução e prestígio. Esse tipo de análise localiza o historiador literário no pre-
sente, reforçando a ideia de constelação, tão cara a Benjamin. Nessa perspectiva, a tare-
fa da história literária é estabelecer uma relação dinâmica entre literatura e história, des-
viando-se de certo paradigma enciclopedista. No mesmo texto, Benjamin afirma: “só
uma ciência que renuncia ao seu estatuto de museu consegue colocar o real no lugar da
ilusão” (2018, p. 136).
Em sua atuação como crítico e historiador literário, Benjamin parece ter renun-
ciado a um modelo historiográfico totalizante que costumamos associar ao positivismo.

68
Não desconhecemos o debate sobre micro e macro-história – a necessidade de considerar a escala na
escrita da história – que ocupa os historiadores pelo menos desde os anos 1980. Não o aprofundaremos
por fugir ao objetivo deste texto, centrado na perspectiva de Walter Benjamin que, além de alicerçar a te-
oria da história, também serve de base para a história literária e a história da tradução.
69
Utilizo a versão disponível em BENJAMIN, Walter. Linguagem, tradução, literatura (filosofia, teoria e
crítica). Edição e tradução de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica, 2018.

59
Michel Löwy defende que as análises de Benjamin põem em prática o paradigma da
mônada defendido por ele:

Os trabalhos de W. Benjamin sobre Baudelaire são um bom exemplo da metodolo-


gia proposta nessa tese [a XVII de Sobre o conceito de história, citada anterior-
mente]: trata-se de descobrir em As flores do mal uma mônada, um conjunto crista-
lizado de tensões que contêm uma totalidade histórica. Nesses escritos, desarraiga-
dos do curso homogêneo da história, encontra-se conservada e reunida toda a obra
do poeta, nesta, o século XIX francês, e, nesse último, “todo o curso da história”. A
obra “maldita” de Baudelaire guarda o tempo como uma semente preciosa. (2005,
p. 132-133)

Assim, tanto o historiador quanto o historiador literário benjaminianos renunci-


am a uma norma da acumulação de dados organizados linearmente a favor de um mode-
lo que identifica pontos de tensão que, analisados verticalmente, possibilitam a compre-
ensão para além deles. Embora Benjamin não tenha se dedicado a pensar na tarefa do
historiador da tradução, poderíamos aventar que este operaria em chave aproximada à
dos historiadores por ele pautados. Partindo dessa premissa, poderíamos conjecturar so-
bre a tarefa do historiador da tradução, seguindo também algumas pistas deixadas por
Benjamin em A tarefa do tradutor.
A tarefa-renúncia do historiador da tradução
Em A tarefa do tradutor70, Benjamin também contrapõe seu raciocínio ao que ele
chama de “defunta teoria da tradução” (2013, p. 108), num movimento semelhante ao
adotado nas teses Sobre o conceito de história e no ensaio História literária e ciência
da literatura; podemos entender os três textos a partir da chave tarefa-renúncia: Benja-
min define a tarefa (do historiador, do historiador/crítico literário, do tradutor) em opo-
sição, ou seja, renunciando, a algo que está posto.
No caso do ensaio sobre o tradutor, o “inimigo” é certa teoria tradicional de tra-
dução centrada na noção de fidelidade e na imutabilidade do original. Benjamin defende
a historicidade do original e, com isso, sua transformação e renovação: o original se
modifica (2013, p. 107). A tradução aparece, então, como responsável pela vida do ori-
ginal:

[...] cada tradução de uma obra representa, a partir de determinado período da his-
tória da língua e relativamente a determinado aspecto de seu teor, tal período e tal
aspecto em todas as outras línguas. A tradução transplanta, portanto, o original para
um domínio – ironicamente – mais definitivo da língua [...]. Não por acaso, a pala-
vra “ironicamente” faz lembrar argumentações dos românticos. Eles possuíram, an-
tes de outros, uma consciência da vida das obras, cujo mais alto testemunho é dado
pela tradução. (BENJAMIN, 2013, p. 111)

A relativização da primazia do original e a positivação da tarefa do tradutor pre-


sentes no ensaio de Benjamin redefinem a teoria da tradução, um impacto semelhante ao
das teses para a teoria da história, o que nos leva a propor que se fundíssemos esses dois
textos, chegaríamos à tarefa do historiador da tradução segundo Benjamin.

70
Utilizo a tradução de Susana Kampff Lages incluída em BENJAMIN, Walter. Escritos sobre mito e
linguagem. Organização, apresentação e notas de Jeanne Marie Gagnebin. Tradução de Susana Kampff
Lages e Ernani Chaves. São Paulo: Editora 34, 2013.

60
Vale lembrar que A tarefa do tradutor é o prólogo de Benjamin para sua tradu-
ção de Quadros parisienses, seção de As flores do mal, de Baudelaire, autor a quem
Benjamin dedicou parte relevante de seu trabalho crítico – sua mônada, na interpretação
de Löwy citada anteriormente. Poderíamos entender o exercício benjaminiano com uma
imagem: círculos concêntricos. No primeiro círculo está o Benjamin tradutor, que des-
faz e refaz a poesia de Baudelaire, conhece-a em seu plano mais elementar, essencial, e
depois valoriza o trabalho tradutório no famoso prólogo. No círculo seguinte, está o
Benjamin crítico, sua leitura iluminadora da poesia de Baudelaire, que dispara o próxi-
mo círculo – o âmbito da história – o quanto essa leitura nos ensina sobre o XIX fran-
cês.
Usei a metáfora geométrica porque é possível associá-la, me parece, à mônada
benjaminiana, esse concentrado de tensões. Em A tarefa do tradutor, Benjamin também
recorre a uma imagem geométrica para definir o cruzamento entre tradução e original:

Sendo assim, o que resta de significativo para o sentido na relação entre tradução e
original pode ser apreendido numa comparação: da mesma forma como a tangente
toca a circunferência de maneira fugidia e em um ponto apenas, sendo esse contato,
e não o ponto, que determina a lei segundo a qual ela continua sua via reta para o
infinito, a tradução toca fugazmente, e apenas no ponto infinitamente pequeno do
sentido do original, para perseguir, segundo a lei da fidelidade, sua própria via no
interior da liberdade do movimento da língua. (2013, p. 117)

O famigerado debate fidelidade ao original x liberdade da tradução resumido


numa imagem: o ponto de contato entre a tangente e a circunferência. Não parece ab-
surdo, embora talvez um pouco arbitrário, relacionar essa fricção ao instante de perigo,
à história a contrapelo, à mônada das teses Sobre o conceito de história. São campos e
objetivos diferentes os de Benjamin, mas persiste certo método em escala, uma leitura
que rompe a linearidade para mergulhar no momento de tensão.
Dois exemplos
A Argentina71 parece ser um lugar em que o debate sobre escrita da história da
tradução está maduro. Provavelmente porque a inteligência privilegiada de Jorge Luis
Borges colocou o tema em pauta já nas primeiras décadas do século XX. Sergio Wais-
man, no excelente Borges y la traducción (2005), declara:

La necesidad de una nueva conceptuación crítica de la traducción surge para este


libro de las innovadoras prácticas y teorías de los propios escritores argentinos, en
especial Borges. Deriva de la creencia de que entre las “traducciones propiamente
dichas” y los llamados “originales” hay, con mucho, más semejanzas que diferen-
cias. Surge el reto borgeano a la noción de “texto definitivo” y de que a menudo los
méritos de una traducción, paradójicamente, residen más en sus infidelidades crea-
doras que en sus fidelidades. Surge del uso que hace Borges de la irreverencia y del
desplazamiento y del hecho de que sus ideas se desarrollan en un contexto especí-
fico: Argentina, nación geopolíticamente periférica. Y, a su vez, de que ese mar-
gen, reclamado y explotado por Borges como posición particularmente productiva,
es un elemento clave en sus teorías y usos de la traducción. (2005, p. 22)

71
Parte do raciocínio apresentado aqui já foi desenvolvido em outro texto, em parceria com Sérgio Ka-
ram: Escritores gaúchos traduzidos: levantamento e comentário, ainda no prelo, que integrará a História
da literatura do Rio Grande do Sul coordenada por Luís Augusto Fischer.

61
No livro, Waisman examina a importância dos argumentos de Borges para a tra-
dução a partir de três ângulos: 1) o Borges teórico da tradução que, em ensaios dos anos
1920-1930, já anunciava problemas que os estudos de tradução consolidariam apenas
cinquenta anos depois (o ceticismo quanto à superioridade do original sobre a tradução
e seu caráter de “texto definitivo” e fora do tempo; a tradução como atividade criadora e
potente para a cultura de chegada; a consciência de que é diferente pensar da margem e
pensar do centro); 2) o Borges ficcionista que incorpora a tradução em seu repertório es-
trutural e temático – a tradução aparece na superfície dos enredos e também em certa
forma de escrita que parte de outro texto, que se estrutura como resposta irreverente ao
que foi escrito antes; e 3) o Borges tradutor, que adota a “infidelidade criadora”, nos
termos de Waisman, como premissa, rompendo com a tradicional noção de transparên-
cia e fidelidade ao original. Vale destacar que as ideias de Borges sobre a tradução con-
vergem, em alguma medida, com as de Benjamin. Sergio Waisman demonstrou essa
convergência (não isenta de diferenças, obviamente): “El primer punto de contacto [en-
tre Borges e Benjamin] es el uso que ambos hacen de la traducción para acceder a una
discusión estética”. (2005, p. 66). Também: “la movilidad del original es un punto de
coincidencia entre Borges y Benjamin” (2005, p. 69).
Waisman confere, portanto, lugar destacado à tradução na obra de Borges. Seu
raciocínio depende, porém, da excelência da fortuna crítica borgeana. Nela, se destaca a
análise de Beatriz Sarlo, que demonstrou o quanto a dialética cosmopolitismo x loca-
lismo é definidora da narrativa do escritor argentino. Em Modernidade periférica
(1988) Sarlo já anunciava que no jogo de forças do campo literário argentino nos anos
1920-30, no conflito entre “intelectuais de origem tradicional e intelectuais recém-
chegados, de origem imigrante” pesava “a questão da língua (quem fala e escreve um
castelhano ‘aceitável’), das traduções (quem está autorizado e por quais motivos a tra-
duzir)” (2010, p. 55). O poliglota Borges, respaldado pelo capital cultural de uma famí-
lia oligárquica, destaca-se nesse cenário e depois vai ocupar lugar eminente em contexto
internacional.
Em Borges, un escritor en las orillas (1993), Sarlo aprofunda o exame:

Su obra [de Borges] muestra el conflicto y este libro intentará leerla en esa dimen-
sión desgarrada. He querido mantener esta tensión que, según creo, atraviesa a
Borges y constituye su particularidad: un juego en el filo de dos orillas. Busco la
figura bifronte de un escritor que fue, al mismo tiempo, cosmopolita y nacional.
(2007, p. 13)

Uma literatura nacional que tem como centro Borges, esse escritor cosmopolita.
Não é estranho que esse caráter “bifronte” se estenda para certa compreensão da litera-
tura argentina como um todo. Waisman defende que os projetos de fundação argentinos
– especialmente em Sarmiento – empregam ativamente a tradução e o bilinguismo
(2005, p. 21). Ricardo Piglia (1998) argumenta na mesma linha, afirmando que a tensão
se manifestae desde o On ne tue point les idées, a famosa frase citada na Advertência do
autor, em Facundo: civilização e barbárie. Essa citação em francês, atribuída equivo-
cadamente a Fortoul, seria o último gesto de resistência do homem obrigado a exilar-se
pela barbárie. Nas palavras de Piglia:

História ao mesmo tempo cômica e patética, a desse homem perseguido que se exi-
la, foge e escreve em outra língua. Traz o corpo marcado pela violência da barbá-
rie, mas também deixa sua marca: inscreve um hieróglifo em que a cultura é cifra-
da e que parece a contrapartida microscópica desse enigma que ele tenta traduzir,
decifrando a vida de Facundo Quiroga. [...] não devemos esquecer que essa divisa é

62
uma citação: uma frase de Diderot que Sarmiento cita mal e atribui a Fortoul,
abrindo assim o capítulo de referências equivocadas, falsas citações, erudição apó-
crifa, que é um signo da cultura argentina pelo menos até Borges. (2010, p. 18-19)

Sarmiento cita mal. A falsa citação – imprevista ou calculada, não importa –


inauguraria uma tradição argentina que entende a posição periférica como potência. E
essa potência está na compreensão de que a tradição argentina está fundada pelo contato
entre línguas e, por decorrência, pela tradução. Piglia vai dedicar algumas páginas ao
problema tradição e tradução. Em uma de suas aulas dos anos 1990 – reunidas no livro
Las tres vanguardias (2016) – ele conclui:

Discutir, entonces, la situación actual de la novela en la Argentina supone tener


siempre en cuenta esa tensión entre literatura nacional y literatura mundial que
forma parte de la tradición del género. ¿Qué quiere decir una novela argentina si el
género parece haberse constituido como lo internacional mismo? La forma de la
novela aparece ligada, de modo directo, a problemas de la traducción. (2016, p. 68)

Aqui novamente identificamos complementariedade entre os raciocínios de Pi-


glia e Waisman, com o adendo importante de que Piglia, ao tratar de romance, enxerga
ainda mais a conexão nacional/internacional, dada a presença de tradução na formação
do gênero. Ao dedicar-se ao exame da obra de Borges, que nunca escreveu romance,
Waisman limita sua análise a gêneros como o conto e o ensaio.
A leitura que Sergio Waisman faz de Borges, amparada na tradição que interpre-
ta o cosmopolitismo periférico como definidor da cultura argentina (por exemplo, Sarlo
e Piglia), pode servir como um exemplo de história da tradução benjaminiana. Borges é
a mônada de Waisman (em se tratando de Borges, poderíamos dizer que ele é o aleph de
Waisman) – um concentrado de tensões que ilumina a totalidade. Ao analisar a obra de
Borges e a importância que a tradução desempenha em sua ficção, Waisman elucida o
papel da tradução na literatura argentina.
Outro exemplo, ainda argentino: La Constelación del Sur: traductores y traduc-
ciones en la literatura argentina del siglo XX, de Patricia Willson (2004). Para além do
título que evoca a famosa imagem benjaminiana (constelação), o livro de Willson tam-
bém pode ser lido como uma história da tradução na Argentina vista a partir de um con-
centrado de tensões. Willson reafirma a centralidade de Borges, na mesma linha de
Waisman, mas expande a análise para a Revista Sur que, sob o comando de Victoria
Ocampo, introduziu na Argentina, via tradução, parte importante da literatura ocidental.
Sarlo já havia estudado o tema em Modernidade periférica; o argumento de Willson, no
entanto, vai além ao identificar estilos definidos de tradução: Victoria Ocampo, a tradu-
tora romântica; Jorge Luis Borges, o tradutor vanguardista; José Bianco, o tradutor clás-
sico. Cada um desses tradutores poderia ser lido como uma mônada/aleph que, postos
em diálogo, formam uma constelação benjaminiana.
A síntese apresentada aqui é lacunar: não dá conta da complexidade dos argu-
mentos de Benjamin para os campos da história, da literatura e da tradução. No entanto,
espero ter demonstrado que certa metodologia benjaminiana pode ser uma diretriz rele-
vante para a escrita da história da tradução. A tarefa desse historiador seria identificar
concentrados que, examinados pontualmente, revelam andamentos mais amplos, renun-
ciando a um historicismo linear e enciclopédico. Os trabalhos de Sergio Waisman e Pa-
tricia Willson exemplificam o modelo: ao dissecarem a tradução em Borges e na Revis-
ta Sur, escreveram histórias da tradução orientadas por um problema.

63
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64
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65
A Formação vista desde o sertão72
Luís Augusto Fischer73
Resumo
Este ensaio discute a noção de “formação”, que está no centro da obra de Antonio Candido, particular-
mente no livro Formação da literatura brasileira, a partir das recentes pesquisas de Jorge Caldeira, que
tem demonstrado a relevância, para a história brasileira, do mundo do sertão, este mundo econômico e so-
cial que produz grande parte do PIB brasileiro, desde o século 18, mas que não é alcançado pelo modelo
proposto por Caio Prado Júnior, organizado em torno aos conceitos de escravismo, latifúndio e exporta-
ção. O trabalho procura pensar qual o compromisso da tese candidiana com a visão de Caio Prado ao dis-
cutir o Arcadismo e o Romantismo e ao final propõe algumas especulações sobre o que poderia resultar
numa nova descrição de formação da literatura no Brasil se forem tomadas em conta as conclusões de
Caldeira.
Palavras-chave: Formação da Literatura Brasileira; Antonio Candido; Jorge Caldeira; Modernismo
Abstract
This paper discusses the notion of “formation” (central to the work of Antonio Candido, and especially to
his Formação da literatura brasileira), on the basis of recent research by Jorge Caldeira. Caldeira has em-
phasised the socio-economic importance for Brazilian history of the hinterland, responsible for the bulk of
the country’s GDP since the 18th century, but not considered in the model proposed by Caio Prado
Júnior, whose Formação do Brasil Contemporâneo is based on the concept of plantations using slave la-
bour to produce for export markets. The paper considers to what degree Candido’s work is moulded by
Caio Prado’s model in its discussion of Brazilian neoclassicism and romanticism, and concludes by spec-
ulating on the possible effects of Caldeira’s conclusions on a new description of the formation of Brazili-
an literature.
Keywords: Formação da Literatura Brasileira; Antonio Candido; Jorge Caldeira; Modernism
Quando uma interpretação se torna clássica, no sentido de ser incorporada ao
fluxo rotineiro das aulas e conferências, dos escritos acadêmicos e do jargão da área, ela
ao mesmo tempo se consagra e perde força. Se consagra porque ganha fama, é repetida,
vira moeda corrente, passando a ser um novo filtro através do qual todo mundo enxerga
o objeto a que se refere; mas perde força porque, repetida e rotinizada, sua existência de
alguma forma passa a moldar o próprio objeto a que se refere, tornando-se parte, agora,
da matéria a ser examinada criticamente; seu poder analítico fica, assim, necessariamen-
te comprometido. Tal fenômeno ocorreu em todas as partes, notoriamente nas áreas de
humanidades, muito mais do que nas ciências naturais e nas matemáticas, ainda que
também nessas haja casos célebres. Quantas vezes se argúi Marx por coisas que ele dis-
se de modo preciso e específico, mas foram tomadas como genéricas e vagas? E por
coisas que ele nunca disse, nem pensou, mas foram dadas como sendo de sua lavra por
repetidores? Quantas referências equivocadas suporta o trabalho de Darwin?
No Brasil, mesmo em nossa curta trajetória de pensamento original, igualmente
se podem encontrar casos relevantes. Talvez o caso mais saliente seja o de Sergio Buar-
que de Holanda em seus comentários acerca da cordialidade, matéria de seu Raízes do
Brasil (1936): em nenhum momento o sociólogo defende, nem remotamente, a idéia de
que os brasileiros sejam caracteristicamente gentis, tampouco reivindica para tal o grau
de traço positivo da vida brasileira. E, no entanto, as duas coisas se dizem sobre seu
pensamento, despudoradamente. Faltaria ler melhor o texto para logo perceber que Sér-
gio Buarque está tentando definir uma marca do trato rotineiro do país, marca que não
se resume à gentileza, pois que da mesma cordialidade faz parte a reação discricionária,
de fundo patriarcal, baseada na recusa à lei imparcial e universal que o analista toma
como parâmetro de leitura da sociedade brasileira.

72
Luís Augusto Fischer. A Formação vista desde o sertão. Revista Brasileira de Literatura Comparada, v.
13, no. 18, 2011. Endereço: http://revista.abralic.org.br/index.php/revista/article/view/258/262.
73
Professor do Instituto de Letras da UFRGS.

66
O caso mencionado pode ser classificado como leitura inepta, na mesma linha,
por exemplo, das restrições que foram feitas à crítica de Machado de Assis ao romance
O primo Basílio, de Eça de Queirós, em uma das mais célebres polêmicas do país. Era o
ano de 1878, Machado era já reconhecido como um crítico e escritor de primeira linha,
embora ainda não tivesse operado o salto de Memórias póstumas de Brás Cubas; e re-
solveu analisar o romance de Eça a partir de um ângulo contrário ao realismo praticado
pelo autor português. Não importam aqui os termos do debate, mas a forma: estampada
a crítica de Machado, saíram alguns em defesa de Eça, e duas semanas mais tarde Ma-
chado retomou a palavra e o debate. Comenta o que repararam a seus juízos e, consta-
tando não ter sido compreendido corretamente, diz: “Que não entendessem, vá; não era
um desastre irreparável. Mas uma vez que não entendiam, podiam lançar mão de um
destes dois meios: reler-me ou calar”.
Sérgio Buarque poderia dizer o mesmo a seus tresleitores, mas só em seu perío-
do de vida, naturalmente. Passado esse prazo, eis aí a má leitura correndo solta pelo
mundo, consagrando e estragando o trabalho do grande sociólogo.
Outro é o caso que queremos analisar aqui, neste ensaio conscientemente provi-
sório. Não vamos falar de leituras equivocadas sobre o autor que vamos comentar; o que
queremos é reinterpretar uma categoria de análise da literatura brasileira que, como a
cordialidade buarquiana, entrou para o repertório das facilidades acadêmicas, no campo
das Letras. E reinterpretar não para defender nosso autor de uma leitura errada, inepta,
ruim, mas sim contra o pano de fundo de um debate novo no cenário historiográfico e
sociológico do Brasil. Fique claro: também há, sobre nosso autor, leituras ruins, que ba-
rateiam enormemente os vetores centrais de sua ― digamos de modo pomposo e não
inexato ― sua teoria do Brasil. Nosso autor (que nada tem de pomposo) é Antonio
Candido, e sua teoria do Brasil se chama, genericamente, de formação da literatura
brasileira; a novidade crítica que servirá para reler tal perspectiva está na obra de Jorge
Caldeira, em vários trabalhos, especificamente em dois livros, A nação mercantilista
(1999) e História do Brasil com empreendedores (2009).
Formação: alguma história
1. O debate sobre o sentido da “formação” ocupa já vários artigos e livros, escri-
tos por gente muito qualificada, de forma que se corre aqui o risco de uma certa levian-
dade ao tentar sintetizar a coisa em poucas linhas. Mas vamos lá: a perspectiva de for-
mação a rigor esteve no horizonte de várias gerações de pensadores no Brasil, ao menos
desde Machado de Assis, como se pode ler em seu clássico e sempre interessante artigo
“Notícia da atual literatura brasileira ― Instinto de nacionalidade”, de 1873. O grande
escritor não dispunha do conceito em estado por assim dizer puro, acadêmico, algébrico,
mas sua reflexão caminha exatamente na direção de tentar decifrar o caminho da forma-
ção da literatura brasileira, nos marcos da formação da nacionalidade. Uma possível gê-
nese intelectual dessa visada, no caso de Machado, deve ser buscada em dois campos:
no debate sobre a natureza da história da literatura e da crítica literária, tema que esteve
no horizonte do jovem Machado de modo muito forte, de um lado; e, de outro, no deba-
te sobre as virtudes e os limites da identidade nacional, brasileira em particular, tema
que uma geração antes de nosso escritor maior já ganhava corpo em ensaios, romances,
poemas.
Sem ir muito longe agora, registremos que antes ainda de sua maioridade civil já
Machado de Assis publicava artigos com reflexões substantivas sobre a matéria, como
se lê em “O passado, o presente e o futuro da literatura”, texto de 1858, de título absur-
damente abrangente em cujo cerne já está posto o problema de modo bastante razoável:

67
ali, ele clama por educação para todos, de forma a habilitar o povo na leitura dos textos
que já existem; assinala a obra de Basílio da Gama como um passo importante na defi-
nição da literatura brasileira, pois que o temperamento de sua obra é “se não puramente
nacional, ao menos nada europeu”; antecipando em muitos anos uma das premissas dia-
léticas do artigo de 73, diz já aqui que para uma literatura “não há gritos de Ipiranga”,
porque “as modificações operam-se vagarosamente” em seu âmbito74.
Assim também se poderá ver em outros textos da juventude, como a série
“Idéias vagas”, estampadas em 1856, aos 17 anos do autor, ou na tradução, feita no ano
seguinte, do artigo de Lamartine “A literatura durante a revolução”, em que Machado
lidou de perto com alguns dos mais importantes pensadores da matéria naquela altura,
como Chateaubriand e Madame de Staël. É uma freqüentação que se estende por vários
anos de sua juventude, alcançando, por exemplo, um comentário seu de 1866 (aos 27
anos do autor), em que, para examinar um livro chamado Curso de literatura portugue-
sa e brasileira, recém-editado, Machado refere de modo aparentemente sólido o histori-
ador Abel-François Villemain, que outro grande historiador de literatura, Otto Maria
Carpeaux, muitos anos depois qualificaria assim: “distingue-se dos dogmáticos do clas-
sicismo pela atenção às influências estrangeiras na literatura francesa e pela tentativa de
compreender a literatura como resultado das mesmas forças históricas que também de-
terminaram as expressões políticas e artísticas da nação; Villemain, comparatista e ‘his-
toriador da civilização’ num campo especializado, é herderiano”75.
Podemos dizer, em suma, que o jovem Machado já pensava na literatura (1)
como parte do processo geral do que os franceses gostam de chamar “civilização”, en-
volvendo a vida social, a educação por exemplo, e política, a Independência por exem-
plo; (2) a partir de uma visão nacionalista unitária, que nos anos 1860 ganhava contor-
nos sólidos, garantida a unidade do território brasileiro mediante controle de rebeliões
provinciais, algumas das quais contando com teses emancipacionistas, que fragmentari-
am o Brasil (o caso mais notável é a guerra dos Farrapos, em cujo contexto chegou a
haver declaração de independência de um estado, a República do Piratini); e (3) em
perspectiva processual, quer dizer, não sincrônica, e comparatista, quer dizer, antixenó-
foba e também antinacionalista. Sem forçar em nada o debate, aqui estão linhas essenci-
ais da visada formativa, que terá larga vida entre nós, daí por diante.
2. De modo muito mais autoconsciente, a geração modernista vai se valer do
conceito “formação” com grande empenho e ganho; basta lembrar dos clássicos Casa
grande e senzala, de Gilberto Freyre (1933), que tem como subtítulo Formação da fa-
mília brasileira sob o regime da economia patriarcal, e Raízes do Brasil (1936), de
Sérgio Buarque de Holanda, que não traz a palavra “formação” no título mas atende ao
mesmo programa, descrever e entender a formação do país e da nação, no ritmo do en-
saio, e ainda Formação do Brasil Contemporâneo (1942), de Caio Prado Júnior. Na ge-
ração de Candido, ao menos três livros assumiram a categoria “formação” como pro-
grama de estudos e como conceito de operação: Os donos do poder, subtitulado Forma-
ção do patronato político brasileiro (1958), de Raymundo Faoro, Formação Econômica
do Brasil (1959), de Celso Furtado, e a Formação da literatura brasileira (1959), de
Antonio Candido. Depois disso, vamos encontrar perspectiva formativa na obra de
Darcy Ribeiro, Aziz Ab’Sáber, Florestan Fernandes, Milton Santos, Fernando Henrique
Cardoso, Roberto da Matta e alguns outros, assim como podemos dizer que essa mesma

74
Citações da edição Aguilar em três volumes, p. 787 do volume III.
75
História da literatura ocidental, vol. I, p. 22.

68
forma de pensar estava já em Joaquim Nabuco, em Euclides da Cunha, ou nos moder-
nistas Mário de Andrade, Augusto Meyer, Nelson Werneck Sodré e Vianna Moog, por
exemplo.
Mais uma noção do que um conceito propriamente dito, “formação” representa,
no plano do pensamento, o sentido construtivo que esses pensadores viam existir em seu
tempo político e social, em conjunturas sucessivas, todas elas de algum modo auspicio-
sas para as sempre urgentes reformas necessárias ao Brasil. Nos anos 1870 e 1880, o
tempo do Machado ensaísta, a energia formativa derivava das campanhas abolicionista e
republicana, que empolgaram muita gente, de modo desigual mas efetivo. (Nos anos
1900 e 1910, toma a palavra uma geração desencantada com os rumos da república, em
variados sentidos, desilusão que se lê na obra de um Euclides e de um Lima Barreto76).
Nos anos 1930, a busca formativa ganhava tônus e escala no amplo movimento moder-
nizante, industrialista e socialmente reformador, liderado pelo estado getulista. Nos anos
1950, é inegável que a força mais uma vez modernizadora expressa por JK comoveu
pensadores e artistas, ecoando e potencializando a nova indústria metalúrgica que sur-
gia, processo de que temos exemplo elevado nos ensaístas formativos e nos pujantes
movimentos da Bossa Nova, do Cinema Novo, da construção de Brasília.
Esse o caldo de cultura do pensamento formativo, em sucessivas conjunturas.
Trata-se de um ponto de vista que quer entender o passado do país, em seus lineamentos
centrais conforme o caso (o campo econômico, social, político, literário, etc., isolada-
mente ou em alguma combinação), com vistas a discernir as possibilidades do presente
e as chances de futuro. Assim, a noção de formação depende de (a) uma perspectiva de
conjunto, que pensa o país como um todo, o país como uma unidade, (b) um certo oti-
mismo reformista, um certo reformismo otimista, numa conjuntura favorável ao pensa-
mento crítico, e (c) uma visão prospectiva, que relê o passado orientada por um proble-
ma tomado como vivo, no presente e no futuro. Poderíamos dizer o mesmo de outra
forma: o pensamento formativo é sempre empenhado: interpreta o passado porque quer
intervir no presente com vistas ao futuro. Não estranha nada, assim, que os maiores pen-
sadores formativos sejam figuras com grandes interesses fora da academia, na política,
no jornalismo, na vida prática, digamos77.
Os ensaios ― e são ensaios no sentido forte do termo, isto é, textos escritos com
grande liberdade em relação aos cânones que tomam como referência, textos que são, de
si mesmos, uma ação sobre o mundo ― concebidos sob o signo da formação, reinter-
pretando o passado, estão sempre disputando a interpretação no presente: Machado rela-
tivizando a euforia romântica e querendo a consolidação de uma esfera pública de deba-

76
O diagnóstico desse malogro está em Literatura como missão – Tensões sociais e criação literária na
primeira república (1983), de Nicolau Sevcenko, e num excelente ensaio de Homero Araújo intitulado
“Modernos e enfurecidos: O cortiço, O Ateneu, Triste fim de Policarpo Quaresma e Os sertões”, no livro
Machado de Assis e arredores (2011).
77
Esse sentido de intervenção na vida prática, extra-acadêmica, é um fator que o tempo vai permitindo
ver com mais clareza. Veja-se o contraste entre esses citados ensaístas, surgidos entre 1870 e 1960, quase
todos inscritos empiricamente em tarefas públicas, muitas delas políticas, e ensaístas que brotaram a partir
da super-especialização acadêmica e da profissionalização da vida intelectual, particularmente na pós-
graduação e na pesquisa universitárias (como será o caso de gente de altíssima qualidade como Roberto
Schwarz, Sérgio Miceli e Eduardo Viveiros de Castro, para citar apenas três, de que sou leitor entusias-
mado): entre aqueles e estes, se abrem várias diferenças variadas, na abordagem, no texto, no intento, no
alcance pragmático. Na arena pública e sem posição dentro da universidade profissionalizada também há
algum caso; o mais notório é o de Paulo Francis, com sua visada por assim dizer luterana sobre o Brasil
(como em O Brasil no mundo).

69
te esclarecido; Freyre defendendo a mestiçagem como valor positivo; Sérgio Buarque
postulando o fim do estado patriarcal familista; Caio Prado querendo incorporar o prole-
tariado à nação; Furtado defendendo a necessidade de internalizar no Brasil os meca-
nismos de decisão econômica; Faoro intentando acabar com o patrimonialismo dos ges-
tores brasileiros; e Candido...
3. Bem, o horizonte do debate de Candido merece todo um detalhamento, toda
uma outra abordagem. Em síntese não óbvia, podemos dizer que a disputa de Candido,
ao escrever sua Formação da literatura brasileira, dirigia suas forças contra alguns
inimigos que ainda davam as cartas no campo literário: a Academia Brasileira de Letras
e suas sucursais pelo país todo; a crítica literária regular, que ainda acontecia nos jor-
nais; assim como o sistema escolar, através dos manuais de ensino, incluídas nessa con-
ta as florescentes faculdades de Letras, que passaram a brotar pelo país afora nos anos
1950 e 60. Os antagonistas de Candido eram, então, o espiritualismo católico (vale evo-
car o agora inacreditável prestígio que tinha Tristão de Athayde, na crítica de jornal e
nos colégios78), o nacionalismo, o ruibarbosismo, o parnasianismo, todas elas ideologias
literárias retardatárias, mas dominantes naquelas instituições. Daí o sentido renovador,
quase revolucionário, da vibração modernista que se encontra, não no enunciado, mas
nos alicerces desse grande livro. Modernista em alguns sentidos específicos: um pensa-
mento leigo, crítico, aberto à experimentação, antiformalista, plural, sem renegar nem a
alta tradição literária ocidental nem a força de formas e temas populares da tradição
oral79.
Vejamos, de modo ultra-sumário, alguns termos empregados por Candido em
seu livro, tais como "sistema literário" e "nacional". “Sistema” Candido trouxe do mun-
do da sociologia funcionalista norte-americana para o ambiente da história da literatura.
O conceito tem grande rendimento crítico, em parte porque passa por fora de categorias
como “geração”, “escola”, “estilo de época” e outras, que costumam ainda hoje coman-
dar o espetáculo no campo literário apesar de sua fragilidade epistemológica e incompe-
tência descritiva. Como disse em um grande livro o também sociólogo Leopoldo Waiz-
bort (A passagem do três ao um), o livro de Candido é, como Mimesis, de Erich Auer-
bach, uma história da literatura concebida em função de um problema, sem ilusão de ser
um manual de história concebido para atingir a completude empírica de seu objeto: Au-
erbach quis estudar a representação da realidade na literatura ocidental, e Candido pro-
curou entender como se formou o sistema de produção e circulação de literatura no Bra-
sil, entre 1760 e 1880 (correspondendo ao que nos manuais se chama de Arcadismo e
Romantismo). Esse sistema é simples de descrever: trata-se de uma relação social entre
autores e público leitor, mediante obras que vão sendo produzidas e lidas, relação que é
vista sincronicamente, em cada momento, mas também diacronicamente, na formação
de uma tradição local, que Candido identifica com a tradição nacional brasileira.80

78
Veja-se sua Introdução à literatura brasileira, sob o nome civil de Alceu Amoroso Lima, cuja primeira
edição é de 1943.
79
Procurei evidenciar o empenho modernista do trabalho de Candido no artigo “Formação hoje ― uma
hipótese analítica, alguns pontos cegos e seu vigor”. Uma demonstração interessante desse nexo entre a
perspectiva formativa e a militância modernista em Candido poderá ser averiguada num estudo redigido
em 1950, “Literatura e cultura de 1900 a 1945”, em Literatura e sociedade: ali se lê explicitamente que
Romantismo e Modernismo são de fato os dois “momentos decisivos” na vitalização da inteligência brasi-
leira (p. 112), estabelecendo o nexo que no enunciado da Formação da literatura brasileira desaparece,
embora continue como pressuposto.
80
Em artigo anterior à publicação da Formação, que é de 1959, esse esquema conceitual aparece já bem
delineado, embora em termos menos precisos. O texto é “A literatura na evolução de uma comunidade”;

70
O termo “nacional” vale um detalhamento. É certo que nosso tempo, este come-
ço de século novo, que sucede ao fim de um importante ciclo histórico, a Guerra Fria,
este nosso tempo que é o da completa hegemonia do capital financeiro sem compromis-
so com plantas industriais e estruturas sociais situadas concretamente em algum territó-
rio, o tempo da internet e tudo que ela proporciona em matéria de internacionalismo
prático cotidiano, representa um novo momento no que se refere à noção de nação, na-
cionalidade, nacionalismo, identidade nacional. Não há quem possa pensar nessas di-
mensões do nacional como se pensava até uns vinte anos atrás, até 1989 marcantemente
(a Queda do Muro, o fim da União Soviética), ou então até 2001 (o ataque às Torres
Gêmeas em Nova York), tempo em que o pertencimento de cada pessoa, de cada grupo
social ao seu mundo nacional gozava de forte estabilidade (que vinha de um século an-
tes, mais ou menos) e quando a relação de cada indivíduo com a informação era media-
da por instituições mais lentas, muito menos dinâmicas do que a internet (a escola, o rá-
dio, a televisão, a indústria de bens culturais). A nova etapa da mundialização, dos mer-
cados, mas também da luta pela hegemonia geopolítica, e a entrada em cena da internet,
no campo literário, são fatos com conseqüências certamente fortes, que ainda mal se
podem avaliar mas que sim podem ser registradas com clareza, ao menos em um pata-
mar: mudou, para sempre, a relação da produção literária e intelectual com as antigas
demandas do nacional. Isso não significa que o nacional tenha desaparecido por com-
pleto, nem no âmbito das instituições formais (a justiça e o ensino, majoritariamente),
nem no plano da literatura; mas é certo que ele mudou de tamanho, significado e conte-
údo. Vale acrescentar uma modulação: o Brasil tem a peculiaridade de ser o único país
de língua portuguesa na região americana, sendo o mais populoso país dessa importan-
tíssima língua, a quinta ou sexta em número de falantes, o que não é pouco e confere ao
sentimento nacionalista brasileiro um sentido de auto-suficiência e um caráter de veros-
similhança muito grande, traços que de certa forma destacam nosso país no contexto
daquele rebaixamento geral do valor do nacional em nosso tempo.
Quanto ao livro de Candido, é certo que ele mantém seu valor em vários níveis,
mesmo lidando, como lida, com uma categoria problemática em nossa conjuntura como
“nacional”. Não faltam argüições desse traço; a mais articulada está nos ensaios de Abel
Barros Baptista, um inteligente leitor do debate nacional brasileiro; animado de uma
perspectiva desconstrucionista que está nas antípodas do ponto de vista formativo de
Candido, Baptista tem escrito para denunciar o que julga ser uma limitação nacionalista
do trabalho de Candido, em um ensaio como “O cânone como formação: a teoria da lite-
ratura brasileira de Antonio Candido”81.
4. Num sentido historiográfico ativo, a perspectiva de leitura posta de pé por
Candido tem força para descrever outras formações literárias e culturais, especificamen-
te no Novo Mundo82. Mas também permanece válido por se tratar de um diagnóstico

ali se lê: “Assim, não há literatura enquanto não houver congregação espiritual e formal, manifestando-se
por meio de homens pertencentes a um grupo (embora ideal), segundo um estilo (embora nem sempre te-
nha consciência dele); enquanto não houver um sistema de valores que enforme a sua produção e dê sen-
tido à sua atividade; enquanto não houver outros homens (um público) aptos a criar ressonância a uma e
outra; enquanto, finalmente, não se estabelecer a continuidade (uma transmissão e uma herança), que sig-
nifique a integridade do espírito criador na dimensão do tempo” (pp. 140-1).
81
Em O livro agreste. Não sendo este o nosso assunto, no presente artigo, fica apenas este registro da crí-
tica de Baptista a Candido, trabalho que, no entanto, está a merecer debate crítico detalhado.
82
Sirva de exemplo, ainda que cabotino, meu livro Machado e Borges (2008, com tradução ao espanhol:
Machado de Assis y Borges. Buenos Aires: Leviatán, 2011), em que tento mostrar como os dois grandes
escritores, com a companhia historicamente anterior de Poe, foram escritores-pensadores de temperamen-

71
historicamente relevante no conjunto, contendo além disso uma coleção de agudas leitu-
ras tópicas de escritores e obras da tradição brasileira e, ainda, por se tratar de um rele-
vante livro do combate modernista em busca da conquista de sua hegemonia, esta fi-
nalmente alcançada nos anos 1970, creio. Este último aspecto não é muito óbvio, mas
está na raiz da legibilidade do livro: para além de seus méritos como história e como crí-
tica, a Formação da literatura brasileira manterá sua vigência enquanto o projeto mo-
dernista como um todo tiver força, em particular a variante paulista do modernismo – e
ele visivelmente a mantém, bastando ver a recente homenagem a Oswald de Andrade,
na FLIP de 2011, em que, com algum excesso, foi tido até como precursor dos tuítes,
com suas crônicas da série “Telefonema”. A flamante e moderníssima escritora argenti-
na Pola Oloixarac, tomada por aquela inveja que São Paulo dá nos portenhos descolados
de hoje em dia, declarou que Oswald foi “muito mais original” do que Jorge Luis Bor-
ges, comparação que diz mais sobre a percepção da força de São Paulo até na sofistica-
da Buenos Aires do que sobre os autores implicados.
Será possível encontrar exemplos ou sintomas nítidos que fundamentem a tese
de que a Formação da literatura brasileira forma parte do combate modernista em bus-
ca de hegemonia? Nas palavras da Formação não vamos encontrar afirmações evidentes
dessa ligação entre formação e modernismo, entre outros motivos porque o tema ali é
outro, historicamente distante (Arcadismo e Romantismo) do presente em que está sen-
do gerado (anos 1940 e 50) ― e vale ressaltar que o foco em dois momentos afastados
no tempo, Arcadismo e Romantismo, foi uma escolha do autor, e escolha relativamente
estranhável, dada, entre outras coisas, a origem do trabalho, nascido do convite feito pe-
lo editor José de Barros Martins (e confessada pelo autor no prefácio) para que Candido
escrevesse “uma história da literatura brasileira, das origens aos nossos dias”. Em 45,
quando deste convite, e ao longo dos anos 1950, quando da redação, é claro que já seria
possível estender a descrição histórica até ao menos os anos 1930, ainda mais quando
sabemos que Candido acompanhava de perto essa geração e suas obras, como crítico de
varejo que era, de alta qualidade.
Na superfície do texto da Formação há até mesmo divergência com algumas po-
sições modernistas, especificamente contra o argumento nacionalista originariamente
romântico, depois “revigorado pelos modernistas e agora pelos nacionalistas”, de que o
Arcadismo fez apenas “literatura de empréstimo”, quando se sabe que Candido leu a li-
teratura árcade como tendo um empenho protobrasileiro ― “os escritores neoclássicos
são quase todos animados do desejo de construir uma literatura como prova de que os
brasileiros eram tão capazes quando os europeus”. Por outra parte, a redação da Forma-
ção é contemporânea da pesquisa e da redação da tese da Candido em Sociologia, de-
pois publicada com o título Parceiros do rio Bonito, situação esta que pareceria afastar
Candido mais ainda do trabalho modernista que afirmo existir.
Mas indiretamente, há vários traços desse empenho modernista. Para começar,
veja-se que o ponto de vista do livro Formação da literatura brasileira, ao mesmo tem-
po informado e arejado, mantendo em vista a tradição local das histórias literárias ante-
riores (Candido estudou a fundo a de Sílvio Romero, como se sabe, tendo escrito uma
tese de livre-docência sobre ela) mas também operando com conceitos abstratos (como
“sistema”) originados da então moderníssima Sociologia norte-americana, corresponde

to formativo, cada qual pensando a literatura de seu país em termos muito próximos entre si e com enor-
me afinidade com o pensamento formativo candidiano. Ian Alexander (v. bibliografia) tem mostrado que
o raciocínio formativo quadra bem, igualmente, a uma realidade aparentemente remota como a australia-
na.

72
bem a proposições modernistas as mais defensáveis, leigas, antiformalistas, antifetichis-
tas, vacinadas contra o nacionalismo e o cosmopolitismo tolos. Depois, considere-se
que em mais de uma entrevista Candido comenta, retrospectivamente, que sim tinha es-
se empenho de validação do Modernismo, por esses anos. Finalmente, em textos poste-
riores, por exemplo em Iniciação à literatura brasileira (redigido em 1987), se lê uma
reiterada notação de familiaridade entre Romantismo e Modernismo, o que não é inédi-
to, mas continua a ser eloqüente83; e na Formação Candido postula essa familiaridade
como constituição do ponto de vista do trabalho ― “O leitor perceberá que me coloquei
deliberadamente no ângulo dos nossos primeiros românticos”, não por ingenuidade, mas
por método, para assim poder escrever, perseguindo um ideal que era romântico mas
também modernista, uma “história dos brasileiros no seu desejo de ter uma literatura”.
História de um desejo fundacional compartilhado por românticos e modernistas, por
certo, e tomado conscientemente por Candido como ponto de convergência histórica e
ponto de partida analítico84.
(Entre parênteses: sempre vale a pena notar que tal identificação entre Moder-
nismo e Romantismo não decorre imediatamente de toda e qualquer posição vanguar-
dista do começo do século XX, e não ocorre em todas as partes, nem mesmo aqui na
América. Tal identificação decorrerá restritamente das vanguardas marcadas de nacio-
nalismo e consistentemente conectadas a interesses políticos, como se poderá ver no ca-
so hegemônico de São Paulo e em parte do cenário artístico de Buenos Aires; o caso
mexicano parece bastante diverso, tanto no chamado “estridentismo” quando no roman-
ce social do período, por exemplo com Mariano Azuela, ambos mais populares do que
nacionalistas.)
Pontos cegos da Formação
Formação da literatura brasileira tem como subtítulo a expressão Momentos
decisivos, os quais são identificados como o Arcadismo e o Romantismo, estudados no
livro. Isso significa muita coisa, de saída: num livro escrito nos anos 1950, ficam de fo-
ra materiais empíricos da produção literária muito significativos, materiais cuja ausência
é eloqüente: Candido não reconhece a existência de sistema literário no século XVII,
motivo por que deixou o Barroco de fora de seu livro (angariando incompreensões e
contraditas as mais variadas), e deliberou encerrar seu trabalho antes da entrada em cena
de Machado de Assis, autor que é o no entanto o ponto de chegada ideal de seu raciocí-
nio, eis que Candido toma como referência historiográfico e crítico justamente a refle-
xão de Machado no “Instinto de nacionalidade”. Para nem falar das exclusões posterio-
res a ele: nada se diz sobre parnasianos e simbolistas, sobre os naturalistas e outros nar-
radores já provadíssimos na altura da redação da Formação, nem sobre os vários mode-
los de renovação que a historiografia agrupa sob o nome impreciso de Modernismo.
(Não se trata aqui de cobrar que o autor tivesse falado de tudo isso ― se bem que seria
um gosto poder ler agora o depoimento sempre inteligente de Candido sobre essas ex-
pressões ―, mesmo porque o livro foi escrito, como se sabe, no rabo das horas, num
83
Escrito para fins que não se cumpriram (seria parte de uma obra a ser publicada na Itália, no quinto cen-
tenário do Descobrimento da América), este estudo defende a mesma posição formativa, ainda que de
modo diverso, menos rigoroso no manejo dos conceitos (e dos preceitos) do livro canônico, a Formação.
Veja-se que entra em conta, neste livro, a figura de Gregório de Matos; na parte relativa ao Modernismo,
lemos: “O Modernismo não foi apenas um movimento literário, mas, como tinha sido o Romantismo, um
movimento cultural e social de âmbito bastante largo, que promoveu a reavaliação da cultura brasileira,
inclusive porque coincidiu com outros fatos importantes no terreno político e artístico, dando a impressão
de que na altura do Centenário da Independência o Brasil efetuava uma revisão de si mesmo” (p. 88).
84
Ver nota 6.

73
tempo em que o autor era professor de Sociologia, e não há razão em esperar que tivesse
tido o vagar e a dedicação de repassar a matéria posterior a Machado, ainda mais conhe-
cendo a excelência das análises que os autores abrangidos mereceram na obra.85)
Mas o caso é que, mesmo considerado apenas o recorte eleito pelo autor, há pon-
tos cegos na obra, pontos presentes no conjunto, mas invisíveis no enunciado, prova-
velmente porque inalcançáveis pela lente em ação, pontos que precisam ser comentados,
vistas as coisas pelo ângulo do presente ensaio. O primeiro desses pontos cegos é, seria,
outro “momento decisivo”, o Modernismo: Candido só consegue armar sua equação crí-
tica e seu ponto de vista porque está estabelecido no ângulo modernista de leitura do
mundo. Na introdução, lemos a declaração do autor de haver-se identificado com o pon-
to de vista dos primeiros românticos, e que foi a partir dessa condição que ele releu os
ditos momentos decisivos, Arcadismo e Romantismo; para mim, essa identificação só
subsiste porque, como sabemos (e desde Mário de Andrade está dito de modo explícito,
naquela famosa conferência de 1942 intitulada “O movimento modernista”), a visão do
nacional por parte dos românticos tem muito de parecido com a dos modernistas paulis-
tas, ambos relendo o país, sua literatura, a representação da vida nacional, ambos mer-
gulhados em otimismo e gosto pela novidade, ambos com finalidades de constituir uma
interpretação nova do Brasil.86
Outro ponto cego, já mencionado acima, é Machado de Assis. Não porque Can-
dido não soubesse de sua importância formativa e sua excelência estética, mas porque
não dispunha do instrumental teórico capaz de descrevê-las (esta teoria será construída
por seu discípulo Roberto Schwarz, na esteira de seu professor, mas com a lente lu-
kacsiana e adorniana)87. Talvez se deva dizer, com maior precisão, que Machado de As-
sis é um ponto cego por ser o ponto de fuga da armação conceitual, no sentido geomé-
trico: Candido estava, ao conceber a Formação, profundamente identificado com o Ma-
chado do “Instinto de nacionalidade”, que também tomava o Brasil como uma unidade
indiscutível ao estabelecer uma perspectiva com seu tanto de evolucionista, como se lê
na declaração de que uma literatura não tem Grito do Ipiranga, mas se faz aos poucos,
num processo que só não é chamado de “sistema literário” porque escapou a Machado o
termo.

85
Especulação: o artigo “De Cortiço a Cortiço”, de 1973 (incluído em O discurso e a cidade), pode ser li-
do como um novo capítulo da Formação da literatura brasileira, tratando de mostrar o papel do Natura-
lismo.
86
No já mencionado ensaio “A literatura na formação de uma comunidade”, lemos um comentário que
pode ser tomado em linha com o debate que aqui se faz: “como o Romantismo, o Modernismo é, de todas
as nossas correntes literárias, a que adquiriu tonalidades especificamente paulistanas” (p. 165).
87
Em sentido mais remoto, a ausência de Machado na Formação pode ser creditada a motivos empíricos
da vida social: no tempo histórico do Candido em busca da validação do modernismo (anos 1930 a 50,
mais ou menos) eram pouco nítidas ainda as mudanças sociológicas havidas no país desde o tempo histó-
rico de Machado (digamos os anos entre 1870 e o fim do século 19), ou, se não pouco nítidas, de todo
modo muito menos nítidas do que passariam a ser no tempo histórico seguinte ao deste Candido, que vai
ser o tempo do Schwarz analista do narrador machadiano (anos 1960 a 80), tempo este em que se tornou
clara a distância entre o mundo da fábrica moderna e do proletariado urbano, notadamente paulistanos, e
o mundo do favor e dos agregados dependentes, especificamente cariocas. Dito de outro modo: quando
Schwarz entra em cena, já há toda uma nova distância, todo um afastamento em relação à experiência so-
cial concreta que Machado abordou; uma distância tal que permite ao crítico discernir e descrever o mun-
do do favor, agora visível por contraste. De modo mais simples ainda: no tempo de Schwarz é que se con-
figuraram as condições materiais objetivas para a compreensão crítica das estruturas profundas presentes
na obra de Machado.

74
Em sentido estrito, os dois pontos cegos mais relevantes, a meu juízo, são os que
dizem respeito a totalidades que Candido naturaliza: o Brasil e a Europa. Onde se lê
“Europa”, na Formação, quase sempre se deveria ler “França”, que nem por ser o farol
da cultura letrada brasileira era a única fonte do pensamento, bastando ver o caso do
mesmo Machado, que sabidamente deu o salto decisivo de sua carreira mediante emula-
ção do romance inglês. (Mas Machado, vale insistir, também tomava o Brasil como uma
totalidade, sem matizes, naturalizando o ponto de vista carioca.) E onde se lê “Brasil”,
estamos lendo de fato Rio e Minas, a partir de São Paulo, porque as variedades de litera-
tura e vida literária que estejam fora deste circuito são apagadas ― com sólidas razões,
me apresso em dizer, dada a centralidade dessas duas províncias na organização do Bra-
sil, mas razões de todo modo criticáveis, vendo as coisas de longe no tempo e no espaço
e mantendo em mente as variadas formações infranacionais no Brasil, aquilo que a pres-
sa classificatória e a ideologia centralista chamam de “regionais”.
Em certa medida, a ligação de Candido com o Modernismo paulista explica,
provoca e condiciona esses pontos cegos. Em atitudes de vanguarda, há pouco espaço
para sutilezas, porque a ação é mais urgente do que a reflexão, os detalhes, as delicade-
zas; e os dois pontos de apoio histórico de Candido (o Romantismo, deliberadamente, e
o Modernismo paulista, implicitamente) são de feição vanguardista, ao menos em um
sentido decisivo ― são processos com claro empenho ideológico, são literatura a servi-
ço de causas, no primeiro caso definindo a nacionalidade autônoma a partir do Rio, no
segundo a nacionalidade moderna a partir de São Paulo88.
Agora o caso da naturalização de “Brasil”: se tomarmos uma figura de referência
para cada um dos dois momentos implicados no raciocínio, José de Alencar para o Ro-
mantismo e Mário de Andrade para o Modernismo, autores por sinal com grandes afini-
dades ideológicas, veremos que ambos julgam incorporar todo o país em sua obra, des-
de o centro em que vivem até toda a variedade regional brasileira, desde o passado até o
presente, Alencar extensivamente, em vários romances, Mário intensivamente, em Ma-
cunaíma (e também nas pesquisas sobre cultura popular). Nesses exemplos se pode ver
que uma idéia totalizante de Brasil estava encarnada na própria obra de seus talvez prin-
cipais agentes, que se dispensavam, por assim dizer, de atentar para a difusa diversidade
do país, em latitudes e longitudes variadíssimas. Creio que se poderia identificar na
oposição entre Mário de Andrade, metonímia de Modernismo paulista, e a Academia
Brasileira de Letras, supra-sumo da velharia combatida pela vanguarda de São Paulo, a
raiz da naturalização de “Brasil”, a raiz desse ponto cego. A ABL (os parnasianos, Ruy
Barbosa, Coelho Neto) ganhou o estatuto de inimigo número um, numa opção histórica
que empurrou para a sombra uma boa quantidade de formas e autores que pouco ou na-
da tinham com o conservadorismo acadêmico (Euclides da Cunha, Lima Barreto, Au-
gusto dos Anjos, João do Rio, os poetas simbolistas, para nem falar de escritores de cir-
culação provincial, como eram nessa época Monteiro Lobato e Simões Lopes Neto);
nesse processo, quem tomou a palavra na condição de Modernismo, tendo escolhido
aqueles alvos, modelou-se a si mesmo pelo tamanho do inimigo enfocado.
Por que Mario de Andrade não mediu forças, por exemplo, com os experimentos
simbolistas, que já tinham mostrado boa força no Brasil na altura de 1920? Por dois mo-
tivos, penso: um, Mario não teria motivo para combate, porque o melhor Simbolismo

88
Sobre esse paralelo, Ian Alexander fez, em conversa com o autor do presente ensaio, uma síntese em
forma de quase-piada de grande eloqüência: “Eu gostaria de acrescentar também uma oposição: com o
Romantismo, o Rio diz para Portugal ‘somos mais parecidos com Paris do que com vocês’; com o Mo-
dernismo, São Paulo diz para o Rio ‘somos mais parecidos com Paris que vocês’.”

75
tem muito mais afinidades do que discrepâncias com as melhores vanguardas, em senti-
do amplo, particularmente na rejeição à brutalidade da vida regulada pela mercadoria;
dois, ele teria que apurar o debate formal em grau superior e precisaria haver-se com
debate crítico mais duro, porque o Simbolismo tinha tutano estético muitíssimo mais
exigente do que o Parnasianismo, no Brasil e em qualquer outra praça, sendo parte no-
tável da visão crítica contra o mundo do capitalismo da chamada Segunda Revolução
Industrial.
Consideradas as coisas por esse vértice de observação, será possível estimar o
preço pago por Candido, na armação de sua perspectiva formativa, em função de sua
militância modernista: ao olhar para o conjunto da história de literatura brasileira pela
mesma lente de Mário de Andrade, sem registrar qualquer discrepância notável para
com ela, também ele, Candido, operou com uma noção de Brasil que necessariamente
reduzia a quase nada a complexidade das discrepâncias regionais, uma vez naturalizada
a visão do país todo ao seu centro.
Quanto ao ponto cego da idéia de Europa, há ainda muito a pensar. Ian Alexan-
der, que tem sido um leitor minucioso desse tema, na obra de Candido (e na Harold
Bloom89, mostrou que na Formação acontecem sucessivas modulações para acomodar a
experiência estética e política parisiense no patamar de “Europa”; para Ian, australiano
que faz questão de manter tal dado no horizonte de sua análise que nada tem de naciona-
lista, essa identificação de Paris com Europa empobrece imensamente o debate. Penso
mais ou menos da mesma forma, em suma: aquilo que Alencar e Mário viam como sen-
do Europa ― fundamentalmente a cultura de língua francesa processada em Paris ― é o
que a Formação toma como Europa. E isso por certo reduz muito o espectro da varieda-
de real européia.
Pode-se armar uma equação elegante e, creio, representativa: o Machado de As-
sis crítico está para o Romantismo/Alencar como o Antonio Candido da Formação para
o Modernismo/Mário de Andrade; e os dois conjuntos compartilham uma visão centra-
lista, centrípeta, excludente, que não foi inventada por eles, antes está no DNA da orga-
nização do Brasil, desde Portugal e até hoje (e tal centralismo tem tudo a ver, por con-
traste, com a renovação que o trabalho de Jorge Caldeira está promovendo, como vere-
mos adiante). Uma visão que de certa forma simplifica e assim empobrece as duas pon-
tas do processo, a de lá, do centro de referência, e a de cá, da periferia brasileira.
Esclarecendo: não é que o Machado crítico (fundamentalmente até seus quarenta
anos de idade, momento a partir do qual praticamente abandonou a atividade crítica para
se dedicar à ficção e à crônica) ou o Candido até a publicação da Formação não tives-
sem notícia das literaturas inglesa, alemã, italiana, etc.; é que não as colocaram em jogo
no raciocínio de tipo formativo, que tem como pontos de referência o debate português
(forte no tempo de Machado, já bastante secundário para Candido, embora presente nos
círculos letrados brasileiros, que nos anos 1950 ainda se entregavam a discussões sobre
quem era melhor, Eça ou Machado90) e o francês (forte nos dois casos). E por quê? A
89
Ver “Leituras novo-mundistas” e Formação nacional e cânone ocidental: literatura e tradição no Novo
Mundo”.
90
Num ensaio com um tanto de memória, Candido lembra o imenso papel que teve, em suas leituras de
juventude, a presença portuguesa: “Eça de Queirós era o mais lido e conhecido [dos escritores da geração
portuguesa de 1870] (...). Anoto de passagem a coincidência feliz de terem sido contemporâneos dois nar-
radores de nossa língua que eram dos maiores nas literaturas ocidentais: ele e Machado de Assis. E faço a
anotação para dizer que Machado era menos lido, menos conhecido e menos estimado. Sobretudo, menos
incorporado aos hábitos mentais” de sua geração. Está em “Dos livros às pessoas”, em O albatroz e o
chinês, p. 102.

76
primeira resposta está na evidência de que Portugal e França (Paris, mais propriamente)
de fato ditavam normas para os artistas e intelectuais brasileiros entre o final do século
XVIII, passando pelo século XIX como um todo e alcançando até os anos 1950, muito
mais do que qualquer outra tradição culta; assim, é razoável operar a compreensão críti-
ca levando em conta esses dois centros, e não outros. Onde, então, o cabimento para ar-
güir a naturalização de “Europa” em Candido (e em Machado)?
Assunto para muita meditação, que não espero haver entendido suficientemente
mas que pode talvez ser encaminhado provisoriamente do seguinte modo: na obra de
Machado, escritor formado fortemente na tradição francesa, está bem provado que hou-
ve um aporte decisivo, para seu amadurecimento como escritor, vindo da língua inglesa
― a leitura meditada de Lawrence Sterne está na base das Memórias póstumas de Brás
Cubas. Sem essa leitura, o depois famoso humor machadiano seria bem outro, talvez di-
retamente voltairiano, sem o traço inglês que todos nele reconhecem como excelente.
Da mesma forma, Machado é um excepcional freqüentador de Shakespeare, desde jo-
vem, e algumas de suas peças estão no centro da criação machadiana, como é o caso do
Othello. Mesmo assim, quem mais fez sua cabeça foi mesmo a literatura de língua fran-
cesa, incluindo a crítica e a historiografia literária, e por essa tradição ele parecia medir
sua visão das coisas literárias.
Na obra de Candido, que ostenta intensa relação com a cultura de língua france-
sa e um indesmentível empenho de análise e interpretação da literatura brasileira, domí-
nio este largamente dominante no conjunto da obra, ocupam lugar de secundária impor-
tância análises de autores de outras origens. Há alguns casos: os estudos sobre T. S. Eli-
ot (de 1945, reunidos para publicação em 200091), um trabalho sobre Joseph Conrad (re-
dação primeira em 1957, reunido em 1964 no livro Tese e antítese sob o título “Catás-
trofe e sobrevivência”92), e um trabalho sobre Ricardo II, de Shakespeare (1992); o en-
saio sobre o romance de Giovani Verga Os Malavoglia (1970), assim como comentários
sobre outros escritores italianos (Ungaretti e Dino Buzzati); um ensaio sobre Kafka; ou-
tro sobre poema de Kavafis; alguns ensaios sobre o âmbito latino-americano. No con-
junto da obra de um pensador de primeiro nível, o campo não-francês e não-brasileiro
não chega a ser vasto, convenhamos. Mas é por isso mesmo significativo: Candido, lei-
tor de várias das tradições literárias ocidentais, de fato pouco escreveu fora do circuito
França―Brasil; aqui estará, talvez, uma evidência de sua forte afinidade com tal univer-
so de experiências, que tem como contraparte certa falta de fluência em relação a outras
tradições.
Problema algum para a obra de Candido, naturalmente, ou para a de Machado,
menos ainda: o que importa, para essa breve discussão sobre a possível naturalização da
noção de Europa, é tão-só apontar algumas evidências laterais da força que tem a Fran-
ça, muito superior à de qualquer outra nação ou língua européia, na perspectiva, isto é,
na visão de mundo dos dois analistas que aqui ocupam o centro do interesse.
O sertão entra em cena
A modulação feita há pouco, que aponta para o que parecem ser pontos cegos na
perspectiva formativa, ajudará, quando menos, a entrar no novo passo do raciocínio de
modo informado e, quando mais, a considerar as coisas que seguem sempre com essa
preliminar crítica. Dito isso, vamos ao trabalho de Jorge Caldeira, para depois, a partir
dele, voltarmos ao tema de formação em Candido.
91
Ver Bibliografia de Antonio Candido, p. 68-9.
92
Devo a lembrança a Homero Araújo.

77
O debate formativo, nos últimos anos, não tem tanta força pública, e talvez este-
ja destinado às estantes acadêmicas, aos arquivos sem acesso regular. Assim, cabe a
pergunta: há pensadores públicos de temperamento formativo, aparecidos de 1980 para
cá? Arrisco uma resposta, que não dispõe de qualquer consenso: acho que há alguns,
que ocupam lugar de destaque para além dos muros acadêmicos, embora tenham, alguns
deles ao menos, formação e vida profissional dentro deles. Penso nos ensaios de gente
como Caetano Veloso, os psicanalistas Jurandir Freire Costa e Contardo Calligaris e o
professor de literatura e compositor musical José Miguel Wisnik, diversos entre si mas
igualmente empenhados em processar analiticamente a experiência brasileira de forma a
encontrar e descrever constantes, todos eles intervindo na arena pública do debate;
acrescento a essa estrita lista a figura de Jorge Caldeira, jornalista com uma importante
atuação na área da canção popular e com formação na área da Política, em que se douto-
rou. A leitura de seus livros está na base do presente ensaio, desde a biografia de Mauá
(na verdade desde antes, com seu estudo sobre o samba carioca dos anos 20 e sobre No-
el Rosa) e alcançando sua produção mais recente, como os dois volumes de O banquei-
ro do sertão.
Tenho acompanhado com muito interesse suas formulações analíticas, marcan-
temente originais e solidamente argumentadas, que aproveitam as recentes conquistas
empíricas de historiadores como Manolo Florentino e João Luís Fragoso, entre outros.
Caldeira é, na geração atual, talvez o mais formativo dos intelectuais: na conjuntura so-
cialmente progressista deste tempo FHC-Lula, ele tem apresentado um novo diagnóstico
do passado com vistas a disputar na arena viva da política e da ideologia uma visão
prospectiva do país, num movimento mental relativamente otimista que é muito seme-
lhante, em estrutura, ao dos demais ensaístas formativos. Em seu livro mais recente,
História do Brasil com empreendedores (Ed. Mameluco, 2009), ele aprofunda a crítica
a uma tradicional explicação do passado brasileiro, aquela posta de pé por Caio Prado
Jr. Caldeira demonstra, a meu juízo suficientemente, que Caio Prado supergeneralizou
uma visão da história colonial e do Império em que certos traços, como o escravismo e,
mais ainda, o latifúndio, resultam valorizados de modo impróprio. Esses dois aspectos,
escravismo africano e latifúndio, ao lado da condição quase exclusivamente exportado-
ra, embora tenham estado evidentemente no centro da organização econômica e social
que produziu açúcar e café em regime de “plantation”, foram tomados, a partir de Caio
Prado, e sem muita mediação, como verdadeiros para a totalidade do país, quando, diz
Caldeira, no vasto “hinterland” que se estendia de São Paulo para o norte, o oeste e o sul
(imenso e variado território do sertão, tomando a palavra em sentido ultragenérico, terri-
tório em que por certo havia escravidão e latifúndio, mas não sempre, não como contí-
nuo social, nem majoritariamente na geografia), imperava uma organização muito di-
versa, baseada no que Caldeira, liberal sem temor ao nome, chama de empreendedoris-
mo, isto é, ação social e econômica, de indivíduos e grupos, voltada não para a simples
sobrevivência, nem principalmente para a exportação, mas já para a busca de lucro.
(Daqui Caldeira extrai um dos principais argumentos para a demonstração da existência
do mercado interno.) Quem seriam os empreendedores? Os bandeirantes (eles próprios
já mestiços de branco com índio), os índios que eram seus servos ou eram contratados
por eles, os homens livres em sentido amplo ― ou, dizendo de outro modo, os não-
escravos, no sentido estrito em que eram escravos os trabalhadores da plantation ―,
gente que fazia trocas de comércio (mesmo que muitas vezes sem moeda, apenas na
forma de escambo ou na modalidade de fiado a ser saldado em algum momento do futu-
ro), que coureava e tropeava entre o sul e o centro do país, que guerreava, que descobria
rotas e minas pelo sertão afora, constituindo todos um desigual mas forte tecido social

78
ligado ao movimento de mercado interno, sem nexo direto com a exportação da grande
empresa latifundiária escravista localizada no litoral atlântico.
Importante dizer que não se trata, para Caldeira, de repisar a velha e conhecida
dualidade entre sertão e litoral, ou sociedade interiorana de mercado interno (mas sem
moeda) versus “plantation” voltada ao mercado externo, como instâncias distantes: nes-
te livro e num excelente trabalho anterior, A nação mercantilista, Caldeira mostra várias
articulações entre os dois mundos, as duas formações históricas, e afirma, com dados
econométricos recentes que parecem confiáveis, que 86% do PIB brasileiro às vésperas
da Independência era mercado interno, contra 14% externo, e que a larga maioria da po-
pulação brasileira era formada por homens livres, não por escravos. A ser verdade (e
não tenho motivos nem meios para duvidar), aí está uma enorme mudança de patamar
do debate sobre a formação histórica do país; estamos diante de uma necessária altera-
ção de perspectiva. Olhando de trás para diante, poderíamos dizer que Caldeira vocali-
za, com sólidos dados empíricos, o ponto de vista paulista, hegemônico em nosso tem-
po, ou mais restritamente o ponto de vista paulistano, da cidade de São Paulo, que é de
certa forma a síntese desse mundo do sertão, não apenas porque foi, a contar de meados
do século XVI, o ponto português mais avançado em direção ao “hinterland”, mas tam-
bém porque é uma cidade empreendedora, que encarna a talvez mais notável vocação
progressista na economia em todo o país.
Onde entra Candido nessa conta? Bem, o caso é que seu livro mais claramente
voltado a uma descrição histórica93, a Formação da literatura brasileira, depende,
mesmo indiretamente, daquela visão de Caio Prado Jr. Em qual medida, é preciso avali-
ar com detalhe; mas me parece instigante pensar que a Formação é concebida a partir
de São Paulo ― da USP, filha dileta do Modernismo, com tudo que nisso se implica ―
mas versa sobre o passado literário ligado ao universo de Minas Gerais no período do
ouro (caso histórico de extração de riqueza natural, o ouro, diretamente para girar a roda
de mercado mundial já monetizado) e ao mundo da “plantation” fluminense. Nos termos
de Caldeira (se deduzo adequadamente), o ponto de vista histórico da Formação de
Candido é aquele formulado na cidade-síntese do mundo empreendedor, São Paulo, e
com base na ideologia que melhor exprime esse mundo, o Modernismo de combate, o
Modernismo dos manifestos oswaldianos e de Macunaíma; mas o livro de Candido se
ocupa não do sertão, e sim do mundo cuja síntese é o Rio de Janeiro, a cidade que, con-
forme descreve Caldeira (veja-se sua biografia de Mauá), é o oposto do mundo empre-
endedor, dominado que foi (é, ainda?) pela mentalidade de gente que “se julga identifi-
cada com a modernidade, desde que haja garantias que ela seja um privilégio”, em suas
palavras, o mundo que Machado de Assis reprocessa criticamente em sua ficção e que
Roberto Schwarz descreveu com precisão.
(Por que a Formação da literatura brasileira não se ocupa do mundo do sertão?
Resposta simples e aparentemente final: porque o sertão não produzira, até 1950, uma
literatura suficientemente vigorosa; pior que isso: o mundo do sertão é o mundo da tra-
dição oral, e não da palavra escrita, considerando o período todo, desde o século XVI.
Dizendo de modo positivo: foi nas cidades criadas pela “plantation”, especialmente o
Rio de Janeiro, assim como, antes, nas cidades mineiras criadas com o ouro, que a lite-
ratura se criou e circulou. Voltaremos ao ponto.)

93
Há aquele outro livro, já citado, menos exigente do ponto de vista conceitual, concebido especificamen-
te como uma descrição histórica de conjunto: a Iniciação à literatura brasileira, apresentado na orelha
como um “resumo histórico da literatura brasileira, desde as origens no século XVI até os nossos dias”.

79
De certa forma, se poderia pensar que, pela perspectiva de Caldeira, a Formação
de Candido reuniu analiticamente aquilo que seria talvez mais bem analisado se tomado
separadamente, Minas e Rio, ou, nos termos da literatura, Arcadismo e Romantismo.
Por que reuniu tais momentos? O argumento de Candido é que os dois, opostos em ter-
mos estéticos (o Arcadismo com seu internacionalismo classicista, o Romantismo com
seu nacionalismo vanguardista), contribuíram solidariamente para validar o Brasil como
um lugar inserido no sistema geral do Ocidente. Então haverá razão histórica de ordem
estrutural para, pensando a partir de Caldeira, reunir numa mesma visada, numa mesma
explicação, as duas formações históricas distintas, a da “plantation” hegemônica na
formação do estado nacional brasileiro na Independência, e a do sertão, longe desse
processo embora a ele associada? Temos aqui uma peculiaridade história que vale a pe-
na esmiuçar. O caso é que Minas por um lado pertence ao mundo do sertão e do empre-
endedorismo caldeiriano ― as descobertas das minas dependeram diretamente de em-
preendedores, que queriam lucro, e nas cidades geradas pelo ouro prosperou, como em
qualquer cidade, a vida empreendedora de milhares de indivíduos, em ofícios especiali-
zados, em tarefas artesanais, e até mesmo na burocracia, nas forças policiais e militares
e no mundo religioso, para nem falar do temperamento algo empreendedor implicado
nas idéias de autonomia poilítica, cogitadas nas mesmas cidades ―; por outro lado, Mi-
nas se liga fortemente ao mundo da “plantation” hegemônica no litoral, o mundo da
produção do açúcar e do café, porque a extração do ouro foi feita grandemente com
mão-de-obra escrava negra, a mesma que organizava a economia exportadora brasileira,
e também porque a organização do estado português no Brasil por assim dizer transitou
entre Salvador, Vila Rica e Rio de Janeiro, o que faz dessas cidades uma teia que está na
origem do estado brasileiro.
Então Candido tem razão em reunir os dois momentos em uma mesma visada,
por certo. Mas não estão isentos de ambivalências nem o processo histórico da sucessão
Minas―Rio, nem a leitura de Candido sobre as afinidades entre os dois momentos lite-
rários relativos a Minas e ao Rio. A conta completa, aliás, não envolveria apenas uma
sucessão de dois estágios, mas de três, desde o século XVIII: de Minas, seu ouro, sua
burocracia, seus empreendedores e seu Arcadismo, passa-se ao Rio, seu café, o Estado
nacional brasileiro organizado e seu Romantismo (mas também a literatura do fim do
século e a Academia Brasileira de Letras), e chega-se finalmente a São Paulo, seu café e
sua indústria, a República que patrocina e o Modernismo que pratica e entroniza. (Isso
deixando de lado Salvador, com seu açúcar, sua vida urbana, seu relativo requinte cultu-
ral, seu Barroco, etc., conjunto que, porém, poderia ser integrado ao raciocínio, em certo
sentido, mas contrariando o pressuposto de Candido para a formação do sistema literá-
rio, para ele ausente no século 17 baiano.94)
Assim, não é que Minas e Rio devessem ser vistos isoladamente em função da
visão do Caldeira, que coloca em cena o mundo do sertão como protagonista da cons-

94
Essa hipótese de integração tem, parece-me, grande cabimento, mas não será discutida em detalhe aqui.
Para considerá-la, será preciso alterar uma cláusula aparentemente pétrea da visão de Candido, justamente
a que não reconhece a existência de sistema de produção e circulação regulares de literatura na Bahia do
século 17. Como alterar? O ponto-chave se liga a uma mudança da visão estritamente sincrônica que
Candido estabelece: se de fato Candido tem razão em não reconhecer tal sistema no século 17 baiano, e o
tem, por outro lado é certo que no século 18 e seguintes a Bahia conhecerá a produção e a circulação de
literatura culta de modo sistêmico, fato singelo cujo reconhecimento de alguma forma repõe Salvador no
mapa formativo, em sincronia com as demais cidades brasileiras com vida letrada, com o acréscimo nada
desprezível de haver sido sede de escola superior (dos jesuítas) e de alta burocracia letrada desde o século
17 mesmo, para nem recuar ao 16, e de haver visto florescer, mesmo que sem a circulação regular e/ou
em livro, a obra de grandes como Vieira e Gregório de Matos.

80
trução brasileira, e o motivo é simples de enunciar: a rigor, sendo o objeto de Candido a
literatura (poderíamos dizer, para ênfase, literatura culta), é óbvio e fatal que seja ela
compreendida em termos adequados, como uma forma artística e uma prática social
marcantemente urbanas, cultas, letradas, ocidentais, exigentes, tendencialmente sem
importar a marca do lugar específico; nesse sentido e nesses termos, Minas no último
terço do séc. 18 e o Rio do século 19 são de fato ambientes aparentados, que têm tudo
para ser vistos como continuidade, como permanência, como partes de um mesmíssimo
circuito, ou sistema, para usar o termo de Candido. Haveria algum matiz de distinção
entre Minas e Rio, sublinhado por Caldeira e ignorado por Candido? Sim, há, mas não é
óbvio, nem imediato. Candido olha para o continuum Minas―Rio a partir do Moder-
nismo paulista, e o que dá tutano a essa perspectiva é o ângulo europeu (francês, mais
restritamente), que olha para a instauração e o desenvolvimento da literatura culta em
um país da América.
Mas há o outro lado, potencial ao menos: se a Minas urbana, das cidades organi-
zadas em função da exploração e do controle da produção do ouro, está integrada nesse
continuum, não assim a Minas do sertão, que estará integrada ao mundo daquela outra
formação, que Caldeira qualifica como sendo a dos empreendedores, fora da Corte, fora
da literatura culta e mesmo fora do português culto (praticando a chamada “língua ge-
ral”, misto de tupi com português, falado francamente nesse ambiente e até usado para
registro escrito eventualmente, língua ou dialeto que não chegou às alturas da literatura
escrita naquele momento, nem no Romantismo95). Esse outro mundo importa para a lite-
ratura, então? Sim, importa: não no século 18 mesmo ― a menos que tomemos um caso
notável como O Uraguai, de Basílio da Gama, de 1769, como sendo um esforço de fa-
zer falar o sertão na língua da literatura, hipótese interessante e futurosa, mas que preci-
saria ser demonstrada ―, mas a longo prazo é este mundo que vai falar na obra de
Afonso Arinos (Pelo sertão, de 1898), e a partir dela na literatura produzida nesse
mundo, até ao menos o gênio Guimarães Rosa, que não se explica pela pauta do Moder-
nismo paulista e sim por esse outro continuum, de que a literatura dita regionalista, de
um pedante esquecível como Coelho Neto a um gênio não totalmente realizado como
Simões Lopes Neto, é um termo médio indispensável. Nessa tradição se inscrevem ain-
da outros nomes, aqui apenas evocados: o Bernardo Guimarães romancista; Manuel de
Oliveira Paiva; Monteiro Lobato, o dos contos mas também o da criação do mundo fic-
cional infantil; uma variedade de pesquisadores de valor e obra muito irregular, como
Valdomiro Silveira e Cornélio Pires, assim como os contos e novelas de Hugo de Car-
valho Ramos e de Alcides Maya; e o caso paradigmático de Euclides da Cunha, com
seu ensaio sobre o sertão mas dirigido à cidade moderna ― “este não é um livro de de-
fesa [dos sertanejos], é infelizmente, de ataque”, disse ele mesmo, nas notas à segunda
edição96.
E neste outro processo se poderá ver essa linhagem muito significativa de narra-
tivas (e também de formas poéticas, incluindo as que se expressam na canção), linha-
gem que a visão modernista, urbanófila, desprestigia, negligencia ou simplesmente re-
nega, linhagem que demonstra o parentesco de todo o mal chamado “regionalismo” (o
bom e o ruim, que em descrições históricas não se devem excluir enquanto elementos
do processo de formação), literatura que, para acrescentar outro elemento, guarda liga-

95
Rodolfo Ilari anota que eram várias as “línguas gerais” no Brasil, e que uma delas “continuou sendo fa-
lada em São Paulo até o início do século XX”, apesar de ter havido proibição formal de uso de língua ge-
ral em contexto escolar, por Pombal, em 1757. Ver O português da gente, p. 62.
96
P. 783 da edição de Leopoldo Bernucci.

81
ções importantes com a tradição narrativa oral, seja nos temas (lendas, imaginário indí-
gena, etc.), seja nas formas (formas arcaicas de relato e poesia, a linguagem, o narrador
totalmente identificado com o protagonista em Simões Lopes Neto e em Guimarães Ro-
sa, etc.97). Quer dizer: para enxergar essa linhagem, para ver seus lineamentos e suas li-
gações com o mundo do sertão de Caldeira, é absolutamente central por em tela de juízo
ao Modernismo, que se apresenta como processo unificado, unitário, unificador mesmo
a respeito de obras de que devem sua força a bem outros elementos, outros processos,
outra formação histórica; ao Modernismo, que se compreende como a culminação de
tudo e a prefiguração de tudo, e com isso obscurece várias facetas, vários processos, em
particular esse mundo do sertão caldeiriano; ao Modernismo, que está invisível mas in-
desmentível nas entranhas da visada formativa de Candido98.
Perspectivas
Que nova “formação”, ou melhor, quais novas perspectivas sobre a formação de
um sistema literário no país se tornam possíveis ao considerarmos essa historiografia
mais recente sobre o Brasil, em especial as teses de Caldeira? Se conseguirmos identifi-
car e neutralizar a fantasia de onipotência que há décadas se atribui o Modernismo pau-
lista, tanto na produção literária quanto, pior ainda, na crítica e na historiografia literá-
rias, e que homogeneizou descritivamente a cultura letrada brasileira ao custo de apagar
muitas diferenças relevantes, creio que será possível diagnosticar processos interessan-
tíssimos de formação do sistema literário e cultural no país, que agora são invisíveis em
função do monopólio modernistocêntrico. Muitas perguntas serão formuláveis, muitas
descrições novas serão possíveis.
Qual o tamanho dos sistemas não-hegemônicos, que na pressa modernista fica-
ram reduzidos ao rótulo de “regionais”, rótulo que de saída rebaixa o objeto a que se re-
fere? Qual sua função? Qual sua capacidade de gerar leitores? Qual sua possibilidade de
produzir obras de alto valor literário? Como funcionam os casos de formações não-
hegemônicas que compartilham materialidade histórica e formas culturais com outras
línguas e culturas (pensemos no caso do sul, com tanta identificação social e estética
com os países do Cone Sul, ou na grande comarca da Amazônia)? Qual o lugar de Mon-
teiro Lobato, com sua visada antimodernista, ou antivanguardista, inegável, no processo
real de criação de leitores? Que peso teria a resposta a essa questão na avaliação do câ-
none escolar de hoje? Qual o sentido de sua oposição ao projeto modernista, que ele viu
nascer e crescer (mas não chegou a ver hegemônico)? Qual o nexo entre a poesia mo-
derna e a poesia simbolista, que é forte mas se tornou invisível pela militância exclusi-

97
Num ensaio prenhe de idéias sobre o tema (ainda que tenha como objeto algo diverso), José Hildebran-
do Dacanal aventava, no começo da década de 70, uma descrição que ainda hoje guarda interesse para o
presente debate. Ali, Dacanal postulava uma divisão em três do país, em termos de organização econômi-
ca, social e cultural: haveria o Brasil da Costa, integrado à Europa (o mundo da “plantation” mas também
dos grandes portos exportadores e das grandes cidades); próximo da Costa haveria o que ele chamou de
Interior I, espaço e sociedade agrários integrados econômica e culturalmente à Costa; e haveria o Interior
II, o espaço do sertão, com pouca relação orgânica com o Interior I e a Costa. A Costa é o território da li-
teratura reconhecida como culta, o mundo de Alencar, Machado de Assis e da Academia; o Interior I é o
mundo de Bernardo Guimarães, Simões Lopes Neto, Monteiro Lobato, Erico Verissimo; o Interior II é fi-
nalmente o mundo de Euclides da Cunha, talvez de Graciliano Ramos, de Guimarães Rosa. O ensaio se
chama “Dependência cultural: notas para uma definição”; sua edição mais recente está em Ensaios esco-
lhidos.
98
Desculpada a autocitação, escrevi um texto a respeito do nexo entre a hegemonia do Modernismo de
feição paulistana e a má (inapetente, equivocada) apreciação da literatura dita regionalista: “Conversa ur-
gente sobre uma velharia ― Uns palpites sobre a permanência do regionalismo”, em Cultura e pensamen-
to, nº 3, São Paulo, dezembro de 2007.

82
vamente antiparnasiana de Mário de Andrade? Qual o nexo entre o romance realista dos
anos 30 e 40 (Jorge Amado, Erico Verissimo, Rachel de Queirós, etc., que encontraram
a linguagem narrativa capaz de realmente imantar leitores em massa no país) e o realis-
mo-naturalismo de duas gerações antes? Não haverá aqui mais continuidade do que rup-
tura, ao contrário do que tem dito a historiografia modernistocêntrica?
E, mais genericamente, o que poderemos dizer da criação letrada oriunda do
mundo do sertão caldeiriano? Ele é igual ao do mundo da “plantation”? Ele fala a mes-
ma língua, ao longo do tempo? Certo, o mundo do sertão é pouco letrado, ao longo do
tempo, e se valia da língua geral para falar e anotar os negócios, para nem dizer que
precisava lidar com o espanhol em toda a fronteira, assim como com línguas indígenas;
mas esse mundo de escassa tradição letrada acedeu à escrita em algum momento, nem
que seja o momento final do século 19 e inicial do século 20, quando sua cidade-síntese,
São Paulo, explode economicamente e engole sucessivas legiões de operários e de imi-
grantes, que se somam aos incontáveis descendentes de índios já amalgamados à popu-
lação ― e quem vai expressar essa experiência no plano das letras? Resposta rápida: a
música caipira, Adoniram Barbosa e... o Modernismo de São Paulo.
Quer dizer: me parece que temos muito para pensar e descrever, em favor de
deixar aparecer mais nitidamente a produção literária feita em língua portuguesa no
Brasil: mais estilos, mais vozes, mais textos, mais práticas de leitura terão direito à exis-
tência no plano da crítica e da historiografia. Assim como, talvez mais importante do
que tudo, essas variedades terão direito à existência no repertório de leitura dos brasilei-
ros, fortemente dependente do que é oferecido na escola, a qual hoje só enxerga e só re-
passa adiante o que está sancionado pelo cânone modernista paulistano, o que sobrevive
a esse restrito filtro.
Assim, a interpretação de Caldeira ilumina a história brasileira com uma luz re-
lativamente nova e muito interessante, incluindo a produção literária, que porém não es-
tá entre seus objetos imediatos. Por um lado, o Modernismo paulista, visto por esse ân-
gulo, perde parte da centralidade que adquiriu, em processo histórico descrevível mas
nunca descrito em detalhes (embora intuído por mais de um intelectual, começando tal-
vez por Sérgio Miceli em seus estudos sobre os intelectuais e escritores da República
Velha e do tempo de Vargas): ele deverá ser reposto como uma vanguarda relevante, de
grande poder de imantação e de vistas largas, sem dúvida, mas também como uma van-
guarda que chegou ao poder, o político (já com Mário em São Paulo, depois com a cria-
ção do Serviço de Proteção ao Patrimônio Histórico e Artístico, já envolvendo Rodrigo
Mello Franco de Andrade, o mesmo Mário e Augusto Meyer, além de Carlos Drum-
mond de Andrade, entre outros) e o ideológico (já com a criação da USP, depois com a
indústria cultural moderna, etc.). E, tendo chegado ao poder, impôs sua visão das coisas,
mas ― aqui um paradoxo interessante ― mantendo uma reivindicação de energia utó-
pica e inconformista, quer dizer, mantendo o charme da vanguarda que não está no po-
der, que ainda quer conquistar o poder que de fato já tem. Um paradoxo que valeria a
pena descrever e que, uma vez descrito, verá desativada parte de sua descomunal força
institucional.
Mas esse mesmo Modernismo também ganharia, nessa hipotética nova descri-
ção, ao menos um traço novo: a qualidade de ser a culminação da construção do sertão,
um ponto alto na trajetória de crescente força na expressão letrada culta de uma cidade
que é a mais sofisticada construção histórica do mundo do sertão. Neste caso, Mário de
Andrade passaria a figurar com mais clareza como o pensador deste mundo, o do sertão,
o que ele é em certo sentido evidente, nas pesquisas sobre música popular que ele fez,
mas que em outro sentido não é evidente, por exemplo na síntese (confusa, problemáti-

83
ca) que ele tentou fazer do Brasil todo, mas com ênfase no mundo do “hinterland”, em
Macunaíma, em que a cidade é uma coisa demoníaca, por sinal tendo como demônio-
mor um italiano endinheirado, e em que o mundo primitivo é uma utopia regressiva. Em
sentido mais geral, a visão de Caldeira pode ajudar a mostrar que o combate modernista
foi mesmo uma parte decisiva da disputa pela hegemonia entre o mundo paulista, fruto
da formação histórica do sertão, e o mundo carioca, fruto refinado e derradeiro da for-
mação história da “plantation”, do açúcar da Bahia e do café da província fluminense;
entre o mundo nascido da força “empreendedora” e o mundo brotado da força cortesã,
do jeitinho, do pistolão.
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84
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primeira república. São Paulo: Brasiliense, 1983.

85
A História da Leitura e suas repercussões na História da Literatura99
Regina Zilberman100
Resumo:
Apontam-se as tendências e resultados da História da Leitura no século XX, destacando o papel da Estéti-
ca da Recepção. Examina-se O Uraguai, de Basílio da Gama, desde as contribuições da História da Leitu-
ra, valorizando seus elementos inovadores à época de sua produção.
Palavras-chave: História da Literatura; Leitura; Estética da Recepção; Basílio da Gama; O Uraguai.
Abstract:
The tendencies and results of the History of Reading in the 20th century are pointed out, highlighting the
role of Aesthetics of Reception. O Uraguai by Basilio da Gama is examined from the contributions of the
History of Reading, valuing its innovative elements at the time of its production.
Keywords: History of Literature; Reading; Aesthetics of Reception; Basilio da Gama; O Uraguai.
A História da Literatura é uma história da leitura
Contrapor História da Literatura e História da Leitura pode parecer falacioso. A
História da Literatura constitui uma história de leituras, pois ela, no mínimo, agrupa os
modos como as obras, na maioria das vezes literárias, foram acolhidas ao longo do tem-
po. E esses acolhimentos – que podemos resumir na palavra “recepção” – podem variar,
já que passam por escrutínios que se modificam ao longo das épocas. Nossos primeiros
românticos elevaram Gonçalves de Magalhães ao panteão dos grandes, ao considerá-lo
responsável pela “tão desejada reforma da poesia brasileira”, como escreve Joaquim
Norberto de Souza Silva, em 1841;101 atualmente talvez constitua uma linha no progra-
ma de Literatura Brasileira dos cursos de graduação.
Robert Escarpit, no capítulo “Succès et survie littéraire” de Le littéraire et le so-
cial,102 coletânea que publicou em 1970, procede a uma análise comparada das histórias
literárias francesas para identificar por quanto tempo perdura o prestígio de um autor.
Constata que apenas 50% do passivo de uma tradição literária permanecem em circula-
ção no presente, o que significa que, a cada intervalo de aproximadamente quarenta
anos, autores aclamados em outros períodos apagam-se paulatinamente até desaparecer
no horizonte.
Alguns historiadores, cientes de que o patrimônio literário não se faz apenas com
vultos ilustres ou bem-sucedidos, buscam restaurar esses nomes e reintegrá-los a uma
trajetória nacional. A Formação da literatura brasileira, de Antonio Candido, é exem-
plar, pois, elegendo um recorte temporal relativamente curto (1750/1880), se comparado
aos equivalentes no gênero, buscou resgatar nomes e faixas cronológicas que poucos até
hoje conhecem, apreciam ou difundem.
Se Candido se preocupou em enfatizar os poemas de José Bonifácio de Andrade
e Silva ou a prosa de Monte Alverne, é porque valorizou esse capital cultural como par-
te da constituição de uma tradição militante de nossa literatura, focada em questões pú-

99
Originalmente conferência apresentada no VII Congresso Nacional do Programa de Pós-Graduação em
Letras: Políticas da Literatura – 40 Anos do PPG-Letras; XX Seminário de Estudos Literários. Instituto de
Biociências, Letras e Ciências Exatas, UNESP-São José do Rio Preto, 06/06/2019. Revista Araticum.
Programa de Pós-graduação em Letras/Estudos Literários da Unimontes. v. 19, n. 1, 2019. ISSN: 2179-
6793. Endereço: http://www.revistaaraticum.unimontes.br/index.php/araticum/article/view/470.
100
Doutora em Romanística pela Universidade de Heidelberg (Alemanha), com estágios de pós-
doutorado no University College (Inglaterra), e na Brown University (EUA). É professora associada do
Instituto de Letras (UFRGS) e pesquisadora 1A (CNPq).
101
SILVA, 1841. p. 47.
102
ESCARPIT, 1970. p. 129-163.

86
blicas e coletivas de que a geração das primeiras décadas do século XIX não abriu mão.
Contudo, sua escolha não bastou para que aqueles autores – ou contemporâneos deles,
como, entre outros, Januário da Cunha Barbosa, Borges de Barros ou Justiniano José da
Rocha – fossem reincorporados aos mecanismos de circulação de que a produção artís-
tica se vale, as instituições seculares que respondem pelo nome de escola, Academia ou
crítica.
O Romantismo brasileiro, na concepção de Antonio Candido, é uma, a de auto-
res como Nelson Werneck Sodré (História da literatura brasileira) ou de Alfredo Bosi
(História concisa da literatura brasileira), é outra, ainda que os três se alinhem à Socio-
logia da Literatura. Fatos e processos são interpretados de modos diversos pelos pesqui-
sadores, e essa distinção não evidencia apenas posicionamentos pessoais diferenciados,
mas modelos de leitura do passado nacional, indicativos da instabilidade do gênero his-
toriográfico, logo, de sua permanente mutabilidade.
A História da Literatura é, pois, uma história de leituras, e suas variações não
decorrem apenas da possibilidade de incluir ou excluir nomes, obras ou épocas. É que,
como sabemos, o olhar dos pesquisadores é movido por sua posição no presente. Assim,
se for o momento de prestigiar a vocação dos autores à representação da nacionalidade,
independentemente do que entendamos por esse termo, tomam a frente do palco criado-
res que privilegiaram a natureza americana, os habitantes nativos, as manifestações ver-
bais próprias do Novo Mundo. O Indianismo, por exemplo, é entendido como um ponto
de chegada das expressões coloniais, e seus desdobramentos incluirão o Regionalismo,
o Modernismo de 1922, o romance de 1930. Por outro lado, se escolhidas a transgressão
às normas e a invenção formal como vetores da trajetória da poesia e da ficção nacio-
nais, os protagonistas da História da Literatura serão outros, abrindo com Gregório de
Matos, seguindo por Souzândrade e desembocando, não no Mário de Andrade de Ma-
cunaíma, mas no Oswald de Andrade das Memórias sentimentais de João Miramar e do
Serafim Ponte Grande.
Por conter uma dinâmica em permanente movimento, já que se trata de uma his-
tória de leituras desde o visor da época de seus pesquisadores, a História da Literatura é
um jogo de combinações bastante permissível – portanto, nem sempre muito confiável,
o que incita novas pesquisas e contribuições.
Porém, a História da Leitura é outra
Seria, contudo, reducionista limitar a História da Leitura ao itinerário dos arran-
jos e interpretações que constituíram a História da Literatura ao longo do tempo. Seu
avanço enquanto área de conhecimento deveu-se sobretudo à relevância dada à figura
do leitor no contexto da pós-modernidade, isto é, após o apogeu das teses formalistas e
vanguardistas que dominaram o cenário artístico na primeira metade do século XX.
Nomear o leitor – sujeito, digamos, da História da Leitura – é uma tarefa delica-
da, já que essa função pode ser entendida de modos distintos; além disso, nunca foi ig-
norada, pelo menos desde as primeiras poéticas nos idos de Platão e Aristóteles. Para
este pensador, as melhores tragédias, seu gênero predileto, eram as que provocavam, de
maneira mais eficaz, o efeito catártico, a saber, a liberação das emoções decorrentes da
experiência, pelo espectador, do terror e da piedade.103 A catarse mobiliza o sujeito da
recepção, e esse não passa incólume pelo espetáculo dramático. O destinatário também
é levado em conta quando se atribui à poesia uma função pedagógica, como sugerem

103
ARISTÓTELES, 1966.

87
Platão, na República, e Horácio, na Arte Poética, quando recomenda o docere cum de-
lectare enquanto finalidade do objeto artístico.
A sistematização das teorias do leitor e da leitura, porém, teve de aguardar a se-
gunda metade do século XX. Também aqui a conta não está sendo exata, pois, antes da
Estética da Recepção se organizar, no final dos anos 1960, muito já tinha sido produzi-
do, e elencam-se pelo menos duas linhas de reflexão:
1. As investigações no âmbito da Sociologia;
2. Os estudos formalistas e estruturalistas promovidos primeiramente em Mos-
cou e, depois, em Praga.
Talvez se possa atribuir ao alemão L. L. Schücking, autor de A sociologia do
gosto literário, de 1923, um papel fundador, pois é provavelmente o primeiro pesquisa-
dor a analisar não apenas as preferências do público, mas também o efeito dessas predi-
leções sobre a produção, circulação e prestígio das obras artísticas. Desses efeitos se
constitui a história da literatura, que registra a soma dos resultados bem-sucedidos na
sequência da cadeia cronológica.104
O estudo de Schücking, traduzido para o inglês, fomentou investigações sobre o
comportamento do público na Grã-Bretanha, em especial sobre as escolhas da audiência
constituída pelas camadas populares, alfabetizadas desde o século XIX e com crescente
influência no mercado. The Fiction and the Reading Public, de Q. D. Leavis, é exem-
plar da vertente designada, na esteira do livro de Schücking, como Sociologia da Leitu-
ra. Seu objetivo é identificar que obras os leitores originários das classes trabalhadoras
preferem, considerando que se trata de um público emergente. A constatação de que es-
se novo contingente opta por consumir obras sem maiores preocupações artísticas, de
conteúdo repetitivo e reconfortante, desagrada a pesquisadora, pois, segundo ela, dá
margem à ascensão e fortalecimento da literatura de massa, avessa à vanguarda e à ino-
vação.105
Do Formalismo russo talvez não se devesse esperar teorias sobre o leitor, com-
penetrado em definir a literariedade, vale dizer, o que assegura a qualidade artística de
uma criação literária.106 Contudo, já entre as primeiras teses, Victor Chklovski postula
que toda obra artística produz um efeito de estranhamento em seu destinatário por força
das estratégias formais e linguísticas de que está permeada. É graças a esse resultado
que o novo se evidencia, e a natureza recepcional deste conceito é tão forte, que parece
ter sugerido a Berthold Brecht a noção de distanciamento,107 segundo o qual cabe à arte
modificar a visão de mundo e o comportamento do espectador da cena dramática. Da
noção de estranhamento Iuri Tinianov extraiu sua concepção de evolução literária – ou
seja, de funcionamento da História da Literatura, cuja movimentação se faz à custa de
rupturas provocadas por experiências inovadoras, capazes de desfigurar ou rebaixar, por
meio da paródia, o convencional e propor uma orientação inesperada aos objetos estéti-
cos.108

104
SCHÜCKING, 1966.
105
LEAVIS, 1979.
106
EIKHENBAUM, B. et alii., 1970.
107
LACHMANN, Renate. Die ‘Verfremdung’ und das ‘neue Sehen’ bei Viktor Sklovskij. Poetica 3,
1970, p. 226-49.
108
EIKHENBAUM, B. et alii. Teoria da Literatura: formalistas russos. Porto Alegre: Globo, 1970.

88
O Estruturalismo tcheco oferece outro ângulo à questão, como procede Jan Mu-
karovsky, em ensaio de 1934, no qual postula a natureza sígnica da arte. Configurando-
se como signo, a arte é comunicativa, presumindo, assim, um recebedor, encarregado de
decodificar os significados transmitidos por uma obra e convertendo-a, de mero artefa-
to, em objeto estético.109 A partir desse pressuposto, os estruturalistas formulam novo
modelo de história da literatura vinculada à recepção, como se verifica nos ensaios de
Felix Vodicka, para quem interessa verificar como se dão os processos de acolhimento
das criações literárias, sintetizados nas manifestações da crítica especializada, nas poé-
ticas dominantes ou no ensino escolar e acadêmico.110 Identificam-se os modos como
ocorreu a recepção dos produtos oferecidos na condição de literatura e o impacto que
alcançaram, material registrado pela História da Literatura, elaborada não na perspectiva
dos autores, mas sob o prisma do público letrado, evidenciando a vitalidade e perma-
nência dos textos no decorrer do tempo.
Com pautas e propósitos distintos, a Sociologia da Leitura, o Formalismo russo e
o Estruturalismo tcheco propõem a construção de uma História da Literatura movida pe-
las interferências do público em nível coletivo ou do recebedor no plano individual.
Contudo, competiu à Estética da Recepção assumir a paternidade por uma teoria da His-
tória da Literatura fundada no leitor, convertido em protagonista de uma narrativa ino-
vadora.
A História da Literatura reage: Estética da Recepção
É em A História da Literatura como provocação que Hans Robert Jauss procura
lançar as bases de uma reflexão teórica que afirme a historicidade do fato literário, his-
toricidade essa que justifica a existência e disseminação da História da Literatura.111
Seu ponto de partida, válido para os anos 1960, quando o livro começou a circu-
lar, era o reconhecimento da falência da História da Literatura enquanto área de pesqui-
sa e docência, àquele tempo efetivamente combalida após os confrontos com o triunfan-
te Estruturalismo. Segundo Jauss, o fracasso da História da Literatura devia-se aos pró-
prios erros: carecia de perspectiva histórica e não dispunha de instrumentos para avaliar
a qualidade das obras do passado. Apoiava-se na tradição e deixava o barco andar;
quando se deparou com os entraves advindos do sucesso do Estruturalismo, naufragou.
Como recuperar a ciência perdida? O caminho proposto por Jauss, segundo ele
bastante radical, consistia em reconhecer que a historicidade da literatura depende, em
princípio, da ação do leitor: se uma obra permanece no horizonte do leitor do presente,
ela é atual e contemporânea, independentemente da época de sua produção. A persistên-
cia das concretizações garante a vitalidade dos textos; e são essas concretizações que a
História da Literatura deve registrar.
Parece pouco, mas não é; e, em estudos posteriores, Jauss evidencia que seu mé-
todo não se limita à aparente tautologia da primeira de suas sete teses, arroladas na Pro-
vocação. Em ensaios como La douceur du foyer, por exemplo, ele reconstrói o horizon-
te sincrônico dentro do qual se enfrentam poemas conformistas, como os de Victor Hu-

109
MUKAROVSKI, Jan. A arte como fato semiológico. In: TOLEDO, Dionísio (Org.). Círculo Linguís-
tico de Praga: estruturalismo e semiologia. Porto Alegre: Globo, 1978.
110
VODICKA, Felix. A história da repercussâo das obras literárias. In: TOLEDO, Dionísio (Org.). Op.
cit.
111
JAUSS, Hans Robert. Literaturgeschichte als Provokation. Frankfurt: Suhrkamp, 1970. JAUSS, Hans
Robert. A História da Literatura como provocação da ciência literária. São Paulo: Ática, 1994.

89
go, e transgressores, como As flores do mal, de C. Baudelaire, para mostrar quanto esse
livro carrega de inovação e contestação a normas vigentes.112 Em “O texto poético na
mudança de horizonte de leitura”, ele discrimina os sucessivos contextos diacrônicos
com os quais o poema “O cisne”, de C. Baudelaire, interagia.113 Desses universos, pas-
sado ou presente, participa o crítico ou o estudioso da literatura, de modo que ele não
constitui figura externa ou alheia ao processo historiográfico, mas interna, na condição
de seu agente e mobilizador da atualização das obras.
A História da Literatura, por força da ação do leitor, não coincide com o alinha-
mento cronológico a que foi condicionada desde sua institucionalização, mas se mostra
móvel, permanentemente em transformação e organizada desde a posição de quem ob-
serva seu objeto. Em vez do passado imobilizado, tem-se o presente em mutação, des-
contínuo e requerendo interpretação, essa igualmente movediça, em decorrência das al-
terações de diversas ordens que ocorrem ao sujeito da leitura, às convenções vigentes, à
sua época e sociedade.
Não apenas a História da Literatura deixa de se evidenciar como um mecanismo
estático e pré-formatado. Também as obras, mesmo as canônicas e aparentemente in-
contestáveis, revelam-se mutantes, oferecendo-se ao limiar contemporâneo não como
mortos-vivos que, originários de outros tempos, assombram leitores de hoje, mas en-
quanto seres plenos de vitalidade, que exigem ser desvendadas pelos destinatários. Co-
mo esses jamais são idênticos, as respostas serão igualmente distintas, revelando a face-
ta permanentemente nova dos textos em circulação.
Essa, parece-me, é a parte boa da Estética da Recepção: ao destacar a interferên-
cia dos sujeitos da leitura no processo de atualização e renovação do patrimônio literá-
rio, rompe com o paradoxal imobilismo da História da Literatura, que, desde esse ponto
de vista, não coincide com a tradição congelada no tempo. Por decorrência, a obra não
se apresenta enquanto produto acabado e intocável, e sim na condição de ser mutante e
em movimento.
Contudo, cabe apontar os limites da Estética da Recepção conforme Hans Robert
Jauss a propõe e pratica, sobretudo em seu período áureo, do final dos anos 1960 ao
começo dos anos 1980, antes, porém, da denúncia de seus vínculos com o exército na-
zista, o que enfraqueceu crescentemente sua influência no sistema intelectual, teórico e
metodológico da Ciência da Literatura.114
Um dos limites do pensamento de Jauss deve-se à sua concepção de literatura,
restrita aos clássicos do passado. Por causa disso, a História da Literatura que tem em
mente registra os textos canônicos, cujo valor precisa ser revalidado pelo presente. Seu
procedimento metodológico não abre espaço para o que não obteve lugar nas histórias
literárias consagradas, de modo que ficam fora de seu escopo as produções que, por vá-
rias razões, foram marginalizadas ou ignoradas.

112
JAUSS, Hans Robert. La douceur du foyer - Lyrik des Jahres 1857 als Muster der Vermittlung sozialer
Normen. In: WARNING, Rainer. Rezeptionsästhetik. München: Fink, 1975.
113
JAUSS, Hans Robert. Der Poetische Text im Horizontwandel der Lektüre (Baudelaires Gedicht:
"Spleen III"). In: ___. Ästhetische Erfahrung und literarische Hermeneutik. Frankfurt: Suhrkamp, 1982.
114
ETTE, Ottmar. Der Fall Jauss. Wege des Verstehens in eine Zukunft der Philologie. Berlim: Kultur-
verlag Kadmos, 2016. RICHARDS, Earl Jeffrey. Vergangenheitsbewaltigung nach dem Kalten Krieg.
Der Fall Hans Robert Jauss und das Verstehen. Germanisten. Zeitschrift schwedischer Germanisten, n. 1,
p. 1-15, 1997. WESTEMEIER, Jens. Hans Robert Jauss: Jugend, Krieg und Internierung. Konstanz: Uni-
versitäet Konstanz, 2015.

90
Falta também à metodologia da Estética da Recepção a referência às condições
de produção da leitura, que afetam críticos e público em geral, cada um a seu tempo e
circunstância. E que repercutem também sobre o autor, ele mesmo um leitor. Jauss in-
vestiga esse ângulo da questão, depreendendo, a partir de um dado texto, quais códigos,
sobretudo ideológicos e culturais, determinaram sua elaboração. Investiga também que
livros – vale dizer, que leituras – subjazem à produção de uma obra; porém, acompanha
o trânsito desse conhecimento sem estabelecer conexões com o tempo, espaço e socie-
dade vividos por cada um dos criadores. A título de exemplo, cite-se o estudo “Der dia-
logische und der dialektische Neveu de Rameau”, que faz parte do segundo volume de
Ästhetische Erfahrung und literarische Hermeneutik, de 1982.115
Nesse ensaio, Jauss examina o caminho do discurso dialético que, originário do
método socrático, reaparece em Le neveu de Rameau, de Denis Diderot, e é apropriado
por Hegel, não mais como prática metodológica, mas como modo de descrever o funci-
onamento da história. De certo modo, Jauss almeja enfraquecer a importância do pen-
samento de Hegel, fundamento da dialética marxista; contudo, ao descontextualizar as
formulações de cada um dos intelectuais nomeados no título de seu trabalho, estabelece
uma continuidade autossuficiente, como se pairassem acima de seu mundo e conversas-
sem apenas entre si.
Outro ensaio, cronologicamente anterior, ressente-se da carência apontada, ainda
que Jauss não a desejasse. Assim, em "Racines und Goethe Iphigenie. Mit einem Na-
chwort über die Partialität der rezeptionsästhetischen Methode",116 o autor propõe uma
conexão entre Eurípedes, Racine e Goethe, dramaturgos responsáveis por tragédias de-
dicadas à mítica Ifigênia, para destacar a natureza emancipadora do artista alemão e,
com isso, como ele sugere, libertar aquela composição das amarras que a prendem ao
Classicismo e impedem a identificação de seu caráter revolucionário.
O ensaio constitui um de seus melhores trabalhos aplicados, ao operacionalizar
sua compreensão do movimento diacrônico do sistema literário. Porém, se as Ifigênias
se vinculam entre si, elas parecem –a de Racine e, sobretudo, a de Eurípedes – fora do
circuito de seu tempo e respectivos públicos.
Se as condições de produção de leitura – entendidas como os constrangimentos
sociais, linguísticos, tecnológicos, poéticos – estão ausentes da reflexão sobre a afinida-
de entre as obras, concebidas como reapropriação do passado em nome da modernidade,
mais ignoradas são quando se trata de pensar sobre os modos como se dá a recepção de-
las seja pelo público especializado, seja pela audiência não profissional.
Pesquisas que deem conta do comportamento do público parecem não interessar
muito os praticantes da Ciência da Literatura, seara que foi matéria de investigações da
Sociologia da Leitura e hoje é habitada por historiadores dedicados à Bibliografia117 e à

115
JAUSS, Hans Robert. Ästhetische Erfahrung und literarische Hermeneutik. Frankfurt: Suhrkamp,
1982. JAUSS, Hans Robert. The Dialogical and the Dialetical Neveu de Rameau: How Diderot adopted
Socrates and Hegel adopted Diderot. Berkeley: The Center for Hermeneutical Studies in Hellenistic and
Modern Culture, 1983.
116
JAUSS, Hans Robert. Racines und Goethe Iphigenie. Mit einem Nachwort über die Partialität der
rezeptionsästhetischen Methode. Neue Hefte für Philosophie 4 (1973), p. 1 - 46. Republicado em WARN-
ING, Rainer. Op. cit.
117
McKENZIE, Donald F. Bibliography and the Sociology of Texts. London: The British Library, 1986.

91
História do Livro e da Leitura.118 O álibi não justifica a ausência, mas a explica. Não,
porém, a ponto de legitimar a falta de interesse pela identificação dos mecanismos e
aparatos que intervêm na recepção de obras literárias, como a escola, os meios de co-
municação, a tecnologia e o Estado, este por meio de aparelhos como censura, legisla-
ção ou políticas públicas de difusão cultural.
Dentre essas ferramentas, nenhuma parece ter tanto peso quanto a escola, a co-
meçar pelo fato de que a ela compete, desde a Antiguidade, a alfabetização dos educan-
dos, bem como a transmissão da norma culta, formatada a partir da contribuição da lite-
ratura. É também a escola que determina e difunde o cânone literário, tarefa exercida
desde seus inícios na cronologicamente distante Atenas do século IV. Não menos im-
portante é a circunstância de que se converte em considerável mercado consumidor de
livros, a partir de sua institucionalização e transformação em etapa obrigatória da for-
mação da infância e da juventude. Deve-se também à existência e atuação da escola o
aparecimento de um gênero literário específico – o livro didático, encarregado de regis-
trar e difundir a língua padrão e as obras eleitas como emblemáticas do legado artístico
de um povo, um lugar ou uma nação.
Nenhum outro organismo talvez seja tão eficiente quanto a escola no que diz
respeito à viabilização da literatura – ou pelo menos da tradição da escrita artística – em
um grupo humano. Sua presença ou sua falta cooperam para ou inibem não apenas a
circulação da literatura e da arte, mas também a criação. Mesmo que constitua um apa-
relho vinculado à dominação e ao controle social,119 ela possibilita à literatura alcançar
visibilidade, logo afiançar sua identidade e materialidade.
Também a ação dos meios de comunicação de massa afeta o desempenho da lite-
ratura. As mídias impressas dividem, com aquela, o uso da linguagem verbal, comparti-
lhando o sistema da escrita, o que, de imediato, as aproxima. Podem aparecer como al-
ternativa profissional ou como mediadoras no processo de difusão dos produtos artísti-
cos. Podem, enfim, constituir um sistema paralelo, enquanto alavancam gêneros pró-
prios, como a crônica e o folhetim. Os meios de comunicação de massa incluem ainda
outras modalidades de expressão, como as mídias de circulação audiovisual ou eletrôni-
ca, a exemplo da televisão. Podem, pois, apresentar-se como mercado de trabalho ou
objeto de consumo concorrente, ao seduzir numerosos grupos sociais de espectadores,
dadas suas facilidades de divulgação.
As produções artísticas são igualmente devedoras das transformações na área da
tecnologia, e as discussões contemporâneas sobre as criações em meio digital são sin-
tomáticas não apenas do alagarmento dos gêneros literários, mas também da necessida-
de de se considerar, por ocasião da identificação dos objetos que pertencem à história da
literatura, a questão e o impacto dos suportes materiais, físicos ou virtuais, que acolhem
os resultados dos projetos estéticos.

118
CHARTIER, Roger et alii. Pratiques de la lecture. Paris et Marseille: Rivages, 1985; CHARTIER,
Roger. Lecures et lecteurs dans la France d’Ancien Régime. Paris: Seuil, 1987; MARTIN, Henry-Jean;
CHARTIER, Roger. Histoire de l’édition française. Paris: Promodies, 1982. DARNTON, Robert. The
Literary Underground of the Old Régime. Cambridge and London: Harvard University Press, 1982;
DARNTON, Robert. The Great Cat Massacre and Other Episodes in French Cultural History. New
York: Vintage Books, 1985; DARNTON, Robert. Edição e sedição. O universo da literatura clandestina
no século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 1992; DARNTON, Robert. Os best-sellers proibidos
da França pré-revolucionária. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
119
ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos de Estado. Posições II. Rio de Janeiro, Graal, 1980.

92
Por muito tempo a História da Literatura pretendeu ignorar a questão dos supor-
tes, tomando como natural a coincidência entre texto escrito e livro impresso, ainda que
esse tenha aparecido ao final da Idade Média e expandido-se após o século XVIII. O
vocábulo livro passou a representar metonimicamente a literatura, deixando em segundo
plano a circunstância de que também ele é produto de tecnologias em contínua trans-
formação.
Foi necessário que se constatasse que a era do livro tinha um prazo de validade,
para que os estudos literários levassem em conta os mecanismos que asseguram tanto a
visibilidade dos textos, quanto o sentido que transmitem. Com efeito, como destaca Do-
nald McKenzie, mesmo quando o suporte é uniforme – o livro, a página impressa –, os
significados dos textos onde aparecem mudam, se aquele se modificar. A disposição do
impresso é, ela mesma, uma interpretação, e, como tal, não pode ser ignorada.
Igualmente as ações do Estado afetam o funcionamento da literatura, fator que a
historiografia não pode desconhecer. A interferência mais insidiosa é a da censura, que
constrange os produtores culturais e contamina a disseminação de seus produtos. Obras
impressas após terem sido submetidas à censura podem não corresponder inteiramente
ao projeto autoral de seus criadores. Quando faltam os originais ou as fontes primárias,
torna-se quase impraticável determinar quanto do texto inicial pode ou não ter sido ob-
jeto de corte, reparo ou correção. Mas a suspeita deve bastar para abalar algumas certe-
zas dos pesquisadores sobre obras datadas de períodos literários sujeitos àquele tipo de
restrição. Oscilações, contradições, asserções inesperadas podem resultar de tais inge-
rências e, sobretudo, da vulnerabilidade e insegurança dos autores quanto ao destino de
seus produtos. Aos historiadores da literatura talvez caiba incorporar essa incerteza,
transformando sua prática no exercício da dúvida e da suspeita.
Para além da Estética da Estética da Recepção
Atuar no âmbito da História da Literatura não coincide com o alinhamento cro-
nológico dos fatos literários – eis uma das lições da Estética da Recepção. Não significa,
porém, renunciar à história, uma vez que a historicidade é constitutiva do saber e da cri-
ação artística. Por sua vez, a historicidade não decorre unicamente do processo de atua-
lização das obras, mas também de sua interação com seu tempo de produção, que ela, de
modo parcial ou integral, acolheu, rejeitou, transformou.
Na acepção de H. R. Jauss, a relação entre a obra e sua época dá-se em termos
de um diálogo como o horizonte então vigente. A tarefa metodológica incide, pois, na
identificação dos problemas e valores que constroem aquele horizonte, decorrentes, de
uma parte, da vontade autoral, de outra, das determinações, que independem do arbítrio
do criador e intervêm para que o objeto artístico se manifeste com as propriedades que
tem.
Talvez sob esta perspectiva se possa avançar além dos achados da Estética da
Recepção tal como Jauss a praticou.
Veja-se o caso de O Uraguai, de Basílio da Gama, talvez o clássico inaugural da
nacionalidade de nossa literatura segundo a formulação de boa parte das histórias literá-
rias elaboradas nos séculos XIX e XX.120 Ao conferir forma artística a um episódio da

120
Cf. GARRETT, João Batista de Almeida. Bosquejo da história da poesia e língua portuguesa. In: Par-
naso lusitano ou poesias seletas dos autores portugueses antigos e modernos, ilustrado com notas. Paris:
J. P. Aillaud, 1826. DENIS, Denis. Resumo da história literária do Portugal seguido do Resumo da histó-
ria literária do Brasil. Tradução, apresentação e notas de Regina Zilberman. Rio de Janeiro: Edições Ma-
kunaima, 2018. CANDIDO, Antônio. Formação da literatura brasileira. 2. ed. São Paulo, Martins, 1964.

93
guerra guarani – o confronto entre o exército liderado por Gomes Freire de Andrade e
os indígenas residentes nos Sete Povos das Missões – Basílio elegeu um episódio bélico
relativamente recente a seu tempo que atestava a superioridade das forças militares lusi-
tanas. Com isso, acompanhava a poética da épica consagrada em Portugal desde o fun-
dador Os Lusíadas, de Luís de Camões, calcada, como faz a epopeia desde os idos de
Homero, na narração de feitos de homens superiores,121 de uma parte, de outra, em
eventos consagradores da história pátria, no caso o triunfo sobre os indígenas domina-
dos pelos jesuítas e resistentes ao domínio de seu território pela Metrópole portuguesa.
A poética da epopeia serve, aqui, no entanto, a um propósito político: Basílio
almeja endossar o projeto pombalino que começara pela reconstrução de Lisboa (repro-
duzida na profecia de Tanajura, a feiticeira que assiste Lindoia em seu suicídio), avan-
çava pela condenação dos Távoras, supostamente artífices da falhada tentativa de regi-
cídio, e culminava na expulsão dos inacianos. Esses fatos antecediam em dez anos a
elaboração e publicação de O Uraguai, e Basílio em nenhum momento procura negar ou
obscurecer esse pano de fundo, asseverado ao longo do texto e, como se não bastasse,
nas notas que o acompanham.
Por essa razão, Ivan Teixeira considera Basílio um aúlico.122 Porém, o poeta teria
conseguido publicar o livro se fosse diferente? Provavelmente não, pois, como ocorria
desde os tempos de Camões, os originais eram submetidos à censura, agora gerida pelos
funcionários de Pombal, que fundara, em 1768, a Real Mesa Censória. Um ano depois,
em 1769, o livro de Basílio da Gama ostenta na folha de rosto a licença alcançada pelo
órgão recentemente instituído; além disso, informa ter sido impresso da Régia Oficina
Tipográfica, empresa instalada em 1768 pelo Primeiro Ministro como forma de contro-
lar a produção cultural em circulação no reino lusitano.
A atividade da Real Mesa Censória não pode ser ignorada, quando se examina a
literatura lusobrasileira do período pombalino. Rui Tavares, em pesquisa sobre a atua-
ção dos censores, registra que, entre 1768 e 1777, foram escrutinados cerca de 1500 li-
vros, dentre os quais 774 deles obtiveram autorização para impressão. Os demais divi-
dem-se em dois grupos – o dos alterados, em um total de 139 textos, e o dos rejeitados,
que somaram 512 títulos, isto é, mais de um terço do conjunto das proposições.123 É
desse período que datam alguns clássicos da poesia arcádica elaborada por autores nas-
cidos no Brasil, como as Obras, de Cláudio Manuel da Costa, autorizado para publica-
ção em 1768, e O desertor, de Silva Alvarenga, de 1774, esse também um poema de ní-
tido recorte pombalino.
Tavares observa que os censores escolhidos por Pombal eram homens cultos e
preparados, que julgavam as propostas primeiramente sob o prisma de seu possível va-
lor artístico e retórico. Segundo o historiador português, eles assemelhar-se-iam ao mo-
derno crítico literário, haja vista os pareceres que escreveram, reproduzidos em sua pes-
quisa. Também poderiam ser aproximados ao editor, aquela figura que, discretamente e

2v. CANDIDO, Antonio. Letras e ideias no período colonial. In: ___. Literatura e sociedade. São Paulo:
Nacional, 1965. HOLANDA, Sergio Buarque de. A Arcádia heroica. In: ___. Capítulos de literatura co-
lonial. Org. e introdução de Antonio Candido. São Paulo: Brasiliense, 1991.
121
Cf. ARISTÓTELES. Op. cit.
122
TEIXEIRA, Ivan. Mecenato pombalino e poesia neoclássica. Basílio da Gama e a poética do encômio.
São Paulo: Edusp; Fapesp, 1999.
123
TAVARES, Rui. O censor iluminado. Ensaio sobre o século XVIII e a revolução cultural do pomba-
lismo. Lisboa: Tinta da China, 2018.

94
a serviço de uma firma, avalia um original submetido à publicação e dá conselhos aos
autores, procurando aperfeiçoar a obra ainda inédita.
Mas a Real Mesa Censória não se movia apenas por critérios estéticos ou estilís-
ticos. Pautava-se também por um rígido regulamento que proibia a circulação, em Por-
tugal e suas colônias, de matéria que ferisse os dogmas religiosos vigentes, incentivasse
o fanatismo, contivesse obscenidades ou atentasse contra o poder do Soberano.124 Esses
paradigmas impunham a expressão de concepções afinadas ao status vigente, limitando
as possibilidades de manifestação artística independente, o que provavelmente condici-
onou Basílio da Gama a evidenciar, com inegável clareza, a adesão à política pombalina
e a seu modo de conduzir os negócios internos e externos em Portugal.
A historiografia da literatura nacional não costuma relacionar a criação de O
Uraguai a esses parâmetros, ressaltando seus valores a partir do que a poesia brasileira
veio a elaborar posteriormente, em especial no que diz respeito à presença de indígenas
em posição de destaque e à exposição do espaço geográfico americano. Os versos de
Basílio da Gama descolam-se da época com a qual dialogou, respondendo não apenas às
imposições das condições de produção, mas também reagindo a esses imperativos, co-
mo maneira de se fazer ouvir pelos contemporâneos.
Para identificar essa voz autoral, é preciso buscar o que leitor que ele foi. É a
partir deste lugar que se evidenciam os elementos que talvez desafiem a censura e am-
pliam o tipo de debate proposto por Basílio com a audiência – vale dizer, com os leito-
res que ambicionava alcançar.
Como se observou, é enquanto leitor dos épicos que ele procurou estruturar a
epopeia: de Homero, importou o teor bélico; de Luís de Camões, a anuência para falar
da história recente. Mas seu olhar não era apenas passadista, como sugere a nomeação
da personagem que, não sendo histórica, como Gomes Freire de Andrade, permite-lhe
exercitar a inventividade – Cacambo. Com o general português, o poeta paga a dívida
para as normas épicas, que impunham a participação de um bravo militar que não fosse
produto da imaginação do poeta. O paradigma épico requeria também a presença de um
líder afamado entre os adversários, o que valorizaria a vitória obtida, o que justifica a
participação, ainda que efêmera, de Sepé, guerreiro guarani. É depois de acatados os
preceitos básicos da produção da epopeia, que Basílio pôde fantasiar. Com esse fito, in-
troduz, no relato, o corretíssimo Cacambo, que, adotando a postura de um diplomata,
argumenta de igual para igual com o comandante português no canto II e mostra-se res-
peitável estrategista, soldado exemplar e marido amoroso. Porém, o nome Cacambo não
é criação de Basílio, figurando antes no Candide, de Voltaire, publicado em 1759.
Voltaire devia ser conhecido do público leitor lusitano, pois constava da lista dos
autores proibidos em Portugal, tendo sido citado no Índice Expurgatório de 1770.125 En-
tre os livros proscritos, mencionam-se explicitamente as Lettres Philosophiques, o
Poème sur le désastre de Lisbonne e o Candide, este, no mínimo, por aludir ao terremo-
to ocorrido em Portugal poucos anos antes do aparecimento daquela narrativa, em 1755.

124
Cf. MARTINO, Agnaldo; SAPATERRA, Ana Paula. A censura no Brasil do século XVI ao século
XIX. Estudos Linguísticos XXXV, p. 234-243, 2006; RODRIGUES, Graça Almeida. Breve história da
censura literária em Portugal. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1980.
125
CÁDIMA, Francisco Rui. Imprensa, poder e censura. Elementos para a história das práticas censórias
em Portugal.
https://www.researchgate.net/publication/277711918_IMPRENSA_PODER_E_CENSURA_ELEMENT
OS_PARA_A_HISTORIA_DAS_PRATICAS_CENSORIAS_EM_PORTUGAL. Acesso: 13 mar 2019.

95
O terremoto é matéria do capítulo V do Candide, quando o protagonista e seu
mentor, Dr. Pangloss, desembarcam em Portugal no exato momento em que o fenômeno
geológico acontece. Candide e as pessoas com as quais conversa consideram o fato uma
tragédia terrível, mas o otimista Pangloss observa que não poderia ter sido de outro mo-
do, pois o evento fazia parte do funcionamento do “melhor dos mundos possíveis”.126
Os sábios portugueses, após a destruição de “três quartos de Lisboa”, não pen-
sam da mesma maneira; e, “para prevenir a ruína total”, optam por “proporcionar ao po-
vo um belo auto-de-fé”, a que submetem Candide e Pangloss, em encenação “decidid[a]
pela Universidade de Coimbra”. Complementa o narrador: “o espetáculo de algumas
pessoas queimadas a fogo lento, com grande cerimonial, era um segredo infalível para
impedir a terra de tremer”.
É mais adiante, no capítulo XVI, com o protagonista já em Cádis, que ele admite
Cacambo como seu criado, “filho de um mestiço, em Tucuman” e que já fora “coroinha,
sacristão, marinheiro, monge, carteiro, soldado, lacaio”. É Cacambo quem convence o
patrão a conhecer “o reino” dos jesuítas na Paraguai, assim descrito por ele:

[...] Fui vigilante num colégio de Assunção, e conheço-o como as ruas de Cádis. É
uma coisa admirável esse governo. O reino já possui mais de trezentas léguas de
superfície e está dividido em trinta províncias. Os padres ali têm tudo e o povo na-
da; é uma obra-prima de razão e de justiça. Quanto a mim, não vejo nada de mais
divino do que os padres que fazem aqui a guerra ao rei da Espanha e ao rei de Por-
tugal e na Europa confessam esses reis; matam aqui os espanhóis e em Madrid os
enviam para o céu127.

Mais adiante a narrativa identifica outras desigualdades cometidas pelos sacer-


dotes: “um excelente almoço estava preparado em vasilhas de ouro”, “enquanto os pa-
raguaios comiam trigo em escudelas de madeira em pleno campo”128.
A participação de Cacambo estende-se por mais dois capítulos. No capítulo XVI,
o criado apela ao “direito natural” para justificar por que Candide poderia ser morto por
aqueles que pensam ser ele um jesuíta, já que havia colaborado com os sacerdotes.
Aceitando mais um dos “bons conselhos” de Cacambo, as duas personagens chegam ao
El Dorado, onde a riqueza é tão abundante, que crianças brincam com pepitas de ouro,
esmeraldas e rubis. Mas a fartura não se limita a aspectos materiais: no El Dorado, há
liberdade para todos os homens, podendo então os estrangeiros escolher entre partir ou
ficar naquele reino. Candide e Cacambo optam por seguir viagem e dirigem-se a Suri-
nami, colônia holandesa, quando se separam, destinando-se o primeiro à Europa, e o se-
gundo a Buenos Aires.
A participação de Cacambo no enredo do Candide não é esporádica, nem fugaz.
Ele ocupa seis capítulos do romance e desempenha papel importante, pois acompanha o
protagonista no segmento dedicado à América. É durante o desenvolvimento deste tre-
cho que aparecem tópicos importantes relacionados à representação do Novo Mundo no
imaginário europeu: de uma parte, é a terra do ouro, da promissão e – acrescenta Voltai-
re – da igualdade, corporificada no El Dorado tornado realidade; de outra, é o lugar da
violência contra os indígenas, dominados pelos jesuítas, e contra os negros, como revela

126
VOLTAIRE. Candide. In: ___. Selecções. Trad. J. Brito Broca. Rio de Janeiro: Jackson, 1958. As de-
mais citações provêm desta edição.
127
VOLTAIRE, 1958, p. 197-198.
128
VOLTAIRE, 1958, p. 199.

96
o capítulo XIX, em que, chegando a Surinami, Candide depara-se com “um negro es-
tendido por terra, não tendo mais do que a metade das vestes, isto é, de um calção de te-
la azul; o pobre homem não possuía a perna esquerda e a mão direita” (p. 218). O escra-
vizado explica por que se encontrava neste estado:

Dão-nos um calção de tela por única veste, duas vezes ao ano. Quando trabalhamos
nas refinarias e a mó nos apanha o dedo, cortam-nos a mão; quando queremos fu-
gir, cortam-nos a perna: estive em ambos os casos. É por esse preço que os senho-
res comem açúcar na Europa129.

Basílio da Gama não se apropria deste episódio, nem endossa a ironia de Voltai-
re diante do pensamento iluminista de Gottfried Leibniz, celebrador do otimismo e da
noção de que vivemos no melhor dos mundos. Mas incorpora a seu poema o sábio mes-
tiço, nascido em Tucuman e, sobretudo, vale-se da representação cruel dos jesuítas, que
exploram os indígenas e adonam-se de suas riquezas.
A concepção de Voltaire sobre os jesuítas não contrariava o que se afirmava so-
bre os inacianos, expulsos de Portugal em 1759, ano da publicação de Candide. Mas foi
aquele escritor que plantou aqueles sacerdotes no Paraguai e nas missões catequéticas,
ajudando Basílio da Gama a formular, poeticamente, o tema de seus versos. Porque po-
liticamente indesejados em Portugal, o poeta teve condições de posicioná-los como os
vilões de seu Uraguai; mas porque Voltaire tinha transformado a discussão política em
matéria literária, ele provavelmente teve condições de prosseguir em seu propósito cria-
dor.
Por outro lado, socorrer-se do nome da personagem americana e absorver a visão
de Voltaire sobre os padres missioneiros era confessar ter lido Voltaire, proibido de cir-
cular em Portugal. Ainda que de modo discreto e sub-reptício, o aparentemente submis-
so secretário do Marquês de Pombal revela seu lado transgressor. Adapta-o, é certo, aos
interesses da política do Primeiro Ministro; mas insere brechas em seu texto para dar
vazão à aspiração de superação da mera obediência.
Que História da Literatura é essa?
Ao escolher O Uraguai para exame, a intenção foi destacar o impacto das leitu-
ras de Basílio da Gama na construção do poema, em especial a do Candide, de Voltaire,
com ênfase na incorporação da personagem Cacambo ao enredo e na denúncia da cupi-
dez dos jesuítas. A escolha daquele livro, lançado dez anos antes da publicação de O
Uraguai, seria provavelmente suficiente para afiançar a modernidade dos versos do au-
tor brasileiro.
Uma História da Literatura constituída a partir das sugestões metodológicas da
Estética da Recepção talvez se satisfizesse com essa constatação, que teria, sem dúvida,
seus desdobramentos, pois as leituras subsequentes do poema tendem a ignorar essa co-
nexão. O fator modernizante dos versos é deslocado para outras características do texto,
entre elas o provável caráter nativista, indutor do futuro Indianismo romântico.
A presença do Candide nas entrelinhas de O Uraguai, contudo, não pode ser
deslocada da época e, sobretudo, dos constrangimentos ideológicos que cercavam o
poeta. Ao adotar o antijesuitismo de Voltaire, que ironiza a ambição dos sacerdotes, tra-
duzida na abundância do ouro e na alimentação de que se nutrem, matéria de estrofes
paródicas no canto V, Basílio da Gama endossava o ato político do Primeiro Ministro

129
VOLTAIRE, 1958, p. 219.

97
que expulsara os inacianos de Portugal. Mas, ao utilizar o nome de Cacambo para seu
herói indígena, o escritor adota também a sabedoria e humanismo da figura ideada pelo
pensador francês, pois é da boca do “mestiço de Tucumán” que saem palavras relativas
à justiça, à razão e aos direitos dos homens.
Por sua vez, introduzir Voltaire e suas ideias no poema foi um ato simultanea-
mente destemido e astucioso. Porque, se o filósofo francês não podia circular em Portu-
gal, ele não poderia ser identificado pelo censor; e, se esse percebesse a presença do in-
desejado pensador, demonstraria conhecer Candide com profundidade, pois Cacambo
só aparece depois de transcorrida mais da metade do enredo. Por sua vez, a presença
dessa personagem em O Uraguai, e na condição do herói que rivaliza o protagonismo
do Andrade, confere um status diferenciado ao poema épico.
Assim sendo, os diálogos intertextuais não dizem respeito tão somente à interlo-
cução entre obras, mas entre essas e seu tempo, perspectiva nem sempre presente nos
estudos associados à Estética da Recepção. Mas também ausentes da História da Litera-
tura, mesmo quando as análises valorizam elementos socioeconômicos, ideológicos e
poéticos.
Não se trata, portanto, de alterar a narrativa da História da Literatura, nem negá-
la como área de investigação. Nem de eliminar Basílio da Gama dos estudos literários,
como poderia sugerir a crítica ao comportamento aparentemente submisso que adota na
corte metropolitana. Pelo contrário, a indicação do impacto das leituras do autor na
construção do poema mostra-o como um interlocutor insubordinado, e seu livro, como
um projeto de emancipação intelectual a uma época em que tais pretensões não seriam
facilmente aceitas.
Cabe a História da Literatura discernir a voz autônoma de um indivíduo que, por
cima de constrangimentos ideológicos e materiais, deixou seu registro e seu legado para
os que vieram depois. E salientar o que representavam suas criações em um meio aca-
nhado como o Portugal pombalino, embora esse pretendesse apresentar-se como reno-
vador e progressista. Sob esse aspecto, a História da Leitura pode oferecer boas suges-
tões à História da Literatura, colaborando para sua saúde teórica e metodológica.
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